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Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Psicologia

COMPREENSÃO DA
EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE MULHERES NA RELAÇÃO
AMOROSA

Ana Regina de Lima Moreira

Natal/RN
2004
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Ana Regina de Lima Moreira

COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE MULHERES


NA RELAÇÃO AMOROSA

Dissertação de mestrado elaborada sob a


orientação da Profª. Drª. Elza Dutra e
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Natal
2004
11

Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação Compreensão da experiência do sofrimento de mulheres na relação amorosa,

elaborada por Ana Regina de Lima Moreira, foi considerada aprovada por todos os

membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia,

como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, RN, dezessete de junho de 2004

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Elza Dutra _____________________________

Profª. Drª. Denise Dantas _____________________________

Profª. Drª. Virgínia Moreira _____________________________

iii
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Para as mulheres que permanecem

no sofrimento amoroso, na crença

de que a compreensão possibilita a

construção de novas maneiras de

existir.

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Agradecimentos

À Elza Dutra, pelos preciosos momentos de orientação bem como por sempre me
incentivar e acreditar no meu potencial.

A todas as participantes que colaboraram na realização deste trabalho, pois sem o


testemunho delas não seria possível esta produção.

Aos meus queridos pais, pelo apoio, carinho e dedicação que sempre dispensaram
ao longo da minha vida.

Aos meus irmãos, pela força e incentivo constantes.

A Cleudo, cuja presença foi fundamental neste percurso, com sua sensibilidade,
inteligência e capacidade de entrega.

À Sílvia, Jordana e Candice, pela amizade sincera e acolhimento nos momentos


difíceis.

À Denise Dantas, pelo modo competente e cuidadoso com o qual contribuiu para a
melhoria deste trabalho nos seminários de dissertação, bem como pela participação na
banca examinadora.

À Virgínia Moreira, pela honra de tê-la como participante da banca examinadora.

Aos professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da UFRN, pela agradável convivência nesta jornada.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por viabilizar o desenvolvimento


do Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

v
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Sumário

Resumo ....................................................................................................................... vii

Abstract ...................................................................................................................... viii

1. Introdução .............................................................................................................. 9

2. Sobre gênero, amor e sofrimento............................................................................ 17


2.1 Entendendo o conceito gênero.......................................................................... 17
2.2 Breves considerações sobre a mulher na história.............................................. 19
2.3 Amar é sofrer ? Sofrer é amar ? ....................................................................... 24
2.4 O amor romântico e seus ideais........................................................................ 28

3. O enfoque centrado na pessoa: uma abordagem humanista-existencial da subje-


tividade.................................................................................................................... 38

3.1 Um olhar crítico sobre o conceito de subjetividade na perspectiva de Ro-


gers.................................................................................................................... 39
3.2 Entendendo o self ou autoconceito.................................................................... 45

4. O caminho escolhido para a compreensão da questão............................................ 56


4.1 O método fenomenológico de Heidegger......................................................... 57
4.2 As narrativas e o percurso metodológico ......................................................... 64

5. Conhecendo o sentido atribuído pelas mulheres às suas experiências de sofri-


mento amoroso ....................................................................................................... 71

6. Considerações Finais............................................................................................... 103

Referências Bibliográficas ......................................................................................... 109

Anexos

Apêndices

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Resumo

Em nosso cotidiano profissional, como psicóloga, deparamo-nos, freqüentemente, com a


narração feita por mulheres de uma experiência de sofrimento permanente, na relação
amorosa. Essa constatação gerou indagações que apontavam para a singularidade da
experiência em questão, considerando-se os aspectos culturais e históricos (gênero e amor-
romântico) que pareciam permear tal experiência. O encaminhamento dado a esta pesquisa
foi norteado pela seguinte questão: como é para a mulher a experiência de permanecer
sofrendo na relação amorosa? O objetivo, portanto, foi compreender essa experiência.
Foram realizadas entrevistas semi-abertas com seis mulheres que estavam vivendo a
experiência que buscamos investigar. A narrativa, tal como proposta por Walter Benjamin
foi o instrumento de acesso à experiência. A análise das narrativas evidencia a
singularidade da experiência de sofrimento constante na relação amorosa bem como
aspectos comuns. É marcante a presença de questões relativas à dimensão de gênero e do
amor-romântico, influenciando a forma como as mulheres entrevistadas se percebem na
existência e dão sentido ao sofrimento amoroso que vivenciam. As mulheres revelam
diversas formas de expressar e perceber o sofrimento amoroso, sendo comum a
manifestação de vários sintomas físicos e psíquicos. Várias participantes tiveram
experiências de convívio familiar favorecedor do desenvolvimento de sentimentos de baixa
auto-estima, incapacidade, insegurança e medo. Entendemos que o sofrimento das mulheres
entrevistadas, na relação amorosa, revela, sobretudo, um modo de estar no mundo, de
perceber-se, marcado pelo medo da solidão, do desamor, de empunhar a própria vida,
dando origem a um modo de viver e de amar realmente novos. Salientamos assim a
importância de haver maior empenho dos profissionais e instituições que lidam com a
temática desta pesquisa, no sentido de desenvolver ações que considerem sua
complexidade. Também enfatizamos a necessidade de novas reflexões sobre o sofrimento
amoroso, a fim de que diferentes possibilidades de sentido possam emergir, propiciando
uma maior compreensão da subjetividade humana.

Palavras-chave: sofrimento; gênero; relação amorosa; self ou autoconceito.

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Abstract

Our professional everyday life, as a psychologist, we often come across the narrative made
by women of a permanent suffering experience in loving and sexual relation. This checking
created questions which indicated to the questioned experience singularity, taking into
account the historic and cultural aspects (genre and romantic love) that seemed to permeate
such an experience. The conduction given to this research was guided by the following
question: how is to the woman the experience of going on suffering on loving and sexual
relation? Therefore, the objective was to understand that experience. Were carried out with
six women that were living the experience which intend to investigate. The narrative, in
according to the purposal by Walter Benjamin was the access tool to the experience. The
narrative analysis shows the singularity of constant suffering experience on loving relation
as well as common aspects. It is remarkable the presence of relative questions to the genre
and romantic loving dimension, influencing the way as the interviewed women perceive
themselves on the existence and realize the loving suffering which experience. Women
reveal several ways of expressing and perceiving to the loving suffering which is common
the manifestation of several physical and psychic symptoms. The most participants had
experiences of protected familiar contact of feeling development of low self-esteem,
disability, unstableness and fear. We realize that the suffering of interviewed women, on
loving relation, it revels, above all, a way of being in the world, perveiving themselves,
marked by solitude fear, lovelessness, leading the life itself giving origin to the lifestyle and
of really new loving. Thus, we emphasize the importance of greater engagement of
professionals and institutions which deal with the thematic this research in order to develop
actions that consider its complexity. We also emphasize new reflections about the loving
suffering so that different sense possibilities can emerge propitiating a greater
comprehension of human subjectivity.

Key-words: suffering; genre; loving and sexual relation; self or selfconcept.

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1. Introdução

Em nossa atuação clínica em consultório privado e em um centro de saúde da rede

pública, observamos que o número de mulheres que buscam atendimento psicológico é

significativamente superior ao de homens. No contato com essas mulheres, individualmente

ou em grupo, através de aconselhamento psicológico, orientações, psicoterapia e em visitas

domiciliares, deparamo-nos, freqüentemente, com a narração feita por elas de uma

experiência de sofrimento. Esse sofrimento refere-se, muitas vezes, aos relacionamentos

amorosos com o sexo oposto e as queixas costumam girar em torno de um homem

ciumento, incompreensivo, infiel, possessivo, viciado, agressivo etc. Elas revelam, ainda, a

dificuldade que sentem em continuar ao lado de alguém que não as valoriza, não dialoga,

não se entrega afetivamente, às vezes também despreza e maltrata os próprios filhos e, em

alguns casos, não contribui financeiramente - ou o faz de maneira insuficiente - para as

despesas do casal, ou da família.

Essas mulheres geralmente expressam tristeza, desespero, revolta, angústia,

desesperança ou sensação de vazio. Algumas lamentam ter dedicado muito tempo de sua

vida ao homem com quem convivem e, comumente, afirmam sentir-se impotentes diante da

situação em que se encontram, não vislumbrando possibilidade de mudança. Além disso,

tendem a responsabilizar o parceiro amoroso pela dor e a insatisfação que vivenciam dia

após dia. Outras buscam adequar-se, a qualquer custo, ao seu modo de ser, às vezes

assumindo toda a responsabilidade (culpa) pelo mal-estar vivenciado na relação. Sem

contar, ainda, aquelas que alimentam esperanças de que o parceiro amoroso se modifique,

às vezes apegando-se à fé religiosa. Deparamo-nos também, embora menos


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freqüentemente, com algumas mulheres que revelaram ter tentado suicídio e/ou pensavam

na possibilidade de cometer homicídio contra a amante do parceiro. Esses são apenas

alguns exemplos de situações que envolvem a experiência que estamos buscando

compreender neste trabalho.

Como se pode perceber, o sofrimento se faz presente em todos os casos relatados

anteriormente. Entendemos que o sofrimento é uma experiência inerente à condição

humana e, por isso, acreditamos que sempre será um tema atual para os estudos de várias

disciplinas, dentre as quais a Psicologia Clínica. Atualmente, observamos que tal assunto

tem sido amplamente discutido por profissionais da área “psi”, diante do surgimento das

novas formas de sofrimento do homem contemporâneo, num mundo marcado por

mudanças sociais e políticas, tais como a globalização e o neoliberalismo.

Pensamos que o sofrimento está presente em diferentes momentos da existência,

colocando o ser humano diante dos seus limites e potencialidades e convocando-o a entrar

em contato com o sentido da sua existência e, assim, a comprometer-se com uma escolha.

Consideramos ter um caráter subjetivo, singular aquilo que é vivenciado como sofrimento.

Imersa na vida humana, tal experiência é vivenciada no âmbito dos relacionamentos em

geral, inclusive nas relações amorosas. No presente trabalho, estamos nos referindo ao

sofrimento que é vivido pela mulher, de forma constante, predominando sobre as suas

vivências de prazer e bem-estar, na esfera da relação amorosa heterossexual. Tal relação

está sendo considerada como de natureza afetivo-sexual, na perspectiva da mulher e que se

refere à sua vida amorosa, não implicando o critério de coabitação da díade.

É importante lembrar que a freqüente constatação de queixas de mulheres sobre a

permanência no sofrimento na relação amorosa é algo que tem ocorrido não apenas em

nossa atuação como psicóloga, pois não tem sido raro ouvirmos pessoas que fazem parte do
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nosso convívio social afirmarem conhecer alguma mulher que vivencia ou já vivenciou

uma experiência desse tipo. Na verdade, percebemos, cada vez mais claramente, que o

nosso cotidiano está repleto de exemplos de situações, as mais variadas, que demonstram a

presença do sofrimento constante vivido pelas mulheres na sua relação amorosa. Nesse

sentido, vale ressaltar a literatura de auto-ajuda, as telenovelas e os grupos de apoio à

mulher, tal como o MADA (Mulheres que Amam Demais Anônimas), que existe tanto no

Brasil como no exterior. Apesar de não termos a pretensão de enfocar, neste estudo, o

fenômeno da violência doméstica, interessa-nos mencioná-lo, pelo fato de ele contribuir e,

freqüentemente, fazer parte do sofrimento, no contexto da relação amorosa, vivenciado por

um grande número de mulheres em todo o mundo, sem distinção de nível sócio e

econômico, raça ou credo. No que se refere especificamente à cidade do Natal, Teixeira &

Grossi (2000) revelam a existência de uma importante pesquisa, a qual constatou que, ao

longo de dez anos (1986 a 1996), mais de 90% das queixas da Delegacia Especializada em

Defesa da Mulher referiam-se a conflitos conjugais envolvendo agressões físicas. De

acordo com as autoras, mesmo sendo agredidas fisicamente, as mulheres permanecem

durante muito tempo em relacionamentos violentos, alegando, para isso, motivos tais como

a prevalência do machismo masculino e a falta de independência financeira.

Surpreende-nos a constatação de que o sofrimento permanente da mulher na relação

amorosa é um fenômeno presente no mundo e bem próximo da nossa experiência, ou

melhor, impregnado em nossa existência. Esse tema nos convida, agora, para lançar-lhe um

novo olhar, a fim de iluminá-lo, dar-lhe um sentido, fazendo-nos ir, portanto, ao seu

encontro.

Trilharemos esse caminho, norteada pela seguinte questão: como é para a mulher a

experiência de permanecer sofrendo na relação amorosa? Cabe ressaltar que a característica


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de permanência, atribuída, aqui, ao sofrimento, não significa que as mulheres participantes

desta pesquisa jamais sairão do sofrimento amoroso. Nosso entendimento é de que elas

passam por um período de convivência relativamente duradoura com o parceiro, segundo

evidenciam em suas falas, em que predominam momentos de insatisfação, angústia, dor, ou

outras expressões de sofrimento. Desse modo, tais mulheres demonstram, através de suas

narrativas, que a relação amorosa tem ocupado um lugar desfavorável ao fomento de

vivências prazerosas. Assim, acreditamos que a pergunta, anteriormente referida,

possibilitar-nos-á seguir os vestígios que, de forma gradual e simultânea, desvelarão (e

ocultarão) o fenômeno, tornando-o compreensível, a partir de uma dada perspectiva, a qual

explicitaremos adiante. Indagamos, ainda, quais são os significados que essas mulheres

atribuem à sua existência, que percepção elas têm acerca de suas potencialidades e limites,

qual é o seu projeto de vida; em síntese, interrogamo-nos sobre os aspectos subjetivos que

não só permeiam a experiência em questão, mas também contribuem para ela. Ao lado

disso, perguntamo-nos sobre a influência dos valores e papéis sociais e culturais

relacionados ao “modo de ser mulher”, na vivência desse sofrimento, pois sabemos que,

historicamente, eles sempre ocuparam um espaço significativo na vida das mulheres,

orientando fortemente suas escolhas e seu padrão de conduta social, restringindo

possibilidades e oportunidades em vários aspectos de suas vidas. A despeito das

significativas conquistas femininas das últimas décadas, observamos que os padrões,

valores e normas culturais cultivados no passado continuam presentes, permeando a

existência da mulher, sua auto-imagem e o modo como ela se relaciona amorosamente,

embora reconheçamos que, hoje, de maneira diferente de tempos atrás. Dentro dessa

perspectiva, indagamos ainda sobre a força que a idealização do amor romântico pode ter

na existência do fenômeno em investigação.


21

Vale salientar que, conforme o nosso entendimento, a experiência subjetiva diz

respeito ao mundo interior do ser humano, àquilo que ele sente como particular, único,

genuíno e que se expressa através do self ou autoconceito. Nesse sentido, adotamos a

perspectiva teórica da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), representada pelo seu

criador, Carl R. Rogers. Tal opção justifica-se pelo fato de utilizarmos o referencial

humanista-existencial desde o início da nossa atuação profissional, encontrando, em vários

aspectos do pensamento desse autor respaldo para a compreensão da subjetividade humana.

A Abordagem Centrada na Pessoa considera o homem como possuidor de uma

tendência e uma capacidade inerentes para o crescimento em termos gerais. Nessa

concepção, destacamos o constructo de self, ou autoconceito, definido por Rogers (1959),

após as contribuições de Eugene Gendlin (1962), como a configuração perceptual do

indivíduo sobre o seu estar no mundo, a cada momento da existência, de acordo com a

abertura ao fluxo de experiências que se processam. É esse entendimento do self que

adotaremos neste trabalho.

Cabe assinalar que o self representa o cerne da teoria da personalidade, de Carl

Rogers, tal como por ele formulada na Terapia Centrada no Paciente. A ACP, assim como

as teorias psicoterapêuticas em geral, abordam a subjetividade fundamentalmente

relacionada, no que se refere à sua constituição, ao âmbito da dinâmica familiar, o que

denota a importância atribuída ao aspecto social no desenvolvimento psíquico, porém

desprivilegiando os processos sócio-históricos mais amplos. Assim, evidencia-se que, na

abordagem de Rogers, não existe uma explicitação abrangente do processo histórico-

cultural pelo qual o self se constitui e existe no mundo. Apesar de concordarmos com o

criador da ACP, acerca da importância atribuída por ele ao papel dos vínculos familiares e

da infância na constituição e desenvolvimento do self, achamos pertinente pensar também


22

na coexistência de diferentes fluxos (sociais, históricos e culturais), que atravessam o self

ou autoconceito, possibilitando o seu contínuo fazer e refazer, o seu constante devir. Tal

pensamento nos faz acreditar que a compreensão do nosso objeto de estudo deve alicerçar-

se em um entendimento mais ampliado das relações do self ao qual somam aspectos da

realidade cultural e histórica. Nesse sentido, é importante esclarecer que não pretendemos

fazer uma reformulação teórica do constructo self, mas contribuir para uma ampliação do

entendimento do uso desse constructo, ressaltando aspectos do horizonte histórico e

cultural, ainda pouco considerados na abordagem teórica em questão.

Portanto este trabalho não envolve a união de abordagens diferentes, dos pontos de

vista teórico, epistemológico e metodológico, tais como a ACP e a Psicologia Sócio-

histórica, mas lança luz sobre alguns aspectos da dimensão social e histórica do ser humano

que, no nosso entendimento, compõem o viver da mulher que permanece sofrendo na

relação amorosa. Tais aspectos são, neste trabalho, a questão de gênero e do amor

romântico, pois pensamos, como já dissemos, que têm estreita relação com o objeto de

estudo aqui tratado. Nessa perspectiva, apoiar-nos-emos em outros suportes teóricos para

iluminar o self, revelando mais amplamente o fenômeno estudado.

Seguiremos o nosso trajeto, ancorada em uma perspectiva humanista-existencial, de

inspiração fenomenológica, representada por Carl Rogers, dialogando com outros autores

que possam contribuir para ampliar a nossa compreensão do sofrimento da mulher na

relação amorosa.

Partindo do entendimento de que o self constitui-se no mundo, na relação com o

outro, questionamos se a experiência da mulher de permanência no sofrimento, na relação

amorosa, estaria relacionada com tal forma de estar e perceber-se no mundo, a qual

entendemos como self. Este, à medida que se desenvolve, é permeado por valores,
23

expectativas sociais, modos de pensar, sentir e agir característicos do contexto no qual o ser

humano se situa. Tratando-se especificamente da mulher, observamos que, historicamente,

lhe têm sido reservados modos de existência muito específicos.

Baseando-nos, então, nos questionamentos expostos, pretendemos, neste estudo,

compreender a experiência da mulher que permanece no sofrimento, na relação amorosa.

Com este estudo, entendemos que os profissionais que atuam no campo da clínica

poderão beneficiar-se, encontrando nele uma melhor fundamentação e instrumentalização

para sua intervenção dirigida à clientela que apresenta queixas dessa natureza. Além disso,

podemos estar contribuindo para o aprofundamento das teorias psicológicas sobre a mulher.

Este trabalho está estruturado de forma que o leitor possa, através do segundo

capítulo (Sobre gênero, amor e sofrimento), conhecer a contextualização do objeto aqui

tratado, refletindo sobre o significado da palavra gênero, aspectos da trajetória histórica da

mulher, a relação entre amor e sofrimento e os ideais do romantismo amoroso.

O terceiro capítulo (O enfoque centrado na pessoa: uma perspectiva humanista-

existencial da subjetividade) inicia-se com uma breve exposição das principais idéias de

Carl Rogers, no intuito de ampliar o nosso entendimento acerca da sua concepção de

subjetividade, a partir do olhar de alguns teóricos das abordagens sócio-histórica e

fenomenológico-existencial. Em seqüência, é realizada uma análise do constructo de self

segundo a perspectiva desse mesmo autor, acrescida pelas contribuições de Eugene

Gendlin.

O quarto capítulo (O caminho escolhido para a compreensão da questão) inicia-se

com uma explanação acerca da perspectiva fenomenológica de Martin Heidegger e

continua com a explicitação da estratégia de pesquisa utilizada, dos procedimentos de

coleta dos dados adotados assim como do processo de análise das informações coletadas.
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No quinto capítulo (Conhecendo o sentido atribuído pelas mulheres às suas

experiências de sofrimento amoroso), evidenciam-se os dados obtidos, articulando-os com

o referencial teórico que alicerçou este trabalho.

O sexto capítulo (Considerações Finais) enfatiza alguns aspectos relevantes

encontrados na pesquisa, os quais poderão possibilitar a abertura de novos horizontes na

produção do saber.
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2. Sobre gênero, amor e sofrimento

O presente capítulo apóia-se em suportes teóricos que, no nosso entendimento,

contribuem para ampliar o uso do conceito de self em Rogers, desvelando o objeto de

estudo em questão.

2.1 Entendendo o conceito de gênero

Ao enfocarmos o sofrimento na relação amorosa sob o ponto de vista da mulher,

estamos trazendo, como um dos eixos de reflexão teórica deste estudo, a concepção de

gênero. Este não se define pelo sexo biológico, pois os padrões de comportamento, as

experiências, o modo de ser considerados como masculino ou feminino não são

determinados pela carga genética, hormonal ou biológica, mas constituem aquisições

feitas na vida social e cultural, desde o nascimento, estabelecendo uma hierarquia na

relação homem/mulher. Matamala, Bergaloscky e Núñez (1995) esclarecem:

O processo de socialização de gênero, ao condicionar de


maneira premente as identidades feminina e masculina,
estabelece as bases de uma desigualdade de poder. A
interiorização do papel sexual “correspondente” inunda a
subjetividade de cada pessoa e a instala no lugar designado ao
seu gênero, isto é, o espaço de poder é ocupado pelo homem e
o espaço de não poder é ocupado pela mulher. A família, a
escola, os meios de comunicação, a linguagem, os símbolos e
mitos, o sistema jurídico-político, a divisão social do trabalho,
as doutrinas, o sistema de parentesco, as instituições,
cumprem seu papel socializador tanto na “educação” como na
organização e regulação das relações de gênero (p. 08).

Desse modo, quando nos referimos à noção de sexo, estamos falando da diferença

anatômica inscrita no corpo, diferente da noção de gênero, que revela a construção


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social, simbólica e material baseada nessa diferença (Schaiber & d’Oliveira, 1999).

Nesse sentido, não podemos falar em uma natureza feminina ou masculina, pois o

masculino e o feminino são constructos sociais; portanto presentes em cada época e

lugar, de distintas maneiras.

Segundo Muraro (2001), a categoria “gênero” foi conceitualmente desenvolvida nos

anos 80 por mulheres intelectuais, fomentando, no mundo inteiro, discussões e críticas

relacionadas ao patriarcado e à sociedade de classes. Essa autora esclarece:

A nova categoria gênero, criada pelas mulheres a fim de dar


conta do seu papel na história e na condição humana do fim
do século XX, vem acrescentar e complementar a categoria
classe social, para dar conta da existência da opressão de
diversas naturezas postas na história (p. 09).

Portanto, apesar de ter surgido recentemente, o conceito de gênero é representativo

de uma realidade vivida pelos seres humanos ao longo da história, realidade essa

caracterizada por dicotomias e desigualdades na relação homem/mulher - evidenciada

pela restrição, às mulheres, de oportunidades de sociabilidade e produtividade na esfera

pública da vida - bem como pelo papel de submissão e obediência destas perante os

homens (pais e/ou maridos). Assim, o conceito de gênero compreende as relações de

poder que se estabelecem socialmente entre homens e mulheres, evidenciando, segundo

Soihet (1997), que não se pode compreender o homem ou a mulher, “(...) através de um

estudo que os considere totalmente em separado” (p.101).

Como explicaremos adiante, essa relação de hierarquia alterou-se significativamente

a partir dos anos 70 (século XX), trazendo ganhos à vida das mulheres, principalmente

em termos educacionais e profissionais. Porém, antes de determo-nos nessa questão,


27

gostaríamos de enfatizar que, “(...) como categoria relacional, o gênero permite

identificar e diferenciar o sexo biológico da construção social do masculino e do

feminino” (Silva, 2000, p.40). Acreditamos que, assumindo a categoria de gênero como

perspectiva relacional, ampliamos a nossa compreensão das diversas expressões do

sofrimento das mulheres na sua vida amorosa, pois entendemos que o sentido atribuído

por elas a tal experiência está permeado pelos significados do contexto sócio-histórico.

Nessa perspectiva, pensamos, como Biasoli-Alves (2000), que, mesmo diante das

mudanças e rupturas na imagem e no papel da mulher, presentes ao longo da história, os

valores e expectativas cultivados continuam existindo, embora com outros contornos,

influenciando o modo feminino de estar no mundo.

2.2 Breves considerações sobre a mulher na história

No que diz respeito ao mundo ocidental observa-se, nitidamente, que, na história da

humanidade, a condição das mulheres tem “(...) refletido categoricamente a perspectiva

da ocupação do espaço público e privado, a partir dos papéis socialmente construídos

como de homens e de mulheres” (Silva, 2000). Desse modo, Silva (2000) esclarece que

o mundo do lar é tido, por excelência, como feminino, devendo ser revestido do amor

materno, do amor conjugal e do sentimento doméstico da intimidade. Ele está em

oposição ao mundo público, da rua, ambiente de relacionamento, inteligência e poder,

reservado exclusivamente aos homens.

A mulher tinha como principais papéis os de filha e esposa, permanecendo sempre

no seio da família, no interior da proteção do lar. Esse ser, tido como submisso, puro e

delicado, deveria demonstrar capacidade de doar-se aos outros, além de dedicar-se à


28

realização de atividades domésticas. Quanto a essa divisão sexual do trabalho, Coutinho

(1995) assinala que a dedicação exclusiva das mulheres aos trabalhos domésticos criou

uma barreira para sua participação autônoma no domínio da vida pública, ou mesmo

impossibilitou essa participação. A vida pública era destinada aos homens e a eles cabia

a função de provedores e de protetores do lar, além de possuírem o direito de tomar

decisões em nome de todos os que estavam sob sua tutela.

Assim, vemos uma cultura familiar, no mundo ocidental, pautada em polaridades,

tais como masculino/feminino, público/privado, dominação/submissão, razão/emoção,

legitimando, por vários séculos, a exclusão das mulheres do convívio na esfera pública e

limitando as possibilidades de emergirem novas configurações de convivência entre os

sexos.

As derradeiras décadas do século XX evidenciaram um modo diferente de a mulher

estar no mundo, ou seja, ela passou a participar ativamente dos acontecimentos de ordem

política, econômica e social. Vale salientar que, em menos de trinta anos, as mulheres

passaram a constituir a metade da população economicamente ativa em todo o mundo

(Muraro, 2001). É interessante observar tal mudança de postura, após inúmeros anos em

que a mulher esteve à margem das decisões e amplas transformações que afetaram a

vida humana. Hoje, podemos afirmar que ela se distanciou, significativamente, do papel

que lhe foi reservado através dos tempos, buscando novas formas para a sua existência,

integrando-se ao domínio da vida pública, antes destinada apenas aos homens, em uma

sociedade marcada pela estrutura do patriarcado.

Em tempos mais recentes, podemos citar, como exemplo desse avanço, a

participação expressiva das mulheres no Fórum Social Mundial de 2002, na cidade de

Porto Alegre (ES), no qual o engajamento feminino nos diversos debates e conferências
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foi destaque. Além disso, vale lembrar que, em nosso país, as mulheres já representam

40,4% da população economicamente ativa. Porém não podemos omitir que as

desigualdades no tocante à remuneração ainda persistem, evidenciando uma

desvalorização do salário da mulher. De acordo com o Censo do IBGE, de 2002, houve

um crescimento do ingresso das mulheres no mercado de trabalho, estas superando em

45% o número de homens: as estatísticas apontam para a existência, na atualidade, de

um percentual maior de mulheres, nas faixas etárias de 25 a 59 anos, inseridas no

mercado de trabalho. Por outro lado, esse mesmo censo indica que os homens continuam

a ter uma remuneração maior do que a das mulheres: em 2002, o rendimento médio da

mulher foi equivalente a 70,2% da renda do homem, o que significa quase um terço a

menos. A pesquisa também revela que a tendência parece ser de aproximação, pois em

1992 uma mulher ganhava, em média, 61% da renda de um homem.

É importante destacar, conforme expõe Badinter (1986), que, no final do século XX,

a possibilidade de igualdade entre os sexos passou efetivamente a existir, graças ao

abalo dos fundamentos da ideologia patriarcal, sistema de representações que favorecia

aos homens o exercício do poder sobre as mulheres. De acordo com essa autora, os

papéis sexuais eram bem delimitados até então, o que leva a crer que essa era a principal

causa da desigualdade. Ela esclarece ainda que, por tal motivo, a já consolidada

distinção sexual das tarefas foi substituída pela não-distinção sexual, gerando rupturas

nas certezas relacionadas aos padrões de comportamento feminino e masculino.

Sendo assim, houve uma certa flexibilização no que diz respeito às atribuições

assumidas por homens e mulheres, tanto na família quanto em outros contextos sociais.

No que se refere à mulher, esta começou a exercer seus direitos de cidadã, deixando de
30

restringir-se ao desempenho exclusivo dos papéis de mãe e esposa, o que possibilitou o

estabelecimento de uma relação menos desigual com os homens.

Por outro lado, concordamos com a posição de Goldberg (citado por Giddens,

1993), quando diz que “as mulheres ainda são as principais agentes da criação dos filhos

e das tarefas domésticas” (p.172). Vaitsman (2001), no contexto brasileiro, ratifica essa

afirmação, ao constatar que, mesmo diante das inúmeras conquistas obtidas pelas

mulheres, elas continuam sendo as “(...) principais responsáveis pela procriação e pela

esfera de reprodução doméstica” (p.20). Essa situação pode significar, segundo o ponto

de vista dessa autora, sobrecarga de trabalho, em vez de emancipação, principalmente se

a mulher não divide as tarefas e despesas com o seu parceiro amoroso. De acordo com

Badinter (1986), pesquisas realizadas sobre o dia-a-dia dos casais demonstraram que a

partilha de tarefas domésticas não é eqüitativa entre os sexos, evidenciando a existência

de um maior número de atividades exercidas pela mulher. Uma das conclusões

apresentadas por Medeiros (2003), em sua pesquisa realizada na cidade do Natal (RN),

sobre a “doença dos nervos”, endossa tal posicionamento, pois revela que a submissão

aos maridos e o excesso de responsabilidades domésticas (grifo nosso), “(...)

contribuem para o desencadeamento dos sintomas de nervos” (p. 112).

Isso nos faz refletir sobre a proximidade existente entre as questões de gênero,

relacionamento amoroso e sofrimento, além de nos remeter ao nosso cotidiano

profissional, no qual comumente encontramos mulheres que expressam o sofrimento

vivido na relação amorosa, através do “problema de nervos”. Este envolve, segundo a

autora anteriormente citada, uma polimorfia de sintomas (fisiológicos, físicos e

psíquicos), além de questões tais como gênero, contexto sociocultural e econômico,

abuso da medicalização, dentre outros.


31

Ainda no tocante à dimensão de gênero, vemos que, embora inexista, nos dias de

hoje, uma rigidez nas identidades masculina e feminina, entendemos que a figura da

mulher continua associada ao domínio do privado, da casa e aos afazeres que lhe são

“próprios”. Juntamente com o papel conquistado de profissional, indicador da

independência e autonomia femininas, permanece o tradicional papel de dona-de-casa ou

“rainha do lar”. Não raramente constatamos tal realidade, em nossa experiência clínica,

através de queixas de clientes do sexo feminino sobre as dificuldades de conciliar as

tarefas domésticas, a educação dos filhos, o papel de esposa e o desempenho no

emprego. De fato, tal situação parece ser desvantajosa para o plano de carreira de

qualquer mulher.

Observa-se, atualmente, especialmente nos meios mais desfavorecidos

economicamente, um elevado número de mulheres que exercem a função de provedoras

da família (Giddens, 1993). Em nossa vida profissional, observamos com freqüência tal

situação. Geralmente, elas demonstram insatisfação, cansaço ou mal-estar diante dessa

sobrecarga e isso acaba sendo, muitas vezes, o principal motivo de suas queixas de

permanência no sofrimento, na relação amorosa. Segundo o Censo do IBGE, de 2002,

observa-se, no Brasil, um progressivo crescimento de lares chefiados por mulheres,

sendo estas viúvas, separadas/divorciadas ou casadas. O censo mostra que, em 1991 a

porcentagem de lares chefiados por mulheres era de 18,1%, contrastando com a situação

no ano de 2000, quando esse índice aumentou para 24,9%.

Diante do exposto, evidenciamos que as desigualdades e diferenças entre homens e

mulheres persistem, mesmo havendo maior flexibilidade em suas identidades. Ocorreu

emancipação e, simultaneamente, surgiram novas formas de dominação (Vaitsman,


32

2001), em consequência, talvez, dentre outros fatores, da dificuldade humana de lidar

com a diferença.

Pensamos que as mudanças, quando muito intensas, ocorrem de maneira a deixar

frestas, espaços vazios nos quais circulam os antigos modos de pensar, sentir e agir, em

relação a determinadas questões. É como se certas mudanças precisassem de tempo para

se acomodar, para se consolidar. Como assinala Biasoli-Alves (2000), “às vezes, práticas

e atitudes parecem assumir apenas e tão somente uma outra roupagem, mostrando, numa

análise mais aprofundada, que a maneira de pensar certas questões ainda se encontra

presa aos padrões de outras épocas”.

