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Prosa, Música,
Poesia
A condição humana por
Raul Seixas
Natal/RN
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
NATAL/RN
2020
JOSÉ GLEDSON NOGUEIRA MOURA
NATAL/RN
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida - Orientadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
_________________________________________________________________
Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira – Examinador Externo
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Aldemir Farias - Examinador Externo
Universidade Federal do Pará - UFPA
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Fagner Torres de França – Examinador Interno
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Walter Pinheiro Barbosa Júnior – Examinador Interno
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Iran Abreu Mendes – Examinador Suplente Externo
Universidade Federal do Pará - UFPA
_________________________________________________________________
Profa. Dra. Eugênia Maria Dantas – Examinador Suplente Interno
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Eu dedico essa tese às primeiras pessoas que estão sentadas ali na fila.
Muito Obrigado!
Ao Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho e ao Prof. Dr. Alex Galeno pelas
contribuições no processo de qualificação.
A minha tia Rosa Moura e aos meus primos David, João Paulo e Isabelle
pela acolhida sempre que precisava vir a Natal.
The current thesis has as its theme the human condition as it is expressed
in the musical work of Raul Santos Seixas. Why should we think about the human
condition based on art, poetry, music? Understanding poetry, theater, cinema,
literature, music and the arts as human experiences that can contribute to an
awareness and knowledge of the self, of the relationship with the other and of
the insertion of the individual in society, the thesis assumes as its purpose to
recover the necrotic parts of science in order to inject streams of creative, anti-
paradigmatic and critical thoughts and to build the possibility of architecting
a new grammar of science, a new musical score of the knowledge narrative
about the world and humanity through music. Starting from the consideration
that, in the arts, there is a profound thought about the human condition, I
problematize, through the poetry and music of Raul Seixas, his understanding
of our condition of humanity. The research was developed in order to promote
reflections on the constitution of the human being as biological and cultural,
as universal and, at the same time, diverse and singular, as prosaic and poetic,
reaffirming our existence as Sapiens sapiens demens. The work is stimulated
and based on the phenomenon of culture and the consequent diversity of
experiences that the human condition makes possible in life in society. While
walking through the itinerary of Raul Seixas' life and work through his
compositions and dialogue with the thoughts of authors such as Edgar Morin,
Conceição Almeida, Edgard Carvalho, Nuccio Ordine, Giorgio Agamben,
among others, I tension the figure of Raul as being the expression of prose,
music, poetry.
PRELÚDIO ..................................................................................................................... 15
Vem surgindo de trás das montanhas azuis, olhe o trem ................................... 21
Meu despertar para a condição humana ........................................................... 26
O primeiro contato com o Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM. 28
Este caminho que eu mesmo escolhi .................................................................... 30
CAMINHOS .............................................................................................................133
CAMINHOS II ...........................................................................................................137
Eu conheço bem a fonte que desce daquele monte .....................................138
Inspirações e outros escritos ..................................................................................140
15
PRELÚDIO
1Na biografia “Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida” publicada no final de
2019, o jornalista Jotabê Medeiros afirma que Raul Seixas deixou 312 canções registradas
como composições suas, além de dezenas de músicas inéditas nas mãos de parceiros.
20
2Até a transição para a carreira solo de cantor, Raulzito era a forma como Raul Seixas
assinava a autoria de suas composições,
22
Ainda que meu acesso às músicas de Raul fosse limitado, as que eu tinha
em mãos já me causavam uma sensação diferente e indescritível, o que me
movimentava a querer muito mais. Comecei a experimentar e vivenciar
aquele universo musical na prática. Nessa mesma época comecei a
frequentar em Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte, Russas, cidades da
região do Vale do Jaguaribe no estado do Ceará minhas primeiras festas de
rock. Halloweens, tributos a bandas e artistas de rock nacional e internacional,
além de festivais, passaram a fazer parte do universo de diversão de um jovem
que começava a sair de casa. Músicas do artista estavam sempre presentes
nesses ambientes, tocadas ou por bandas covers, por artistas que o imitavam
ou por bandas que faziam sons variados. A presença de alguma banda ou
cantor que fizesse menção ao artista já me chamava atenção e despertava
o desejo de querer ir ao evento.
