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Brasil demanda anualmente alfandegárias de natureza fitossanitária trigo no Mercosul constitui um estímulo
cerca de 10 milhões de tone- que chegaram a reduzir o leque de desnecessário,que se reflete no custo de
ladas de trigo, e mais de 90% concorrentes a um único, o Canadá. Tais produtos de alto consumo pejas classes
desse total destinam-se a barreiras inexistiam antes da assinatura menos favorecidas. Conseqüentemente,
consumo humano; o restante se divide do tratado. Em acréscimo, é cobrado, nas impõe-se suspender a cobrança da
na produção de sementes para a safra importações fora do Mercosul,oAFRMM tarifa.
seguinte e, eventualmente, para ração (Adicional de Frete para Renovação da O governo argentino estabeleceu, ao
animal. Marinha Mercante), de 25%. início de 2002, um imposto de exporta-
Nos últimos quatro anos, as impor- O Brasil foi colocado na posição de ção de 20% sobre trigo e farinha e 5%
tações de trigo ultrapassaram em média mercado cativo da Argentina, que vendeu sobre farinhas pré-mescladas.Ial imposto
a casa de 7 milhões de toneladas, o que 95% das importações de trigo em 1999, onera o preço do trigo e farinhas impor-
representa um dispêndio anual superior 96% em 2000 e 97% em 200 I. Ao mesmo tadas e, como grande cliente, o Brasil
a US$I ,5 bilhão. Em certos momentos, tempo, reduziu-se drasticamente a qua- deveria ser liberado de tal encargo, A
o país tem chegado mesmo ao posto de lidade do trigo importado da Argentina, cobrança a menor do im/posto. 1110 caso
maior importador rnundial.Larnentavel- tanto do ponto de vista físico, da limpeza da farinha pré-mesclada, proporciona
mente, não usufrui dessa condição para do cereal, como principalmente da qua- fraudes em larga escala e torna urgen··
comprar trigo de melhor qualidade nem lidade industrial da farinha resultante, da temente necessária a harmonização das
para obter menores preços. força de glúten, imprescindível à fabrica- alíquotas.
O Tratado do Mercosul possibilitou ção de bons pães e outros derivados. Em função de sua localização e da
proteção ao trigo argentino, hoje repre- O produtor argentino não se beneficia qualidade das terras da fXJmfXI humeda.
sentada por uma TEC (Tarifa Externa do sobrepreço resultante da condição a Argentina sempre será o mais impor-
Comum) da ordem de 1I ,5%,que incide de mercado cativo. Da lavoura, o trigo tante fornecedor de trigo. Nao se pode.
sobre os tradicionais fornecedores de vai a compradores e depois às tradings, entretanto, prescindir da disponibilidade
trigo para o Brasil, situados fora do sem diferenciação de preços. As tradings, de trigos de outras fontes, porque a pre-
Mercosul. Considera-se desnecessária essas sim, podem usar seu poder de bar- sença de concorrentes baixa o preço.
tal proteção porque as vantagens com- ganha nas vendas para o Brasil, bastando melhora a qualidade e elimina a condição
parativas na produção de trigo argentino calcular quanto mais caro seria o nosso de mercado cativo.
e a proximidade geográfica, importando cereal, se importado de outra fonte.
menores despesas com fretes, já seriam Em um mercado comum, admite-se Triticultura brasileira
suficientes para proporcionar àquele país uma TEC para os produtos internos que Há quem questione o interesse pela
invejável competitividade. careçam de proteção, não permanente, produção brasileira de trigo. se outros
Do Mercosul, entretanto, ao lado mas durante um razoável período de países possuem vantagens comparativas.
dessa TEC, resultaram barreiras não- adaptação. Pelo exposto, a TEC sobre Na verdade, em mercado livre dos fan-