2.3 Amar é sofrer ? Sofrer é amar ?

Amar é um fogo invisível


Uma chaga agradável
Um saboroso veneno
Uma doce amargura
Uma deleitável doença
Um alegre tormento
Uma doce e feroz ferida
Uma morte branda
(Fernando de Rojas)

Acreditamos que, da mesma forma que as desigualdades de gênero presentes em

nossa cultura influenciam a mulher na formação de um “self” que contribui para que ela

sofra permanentemente em sua vida amorosa, a idealização do amor-romântico também

influencia sua maneira de se perceber no mundo e, portanto, sua experiência de sofrimento.

Gostaríamos, porém, antes de discorrermos sobre essa forma de ver e viver o

amor, comentar brevemente sobre a relação entre amor e sofrimento.


33

Vale salientar que, ao considerarmos a mulher como foco deste estudo, não estamos

menosprezando o sofrimento masculino, nem pretendemos criar dicotomias de qualquer

espécie. Estamos apenas delimitando nosso olhar, tendo em vista que, em nossa atuação

profissional, a freqüência de mulheres que apresentam queixas desta natureza tem sido

consideravelmente maior do que a de homens.

A relação entre amor e sofrimento é apontada, freqüentemente, por poetas,

compositores, filósofos, além de pensadores de outros campos do saber humano e pessoas

comuns do nosso cotidiano.

A literatura de cordel também trata de tal relação, como mostram os seguintes

versos:

A fonte da poesia
Dá força ao pensamento
Para que o trovador
Dentro do conhecimento
Possa narrar um romance
De amor e sofrimento

Se o amor nos faz viver


Também pode nos matar
O amor é como o sol
De dia pode brilhar
Mas quando uma nuvem passa
Faz o coração penar (Cavalcante, s.d., p. 01).

O incêndio que o amor agita


Só a morte mesmo apaga
O amor é um veneno
Que o peito do amante rasga
Um só momento de amor
O mundo em ouro não paga (Sem Autor, 1958,
p.39).
34

Um poema de Dolores Duran (1959) cuja composição musical foi feita por Carlos

Lyra expressa, de forma clara e direta, a relação entre amor e sofrimento, por intermédio do

título Amar é sofrer. De modo semelhante, encontramos trechos na canção popular, tanto

nacional como internacional, tais como: E assim vou vivendo/Sofrendo e querendo/Esse

amor doentio (Leandro e Leonardo), Mora na filosofia/Pra que rimar amor e dor (Arnaldo

Passos/Monsueto Menezes), Amor da minha vida/Você me magoou/Feriu meu coração

(Queen).

É interessante destacar, como aponta Menezes (citada por Moura Filho), professora

de Teoria Literária, da Universidade de São Paulo (USP), que “tradicionalmente, na

literatura, amor e paixão são sinônimos de sofrimento”. Acrescenta essa autora que, “nos

textos literários, principalmente nas canções de amor da Idade Média, é comum observar a

busca amorosa. Neste sentido, a palavra grega pathos pode significar o amor como

doença”.

Por outro lado, também encontramos registros literários, artísticos, dentre outros,

que, embora não neguem a presença do sofrimento, abordam o amor de modo diferente

desse de que vimos tratando. Cabe citar Martins (2000), em um artigo de sua autoria, que

nos apresenta um modo de conceber o amor, a partir da visão de Winnicott e de Espinosa.

Tal visão nos diz que amar implica a vivência lúdica, a espontaneidade, a criatividade, a

fluidez, o incessante devir; ele (o amor) nos liga ao mundo, potencializa a vida, sedimenta a

capacidade do ser humano de aceitar a alteridade e de confiar no ambiente e em si mesmo.

Como endossa o autor, o amor é, fundamentalmente, amor à vida, “(...) amor do qual o

amor ao outro é apenas um modo, uma variação, um caso particular”. O amor, nessa visão,

está completamente enlaçado com a vida, com a alegria, com a “saúde emocional”. Essa

idéia, porém, está longe de constituir uma dicotomia com a de morte, de sofrimento ou de
35

doença, pois a relação entre esses dois grupos é pautada no paradigma da coexistência.

Portanto não há uma negação da existência de sofrimento na relação de amor; o que

realmente parece ser relevante quando amamos, segundo essa linha de pensamento, é a

possibilidade de auto-abertura e de contato pleno consigo mesmo, com o outro e com o

processo de viver, propiciados pela experiência do amor.

Em consonância com tal perspectiva, destacamos ainda Dantas de Araújo (2000),

que, em sua tese de doutorado, trata da experiência do relacionamento amoroso, tomado do

ponto de vista da mulher, não integrado à vida social como um todo. A autora aborda o

amor numa perspectiva não-patológica, considerando, como afirma, que “(...) o amor

assume lugar nas possibilidades humanas, dentro de um espaço de criação (...)” (p. 24).

Desse modo, ela chama a atenção para a importância da criatividade no desenvolvimento

pessoal saudável, a qual envolve as diversas vivências, dentre as quais o relacionamento

amoroso heterossexual. Uma de suas conclusões aponta para a relevância do humor e da

brincadeira no relacionamento amoroso significativo, bem como para a consideração de que

amor é comunicação.

Apesar de acreditarmos nessa forma de amar e de a valorizarmos, observamos, em

nossa realidade profissional, a partir da escuta clínica de mulheres, a existência

predominante da íntima relação entre amor e sofrimento, muito distante das esferas da

criatividade, da fluidez, do bem-estar. Nesse sentido, é oportuno enfatizar o nosso

entendimento de que amar não é sofrer, e vice-versa, embora admitamos que o sofrimento

possa estar presente, com maior ou menor intensidade e constância, em qualquer relação

amorosa. No entanto observamos freqüentemente a existência de relações amorosas

caracterizadas pela prevalência da experiência de sofrimento.


36

2.4 O amor romântico e seus ideais

E assim os dois amantes


Juraram um eterno amor
Carolina disse a Jorge
Cheia de pejo e rubor:
Serei fiel sempre a ti
Disso não tenhas temor
(Athayde)

No presente estudo, optamos por tecer considerações mais extensas acerca do amor-

romântico, pois pensamos que, mesmo tendo surgido há três séculos, ele continua presente

em traços ainda mantidos, embora de maneira diferente de tempos atrás, tendo em vista o

surgimento de novas configurações amorosas no mundo atual, afetando o modo como a

mulher se relaciona amorosamente. De maneira mais específica, entendemos que a

experiência de permanência no sofrimento, da mulher, nesse âmbito, parece estar

intimamente relacionada aos ideais do amor romântico. Portanto este trabalho enfatiza o

amor em sua forma apaixonada, ou amor-paixão romântico, ou simplesmente amor

romântico tal como designado por Costa (1999).

Em uma pesquisa realizada por Garcia e Tassara (2001) sobre as estratégias que as

mulheres utilizam para lidar com o cotidiano conjugal, verificou-se que a utopia do amor

romântico parece ser considerada por elas como um padrão de desejabilidade a ser

alcançado. Assim, as narrativas das mulheres revelaram que se considerarem inclusas na

condição de felizes no casamento requer a “(...) produção de condições de convivência

conjugal baseada na exclusividade, na durabilidade e no prazer sexual”. Mesmo diante da

inexistência dessas condições, as autoras constataram que essas mulheres não têm a

intenção de separar-se dos seus respectivos cônjuges. Essas evidências, levando-se em

consideração os limites da pesquisa realizada, contribuem para endossar a nossa idéia de


37

que o amor romântico ainda constitui um ideal almejado por grande parte das mulheres em

nossa cultura, podendo contribuir para que elas permaneçam em um relacionamento

amoroso gerador de sofrimento.

Por outro lado, em estudo sobre o casamento contemporâneo e as tensões entre

individualidade e conjugalidade, Féres-Carneiro (1986) defende a idéia de que a autonomia

e a emancipação da mulher tendem a fragmentar os ideais do amor romântico, no âmbito do

casamento contemporâneo. Segundo essa autora, “as categorias de ‘para sempre e único’ do

amor romântico, não prevalecem na conjugalidade contemporânea” (p.384). O sociólogo

Anthony Giddens (1993) também parece assumir esse posicionamento, ao destacar a

inegável e crescente igualdade sexual entre homens e mulheres, que leva ambos “(...) a

realizar mudanças fundamentais em seus pontos de vista e em seu comportamento, em

relação um ao outro” (p.16). Ele aponta a existência, ao longo da modernidade, de

transformações na intimidade conjugal e individual que levam os casais a repensarem, na

atualidade, suas idealizações sobre o amor, a sexualidade e o casamento.

Pensamos, assim como esses dois autores, que as conquistas femininas foram

fundamentais para a fragilização do amor romântico, favorecendo a emergência de novas

configurações das relações amorosas. Contudo compreendemos que essas mudanças e os

ideais românticos coexistem, gerando tensões que, muitas vezes, revelam a sobreposição da

utopia do amor romântico.

No capítulo introdutório da sua obra, a qual reúne quatro artigos sobre o amor

romântico, Costa (1999) argumenta que “o amor é uma crença emocional e, como toda

crença, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida” (p.

12). De maneira esclarecedora, Dantas de Araújo (2000) expõe que esse autor sustenta a

“(...) idéia de que o amor-romântico é uma construção humana e, como tal, não se deve
38

nem ao indivíduo isolado nem à sociedade abstrata, mas à relação dinâmica entre a

singularidade e a pluralidade concretas” (p. 39).

De acordo com Costa (1999), no decorrer da vida, interiorizamos regras

comportamentais, sentimentais e cognitivas que nos levam a ter o amor-paixão romântico

como o ideal amoroso a ser buscado, perseguido incessantemente e, quando, por algum

motivo, nos vemos impossibilitados de realizar o ideal imaginário do amor, construímos

narrativas para explicar a impossibilidade, buscando culpar a nós mesmos, aos outros ou ao

mundo, pois aceitamos de forma acrítica as “regras do amor” interiorizadas ao longo do

tempo. Para o autor, inventamos e compartilhamos um determinado modo de amar que,

acreditamos, constitui o atributo essencial da felicidade pessoal que almejamos; não nos

preocupamos em questionar esse ideal amoroso e sua prevalência no cenário da vida atual.

Costa (1999) observa o papel da cultura na transmissão do valor do amor-paixão

romântico, que é tido como garantia de felicidade, de modo que, se, por algum motivo, não

obtemos sucesso nessa empreitada, sentimo-nos culpados, desvalorizados. Segundo esse

autor, a falta de posicionamento contra o valor imposto evidencia uma valorização geral da

crença na universalidade e na bondade dessa forma de amar, restringindo nossa

possibilidade de criar e explorar novas configurações amorosas. Assim, talvez possamos

compreender a experiência da mulher de permanência no sofrimento, nesse âmbito, como

estando relacionada a uma dificuldade de acreditar e de buscar uma maneira diferente de

relacionar-se sexual e afetivamente com o sexo oposto. Como sabemos, ainda hoje muitas

mulheres crescem embalando os sonhos de encontrar, na vida adulta, um “grande amor”, ou

seja, um homem por quem ela se apaixonará, com quem casará, constituirá família, viverá

para sempre, e feliz. Esse é um valor social que continua sendo transmitido pelos pais aos

filhos, tendo um significado peculiar para as mulheres, em função, como já discutimos, do


39

seu papel no contexto sócio-histórico. Assim, Biasoli-Alves (2000) conclui, em sua

pesquisa intitulada: Continuidades e rupturas no papel da mulher brasileira no século XX,

que a mulher, atualmente, é um ser em construção, que busca desenvolver-se e realizar suas

potencialidades, contudo “(...) os valores que os mais velhos cultivaram e buscaram

imprimir nos seus filhos e netos estão presentes, hoje, mesmo que sob outras roupagens”,

entranhados na cultura e resistentes a alterações radicais em curto período de tempo. Dito

de outra forma, continuidades e rupturas exercem, em paralelo, a mesma força sobre a

imagem da mulher no atual contexto brasileiro.

Essa convivência entre o antigo e o novo também é apontada por Nogueira

(fevereiro/2004 – revista Época), em reportagem sobre o casamento neste início de milênio.

A jornalista mostra que, atualmente, existe uma pluralidade de modelos de união entre

homens e mulheres, porém continuam presentes, nas relações amorosas modernas, valores,

normas e atitudes de tempos atrás.

Segundo Costa (1999), mesmo quando admitimos que o amor não é universal,

natural ou espontâneo, podemos ter o desejo de mantê-lo como ideal de felicidade. O autor

afirma que, na verdade, o amor “(...) deixou de ser um meio de acesso à felicidade para

tornar-se seu atributo essencial” (p. 19). Ele explica que isso se deve a fatores tais como a

perda de interesse pela vida pública, a emancipação das minorias sexuais e a escassez de

ideais afetivamente importantes. Acrescenta ainda que o romantismo amoroso constitui um

ideal da cultura ocidental, o qual vem se perpetuando, resistindo às mudanças que o mundo

vem sofrendo ao longo do tempo. Sendo assim, ele questiona o fato de permanecermos

ligados ao amor romântico como um ideal nascido em um contexto específico,

caracterizado pela introspecção, na qual se valorizavam os sentimentos. Nas atuais

condições culturais, existe uma valorização das sensações, do que é efêmero e superficial,
40

como também, segundo o autor, uma continuidade do amor romântico como modelo de

relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres. Diante disso, entendemos que o

prosseguimento dessa forma de amar, em um contexto histórico-cultural marcado pelo

consumismo, narcisismo e imediatismo, dificilmente alimentará a atração imaginária pela

intimidade do sentimento, que caracteriza o amor-paixão romântico. No entanto a realidade

com a qual nos defrontamos em nosso cotidiano profissional e social mostra que as pessoas,

especialmente as mulheres, ainda estão acalentando essa forma de amar, tomando-a como o

principal fator de felicidade e auto-realização, embora, em seus relacionamentos amorosos,

vivenciem exatamente o contrário.

Considerar o amor como o ideal e a garantia da felicidade, talvez se relacione com o

que Comte-Sponville (2001) afirma ao dizer que “(...) estamos constantemente separados

da felicidade pela própria esperança que a busca” (p. 36). Para o autor, desejamos sempre

aquilo que nos falta, por isso vivemos esperando ser felizes e não nos entregamos à

plenitude do momento presente. Esclarece ele, ainda, que, assim como a felicidade, o amor

só existe no presente, e apenas este é real; assim, o amor só se refere ao real. Desse modo,

diz ainda Comte-Sponville (2001):

(...) o contrário de esperar é conhecer, agir e amar. É a


única felicidade que não nos escapa. Não o desejo do
que não temos ou do que não é (a falta, a esperança, a
nostalgia), mas o conhecimento do que é, a vontade do
que podemos, enfim o amor do que acontece e que,
portanto, já nem precisamos possuir (p. 86).

Essa visão do amor aproxima-se da do amor espinosista, apresentada anteriormente,

a qual tem a potência, e não a falta, como principal ingrediente.

Ainda com relação ao amor romântico, o sociólogo Anthony Giddens (1993) afirma

que ele “(...) pressupõe a possibilidade de se estabelecer um vínculo emocional durável com
41

o outro (...)” (p.10). O amor romântico precede a um modo de amar denominado por esse

autor de “relacionamento puro” - ou seja, uma relação em que ambas as partes só

permanecem juntas enquanto se sentem gratificadas individualmente - e permanece em

tensão em relação a ele.

Além das características de monogamia, heterossexualidade e perenidade do amor

romântico, o autor assinala outras, tais como a vinculação com a liberdade

(descompromisso em relação à rotina e às obrigações habituais) e com a auto-realização.

Segundo Giddens (1993), o amor romântico introduz a idéia de uma narrativa pessoal que

envolve o eu e o outro, ignorando as questões sociais mais amplas. Como podemos

entender, a díade amorosa desenvolve uma relação na qual se exalta a privacidade, o mundo

íntimo e particular dos amantes, seus encontros e momentos de plenitude. Valoriza-se aqui

a realização pessoal, possibilitada pelo envolvimento emocional duradouro com o outro.

Um aspecto que merece atenção é a explicitação, por Giddens (1993), de que a

experiência do amor romântico presume a idealização do outro, um encontro entre dois

indivíduos que possibilita o preenchimento de um vazio que cada um carrega. Esse vazio, o

autor esclarece, relaciona-se com a auto-identidade, que se torna inteira quando a relação de

amor tem início. Assim, parece coerente pensarmos que, com o passar do tempo, cada

indivíduo vai tendo possibilidade de ver o outro de maneira mais realista e global,

identificando as virtudes, os defeitos e algumas características que dificilmente são

percebidas na fase inicial do relacionamento de amor. Esse conhecimento ampliado do

outro pode levar ao desmoronamento das fantasias, devaneios e idealizações, antes

cultivados, denunciando o vazio que parecia ter sido preenchido pelo outro. É comum

ouvirmos alguém falar que, após anos de convivência, o relacionamento amoroso se

modificou, o que, em nossa opinião, é inevitável, haja vista que a subjetividade se


42

transforma ao longo do tempo. Contudo essas mudanças podem ser percebidas

negativamente quando, dentre outros motivos, se constrói uma imagem pouco realista de si

mesmo e do parceiro que se ama; assim, estar-se-á mais suscetível a decepções, frustrações

e solidão.

Silva (2002), no livro A paixão silenciosa, fruto de sua dissertação de mestrado,

apresenta recortes de narrativas de duas mulheres que, assim como outras clientes, em sua

experiência na clínica psicanalítica, “(...) expressam profundo sofrimento, um estado de

aprisionamento psíquico ao objeto do desejo, reclusão no mundo da fantasia - forma de

apaziguamento da falta” (p. 18).

Essa forma de experiência amorosa, denominada pela autora de paixão silenciosa,

caracteriza-se pela dependência, submissão e passividade, por conferir ao outro (objeto da

paixão) a responsabilidade por todo o bem-estar e sofrimento que se sente. Ela defende a

idéia de que essa modalidade de paixão “(...) é a expressão sintomática do imbricamento do

sujeito na sua história e possui o caráter de alienação de si e desconhecimento do outro na

sua diferença” (Silva, 2002, p. 23). A autora explica que as idealizações que permearam as

relações primárias do indivíduo assumem um papel fundamental no estabelecimento e na

manutenção desse modo de relação amorosa na fase adulta. Argumenta ainda que as

experiências de amor e dor vividas na infância, basicamente na relação da criança com os

seus progenitores, constituem o protótipo das escolhas amorosas do indivíduo adulto. Este,

de acordo com o nosso entendimento, a partir da situação descrita pela autora, dificilmente

poderá reconhecer-se como tal, ter clara consciência de seus desejos, emoções, valores, agir

em consonância com tudo isso, entregar-se ao incessante movimento do devir; tampouco

estará em condições de acolher o outro em sua diferença constitutiva. O indivíduo, nessa

situação, tende a iluminar o outro às custas do seu “apagamento”.


43

É importante destacar o que Giddens (1993) afirma acerca da relação entre a mulher

e o amor romântico, a saber, que o amor e seus ideais influenciaram, durante muito tempo,

as aspirações femininas. Lembramos, porém, que nossa posição baseia-se na idéia de que

essa influência continua presente, embora admitamos que, de maneira talvez menos intensa

e generalizada, diferente de como existia há décadas.

Concordando com Giddens (1993), entendemos que o amor romântico era “(...)

essencialmente um amor feminilizado” (p. 54). Para esse autor, é inconcebível não ligarmos

o surgimento da idéia do amor romântico aos acontecimentos que incidiram sobre a vida

das mulheres a partir do final do século XVIII, tais como a criação do lar, as mudanças na

relação entre pais e filhos e a invenção da maternidade. Esclarece ainda Giddens (1993) que

a idealização do papel de mãe alimentou alguns dos valores do amor romântico, e

acrescenta que a divisão sexual das tarefas fez com que essa modalidade de amor fosse

considerada como predominantemente feminina. Em outros termos, “(...) as idéias do amor

romântico estavam claramente associadas à subordinação da mulher ao lar e ao seu relativo

isolamento do mundo exterior” (p. 54). De fato, endossa Araújo (2002), “(...) os sonhos do

amor romântico conduziram muitas mulheres a uma severa sujeição doméstica” (p. 76).

Como pudemos observar, diante de tudo o que expusemos, parece existir uma

estreita vinculação entre sofrimento, gênero e amor romântico. Isso nos faz pensar na

importância de considerarmos os processos culturais e históricos na compreensão do

fenômeno em estudo, pois este não existe fora do tempo e do espaço.

Reportando-nos à nossa experiência clínica, repleta de exemplos de situações que

demonstram o sofrimento constante da mulher em seus relacionamento amorosos,

pensamos em mudança, (re)criação, prazer, risco, devir... Lembramos, então, de Costa


44

(1999), ao defender a idéia de que os seres humanos precisam criar novas formas de vida

bem c

omo aperfeiçoar suas convicções amorosas, considerando as atuais condições

culturais. As pessoas, segundo ele, continuam insistindo em manter as regras de um jogo

amoroso que a cada dia tendem a declinar, em virtude de se tornarem mais restritas “(...)

aos episódios de êxtase sentimental e sexual” (p.218). O autor encerra sua argumentação

dizendo:

Resta, portanto, como aconselha Solomon, procurar


inventar um “neo-romantismo” mais comprometido
com o mundo e, até lá, “ser humildes quanto ao nosso
entusiasmo” pelo amor erótico. Sem isso, o declínio do
amor-paixão pode deixar um vazio identitário que não
sabemos como ocupar (p. 218).

Nessa perspectiva, também lembramos alguns pensadores contemporâneos, tal

como Guatarri (1999), que propõe a reinvenção de modos de existência singulares,

distanciados da reprodução de padrões comportamentais, enquadrados em referências pré-

estabelecidas, avessos ao modo de existir que se permite ser afetado pelo fluxo contínuo de

experiências e que acolhe o desconhecido, a incerteza criadora, o desassossego. Lembramos

ainda Dantas de Araújo (2000), ao apostar na possibilidade de o par amoroso construir um

relacionamento ancorado na criatividade, a qual é capaz de permitir “(...) a instalação da

mudança, da descontinuidade que carrega, em sua metamorfose, elementos de continuidade

e permanência” (p. 23).

Posto isso, acreditamos que, ao cultivarem a crença nos ideais do romantismo

amoroso, fechando-se a diferentes alternativas de vivenciar o amor, bem como ao agirem

de acordo com referências externas, as mulheres revelam um modo de estar no mundo que
45

parece distanciá-las do contato com o seu potencial de crescimento. Entendemos que é

como se elas não estivessem abertas ao movimento incessante do devir, ou não se

percebessem nesse movimento. Alheias ao seu próprio querer? Percebendo-se incapazes de

se apropriar de sua própria existência? Quem sabe, prisioneiras de sua auto-imagem e do

modo de vida previsível e “seguro” que construíram para si, inertes à capacidade de extrair

prazer, satisfação e bem-estar do momento presente bem como de encarar a vida e suas

vicissitudes com mais leveza e suavidade.

Sem pretendermos dar um ponto final às nossas reflexões, pensamos que cabe tanto

às mulheres quanto aos homens comprometerem-se na construção de relações amorosas

mais democráticas, igualitárias e satisfatórias, exercitando, cotidianamente, o movimento

de abertura que possibilite a instauração de um modo verdadeiramente novo de existir. A

seguir, daremos destaque ao que consideramos ser o espaço teórico dos aspectos subjetivos

do fenômeno em estudo, a fim de apresentarmos a referência que consideramos basilar para

a compreensão de tal fenômeno.


46

3. O enfoque centrado na pessoa: uma abordagem humanista-existencial

da subjetividade

Nossa ênfase é na singularidade da experiência de permanecer sofrendo na relação

amorosa e no como tal experiência é vivenciada pelas mulheres participantes desta

pesquisa.

É oportuno destacar que a nossa visão de homem e do modo como a subjetividade é

abordada e concebida, inicialmente muito próximas da visão de Rogers, distanciou-se um

pouco dessa posição, pois passamos a questionar alguns limites teóricos, ao depararmo-nos

com o fenômeno em investigação neste trabalho buscando compreendê-lo. Nessa alteração

de perspectiva, vemos como imprescindível a consideração da dimensão histórico-cultural

da subjetividade humana, aspecto que, ao nosso ver, não foi tratado satisfatoriamente por

Rogers em sua abordagem teórica. Não temos a pretensão de formular novos conceitos

teóricos, mas sim desejamos chamar a atenção para a configuração histórico-cultural do ser

humano, a qual constitui o contexto da formação do self. Entretanto, cabe-nos interrogar a

respeito da concepção de subjetividade tal como entendida por Rogers, confrontando-a com

o pensamento de autores contemporâneos identificados com a perspectiva sócio-histórica,

tais como Mancebo (2002), Rey (2003) e Miranda (2000). É importante salientar que o

conceito de subjetividade não é abordado diretamente por Rogers, mas as idéias e

pressupostos que compõem a sua teoria oferecem um entendimento do modo como a

dimensão subjetiva é concebida por esse autor.

A seguir, refletiremos brevemente sobre essa questão e dialogaremos com autoras

de orientação fenomenológico-existencial, como Dutra (2000) e Moreira (2001), as quais


47

formularam um novo entendimento de alguns aspectos da perspectiva rogeriana. Estaremos,

assim, exercitando o olhar crítico sobre a nossa posição teórica, o que consideramos de

especial relevância neste trabalho. Prosseguiremos aprofundando o nosso entendimento

acerca da subjetividade, segundo a perspectiva de Rogers, focalizando o self ou

autoconceito, com o qual, como já esclarecemos, presumimos relacionar-se a experiência

que buscamos compreender.

3.1 Um olhar crítico sobre o conceito de subjetividade na perspectiva de Rogers

O enfoque centrado na pessoa tem como criador o psicólogo Carl R. Rogers. Tal

perspectiva considera, como centro de suas preocupações, a pessoa, concebendo-a como

dotada de um potencial para o desenvolvimento em sentido pleno. Ressalta o respeito pelo

ser humano bem como valoriza “(...) o papel dos sentimentos e da experiência como fator

de crescimento” (Moreira, 2001, p. 41).

Ao enfatizar, em sua teoria, a idéia de que existe um potencial e uma capacidade

para o autodesenvolvimento, inerentes ao indivíduo que possibilita crescimento de forma

plena, Rogers apresenta, como esclarece Moreira (2001), uma “(...) concepção da natureza

humana como fundamentalmente construtiva e autorreguladora” (p.41). Esse potencial,

segundo Rogers (1977), só não poderá manifestar-se em pessoas que tenham algum

comprometimento sério, como lesões ou conflitos estruturais, pois requer, para a sua

expressão total, um ambiente no qual existam condições psicológicas adequadas ou, de

modo mais específico, um contexto de relações que propiciem a conservação da concepção

que a pessoa faz de si mesma. Portanto esse autor sinaliza a presença de fatores ambientais,

especialmente a configuração familiar do indivíduo, como sendo dificultadores ou

facilitadores do pleno exercício desse potencial, que ele denominou tendência atualizante.
48

Nessa sucinta introdução ao pensamento de Rogers, observamos, de imediato, uma

visão de subjetividade semelhante à das abordagens psicoterapêuticas em geral, cujos

postulados enfatizam a constelação familiar do indivíduo e os aspectos intrapsíquicos. Com

isso, os processos sócio-históricos mais amplos costumam ser negligenciados, parcialmente

ou em sua totalidade. Há autores contemporâneos que, assim como Miranda (2000),

defendem a idéia de que o reduto “psi” não dá conta da heterogeneidade da subjetividade

contemporânea, sendo necessário recorrermos a disciplinas, tais como sociologia,

economia, arte, antropologia, e outras.

Para Rogers (1977), a capacidade de auto-realização do indivíduo é a expressão

psicológica da tendência à atualização, que lhe é inerente. Essa capacidade tem como

finalidade “(...) desenvolver as potencialidades do indivíduo para assegurar sua

conservação e seu enriquecimento” (p.41). No entanto vale ressaltar que a tendência à

atualização está a serviço daquilo que o indivíduo percebe como auto-enriquecedor e

autovalorizador. Desse modo, é partindo do marco de referência da própria pessoa, dos

significados pessoais e do modo como o ser humano se percebe no mundo que a tendência

à atualização exerce a sua plenitude. Ao afirmar que “todo indivíduo existe num mundo de

experiência, do qual ele é o centro e que está em permanente mudança”, Rogers (1951,

p.467) acentua, como cerne de suas experiências, a valorização do indivíduo. Ao fazer uma

leitura crítica sobre o modo como a subjetividade é abordada por Rogers, vemos que a

primazia da pessoa, tida como centro de suas preocupações, denota o entendimento da

subjetividade associada à “(...) imagem de uma experiência privada, intransferível e

irrenunciável” (Dommènech, M., Tirado, F., e Gómez, L., 2001, p.114). Além disso, a

ênfase no “indivíduo” corrobora a assertiva de Mancebo (2002) sobre ser esta a categoria

tida como principal referência, na modernidade ocidental, para o entendimento da


49

subjetividade, destituída de seu caráter histórico e social. Essa autora conclui que, “na

psicologia, o conceito de indivíduo muitas vezes apresenta-se como um a priori não

problematizado, tanto nas suas formulações teóricas, quanto em seus desdobramentos

prático-profissionais” (p. 101).

Concordamos com Dutra (2000), no seu entendimento de que a teoria psicológica de

Rogers “(...) assume como prioridade o vivido, a experiência subjetiva do indivíduo, ou

seja, o mundo interno da experiência” (p 19). Assim, vemos a subjetividade, na teoria

rogeriana, situada no campo individual, concebida como dimensão interior, reduto

intrapsíquico a partir do qual derivam as condutas humanas.

Em sua teoria da personalidade e da conduta, Rogers (1951), enfatiza que “a

realidade é, fundamentalmente, o mundo particular das percepções do indivíduo” (p. 469).

Ao ressaltar o valor atribuído ao mundo interno, o autor parece defender a existência de

duas realidades: a interior e a exterior, sendo esta última dependente da primeira. Essa

constatação é coerente com a assertiva de Domènech et al (2001) acerca da dificuldade da

ciência psicológica em romper com a tradição cartesiana.

A teoria da personalidade rogeriana enfatiza a existência de um “eu”, self ou auto-

imagem, o que, de acordo com Miranda (2000), parece sugerir a existência de um modelo

identitário. A autora trata da relação entre identidade, individualidade e subjetividade,

argumentando que a subjetividade distancia-se da identidade e da individualidade, pois

“(...) é marcada menos por uma etiqueta identificatória do que pela diversidade, pela

heterogeneidade dos modos que ela pode assumir” (p.38). Nesse contexto, a autora

acrescenta que a singularização perpassa não apenas o indivíduo, mas os grupos e

instituições. Esse posicionamento é semelhante ao de Guatarri e Rolnik (1986), quando

afirmam que “(...) a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes
50

maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável” (pp. 68-69).

Nesse sentido, tais autores não vêem o termo identidade como algo que se afirma pelo

contraste, mas como um rótulo ou algo semelhante que aprisiona os potenciais de

singularização.

A configuração cultural e histórica do ser humano também é valorizada por alguns

autores de orientação fenomenológico-existencial, dentre os quais Dutra (2000) e Moreira

(2001). Estas autoras buscaram ampliar a sua compreensão da teoria de Rogers, destacando

e criticando alguns limites dessa abordagem, especialmente no que diz respeito à

desconsideração do caráter histórico e mundano do ser humano. Nesse sentido, Moreira

(2001) afirma que Rogers ignora a realidade concreta, o contexto sociocultural, em virtude

de seu objetivo restringir-se “(...) a pensar em uma maneira mais adequada e efetiva de

relacionar-se interpessoalmente” (p. 58). Acrescenta que a psicoterapia de Rogers precisa

evoluir “(...) para uma concepção de homem enquanto ser-no-mundo e, como tal, como

fenômeno em mútua constituição com o mundo” (p. 162).

Rey (2003), autor de considerável destaque na perspectiva sócio-histórica, a

despeito das críticas lançadas à psicologia humanista, da qual Rogers é um dos

representantes mais expressivos, afirma reconhecer a “(...) sua aproximação histórico-

cultural aos processos de subjetivação humana” (pp. 62-63). Também sinaliza que, assim

como a abordagem histórico-cultural, o pensamento humanista apresenta princípios

fundadores que “(...) não estão cristalizados em um hermetismo epistemológico que impede

toda reflexão ou transformação por parte de seus seguidores (...)” (p. 59). Por fim,

argumenta que o humanismo “(...) se coloca na perspectiva de um sujeito cujas construções

representam importantes motivações do comportamento, o que também apareceu com

particular força no marco soviético original do enfoque histórico-cultural” (pp. 62-63).


51

Um aspecto, ao nosso ver, fundamental, a ser ressaltado na teoria de Rogers é a sua

forte ênfase na dimensão processual do ser humano, expressando, segundo Dutra (2000),

uma forma de ver a subjetividade ancorada na compreensão da “(...) existência humana

como um processo que se pauta nas possibilidades de um poder-ser (grifo nosso) que se

constrói a cada momento da experiência” (p. 32). A processualidade do sujeito, no curso de

sua ação, também é defendida por autores da perspectiva sócio-histórica, dentre os quais

aqueles que vimos citando neste capítulo. Isso nos leva a afirmar, de maneira, talvez,

provocadora, que pensamos ser esse um fio condutor que parece aproximar essa perspectiva

da teoria de Rogers. Nesse sentido, vale ressaltar o que Miranda (2000) afirma: que

pensadores como Deleuze e Guatarri apontam para uma mudança de paradigma, rejeitando

a constitutividade e adotando a processualidade, na abordagem dos fenômenos e da própria

subjetividade. Em outros termos, podemos dizer que a constante abertura ao devir e a

manutenção desse fluxo contínuo são primordiais para a construção de uma nova

sensibilidade, de uma configuração existencial reveladora de singularidade. Urge, portanto,

como destaca a autora, que o ser humano abra mão de referências identitárias, que

aprisionam sua subjetividade. Assim, as abordagens teóricas referidas neste estudo, apesar

de apresentarem concepções de subjetividade radicalmente distintas, demonstram a

relevância de estarmos em constante devir, abertos ao processo de fluidez característico do

viver. Elas parecem aproximar-se no que diz respeito à crença na possibilidade do ser

humano existir como um processo, desencadeando mudanças construtivas em sua vida, em

contato com os sentidos que vai dando à sua existência.