Foi durante esse mesmo período que outro acontecimento me marcou.
Num domingo à noite, em plena celebração da missa das 19 horas, na igreja
matriz de Limoeiro do Norte - CE, para minha surpresa, e creio que para de
muita gente ali, o padre fez referência a Raul Seixas durante o sermão. Fez
menção justamente a música que nomeia a abertura da tese. Ao final da
homilia citou a canção “Prelúdio”: “Sonho que se sonha só é só um sonho que
se sonha só\Mas sonho que se sonha junto é realidade” (Raul Seixas, Gita,
1974). O padre destacava a ideia da coletividade e da união como uma
força importante. Fiquei extasiado, jamais imaginei ouvir qualquer referência
ao artista dentro de um templo religioso. Mesmo não sabendo precisar a data
exata do acontecimento, aquilo ficou gravado na minha memória. Ouvir um
padre recitando Raul foi inesquecível.
Ao ingressar na graduação (2003-2007) no início do ano de 2003 no
curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN) o interesse pela obra do cantor não só permanecia como aumentava.
Comecei a frequentar uma pequena loja de discos que havia na
universidade. A loja reunia um acervo dos mais diferentes gêneros musicais, as
estantes estavam sempre repletas de discos de cantores e bandas nacionais
e internacionais. Para minha alegria, a loja contava com diversos álbuns de
25
Raul para a venda. Tanto discos em vinil (LP’s) como CD’s eram
comercializados no espaço. Sempre que podia comprava algo relacionado
ao artista.
Entre os anos de 2005 a 2007, como bolsista de iniciação científica do
Programa de Educação Tutorial (PET) na graduação, o que me rendia um
valor em dinheiro, comecei a comprar os meus primeiros CD’s, DVDs, pôsteres,
visitar sebos e adquirir os primeiros vinis e frequentar cada vez mais festas de
tributo à obra artística do cantor.
Essa identificação com sua música nunca me impediu de curtir outros
artistas de rock ou de outros gêneros musicais. Contudo, a sonoridade
provocada pela potência da música de Raul e a força da linguagem de sua
poesia me mobilizava de alguma forma à condição de admirador do referido
artista e a inquietação de buscar mais informações sobre sua trajetória musical
e consequentemente pessoal.
Mesmo não pertencendo a nenhum fã-clube ou comunidades virtuais
sobre Raul Seixas que já existiam espalhados às dezenas por todo o Brasil na
primeira década dos anos 2000, fui ampliando o meu conhecimento tanto
sobre a obra musical do artista como sobre o homem. Raul disse certa vez que
a “música é apenas a vomitada de cada pessoa, uma cusparada. É a
expressão de cada um... Música é abrir a boca e emitir sons” (SEIXAS. In:
PASSOS, 2012, p. 27-28). A música para Raul era fundamental, expressão de
um conjunto de sentimentos internalizados colocados para fora por meio dos
sons e das palavras.
A partir da relação e do diálogo entre as chamadas ciências humanas
e a arte, comecei então a vislumbrar a música como um elemento
potencializador de compreensão dos aspectos do indivíduo, da vida em
sociedade e dos diferentes fenômenos da existência humana.
Comecei a perceber na música um operador cognitivo potente capaz
de oferecer as chaves para abrir as portas da compreensão sobre a condição
humana nos seus mais diferentes aspectos. Algo que veio a se confirmar mais
tarde com o amadurecimento da proposta de pesquisa apresentada e
selecionada para ingresso no doutorado e a concretização dessa tese.
26
Fonte: www.google.com.br
por meio da sua música. De fazer da sua guitarra uma espada na mão e do
rock o seu grito.
3
O livro “Raul Seixas: uma antologia” (1992,) escrito e organizado por Toninho Buda e Sylvio
Passos, contém todas as letras das composições gravadas por Rau Seixas na sua discografia.
