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TRAVESSIA

Tu tem olhado quebranto?


A M e d ic in a P o p u la r n o c o n te x to u r b a n o
Maria Cecilia Dias de Miranda*
Marta Valéria Capacla*

objetivo deste artigo1é o de apresen­


Medicina Tadicional, São Paulo sobre o ‘ ‘folclore mágico’ ’ - supers­

O tar as principais características das


práticas dos benzedores, situando
esses agentes de cura enquanto especialistas da
Medicina Popular, que combinam um saber
Terapias Religiosas
e Medicina Oficial
tições , simpatias e benzeduras. Previa que os
efeitos da secularização, isto é, a racionaliza­
ção que a vida urbana impõe, transformariam
essas práticas sem, entretanto, extingüí-las;
tradicional a respeito dos cuidados com a saú­ Enquanto parte da Medicina Popular, po­ ocorrería um reajustamento pelo qual sobrevi­
de, com elementos da religiosidade popular. demos classificar as benzeduras entre as práti­ veríam apenas as práticas mais adaptadas à
As benzeduras consistem basicamente em cas da Medicina Tradicional e entre as Terapi­ vida urbana.
gestos, rezas, simpatias, prescrição de ervas as Religiosas. A tualm ente a ação dos benzedores é
medicinais, remédios caseiros, imposição de A Medicina Tradicional constitui-se num circu n scrita a um âm b ito restrito . Curam
mãos sobre a cabeça do benzido ou sobre as conjunto de conhecimentos a respeito da saú­ doenças e s p iritu a is (m a u -o lh a d o , que­
partes do corpo afetadas, com a finalidade de de, doença e cura, desenvolvidos pelo povo nas b ra n to ) e o u tra s de m en o r gravidade
restabelecer o bom funcionamento do organis­ zonas rurais e transmitidos oralmente através (co b reiro , erisip ela , engasgo, mau je ito ,
mo ou eliminar influências espirituais negati­ das gerações. Tem um caráter essencialmente etc.). Os recu rso s m ais u tilizad o s são as
vas, causadas por mau-olhado, quebranto ou prático, empírico, pois seus principais procedi­ rezas, ervas m ed icin ais e sim patias.
castigo de forças divinas. mentos ocorrem nas experi­
Os benzedores distinguem-se pela capaci­ ências com a utilização dos
dade da cura, porque conforme afirmam possu­ recursos naturais e culturais
em um dom, uma capacidade dada por Deus de disponíveis. Tendo surgido
colocar a seu favor forças “ mágicas” presen­ nos primeiros séculos da his-
tes na essência do universo. Em outros termos tória do Brasil, combina ele­
o benzedor serve também como intermediário mentos de origem indígena,
na relação entre o indivíduo e o sagrado, poden­ africana e européia, com prá­
do portanto suplicar a providência divina nos ticas mágicas e crenças do
casos de doença e necessidade de proteção Catolicismo Popular.
espiritual.2 Com o processo de urba­
Para contextualizannos as benzeduras no nização, e com a migração
meio urbano, devemos verificar o espaço que dos especialistas da Medici­
essa prática ocupa no Sistema de Saúde. Po­ na Tradicional (curandeiros,
dendo dividir esse sistema em dois subsistemas: benzedores, parteiras, etc.)
- o não-institucionalizado (compreende a Me­ para as cidades, grande par­
dicina Popular, Medicina Alternativa ) c o te dessas técnicas mágico-
subsistema institucionalizado (compreende a empíricas foram esquecidas
Medicina Oficial - aquela ensinada nas univer­ ou transformadas.
sidades e praticada nos hospitais e unidades O aparecimento de no­
básicas de saúde ). Será no subsistema não vas doenças, o desenvolvi­
institucionalizado o lugar onde as benzeduras mento da medicina univer­
enquanto exemplo de Medicina Tradicional e sitária,a dificuldade de aces­
Terapia Religiosa irão constituir seu campo de so aos recursos da natureza
atuação e legitimidade. utilizados nos rituais e a mo­
A Antropologia hoje procura entender to­ dificação do contexto cultu­
das essas atividades como sendo práticas de ral inviabilizaram a trans­
saúde atualíssimas, legítimas, extensamente missão e o uso de grande
praticadas no meio urbano e procuradas não parte dos conhecimentos mé­
apenas em razão do fator econômico e das dicos tradicionais.
dificuldades de acesso ao sistema oficial de O sociólogo Florestal!
saúde: os usuários escolhem seus itinerários Fernandes já em 1941 reali­
terapêuticos principalmente em função de fato­ zou uma pesquisa em algu­
res culturais. mas áreas urbanizadas dc