Essa breve exposição das principais idéias do criador da ACP leva-nos a pensar a

subjetividade como uma dimensão intrapsíquica do ser humano. O desenvolvimento e a

constituição dessa subjetividade se alicerçam no meio, na relação com o outro,


52

especialmente no contexto familiar do qual a pessoa faz parte. A subjetividade é, ainda,

concebida como um mundo íntimo e privado, constituído por experiências que fluem

constantemente, as quais só são acessíveis ao próprio indivíduo e, em sua maioria,

constituem a base do campo perceptivo. Este fundamenta o autoconceito ou self, principal

referência para as ações humanas. Tal concepção de subjetividade, no nosso entender,

carece de contextualização histórico-cultural, de focalização na existência do mundo

concreto, como bem sinalizam os humanistas que criticam essa abordagem.

Um parêntese aqui se faz necessário, em virtude de, por outro lado, acharmos

pertinente que uma abordagem psicoterapêutica, oriunda do campo da clínica, tal como a

que originou a teoria de Rogers, enfatize a constituição da subjetividade com grande ênfase

na dinâmica familiar do indivíduo, pois observamos, em nossa prática profissional, que esse

aspecto, embora não seja o único, como vimos sinalizando, parece afetar sobremaneira o

modo como o indivíduo existe no mundo. Inclinamo-nos a pensar, ainda, que a diferença

entre as perspectivas teóricas aqui abordadas diz respeito, sobretudo, à ênfase atribuída aos

aspectos que constituem ou formam a subjetividade humana, o que nos faz ver que toda

teoria possui suas limitações, constituindo formas apenas diferentes de olhar a realidade.

Por fim, ainda no que se refere à concepção de subjetividade na teoria de Rogers, ressalta-

se um pressuposto essencial, que parece aproximar, como já vimos, tal abordagem da

perspectiva sócio-histórica, a saber, o caráter processual e dinâmico da subjetividade, assim

como o seu poder de construção e re-construção. Esse aspecto, apesar de, pelo que nos

parece, ser comum a todas as teorias psicológicas, é significativamente valorizado pelas

abordagens em questão.

No entanto a maioria dos aspectos que compõem a subjetividade, segundo o criador

da ACP, é questionada por autores contemporâneos da perspectiva sócio-histórica, tais


53

como os que citamos até este ponto do capítulo. Apesar de concordarmos com uma parte

dessas críticas, continuamos ancorada no pensamento de Rogers e na forma como ele

concebe a subjetividade, respaldada pelas contribuições de Eugene Gendlin, apontadas

adiante. Isso não implica, no entanto, correndo o risco de ser sermos repetitiva, fecharmos

os olhos para a realidade social e histórica, na qual a subjetividade se constitui e que

permeia os sentidos que o ser humano atribui às suas experiências.

3.2 Entendendo o self ou autoconceito

Inicialmente, focalizaremos a concepção de self de acordo com as idéias e

pressupostos formulados por Rogers e, mais adiante, apresentaremos tal constructo à luz

das contribuições de Eugene Gendlin. Esclarecemos, no entanto, que optamos por articular

teoricamente a questão da permanência no sofrimento com o self e outros aspectos da ACP,

apenas no capítulo que trata da discussão deste trabalho.

A teoria da personalidade de Rogers é fruto da experiência clínica desse autor, que

ouvia pacientemente as gravações das sessões com seus clientes, elaborando, assim,

importantes hipóteses. Rogers (1974), tinha uma constante preocupação, com o rigor

científico de suas formulações teóricas, haja vista que tinha como importante objetivo “(...)

submeter a dinâmica e os resultados da terapia a rigorosas investigações experimentais”(p.

202). Esse aspecto evidencia um posicionamento crítico e ético daquele teórico, na

formulação de pressupostos, produzindo uma das abordagens mais consistentes e coerentes

no campo da psicologia.

A teoria da personalidade de Rogers está longe de ser dogmática, pois é incompleta

e inacabada, estando aberta a novas contribuições. Caracterizada pelo dinamismo, enfoca,

sobretudo, o aspecto processual da personalidade, em oposição às estruturas fixas e


54

imutáveis desta (Rogers, 1974). Esse autor considera sua teoria como sendo de natureza

fenomenológica e existencial, apoiando-se nas teorias organísmicas da personalidade e nas

idéias dos fenomenólogos Snygg e Combs (1949).

O conceito de si mesmo ou self é central na teoria da personalidade de Rogers. O

self é um fator que orienta a conduta humana, ou seja, a configuração mutável das

percepções que o indivíduo tem de si próprio fundamenta as suas ações no mundo. Essas

percepções envolvem as qualidades e defeitos, valores, capacidades e limites, atributos,

ideais e características que o indivíduo reconhece como parte de si mesmo, de sua

identidade. Essa estrutura perceptual constitui a base de todas as percepções que envolvem

o “experienciar” do indivíduo em cada momento de sua existência; ou seja, o mundo é

percebido pelo indivíduo a partir da noção que este tem de si mesmo.

A tendência atualizante, entendida como a força interna que naturalmente conduz o

ser humano ao crescimento, fornece a energia necessária para que o self direcione as ações

humanas. Estando à disposição do autoconceito, a tendência atualizante busca conservar a

imagem que o indivíduo faz de si mesmo e, para que o seu desenvolvimento seja eficaz, o

autoconceito deve ter um caráter realista ou, em outros termos, deve haver “(...)

congruência entre os atributos que o indivíduo acredita possuir e aqueles que de fato

possui” (Rogers, 1977, p.45). Assim, para que a auto-percepção do indivíduo seja realista,

deve fundamentar-se no fluxo de experiências reais, sentidas, de modo que o acesso a elas

seja livre e constante, possibilitando ao indivíduo contactar consigo e reconhecer tudo o que

se processa internamente (sentimentos, emoções, desejos, pensamentos etc.), sem se

conformar a exigências externas, do mundo social em que vive, ou ainda, sem buscar

adequar suas experiências ao seu autoconceito que, nesse caso, poderia contrariar essas

exigências.
55

É importante esclarecer que o conceito de si mesmo se forma à medida que a

criança interage com seu ambiente, em especial com as pessoas significativas presentes em

seu meio. Nessa interação, o indivíduo, durante a infância, vai construindo “(...) conceitos

acerca de si mesmo, acerca do ambiente, e acerca de si mesmo em relação com o ambiente”

(Rezola, 1975, p. 152). A criança busca conservar o amor dos pais e, conseqüentemente,

conservar sua própria estima. Em virtude das atitudes, muitas vezes, avaliativas e pouco

receptivas dos pais, a criança, movida por tal impulso ou necessidade básica, introjeta

valores alheios como se fossem próprios, e esses valores vão formando parte do seu campo

perceptual. Assim, ela se distancia progressivamente de suas experiências reais, negando

certas experiências e distorcendo outras, com o intuito de manter o apreço das pessoas

socialmente significativas e a imagem de si mesma. Estabelece-se, dessa forma, uma

incongruência entre a experiência e o conceito de si mesmo, de modo que o núcleo do

conflito psíquico se dá justamente, conforme esclarece Rezola (1975), pela “(...)

discrepância entre o que acontece em termos organísmicos e as percepções conscientes de

si mesmo” (p. 154). Em virtude disso, acrescenta o autor, a conduta do indivíduo não se

dirige para a satisfação das necessidades, mas para preservar a rígida estrutura do si mesmo,

comprometendo a tendência atualizante.

Parece ser coerente, de acordo com o que expusemos, pensarmos que o modo como

a mulher se percebe e a auto-imagem decorrente dessa percepção relacionam-se à sua

experiência de permanência no sofrimento, pois a noção de eu é fundamental no

direcionamento dado pelo ser humano à sua existência. Isso nos faz questionar se essas

mulheres não estariam “aprisionadas” a um autoconceito marcado por idealizações e

expectativas sociais referentes à sua maneira de agir, ou mesmo de existir. Como acredita

Rogers (1974), muitas pessoas baseiam suas escolhas e modos de conduta no juízo alheio,
56

de outros indivíduos, adotando uma maneira de agir conhecida ou valendo-se de um código

de ação definido por um grupo ou uma instituição, fechando-se à sua experiência real,

sentida, que poderia fundamentar as suas ações de modo a garantir um maior nível de

correspondência entre a experiência e a consciência. Sobre isso, Rogers (1951) enfatiza que

as atitudes dos pais costumam ser introjetadas e experimentadas pela criança, “(...) como se

estivessem baseadas em conclusões alcançadas pelo próprio aparelho visceral e sensorial”

(p. 483). Configura-se, assim, um autoconceito baseado parcialmente numa simbolização

distorcida .

Ao debruçarmo-nos sobre a teoria da personalidade de Rogers, remetemo-nos ao

fato de que em 1947, Rogers escreveu um artigo que representou o esboço de sua posterior

teoria da personalidade, abordando a estreita relação existente entre o self e a conduta

humana. Rogers adota uma perspectiva fenomenológica, enfatizando o ponto de vista

subjetivo da pessoa. Uma das hipóteses apresentada por ele refere-se ao si mesmo (self),

como sendo “(...) um fator básico na formação da personalidade e na determinação da

conduta” (Rezola,1975, p.107). Isso denota que, para o autor, não devemos pensar a

personalidade, o si mesmo e a conduta como aspectos independentes, mas inter-

relacionados. A segunda hipótese apresenta a idéia de que a conduta é orientada pela

percepção que o indivíduo tem da realidade. A última hipótese chama a atenção para a

globalidade das percepções relativas ao próprio indivíduo, de modo que, quando em

coerência com o conceito de si mesmo, a pessoa é considerada psiquicamente adaptada.

Para que possamos entender mais claramente o constructo de self ou autoconceito

em Rogers, faz-se mister lembrarmos o que ele afirma acerca do campo fenomenológico ou

perceptual: este “inclui tudo o que é experimentado pelo organismo, quer essas

experiências sejam captadas pela consciência ou não” (Rogers, 1951, p.467). Esse campo
57

fenomênico, como esclarece o autor, é de fundamental importância na formação do self,

pois este abrange as sensações sensoriais e viscerais que são simbolizadas ou

experimentadas pela consciência.

O conceito de si mesmo abrange todas as percepções do indivíduo, as quais se

organizam de modo fluido e mutável, possibilitando um processo de reorganização

contínua da sua configuração. Como já assinalamos, a teoria da personalidade de Rogers

concebe a adaptação psicológica como uma “(...) congruência ou coerência entre o

organismo e o self” (Rezola, 1975, p.211). A congruência, nessa teoria da personalidade,

refere-se ao “(...) acordo interno entre o conceito de si mesmo e a experiência” (p.213). Ela

requer um contato constante do indivíduo com o fluxo de sentimentos e experiências que se

processam a cada momento da existência.

Em sua teoria da personalidade, Rogers parte da proposição de que o indivíduo

possui, como nos referimos anteriormente, um mundo interior, o qual é potencialmente

acessível, na sua integralidade, apenas a ele. Esse mundo interior é designado como campo

fenomenal ou campo experiencial, e está em contínuo processo de organização e

reorganização (Rogers, 1951). É, ainda, composto de todas as experiências que se

processam no organismo, porém cabe lembrar que o autor já afirmou que o “(...)

conhecimento completo e imediato do mundo da experiência total é, no entanto, apenas

potencial (...)”, o que denota que “(...) a minha consciência e o conhecimento do meu

campo fenomenal total são limitados” (p. 468). A maioria das experiências do indivíduo

constitui a base do campo perceptivo. Desse modo, as percepções humanas partem do

campo fenomenal, ou seja, derivam do fluxo de experiências que ocorrem na vida diária.

Rogers enfatiza a existência da subjetividade, desse mundo interno e particular, como sendo

a referência para as percepções desenvolvidas durante a vida do ser humano, em um dado


58

contexto de relações no qual este se encontra inserido. Tais percepções compõem o

autoconceito.

Moreira (2001) endossa esse aspecto da teoria da personalidade de Rogers,

afirmando que este prioriza a dimensão subjetiva e individual da pessoa, referindo-se ao

mundo no qual o indivíduo situa-se como sendo essencialmente subjetivo e pessoal. O

próprio Rogers (1951), em sua teoria da personalidade e da conduta, marca mais claramente

essa ênfase atribuída aos processos subjetivos e pessoais do indivíduo, ao afirmar que “o

organismo reage ao campo perceptivo tal como este é experimentado e apreendido. Esse

campo é, para o indivíduo, realidade” (p.468). Desse modo, entendemos que, para Rogers,

o mundo não existe em si, pois depende da percepção que o ser humano tem dele. Dessa

forma, a maneira como cada indivíduo existe no mundo, ou seja, as escolhas e ações

realizadas no cotidiano, são orientadas pela percepção que ele tem dos seus valores,

sentimentos, atitudes, emoções, limites, enfim das suas experiências. Tal percepção

constitui o referencial de realidade que o ser humano possui.

Entendemos que, ao priorizar o mundo interno do indivíduo, Rogers quer chamar a

atenção para o que existe de único, de singular em cada um de nós, enfatizando os sentidos

e significados que o indivíduo dá à sua existência no mundo. No entanto reiteramos o nosso

entendimento de que ele não aborda, satisfatoriamente, a constituição do self em suas

dimensões histórica, social e cultural. O autor ressalta o aspecto intrapsíquico da

subjetividade, ao referir-se à existência de um mundo interno de experiências vividas,

acessíveis, em sua integralidade, apenas à própria pessoa. O self engloba as percepções que

o ser humano tem de seu mundo interior, do ambiente e da relação entre ambos, sendo o

fator que orienta a conduta humana.


59

Apesar de concordarmos com a relevância do self na orientação dada às ações

humanas, percebemos uma lacuna no modo de abordagem desse constructo pela teoria

rogeriana, o que nos sugere a seguinte indagação: como os aspectos sociais, históricos e

culturais, de maneira ampla, atuam no desenvolvimento do autoconceito do indivíduo? Não

temos a pretensão de responder a essa pergunta em toda a sua amplitude e complexidade,

embora reconheçamos sua relevância e pertinência face às limitações relativas ao próprio

constructo de self. Tal questionamento parece guardar relações com o que Dutra (2000), em

seu estudo sobre a compreensão de tentativas de suicídio na adolescência, afirma sobre o

self. Segundo essa autora, a noção de self, tal como apresentada por Rogers em sua teoria

da personalidade, carece de uma perspectiva mais ampla, no que diz respeito ao seu

desenvolvimento e à sua relação com o mundo concreto.

Diante dessas colocações, achamos pertinente destacar Rey (2003) - que, como já

afirmamos, defende uma visão da subjetividade fundamentada na perspectiva sócio-

histórica - expõe acerca do aspecto social na psicologia humanista, a saber: “que todos os

autores humanistas são sensíveis à significação do social no desenvolvimento psíquico”

(p.62), porém, como observa o autor, tendem em sua maioria a negligenciar o contexto

histórico que dá sentido aos processos subjetivos além de, segundo observamos,

enfatizarem o aspecto social em sua dimensão micro, ou seja, restrita ao núcleo familiar.

Gostaríamos de ressaltar que Rogers nos apresenta duas versões da sua teoria de

personalidade e, em ambas, segundo Dutra (2000), observam-se, com nitidez, algumas

características do self: “é consciente, é uma gestalt ou configuração organizada e contém,

principalmente, percepções do próprio indivíduo em relação ao mundo” (p. 23). Assim,

entendemos que o self constitui o todo, a globalidade das percepções que, a cada momento

do nosso viver, vamos desenvolvendo, de modo consciente. Ele é uma configuração


60

perceptual e mutável; acolhe as características que o indivíduo considera como fazendo

parte de si, formando o seu autoconceito. Este último pode estar em concordância com a

experiência sentida pelo indivíduo ou em dissonância em relação a ela, neste caso, gerando

uma conduta inautêntica (Rogers, 1977). Como afirma Dutra, de maneira esclarecedora,

A congruência passa a ser considerada por Rogers como um


processo de comunicação interna, quando a experiência
sentida é simbolizada corretamente na consciência. Funcionar
de forma congruente significa contactar com a experiência
sentida e poder representá-la na consciência, sem que seja
preciso distorcê-la ou negá-la, em função de um autoconceito
já organizado, ao qual determinadas experiências podem
mostrar-se incompatíveis. Essa maneira de funcionar
consistiria, então, num modo incongruente de ser que, na
verdade, significa agir de forma inautêntica, fundada numa
concepção de si não verdadeira; seria assumir valores de
outros, seria alienar-se do seu si mesmo (p. 26).

Vale salientar que o conceito de congruência foi revisto e reformulado por Rogers, a

partir da contribuição do filósofo Eugene Gendlin (1970), com a sua teoria da

experienciação e da mudança de personalidade. Com sua teoria, Gendlin objetivava

promover uma aproximação entre a filosofia e a psicoterapia de Rogers, contribuindo para

um novo entendimento da teoria da personalidade deste último autor (Spiegelberg, 1972).

De acordo com essa linha de pensamento, o conceito de experienciação possibilita

um novo entendimento do conceito de congruência, formulado por Rogers. A

experienciação é, assim, definida como “(...) um processo fluido e sempre em movimento,

da experiência concreta, e de natureza processual” (Dutra, 2000, p.29). Pode ser ainda

entendida como “(...) um processo que é corporalmente sentido, e que se torna uma

referência pela qual nos posicionamos diante do mundo, efetuando escolhas, nos afirmando

na existência e nos apropriando dela” (p.29). Desse modo, “(...) consiste num fluxo de

experiência que é anterior à lógica, mas não contrário a ela” (p. 29). Hart (1970) argumenta
61

que a experienciação “(...) se refere ao sentido individual dos significados pessoais; é um

processo de sensibilidade interna mais do que qualquer outra coisa” (p. 13). De acordo com

o próprio Gendlin (1962), a experienciação diz respeito à “(...) experiência concreta, o

funcionamento puro, presente e contínuo do que ordinariamente é chamado experiência” (p.

11). É ainda definida como “o processo do sentimento corporal concreto, o qual constitui a

questão básica do fenômeno psicológico e da personalidade” (Gendlin, 1970, p.138).

Adotando essa nova perspectiva, Rogers (1963) entende a experienciação como sendo o

“(...) sentimento fluido de ter experiências (...)”, ou seja,

(...) essa corrente parcialmente informe de sentimentos que


temos em todo momento. É pré-conceitual, contém
significados implícitos; é algo basicamente prévio à
simbolização ou conceitualização. Pode ser conhecido pelo
indivíduo mediante a referência direta - isto é, atendendo
interiormente a este fluxo de experiências. Esta referência
direta é uma diferenciação fundamentada em uma atenção ou
indicação subjetiva ao processo de experiência. Este processo
fluente é suscetível de simbolização e esta pode estar baseada
na referência direta (p. 126).

Partindo dessa perspectiva, estar em congruência implica a abertura ao fluxo de

experiências que se processam a cada momento da existência. Isso vai além da mera

consonância entre a experiência e a consciência. A congruência pode ainda ser entendida

como a consciência plena do processo de experienciação, um novo modo de experienciar a

si mesmo, não se tratando de uma consciência meramente intelectual do processo de

sentimentos, pois se refere a “(...) um sentir profundo, concreto, pleno, o próprio processo

de experiências do momento” (Rezola, 1975, p. 281).

De acordo com essa nova concepção, a congruência passa a ser denominada de

autenticidade, que não se refere mais à simbolização de processos conscientes, mas

constitui, como já afirmamos, o movimento de abertura ao vivido. Essa abertura da pessoa


62

à sua experiência possibilita que seus valores derivem de seu próprio organismo, sem que

isso represente, contudo, que ela prescinda dos valores e significados sociais (Rezola,

1975).

Posto isso, concebe-se a congruência como um conceito fundamentalmente

dinâmico e processual, um modo de existir caracterizado pelos próprios sentimentos, que

fluem continuamente.

Ao ocupar um lugar central na teoria de Rogers, o conceito de experienciação

possibilita um novo entendimento do self. Assim, tal constructo, após as contribuições de

Gendlin, não se fundamenta mais no acordo ou desacordo entre o que o indivíduo pensa a

respeito dele (como o indivíduo se vê) e as suas experiências, mas constitui o modo de

existir e de perceber-se no fluxo da existência, a partir da sua abertura ao processo de

experienciação. Sobre esta questão, Dutra (2000) conclui que “(...) o entendimento de

Rogers sobre o que constitui o self poderia repousar numa compreensão filosófica que

prioriza a experiência subjetiva; contudo, ao mesmo tempo, poderia também parecer

contemplar o estar-no-mundo do indivíduo à medida em que coloca o campo fenomenal

como parte dessa experiência” (p.32).

Podemos depreender dessa afirmação que o self “(...) é a consciência de ser, de

funcionar” (Rogers, 1959, p. 223) a cada momento da existência, de acordo com a abertura

do indivíduo ao fluxo de sentimentos que se processam. Podemos entender o self, ainda,

como a consciência subjetiva da experienciação, algo sentido seguramente como um

processo e, sendo consciente, não pode ser concebido separado do processo imediato de

experiências (Rezola, 1975). Esse é o caráter existencial do self, como explicita Dutra

(2000), em sua tese sobre tentativas de suicídio na adolescência, na qual busca apoio na
63

fenomenologia heideggeriana para ampliar o seu entendimento do self, a partir das

contribuições fornecidas por Gendlin.

No caso de nossa pesquisa, presumimos que a experiência de sofrimento constante

na relação amorosa relaciona-se com a maneira como a mulher se percebe, no fluxo da

existência, em sua relação com os outros e consigo mesma, de acordo com o seu acesso ao

processo subjetivo de referência interna (experienciação). Essa configuração perceptual

indica o sentido que ela está dando à sua vida, o qual se vela e se desvela no fluxo contínuo

da existência.

Assim, acreditamos que, para melhor compreendermos a permanência de cada

mulher que participou da pesquisa no sofrimento amoroso, faz-se necessário adotarmos

uma metodologia que nos possibilite ter acesso à singularidade da experiência de cada uma

delas, sem negligenciar os principais aspectos histórico-culturais que, acreditamos, estão no

cerne desse sofrimento. Esse é o assunto do próximo capítulo.


64

4. O caminho escolhido para a compreensão da questão

Entrar realmente no mundo do outro, com


aceitação, cria um tipo de vínculo muito
especial que não se compara a nenhuma outra
coisa que eu conheça.
(Carl Rogers)

Acreditamos que as pessoas criam sentidos para as experiências que vivem no

decorrer de suas vidas e que estes são uma expressão de singularidade, a qual se constitui e

se insere em um contexto plural, social e histórico, sendo, portanto, perpassada pela

presença do outro. Nessa perspectiva, entendemos que os sentidos atribuídos pelas

mulheres à sua experiência de sofrimento permanente na relação amorosa, dizem respeito,

em especial, ao mundo íntimo de sensações, idéias, emoções e percepções, construído ao

longo de suas vidas. Assim, o self constitui um aspecto da subjetividade, com qual se

relaciona, como já ressaltamos, a experiência que estamos investigando. Lembramos que,

de acordo com o nosso entendimento, o self nas mulheres participantes deste estudo é

constituído e permeado não apenas pela dinâmica familiar, mas também por aspectos da

realidade histórica e cultural circunscritos (especialmente) à dimensão de gênero e aos

ideais do amor romântico.

Esta pesquisa encaminhou-se, portanto, na direção da experiência, a qual buscamos

compreender através da narrativa, que é uma das suas formas de expressão. Carl Rogers

(1977) vincula a atividade de pesquisa à experiência:

Uma das minhas convicções mais profundas diz respeito à


razão de ser da pesquisa científica e da explicação teórica. Em
65

minha opinião, a finalidade capital deste tipo de


empreendimento é a organização coerente de experiências
pessoais significativas. A pesquisa não me parece, pois,
alguma atividade especial, quase esotérica, ou um meio de
adquirir prestígio. Vejo a pesquisa e a teoria como um esforço
constante e disciplinado visando descobrir a ordem inerente à
experiência vivida (p.149).

Desse modo, esclarecemos que o caminho percorrido para obtermos a

compreensão do fenômeno em investigação fundamentou-se na pesquisa qualitativa,

modalidade de pesquisa que busca aprofundar e compreender, de forma detalhada, um

determinado problema (Richardson, 1999). Um dos aspectos relevantes desse tipo de

pesquisa diz respeito ao envolvimento do pesquisador com o(s) participante(s) da pesquisa,

que, de acordo com Minayo (1993), “(...) em lugar de ser tomado como uma falha ou um

risco comprometedor da objetividade, é pensado como condição de aprofundamento de

uma relação intersubjetiva” (p. 124). Assim essa autora acrescenta que, na situação de

entrevista, “assume-se que a inter-relação contempla o afetivo, o existencial, o contexto do

dia-a-dia, as experiências, e a linguagem do senso comum, e é a condição ‘sine qua non’ do

êxito da pesquisa qualitativa” (p. 124). Cabe salientar que, neste trabalho, tal modalidade de

pesquisa está alicerçada na fenomenologia.

4.1 O método fenomenológico de Heidegger

A fenomenologia é denominada, etimologicamente, como a ciência ou o estudo do

fenômeno (do grego phainómenon, que significa aquilo que vem à luz). Ela teve origem no

pensamento de Edmund Husserl e data do início do século XX, tendo recebido contribuição

dos pressupostos de Franz Brentano. O contexto que favoreceu o seu surgimento


66

caracterizou-se pela crise da filosofia e das ciências, a partir de reflexões acerca da ciência

positivista, centrada na perspectiva do objeto, e da metafísica, totalmente ligada ao

subjetivismo. Como atitude filosófica e metodologia científica, a fenomenologia buscou

unir o extremo objetivismo e o extremo subjetivismo em suas noções de mundo e de

racionalidade.

Na visão de Critelli (1996), a fenomenologia formulou outros modos de se

compreender “(...) o homem, o mundo, o pensamento, o ser, a verdade, o tempo o espaço

etc., para além daqueles que nos foram legados pela nossa tradição ocidental metafísica

(...)” (p. 08). A autora esclarece que, somente entrando em contato com tais significados

“(...) é que podemos começar a entender a possibilidade de um jeito fenomenológico de

compreender o mundo” (p. 08) e de estar com o outro nas diversas situações, dentre as

quais, a de pesquisa. Concordamos com Critelli (1996), ao afirmar que “a tarefa de se

pensar uma metodologia fenomenológica de conhecimento é, em última instância, uma

reflexão sobre o modo humano de ser-no-mundo (...)” (p. 16), ou seja, o modo de conduzir

a própria existência, a busca do sentido de ser.

Ressaltamos que nossa opção pela perspectiva fenomenológica de pesquisa

fundamenta-se na analítica existencial do filósofo Martin Heidegger, pois entendemos que

suas idéias vêm ao encontro do que pensamos.

A principal preocupação de Heidegger é com o ser, o qual só pode ser acessível ao

próprio homem (por ele denominado dasein, ou “ser-aí”), na medida em que este interroga

sobre si mesmo. Assim, a ontologia heideggeriana tem como objetivo primordial descobrir

o sentido do ser; sendo necessário, para tal, recorrer a uma análise do modo de ser do ser-aí,

que é a existência. A presente pesquisa possibilitou a cada participante indagar sobre o seu
67

sofrimento amoroso, buscando desvelar o sentido subjetivo de tal experiência, refletindo,

assim, sobre o rumo da sua própria existência.

Um ponto importante do pensamento do filósofo alemão Heidegger é seu modo de

conceber o método fenomenológico. Esse método se baseia no pensamento “(...) de que

existe um primado da tendência para o encobrimento” (Stein apud Heidegger, 1979, p.89).

Portanto não há uma realidade esperando ser aprisionada por nossos recursos

metodológicos, como propunham Husserl e outros filósofos; para Heidegger, o essencial

nas coisas está encoberto. Daí decorre que o fenômeno possui uma condição ambígua, pois

é, ao mesmo tempo, aquilo que se oculta e que se revela. Isso denota que, “para a

fenomenologia, há uma coincidência entre ser e aparência” (Critelli, 1996, p. 29). Tal idéia

nos faz pensar que sempre haverá aspectos do fenômeno a serem desvelados, de modo que

o pesquisador precisa estar consciente da impossibilidade de compreender totalmente o seu

objeto de investigação. Do mesmo modo, ao falarem sobre a sua experiência, as

participantes desta pesquisa foram, gradativamente, desvelando aspectos encobertos da

realidade que vivenciam, sem jamais apreendê-los por completo.

Vale salientar que Heidegger diverge radicalmente da posição do mestre Husserl, ao

enfatizar a compreensão do ser situado no mundo, diferente da concepção de uma

consciência dirigida ao mundo, a qual denota uma valorização da subjetividade e redução

da compreensão do ser a essa dimensão.

Assim se expressa Stein (1983),

Compreendido o ser como velamento e desvelamento,


decidido que o ser é “a coisa mesma”, estabelecido
que o ser desde a antiguidade se dá como tempo,
determinado que o método da filosofia é o mostrar
fenomenológico, está resumida toda problemática
heideggeriana e o que a separa das experiências e das
intenções de Husserl. Tarefa fundamental da filosofia
68

será, portanto, para Heidegger, captar o ser como


velamento e desvelamento através de um método e
num horizonte adequados. O método será a
fenomenologia esboçada em Ser e Tempo. O horizonte
será o tempo que desde a antiguidade se liga ao ser (p.
42).

O método fenomenológico de Heidegger consiste, portanto, em realizar uma análise

da própria existência humana, buscando-se nessa análise, apreender os modos como o ser-aí

se mostra e se dissimula na cotidianidade. É justamente “(...) no movimento de fuga de si-

mesmo, numa tentativa de não se assumir na sua totalidade (...)”, que se deve efetuar a

analítica do ser-aí cotidiano (Stein, 1983, p.103). Nessa circunstância, o homem é chamado

a refletir sobre a direção que está dando à sua existência, podendo ressignificar a sua

presença no mundo e ir ao encontro de um modo de vida pautado em seus próprios valores

e possibilidades, portanto mais satisfatório e revelador do seu “si-mesmo”. Em se tratando

desta pesquisa, talvez seja coerente pensarmos que o sofrimento amoroso vivido pelas

participantes deste estudo revela um self, um modo de existir e de perceber-se no mundo

caracterizado pela dificuldade de fazer escolhas que favoreçam as vivências de bem-estar e

auto-realização genuínos, visto que fundamentadas em suas experiências reais.

Heidegger parte de uma compreensão da existência na qual o sentido surge nas

relações do homem com o mundo. Não há, portanto, uma separação entre o ser e o mundo.

Esse pressuposto de Heidegger, como já ressaltamos anteriormente, merece especial

atenção, pois é o principal aspecto que distancia o seu pensamento do de Husserl, ou seja,

este enfatizou o sujeito ou eu transcendental, a dimensão da subjetividade; Heidegger, ao

contrário, buscou compreender o ser em sua facticidade. De outra maneira, podemos dizer

que, para esse filósofo, a consciência não se dirige ao mundo, ela está no mundo. De acordo

com Stein (1983),


69

A fenomenologia heideggeriana se tornaria uma


meditação da finitude. A idéia de verdade e não-
verdade, de velamento e desvelamento aponta para a
incompletude de toda a compreensão do ser e da
verdade na medida em que se dão na facticidade do
ser-aí (p.49).

Podemos depreender, da afirmação acima, que, para Heidegger, a existência

humana se dá no mundo, na cotidianidade, constituindo-se como um processo, uma obra

inacabada e que não pode ser apreendida por completo. O ser não se mostra totalmente; ele

existe num movimento constante de construção e reconstrução, de velamento e

desvelamento. Sua compreensão é ilimitada e, portanto, está sempre em aberto.

Desse modo, ao perseguirmos a busca do sentido dado pelas mulheres participantes

desta pesquisa à sua própria experiência, buscamos estar atenta àquilo que a elas surgia e

que era comunicado por elas, entendendo que a experiência constitui-se de elementos

ocultos e inacessíveis à própria participante naquele momento. Além disso, pensamos que a

experiência não se dá de modo pronto e acabado, mas vai se configurando e reconfigurando

no decorrer do tempo, acompanhando o fluxo da existência e revelando, assim, o seu

constante devir. Nesse sentido, respaldada na fenomenologia, fomos atrás desse “(...)

movimento de vir-a-ser do existir” (Critelli, 1996, p. 30), tentando estar aberta às

possibilidades de sentido que poderiam emergir a cada momento do nosso contato com as

participantes. Cabe salientar que entendemos o termo “sentido” tal como Critelli (1996), ou

seja, como sendo “(...) o mesmo que destino, rumo, a direção do existir” (p. 53). Ela aponta

que é através dos estados de ânimo, das emoções, que o sentido aparece e que o ser humano

pode ser tocado pelas coisas e pelo outro, tais como existem a cada momento: o sentir

permite ao homem chegar à sua plena realidade, compreendendo-se como singularidade.