DEZEMBRO DE 2002 / JANEIRO DE 2003 • REVISTA DE AGRONEGÓClOS DA FGV


tásticos subsídios concedidos pela União
Européia, Estados Unidos e Canadá, o
o Tratadodo tornando-os importantes no que diz res-
peito a políticas de cesta básica, erradica-
trigo brasileiro seria competitivo, pois Mercosul possibilitou ção da fome e criação de programas de
compensa seus custos maiores, decor- desnecessária proteção fortificação de alimentos usando farinha
rentes de condições edafoclimáticas de trigo ou seus derivados como veículos
menos favoráveis. com a possibilidade
ao trigo argentino, hoje de vitaminas e sais minerais essenciais ao
de duas safras anuais, dividindo com a representada por uma ~ pleno desenvolvimento das futuras gera-
soja ou outro produto de verão os custos ções. Os preços, a qualidade alimentar
TEC (Tarifa Externa
fixos. A cultura de inverno maximiza o e a preferência popular dos derivados
ganho com as técnicas modernas de Comum) da ordem de trigo praticamente não encontram
rotação de cultura e plantio direto. de 11,50/0, que incide concorrentes.
O Brasil possui, em região temperada
ou nos cerrados acima de 800m de alti-
sobre os tradicionais Carga tributária
tude, área cultivada com soja bastante fornecedores de trigo Desde tempos imemoriais discute-se
para auto-suficiência no trigo. Em outras a propriedade e adequação da incidência
para o Brasil situados
palavras, existe já o empresário rural, a de impostos diretos e indiretos.Todos os
terra corrigida e adubada, o maquinário, fora do Mercosul. segmentos ambicionam reduzir o ônus da
instalações e pessoal capacitado. A partir arrecadação. Nos impostos que incidem
dos anos 80, passamos a dispor de um tos, como pela importância estratégica sobre comercialização e consumo, em
pacote tecnológico bastante à triticultura do cereal, apresentando para tanto um países pobres, impõe-se estabelecer um
moderna, aperfeiçoado a cada ano, espe- conjunto de soluções para os problemas critério que combine o interesse social
cialmente no que se refere a variedades do setor. com a essencialidade do produto - em
de melhor desempenho na lavoura e particular uma carga tributária modesta
produzindo farinha mais adequada aos o trigo como alimento sobre alimentos em geral, reduzindo-a a
diferentes usos. A farinha de trigo, matéria-prima zero nos casos de gêneros de primeira
Lamentavelmente, os subsídios dos básica para a produção de pães, massas, necessidade, como farinha de trigo e
países do Primeiro Mundo pressionam os biscoitos e tantos produtos, possui uma derivados.
preços, que determinam baixas nas cota- notável combinação de proteínas e Além de submetido a injusta tribu-
ções argentinas, resultando em desestí- carboidratos essenciais à alimentação tação, o segmento industrial do trigo
mulo à produção nacional. Impõe-se uma humana, que fizeram dela alimento enfrenta mudanças de tratamento de
posição enérgica do Brasil, no cenário da ímpar desde que os homens deixaram estado para estado, variando o ICMS,
OMC, a favor de progressiva redução de de ser coletores e caçadores para por exemplo, de 7% no Sul e Sudeste
tais subsídios, que estrangulam os países produzir seu alimento. O processo se para 33% no Nordeste, antecipado na
com menos recursos. iniciou no chamado Crescente Fértil e descarga da matéria-prima no porto.
Um estudo do Ipea, de autoria de o produto alimentou majoritariamente A volúpia fiscal, no estabelecimento da
Régis Bonelli, depois de exaustivo tra- sucessivas civilizações vencedoras desde alíquota, não corresponde a uma arreca-
balho estatístico, separa a renda agrícola os sumérios, passando por assírios, dação efetiva, porque surgem distorções
da não-agrícola em nível de município. O egípcios, gregos, romanos e árabes, até de toda natureza.
estudo demonstra que um aumento de a civilização cristã ocidental. Enquanto Combinados, os impostos brasileiros
I% no PIB agrícola do município corres- isso, povos alimentados durante séculos com a TEC e o imposto de exportação
ponde a 1,07% a mais no PIB não-agrí- com grãos pobres em proteína - arroz na da Argentina resultam na majoração
cola. Em outras palavras, renda agrícola Ásia e milho nas Américas - não tiveram indevida e socialmente injusta dos preços
gera renda urbana. A prioridade que os o mesmo desenvolvimento. dos produtos derivados do trigo, neces-
planos do governo concedem à geração O caráter emblemático do trigo está sários à mesa das famílias mais pobres.
de emprego já justificaria a defesa do expresso na culltura popular e até nos Por outro lado, a caracterização, em
desenvolvimento de nossa triticultura. textos e práticas religiosos. A conota- nível estadual, da composição da cesta
AAbitrigo, ligada diretamente ao setor ção política da imagem dos derivados de básica, sofre todos os tipos de pressões
agrícola, é signatária do Plano Plurianual trigo tem implicado a atenção especial de de lobbies que excluíram os derivados
para o Desenvolvimento da Cadeia Pro- sucessivos governos do mundo quanto do trigo. Tais pressões impedem ainda o
dutiva do Trigo, através de um protocolo ao suprimento do cereal. O Brasil tem acesso desses derivados a outros pro-
de intenções que congrega cooperativas, enfrentado várias crises econômicas sem gramas governamentais sem qualquer
secretarias estaduais, Ministério da Agri- solução de continuidade desse supri- justificativa ética.
cultura seja diretamente, seja via Conab mento. A par da garantia da oferta, a
e Embrapa, e várias outras entidades. Tal indústria do trigo proporciona produtos
plano defende a ampliação da produção de baixo preço, graças à escala de pro- ROLAMD GUTH é presidente da Abitrigo.
nacional, tanto pelos motivos aqui expos- dução e ao nível da tecnologia aplicada, roland@guth.com.br

61 REVISTA DE AGRO NEGÓCIOS DA FGV • DEZEMBRO DE 2002 / JANEIRO DE 2003

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