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METAMORFOSE AMBULANTE
Prefiro ser essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Quero dizer agora o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Fonte: www.google.com.br
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Raul parece expor através do espelho nos faltar algo para compreender
quem somos. Expõe a nossa incompletude e o nosso inacabento. O olhar no
espelho e não se enxergar é sintomático do nosso distanciamento com o
universo, com o mundo e com nós mesmos.
Apesar de estarmos, ao mesmo tempo, dentro e fora da natureza e de
sermos seres simultaneamente, cósmicos, físicos, biológicos, culturais,
cerebrais, espirituais, não temos consciência de nosso enraizamento com a
Terra e menos ainda com o cosmo. Não compreendemos que somos filhos do
cosmo, mas,
Espelho eu
Será que sou aquele que estou vendo
Em frente a mim e diante do espelho?
Ou aquele que nunca quis ver,
Eu mesma.
Será que sou assim como me vejo?
Magro, bêbado, belo e feio...
sua poesia nos permite inserir e situar a condição humana no cosmo, na vida,
na Terra e ao mesmo tempo, na cultura, na sociedade, na história, na estética.
Como nenhum outro compositor, foi produto e produtor de sua música,
de sua obra, de sua vida. Foi criador e criatura da sua existência, da sua arte.
Soube compreender e manusear como poucos o fato de ter consciência de
sua própria consciência, característica fundamental da nossa condição e
emergência extraordinária da mente humana. Talvez por isso, achava mais
difícil fazer o próprio papel na vida do que encarnar outros personagens. Era
mais difícil ser Raul Santos Seixas do que simplesmente Raul Seixas. Ou seria o
contrário?
Em relação à consciência, por exemplo, disse:
críticas sobre a realidade. Ao mesmo tempo suas atitudes como artista eram
dotadas muitas vezes de uma desmesura.
Como compositor e produtor musical, conseguiu captar de forma muito
rápida os macetes da indústria fonográfica da época e a lógica comercial do
negócio para compor músicas que pudessem vender bem e produzir discos
ou compactos que fizessem sucesso e fossem estouro de vendas.
Foi um excelente produtor musical. É considerado por quem é do ramo
da música como tendo sido um grande profissional de estúdio. Em parceria
com o também produtor Mauro Mota, foram responsáveis no início da
década de 1970, por inúmeros sucessos da música popular do país. Com seu
terninho preto, de óculos e carregando sua mala 007, era considerado por
muitos dos artistas contratados da então gravadora CBS o melhor e mais
responsável produtor.
suas músicas tocando nas rádios, nem ser chamado para programas de
televisão (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 47).
Por mais que detestasse o sistema, queria provocá-lo e enfrentá-lo
permanecendo nele. Embora fizesse parte do monstro SIST como ele
chamava, soube utilizar de forma inteligente o próprio sistema. Tinha
consciência das relações presentes neste espaço.
Geração da Luz, Raul Seixas; Kika Seixas, Metrô Linha 743, 1984.
Eu já falei
Sobre disco voador
E da Metamorfose que sou
Eu já falei só por falar
Agora eu vou cantar por cantar...
1972. Ficava sozinho pensando por horas e horas trancado no quarto criando
seu próprio mundo. Um mundo interior, desinteressado do mundo externo
(SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 74).
Devido a esse contato com os americanos do consulado passou a ouvir
discos de Elvis Presley, Little Richard, Fats Domino, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis,
Gene Vicent, entre outros. Passou a conhecer de fato o rock’n’roll.
O rock passou a ser percebido por Raul como uma porta de saída,
como a vez de falar para o mundo, de subir num banquinho e dizer que estava
ali. Ser cantor de rock passou a ser seu desejo.
Os comportamentos assumidos pela atitude advinda do rock se
caracterizavam pela maneira de vestir, pelo modo de falar, de agir e das
atitudes que faziam parte da tendência comportamental dos jovens
adolescentes da época. Raul, por exemplo, afirmava que era o Elvis Presley
quando andava e penteava o topete. Em depoimento a Luciane Alves (1993),
a mãe de Raul, Maria Eugênia Seixas afirmou que o adolescente só queria
saber de música e namoradas.