De fato, observamos, em nosso contato com as participantes desta pesquisa, que os


70

momentos em que expressaram emoções mais intensamente, foram particularmente

favorecedores da produção e emergência de sentidos acerca do fenômeno em questão.

Esses momentos foram marcados pela revelação de significativos insights acerca da

maneira como cada mulher vinha conduzindo a sua vida. A seguir, continuaremos falando

sobre esse aspecto do pensamento heideggeriano, ao enfocarmos o que o filósofo

denominou de befindlickeit (humor ou disposição afetiva), que compõe as estruturas

existenciárias do ser, ou seja, as maneiras de ser que são peculiares ao homem, as quais

envolvem, ainda, a compreensão e a linguagem.

Em relação à compreensão, esta pode ser entendida como a maneira de ser do

homem, que o conduz ao horizonte de possibilidades de que dispõe; ela é pré-ontológica.

Assim, esclarece o próprio Heidegger (1927) que,

Como abertura a compreensão sempre alcança toda a


constituição fundamental do ser-no-mundo. Como
poder-ser, o ser-em é sempre um poder-ser-no-mundo.
Este não apenas se abre como mundo, no sentido de
possível significância, mas a liberação de tudo que é
intramundano libera esse ente para suas possibilidades
(p. 200).

Acrescenta o filósofo que “compreender é o ser existencial do próprio poder-ser da

pré-sença de tal maneira que, em si mesmo, este ser abre e mostra a quantas anda seu

próprio ser” (p. 200).

A importância atribuída por Heidegger à compreensão nos leva a pensar no lugar

que ela ocupa nesta pesquisa. Do mesmo modo que Dutra (2000), entendemos que a

compreensão “(...) seria o ‘como’em direção à descoberta do ser” (p.45), portanto, “(...)

referenda não só o método do fazer a pesquisa, como também, o que é mais importante para

nós, legitima a inspiração fenomenológica desse estudo (...)” (p.46).


71

É oportuno destacar que, para Heidegger (1927), compreensão e interpretação não

se opõem, pois “toda compreensão guarda em si a possibilidade de interpretação, isto é, de

uma apropriação do que se compreende” (p. 218). É interessante destacar, ainda, que, “tudo

o que se mostra, necessariamente, mostra-se a um olhar compreensivo” (Critelli, 1996, p.

55). Esse mostrar-se ou pôr-se à luz, segundo a autora, é ao mesmo tempo ocultar-se;

assim, “mostrando-se para um olhar, a coisa mostra-se como o que é e como o que não é”

(p. 58).

No que diz respeito à linguagem, esse é o meio através do qual a compreensão pode

ser manifestada; ela é a revelação autêntica e direta do ser.

Um outro parâmetro básico da existência humana ao qual Heidegger se refere em

sua ontologia é o befindlickeit. Esse conceito foi abordado por Gendlin, na intenção de

constituir um elo entre o pensamento de Heidegger e a perspectiva da terapia centrada no

cliente. Para Heidegger, befindlickeit indica “(...) como nos sentimos nas situações”

(Gendlin, 1978/79, p. 45). Esse sentimento não se refere a algo no interior das pessoas,

como geralmente se entende, mas envolve o estar-no-mundo-com-outros, e isso vai além de

dicotomias estabelecidas pela tradição cartesiana, como, por exemplo: dentro-fora,

indivíduo-sociedade, mente-corpo etc. Esse pressuposto heideggeriano parece aproximar-se

das idéias de pensadores contemporâneos, tais como Guatarri (1999), Mancebo (2002),

Miranda (2000) e outros, acerca da subjetividade no cenário atual. Para eles, existimos

situados numa teia relacional, entrecruzados por fatores diversos, distanciados de qualquer

determinação interna ou externa.

Assim, as pessoas existem sempre num contexto e em companhia de outras. Esse

processo vivencial é sentido implicitamente pelo cada ser humano, a cada momento. Esse

“sentir” pode expressar-se pela linguagem, pois a fala já está envolvida em qualquer
72

sentimento ou humor (Heidegger, 1927). Como bem afirma Dutra (2000), parafraseando

Gendlin, “o sentimento conhece como falar e demanda somente as palavras certas, sendo

ele suficiente para trazer as palavras ao discurso da pessoa” (p. 35).

Sendo assim, faz-se necessário, a adoção de uma estratégia de pesquisa que venha

ao encontro dos pressupostos básicos do método fenomenológico, utilizado neste estudo.

4.2 As narrativas e o percurso metodológico

Para compreender a experiência em questão, recorremos ao que Walter Benjamin

(1994) chama de narrativa. De acordo com o autor, a narrativa constitui a expressão da

experiência humana, que só pode ser comunicada pelo próprio narrador - neste caso, as

participantes da pesquisa. Desse modo, entendemos que, através das narrativas dessas

mulheres, poderemos responder à pergunta que nos gera inquietação, a saber: como é para a

mulher a experiência de permanecer sofrendo na relação amorosa?

Nesse sentido, cabe lembrar o que Critelli (1996) afirma acerca do processo de

investigação, ou seja, de acordo com essa autora, investigar é levar adiante uma pergunta,

uma interrogação a respeito de algo. Para ela, interrogamos aquilo que nos afeta, nos toca,

que provoca nossa atenção e interesse.

Ainda para Benjamin (1994), narrar é intercambiar experiências, é produzir

sentidos. Esse autor ressalta, como assinala Jeanne M. Gagnebin, no prefácio das Obras

Completas, de Benjamin, a importância da transmissão da experiência de maneira plena,

acontecimento este que, no mundo capitalista moderno, marcado pelo imediatismo, pelo

individualismo e pelo declínio da memória e da tradição comuns, é cada vez mais raro.

Carvalho (1999) endossa essa posição, ao afirmar que “a experiência e a comunicação oral

estão sendo, cada vez mais, substituídas pela informação registrada nas máquinas,
73

fenômeno que contribui enormemente para o enfraquecimento dos vínculos sociais” (p.

376).

A despeito da observação feita pelos autores anteriormente citados, a narrativa tem

sido utilizada, nos meios acadêmicos, por pesquisadores como Morato e Schmidt (1998),

Dutra (2000) e Souza (2003). É oportuno frisar que todos adotaram uma abordagem

fenomenológico-existencial na análise das narrativas de suas pesquisas, o que demonstra a

pertinência do uso da narrativa de Benjamin em estudos que seguem aquela perspectiva.

Concordamos com Dutra (2000), ao dizer que a narrativa expressa uma dimensão

fenomenológica e existencial, pois “o ato de contar e ouvir uma experiência envolve um

estar-com-no-mundo, uma relação de intersubjetividades” (p. 102). Isso implica a abertura,

por parte do pesquisador e do pesquisado, à experiência, no processo de mútua revelação,

em que sentidos e significados são criados a todo instante. Nessa perspectiva, não apenas as

palavras, mas também os gestos, os silêncios, o tom de voz etc. são manifestações da

experiência que devem ser consideradas pelo pesquisador no momento em que está ouvindo

as narrativas. Sobre essa escuta, Heidegger (1927, p. 222) afirma que é “(...) a possibilidade

existencial inerente ao próprio discurso”, acrescentando que “escutar é o estar aberto

existencial da pré-sença enquanto ser-com os outros”.

Esse modo de estar com o outro no mundo torna intrínseca a condição de afetar e de

ser afetado, de sentir com o outro, possibilitando compreender, no contexto desta pesquisa,

o sofrimento vivenciado por tais mulheres.

Ainda sobre a narrativa, pensamos ser esta um “(...) delicado trabalho de tecer em

conjunto (...), a quatro mãos (entremeado por um coro de muitas vozes antigas) (...).

Criativamente. (...) Ressignificando a história...” (Juliano, 1999, p. 94). Assim, ao narrar

sua experiência, a pessoa vai tecendo os fios da sua própria existência, o que nos faz pensar
74

que contar sobre a sua experiência de permanecer sofrendo na relação amorosa possibilitou

às mulheres que participaram desta pesquisa ressignificar o seu sofrimento, elaborando uma

nova compreensão da sua existência no mundo.

Narrar é um ofício interminável, como nos lembra Morato (1999, p. 439), “(...) pois

haverá sempre resquícios para serem contados, comentados, recortados, ampliados”. Isso

ocorre, ainda segundo a autora, porque o narrador fala da sua experiência e esta é

impregnada pela diversidade de histórias que ouviu contar. Consideramos também o fato de

o narrador existir em constante devir, o que implica em um processo ininterrupto de

construção e reconstrução de suas experiências.

Souza (2003) entende que as narrativas, no sentido benjaminiano,

“(...) favorecem o resgate do ser humano em sua


historicidade, trazendo consigo marcas do convívio social e
dos valores culturais, expressos através das lembranças, dos
gestos e das palavras, numa comunicação de sua própria
existência e de sua forma de significar a vida” (p. 106).

Evidencia-se aqui a consideração da singularidade humana, imersa em um contexto

relacional permeado por valores e dados culturais, construídos ao longo do tempo. Através

da narrativa, o ser humano tem possibilidade de manifestar-se como ser-no-mundo, de

acordo com o pensamento heideggeriano. Isso mostra a pertinência de adotarmos a

narrativa como estratégia de pesquisa, pois ela parece atender à nossa intenção de

compreender a experiência de que trata este estudo, em termos de sua singularidade e dos

aspectos histórico-culturais (gênero e ideais do amor romântico) relacionados a essa

experiência.

Também é importante pensar, como expõe Dutra (2000):


75

(...) a narrativa e a sua ênfase na experiência, como uma


forma através da qual o ser-no-mundo exercita a sua
compreensibilidade, pois à medida que o narrador conta a sua
história, esta carrega consigo os significados que constituem o
seu estar-no-mundo, cujo ser-aí se revela e se encobre nas
palavras, principais articuladoras da sua compreensão num
modo de existência (p.106).

Assim, faz-se oportuno esclarecer que utilizamos, como técnica de coleta de dados,

entrevistas semi-abertas, em que as participantes deram um depoimento da sua experiência,

a partir de uma pergunta disparadora.

Antes do início da coleta dos dados, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em

Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), conforme os critérios

estabelecidos pela Resolução número 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (CNS),

sendo aprovado o seu desenvolvimento (ver Anexo A).

As entrevistas foram realizadas com mulheres que estavam vivendo a experiência

que buscamos investigar. Em nossa atuação profissional, temos constatado, com maior

freqüência, mulheres se queixando de tal experiência no momento atual de suas vidas.

As participantes foram em número de 06 (seis), com idades entre 25 (vinte e cinco)

e 55 (cinqüenta e cinco) anos, considerando-se essa faixa etária também presente em nossa

clientela. Para selecionar as depoentes, solicitamos a pessoas conhecidas que as indicassem.

Informamos a essas pessoas sobre a temática de nossa pesquisa, explicamos que a indicação

só deveria ser feita mediante a permissão das possíveis participantes, que o conteúdo das

entrevistas seria confidencial e que a identidade das entrevistadas seria mantida sob sigilo.

Quanto a esse aspecto, solicitamos que tais pessoas, ao receberem a confirmação da

participação da pessoa indicada mantivessem sigilo.


76

As entrevistas foram realizadas em local e horário previamente agendados e a

critério de cada participante. A única condição que apresentamos foi que fosse escolhido

um ambiente livre de interferências externas (barulho, interrupções etc.). Como duas

participantes não dispunham de um local para a entrevista, sugerimos o SEPA (Serviço de

Psicologia Aplicada), a clínica-escola vinculada ao Departamento de Psicologia da UFRN

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte), com salas adequadas ao nosso propósito.

Com relação às demais entrevistas, 03 (três) foram realizadas na residência das próprias

participantes e 01 (uma) na residência de um parente da entrevistada. A garantia de sigilo

foi comunicada às participantes, resguardando-se suas respectivas identidades. No início do

primeiro encontro, explicamos que em toda pesquisa com seres humanos, há a exigência de

que a colaboradora assine um termo de consentimento (ver Apêndice A), de acordo com os

critérios estabelecidos pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Todas as participantes se

dispuseram a ler e, em seguida, assinar o termo de consentimento.

O livre falar das participantes foi possibilitado pelas entrevistas, que tiveram início

com a seguinte pergunta disparadora: você pode me falar sobre como está sendo a sua vida

amorosa? Ao fazer essa indagação, tentamos alcançar a compreensão que almejávamos,

sem determinar uma direção, possibilitando que a entrevistada adentrasse sua experiência e

a comunicasse da forma como quisesse. Além disso, elaboramos previamente um roteiro

contendo algumas questões para serem abordadas ao longo dos depoimentos:

Š projeto de vida e relacionamento amoroso

Š influência da dinâmica familiar no modo de ser e de viver a relação amorosa

Š lugar do prazer e bem-estar no amor


77

Š papel desempenhado por cada parceiro da díade e ocupação dos espaços público e

privado

Š valores, normas e padrões de conduta “antigos” que permeiam a auto-imagem da

mulher

Š o real e o ideal na relação de amor

A situação de entrevista requer que ambos, pesquisador e pesquisado, tenham a

disponibilidade de se deixar afetar pela experiência. O interrogador faz parte daquilo que é

interrogado e tudo o que a ele surge e lhe toca - sejam pensamentos, lembranças, sensações,

etc. - deve ser considerado: o sentido procurado pode revelar-se por meio de qualquer coisa

(Critelli, 1996). Seguindo esse ponto de vista, durante as entrevistas procuramos estar, ao

mesmo tempo, atenta ao que ia sendo revelado pelo outro e àquilo que nos ia surgindo,

acolhendo a experiência narrada, em contato com os sentidos criados nessa forma de

“existir-com”. Lembramos que apenas uma entrevista foi realizada com cada participante e

a duração variou entre uma hora e uma hora e quarenta minutos. As 06 (seis) primeiras

mulheres indicadas apresentaram relatos que, segundo o nosso entendimento, abarcam o

objeto de estudo proposto.

Os depoimentos colhidos foram gravados em áudio (em comum acordo entre as

participantes e a pesquisadora), transcritos, literalizados e depois submetidos à apreciação

das depoentes, para que elas confirmassem a fidelidade à narrativa realizada ou fizessem

alterações, se assim lhes conviesse. Portanto foi marcado um segundo encontro com cada

entrevistada, o qual durou em torno de quarenta minutos. É importante frisar que apenas

duas participantes fizeram pequenas modificações nos depoimentos, acrescentando algumas

informações. A literalização, de acordo com Schmidt (1990), é um procedimento que


78

consiste em transformar as falas dos depoentes em texto literário, de modo a deixá-lo o

mais próximo possível da oralidade. O termo “depoimento” é aqui adotado de acordo com a

sua conotação nas ciências sociais, como bem esclarece Queiroz (1991, citado por Dutra,

2000), ao afirmar que “(...) significa o relato de algo que o informante efetivamente

presenciou, experimentou, ou de alguma forma conheceu, podendo assim certificar” (p. 07).

Além disso, acrescenta Dutra (2000), diferentemente da história de vida, o depoimento

pode ocorrer em apenas um encontro e “o pesquisador encaminha a entrevista em direção

ao assunto que lhe interessa” (p. 112).

Após a legitimação das entrevistas como depoimentos (ver Anexo B), fizemos

várias leituras do material das entrevistas, às vezes simultaneamente com a audição da fita,

buscando apreender o sentido revelado por cada mulher, acerca da experiência aqui tratada.

De maneira semelhante à utilizada por Dutra (2000), dialogamos com os depoimentos,

tecendo comentários e interpretações, a partir das reflexões acerca dos sentidos das

narrativas, vistas à luz do referencial fenomenológico-existencial. A produção teórica dessa

etapa será apresentada a seguir, sendo importante registrar que os nomes das entrevistadas

foram preservados e substituídos por nomes fictícios. Os nomes dos parceiros, nos

momentos em que as participantes se referiram a estes, também foram mantidos sob sigilo,

de modo que estão identificados apenas por uma letra inicial e fictícia.

É importante destacar ainda que, ao nos referirmos, em diversos momentos da

análise, à palavra self, não temos a intenção de atribuir-lhe a conotação de objeto, pois

entendemos, como já ressaltamos, que se trata do modo como cada entrevistada se percebe

e existe no mundo, de acordo com a abertura ao processo de sentimentos.


79

5. Conhecendo o sentido atribuído pelas mulheres às suas experiências de

sofrimento amoroso

As narrativas desta pesquisa revelam o modo como cada entrevistada vivencia o

sofrimento constante na relação amorosa, evidenciando particularidades bem como

aspectos comuns. Assim, tomamos conhecimento das queixas dirigidas ao parceiro

amoroso, dos motivos alegados para a continuidade na relação amorosa, das idealizações

que as mulheres tinham referentes à relação, das percepções acerca dos potenciais e

limitações, de aspectos significativos de suas histórias de vida, dos projetos e da própria

existência. Adentramos na vida e nas experiências dessas mulheres, compartilhando

momentos de intensa emoção, numa relação intersubjetiva, em que nos colocamos na

condição de acompanhante, ao invés de guia, de uma jornada que pretendíamos pudesse

existir na forma de um verdadeiro encontro.

Começamos essa etapa do trabalho ancorada no entendimento de que o sofrimento

permanente na relação amorosa revela um modo de estar no mundo, de perceber-se na

relação com os outros e consigo. Ao falarem sobre a experiência aqui tratada, constatamos

que várias participantes cresceram em um ambiente carente de afeto, de liberdade para a

auto-expressão, de aceitação e respeito aos seus sentimentos, valores e atitudes, como

podemos perceber nas falas a seguir:

“(...) tenho mágoa de não ter tido carinho da minha mãe... Assim, porque ela não
costumava dar um abraço, ela nunca me deu um beijo... Às vezes, eu tenho vontade. Falar
nisso me deixa triste... Então, eu fico assim pensando... Para que eu lutar? Se esse é o meu
destino...”
80

“(...) eu lembro que a minha mãe me batia todo dia, tinha vez que chegava a dar três surras
em mim. Eu era a filha mais velha das mulheres, e dos filhos, eu era a quarta... Tudo o que
eu fazia dentro de casa, minha mãe colocava defeito, me batia. Ela mandava meu irmão
mais velho me bater também. A minha mãe me batia de pau mesmo; quando ela me batia...
Engraçado... Por exemplo: hoje tinha missa lá na rua, aí se minha mãe me desse uma
surra, ela tinha prazer de me levar para a rua e as pessoas verem que ela tinha me batido,
porque ela não queria que eu namorasse aquele rapaz, que ele era filho de“esmolé”. Ela
dizia que, no dia que aparecesse um rapaz certo para eu namorar, era para eu pedir a ela,
porque filha de fazendeiro tinha que casar com filho de fazendeiro” (Isaura).

“(...) mamãe sempre foi muito chantagista comigo”.

“Quando eu era adolescente e ia sair para algum lugar que ela não queria, ela sempre
dizia que, se alguma coisa acontecesse com ela, a culpa seria minha; então isso acaba
ficando na memória” (Sofia).

Falando dos pais: “(...) eu nunca tinha direito a nada, porque eles me viam sempre como
uma criança. Não tinha direito a sair só, pois eles me viam sempre pequena. Está
entendendo como é?”

Falando da infância: “A minha vida era muito jogada (...) fui muito só!”

“Quando meus pais me criticavam, eu só reagia dessa forma, me isolando, passando o dia
fora. O lugar para onde eu podia ir era a escola, pois eu morava perto. Eu não podia
reagir de outra forma porque meu pai batia, era daqueles que batia com aquele mesmo
chicote de bater nos cavalos. Aí eu já temia era o chicote!”.

“(...) eu me sentia revoltada porque meus pais não explicavam o motivo, só faziam dizer:’ -
Não faça isso!’ Entendeu? Ao invés de dizer porque não ia dar certo, que eu não tinha
maturidade para isso...” (Vera).

“Mas minha mãe e meu pai nunca foram de chegar e fazer um carinho... Era só: bênção
mãe, bênção pai, e pronto; eles nunca tiveram aquele aconchego com a gente (...)”.

“É uma falta de carinho que a gente fica sentindo, entendeu? E hoje, o meu
relacionamento é a mesma coisa (...)” (Elisa).

Fica evidente a existência, na experiência de vida dessas mulheres, de um ambiente

familiar pouco acolhedor, desfavorável à construção de um self caracterizado pela

confiança, segurança e auto-estima necessárias ao crescimento em direção à autonomia e à

auto-realização, denotando um modo de estar com o outro na relação amorosa que vem se
81

configurando ao longo do tempo. Podemos compreender a permanência no sofrimento

amoroso como a expressão de um modo de ser e de se perceber constituído ao longo do

tempo, especialmente na dinâmica familiar dessas mulheres, cujo clima psicológico parece

não ter contribuído para a formação de um self receptivo ao livre fluir dos sentimentos.

De acordo com tal entendimento, recorremos a Rogers (1974), ao falar sobre a

tendência que muitas pessoas têm de adotar um modo de vida baseadas em referências

externas, ficando distantes de suas experiências reais, em virtude de na infância terem

buscado fugir da sensação de ameaça da perda do amor dos pais. Segundo esse autor, as

atitudes avaliativas e pouco receptivas dos pais podem levar a criança a negar ou distorcer

suas experiências reais. Ela busca, então, corresponder às expectativas alheias, preservando

sua auto-imagem bem como o apreço das pessoas que lhe são significativas. Dessa forma, a

criança internaliza valores e atitudes de outrem como se fossem dela própria, aspecto este

que dificulta a formação de um self maduro e saudável. Na situação em análise, podemos

pensar que uma experiência dessa natureza poderá dificultar a construção, por tais

mulheres, de uma relação amorosa ancorada na valorização da alteridade, na fluidez, na

criatividade e no prazer.

Sofia percebe claramente a influência que os valores, normas e atitudes de sua mãe

assim como os “(...) dogmas espirituais (pecado, castigo de Deus, o que é certo ou errado) (...)”

exercem até hoje sobre o seu modo de ser, identificando-os como obstáculos à sua decisão

de separar-se do marido:

“Se hoje eu me separasse, ela (se referindo à mãe) seria uma pessoa que não iria saber.
Eu iria fazer o impossível para não contar nada a ela. Ela não iria saber, porque eu sei que
ela é uma pessoa que não aceita. Para ela, é aquela história: o que Deus uniu na Terra
ninguém separa, e eu assimilei isso muito bem. Isso em mim é muito forte, muito forte! Lá
em casa são cinco mulheres; eu acho que só a minha irmã mais velha e eu absorvemos toda
a criação da minha mãe. São conceitos difíceis demais. Eu sinto que isso contribui muito
para que eu sinta essa dificuldade de me separar”.
82

Ela demonstra que, de certo modo, continua agindo como na adolescência, pois,

segundo revela em sua narrativa, evitava contar à mãe que iria para algum lugar, a fim de

não contrariá-la e, assim, esta adoecer. Assim, Sofia continua sentindo-se ameaçada pelo

sentimento de culpa decorrente de um possível rompimento com os referenciais

estabelecidos pela mãe:

“(...) tenho medo que ela vá para o hospital, que ela adoeça e aí o sentimento de culpa é
muito ruim”.

Além disso, ao dar-se conta de que, já no início, o casamento não ia bem, Sofia

sentiu-se culpada, acreditando que a falta de desejo sexual do marido, que persistia até

aquele momento, era um problema dela:

“Fiz tratamento espírita, tudo no mundo eu fiz para saber o que estava acontecendo. No
início, eu achava que a culpa era minha; alguma coisa estava errada, mas eu sempre
achava que esse erro estava em mim, não estava nele, não estava no relacionamento.
Então, durante muito tempo eu fiquei com isso, por isso que eu busquei muitas alternativas:
tratamento espírita, sexólogo... Eu perguntava o motivo a ele, mas ele me respondia que
era o cansaço. Isso não me convencia, porque eu trabalhava o dia todo, ainda arrumava a
casa, fazia comida... Então, não me convencia” (Sofia).

Esse dado nos faz lembrar do que Biasoli-Alves (2000) discute, em seu estudo sobre

as mudanças e continuidades no papel da mulher:

Nessas rupturas com o passado, ao fazer face a um processo


consolidado em muitas décadas, sobrou para a mulher, ainda,
o “sentimento de culpa” que aparece a cada vez que “ a
criança fica doente...” , “os pais precisam de seus cuidados...”,
“ o casamento vai mal...”
83

Essa última fala de Sofia nos remete, ainda, à visão de Costa (1999), que chama a

atenção para a transmissão cultural do romantismo amoroso, o qual é tido como atributo

essencial de felicidade, gerando sentimento de culpa e de desvalorização pessoal, quando o

ideal imaginário do amor parece não se realizar. Nesse sentido, percebe-se claramente, na

narrativa de Sofia, que, mesmo queixando-se da falta de iniciativa sexual do marido, assim

como de sua indisponibilidade para o diálogo e para compartilhar dos acontecimentos

diários, ela permanece, durante um longo período da relação, sentindo-se a única

responsável pelo fracasso amoroso.

Ainda com relação ao sentimento de culpa, temos o depoimento de Laura, que fez

algumas tentativas de sair do seu relacionamento amoroso, mandando o parceiro, que é

alcoolista, ir embora. Contudo, como ela mesma afirma, sempre

“(...) ficava assim, com pena dele, sem ter quem cuidasse dele; até me sentia culpada (...)”.

É também o que se constata na fala de Vera:

“Com o meu marido mesmo, se eu não fizer uma coisa para o meu marido, eu me sinto
assim... culpada”.

Essas falas parecem denotar a existência de um self estruturado em função do outro,

de seus valores, necessidades e expectativas. Como se percebe nas narrativas dessas

mulheres, parece ser mais fácil sacrificar-se, assumir as dificuldades oriundas do

relacionamento, abrir mão de projetos, enfim prejudicar-se, a ver o outro sofrer. Esse

aspecto também é verificado na narrativa de Elisa, que desde criança parece buscar proteger
84

e preservar a mãe de alguma contrariedade, fazendo uma seleção dos sentimentos e

emoções que julga poder expressar em seus relacionamentos:

“Isso vem de muito tempo. Nunca quero magoar os outros. Quando eu era criança que me
sentia mal e não podia fazer nada, eu só me vingava em chorar (...)”.

Enquanto não toma a decisão de romper com o marido, Elisa considera que está

agindo como a mãe, ou seja, aceitando a situação que vive em sua relação amorosa, pois o

marido mantém uma vida pessoal fora de casa, ausentando-se com freqüência do convívio

familiar.

Temos, ainda, a experiência de vida de Isaura, que conviveu, quando criança, com

uma mãe opressora e dominadora, a qual não estabeleceu com ela uma relação baseada em

afeto, respeito e aceitação, atribuindo-lhe, prematuramente, uma sobrecarga de

responsabilidades. Isso fez com que ela interrompesse os estudos aos dez anos de idade:

“Minha mãe nunca fez nada! Minha mãe nunca cuidou da casa, minha mãe nunca cuidou
dos filhos, ela só tinha filho para eu cuidar. Fui eu quem criou meus irmãos, fazia o café
para o meu pai...”

Sua experiência de vida deixa claro que ela não foi tratada como uma criança, que

precisa de amor e proteção, ao invés de ameaças, castigos e humilhações, para desenvolver

positivamente a auto-estima e adquirir confiança nas suas próprias experiências, assumindo

escolhas e reconhecendo-se como ser singular. Em seu relacionamento amoroso, que

começou há quinze anos, Isaura buscou adequar seus sentimentos, desejos, pensamentos e

ações à maneira de ser do parceiro, revelando um modo de relacionar-se amorosamente


85

subserviente e extremamente dependente, como se a sua existência não tivesse sentido sem

o parceiro amoroso:

“Eu tinha vergonha que ele conhecesse minha casa, mas ele foi um dia de surpresa... E
pronto, então ali ele começou a me ensinar tudo o que ele achava que deveria, do jeito
dele. Eu vivi para ele, a minha vida inteira eu me dediquei para ele, de corpo e alma. Era
como se eu fosse a filha mais velha dele, pois eu só fazia o que ele queria... tudo! Tudo,
tudo! Ele era o meu mestre, até hoje ainda é, continua; já foi muito mais, porque hoje eu já
respondo a ele, hoje, eu já grito ele, hoje eu já... saio”.

“Eu nunca digo’não’ para ele, em nada na minha vida. Não é que eu não tenha vontade, é
que eu não posso, ele não permite que eu lhe diga ‘não’. Eu o obedeço, na minha casa a
gente (se referindo aos filhos dela e a si própria) obedece a A mais do que os filhos dele.
Então desde que eu fui criada, que eu baixo minha cabeça, e hoje faço pior”.

“Mas eu não me imagino sem ele, porque eu sofro muito! Em nenhum momento eu posso
pensar nisso... Isso não pode entrar na minha cabeça, porque eu fico muito triste mesmo!
Por enquanto não posso... Não posso, não posso, não posso, não posso! Nenhum segundo
na minha vida, eu posso pensar sem ele...”

Essas falas de Isaura mostram, com nitidez, um modo de estar no mundo baseado

em referências externas, que toma o outro como a principal razão de viver, permitindo ser

como ele espera ou exige. Observamos aqui o alto grau de submissão de Isaura em relação

ao seu parceiro amoroso, em quem ela parece depositar toda a responsabilidade por suas

escolhas e ações, demonstrando uma forte necessidade de ser “guiada” na vida, pois não se

apropria da sua existência. Essa ênfase dada ao outro também pode ser demonstrada na fala

de Vera e, novamente, na de Sofia:

“Eu estou sempre pensando nos outros, nos outros, nos outros, chegou a ponto de dar um
circuito na minha cabeça. Aí pronto, o meu relacionamento conjugal está muito difícil...”

Falando do marido: “(...) porque quando está na hora dele chegar em casa e ele não
chega, fico... sabe? Eu fico de janela em janela olhando, entendeu? Fico doidinha quando
ele não chega em casa, aí eu queria me libertar entendeu?” (Vera).
86

“Isso me faz sentir limitada. Eu me sinto presa, a minha vida é como se estivesse presa à
vida dela (se referindo à mãe), à vida de outras pessoas. Aí eu acabo não resolvendo as
coisas porque eu fico pensando muito nos outros, no que pode acontecer. Aí, já não sou só
por mim, sou pelo meu marido, sou pela minha mãe, sou por muita gente” (Sofia).

Esses depoimentos parecem sugerir que tais mulheres estão fora dos seus próprios

sistemas de avaliação interna, sem distinguir com precisão o que lhes é próprio

(necessidades, valores, sentimentos, atitudes) daquilo que pertence ao outro. Esse modo de

estar no mundo pode dificultar a satisfação das próprias necessidades, comprometendo a

direção da tendência atualizante, que não favorecerá o desenvolvimento de um self maduro,

fluente, receptivo ao processo de experiências em curso. Os depoimentos também sugerem

uma necessidade dessas mulheres de agirem segundo os seus próprios marcos de referência

interna, o que poderia, segundo o nosso entendimento, lhes trazer mais autonomia e clareza

na condução de suas próprias vidas. É o que também constatamos no depoimento de Laura,

cuja relação amorosa, assim como a de Vera, é marcada pela delicada e conturbada situação

do alcoolismo. Ao dar-se conta da gravidade de tal situação, Laura passou a assumir o

papel de “cuidadora” do marido, considerando-se responsável por ele, conforme suas

próprias palavras:

“(...) eu estou sendo a mãe dele também, não é? Do meu marido. Porque quando ele faz
xixi, aí eu tenho que tirar a roupa, quando eu não posso dar um banho, aí eu passo um
pano assim...”.

Esse é um papel já conhecido por Laura, que, em seus relacionamentos familiares e

sociais, geralmente desempenha uma função maternal, tendo a necessidade de cuidar, de

agradar, de ser “boazinha” e compreensiva com os outros, pois ela mesma admite:
87

“Eu tenho muita dificuldade de dizer’não’ para as pessoas. Eu acho que o ‘não’ para mim
quase não existe. Eu sempre tive essa dificuldade, às vezes eu até resolvo uma situação
para evitar dizer ‘não’, não é? Às vezes até me custa caro esse sacrifício, me sacrifico,
agrado... Tenho a necessidade de agradar. Às vezes, isso nem me faz bem depois, mas
outras vezes, me faz também, porque eu não faço nada com má vontade não. Falando nisso,
muita gente assim, diz que eu sou uma pessoa boa e tudo, só sou ruim para mim”.

“Eu acho que cresci com a expectativa de agradar as pessoas, aos meus pais, é! (...) eu não
levo mais meu marido para o interior, porque eles iam sofrer muito sabendo dessa minha
situação... Aí é melhor sofrer sozinha, porque pelo menos é só uma pessoa. Eu dou meu
jeito... Até resolver, não é?”

“O que eu passo, eu nunca dou muita importância, sempre acho que posso estar
suportando. Eu digo a mim mesma assim... Não, eu... Não morro não... Passa!”

Diante da situação que vivencia e da qual se queixa, Laura segue sua

trajetória de vida sentindo-se prejudicada, mas agüentando sozinha o peso desse

relacionamento, estruturando a sua existência em torno do parceiro, pois revela em sua

narrativa que a preocupação com ele a impede de realizar tranqüilamente as atividades

diárias, além de privá-la de fazer coisas prazerosas, como estar com seus familiares,

divertir-se com os amigos etc. Isso denota a existência de uma baixa auto-estima, de pouca

consideração pelos seus próprios sentimentos, como verificamos nos trechos anteriores. A

necessidade de cuidar e de agradar é acentuadamente presente não apenas no modo de ser

de Laura, mas também no de Vera, que, além desse aspecto em comum com Laura, também

convive com um homem alcoolista. Ambas acreditam ter o dever de não abandonar o

parceiro, embora suas narrativas traduzam o desamparo e a solidão em que se encontram.