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Será portanto nos vazios deixados pela excesso de amor no caso do Quebranto). de Pirituba, São Miguel, e Vila Ema. São
Medicina Oficial que os agentes populares de A s explicações a respeito das doenças ofe­ idosos, migrantes (do nordeste e do interior de
cura irão conquistar sua clientela. Não sendo recidas pela Medicina Popular são fruto de um São P aulo), muito procurados nos seus bairros,
possível determinar clinicamente alguns males saber produzido pelo povo, e portanto espelham e não cobram pelo benzimento. Entre os rituais
como o quebranto, o mau-olhado, o encosto, suas visões de inundo, ou seja, suas experiên­ utilizados por eles há algumas variações, en­
será nas Terapias Religiosas que o doente cias, seus valores, suas crenças religiosas, seus tretanto, a matriz religiosa comum é retirada do
obterá a oportunidade de diagnóstico e trata­ conhecimentos a respeito da natureza e do Catolicismo Popular.
mento. As religiões possibilitam que os indiví­ funcionamento do organismo. Esse saber espe­ P ara cada tip o de doen ça ex istem
duos orientem suas percepções a respeito das cífico é ignorado pela Medicina Oficial porque rezas3definidas que têm um poder em si e são
doenças a partir de um ponto de vista mais é uma produção cultural popular, e não erudita; acompanhadas pelo sinal da cruz. Em alguns
abrangente, que transcende as causas físicas, se constrói a partir de elementos religiosos, e casos são utilizados objetos domésticos (pra­
recuperando noções míticas que fogem do não científicos e porque valoriza as condições tos, linha, tesoura, óleo, etc) e objetos sagrados
âmbito dos modelos racionais propostos pela subjetivas na determinação de doença e cura. (velas, imagens de santos, ramos de arruda,
medicina científica. O estado de desordem Além do mais, conforme Camargo, a ten­ etc).
provocado pela doença, o medo da morte,, cri­ dência da Medicina Oficial é aumentar a cisão O benzedor age diretamente sobre a doen­
am no paciente uma postura subjetiva que se entre mente e corpo: “ é a doença que assume ça identificando os seus sintomas e definindo
abre para a fé e o irracional. (CAMARGO, 1987) uma entidade própria, quase separada do paci­ uma terapêutica específica. No bucho virado,
ente e essa espécie de 'espirito desencantado’ por exemplo, ele manipula o corpo do paciente
A Im portância da Fé que recebe a atenção do médico. Isolando-se a : ''(...) eu pego a criança pela perna , dô treis
subjetividade do paciente, sobra o lado soco na barriga . Se é grande, eu pego ele aqui
“ - Então precisa a pessoa credita em quantificável e acessível â tecnologia como assim p o r trás e suspendo ele, e você vê que vai
Deus, porque credita em Deus credita em tudo exames de laboratório, RX , etc.” (op.cit. p. no lugar '' (Sr. Sebastião) .
em tudo, né. Peguei e curei, graças a Deus. 449) Um exemplo clássico de reza para curar
(Seu Sebastião-benzedor). mau-olhado, transmitido com pequenas varia­
Percebe-se entre os benzedores um uso Os Caminhos da Cura ções é o seguinte:
distinto da fé, uma vez que a matriz religiosa '“f ulano, tu tem o fitado, qu ebran to?
envolvida é a do Catolicismo Popular. A reli­ Em busca da saúde o doente tem à sua
Com d o is te bota ram com três eu te tiro
gião, nesse caso é mobilizada para a resolução disposição vários sistemas de cura: pode recor­
e superação das carências espirituais e materi­ rer aos especialistas das Terapias Religiosas Com os poderes de D eu s e da Virgem “M aria
ais do cotidiano. (pais e mães-de-santo, médiuns, pastores ou S e é no com er, se é no beber,
cooperadores, benzedores), aos da medicina S e é na g o rd u ra , se é na rnagrem
A fé enquanto capacidade de se acreditar
antecipadamente num resultado que se deseja tradicional (curandeiros, vendedores de ervas
S e é na fe iu r a , se é na b o n iteza
é elemento essencial para que as benzeduras medicinais, e outros), das medicinas alternati­
vas (cromoterapeutas, acupunturistas, massa­ S e é m au-odm do de p a i, de mãe,
tenham eficácia. Quando a comunidade reco­
nhece o benzedor enquanto sujeito capaz de gistas, etc.) ou mesmo aos especialistas que íDe vizin h o s, p a re n te s, p essoa estran ha
utilizam com mais frequência o sistem a “B ucho virado, bicha assustada, dor de cabeça
propiciar alívio aos infortúnios e às aflições
através da utilização de forças sobrenaturais, institucional, como os fannacêuticos-práticos
(Febre, do r de barriga.
cria-se uma disposição emocional e psicológi­ que indicam medicamentos.
A escolha será norteada pelo tipo de doen­ C urai-o S en h o r, corn os p o d eres de “D eus
ca favorável à realização da cura e à manuten­
ça, pelas possibilidades de acesso aos serviços, e da V irgem M aria
ção da tradição das benzeduras.
e principalmente pelas visões de mundo do lTuíano tu tem o íh a d o , qu ebran to
As Diferentes paciente, ou seja, as explicações a respeito de
Com d o is te botaram , com trê s eu te tiro
saúde, doença e cura e opções religiosas .
Definições de Doença No subsistema não institucionalizado de Cornos poderes de “D eus e da V irgetnM aria
saúde o discurso do doente é valorizado pelo V á p ro s on das do M a r S a g ra d o 4
As representações a respeito da doença são
agente promovedor da cura. As explicações a A on de m io ca n ta g a io , n em gafín ha,
específicas a cada terapêutica da Medicina
respeito das doenças oferecidas são mais bem oíh ado, qu ebran to, a in veja,
Popular. Assim, as Terapias Religiosas expli­
compreendidas e identificadas com o universo
cam as doenças em virtude do distanciamento e toda a perseguição que está com fu lan o de ta í
cultural do paciente.
entre indivíduo e o sagrado, ou por sentimentos Com os poderes de “D eus e da V irgem M a ria .
negativos, “ mal feitos” de outras pessoas. Na
Umbanda por exemplo, o não cumprimento dos
Três Benzedores em “P ai, J“ iíh o , “E sp irito S a n to .