64
A ideia de ser escritor como Jorge Amado era algo que lhe atraia muito.
Escrever o dia todo, viver dos livros, camisa aberta no peito e um cigarro
caindo do lado eram tudo que queria. “Eu achava lindo sentar em frente à
máquina com aquela camisa branca bem largona, sabe? Como nas fotos de
Jorge amado” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p.129).
Foi por meio da música que tomou consciência de que a forma de
comunicação proporcionada seria muito mais rápida que a literatura,
especialmente num país que não gosta de ler como o Brasil. A música teria
uma potência muito maior e mais rápida como forma de dizer de maneira
direta o que se pensava.
Por meio da música Raul Seixas expunha seu ponto de vista sobre a
humanidade. Dizendo o que queria dizer ao mundo pela poesia de suas letras
e pela sonoridade de suas músicas.
Incitado certa vez a falar de suas composições, Raul disse que era difícil
falar das coisas que escrevia, pois o que queria dizer já estava nas letras, já
estava lá.
Como, por exemplo, na letra da música “Ouro de Tolo” que diz o
seguinte em determinado trecho:
Fonte: www.google.com.br
Trem trem
Levou o meu bem
Trem trem
Me leva também
Eu não quero ficar
Sozinho aqui
Oh, trem me leva
Que eu também quero ir
Quero encontrar o amor que perdi
Trecho da letra Trem 103, Raulzito, Raulzito e Os Panteras, 1968.
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a dizer em entrevista ao Pasquim que esse disco foi quando ele botou as
manguinhas de fora. Foi quando ele começou a fazer o trabalho. De acordo
com Raul, o disco mostrava o panorama atual do que estava acontecendo,
o caos todo daquela época, início dos anos de 1970 (SEIXAS. In: PASSOS, 2012,
p. 96).
O disco era composto de diversos ritmos e sons: samba, marchinha, jazz,
baião e trazia composições de Raul Seixas e Sérgio Sampaio, exceto numa
música. O disco acabou sendo retirado do mercado pela gravadora na
época, que alegou não ser a linha seguida por ela. Hoje é um dos álbuns mais
raros e cultuados pelos fãs de Raul Seixas. Chegando a custar algumas
centenas de reais no mercado.
Raul fala orgulhoso do disco em entrevista a Jay Vaquer. “Valeu a pena,
apesar de ter vendido pouco. Nós nos divertimos muito. Foi também a primeira
vez que fiz algo para ser consumido e do qual me senti paranoicamente
orgulhoso e feliz” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 75). O disco traz na sua última
faixa a composição Dr. Pacheco, letra que demonstra sua capacidade de
percepção e leitura do cotidiano.
Aproveita a ocasião
Trecho da letra de Dr. Pacheco, Raul Seixas, Sociedade da Grã-Ordem
Kavernista Apresenta Sessão das 10, 1971.
Raul afirmava ainda que não tinha estilo e sim muita coisa para dizer. E
que dizia. A música passou então a ser a forma de comunicação mais direta
para Raul Seixas. Chegando a dizer por várias vezes que sua música era fácil,
boba, direta. O festival o projetou artisticamente e foi contratado pela
gravadora Philips. O festival se caracterizou como uma espécie de rito de
passagem, segundo a antropóloga Rosana Teixeira (2008).
Em 1973 lança o seu primeiro disco solo, Krig-Há, Bandolo! O álbum traz
algumas músicas “As minas do Rei Salomão”; “A hora do trem passar;
Rockixe”; “Cachorro Urubu”) da então parceria iniciada com Paulo Coelho,
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que havia conhecido alguns meses antes devido a uma reportagem sobre
discos voadores (PASSOS; BUDA, 1992, p. 96). A parceria durará por alguns
anos, vindo a repercutir em diversas composições e outros álbuns gravados
pelo cantor. Perguntado pelo jornal O Pasquim, em Novembro de 1973 onde
fica Krig-Há, afirma:
vivo, nas gravações dos discos em estúdio, na divulgação dos álbuns, nas
apresentações em programas de televisão ou até mesmo nas entrevistas que
eram concedidas a jornais, revistas, etc.