Permanecem, então, sofrendo na relação amorosa, talvez, dentre outros fatores, pela

dificuldade de romper com uma auto-imagem estruturada em torno da função de cuidar e se

deparar com o sentimento de culpa decorrente dessa “transgressão”. Esse é um aspecto que

consideramos importante na compreensão do nosso objeto, haja vista que as experiências

dessas mulheres nos levam a pensar no papel que a cultura tem na transmissão desse valor
88

(o cuidado) na socialização das mulheres. Como podemos observar, nas narrativas desta

pesquisa, quase todas as participantes, exercendo ou não um trabalho remunerado, têm

como “obrigação” os cuidados com a casa e/ou com os filhos, embora costumem se queixar

desse excesso de responsabilidades. No entanto Vera parece se contradizer; pois, se, por um

lado, revela que se sente responsável pelo marido, no dever de cuidar dele, em outro

momento da narrativa demonstra indignação com relação ao papel assumido em sua vida

amorosa:

“Eu existo para ele como uma empregada, para fazer a comida, lavar tudo direitinho...”

E, mais adiante, acrescenta:

“Eu já disse a ele assim:’ - Menino, você me tirou da casa dos meus pais, casou comigo,
diz que me ama e depois me faz de empregada!’ Sim, porque eu faço as coisas todas
direitinho para ele”.

Percebemos, ainda, em muitos relatos, o desamor existente em muitos lares, onde as

crianças não recebem a devida atenção e cuidados essenciais para um desenvolvimento

saudável. Muitas mulheres, tais como Isaura e Elisa, são incentivadas, ou mesmo obrigadas

a exercer, ainda na infância, responsabilidades que implicam servir ao outro, enquanto suas

necessidades de amor, atenção, cuidado e segurança permanecem insatisfeitas. Em alguns

casos, entendemos que essa carência de cuidados pode levar a criança a assumir, na vida

adulta, principalmente se for mulher, um papel servil, tendo sempre alguém com quem

estabeleça uma relação de dependência, na ilusão de preenchimento de um vazio, de uma

necessidade de amor não satisfeita. Talvez o que muitas mulheres esperam, ao valorizar

mais os desejos e exigências do outro, é serem recompensadas com amor.


89

O sentimento de rejeição também é um aspecto ressaltado nos depoimentos das

participantes deste estudo, abrangendo a existência como um todo de algumas delas e tendo

destaque em seus modos de ser. Nessa perspectiva, ressaltamos novamente a experiência de

vida de Vera, que apresenta uma tendência a se isolar, receosa de expor suas idéias, de

incomodar o outro, sentindo-se mais segura em seu próprio mundo. Esse aspecto parece

contraditório, pois ela também se queixa da falta de contato social. Vera percebe que essa

tendência a se retrair é algo que a acompanha desde a infância. Sente-se desvalorizada e

rejeitada pela sociedade e pela família, restando-lhe resgatar o amor que recebia do marido,

demonstração de aceitação e acolhimento pela pessoa que é:

“Assim, eu procuro sempre fazer as coisas em casa, está entendendo? Sempre me


trancando mais, porque eu acho que as pessoas não vão me aceitar como eu sou... Será que
aceitam? Eu me sinto rejeitada, é, eu me sinto rejeitada sim, sabe? Eu me sinto rejeitada
dentro de casa, me sinto rejeitada na sociedade, porque eu não sou ninguém, porque eu
não tenho dinheiro, porque eu não tenho nada, eu não... Eu me sinto rejeitada por todo
mundo. Pela minha família também, pois uns têm mais condições, outros não têm; quem
tem me isola, quem não tem me procura, então eu vejo que existe só o meu marido... Ele
não me amou? Por que não pode continuar com esse amor?”

O sentimento de rejeição faz-se presente ainda na experiência de vida de Isaura:

“Eu acho que a minha mãe não gostava de mim, porque todos os meus irmãos estudaram,
menos eu”.

Além de não se sentir amada e acolhida na relação com a mãe, Isaura também

sofreu maus tratos e foi abandonada pelo pai de seus quatro filhos, com quem se casou aos

dezessete anos, para distanciar-se da mãe. Durante tal relacionamento, ela chegou a tentar o

suicídio. Uma de suas queixas se refere ao fato de o parceiro não lhe dar a atenção de que
90

necessita, o que a faz pensar que ele permanece com ela pelo trabalho, pois têm um

comércio, e também para manter relações sexuais.

De modo geral, constatamos que o desprezo, o abandono, o descaso e a falta de

atenção dos parceiros são queixas freqüentes das mulheres em questão. Elas também

expressam a necessidade de se sentirem amadas, compreendidas, de compartilharem com o

parceiro as alegrias e dificuldades da vida. Reclamam da falta de apoio, de companheirismo

e de cumplicidade, apontam para as desigualdades de gênero presentes no dia-a-dia do casal

e manifestam seu sofrimento geralmente através de diversos sintomas físicos e psíquicos.

Seus depoimentos denotam a existência de um relacionamento carente de diálogo, da

presença efetiva do parceiro na vida do casal ou da família, de intimidade e de maturidade

emocional. A seguir, apresentaremos alguns trechos das narrativas das entrevistadas, que

deixam claro como elas percebem e expressam o sofrimento amoroso.

Isaura:

“E hoje, esse amor que eu vivo, me sufoca, incomoda, eu fico agoniada, me sufoca... A
coisa que mais me preocupa, ultimamente, não é porque sufoca, é porque eu fico
desesperada! Assim, o meu sofrimento é tão grande, que eu não tenho vontade de viver...
Eu já tentei suicídio na época em que eu vivia com o pai dos meus filhos, mas eu jamais tive
vontade de tirar a minha vida... É uma coisa que não tem sentido! Eu não faço isso mais
hoje, mas tem dias que o desespero é grande... Assim... Ah! É uma agonia! Sinto uma
agonia aqui dentro do meu coração... Assim, me pergunto como eu vou amanhecer o dia
com aquele sofrimento... E eu não gosto muito de remédio... Eu durmo muito... Quando eu
fico triste, eu tenho vontade de dormir, tenho que dormir, eu tenho que fazer alguma coisa,
porque eu não agüento sofrer, eu não agüento sofrer mais, eu não agüento, eu não agüento,
eu não agüento!”

Elisa:

“Muitas vezes, eu fico pensando comigo mesma que vai ter que chegar uma hora! Vai ter
que chegar naquele limite, porque eu não vou agüentar o resto da minha vida vivendo com
ele desse jeito!”

Laura:
91

“Ás vezes eu tenho amargura de não... de levar essa vida... (...). Essa amargura começou
depois disso aqui, não é? dessa relação! Eu não era assim não!”

“(...) ás vezes eu fico tensa, fico... sabe? Choro e fico pedindo a Deus para mudar ou então
me dar força para eu resolver, para deixar, porque eu não sei resolver essa situação!”

“O nosso relacionamento está muito difícil, eu estou me sentindo muito... está muito... está,
está muito pesado! (...) é muito desgastante, muito pesado!”

“Eu sei que estou me prejudicando, eu não me cuido, não é? Até a saúde eu deixei de lado,
que eu agora estou com um problema, então, não estou me cuidando. Ás vezes até deixo de
lado a minha família...”

“Uma outra colega disse que (...) eu me envolvi tanto, que eu deixei de viver! Eu penso que
isso faz sentido, é, eu penso, eu penso isso!”

Fátima:

“O meu relacionamento é complicado, do jeito que está é um problema, não dá para


continuar assim... Meu marido é muito incompreensivo, muito na dele, acha que tudo é só
para ele, só pensa no lado dele. Não me ajuda com as crianças, não é homem de sair de
casa com a família... anda sozinho! Eu acho que o meu problema todinho, meu estresse,
minha agitação em casa começa logo disso”.

“Sempre eu tenho dor de cabeça, tenho uma agonia, uma coisa ruim... na cabeça. Eu acho
que isso tudo está ligado aos problemas que eu vivo com o meu marido (...)”.

Sofia:

“Eu atribuo essa depressão e esse pânico a todo esse processo que começou no início do
casamento, até hoje... Esse período de depressão foi devido a todo esse processo assim de
desprezo, de descaso, de não ter realmente o companheiro que eu imaginava, que eu queria
ter, então, chegou o momento que eu caí completamente. Eu tinha uma expectativa
diferente em relação ao meu casamento e acabei me adaptando à situação, então, adoeci...
bastante...”

“(...) o que me fez ficar triste foi a situação do meu casamento e a falta de perspectiva de
dar certo”.

Vera:

“Essa depressão que eu tive, após o nascimento do meu segundo filho, veio em decorrência
da solidão, de quando eu engravidei, que ele começou a me deixar sozinha em casa. Saía
de casa, dava atenção mais aos amigos (...)”.
92

“Nada me perturba, o que perturba mais é esse problema que eu venho passando, porque
mexe com o meu sistema nervoso, mexe com a minha vida, mexe com tudo!
Relacionamento amoroso mexe com tudo! está entendendo como é?”

As falas de Isaura e Elisa apontam para uma tendência a esperar pelo momento

em que não possam mais suportar todo o sofrimento em suas vidas amorosas,

demonstrando passividade no modo de relacionar-se amorosamente. Assim, elas parecem

permanecer inertes, levando a vida a esperar que as mudanças aconteçam sem que tenham

uma participação significativa nesse processo. Ao tomar a relação amorosa como cerne de

suas existências, vemos que as participantes deste estudo vão, gradativamente, afastando-se

de si mesmas, da possibilidade de encontrarem sentido para as suas vidas, sem que sintam

que suas escolhas, necessidades, desejos e tudo o que é representativo de sua singularidade

está na dependência do outro.

Nesse sentido, é fácil perceber, nos depoimentos, a relação existente entre a vida

amorosa das entrevistadas e o seu sofrimento, o qual se manifesta, comumente, através de

reações emocionais, do problema de nervos, ou até mesmo da depressão e do pânico. Isso é

uma evidência da importância que essas mulheres atribuem ao relacionamento amoroso, na

medida em que estruturam suas vidas em torno desse relacionamento, como bem reconhece

Vera:

“É como que seja na, na base, na estrutura, assim de... de uma pessoa é o amor! Eu acho
que é assim sabe? Não entendo muito, mas eu vejo assim. É assim que eu me sinto... Como
se tivesse assim, desmoronando, sem ter estrutura!”.

A variedade e complexidade dos sintomas relatados contribuem para mostrar o

modo particular como cada mulher expressa e percebe o seu sofrimento sendo influenciado
93

pela sua história de vida, pelo contexto sociocultural e pela sua própria subjetividade.

Portanto, quando a relação amorosa não se desenvolve da forma esperada, elas geralmente

adoecem, e, como observa Medeiros (2002), passam a “(...) ‘corporalizar’, ou seja, a

expressarem todo o sofrimento e o desamparo em si mesmas (...)” (p. 94). Essas mulheres

parecem mesmo depositar muitas expectativas em torno da relação amorosa, elegendo-a

como central em suas vidas, à medida que o outro é tido como motivo de auto-realização,

bem-estar e felicidade. Isso demonstra a fragilidade de seus selves diante das vicissitudes

existenciais, a restrição de recursos para lidar de modo mais satisfatório com as desilusões e

frustrações em seus relacionamentos amorosos bem como a dificuldade de buscarem uma

maneira mais criativa e potencializadora da vida, na administração dos problemas

amorosos.

Como podemos constatar na narrativa de Fátima, ela considera ter modificado

para pior o seu jeito de ser, após o casamento, atribuindo ao marido a responsabilidade por

tal mudança bem como ao fato de ela não ter se realizado profissionalmente. Ao engravidar,

ela interrompeu os estudos e, ao assumir o papel de mãe, passou apenas um curto período

de tempo trabalhando, limitando-se ao novo papel, além do de esposa e dona-de-casa.

Contudo, com o passar do tempo, foi se decepcionando e se desiludindo com a realidade do

seu casamento, esperando que o marido agisse de modo diferente com ela e com os filhos.

Embora em sua narrativa revele que está “acordando”, buscando um trabalho fora de casa,

o trecho abaixo mostra que Fátima prefere lamentar-se a ver que ela mesma se impediu de

continuar sonhando em ter o crescimento profissional que almejava, de ser como ela

gostaria, de levar a vida sem tantos problemas e preocupações:


94

“Eu era totalmente diferente, era bem calma, mas depois desse relacionamento eu fiquei
muito agitada, sem paciência... Eu sinto que foi depois desse relacionamento que eu
mudei... E para pior! Ás vezes até digo a ele que eu podia ser outra pessoa, se eu não o
tivesse conhecido nunca. Podia ter sido diferente, eu podia ser mais calma, trabalhar para
ter uma vida melhor, pois eu estudei, terminei o segundo grau, fiz muito... sonhava em
trabalhar na área de saúde”.

Esse depoimento nos leva a pensar que talvez todo o sofrimento pelo qual essas

mulheres passam em suas relações amorosas esteja, pelo menos em parte, relacionado às

suas expectativas e idealizações em torno do amor e do parceiro amoroso:

“Eu achava que não tinha outro homem igual, eu achava que ele era o homem perfeito, eu
achava que ele era o homem... tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo! Realmente, até hoje eu
não acho que ele é ruim, mas, como eu disse, me sufoca o jeito como ele me trata”.

“Hoje em dia, eu fico pensando que Deus deve estar em primeiro lugar na minha vida, mas
ele era o meu deus!” (Isaura).

Podemos observar que Isaura via e, em menor grau, ainda vê, o seu parceiro

amoroso de forma acentuadamente idealizada e fantasiosa, atribuindo-lhe a qualidade da

perfeição, o que, de certo modo, parece aproximar-se do que Giddens (1993) afirma acerca

do amor romântico, ou seja, que tal experiência envolve a idealização do outro, na busca do

preenchimento de um vazio relacionado à auto-identidade. Nesse sentido, acreditamos que,

ao considerar que o outro é “tudo”, o modelo de perfeição, dificilmente Isaura se perceberá

como alguém de valor ou sentirá por si própria o apreço necessário e suficiente para

desenvolver com o parceiro amoroso um relacionamento que possa ser construído com base

nas diferenças.

A forma como a relação amorosa de Isaura se estabeleceu revela um modo de estar

no mundo caracterizado pela dependência, submissão e passividade, assim como pela


95

dificuldade de perceber-se, e ao outro, como singularidades. É o que se evidencia em suas

palavras:

“Eu vivia assim: só comia com ele, só tomava banho com ele, só fazia o que ele queria,
tudo, tudo, tudo! Se ele falasse que vinha tal hora para casa e se não viesse, eu ficava
chorando, chorava feito um neném. Eu só passeava com ele, quem comprava tudo era ele.
Se eu ia para o médico, ele me acompanhava. Só fazia o que ele queria, tudo, tudo”.

Em outro momento da entrevista, declara que continua se relacionando com o

parceiro da maneira habitual:

“Eu o entendo, faço tudo que ele quer, tudo o que ele manda fazer eu faço”.

As entrevistadas expuseram as expectativas que nutriam sobre o futuro do

relacionamento amoroso no qual se encontravam, de modo que praticamente todas

demonstraram a necessidade de se sentirem amadas, de gerar filhos, assim como o desejo

de estabelecerem uma relação fundamentada em companheirismo, reciprocidade bem como

na intimidade, felicidade e durabilidade. Isso talvez denote a existência de um modo de ser

e de se perceber ancorado em uma forma idealizada de ver o amor e a sua existência como

um todo, como mostram as falas a seguir:

“Antes da gente morar junto... ah! Eu pensava que ia ser muito bom, que a gente ia para o
interior passar férias, que a gente ia estar crescendo junto, que a gente ia ter uma vida, ter
um filho, e estar... podendo fazer nossas vidas, estar crescendo, não é? Crescer no lado
profissional, crescer no lado... ter uma vida, somar. Somar, não é? participar dos
problemas” (Laura).

“Eu esperava ter uma vida conjugal boa, nunca pensei que seria assim... tantos obstáculos,
tanta... indiferença! Não pensei que fosse assim, pensei que ia sair junto, cuidar dos filhos
junto, tudo junto” (Fátima).
96

“É muito complicado você tomar uma decisão e você separar, porque, na hora do
casamento, você está investindo ali um sentimento, muita vontade que dê certo. Ninguém
casa para separar com um mês depois; a gente casa, pelo menos a minha idéia era essa: eu
tinha vontade de envelhecer com ele. Eu ficava imaginando a gente velhinho com os netos...
Então, é uma frustração muito grande”.

“Ele (refere-se ao marido) ficava dez minutos ali na posição que eu queria que ele
ficasse, me abraçando, e depois já se virava, já ia para o lugar dele na cama. Eu sempre
achei isso tudo muito esquisito, porque eu tinha uma outra idéia de casamento na minha
cabeça”.

“Então você acaba imaginando que casamento é algo para você viver em conjunto, e não
você viver sozinho no seu mundo e a outra pessoa viver lá no mundinho dela. A partir do
momento em que você decide se unir a outra pessoa, você quer compartilhar tudo, tanto as
coisas boas como as coisas ruins com aquela pessoa”.

“Ele (refere-se ao marido) sempre foi uma pessoa muito dedicada ao trabalho, a ponto
dele me esquecer. E por isso eu não esperava. No início do nosso casamento, nós passamos
um mês sem contato íntimo nenhum. A partir daí, já me causou uma decepção muito
grande!” (Sofia).

“(...) eu pensei que a gente ia se amar, que ele podia trabalhar, que ele podia me ajudar, eu
podia ajudá-lo... Ser uma união, uma coisa mais bonita, pensei que íamos viver para os
nossos filhos, mas só que as coisas mudaram muito” (Vera).

“Eu sempre pensei em um dia casar, ter filho... Isso sempre passou pela minha cabeça. Eu
pensava em casar, ter filhos, tentar... dependendo dele, não é? viver bem”.

“Eu vejo que meu casamento é uma coisa que não vai ser para sempre, como eu pensava, e
eles não, eles para sempre vão ser meus filhos”.

“Eu pensava que ia ser feliz com o meu marido, mas hoje em dia é bem difícil mesmo, bem
complicado!” (Elisa).

Percebemos, nas falas dessas mulheres, que alguns ideais do romantismo amoroso,

tais como os de durabilidade, felicidade e intimidade sexual compõem os seus selves, dando

indícios de que essa forma de amar, como bem reconhece Costa (1999), apesar das

mudanças ocorridas no contexto sócio-histórico desde o seu surgimento, há três séculos,

ainda persiste no mundo ocidental. Vemos que esse ideal amoroso continua embalando os
97

sonhos de muitas mulheres, em função da influência, ainda presente, de elementos de

continuidade na imagem e no papel da mulher, na realidade atual.

Merece atenção o fato de a maioria das entrevistadas ser casada formalmente; dado

esse que parece ir ao encontro do que Araújo (2002) ressalta acerca do casamento na

atualidade: “o casamento formal, heterossexual, com fins de constituição da família,

continua sendo uma referência e um valor importante, mas convive com outras formas de

relacionamento conjugal (...)” (p. 76). Nessa perspectiva, concordamos com Dantas de

Araújo (2000), ao observar que, “como instituição, o casamento apresenta o amparo e o

conforto de tudo aquilo que é aprovado socialmente. A sua representação contém elementos

do amor romântico, arrastados no tempo, a partir do amor cortês” (pp. 125-126). Assim,

mesmo admitindo que nunca alimentaram o desejo de se casarem, Sofia e Vera

modificaram seus planos, optando por viver essa experiência amorosa.

Em alguns dos depoimentos anteriores, percebe-se, claramente, que as mulheres

tinham como expectativa uma “(...) necessidade de vivenciar a conjugalidade, a realidade

comum do casal, os desejos e projetos conjugais” (Féres-Carneiro, 1986, p.383). Essa

necessidade existe no casamento contemporâneo, como assinala a autora, estabelecendo

coexistindo com a busca pela autonomia dos parceiros, a qual é influenciada pelos valores

individualistas vigentes na nossa sociedade. Não podemos negar que as participantes desta

pesquisa têm os seus selves influenciados por esse modo de viver a relação amorosa, que é

sustentado, segundo Simmel (1971, apud Ferés-Carneiro, 1986), por “(...) expectativas,

uma extrema idealização do outro e uma superexigência consigo mesmo, provocando

tensão e conflito na relação conjugal (...) (p. 385)”. Contudo é importante ressaltar que a

busca pela autonomia e a valorização dos espaços individuais, embora almejadas, não

parecem ser algo facilmente posto em prática pelas participantes deste estudo, ao contrário
98

do que acontece com a maioria dos seus parceiros. Estes não demonstram interesse em

fortalecer os espaços conjugais, aspecto que constitui uma queixa da maioria das

entrevistadas. Essa diferença de gênero na forma de viver o amor parece contribuir para o

desencontro e o distanciamento do par amoroso, resultando em sofrimento. A fala de Elisa

mostra a dificuldade de expandir e preservar seus espaços individuais, deixando claro que

suas intenções geralmente não se concretizam:

“Muitas vezes eu falo mais do que ajo, porque eu nunca saio assim com minhas amigas
para um show, nunca fico até mais tarde na rua com minhas amigas... Não pode”.

Vale salientar que, em várias narrativas deste estudo, constatamos que a

exclusividade, o prazer sexual e a durabilidade (aspecto já ressaltado) são fatores

considerados pelas participantes como importantes na manutenção de um vínculo amoroso

satisfatório. Esse dado parece guardar relações com o que foi observado por Garcia &

Tassara (2001), em sua pesquisa. Essas autoras constataram que, para as mulheres que

pesquisaram, a felicidade conjugal requer a existência de um relacionamento ancorado

naqueles ideais do romantismo amoroso.

No que se refere ainda ao fator exclusividade, este é apontado por algumas

participantes deste estudo como contribuindo para que elas continuem na relação amorosa,

apesar do sofrimento vivido. Assim, diz Sofia:

“Eu acredito até hoje que I nunca teve outro relacionamento além de mim, então isso
acaba sendo um ponto positivo... Saber que ele é só meu, apesar de tudo”.

Vera também é clara em suas palavras:


99

“O maior problema do amor, ultimamente, é a traição. Às vezes a mulher é traída. Esse é


um problema que eu nunca tive. Pelo menos assim, eu nunca percebi nada. Ninguém nunca
me contou”.

É curioso constatar que Isaura, mesmo ocupando o lugar de amante na vida do

parceiro, também ressalta a exclusividade como um valor em sua vida amorosa:

“(...) eu falo para ele que nunca vou permitir que exista outra na minha vida, porque eu já
sou a outra e ainda vai ter que existir outra? Eu não vou permitir nunca”.

Entendemos que a maioria das participantes, ao encontrar o atual parceiro amoroso,

acreditou que poderia viver uma relação ancorada nos valores do amor romântico aqui

apontados, tomando tal relação como principal fator de bem-estar e auto-realização. Nesse

sentido, sugerimos que a permanência no sofrimento amoroso pode estar relacionada a uma

dificuldade dessas mulheres de alterar as suas crenças no amor, buscando repensar, como

sugere Costa (1999), “(...) o que significa ‘outro’, ‘companhia’, ‘felicidade’, e ‘ideal

imortal’ (...)” (pp. 218-219). Dentro dessa linha de pensamento, estamos considerando que

os selves dessas mulheres não se constituem apenas no meio familiar, mas se inserem em

um contexto social e cultural mais amplo. Recorremos, então, a Neves (1997), ao afirmar

que a sociedade contemporânea caracteriza-se pela força do controle que exerce sobres os

indivíduos, agindo diretamente na produção de subjetividades. Guatarri & Rolnik (1986)

acrescentam que o processo de produção é atravessado por representações que são injetadas

nas pessoas, através da linguagem, da família, dos equipamentos coletivos que nos rodeiam

e da mídia. Ressaltam que a disseminação geral do poder capitalista produz efeitos sobre as

diversas esferas da vida - inclusive as diferentes configurações das relações cotidianas -

produzindo subjetividades homogêneas avessas ao diferente, ao inesperado, ao movimento


100

de ruptura com o instituído. Assim, cristalizadas em um modo de ser previsível e

categorizado, essas mulheres parecem alheias ao poder-ser, do qual nos fala Dutra (2000),

ou seja, à sua capacidade de crescimento e desenvolvimento contínuos, na busca por

mudanças instauradoras de um modo construtivo de viver, apesar dos percalços inerentes

ao próprio existir. Nesse sentido, Miranda (2000) acredita que podemos nos desvencilhar da

idéia de que o tipo de subjetividade imposta durante séculos é o único e o melhor,

questionando as conseqüências que ele acarreta, ao domesticar e padronizar formas de

relação, afetos, modos comportamentais etc. O depoimento de Vera expressa bem esse

aspecto que vimos discutindo, pois revela uma trajetória de vida marcada por conflitos

decorrentes do anseio de liberdade, de ruptura com os padrões e normas pré-estabelecidos e

impostos sobre o seu modo de ser, como ela bem explicita a seguir:

“Então, estava tudo planejado para mim: eu ia fazer esse curso, ia trabalhar, casar e ter
filhos. E eu não queria que fosse assim, queria me soltar... Assim, para a vida. Mas era
uma coisa errada que eu queria, não é?”

Em sua narrativa, encontramos algumas referências à palavra “liberdade”, condição

que ela acredita não ser possível obter:

“Eu sonhei muito em ser livre, ser independente, mas até hoje eu continuo sentindo que
não posso buscar esse sonho, não tenho direito (...)”.

Também consideramos as dificuldades de tais mulheres em contactar plenamente

consigo, refletindo e avaliando o rumo que estão dando às suas vidas, vislumbrando

possibilidades de buscar novas formas de estar no mundo. Contudo reconhecemos que,

apesar de ser possível, essa tarefa não é fácil para elas, levando-se em consideração a forma

como assimilaram e elaboraram suas experiências de vida, as quais se deram em um


101

ambiente familiar que, como já discutimos, é pouco favorecedor do contato com os seus

sentimentos e emoções, e da livre expressão destes.

É interessante observar que algumas entrevistadas se revelaram pessimistas quanto à

possibilidade de um novo investimento amoroso, ao se imaginarem fora do relacionamento

atual:

“(...) porque eu não quero mais outro homem na minha vida, entendeu? Não penso em
arranjar outra pessoa... Por quê? Para quê?” (Isaura).

“Eu até já me imaginei sem o meu marido, eu já imaginei isso, mas assim... ficar só sabe?
não ter mais ninguém. Aí pronto, é o que eu lhe falei, ficando sem ele, eu penso em levar a
vida dedicada à creche, abrigo, visitar hospitais, essas coisas” (Vera).

“Se a gente se separar, eu nem penso em arranjar outro, eu sempre penso que saindo dessa
complicação que eu... disso aqui que eu arranjei para a minha vida, que só fez complicar,
eu jamais tenho outra pessoa. Eu acho que não ia... Não ia dar certo. Eu não penso em
arranjar outra pessoa, porque eu acho que... Eu tenho medo de não dar certo... É tão difícil
relacionamento! Eu achava que esse ia dar certo, mas não deu”(Laura).

Elisa também se revela pessimista, contudo, mesmo afirmando que “(...) hoje em dia

os homens são imprevisíveis (...)”, não pensa em privar-se de viver outra relação de amor,

desde que não envolva a instituição “casamento” e o critério de coabitação:

“Se a gente se separar, eu não me vejo mais casada. Posso namorar, mas cada um
morando na sua casa. Isso aí eu me vejo fazendo. Mas para casar, morar comigo
novamente, eu não quero mais não... chegar a ponto de casar novamente”.

“Então eu digo assim, que no momento em que eu me separar, eu não quero mais outro
homem para morar comigo. Eu acho que se está horrível, então tudo vai ser a mesma coisa
ou pior ainda!”

As falas de Isaura, Vera e Laura nos fazem pensar que as decepções e frustrações

vividas em seus relacionamentos amorosos parecem contribuir para a existência de um


102

autoconceito, ou modo de ser, descrente na experiência do amor, na possibilidade de

construção de um modo diferente de amar, em que seja ressaltada a alegria, a “leveza”, o

prazer ou, ainda, como mostra uma das conclusões da pesquisa de Dantas de Araújo (2000),

a brincadeira, o humor e a comunicação.

Em todas as narrativas, percebemos uma fala que aponta os motivos pelos quais as

participantes continuam na relação amorosa, apesar de se queixarem de todo o sofrimento

pelo qual vêm passando, e que geralmente atribuem a tal relação ou ao parceiro. Assim,

elas evidenciam a singularidade de suas experiências, o que nos faz ver que, entre algumas

entrevistadas, há motivos em comum, tais como o medo da solidão, o fato de acharem que

gostam do parceiro, as dificuldades de cuidarem sozinhas dos filhos e a esperança de

melhoria do seu relacionamento amoroso. Os trechos a seguir também mostram que essas

mulheres buscam uma compreensão para a realidade que vivenciam, demonstrando o que

Heidegger (1927) afirma acerca da compreensibilidade como sendo a maneira de existir do

ser humano, o qual se abre em direção às suas infinitas possibilidades.

“Eu tenho que descobrir o que é que me faz continuar com ele (refere-se ao marido),
nesse sofrimento... É esse o meu problema de hoje... É isso o que eu tenho que descobrir”.

“Eu fico imaginando que, se eu me separar de A, eu vou sofrer, eu vou viver dentro de casa
assim, não vou ter ninguém para esperar, para conversar... (...). Eu penso assim, que a
minha vida vai ser tão sofrida, que vai ser essa mesma... sempre com sofrimento... Desde
quando eu me entendo de gente que eu sofro... Por que é que vai mudar? Então, se eu estou
com A e está sendo ruim, mas já foi tão bom, se eu me separar, se eu arranjar outro
homem, não vai ser igual? Por que não ficar com ele?” (Isaura)

“Eu não sei nem por que, depois desse tempo todo, porque eu ainda estou ali, naquele
mesmo local, junto com ele... eu não sei dizer. Às vezes eu fico pensando assim, mas...
tentando compreender, sabe?”

“Eu acho assim, que eu ainda continuo nesse relacionamento devido também aos meus
filhos, porque se o pai for embora, eles vão com o pai, não vão ficar comigo. E eles, apesar
103

da idade, já podem entender. Eu tenho medo de ficar sem eles, porque sempre que o meu
pai dizia que ia embora, a gente lá em casa nunca dizia que ia embora com ele, nunca!”

“Eu não me vejo sem os meninos de jeito nenhum! Eu não me vejo assim, sozinha. E o
relacionamento é muito bom entre eu e meus filhos, para onde eu vou, no final de semana, é
com eles direto” (Elisa).

“Eu gosto dele (refere-se ao marido), é... depois meus filhos, assim eu... assim, enquanto
ele for vivo, eu tenho que agüentar porque eu tenho meus filhos, eu não tenho capacidade de
criá-los sozinha! Pode até ser que eu tenha, não é? Quando eu, assim... ficar sem ele
mesmo, Deus dá um jeito, mas eu não me acho capaz, está entendendo? Não me acho com
capacidade de segurar a barra sozinha. A vida é difícil...”

“Eu não posso abandoná-lo, porque ele tem pressão alta. Se ele ficar doente, se ele morrer,
eu vou me sentir culpada. É muito difícil, estou sempre pensando nos outros (...)”.

“É como se eu me segurasse muito nesse amor, e perder isso, ver isso se desestruturando é
triste! É muito triste assim, mas eu oro, sabe? Eu clamo a Deus, eu tenho esperança de
adquirir ele de volta, porque para Deus nada é impossível!” (Vera).

“(...) eu fui até grosseira, porque eu disse a ela (refere-se à mãe) que o que ela tinha para,
assim, o que ela pôde fazer para estragar a minha vida, ela já tinha feito. Eu quis dizer que
todos esses conceitos que me impedem de tomar as minhas decisões, tudo isso acaba
dificultando, e muito! A gente vive numa sociedade que cobra, mas não age da maneira
como ela cobra, mas a gente vive em função dela. Então é o medo de ficar só, de todo
mundo pensar que eu estou disponível para qualquer pessoa... Eu tenho esse medo... de
ficar só, e de pensarem que eu estou disponível, de quererem qualquer envolvimento
comigo, que eu não queira. O medo de eu chegar em um lugar e ser desprezada porque eu
sou uma mulher separada. Quer dizer, hoje, a gente vive...talvez não tenha tanto isso, entre
aspas, que eu acho que existe muito. Se você tem um grupo de amigos, e você se separa,
todas as mulheres do seu grupo de amizade vão ficar com medo que o marido delas, ou que
você dê em cima; ou seja, que o marido dê em cima de você e você dê em cima do marido.
Isso é muito chato! E você tem que dar satisfação da sua vida às pessoas. Eu não quero
isso não”.

“É como se eu tivesse uma certa expectativa dele encontrar alguém, cansar de mim, porque
aí ele tomaria a decisão e eu não precisaria tomar. Além disso, eu não iria me sentir
culpada pela separação, se isso acontecesse”.

“Todo o sofrimento que eu já tive, e aí, eu decido todo dia que eu não quero mais ter isso
na minha vida, até o dia de chegar a decisão, e já estar tudo acertado. É dessa forma que
eu vou fazer, é dessa forma que eu estou fazendo. Foi a maneira que eu encontrei, e está
sendo difícil, porque é lento, mas como eu sei que é uma decisão só minha, e que eu estou
nesse caminho hoje porque eu optei, de uma certa forma... Ninguém tomou a decisão por
mim, eu casei porque quis, eu permaneci no casamento porque quis” (Sofia).
104

“Eu não perderia nada, se tivesse sem ele, ia mudar para melhor, com certeza. O que me
faz continuar é... assim, porque eu não vejo outra pessoa para tomar conta dele”.