compromissos para com as entidades, as de­ São Paulo... -B eza P


“ ai Mgsso e oferece ao dono dessa oração.”
mandas e os encostos, entre outros, causam (“D. 9{minfia eSr. Joaquim- in memorian)
desordens na vida do fiel. Já o Pentecostalismo Quando nos propusemos à investigação da
explica a doença por causa do pecado ou pela prática do benzimento na metrópole não imagi-
Devido â grande procura e ao sentimento
presença do demônio. No Catolicismo Popu­ návamos, de fato, que a cidade abrigava um
de compromisso com seu dom, alguns benzedo­
lar, os benzedores, fazendo uso da Medicina número tão grande de benzedores.
res reservam dias e horários específicos para o
Tradicional, atribuem as doenças à causas físi­ Por necessidade da pesquisa pudemos ter atendimento. - 1'Ai eu fiz uns cárculo, dei treis
cas (excesso de sol na cabeça, mau-jeito, que­ contato m ais frequente com apenas três dias pra eles e fic o com três dias pra mim. Eu
bra de resguardo, indigestão) ou a causas espi­ benzedores - D.Nininha, D. Joana, Seu Sebas­ benzo de segunda, quarta e sexta-feira, né ''.
rituais (a inveja no caso do Mau-Olhado e o tião - moradores respectivamente dos bairros (Seu Sebastião)

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O espaço de atendimento pode ser uni
local especial ou não. Seu Sebastião benze
sempre em seu quarto onde mantém uma mesa
com todos os objetos sagrados , além de ima­
gens de santos nas paredes. D. Nininha, ao
contrário, parece considerar que todo espaço é
sagrado uma vez que realiza suas benzeduras
até mesmo na ma, quando é abordada por seus
clientes.
Os benzimentos também podem ocor­
rer à distância, por intermédio do nome do
paciente ou de objetos de uso pessoal como
roupas e remédios. A lógica que orienta essa
possibilidade de manipulação de forças é a
lógica do contato, isto é, um objeto pessoal
substitui seu proprietário, podendo, desta for­
ma, serum veículo para atingí-lo. “Eu morava
em Diamantina, e meu genro morava aqui.
Então ele mandava carta lá pra casa e o meu
marido então lia a carta efalava: - Joana tem
um benzimento aqui procè benze de fulano de
tal. Só ele me dava o nome, n é .' ’ (D. Joana)
O uso de medicamentos e ervas é espe­
cífico para cada doença . Alguns exemplos de
remédios segundo Seu Sebastião: “treis p i­
menta do reino, põe num copode água e toma
(para prisão de ventre ); ‘ ‘então cozinha treis
fo ia de comigo ninguém pode, e quatro fo ia de
copo de leite ’ ’ (para Erizipela).
Em muitos casos a relação entre a doença
e o ritual utilizado é metafórica. No benzimento
Foto: Marta Valéria Capacla
de lombriga , utilizam linha, tesoura e copo de
água. O ritual inicia-se com uma reza, colocan­
do em seguida a linha branca dentro do copo NOTAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
com água. A disposição das linhas na água (1) Este artigo foi baseado no relatório de pesquisa ARAÚJO, A.M.- A Medicina Rústica - São Paulo,
corresponde à das lobrigas na barriga e o corte "Medicina Popular: as Benzedeiras’’, realizado por Nacional, 3aed.1979.