Depois de terem os Gibi/Manifesto recolhidos, passa a enfrentar
problemas cada vez maiores com a censura e com a perseguição política,
especialmente por conta das ideias referentes à sociedade alternativa.
Juntamente com Paulo Coelho e esposas de ambos, vão para os
Estados Unidos em 1974. Depois de alguns meses, voltam devido ao sucesso
da música Gita para lançar o disco de mesmo nome. Gita é o segundo álbum
solo de Raul Seixas. O disco fez um enorme sucesso, o que lhe rendeu seu
primeiro disco de ouro. Nesse mesmo ano, separa-se da sua esposa Edith, que
acaba retornando com a filha do casal para os Estados Unidos (PASSOS;
BUDA, 1992).
Foi nessa mesma época (1973/74) que Raul Seixas passou a se interessar
e a se envolver com temas como magia, misticismo, esoterismo, sociedades
esotéricas, o que acabou tendo influência no referido disco que acabara de
ser lançado em 1974.
O ano de 1974 foi terrível pra mim. Foi um ano marrom. Eu fiquei
perdido, confuso, apavorado. Eu queria respostas, eu queria
descobrir... tudo... descobrir tudo. Eu estava envolvido
profundamente com Paulo Coelho, e nós mergulhamos mesmos
no esoterismo. Eu via uma saída por aí, queria descobrir.
Conheci uma pessoa chamada Marcelo, uma pessoa muito
importante, e foi na mão dele que Aleister Crowley deixou o
Livro da Lei; ele é o continuador da obra de Crowley. Ele nos
iniciou numa sociedade esotérica. Paulo saiu logo, mas eu
continuei, depois entrei para uma outra, mais elevada... eu
estava envolvidíssimo. E de repente descobri que a luz, o
conhecimento, tem de vir de você mesmo. É claro que eu
precisava passar por tudo isso pra descobrir. Agora eu estou
comigo. Estou bem comigo, do mesmo modo como todos
deviam estar bem consigo mesmos (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p.
31).
Tempos depois Raul Seixas vai dizer que Gita foi um disco doutrinário,
que ele estava pondo pra fora o lado de Jesus Cristo, que adora sofrer pelas
pessoas, mostrar-lhes o caminho. “Já reparou na capa? Estou eu lá, de dedo
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Veja
Não diga que a canção está perdida
Tenha fé em Deus, tenha fé na vida
Tente oura vez
Beba
Pois a água viva ainda tá na fonte
Você tem dois pés para cruzar a ponte
Nada acabou, não não não...
Queira
Basta ser sincero e desejar profundo
Você será capaz de sacudir o mundo
Vai, tente outra vez
Tente
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Nesse mesmo ano, se separa de Glória, sua segunda esposa. Mais uma
vez presencia a partida de mulher e filha para os Estados Unidos. É dessa
época também o consumo cada vez mais exagerado de bebidas alcóolicas,
o que começa a agravar os problemas de saúde do artista e a tornar sua
relação com a gravadora conturbada.
Em 1978, depois de passar alguns meses numa fazenda no interior da
Bahia se recuperando da pancreatite agravada pelo excesso de álcool,
retorna com uma nova companheira, Tânia Mena Barreto e grava mais um
disco pela WEA, Mata Virgem, retomando a parceria com Paulo Coelho no
referido álbum. Na letra de “As Profecias”, os dois tratam do fim do mundo.
No ano seguinte lança seu último disco pela WEA, Por Quem os Sinos
Dobram, agora em parceria com o argentino Oscar Rasmussen (PASSOS;
BUDA, 1992). Ainda no ano de 1979, separa-se de Tânia Mena Barreto,
conhece Kika Seixas, com quem passa a viver a partir de 1980 e com quem
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Raul tem sua terceira filha, Vivian Seixas. A letra de “Movido a Álcool” revela
traços do humor, ironia e de sua relação com o álcool.