“(...) eu me sinto perdida, sem ter como, sem tomar uma posição, sem resolver nada na
minha vida, sem ter coragem de resolver isso. Eu não tenho como... eu não sei resolver
essa situação! Talvez até se fosse outra pessoa, fosse alguém meu, fosse... eu já tinha
achado uma saída, com certeza, sabe?” (Laura).

“Ficar assim, nesse relacionamento, é triste, mas eu penso assim... às vezes eu penso
assim... às vezes eu penso em largar e ás vezes eu penso que seria pior. Eu penso assim, na
dificuldade, no que eu vou passar, quer dizer, eu já tenho dois filhos, às vezes eu penso que
seria pior sem ele... mas eu acho que também gosto dele. Para eu ficar esse tempo todinho
e agüentando, passando por esses momentos, eu acho que só posso gostar. Eu penso que,
se eu nunca sentisse qualquer coisa, eu não estava mais nesse relacionamento”.

“Voltando a falar sobre o meu casamento, já faz muito tempo que eu venho passando por
isso tudo, e tenho esperança que melhore. Quem sabe quando os meninos crescerem... eles
já vão poder entender melhor as coisas, o maior já é mais compreensivo, o outro ainda é
pequenininho. Eu espero um futuro melhor, tenho essa esperança” (Fátima).

Embora, para algumas mulheres, não esteja totalmente claro o motivo ou os motivos

de sua permanência no sofrimento amoroso, havendo, na maioria dos casos em questão,

mais de uma razão consciente e aparente, nos chama a atenção, nessas falas, a importância

atribuída por tais mulheres à existência de um “outro”, o parceiro amoroso, em suas vidas,

sentindo-se receosas, quando não incapazes, de conduzir sozinhas a própria existência e

administrar as dificuldades que imaginam enfrentar após um possível rompimento amoroso.

A maioria revela, com nitidez, um modo de ser pessimista e descrente na própria

capacidade de mudar o rumo da sua existência, de buscar outras possibilidades de estar no

mundo, extraindo prazer e satisfação do processo de viver. Portanto o que parece

subjacente em quase todos os relatos, e é explicitamente apontado por algumas das

participantes, é uma experiência de ser, de existir marcada pelo medo da solidão, do

abandono, de não terem valor nem merecerem amor. Assim, podemos pensar a

permanência no sofrimento como a dificuldade dessas mulheres de se apropriarem de si

mesmas, de suas vidas, dando-lhes uma direção mais satisfatória e reveladora de um modo
105

novo de existir, fundamentado, talvez, no que Rogers (1963) denomina de autenticidade, ou

seja, o movimento de abertura ao vivido. Essa abertura ao fluir dos sentimentos talvez seja

a condição primordial para que tais mulheres possam aprender a estar sozinhas e a lidar

com outros aspectos da sua subjetividade que dificultam a construção de um

relacionamento amoroso ancorado na vivência da alteridade. Esse modo de viver o amor

requer, portanto, a existência de selves amadurecidos.

Assim, os depoimentos mostram que geralmente as mulheres abrem mão de um

projeto profissional, ou o interrompem, fazendo renúncias que geram, em alguns casos, a

restrição aos tradicionais papéis de dona-de-casa e mãe, à medida que elegem a relação

amorosa como primordial. Isso nos faz pensar na influência dos valores, normas e padrões

comportamentais que, ao lado das conquistas femininas, ainda permeiam a auto-imagem da

mulher em nossa sociedade, contribuindo para a sua permanência no sofrimento amoroso:

“Eu me conformei em ser dona de casa, mas desde que tivesse amor, que ele me amasse,
porque se ele me amasse, assim como eu o amo, ele mudava, ele fazia as coisas que eu
gosto, ele já compartilhava comigo, está entendendo?”

“Ele já tem o problema do alcoolismo, então eu já me sinto responsável por ele, eu


renunciei a tudo entendeu? só para cuidar de casa. Deixei de trabalhar, só para cuidar dos
meninos... E cuidando dele assim, todo o meu tempo!” (Vera).

“Aconteceu de eu largar a faculdade para ver se as coisas melhoravam. Comecei a ficar


em casa a noite, só que eu não queria largar a faculdade, então não fiquei satisfeita. Eu
não fiz algo que eu queria fazer. Eu sempre tive o sonho de me formar, sempre tentei e
nunca tinha tido, de fato, a oportunidade. Sempre trabalhei e nunca tive tempo para me
dedicar aos estudos. E agora que eu estava começando, era uma coisa que ia me
satisfazer” (Sofia).

A renúncia, na visão de Vera, também pode significar uma prova de amor:

“(...) quando a gente ama, a gente não quer ver a pessoa sofrendo... renuncia a tudo, não
é?”
106

Em quase todas as narrativas, percebemos, de forma acentuada, as iniquidades de

gênero presentes no convívio da díade amorosa:

Isaura:

“Quando A percebe que eu fui para um médico escondida dele, ele briga muito comigo,
mas ultimamente ele não tem brigado muito, porque eu converso muito com ele, eu mostro
para ele:’ - Filho, me deixa ir, porque eu não tenho amiga, eu não saio de casa (...)’”.

“Como eu já disse, a gente trabalha junto, na confecção que tem no fundo do meu quintal.
Então ele arruma o serviço por fora e eu tomo conta da parte de casa, das costureiras.
Acontece que eu sei fazer o serviço, mas ele quer me ensinar, sem saber, porque é para eu
fazer do jeito que ele quer, não é do jeito que eu quero, não é do jeito que eu sei! (...)”.

Elisa:
“Depois comecei a trabalhar novamente e trabalho até hoje, coisa que ele nunca gostou,
que eu trabalhasse fora. Eu não sei por que ele nunca gostou; toda vez que eu começava a
trabalhar, ele passava duas, três semanas em casa com raiva, sem falar comigo. Ah! ele
dizia que era porque a casa ia ficar abandonada, os meninos, a menina ia ficar... eu dizia
que não ia ficar nada abandonado! Para ele eu tinha que ficar em casa, sabe? A
responsabilidade era com a casa, com a filha e com ele, dentro de casa, e pronto. Eu não
podia ter responsabilidade com mais nada”.

“Meu marido costuma dizer que é homem e, por isso, pode fazer tudo, diferente de mim,
que sou mulher, então para mim “pega”. Eu digo que não é assim, o direito que ele tem de
sair, ir com um colega tomar cerveja, eu também tenho, direito de sair com minhas amigas,
ir tomar uma cerveja. O direito que ele tem, eu também tenho!”

Sofia:

“Ele sempre dizia assim:’ - Não, eu quero que você cresça, eu quero que você seja uma
profissional liberal, que você se dê muito bem na vida’. Mas, por outro lado, todo dia
quando eu chegava em casa, ele estava com a cara feia, arrumava alguma confusão,
alguma... besteira, alguma discussão besta”.

Laura:

“(...) quando eu vou para a faculdade, ele fica... às vezes ele fica debochando:’ - Ah! e você
vai para a faculdade?’”

Fátima:

“Meu marido acha que o homem pode tudo e a mulher não. Ele costuma pensar dessa
maneira, que ele pode, ele pode sair, que não tem problema nenhum; agora se eu sair ele já
107

fica de orelha em pé. Se eu sair, se eu demorar, ele já fica muito chateado. Às vezes eu saio
para resolver qualquer coisa, vou à cidade comprar algo... se eu demorar, ele fica
perguntando por que eu cheguei àquela hora e tal, fica desconfiado, cobrando”.

“Ele chega do trabalho e, se eu não estiver em casa, ele fica reclamando. Diz que eu gosto
muito de andar nas casas, mas eu nem sou muito de andar nas casas, sou mais de ficar em
casa mesmo. Ele não entende mesmo! ele deve achar que é para eu passar vinte e quatro
horas dentro de casa. Eu me sinto bastante chateada! É mais por causa disso que
acontecem todas essas desavenças em casa”.

“Eu estou sempre em casa, cuidando de tudo, dos fazeres de casa, de criança... enche!
Dificilmente ele reconhece o que eu faço, dificilmente! Às vezes, ele diz que é assim mesmo,
dona de casa tem que ser assim mesmo. Eu pergunto se ele queria isso para ele: ser dona
de casa e mãe! Eu sonhava em ser mãe, em ter uma casa para cuidar, mas esperava que o
meu marido fosse mais compreensivo”.

Essas falas deixam clara a existência do que se reconhece, culturalmente, como

machismo ideológico, com a tentativa, dos parceiros dessas mulheres, de exercer controle

sobre as suas vidas e de delimitar os papéis que cada integrante da díade amorosa deve

exercer. Assim, o espaço da casa, o mundo do lar, é reservado para a mulher, e o espaço da

rua, para o homem. Esse aspecto parece ir ao encontro do que afirmam alguns autores,

como, por exemplo, Vaitsman (2001), acerca de ainda ser a mulher, apesar dos avanços

obtidos, a principal responsável pelas atividades domésticas e pelos cuidados com os filhos,

o que gera, muitas vezes, uma sobrecarga de trabalho. No último trecho citado, percebemos

a insatisfação de Fátima com a sua dedicação exclusiva ao ambiente doméstico bem como

com a falta de apoio e de valorização, pelo parceiro, do papel que ela desempenha, gerando

conflitos e desentendimentos que contribuem para o distanciamento da díade. Ela percebe a

busca de um trabalho remunerado como alternativa para amenizar os problemas no seu

relacionamento amoroso.

Assim, podemos pensar a permanência no sofrimento amoroso como a expressão

das desigualdades de gênero presentes no cotidiano dessas mulheres, que não conseguem
108

mais calar diante dessa situação, embora muitas vezes suas ações não coincidam com suas

reivindicações.

Observa-se com clareza, em diversos depoimentos, que, apesar das mudanças no

papel e na imagem da mulher, ao longo do tempo, como já assinalamos, ainda é difícil, para

os homens, aceitarem a emancipação feminina, dando a sua parcela de contribuição para

estabelecer uma relação mais igualitária entre o par amoroso. Na maioria dos depoimentos,

percebemos ainda que as mulheres não se sentem plenamente satisfeitas com a idéia de

terem suas vidas circunscritas ao âmbito da casa, principalmente se o parceiro não

reconhece o papel que desempenham ou mantém-se distante dessa realidade. Elas revelam

o desejo de satisfazerem outras necessidades no espaço público, além de terem um trabalho

remunerado. Podemos citar o exemplo de Isaura, que, apesar de ter um comércio no

ambiente doméstico, demonstra insatisfação em não poder expandir-se além das fronteiras

do seu lar, pois o parceiro busca controlar todos os seus passos, tentando mantê-la sempre

em casa. Assim, ela faz a seguinte revelação:

“Ultimamente, eu venho pensando em sair de casa, em ter coragem de fazer isso. Tenho
muita vontade de estudar... O que me impede de sair é o medo de descobrir coisas que eu
não quero descobrir. Eu não sei como é isso... não quero saber”.

Também é visível que Isaura reconhece o medo que tem de estreitar o seu contato

com o ambiente público, do qual se distanciou, ao permitir que sua vida fosse manipulada

pelo parceiro amoroso. Mantém, então, sua postura de defesa, evitando contactar com a

realidade, como costuma fazer em situações da sua vida amorosa, tais como aquelas em que

desconfia de possíveis traições:


109

“(...) eu vejo, mas sou cega, eu tenho que ser cega! Cega, muda e surda! é! para ver... para
eu viver!”

Embora expresse um grande desejo de ter o parceiro mais presente em sua vida,

centrando seus esforços na relação amorosa, Isaura, como vimos, também pensa em voltar a

estudar. Já Sofia, além de concluir o curso universitário, espera encontrar um trabalho com

o qual tenha afinidade e que supra todas as suas necessidades materiais. Laura demonstra

que gostaria de continuar trabalhando e estudando, expandir sua vida social, ter mais

contato com a família, enfim poder levar a sua vida sem preocupações em torno do

parceiro. Vera pretende resgatar a sua relação amorosa. Por fim, Elisa e Fátima falam na

retomada de um sonho profissional:

“Quanto ao meu futuro, meus projetos, eu não sei... Eu penso assim em me realizar
profissionalmente, porque o meu sonho sempre foi fazer Enfermagem e eu vou batalhar
para isso!” (Elisa).

“(...) eu tenho que acordar, não é? Eu estava muito parada... eu tenho que acordar! Eu
desisti dos meus sonhos, principalmente do sonho profissional... me dediquei muito só para
casa, para os filhos e para ele, mas o meu sonho era ter meu próprio emprego, mas agora
eu estou acordando e estou batalhando” (Fátima).

É interessante constatar que a maioria das entrevistadas revela a existência de

projetos, o anseio de realizar algo que possibilite crescimento pessoal. Isso demonstra

outras alternativas de emergência de sentido para as suas existências, sem que precisem

depositar na relação amorosa todas as suas expectativas de sucesso ou de fracasso, bem-

estar ou sofrimento. No entanto elas parecem não se apropriar de si mesmas, no sentido de

buscarem, efetivamente, outras possibilidades de auto-realização. Permanecem, então,

sofrendo na relação amorosa, talvez pelo medo da perda do sentido de suas vidas,

decorrente de um rompimento entre o casal. Sofia parece ter encontrado uma maneira de
110

caminhar rumo a uma melhor compreensão e elaboração do seu sofrimento e da sua própria

vida:

“Em relação a tudo que eu já falei, eu sinto que é bom falar, porque a gente falando a
gente vai tomando mais consciência. Eu, quando falo sobre as minhas coisas, às vezes eu
falo só, até para mim mesma, na rua, em qualquer lugar. Se você, alguma vez, me pegar
falando sozinha, no meio da rua, não é porque eu estou ficando maluca não, é para tomar
cada vez mais consciência da minha vida, do que eu estou passando e do que eu tenho que
decidir, do que eu tenho que definir. Então para mim alivia muito falar, eu me sinto mais
aliviada, eu tomo mais consciência do que está acontecendo comigo diariamente. Então,
mesmo que eu não tenha outra pessoa, em determinado momento, mas eu falo para mim, eu
falo só, eu acho bom falar”.

O trecho acima ilustra claramente que “a relação entre palavras e experiência

aparece aqui como uma relação direta – a palavra diz a experiência, a experiência chama

pela palavra” (Gendlin, 1973, p. 263). Assim, Sofia evidencia a importância de contar e

recontar a sua história, pois, à medida que ouve a sua fala, vai desvelando os aspectos

escondidos, resgatando-os, unindo-os e integrando-os, dando-lhes um contorno que faça

sentido.
111

6. Considerações finais

A constatação freqüente, em nosso cotidiano profissional, de queixas de mulheres

sobre a permanência no sofrimento amoroso gerou indagações que apontavam para a

singularidade da experiência aqui tratada, considerando-se os aspectos culturais e históricos

que pareciam permear tal experiência.

Esse processo de investigação partiu do entendimento de que com o objeto desta

pesquisa relaciona-se o self, expressão da subjetividade humana. Nesta perspectiva,

pudemos observar que a experiência investigada revela um modo de estar no mundo, o qual

envolve sempre a co-existência, o papel e a influência dos outros nos diferentes contextos

presentes ao longo da vida de cada mulher que foi entrevistada.

As narrativas revelam claramente a presença marcante de aspectos culturais e

históricos referentes ao papel social da mulher e ao seu modo de relacionar-se

amorosamente. Isso nos faz pensar que muitas das expectativas e cobranças presentes ao

longo da história ainda persistem, como se pode observar em várias falas das entrevistadas.

Estas evidenciam, muitas vezes, uma convivência conflituosa com tais cobranças e as

demandas mais recentes do papel feminino, fruto das conquistas que a mulher vem obtendo

no decorrer do tempo. Nesse sentido, vemos as dificuldades que as participantes desta

pesquisa encontram na vivência e conciliação dos diferentes papéis assumidos, sentindo-se,

não raras vezes, sobrecarregadas e insatisfeitas com a sua rotina de vida.

Muitas participantes também demonstraram insatisfação com a falta de

reconhecimento e apoio do parceiro bem como com a ausência de um vínculo amoroso

pautado na intimidade, cumplicidade e reciprocidade. Isso nos mostra a presença do


112

romantismo amoroso nas narrativas de tais mulheres, revelando a forte influência que ele

ainda exerce nos modos de ser e, portanto, de relacionar-se amorosamente das

entrevistadas. A esse respeito, observamos que a maioria das participantes nutria

expectativas em torno da relação amorosa, como as de felicidade, durabilidade, intimidade,

dentre outras que apontam para a necessidade de vivenciarem a realidade comum do casal,

de haver maior envolvimento emocional entre a díade. A relação amorosa, geralmente

representada pela instituição casamento, assume um lugar de destaque na vida das

entrevistadas. Elas demonstram um relativo aprisionamento aos valores e padrões de

conduta culturalmente transmitidos, agindo, comumente, de acordo com as expectativas e

demandas sociais. Assim, parecem distanciar-se da possibilidade de exercitarem a

construção de um modo diferente de relacionarem-se amorosamente e de conduzirem as

suas existências.

As renúncias, concessões, interrupções ou adiamentos de projetos, em prol da

melhoria dos relacionamentos são freqüentes nas experiências de vida dessas mulheres.

Porém o anseio de realização e expansão na vida pública permanece latente, principalmente

naquelas que não exercem uma atividade produtiva fora do ambiente doméstico. Contudo

algumas reconhecem que suas ações geralmente não se encaminham em tal direção. Esses

aspectos parecem denotar uma diferença de gênero no modo de viver o amor e contribuem

para a geração de desencontros e desavenças entre o par amoroso.

Observamos, ainda, em vários depoimentos, que o sentimento de culpa é crucial na

experiência de vida das participantes, sendo notória a força que ele ainda exerce no

aprendizado do papel social da mulher. Essa culpa parece estar relacionada a um outro

valor, o cuidado, que permeia o modo de ser de todas as participantes da pesquisa. Talvez

por isso, embora queixando-se dos parceiros, elas demonstrem sentir-se muito responsáveis
113

pelo bem-estar ou sucesso da relação amorosa e acreditem ter o dever de cuidar dos filhos,

da casa, do parceiro. Uma delas, inclusive, se dispõe a cuidar dos próprios pais, parentes

e/ou amigos, numa postura, muitas vezes, servil. O sacrifício ou abnegação, já ressaltados,

evidenciam-se com mais intensidade quando as mulheres assumem o papel materno ou

quando acreditam que outra pessoa precisa de seus cuidados.

Também nos chamou a atenção a existência de relações familiares, na maioria das

vezes, como mostram vários depoimentos, marcadas por vivências de abandono,

desvalorização e desrespeito à experiência das mulheres. Tais experiências parecem

favorecer a expressão de um modo de ser e, portanto, de relacionar-se amorosamente,

constituído ao longo do tempo e caracterizado por uma auto-estima baixa, sentimentos de

incapacidade, insegurança e medo. Nesse sentido, o outro ocupa um lugar privilegiado na

existência das participantes da pesquisa, que conduzem suas vidas alheias às diferenças

entre elas e os outros, no que diz respeito a suas necessidades, emoções, valores, atitudes e

demais aspectos da sua subjetividade. Talvez a relação amorosa represente, para essas

mulheres, de acordo com Critelli (1996), a fuga da inospitalidade do mundo, da

instabilidade, mutabilidade e fluidez constante que caracteriza a experiência humana da

vida. Tal relação pode significar ainda a busca pela garantia de segurança, amparo, sossego

e afeto, geralmente escassos na trajetória existencial da maioria das participantes deste

estudo. De acordo com tal entendimento, a idealização do amor-romântico e as iniqüidades

de gênero, anteriormente discutidas, parecem contribuir para reforçar essa busca pelas

mulheres.

Desse modo, não é de se estranhar que, ao pensarem as mulheres entrevistadas na

possibilidade de rompimento amoroso, surjam, em primeiro plano, as dificuldades e

obstáculos projetados no futuro, o medo da solidão, do desamor, de empunhar a própria


114

existência. Prevalecem a desesperança e o descrédito na possibilidade de construção de um

modo diferente de relacionar-se amorosamente e de dar sentido à própria vida. As mulheres

entrevistadas evidenciaram, ainda, diversas expressões e modos de perceber o seu

sofrimento, sendo comum haver a manifestação de vários sintomas físicos e psíquicos.

Percebemos que a maioria das participantes tem alguma meta que ainda pretende

alcançar e esta geralmente se refere ao aumento da escolaridade, ao exercício profissional,

enfim a uma perspectiva de maior ocupação do espaço público e expansão social.

É importante ressaltar que, embora se identifiquem aspectos “gerais”, percebe-se

com clareza a forma particular, singular, como cada uma das entrevistadas vive a sua

relação amorosa, com a sua história de vida, maneira de sentir, ver e existir no mundo.

Conhecer o modo como se constitui a subjetividade de quem vive a experiência aqui

tratada, considerando diferentes contextos, foi de suma importância para a compreensão

que pretendíamos obter neste trabalho. No caso específico das participantes desta pesquisa,

ficou evidente que o sentido atribuído a tal experiência é único e está permeado por

questões históricas e culturais ainda presentes na atualidade as quais envolvem a dimensão

de gênero e o ideal romântico amoroso.

A estratégia da narrativa mostrou-se pertinente para o nosso objetivo de apreender o

sentido atribuído à experiência de sofrimento amoroso permanente, na vida das

participantes. Cabe lembrar que seus depoimentos denotam a importância e a necessidade

de falarem livremente sobre suas respectivas experiências, expressando as emoções e

sentimentos que as acompanham. Desse modo, salienta-se a importância de um espaço

favorável à expressão e elaboração do sofrimento das mulheres que vivenciam essa

experiência na vida amorosa. Isso pode ocorrer através de aconselhamento psicológico,

acompanhamento psicoterápico ou da formação de grupos de apoio. Entendemos que as


115

instituições que fornecem atenção e apoio à mulher podem desempenhar um papel

fundamental no desenvolvimento de ações que considerem a complexidade do sofrimento

amoroso.

Chegar a este momento do trabalho reforça-nos a idéia de que o ser humano está em

constante devir, em permanente processo de construção da subjetividade e, portanto, da sua

maneira de perceber a si próprio e ao outro, do seu modo de estar no mundo. Isso, por sua

vez, nos faz pensar na mutabilidade e fluidez dos dados aqui obtidos, assim como nas

infindáveis possibilidades de interpretação desses dados.

Entendemos que a experiência em questão, vivida pelas participantes deste estudo,

existe num movimento incessante de mostrar-se e ocultar-se, não podendo, assim como o

fluxo da vida, alcançar qualquer fixidez. A dinâmica fenomênica do sentido de tal

experiência acompanha a existência de cada mulher, sendo vista, de acordo com Critelli

(1996), como o próprio sentido de ser (existir), cujo conhecimento é sempre relativo e

provisório. Partindo desse princípio, temos o desejo de que a compreensão do objeto deste

trabalho, aqui desvelada, seja importante e útil para os profissionais que lidam com tal

problemática, possibilitando um enriquecimento na sua intervenção, no modo de estar com

cada mulher que vive a experiência aqui tratada.

Acreditamos que o sentido dado por uma mulher à experiência de sofrimento

amoroso permanente só poderá ser desvelado por ela mesma, preferencialmente no

contexto de uma relação na qual ela tenha a possibilidade de entrar em contato com tal

experiência. A qualidade dessa relação é a condição primordial que facilitará ou dificultará

a emergência de sentidos, o que nos faz pensar que o profissional - pesquisador ou clínico -

assume uma parcela significativa de responsabilidade ao buscar adentrar em tal experiência.


116

Portanto, este deve sempre lembrar que essa experiência é também sua, que o toca, sendo

necessário desvendá-la em si e para si próprio.

Pensamos que a temática deste estudo, tomada sob o ponto de vista da mulher,

talvez seja compreendida mais amplamente se pudermos ouvir e conhecer o sentido que a

experiência amorosa tem para os homens. Esta pode ser uma sugestão para uma nova

perspectiva de investigação do sofrimento amoroso.

Cabe lembrar que a comunicação das informações desta produção será feita às

participantes e aos profissionais envolvidos com essa clientela, por meio de encontros e

publicações científicas. Assim, este estudo terá cumprido a sua função social.
117

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122

Anexo B

As Narrativas

Narrativa 01: Isaura, 41 anos

A minha história é uma história bem longa... É uma história que já vem... Sabe?

Então a cada dia que se passa, eu me descubro mais. E hoje, me incomoda! Isso me

incomoda, esse amor que eu tenho me incomoda! Eu me sinto sufocada, então esse é o

motivo pelo qual eu vivo... Tenho que procurar alguma coisa, algum tratamento, alguma

coisa para mim, porque não acho certo!

Esse homem com quem eu vivo há quinze anos, quando eu o conheci, ele já tinha

uma família... E eu sempre tive aquele sonho de um dia, ele decidir a vida dele, ver o que é

que ele queria da vida dele. Eu casei nova, tinha dezessete anos, com outro homem, e logo

eu tive um, dois, três, quatro filhos. O pai dos meus filhos não era carinhoso, ele não era um

homem como esse com quem eu vivo. Na minha cabeça, eu achava que homem não amava

a mulher, que mulher não era feliz, que casamento era para casar, ter filho e pronto, sabe?

Eu passei dez anos com o pai dos meus filhos e ele nunca disse que me amava, ele nunca

me deu nada! Então, assim que saí do meu casamento, eu conheci essa pessoa...

No meu casamento só tinha sofrimento, eu trabalhava para dar comida aos meus

filhos e ele batia em todos nós. A vida foi muito difícil nesses dez anos que a gente
123

conviveu, eu me revoltava quando chegava em casa e ele tinha batido nos meus filhos,

então eu brigava. Eu amava muito, os meus filhos! Eles eram a minha vida, eu tinha que

viver para os meus filhos, porque eles eram crianças pequenininhas, não tinham quem

defender eles, só tinham a mim e o pai. Este dizia que eu o traia, mas isso não acontecia...

Chegou um tempo em que eu trabalhava, comprava comida, mas não dava mais comida

para ele, aí ele não agüentou e foi embora. Isso acontecia porque quando ele trabalhava,

chegava a sexta feira, ele ia farrear e não comprava comida para dentro de casa. Ele

começou a beber muito e a ficar muito violento, mesmo! Muito, muito, muito! E... Ele

mesmo foi embora... Isso tudo durou dez anos.

Depois eu conheci A, o homem que vive comigo, então foi um mundo encantado

para mim! Porque no dia em que eu o conheci, fazia três dias que o pai dos meus filhos

tinha ido embora, e eu estava toda “lapiada”, pois ele tinha me batido. Antes disso, uma

colega vivia dizendo que ia me levar numa loja, para eu vender jóia. Eu ganhava pouco e

precisava mesmo, então fui com ela buscar mercadoria para vender, e quando eu cheguei na

loja com ela, ele me viu toda... “Lapiada”. Aquilo chamou a atenção dele, tanto é que no

dia seguinte a minha colega chegou para mim e disse que A, que era o dono da loja, queria

falar comigo, mas que eu tivesse cuidado, pois ele era muito namorador. Então eu pensei

que não queria aquele bicho velho nojento, aquele negro horroroso, Deus me livre! Eu tinha

pavor aquele homem! Eu dizia que Deus me livrasse de eu querer aquele homem! Então eu

fiquei com receio de ir lá, mas mesmo assim fui. Minha colega falou para eu ir e saber o

que ele queria comigo... Quando eu cheguei lá, ele disse que queria falar comigo em

particular. Começou então a conversar comigo, perguntou “tudinho”, e eu contei para ele

que tinha quatro filhos... Contei minha história para ele, aí ele perguntou se eu queria viver

com ele. Eu disse que tinha quatro filhos, mas ele me disse que eu podia ter dez filhos,
124

porque fazia dez anos que ele procurava uma mulher para ele, e essa mulher, ele tinha

certeza que era eu. Na época, ele tinha um montão de namorada! Eu era uma menina nova,

tinha vinte e cinco anos, e ele tinha trinta e um.

Ele disse ainda, que eu era uma menina que tinha sido criada no interior, tinha

casado nova, não conhecia o mundo... E realmente eu não conhecia o mundo mesmo, o meu

mundo era aquele ali, pequenininho. Fazia pouco tempo que ele tinha vindo morar aqui em

Natal e falou que ia me dar tudo que uma mulher tinha direito, que eu ia ser feliz, ia poder

criar meus filhos, e... Tudo, tudo muito! Ah! Quando ele falou isso, eu fiquei muito curiosa!

Ele disse: “- Certo Isaura, eu vou fazer você feliz, eu vou lhe dar tudo que uma mulher tem

direito”. Eu não pensei em amar, eu pensei nos meus quatro filhos... Eu trabalhava para dar

de comer a eles, o dinheiro que eu ganhava era um salário mínimo. Muitas vezes amanhecia

o dia, eu me acordava e olhava dentro de casa, não tinha nada, nada, eu não tinha nada

mesmo! Era bem... Pobrezinha, sabe? Muitas vezes eu ia na casa de uma irmã minha e

pedia para ela... Quantas vezes eu trabalhei numa fábrica e quando chegava na hora do

almoço eu não comia minha carne. Minhas colegas sabiam, então elas dividiam a carne

delas comigo, e a minha carne eu enrolava, botava no bolso, levava para casa e, no outro

dia, cortava miudinho para os filhinhos comerem. Com o meu dinheiro, não dava para

gente ter comida de manhã, ao meio dia e de noite, porque eu só ganhava um salário

mínimo... Eu vivia aperreada, mas sempre lutando, lutando, lutando para não faltar nada

para os meus filhos. E então foi isso, eu não podia perder aquela oportunidade, eu não fui

pensar em nada na vida, entendeu? Fiz!

Conversei com uma colega minha e ela disse que eu não tinha o que perder

mesmo... Ouvir isso foi só o que eu queria! Mesmo assim, eu disse que ele era horroroso!

Ela falou que com o tempo eu ia gostar dele... E pronto, eu quis. Ele marcou para ir resolver
125

uma coisa comigo, eu fui... E gostei, se eu não tivesse gostado, eu não tinha ido outra vez.

Quando eu vivia com meu marido, acho que ele nunca me beijou na boca, aí pronto,

aconteceu a primeira vez... E foi bom.

Eu não vou dizer que já comecei a gostar dele naquele dia, mas eu gostei de ficar

com ele, então a gente ficou se encontrando. Ele me convidou para sair uma noite e, como

eu não tinha roupa, ele comprou uma para mim. Assim, ele começou a dar tudo, comprava

as coisas para mim, dava dinheiro para eu fazer compras para casa... Eu tinha vergonha que

ele conhecesse minha casa, mas ele foi um dia de surpresa... E pronto, então ali ele

começou a me ensinar tudo que ele achava que deveria, do jeito dele. Eu vivi para ele, a

minha vida inteira eu me dediquei para ele, de corpo e alma. Era como se eu fosse a filha

mais velha dele, sabe? Porque eu só fazia o que ele queria... Tudo, tudo, tudo! Ele era o

meu mestre, até hoje ainda é, continua; já foi muito mais, porque hoje eu já respondo a ele,

hoje eu já grito ele, hoje eu já... Saio.

Eu comecei a gostar dele depois de quatro ou cinco meses, assim, ele era tão bom,

tão bom, tão bom! Eu achava que não tinha outro homem igual, eu achava que ele era o

homem perfeito, eu achava que ele era o homem... Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo!

Realmente, até hoje, eu não acho que ele é ruim, mas como eu disse, me sufoca o jeito

como ele me trata. Eu era muito feliz, feliz, feliz! Até hoje eu tenho certeza que nunca tive

momentos felizes como esses dez anos que passei com ele, eu passei dez anos muito felizes

mesmo! Eu não sei dizer se era certa ou errada aquela maneira de eu viver, mas eu fui feliz.

Eu vivia assim: só comia com ele, só tomava banho com ele, só fazia o que ele queria, tudo,

tudo, tudo! Se ele falasse que vinha tal hora para casa e não viesse, eu ficava chorando,

chorava feito um neném... Eu só passeava com ele, quem comprava tudo era ele, se eu ia

para o médico ele me acompanhava, só fazia o que ele queria, tudo, tudo. Passou-se um
126

ano, dois... Mas eu era feliz! Muito feliz! Ave Maria, eu acho que eu nunca fui feliz de

verdade como eu era com ele!

Nós começamos a trabalhar juntos e montamos uma confecção na minha casa. Foi a

época em que a mulher dele descobriu que ele me tinha (depois de oito meses de

relacionamento), veio na minha casa e mandou ele decidir com quem queria ficar. Ele disse

que queria as duas e se uma de nós não agüentasse ficar com ele, que o deixasse.

No dia em que ele me conheceu, falou que tinha uma família, disse ainda que

sempre avisava à mãe dos filhos dele que, quando encontrasse uma pessoa do jeito que ele

procurava, essa pessoa seria sua mulher. Então ele cuidou de mim e dos meus filhos, me

tirou do emprego, construiu a minha casa, fez um ponto de comércio no fundo do meu

quintal, onde a gente até hoje trabalha. A gente viveu bem, bem, bem de verdade mesmo!

Ele melhorou de vida cem por cento, isso porque eu o ajudava, me dedicava de corpo e

alma, a ele e ao meu trabalho.