da linha representa a interrupção da ação das Inés Rosa Bueno, Márcia Santos Irala, Maria Cecília BRANDÃO, C.R.- Memória do Sagrado - São Paulo,
Dias de Miranda, Marta Valéria Capacla, Vanderli Paulinas. 1985
lombrigas.
Maria da Silva e Vera Lúcia Bento. Foi desenvolvido CAMARGO,C.P.F.et alii -Terapias Religiosasem São
C on clu são para a disciplina Pesquisa de Campo em Antropologia Paulo - Relatório de Pesquisa, São Paulo, CEBRAP,
1987.
ministrada pelo Prof José Guilherme Cantor Magnani
A grande utilização do benzimento e outras no curso de Ciências Sociais da USP). FERNANDES, F.- Folclore e Mudança Social em São
Paulo - São Paulo. Anhambi, 1961
formas de Medicina Tradicional pelas popula­ (2 ) " A benzedeira pode ser praticante de uma religião
LOYOLA, M. A - Médicos e Curandeiros: Conflito So­
ções urbanas mostra que estas práticas têm sua (católica, evangélica, kardecista. umbandista, exotérica cial e Saúde -São Paulo. Difel, 1984
razão de ser mesmo na sociedade moderna: a ) (...)” (OLIVEIRA, 1983, p. 114 ) Trataremos aqui só
MEZZOMO, T.M. - Entre o oficial e o legítimo: o sub­
razão científica não dá conta de resolver todos daquelas de orientação católica. Embora encontrem sistema não institucional de atenção à saúde em São
os aspectos da vida. Contrastando com os sua legitimidade na religião, a Igreja Católica não Paulo - Dissertação de Mestrado . FGV.São Paulo,
altíssimos investimentos em tecnologias de reconhece oficialmente sua pratica. No seu trabalho 1992.
de cura não são agentes de conversão à Igreja e nem MONTERO,P. - Da doença à desordem: A magia na
ponta, as Políticas Públicas de Saúde ainda não
defendem a doutrina católica. Umbanda - Rio de Janeiro, Graal.1985
resolveram os problemas básicos, como o con­
(3) No que se refere à transmissão dessas rezas O LIVE IR A , E.R. - O que é B enzeção - São
trole de algumas epidemias e a má qualidade Paulo,Brasiliense,l985.
dos serviços prestados. alguns benzedores preferem conservá-las em segre­
do, ou ensiná-las em situações apropriadas, como na ______________ - O que é Medicina Popular - São
Um sistema mais global como a religião Paulo, Brasiliense,1984
Sexta-feira Santa ou pouco antes da sua morte. Ensiná-
inclui em sua explicação de mundo elementos _____________ - “ Doença, cura e benzedura." IN:
las em situações indevidas acarreta a perda do dom.
que a ciência ignora; contudo, não se deve História: Questões & Debates. n° 4, v.6, Curitiba,
impor nem substituir uma visão de mundo pela (4) "É para as ondas do mar salgado ou sagrado que 1983, pp 111-119
os benzedores enviam os maus-olhados e invejas; o QUEIROZ, M.S. - Representações sobre saúde e
outra. Para a Medicina Oficial isso significa
que não é desejado é endereçado para um lugar tão doença. Agentes de cura e Pacientes no contexto
repensara filosofia de sua prática, reconhecen­
distante onde também não se ouve o canto do galo. É SUDS - Campinas, UNICAMP.1991
do o indivíduo como um ser cultural, e não
o poder do sal capaz de quebrar todos os encantos e _____________ - "Feitiço, mau-olhado e susto: seus
unicamente biológico. prender as doenças ou espíritos indesejáveis '( ARA­ tratamentos e prevenções - Aldeia de Icapara" - IN:
* Maria C. Dias de Miranda e M arta Valéria Capada ÚJO, p.117). Religião e Sociedade, n°5, Riode Janeiro. I980, pp. 131-
160.
são estudantes do Dpt° de Ciências Sociais/USP.

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