O fim dos anos 1970 e início de 1980 marca uma virada profissional de
altos e baixos em sua trajetória. Assina contrato com uma nova gravadora, a
CBS. Passa a morar na cidade de São Paulo depois de muitos anos no Rio de
Janeiro e lança o disco Abre-te Sésamo em 1980. Passa ainda por uma cirurgia
no pâncreas no Hospital Albert Einstein, o que o deixa hospitalizado por
algumas semanas.
Como ele próprio afirmava em tom de ironia, é um disco em
homenagem a abertura política brasileira. “Em Abre-te Sésamo está presente
essa agulha incisiva que penetra no calcanhar de Aquiles do sistema” (SEIXAS.
In: PASSOS, 2012, p.115).
Fecha a porta!
Abre a porta!
Abre-te sésamo
Esse show foi demais. Foi adiado, porque na primeira vez eu caí
doente, mas, quando eu finalmente eu fiz, foi demais. Tinha
gente que se agarrava nas minhas pernas, que pulava no
palco, e olha que eu estava cantando coisas que a maioria
nem conhecia, nem sequer tinha nascido quando aqueles rocks
foram sucesso (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 37)
E que
eu nunca mais vou abrir;
Cada vez que eu me despeço de uma pessoa,
Pode ser que esta pessoa esteja me vendo pela última vez;
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar...
Trecho da letra de Canto Para Minha Morte, Raul Seixas; Paulo Coelho, Let Me
Sing My Rock and Roll, 1985.
Depois de quase três anos longe dos palcos, no final de 1988 participa
de show de Marcelo Nova na Concha Acústica do Teatro Castro Alves em
Salvador e a partir daí saem numa turnê de 50 shows pelo país no ano de 1989.
A turnê resultou no último trabalho de Raul Seixas. O disco Raul Seixas e
Marcelo Nova - A Panela do Diabo foi lançado pela WEA em agosto de 1989,
poucos dias antes da sua morte. A composição “Banquete de Lixo” faz uma
breve retrospectiva de momentos de sua vida: estadia nos Estados Unidos,
internações em clínicas de recuperação, shows\turnês, amores, casamentos
e parecia anunciar o fim que estava próximo:
5 Número que pode variar para mais ou para menos de acordo com algumas listas de
diferentes pesquisadores.
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Krig-ha, Bandolo!
93
Gita
Novo Aeon
Mata Virgem
Abre-te Sésamo
Raul Seixas
Uah- Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!
A Pedra do Gênesis
De ser cantor
É só dizer
Prá não morrer
Meu único amor...
Trecho da letra de Mas I Love You, Raul Seixas; Rick Ferreira, Metrô Linha 743,
1984.
Mas, afinal, quem foi Raul Santos Seixas? Quem foi Raulzito? Quem foi
Raul Seixas? Quem foi esse indivíduo? Quem foi esse produtor? Quem foi esse
compositor? Quem foi esse cantor? Quem foi esse sujeito?
Raul foi tudo e foi nada. Foi raso, foi largo e profundo. Foi o início, o fim
e o meio dele mesmo. Foi um ser humano que se fez artista de muitos
personagens: foi pantera, hippie, beatnick, foi católico, budista, protestante.
Para não se alienar e ser apenas o compositor carismático como afirmava ser,
não bastava. Era a verdadeira metamorfose ambulante.
Fonte: www.google.com.br
criava sobre o contato com discos voadores, o encontro com John Lennon
em Nova Iorque, as entrevistas que concedia, entre outras tantas aventuras
vividas pelo artista durante sua trajetória, comprovam o quanto Raul era
inventivo e sabia extrair daquelas situações experiências para sua vida e suas
composições.
Perguntado, por exemplo, por Jay Vaquer sobre uma maravilha, Raul
responde:
O universo. O que eu só sei que não sei. O que está lá. No outro
lado do espelho. A mente. A vida. Os fenômenos inexplicáveis.
Paranoia. Loucura. Sonho. Cosmos. Consciência cósmica. 2001.
Homo Futurus. Velocidade Vetônica. E sobre o adágio na sua
parede diz o seguinte: Que o mel é doce é que coisa que me
nego a firmar, mas que parece doce eu afirmo plenamente
(SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 78).