Ele era Deus para mim, e hoje em dia eu fico pensando que Deus deve estar em

primeiro lugar na minha vida, mas primeiro era A. na minha vida, depois Deus. Ele era o

meu Deus! Eu fico pensando assim, como eu era... Como aquilo não me sufocava e como

me fazia feliz! Aí foi quando começou o meu sofrimento... Na época do “real” (moeda), a

vida da gente ficou difícil, começamos a trabalhar viajando e a cada dia as coisas pioravam.

Ele sofreu um acidente de automóvel, após dez anos de relacionamento, então decidimos ir

morar em São Paulo, e foi bem difícil a nossa vida... Começamos do zero, fomos construir

uma vida.

Durante dez anos ele dormiu três dias da semana comigo, e me dizia que a cada ano

ele aumentaria uma noite. Lá em São Paulo foi muito difícil, muito, muito mesmo! Foi

triste... A gente sofreu muito! Quando eu lembro de todo sofrimento que a gente teve, não
127

valeu a pena! Não valeu a pena o meu sofrimento, porque a vida dele sempre foi os filhos

dele, então para mim ele era Deus, e para ele Deus eram os filhos dele. Quantas vezes, na

época, dois dos meus filhos, que tinham catorze e dezesseis anos, chegavam no domingo do

trabalho e me entregavam o pagamento deles para eu fazer a feira e eu tinha que pegar

aquele dinheiro e dar para ele mandar para os filho dele. No dia seguinte, eu tinha que ir

cedinho, na casa das pessoas que eram do Norte, pedir comida... E era muito difícil para

mim... Só que naquela época, para mim, era normal, entendeu? Aquilo para mim não era

um sacrifício. Eu fazia qualquer sacrifício na minha vida por ele, fazia! Nesses dez anos

que a gente conviveu, os filhos dele estudavam nos melhores colégios de Natal às minhas

custas, porque eu era quem trabalhava por ele, já que ele ganhava pouco. Meus filhos

sempre tinham menos e isso para mim era normal... Ele sempre me dizia que tudo que ele

desse para os filho dele, também ia dar para os meus, mas isso não aconteceu, nem em

pensamento, imagine em sonho! Cheguei aqui e o tempo foi passando...

Lá em São Paulo, a gente construiu casa, melhor duas mil vezes do que a que a

gente tinha aqui... Naquela cidade, havia muitos conhecidos do Norte e eu comecei a

vender jóias; eu vendia nas ruas, em vários lugares, fazia um rodízio. Depois de um ano que

a gente estava lá, ele caiu em depressão... Se ele não falasse com os filhos descontava em

mim, brigava muito comigo, muito, muito! Assim, tudo o que eu fazia era errado, tudo o

que eu falava era errado, por tudo eu tinha defeito, e eu sofria muito, porque ele era meu

Deus... E era triste... Ele dizia para mim que quando a gente chegasse no Norte, eu ia

prestar contas a ele. Mas então até hoje eu pergunto a ele, o que eu tenho que pagar, se era

ele quem me maltratava, se eram meus filho que trabalhavam e davam dinheiro para eu dar

a ele... Eu queria que ele me explicasse o que é que eu fiquei lhe devendo.
128

Quando a gente estava para vir embora, eu disse a ele que se nossa vida não

mudasse, eu preferia ficar lá com meus filhos, mas aí ele dizia que sabia que eu não viveria

sem ele... É... Ele me ensinou a andar, tudo através dele, a só fazer o que ele quer, o que ele

dissesse estava dito... Ele podia estar mentindo e alguém chegar para mim e falar a verdade,

mas eu ia acreditar na mentira dele. Se alguém chegasse e dissesse que tal cadeira é preta, e

ele dissesse que era vermelha, para mim, ela ia ser vermelha, mesmo que eu visse que ela

era preta... Eu não discutia, aceitava tudo!

A minha vida, a minha adolescência, até os dezessete anos, quando eu casei,

também foi muito dolorosa... Minha mãe também me maltratou muito, assim... Antes de eu

casar, eu tive um namorado de quem eu gostava muito, mas o amor que eu tenho por A., é

maior do que aquele amor que eu tinha. Hoje eu vejo aquele meu amor, como ele é

diferente do de hoje, porque eu era inocente, hoje eu mostro para as minhas filhas como eu

era inocente... Minha mãe não queria que eu o namorasse, meu pai deixava e minha mãe

não. Ela dizia para mim que em Natal tinha o lugar das meninas perdidas, e se eu me

perdesse com aquele rapaz, eu ia morar lá e só sairia com dezoito anos. Eu acreditava no

que ela dizia... Esse meu namorado tinha muita vontade de fugir comigo, mas eu dizia para

ele que não. A gente namorava dentro do mato, bem longe... Antes, quando eu comecei a

crescer, assim, com uns cinco, sete anos, eu tinha que cuidar dos meus irmãos. Com dez

anos, eu não estudava; fiz até a quarta série primária.

Voltando a falar no meu relacionamento atual... Hoje, nesse relacionamento, eu me

sinto dessa maneira: eu vejo, mas sou cega, eu tenho que ser cega! Cega muda e surda! É!

Para eu viver! Para eu ter que viver! Porque se eu enfiar na minha cabeça que eu não sou

cega, eu não vou ser cega mesmo não! Mas eu tenho que enfiar que sou e sou mesmo! E

tem que ser, porque se eu botar na minha cabeça que eu quero uma coisa, eu quero, quero e
129

quero! Ninguém vai tirar mais da minha cabeça aquilo, então eu... Fico, eu tenho medo de

cair numa depressão, eu sei que se eu cair, não morro não, vou procurar ajuda, me cuidar,

procurar um médico, ou... Eu sei que eu não morro! Mas eu vou sofrer muito... Mais do que

eu já sofro.

Quando A percebe que eu fui para um médico escondida dele, ele briga muito

comigo, mas ultimamente ele não tem brigado muito, porque eu converso muito com ele,

eu mostro para ele: “- Filho, me deixa ir, porque eu não tenho amiga, eu não saio de casa...

Eu não vou escondida”. Eu participo de um projeto, no meu bairro, e eu digo a ele que as

pessoas do projeto não vão me colocar no mau caminho... Ele não quer que eu tenha amiga

porque diz que não tem futuro e que eu sou uma pessoa que, o que disserem para mim, eu

vou fazer. Eu digo que as pessoas não vão querer o meu mal, ninguém vai mandar eu fazer

coisa errada, mas eu vejo que eu acredito muito nas pessoas... Isso vem desde a minha mãe,

não é?

Eu gosto da minha mãe, não tenho o que falar dela, mas tenho mágoa de não ter tido

carinho da minha mãe... Assim, porque ela não costumava dar um abraço, ela nunca me deu

um beijo... Às vezes, eu tenho vontade. Falar nisso me deixa triste... Então, eu fico assim

pensando... Pra quê, eu lutar? Se esse é o meu destino... Esse que eu vivo. Eu fico

imaginando que se eu me separar de A, eu vou sofrer, eu vou viver dentro de casa assim,

não vou ter ninguém para esperar, para conversar... Eu tenho medo de ficar só, porque eu

não quero mais outro homem na minha vida, entendeu? Não penso em arranjar outra

pessoa, por quê? Para quê? Eu penso assim, que a minha vida vai ser tão sofrida, que vai

ser essa mesma... Sempre com sofrimento... Desde quando eu me entendo de gente que eu

sofro... Por que é que vai mudar? Então, se eu estou com A e está sendo ruim, mas já foi tão
130

bom, se eu me separar, se eu arranjar outro homem, não vai ser igual? Por que não ficar

com ele?

E o que mais me dói, o que mais me martiriza, me faz sofrer mesmo, acaba comigo,

é que eu imploro para ele se mudar para casa, digo que quero viver com ele, mas isso não

acontece. Ele diz que vai mudar, que vai ficar bom para mim, que vai fazer as coisas

direitinhas... Mas ele só promete... Ele procura dar do bom e do melhor ao povo da casa

dele. Eu vivo com esperança de que ele mude, mas eu sinto lá no fundo, no fundo, no

fundo, eu acho que não tem chance não. Ele tem ciúme de mim com meus filhos, diz que eu

dou a minha vida pelos meus filhos, mas eu digo a ele que ele está mentindo, porque eu dou

a minha vida por ele, e não pelos meus filhos!

Ele me tem como uma filha, e eu o tenho como pai. Hoje ele chegou e disse: “- Dê

um abraço em papai”. Eu respondi que se ele fosse meu pai, ontem ele teria passado o dia

comigo! Ele me trata assim, mas eu não me sinto filha dele, porque é como eu falo para ele,

que pai não deita com filha. Então eu não sou filha dele, ele me trata como uma filha, eu lhe

peço tudo, mas isso que eu faço, é de mulher idiota, eu falo para ele que não sou filha, sou

uma mulher idiota, o que eu sinto é que eu sou uma mulher idiota, uma mulher infeliz,

mulher mal amada e mulher revoltada! É o que eu digo para ele, é o que eu sou... E é

mesmo! Porque, de que adianta? Eu vou para cama com A., faço amor, me sinto uma

mulher feliz, realizada naquela hora, quando ele termina, vai embora; quando eu termino,

sinto vontade de deitar a minha cabeça no ombro dele e ficar abraçada.

Eu me vejo como uma mulher triste, é a realidade da minha vida... Dentro de casa

eu sou uma pessoa, de fora eu sou outra. Dentro da minha casa eu sou uma porcaria, eu me

sinto uma porcaria, me sinto um lixo, me sinto... Nojo! Eu sinto nojo de mim às vezes, você

acredita? Principalmente quando eu vou para a cama com A. Tenho nojo de mim... Sinto
131

ódio, revolta, sinto nojo de mim porque ele briga, briga, briga comigo, aí quando ele vem

falar comigo, eu fico melhor; melhora aquela coisa dentro de mim, sabe? Aquela coisa me

consumindo... Parece que a forma que eu encontro de botar tudo para fora, é ir para a cama

com ele, mas depois eu sinto uma revolta de mim, porque eu senti que aquilo ali aliviou.

Isso me deixa triste, eu não queria ser assim.

Eu nunca digo “não” para ele, em nada na minha vida. Não é que eu não tenha

vontade, é que eu não posso, ele não permite que eu lhe diga “não”. Eu o obedeço, na

minha casa a gente obedece a A mais do que os filhos dele, então desde que eu fui criada,

que eu baixo minha cabeça, e hoje faço pior. Eu penso hoje que não sou mais uma

adolescente, tenho quarenta e um anos... Engraçado, minha filha mais velha fala que eu não

me acho feia, mas que eu não gosto de mim, ela diz que no dia que eu aprender a me amar,

a me dar valor, eu vou deixar de ser obcecada por A. Eu fico só pensando nisso que a

minha filha diz, e eu fico triste, porque eu vejo que não reajo, eu acho que não sei reagir.

Na missa, o padre fala que a gente tem que primeiro se amar... E eu acho que eu amo mais

A do que eu, porque tudo para mim é ele. Ele diz que gosta muito de mim, mas eu fico

confusa, e eu digo a ele que se ele gostasse de mim, como eu o amo, se ele tivesse pelo

menos a metade do meu amor, fazia por onde me agradar, porque eu faço tudo para agrada-

lo. Aí ele fala que é porque o amor dele é diferente do meu, ele diz que eu amo de uma

maneira que ninguém no mundo ama ninguém. Ele diz que é porque eu só quero comer

com ele, eu o quero somente pra mim, eu tenho ciúme dele, de tudo, por tudo, mas eu não

tenho. Porque a vida dele, do portão para fora, não me interessa, eu falo para ele que nunca

vou permitir que exista outra na minha vida, porque eu já sou a outra e ainda vai ter que

existir outra? Eu não vou permitir nunca. Às vezes as pessoas nem comentam nada porque
132

eu não permito, não quero nem em sonho, imagine em pensamento, porque ou eu confio, ou

eu não confio, entendeu ?

Quando eu ligava, perguntando onde ele estava, ele dizia que eu queria controlar a

vida dele, que eu tivesse cuidado com ele, pois quando ele chegasse... Se eu sair com ele,

não falo na frente de ninguém, porque ele diz que eu falo errado, sabe? Ele diz que não tem

vergonha de mim não, mas ele gosta de se mostrar! Teve um dia que eu fui para o banco

com ele e tudo que o gerente me perguntava, ele quem respondia... O gerente perguntou se

eu era muda. Eu achei foi bom!

Ele diz que tem cuidado em mim, por isso não me deixa sair, mas é mentira,

mentira, é ciúme! Não sei também se é ciúme... Isso é safadeza! Como é que ele tem ciúme

de mim, se sai de casa de uma hora da tarde e só chega amanhã, no outro dia? Nem liga! Às

vezes sai na sexta, chega na segunda, e eu tenho que contar da minha vida, da sexta de

tarde, até o domingo de noite. Eu fico sem ter o que fazer em casa, ele sabe... Ele diz para

eu não sair, que ele virá no dia seguinte passar o dia comigo, aí eu fico em casa, passo o dia

esperando por ele... E ele não chega!

Tudo o que eu penso na minha vida, eu penso com ele, eu queria que ele vivesse

uma vida direito comigo. Antes a gente saia muito, hoje não... Eu queria viver com ele,

combinar tudo com ele; antes ele passava o natal e outras datas comigo, pelo menos

algumas horas, depois ia para a casa dele. Hoje não tem mais nem um pedacinho... Eu falo

para ele que ele só vive comigo por causa do trabalho.

Engraçado, eu tenho que dizer a ele tudo o que ele tem que fazer durante o dia:

aonde ele vai deixar mercadoria e aonde não vai, o que vai comprar... Eu sou quem digo

tudo, mas só com relação a trabalho, ele só fica perto de mim para falar em trabalho. Eu

fiquei o ano inteiro falando para ele vir dormir comigo, no meu aniversário; ele concordou,
133

mas no dia fez um verdadeiro show, ficou de mal de mim. No dia seguinte, de tarde, ele

chegou, me procurou para transar e “mãezinha” aceitou. Isto é o que mais me magoa, me

maltrata... Eu sempre estou disponível para ele e isso é o que mais me maltrata. O que mais

me preocupa é porque eu vejo que aquilo me fez bem, você acredita? Ele briga comigo

hoje, amanhã me procura, e eu tenho desejo, sabe? Eu ainda não descobri o que é que

acontece comigo... Por que isso? Por que eu me sinto dessa maneira? Isso me incomoda,

porque eu me acho uma mulher fácil, eu me sinto assim, eu não acho que essa é uma

maneira certa de uma mulher ser. Então um dia desses, eu vi uma palestra de um psicólogo

na televisão que dizia que as pessoas sempre têm uma coisa em que se segurar. Eu tenho

certeza que, no meu caso, é ir para a cama... O que está dolorido dentro de mim, sai, mas o

meu sentimento, sofre muito! Eu fico sofrendo, sofrendo mesmo! Isso ultimamente é o que

mais me preocupa... Por que eu sou assim?

Ultimamente, eu tenho perguntado: Será que se eu for para a cama com outro

homem, eu sinto a mesma coisa? Quando A ouve isso, fica com raiva, mas eu não estou

dizendo que vou, estou apenas comentando... Eu acho pouco ter (sexo) só uma vez na

semana, então eu digo para ele que quando uma pessoa, um casal se ama, não é para ter só

uma vez. Aí ele fala que é porque vive cansado, estressado, não sei o quê... Eu digo que lá

em casa a gente só briga por dinheiro, a gente não briga por amor. Eu cobro isso dele, ele

diz que eu brigo muito, mas eu só brigo por causa do meu amor, eu vivo lutando pelo meu

amor!

Eu me sinto bem quando estou conversando, desabafando... Mas, às vezes, eu fico

pensando que só converso e não ajo. Eu quero assim, ter sentido, que as coisas da minha

vida tenham sentido. Voltando à minha adolescência, eu lembro que a minha mãe me batia

todo dia, tinha vez que chegava a dar três surras em mim. Eu era a filha mais velha das
134

mulheres e tudo o que eu fazia dentro de casa minha mãe colocava defeito, me batia, ela

mandava meu irmão mais velho me bater também. A minha mãe me batia de pau mesmo,

quando ela me batia... Engraçado... Por exemplo, hoje tinha missa lá na rua, aí se minha

mãe me desse uma surra, ela tinha prazer de me levar para a rua, para as pessoas verem que

ela tinha me batido, porque ela não queria que eu namorasse aquele rapaz, que ele era filho

de “esmolé”. Ela dizia que no dia que aparecesse um rapaz certo para eu namorar, era para

eu pedir a ela, porque filha de fazendeiro tinha que casar com filho de fazendeiro.

Meu pai tinha boas condições financeiras, e eu tive que parar de estudar para cuidar

dos meus irmãos... Eu acho que a minha mãe não gostava de mim, porque todos os meus

irmãos estudaram, menos eu. A única filha da minha mãe que apanhou fui eu. Nós somos

em onze e quando eu nasci, passei seis meses, internada, tive sarampo, então acho que não

era para eu viver... Penso que eu não nasci para viver! Toda a minha vida foi de sofrimento!

Porque na minha casa, de sete filhas, eu sou a única separada. Eu fico muito magoada com

a maneira pela qual minha mãe me trata, mas eu vivo lutando pelo meu bem estar, não me

importo se ela gosta ou se ela deixa de gostar de mim! Isso é um problema dela! Quando

ela morrer, ela é quem vai prestar contas é ela, não sou eu. O que ela faz ou o que deixa de

fazer, isso aí não... Pronto, eu vivo lutando! Por mim e pronto.

Quando ela me batia, dizia que quando o meu pai chegasse, se eu contasse, levava

outra surra. E eu não dizia. Meu pai nunca deixou ninguém me bater. Ele é uma pessoa

“opiniosa”... Ou seja, o que ele disser está dito. Eu achava que o meu pai era bom, porque

minha mãe era quem mandava na casa... Ele nunca brigou com a gente, nunca bateu na

gente, meu pai nunca quis que a gente fosse para o roçado, meu pai queria que a gente fosse

para a escola. Quando ele ia à feira, no sábado, trazia tudo que a gente gostava... Minha

mãe nunca fez nada! Minha mãe nunca cuidou da casa, minha mãe nunca cuidou dos filhos,
135

ela só tinha filho para eu cuidar, eu fui quem criou os meus irmãos, fazia o café para o meu

pai...

Meus pais esperavam que eu casasse, e com filho de fazendeiro. O rapaz que eles

queriam que eu casasse, eu não gostava dele. Eu achava que era assim mesmo, achava que

a vida era casar... Eu sonhava em casar, ter uma filha bonita para mim, amar minha filha.

Eu dizia para minha mãe que quando eu casasse, queria ter uma filha e iria criá-la de

maneira diferente de como ela me criou. Aí pronto, quando eu fiz dezessete anos, vi mesmo

que não ia agüentar aquela vida que eu vivia, acabei com o meu namoro. Eu dizia para as

minhas colegas que o primeiro homem que aparecesse na minha vida eu casava... Eu queria

ir para bem longe da minha mãe. O pai dos meus filhos apareceu e eu casei mesmo, eu o

conheci num dia, no outro dia ele foi para São Paulo e, quando voltou seis meses depois,

nós casamos. E começou o meu sofrimento, porque com um mês de casamento ele foi

embora, e só depois de seis meses ele voltou, para passar quinze dias em casa. Ele dizia que

não era para eu engravidar, pois não gostava de criança... Quando eu engravidei, ele só

queria que fosse um menino, aí eu fiz promessa e tive um menino. Ele voltou quando o

filho estava com um ano e oito meses; quando ele chegou, já não me queria mais, tinha

outra mulher. Quando eu estava com seis meses de gravidez do segundo filho, ele me deu

uma surra e meu filho nasceu prematuro. Eu sofri muito...

Depois que eu fiz um tratamento psicológico de três anos, minha vida mudou muito,

a psicóloga me ajudou muito, muito! E hoje, esse amor que eu vivo, me sufoca, incomoda,

eu fico agoniada, me sufoca. A coisa que mais me preocupa, ultimamente, não é porque

sufoca, é porque eu fico desesperada! Assim, o meu sofrimento é tão grande, que eu não

tenho vontade de viver... Eu já tentei suicídio na época em que eu vivia com o pai dos meus

filhos, mas eu jamais tive vontade de tirar a minha vida. É uma coisa que não tem sentido!
136

Eu não faço isso mais hoje, mas tem dias que o desespero é grande... Assim... Ah! É uma

agonia! Sinto uma agonia aqui dentro do meu coração... Assim, me pergunto como eu vou

amanhecer o dia com aquele sofrimento. E eu não gosto muito de remédio... Eu durmo

muito. Quando eu fico triste, eu tenho vontade de dormir, tenho que dormir, eu tenho que

fazer alguma coisa, porque eu não agüento sofrer, eu não agüento sofrer mais, eu não

agüento, eu não agüento, eu não agüento! Porque na minha casa é o seguinte: eu só faço o

que ele quer, e eu não suporto... Eu não saio de casa, eu não tenho amiga, se alguém se

aproxima de mim ele me grita, eu vivo debaixo de ordem. Como eu já disse, a gente

trabalha junto, na confecção que tem no fundo do meu quintal, então ele arruma o serviço

por fora e eu tomo conta da parte de casa, das costureiras. Acontece que eu sei fazer o

serviço, mas ele quer me ensinar, sem saber, porque é para eu fazer do jeito que ele quer,

não é do jeito que eu quero, não é do jeito que eu sei! Ele não dorme mais na minha casa,

mas todo dia, entre 6:00 h e 6:30 h, ele chega na minha casa, vai embora depois do almoço,

e só volta no dia seguinte. Ele é quem recebe dinheiro, ele quem faz entrega... Tudo é ele.

Antigamente, eu me dedicava ao serviço de corpo e alma, tinha que trabalhar, eu tinha que

trabalhar! Hoje não faço mais isso, o dinheiro que eu pego é para comprar as coisas para as

minhas meninas, pois eu vejo primeiramente elas. Eu não saio nem de casa! Não preciso

comprar nada para mim! Para quê? Ele compra comida e, quando vai para o supermercado,

quer que eu empurre o carro... Agora eu não empurro mais, eu nunca mais empurro o carro,

pois não sou empregada dele, eu digo para ele levar uma empregada dele e botar para

empurrar o carro. Eu digo a ele que não sou sua empregada!

Lá em casa tem empregada, mas eu sou quem faço tudo para ele! Ele só come se eu

botar, ele só toma banho se eu der a toalha, se eu der a cueca, ele só senta à mesa se eu

arrumar, se eu botar a comida para ele, tudo, tudo! Mas, nesse sentido, eu não reclamo, só
137

me aborreço quando eu tenho que empurrar o carrinho no supermercado, porque quem

empurra o carrinho é o homem! Além disso, no supermercado tem que se comprar o que ele

quer, não é o que eu quero, ninguém lá em casa pode escolher! Nada! O que a gente quer

comer sem ele querer, come escondido. Eu compro, escondo e como! Nesses momentos eu

sinto revolta na minha vida, revolta de trabalhar, trabalhar, pegar em dinheiro, quer dizer,

vejo ele pegar em dinheiro, e a gente viver sob controle. Se eu pedir um real, tenho que

dizer como vou gastar, tudo que ele dá, tem que saber para quê é... Não tem sentido ter uma

vida dura lá em casa!

Hoje, meus filhos são grandes, minha filha mais nova já tem dezoito anos. Minhas

meninas foram criadas passeando em lugares bons, usando roupas boas, tendo tudo do bom

e do melhor! Mas eu sempre me matei para dar a elas, e fazia isso escondido. Meus

meninos já foram criados de modo diferente, sem tantas regalias. Quando eles reclamam, eu

digo que está bom, pois hoje eles sabem dar mais valor à vida. Minha filha de vinte anos

faz faculdade e a mais velha trabalha. Eu faço com minhas filhas tudo o que eu queria que a

minha mãe tivesse feito comigo. A não quer que elas saiam de casa, não quer que... Não

quer nada... Eu já briguei muito com ele pra que elas pudessem ir para uma festa.

Eu tenho que descobrir o que é que me faz continuar com ele, nesse sofrimento. É

esse o meu problema de hoje. É isso, o que eu tenho que descobrir... Eu evito sair escondida

dele, porque se ele descobre, briga muito comigo, fica sem falar, me trata mal na frente das

pessoas, tudo isso! Eu morro, eu morro, eu morro! Eu fico arrasada!

Eu não sei se é amor o que eu sinto por ele, é isso que eu estou tentando agora

descobrir, se é amor de verdade, o que eu sinto por ele... Mas... Eu acho que é amor... Só o

que me desespera, é porque ele cobra demais de mim e ele não me dá, ele não cumpre a

obrigação comigo. Porque eu nunca pedi para ele deixar a família dele, eu só peço para ele
138

dormir comigo, que ele volte a dormir comigo, que ele me deixe passear, me deixe comprar

as coisas que tenho vontade, que ele me dê dinheiro... Assim, nós trabalhamos... Sei que ele

vive aperreado, mas o povo da casa dele tem tudo, tem o direito de ir numa loja fazer

compras, de comprar presente para ele... No meu caso, é só se ele deixar. Eu tenho conta,

cartão, mas eu não compro... Isso me incomoda muito!

Eu só me sinto feliz com ele na cama. Eu brigo muito com ele... Eu assisto missa

todo dia, às 6:00 h da manhã, aí o padre disse que tem um santo que a gente faz qualquer

pedido para ele, e pedindo com fé a gente alcança... Então eu pedi a ele para deixar de

brigar com A. Este diz que eu falo muito, mas eu reclamo, porque se eu não falar, eu

morro! Fico desesperada se eu não reclamar com A, porque eu fico naquela ansiedade,

porque eu espero e ele nunca vem quando eu peço. Eu sou muito ansiosa! No dia que ele

vem, eu tenho que estar disponível para ele, com um sorriso bem grande... Quando eu falo

isso, não me sinto aborrecida, me sinto magoada, entendeu?

Ele diz que sou eu quem não entendo ele, mentira! Eu entendo, faço tudo o que ele

quer, tudo o que ele me manda fazer, eu faço; ele é quem não me entende. Mas eu não me

imagino sem ele, porque eu sofro muito! Em nenhum momento eu posso pensar nisso. Isso

não pode entrar na minha cabeça, porque eu fico muito triste mesmo! Por enquanto não

posso... Não posso, não posso, não posso, não posso! Nenhum segundo na minha vida eu

posso pensar sem ele...

Eu não sei se é verdade isso que eu estou descobrindo em mim, ultimamente, eu não

sei se isso é normal, eu fico pensando assim, porque eu sou muito carente, carente demais!

O que eu cobro mais dele é em relação à minha carência. Às vezes eu sinto carência de

abraçar, de beijar, às vezes eu não estou nem carente de transar. Ultimamente, eu tenho dito

a ele que vou para a cama só por necessidade, mas, no fundo, no fundo, não é isso. Eu vou
139

por amor mesmo! Eu faço de verdade mesmo! Tem vezes que quando a gente transa e ele

vai logo embora, eu fico indignada e digo para ele deixar o dinheiro em cima da televisão.

Ele fica magoado, mas me dá revolta mesmo! Eu digo para ele que ele vive comigo pelo

trabalho e para fazer amor comigo. Ele cobra muito de mim, que eu não sou a mulher de

amar, não vou para a cama com ele como eu ia antigamente... Mas como eu vou para a

cama com um homem que passa o dia inteiro me aborrecendo?

A mulher dele vive lutando para que ele me deixe e ele diz que nunca vai me deixar,

que eu sou a mulher da vida dele, que me ama, mas... Às vezes, quando a gente está

brigando muito, eu pergunto porque ele não me deixa, e ele responde que é porque eu

morro. Eu pergunto, então, se ele fica comigo por pena.

Muitas vezes, ultimamente, quando ele me faz sofrer, eu acho bom, sabe? Eu acho

bom, que é para ver se eu aprendo a viver. Porque eu acho que todo mundo sofre e aprende,

e eu não aprendo. Então tem vezes que quando ele me maltrata, assim... Eu sofro, eu sofro

muito! Nesses quinze anos de relacionamento, ele só me bateu uma vez. Quando eu falo

que sofro e não aprendo, eu quero dizer que eu preciso aprender a lidar com essa coisa de

só ter ele na minha cabeça. Sabe como é uma criança que tem que aprender alguma coisa?

É assim que eu sinto. Ultimamente, eu venho pensando em sair de casa, em ter coragem de

fazer isso. Tenho muita vontade de estudar. O que me impede de sair, é o medo de

descobrir coisas que eu não quero descobrir. Eu não sei como é isso... Não quero saber.

Narrativa 02: Laura, 40 anos

Eu conheci essa pessoa, com quem eu convivo há quase cinco anos... Já faz sete

anos do começo, mas cinco de conviver na mesma casa. Então, no início, eu via que ele
140

bebia, era aquela coisa assim... Eu não sabia como ia suportar, a que ponto ia chegar. Então,

é... Apaixonada, achava... Todo mundo falava que eu tivesse cuidado, que ele estava

bebendo, estava se excedendo e tudo. Então, quando ele foi se aposentar, ainda novo, com

quarenta e seis anos, e por estar em casa, os amigos todos beberem, ele ficou... Com a

continuação se tornou alcoólatra.

Na época eu não achava que ele bebia tanto, nem que a bebida dele prejudicava. Eu

me apaixonei por ele, porque ele é uma pessoa boa... Assim, ele tem um coração bom, é

uma pessoa que me dava atenção, talvez a carência em que eu me encontrava... Eu nunca

fui de ter muitos namorados, tive poucos. Ele foi o quarto, apesar da minha idade. Então,

assim, ele me deu atenção, ele... Ele foi o homem que eu nuca tive. Foi isso que me apegou,

ele tinha cuidados comigo, queria saber se eu estava bem, quando eu chegava em casa ele

ligava... Perguntava porque eu estava calada... Porque quando eu estava com ele, que eu

queria ficar calada, então ele ficava preocupado, queria saber se eu estava com algum

problema, se era alguma coisa familiar, se era alguma coisa financeira, não é? Outros não

tinham essa preocupação, aí fui me apegando! Ele bebia, mas eu não sabia a que ponto ia

chegar... Então minha família dizia para eu ter cuidado, que ele estava bebendo muito. E eu

não sabia que ele bebia muito, porque eu não o conhecia de muitos anos.

Nós moramos juntos, mas agora ele quer casar, apesar de eu não querer mais! Ele já

divorciou, desquitou, tudo, até a ex-esposa dele já tem outra pessoa... Ele era separado,

quando nos conhecemos, e morava numa pousada; foi lá que eu o conheci. E... Ele quer

casar agora e eu não quero, porque não, eu vejo que não dá certo! Casar para quê? Para

separar? Assim, separar que eu digo, no... No papel, não é? Tem todas aquelas coisas,

precisa de advogado... Para casar é fácil, mas para separar... Além do lado emocional assim,
141

também tem essa parte, que mexe com o estado civil, fica “desquitado”, então é melhor

deixar mesmo como está.

Na época em que o conheci, eu morava com dois irmãos, sou a segunda mais velha,

dos sete irmãos. Nós somos do interior e meus pais sempre moraram lá. Vim morar aqui

com quinze anos, na casa de umas tias, depois fui morar na casa de uma prima... Acho que

eu passava para outro lugar para não incomodar. Como os meus pais moravam em um sítio,

então tinha aquela dificuldade da gente morar na cidade vizinha, na casa de algum parente,

de algum amigo dos meus pais. Depois minha irmã mais velha veio para Natal e me

chamou para vim morar com ela; em seguida, veio um dos meus irmãos... Eu pensava em

vir para estudar, não era nem para trabalhar, porque meus pais nem faziam questão da gente

trabalhar, não era que a gente tivesse uma vida fácil assim, mas até que ele nos mantinha,

sem sacrifício. Assim, lá na fazenda, meus pais tinham as filhas aqui em Natal, em

apartamento alugado. Na época, era tudo mais simples.

Sempre me dei muito bem com meus irmãos, meu pai, minha mãe... É tudo na vida

a minha mãe! Era um relacionamento muito bom, um relacionamento que eles até hoje

falam, assim, que eu... Meu pai fala que eu não sou a filha dele, eu sou a mãe dele, não é?

Porque se trata da mais velha... Eu brinco com ele assim, quando ele diz que não está com

vontade de comer, eu digo que vou pegar uma chinela! Ele não disse que é meu filho? Ele

nunca implicou com namorado, ir numa festinha... Também eu fui muito caseira, nunca fui

só de sair. E quando eu vinha para cá, ele sabia que eu vinha para estudar, para... Trabalhar,

se fosse o caso. E eu batalhei até conseguir meu emprego, no Estado; ele até disse que não

precisava, que a gente não tava passando fome... Eu arranjei esse emprego por uma

indicação de político e, depois, fui incorporada, então eu trabalho na saúde, num cargo de
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nível médio, faço assessoramento. À noite, faço Serviço Social em uma faculdade

particular. Já fiz dois anos de Engenharia da Computação, mas não gostei.

Meus pais esperavam que eu me formasse, casasse com uma pessoa boa, um genro,

pois ele adora genros... Noras, netos... Esperava isso. Se orgulhar da filha! Mas ele tem

orgulho sim, acho que ele... Nunca falou nada não. Talvez ele não tenha, não seja o que ele

esperava, não é? Assim, da filha, desse lado assim... É... De eu não ter terminado já um

curso, dele não ter uma pessoa assim, um genro... Como ele esperava. Ele não reclama nada

desse meu relacionamento, ele até acha que eu sou casada no papel, minha mãe nunca

contou.