Eu calço é 37
Meu pai me dá 36
Dói, mas no dia seguinte
Aperto meu pé outra vez
Pai eu já tô crescidinho
Pague prá ver, que eu aposto
Vou escolher meu sapato
109
Dizia não trazer respostas e que cantava para sua saída. Se ele
conseguia sair, todos podiam sair pelas próprias portas. Afirmando que a vida
é o nosso único bem e que só pertence a nós mesmos. Podemos fazer dela o
que quisermos.
Ao problematizarmos sua condição como indivíduo, ou seja, como
alguém que tem consciência de sua subjetividade, pensamos não somente
como indivíduo, mas também como sujeito. Para Edgar Morin, um sujeito
supõe um indivíduo, mas a noção de indivíduo só ganha sentido ao comportar
a noção de sujeito.
Morin coloca o indivíduo como peça chave na trindade (indivíduo,
sociedade, espécie). É fundamental a noção de sujeito para
compreendermos a condição humana e as relações que se evidenciam a
partir dessa referida trindade. Como afirma Morin:
que pode ser percebida como uma construção a partir das interações que o
artista vivenciou e experienciou no decorrer da sua vida em sociedade.
A arte de Raul Seixas pode ser compreendida como resultado da
interação que estabeleceu com os outros indivíduos na vida em sociedade a
partir de um Eu egocêntrico que o fez ser centro do mundo nas suas ações,
nas suas atitudes, naquilo que pensou e naquilo que disse.
De acordo com o que Edgar Morin nos propõe, o sujeito é por natureza
fechado e aberto. Estando sempre numa relação ambivalente.
Jamais me revelarei!
Se esse amor
Ficar entre nós dois
Vai ser tão pobre amor
Vai se gastar...
Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais...
Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi
Que além de dois existem mais...
Trechos da letra de A Maçã, Raul Seixas; Paulo Coelho; Marcelo Motta, Novo
Aeon, 1975.
Novo Aeon, Raul Seixas; Cláudio Roberto; Marcelo Motta, Novo Aeon, 1975.
124
6 Em Agosto de 2019 a morte do artista completou trinta anos. Diversas iniciativas espelhadas
ao longo do ano passado por todo o país relembraram a data. Shows tributos, passeatas,
lançamentos de livros, entre outras manifestações marcaram as celebrações de homenagem
a Raul seixas em diferente lugares do país.
7 Monografias, dissertações e teses tem constantemente procurado decifrar a partir de
Nos chama a religação, a nos conectar com o que foi retirado de nós.
Propõe tomada de atitudes por nós humanos frente aos desafios existentes
nesses tempos obscuros e incertos. Sua música nos leva a refletir sobre as
possibilidades e a necessidade de mudanças, frente aos grandes e graves
problemas que estão colocados para a humanidade.
A música foi para Raul Seixas um mecanismo para dizer a verdade ao
poder e um veículo para expressar toda a sua criatividade e genialidade
como marcadores da nossa condição demens. Sua poesia provocou e ainda
provoca abalos sísmicos. A desordem estabelecida por sua música reforça a
loucura como um elemento constitutivo da condição humana e a própria
desordem como característica distintiva do nosso ser.
Talvez sair da fábrica da ordem seja a mensagem fundamental que
ecoa de sua música. Um som que vai ter ressonância e propagação na
politização do pensamento. É isso. A sua arte, por meio da música, politizou o
pensamento. A sua música se caracterizou como um instrumento que
antecipou aspectos do cotidiano da vida social que muitas vezes passaram
despercebidos pelas teorias e tratados das chamadas ciências humanas e
sociais.
Reside aí um aspecto primordial da originalidade do artista. A sua obra
pode ser compreendida como uma matriz viva do seu pensamento. Os
inúmeros personagens de sua personalidade são partituras complexas da
condição humana onde estão constituídas a vida e a obra construída por sua
música e poesia.
Canta, Raul. Nos ajuda a ser útil e a nos tornarmos pessoas melhores
diante de um mundo degenerado e de um cenário em que a humanidade
parece não saber para onde ir. O seu legado musical e poético nos oferece
possibilidades de reflexão frente aos desafios que estão por aí. Vamos cantar.
Que hablam de todo/Y sufrem callados (Réquiem Para uma Flor, Raul Seixas
e Oscar Rasmussem).
11. Vamos pensar sobre o Brasil. É preciso pensar sobre o nosso país. Vamos
enfrentar os nossos problemas:
Lá vou eu de novo/Um tanto assustado/Com Ali-Babá e os 40 ladrões/Já não
querem nada/Com a Pátria Amada/E cada dia mais/Enchendo os meus
botões/Lá vou eu de novo/Brasileiro nato/Se eu não morro eu mato essa
desnutrição/Minha teimosia braba de guerreiro/É o que me faz o primeiro
dessa procissão... (Aluga-se, Raul Seixas e Cláudio Roberto).
Todo homem tem direito/De pensar o que quiser/Todo homem tem direito/De
amar a quem quiser/Todo homem tem direito/De viver como quiser/Todo
homem tem direito/De morrer quando quiser... (A Lei, Raul Seixas).
CAMINHOS
Você me pergunta
Aonde eu quero chegar
Se há tantos caminhos na vida
E pouca esperança noar
E até a gaivota que voa
Já tem seu caminho no ar
O caminho do fogo é a água
O caminho do barco é o porto
O do sangue é o chicote
O caminho do reto é o torto
O Caminho do bruxo é a nuvem
O da nuvem é o espaço
O da luz é o túnel
O caminho da fera é o laço
O caminho da mãoé o punhal
O do santo é o deserto
O do carro é o sinal
O do errado é o certo
O caminho do verde é o cinzento
O do amor é o destino
O do cesto é o cento
O caminho do velho é o menino
O da água é a sede
O caminho do frio é o inverno
O do peixe é a rede
O do pio é o inferno
O caminho do risco é o sucesso
O do acaso é a sorte
O da dor é o amigo
O caminho da vida é a morte
Raul Seixas,Paulo Coelho, Eládio Gilbraz, Novo Aeon, 1975
134
MEDEIROS, Jotabê. Raul Seixas: não diga que a canção está perdida. 1. ed.
São Paulo: Todavia, 2019.
MORIN, Edgar. A noção de sujeito. In: SCHNITMAN, Dora Fried (Org.). Novos
paradigmas, cultura e subjetividade. Tradução Jussara Haubert Rodrigues.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 45-55.
PASSOS, Sylvio (org.). Raul Seixas por ele mesmo. 2. ed. São Paulo: Martin
Claret, 2012. (Coleção o autor por ele mesmo; 4).
136
PASSOS, Sylvio; BUDA, Toninho. Raul Seixas: uma antologia. São Paulo: Martin
Claret, 1992.
SEIXAS, Kika. Raul Rock Seixas. 2. ed. São Paulo: Globo, 1996.
SOUZA, Tárik de (org.). O baú do Raul. Seleção de Kika Seixas. 17 ed. São
Paulo: Globo, 1993.
CAMINHOS II
Assim como
Todas as portas são diferentes
Aparentemente
Todos os caminhos são diferentes
Mas vão dar todos no mesmo lugar
Sim
O caminho do fogo é a água
Assim como
O caminho do barco é o porto
O caminho do sangue é o chicote
Assim como
O caminho do reto é o torto
O caminho do risco é o sucesso
Assim como
O caminho do acaso é a sorte
O caminho da dor é o amigo
O caminho da vida é a morte
Raul Seixas, Paulo Coelho, Eládio Gilbraz, Novo Aeon, 1975
138
FRANS, Elton. Raul Seixas: a história que não foi contada. Redação de
Roberto Moura. São Paulo: Irmãos Vitale, 2000.
LUCENA, Mário. Raul Seixas: a verdade absoluta. São Paulo: MacBel Oficina
de Letras, 2002.
MUGNAINI JÚNIOR, Airton. Raul Seixas: eu quero cantar por cantar. São
Paulo: Sampa, 1993.
SOUZA, Isaac Soares de. Dossiê Raul Seixas. São Paulo: Universos dos Livros,
2011.