Eu sou mais ligada ao meu pai, mas eu também me dou muito bem com minha

mãe... Ela conversa até mais comigo do que com minha irmã. Aí, quando eu ligo para ela,

porque minha irmã acha que ela está sentindo alguma coisa e que só fala para mim, ela diz

tudo o que está se passando com ela. E a gente fica conversando... Eu não a recrimino, para

ela ficar mais à vontade e falar o que quiser.

Este ano, na semana santa, minha mãe me disse que eu sou uma pessoa muito boa e

tudo, mas que eu merecia coisa melhor... Disse que comentou com alguém que eu demorei

tanto a arranjar uma pessoa e arranjei uma pessoa que bebe! Agora eu acho assim, que eu

não tinha experiência com nada de bebida, nem amigos que bebiam, meu pai nunca bebeu,

minha família, meus irmãos... Bebida, cana, eu nunca vi ninguém lá em casa tomando cana.

Então eu acho que se eu tivesse tido alguma experiência vendo o meu pai bêbado, eu

jamais... Quando namorava, estava apaixonada, então eu acho que eu tinha me saído logo.

Eu ia saber que ali ia complicar, eu ia saber que ali não vinham coisas boas, mas aí o tempo

foi passando, eu fui vendo e fui me acomodando, achando que sempre ele ia deixar, ia

diminuir, ia mudar, tinham as promessas... Eu acreditei muito nas promessas... Ele dizia
143

para eu ter paciência, que era uma fase, que ele ia mudar, era só o veraneio passar, depois

era só esperar o mês de junho passar... Sempre tinha um motivo... E por aí se tornou uma

pessoa doente, não é?

O nosso relacionamento está muito difícil, eu estou me sentindo muito... Está

muito... Está muito pesado! Quem conhece a historia, diz para eu sair dessa! É uma

situação desgastante, muito pesada! Porque... Ele, como eu falei, é uma pessoa boa, aí há

uns dois anos, eu o internei, eu com a família dele, em um hospital psiquiátrico. Ele ficou

muito revoltado, passou uns vinte e cinco dias lá, no setor onde só tem a parte de álcool e

drogas. Nesse hospital, ele inventou que um doido tinha passado a noite tentando matá-lo e

me acusou de tê-lo deixado lá. Eu saí arrasada! Eu fui falar com a psiquiatra, com a

assistente social e elas disseram para mim que tudo aquilo foi ele quem criou, que não

existe aquilo não, que foi para eu tirar ele de lá. Aí chamou o auxiliar de enfermagem, que

disse que, quando eu saí, ele ficou rindo e falando que eu estava morrendo de pena dele,

pois eu tenho um coração bom, sou uma pessoa boa e ia tira-lo de lá! Depois que eu soube

disso, senti que ele tinha que ficar mais uns dias no hospital.

Ele bebe direto, então a gente nunca tem momentos de prazer... Hoje, pela manhã,

foi que ele não bebeu porque ontem minhas colegas me chamaram para fazer uns trabalhos,

então faz uns dois dias que eu venho preparando para ele não beber, ele não... Eu não

passar vergonha, mas com muito jeito, com muita... Como diz minha mãe, delicadeza. Mas

ele incomoda muito, assim, às vezes... Quando chega, quando eu estou aqui no quarto e

sinto aquele barulho, é ele fazendo xixi... Aí eu já corro e digo para ele não fazer aquilo. E

ele em pé, sem saber o que está fazendo... Eu me sinto muito desgastada nesse papel, até

porque assim, a família não... Também eu não tenho apoio, se eu procuro, eles não querem

saber, não ligam, não perguntam, não querem se reunir para internar... Eu não tenho apoio
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deles. É sempre assim, sempre! Eu cuido dele, e eu estou sendo a mãe dele também, não é?

Do meu marido. Porque quando ele faz xixi, aí eu tenho que tirar a roupa, quando eu não

posso dar um banho, aí eu passo um pano assim... Ou desodorante, alguma coisa, eu ponho

detergente, lavo os pés, pego uma bacia, um pano para ele... Eu já sei o que vai acontecer. É

muito desgastante e às vezes eu fico tensa, fico... Sabe? Choro e fico pedindo a Deus para

mudar ou então me dar força para eu resolver, para deixar, porque eu não sei resolver essa

situação! Tudo o que tem na minha família, por exemplo, quando tem uma situação difícil,

quando tem um irmão querendo se separar, quando tem assim, uma doença, quando tem...

As pessoas me procuram, então, eu resolvo! Resolvo a situação de todo mundo! Pego um

ônibus, vou para outra cidade, vou para um hospital em outra cidade conseguir exame,

resolvo de todo mundo, todo mundo, menos essa minha situação! Eu não sei resolver isso

aqui, não sei por onde começar e terminar; já botei as coisas dentro do carro, já o mandei ir

embora... Aí passavam assim oito dias, então me davam notícias de que ele estava barbudo,

estava fedido, sem tomar banho, que estava dentro do carro dormindo não sei aonde... Aí eu

ficava com medo de... De alguém matar, de... Sabe?

Eu imagino que a minha vida sem ele iria mudar, iria mudar para melhor, eu sou

consciente disso. Eu sei que eu estou me prejudicando, eu não me cuido, não é? Até a saúde

eu deixei de lado, pois estou com um problema, não posso engravidar, então não estou me

cuidando. Ás vezes até deixo de lado a minha família... Eu costumo até falar que eu mudei

de curso porque... Passei até um tempo também parada porque eu senti dificuldade, mas

talvez se eu tivesse tido o apoio dele, se minha vida fosse outra, talvez eu até tivesse lutado

para ter continuado no curso, já que eu estava quase na metade. Eu também não estava

tendo tanta dificuldade... Às vezes eu digo que deixei porque eu estava com dificuldade,

então uma amiga minha fala que eu deixei por conta da pessoa com quem eu convivo, pois
145

eu sou inteligente e eu me saia muito bem no curso. Uma outra colega disse que eu sabia,

me esforçava, mas eu me envolvi tanto, que eu deixei de viver! Eu penso que isso faz

sentido, é, eu penso, eu penso isso! Como até hoje eu estou, com medo de me prejudicar

novamente, de ser reprovada em alguma disciplina no meu curso atual, de...

Eu não perderia nada se estivesse sem ele, ia mudar para melhor, com certeza, o que

me faz continuar é... Assim, porque eu não vejo outra pessoa para tomar conta dele. No dia

que eu o internei no hospital psiquiátrico, depois de um ano eu me chateei, pus tudo dentro

do carro, disse a ele que não o queria mais, por conta da bebida e porque ele não quer se

ajudar. Aí ele disse que eu tinha toda a razão, que eu era uma pessoa muito linda, não por

fora, mas por dentro; disse ainda que ia me deixar viver e ia deixar até eu arranjar um

casamento! Aí quer dizer, aí ele foi, ficou dormindo numa cigarreira, num depósito onde

tinha barata, rato... Disseram que ele ficou imundo, que às vezes ele passava dois dias sem

tomar banho... O pessoal me ligava, dizia que ele não tomava banho, estava sujo, com um

dinheiro no bolso... As pessoas o roubavam, ele dava o carro não sei para quem, então... E

aí eu ficava perturbada, eu acho que eu ficava até mais perturbada do que quando ele estava

aqui me... Me enchendo! Ficava assim, com pena dele, sem ter quem cuidasse dele; até me

sentia culpada, porque... Aí quer dizer, ele bebe e tudo, mas pelo menos eu vejo, ele vem,

ele dorme na sala, na rede. Então, quando eu estou aqui, que vou dormir, aí vou lá, ver se

ele está deitado na rede, dormindo... Aí eu durmo a noite todinha... Como se fosse a mãe

vendo o filho em casa fora de perigo.

No inicio desse meu relacionamento, eu não evitei filho, passei uns seis meses sem

evitar, depois eu fiquei com medo de engravidar e comecei evitando. Eu comecei querendo

ter um filho, depois... Aí ele ficou bebendo, eu fiquei com medo, assim, por conta da minha

idade, medo de ter um filho com problema, morro de medo! Eu tinha trinta e seis anos
146

quando a gente começou a morar junto. E agora, com o diagnóstico do médico ontem, não

vou poder, vou fazer cirurgia, aí não vou ter mesmo! E eu não ia ter mesmo não, dele não,

nesse estado não dá, até porque a gente não tem muito... Não tem... A gente não tem uma

vida sexual ativa não, desde o ano passado. De lá para cá, quando ele queria, eu não queria,

porque também ele tinha bebido, ficava sem tomar um banho, estava bêbado e eu não ia

passar... Com tudo que eu passo, eu não ia passar por isso aí... Eu ia me sentir péssima!

Quando existia (sexo) era bom, mas com a bebida e tudo, já... Já é muito... Não dá não.

Quando ele me procurava, eu falava que não, enquanto ele beber, e hoje ele é consciente,

que se ele não deixar de beber, não vai existir mais nada, não dá para encarar não!

É... Eu nem sei o que sinto por ele hoje, eu acho que eu... Eu quero o maior bem a

ele, eu não sei se amo ou se não amo, não sei... A única coisa que eu sinto assim, é que eu

não quero que ele fique abandonado, até se fosse o caso dele não estar comigo, porque está

me prejudicando muito. Eu queria resolver, o que eu queria mesmo, era não estar mais com

ele, era estudar, era cuidar da minha mãe, dos meus pais... Sábado e domingo, ir para a casa

da minha irmã e voltar na segunda... Queria, às vezes, ir da faculdade para a casa da minha

irmã... Nas férias, passar o mês todo na casa dos meus pais, no interior, como eu fazia

antes. Eu me privo disso tudo para ficar cuidando dele. Passei o mês de férias e não fui ver

os meus pais... Eu falo todos os dias, por telefone, com a minha mãe, falo pouco com meu

pai, até porque ele às vezes não escuta bem. Então minha irmã ligou esta semana e disse

que o meu pai pediu para os filhos não esquecerem dele, e que a gente fosse lá mais vezes.

Quer dizer...

Eu não sei que necessidade é essa de cuidar dele (parceiro), se nem a família se

importa; já pensei em ir para uma psicóloga, assim, para mim... Como eu falei... Eu não sei

resolver minha situação! Eu tenho vontade de deixar ele, mas eu queria deixar ele bem...
147

Se, por exemplo, alguém disser que ele arranjou uma pessoa, que ele vai estar bem, está

ótimo! Porque eu não queria ver ele jogado; ele bebe e, quando chega aqui, tem uma

alimentação, toma um banho, tem onde dormir, numa rede limpa... Não está arriscando a

vida. Apesar dele dirigir e, com isso, se arrisca e arrisca a vida de outras pessoas, mas é isso

que eu penso, é a decisão que eu tenho que tomar. É isso que eu falo que eu não sei como

resolver, eu quero resolver, dar um ponto final e pronto.

Eu acho que se ele deixasse de beber, eu nunca ia pensar em deixar ele, porque ele é

uma pessoa boa, ele não é uma pessoa má, sabe? Aí hoje eu conversei com ele, falei do

meu problema de saúde, falei da bebida... Reclamei que quando eu vou para a faculdade,

ele fica... Às vezes ele fica debochando: “-Ah! E você vai para a faculdade?”

Ele é aposentado e a despesa aqui é muito pouca, porque este apartamento é meu, já

era meu, é quitado, tem um condomínio que é pouco, luz, telefone e alimentação... O gasto

é muito pouco, porque eu almoço na cidade todos os dias, janto fora, pago o meu almoço e

o meu jantar. Sábado e domingo eu sempre faço alguma coisa, na semana eu também, eu

deixo algo... Assim... Para ele... Que ele gosta de caldo, eu faço assim, uma “carninha” com

caldo, ele toma, às vezes não toma, aí eu jogo fora, às vezes jogo muita comida fora. Ele

contribui com as despesas, mas ele está apertado financeiramente, usando cheque, quando

ele entra no cheque especial, eu já evito dele mexer, apesar dele mexer no cheque para

beber... Sabe? Ele tira o dinheiro do banco, põe na carteira e leva uns três dias para acabar;

ele empresta, dá às pessoas. Quer dizer, enquanto eu economizo numa escova, numa unha,

ele dá para outras pessoas, aí... Também isso aí... Aí eu fico chateada. Até quando ele bebe,

se eu reclamar, ele diz para a pessoa a quem ele deu dinheiro, que eu não gostei porque ele

fez isso. Faz vergonha demais, não é? Eu não preciso do dinheiro dele, nunca precisei.
148

Tem pessoas que até acham que eu estou com ele porque ele tem dinheiro, que ele

paga a minha faculdade... Teve uma vez até que eu falando que esse mês eu nem paguei a

faculdade, uma pessoa disse que achava que era ele quem bancava, e pensava que eu não

era besta assim não. Aí eu me sinto... É péssimo isso aí! Eu tenho a consciência...

Se a gente se separar, eu nem penso em arranjar outro, eu sempre penso que saindo

dessa complicação que eu... Disso aqui que eu arranjei para a minha vida, que só fez

complicar, eu jamais tenho outra pessoa. Eu acho que não ia... Não ia dar certo. Eu não

penso em arranjar outra pessoa, porque eu acho que... Eu tenho medo de não dar certo... É

tão difícil relacionamento! Eu achava que esse ia dar certo, mas não deu.

Antes de morarmos juntos... Ah! Eu pensava que ia ser muito bom, que a gente ia

para o interior passar férias, que a gente ia crescer junto, que a gente ia ter uma vida, ter um

filho, e estar... Podendo fazer nossas vidas, estar crescendo, não é? Crescer no lado

profissional, crescer no lado... Ter uma vida, somar. Somar, não é? Participar dos

problemas. Eu não tenho com quem conversar, quando eu chego em casa com um

problema, o problema é meu e acabou-se, se eu não me sair, não vou contar com ninguém.

Com ele, eu não conto, pois se ele estiver bom, vai entender, mas duas ou três horas depois,

ele vai condenar, recriminar, debochar... Ele me ofende com palavras e eu fico calada, por

causa dos vizinhos, então aumento a televisão, isso de meia noite, uma hora da manhã, para

ninguém ouvir. Ele age como se estivesse certo e tudo bem, sabe? Eu não discordo dele,

para evitar brigas, ligo a televisão e o deixo falando sozinho. Só não quero baixaria!

Quando eu estou dormindo, ele vem e liga a luz do quarto, se eu estiver assistindo a

televisão ele vem e desliga a televisão, aí volta... Uma vez ele chegou no quarto e disse que

ia quebrar a televisão, aí eu disse para ele não quebrar essa televisão, pois é minha e tudo o

que tem aqui fui eu quem comprou; por isso ele não tem o direito de quebrar nada. Mesmo
149

assim, ele disse que ia quebrar, então eu fui para perto da televisão e disse que se ele

quebrasse a televisão, iria embora naquele instante. Aí ele ainda empurrou a televisão,

depois adormeceu e, no outro dia, quando ele acordou, já estava tudo perto dele... A roupa

todinha. Desci, pus no carro pela terceira vez, mandei ele ir embora; depois disso ele

voltou, mas nunca mais falou em quebrar nada! Nesse dia, em que eu o aceitei de volta, os

amigos ligaram antes, dizendo que ele estava só, abandonado... Eu disse a ele (parceiro)

que só o aceitava se ele fizesse um tratamento, que eu ajudava se ele fosse para o “AA” ou

para o “CAPS”... Ele disse que aceitava ir para a reunião do “AA”, e eu falei para ele ficar

na nossa casa de praia, mas ele pediu para ficar só naquele dia, aqui. Aí pronto, ele já me

conhece... E ficou.

Eu tenho muita dificuldade de dizer “não” para as pessoas... Eu acho que o “não”

para mim quase não existe. Eu sempre tive essa dificuldade, às vezes eu até resolvo uma

situação para evitar dizer “não”, não é? Às vezes até me custa caro esse sacrifício, me

sacrifico, agrado... Tenho a necessidade de agradar. Às vezes, isso nem me faz bem depois,

mas outras vezes, me faz também, porque eu não faço nada com má vontade não. Falando

nisso, muita gente assim, diz que eu sou uma pessoa boa e tudo, só sou ruim para mim.

Tem ainda o lado da minha família, que não sabe disso tudo que eu passo, isso que

eu falei aqui, minha família não escuta nada disso de mim não! Se minha irmã vier aqui, eu

disfarço, brinco... Ela não sabe nada disso não, que ele faz xixi, faz isso... Ela soube uma

vez, porque minha mãe estava aqui e ele fez à noite, no dia em que a minha mãe chegou;

acordou com o xixi! Ela disse para, pelo amor de Deus, eu não falar nada, para não ter

briga! E ele ficou perguntando o que eu estava limpando, que mania de limpeza era essa...

E eu calada, disse para ele não se preocupar, porque se um não quer, dois não brigam. Aí

ele ficou bem calminho, mas no outro dia, minha mãe disse que ia para a casa da minha
150

irmã, porque ela podia ficar com ciúme... Aí ela foi para lá, mas ela foi por conta disso,

não é?

Eu acho que cresci com a expectativa de agradar as pessoas, aos meus pais, é! Eu

escondo muito isso, eu não levo mais meu marido para o interior, porque eles iam sofrer

muito, sabendo dessa minha situação... Aí é melhor sofrer sozinha, porque pelo menos é só

uma pessoa. Eu dou meu jeito... Até resolver, não é? Eu estou assim com muita fé de

resolver, sabe?

Eu tenho uma sobrinha que gosta muito de mim... Ela tem dezoito anos e diz que

não sabe como eu agüento essa situação, que eu não mereço isso, pergunta se eu não me

envergonho de estar com ele e até diz que, se eu não fizer nada por mim, faça por ela. Ela

escreveu uma carta que diz assim, que se Deus não me deu a maternidade, foi porque esse

papel era para ela, que ela era minha filha! Aí ela é louca para passar assim, quinze dias

aqui, passar um mês, ficar... Ela veio há alguns dias e disse que, se tivesse dinheiro, dava

esse apartamento para ele, só para a gente não ficar mais aqui. Dois dias depois que ela

chegou, ele entrou bêbado em casa e fez xixi com roupa e tudo, no banheiro que eu tinha

terminado de arrumar. Minha sobrinha perguntou se era essa a vida que eu estava levando...

Aí quando eu vi o estado do banheiro, meu Deus, não sabia nem como ia começar a limpar!

Ela falou umas coisas, chorou e no outro dia foi embora. Eu fiquei péssima, péssima! Nessa

hora, até o pastor da igreja ligou, então eu contei e ele me disse para orar, pedir a Deus,

disse que eu tinha que mudar minha vida. Minha sobrinha ficou muito sentida, eu fiquei

muito preocupada com ela, quer dizer, não foi nem pelo que eu passei não, foi o que ela

sentiu! O que eu passo, eu nunca dou muita importância, sempre acho que posso estar

suportando. Eu digo a mim mesma assim... Não, eu... Não morro não... Passa!
151

O que fica de tudo o que eu já falei é... É... Eu desabafei! Eu quase nunca converso

com ninguém, meu marido é a única pessoa com quem ainda falo alguma coisa, não falo

para a minha família, como eu já citei, nem para a família dele. Ele nunca foi violento não,

mas um dia desses, eu disse que as minhas colegas vinham para estudar e que ele não

fizesse xixi, porque se não, eu ia interná-lo. Ele olhou e disse que, se eu o internasse,

quando ele saísse de lá, ia me matar. Ele nunca tinha tocado nisso, e eu senti assim, que já

chegou no ponto final, que não tem como isso ir mais para frente assim, não é? Ele falou

isso para intimidar, porque eu acho que ele não tem coragem não... Eu não sei, ele falou

isso com medo, porque ele ficou apavorado... Depois eu toquei no assunto, ele disse que me

matava era de amor!

Falando nisso, agora, eu me sinto perdida, sem ter como, sem tomar uma posição,

sem resolver nada na minha vida, sem ter coragem de resolver isso. Eu não tenho como...

Eu não sei resolver essa situação! Talvez até se fosse outra pessoa, fosse alguém meu,

fosse... Eu já tinha achado uma saída, com certeza, sabe? Às vezes, as pessoas falam que

ele tem uma família grande, tem uma boa casa na praia, ele pode vender e comprar um

apartamento; ele tem onde morar, ainda tem uma aposentadoria que é boa... Ele gasta toda

com cana, mas ele tem! Ele tem dois filhos do primeiro casamento, que só o procuram

quando querem dinheiro; ele paga a pensão em dia, não tem esse negócio de dizer que bebe

e não paga... Ele é muito bom pagador, não compra nada fiado, não é “amarrado”. Eu penso

assim, que se eu mandar ele embora, depois de tudo o que ele já passou e se ficar sujo,

jogado, dormindo dentro do carro nas ruas... Aí vão me falar, aí pronto, eu fico perturbada

mesmo. Eu queria assim, vender a casa da praia, comprar um apartamento, não é? Se ele

vender, vai gastar o dinheiro todinho, entendeu? Vai findar gastando, e não vai ter onde ele
152

morar, mas ele ainda tem a casa. Eu digo para ele vender a casa, comprar um apartamento e

colocar no nome dele, porque eu não vou querer a casa dele.

A dificuldade que eu acho é devido a isso aí, que eu não sei resolver, então eu acho

assim, que eu estou me ajudando se eu deixá-lo, se eu resolver minha vida. Eu tenho

vontade de buscar uma ajuda psicológica para mim, mas eu não tenho ânimo para procurar

ajuda para mim, sempre deixo para depois. Até assim um médico, eu sempre deixo para

depois, tudo meu é para depois, sempre acho que depois dá um jeito, depois vê como é que

fica, depois... Com o tempo... Eu não tenho assim, é tanta amargura, que não... Às vezes eu

tenho amargura de não... De levar essa vida... De às vezes as pessoas dizerem que querem ir

lá em casa, e eu dar uma desculpa, dizer que não estou em casa, que vou chegar mais tarde,

vou para a casa da minha irmã, é... Sempre assim, mentindo, de qualquer maneira. Essa

amargura começou depois disso aqui, não é? Dessa relação! Eu não era assim não! Eu

sempre tive os meus amigos, nunca fui de festa, mas sempre saía... Eu e ele não vamos para

lugar nenhum, a gente não vai a um cinema, a gente não vai a um show... Quando eu estou

na faculdade, vejo logo a hora de voltar correndo, porque eu não sei o que é que vou

encontrar quando chegar aqui. Eu percebo que me aprisionei, é... Tem duas amigas minhas

que moram aqui, uma delas já me chama de mãe, aí chama ele de irmão, sabe? Ela fala que

eu não estou nada bem, que preciso resolver isso, tomar uma posição!

Eu nunca tive muita vontade de ser mãe, mas eu adoro criança, eu gosto muito do

povo, assim das pessoas... De agradar, de cuidar, por isso talvez me vejam como mãe. Eu

tenho até outra colega, que ela está grávida (eu sou a mais velha da turma), então ela vai ter

uma menininha, eu fui até testemunha do casamento dela, aí eu digo que vou ser avó, não

sabe?
153

Narrativa 03: Fátima, 32 anos

O meu relacionamento é complicado, do jeito que está é um problema, não dá para

continuar assim... Meu marido é muito incompreensivo, muito na dele, acha que tudo é só

para ele, só pensa no lado dele. Não me ajuda com as crianças, não é homem de sair de casa

com a família... Anda sozinho! Eu acho que o meu problema todinho, meu estresse, minha

agitação em casa, começa logo disso.

Ele não é compreensivo, não vê o meu lado, só o dele, acha que basta apenas botar

as coisas dentro de casa... Ele acha que é só isso! A gente precisa de lazer, sair... Outro dia,

fomos ao interior e ele queria sair sozinho, quando eu disse que também ia, ele desistiu...

Quer sair sozinho! Ele não quer sair comigo, nem com os filhos. Eu sei que ele não tem

tempo, mas de qualquer maneira, se ele quisesse, sobrava um tempinho. Ele trabalha muito,

mas, mesmo assim, sobra tempo para ir à praia, já que não se gasta tanto indo à praia.

Eu me sinto chateada por causa disso, devia ser diferente, eu vejo casos diferentes...

Famílias diferentes, que trabalham, mas no final de semana ou em um feriado, saem com as

crianças, e ele não faz isso.

A gente se conheceu há uns doze anos atrás, em uma festinha no interior. Como ele

trabalhava no Rio de Janeiro, nessa época, teve que ir embora, ficou sem se comunicar e

voltou depois de um ano, aí a gente “ficou” novamente... Começamos então a namorar e,

depois de um ano, nos casamos.

Ele era diferente no início, era mais amoroso... Depois que nasceu o primeiro filho,

logo depois do casamento, pois eu casei gestante, foi que começou... Depois veio o segundo

filho. Ele diz que não sai com os filhos porque dá trabalho. Dificilmente ele sai, mas,

quando sai, já se chateia, não tem paciência, diz que se é para sair e ter raiva, ele prefere
154

ficar em casa. A gravidez não foi o motivo pelo qual nos casamos, pois o casamento já

estava programado. Eu tenho dois meninos, um com dez e outro com quatro anos.

Quando eu conheci o meu marido, já tinha namorado outros rapazes, mas não foram

namoros profundos como com ele. Eu esperava ter uma vida conjugal boa, nunca pensei

que seria assim... Tantos obstáculos, tanta... Indiferença! Não pensei que fosse assim,

pensei que ia sair junto, cuidar dos filhos junto, tudo junto. Também esperava que ele fosse

mais compreensivo, mais companheiro. Ele é taxista e é um ano mais velho do que eu.

Eu estou sempre em casa, cuidando de tudo, dos fazeres de casa, de criança...

Enche! Dificilmente ele reconhece o que eu faço, dificilmente! Às vezes, ele diz que é

assim mesmo, dona de casa tem que ser assim mesmo. Eu pergunto se ele queria isso para

ele: ser dona de casa e mãe! Eu sonhava em ser mãe, em ter uma casa para cuidar, mas

esperava que o meu marido fosse mais compreensivo.

Eu cheguei a concluir o segundo grau e, no ano que terminei, me envolvi com ele...

Engravidei e parei de estudar. Quando eu tinha só um filho, passei um período trabalhando

no comércio, como vendedora, mas foi pouco tempo. Eu gostei e estou até batalhando por

um novo emprego, para ver se a situação melhora, pois assim eu saio mais, não vou ficar

tanto em casa.

Às vezes, meu marido diz para eu arrumar um trabalho... Vive repetindo isso! Aí,

fica chato... É muito melhor trabalhar, para eu não esquentar com essa situação. Não tem

com quem deixar as crianças, mas agora que o menino mais novo também já está

estudando, eu posso batalhar qualquer coisa para mim... Para ter o meu também. Ele não é

contra eu trabalhar, o que ele faz é usar o fato dele trabalhar para passar em rosto, porque

quando eu quero qualquer coisa e às vezes ele não dá, eu fico reclamando e ele fica me

mandando trabalhar. Diz para eu arrumar qualquer coisa, que eu procure, que eu vá ganhar
155

o meu! Eu fico bastante chateada quando ele fala isso, porque eu sei que as coisas estão

difíceis, mas não precisava ele ficar falando essas coisas. Fico bastante chateada!

Eu queria que ele fosse compreensivo, entendesse, falasse com calma, que ele

explicasse, mas às vezes ele se estressa logo, é muito estressado também. Como eu também

sou, o negócio complica, porque quando um é mais calmo e o outro é mais seco, cada um

acalma o outro, mas duas cabeças quentes, nunca se entendem, só dá confusão.

É um relacionamento que só tem mais perturbação, tem bastante, perturbação tem

bastante. Não sei o que acontece, se é o dia-a-dia, que dificilmente não tem uma discussão

em casa, dificilmente! Às vezes, ele está trabalhando o dia inteirinho, e quando entra em

casa, acontece uma discussão, por qualquer motivo! Uma discussãozinha, às vezes até

boba, sem importância, mas acontece.

Ficar assim, nesse relacionamento... É triste, mas eu penso assim... Às vezes eu

penso assim... Às vezes eu penso em largar e ás vezes eu penso que seria pior. Eu penso

assim, na dificuldade, no que eu vou passar, quer dizer, eu já tenho dois filhos, às vezes eu

penso que seria pior sem ele... Mas eu acho que também gosto dele. Para eu ficar esse

tempo todinho e agüentando, passando por esses momentos, eu acho que só posso gostar.

Eu penso que, se eu nunca sentisse qualquer coisa, eu não estava mais nesse

relacionamento. Tem vezes que ele me procura para ter relações sexuais e eu não tenho

desejo, fico pensando que estou errada em não querer mesmo assim, porque ele pode

procurar em outra o que eu não estou dando em casa. Desde o início do casamento que eu

percebo que sou um pouco fria, dificilmente sinto prazer... Ele reclama disso, diz que podia

ser diferente, mas eu nunca falei sobre isso com ele. Não sei se é problema psicológico...

Às vezes ele está cansado... Eu também estou tomando anticoncepcional e está me fazendo

mal, tem o estresse... Não sei se essas coisas influem.


156

Com relação à minha família, meu pai é separado da minha mãe, e morei mais

tempo com minha irmã mais velha, do que com os meus pais. Eles moravam no interior,

então quando minha irmã veio morar aqui, eu vim com ela. Na época eu tinha treze ou

quatorze anos e morei muitos anos com ela, mas sempre tinha contato com meus pais. Eu

não sei porque eles se separaram, mas meu pai é mulherengo, vive até hoje com uma

mulher mais nova do que eu. Foi para ficar com ela, que ele largou minha mãe e a outra

mulher com quem ele também tinha um relacionamento de muitos anos. Eles têm um filho

um ano mais velho do que eu, e, com minha mãe, meu pai teve quatro filhos.

Voltando a falar sobre o meu casamento, já faz muito tempo que eu venho passando

por isso tudo, e tenho esperança que melhore. Quem sabe quando os meninos crescerem...

Eles já vão poder entender melhor as coisas, o maior já é mais compreensivo, o outro ainda

é pequenininho. Eu espero um futuro melhor, tenho essa esperança.

Meu marido não tem muita paciência para educar, para cuidar das crianças, então

muitas discussões partem disso... Ele não entende que os meninos são crianças, já vai com

agressão, para bater, aí eu começo a reclamar, aí começa! Às vezes sou eu quem bate neles,

então começa... Dificilmente a gente conversa, a gente fala que podia ser diferente, mas é

difícil... Ele diz que esse é o jeito dele, que ele não sabe ser de outro jeito. Aí... Fica difícil.

Não sei qual é o problema, às vezes eu tento mudar e compreender, mas depois aquilo

começa tudo de novo. O que mais me perturba nesse relacionamento é a falta de

compreensão dele, ele não me convida para sair, fica só na dele. Se ele tiver de ir para

qualquer canto, qualquer festinha, vai sozinho; é com isso que eu fico chateada, é bastante

triste... Às vezes eu debato muito sobre isso com ele, porque já que ele casou, ele tem uma

família, então se é para sair, tem que ser com a família.


157

Ele trabalha à noite e tem muita coisa que eu nunca vi, mas eu sei que acontece, e

ele sabe que eu sei. Por exemplo, festinha com uns amigos que o vizinho convida, com

certeza ele vai de lá mesmo, de onde ele está trabalhando... Às vezes as discussões partem

disso, e ele quer que eu entenda, porque, para ele, é assim mesmo. Eu não entendo o que se

passa na cabeça dele, o que ele pensa, porque ele acha que é do jeito que ele diz, quer dizer,

depois que ele fala que é uma coisa, é aquilo e pronto, acabou-se. Eu não sou muito de me

conformar, eu começo a discutir mesmo! Se ele tiver de ir para qualquer lugar, ele vai,

depois que ele diz que vai, vai! Mas eu também não fico calada não! Às vezes a gente até

discute porque eu vou na casa de uma amiga... Ele fica brigando, não quer que eu saia de

casa. Ele chega do trabalho e, se eu não estiver em casa, ele fica reclamando, diz que eu

gosto muito de andar nas casas, mas eu nem sou muito de andar nas casas, sou mais de ficar

em casa mesmo. Ele não entende mesmo! Ele deve achar que é para eu passar vinte e

quatro horas dentro de casa, eu me sinto bastante chateada! É mais por causa disso, que

acontecem todas essas desavenças dentro de casa.

Eu era totalmente diferente, era bem calma, mas depois desse relacionamento eu

fiquei muito agitada, sem paciência... Eu sinto que foi depois desse relacionamento que eu

mudei... E para pior! Ás vezes até digo a ele, que eu podia ser outra pessoa, se eu não o

tivesse conhecido nunca, podia ter sido diferente, eu podia ser mais calma, trabalhar para

ter uma vida melhor, pois eu estudei, terminei o segundo grau, fiz muito... Sonhava em

trabalhar na área de saúde. Na época eu fiz patologia (curso técnico), nessa época eu

sonhava muito! Hoje, eu vejo as minhas colegas de turma trabalhando nos hospitais e fico

pensando nessas coisas, em ter uma vida melhor, ter meu emprego, ganhar meu bom

salário. Hoje, eu dependo dele, a gente paga aluguel, só vive no sufoco! Esse também é um

problema.
158

Eu tenho muita pena de ir trabalhar e deixar as crianças nas casas, mas agora estou

batalhando mesmo. Quando eu falo isso, me sinto bem melhor, pois eu tenho que acordar,

não é? Eu estava muito parada... Eu tenho que acordar! Eu desisti dos meus sonhos,

principalmente do sonho profissional... Dediquei-me muito só a casa, aos filhos e a ele, mas

o meu sonho era ter meu próprio emprego, mas agora eu estou acordando e estou

batalhando.

Meu marido acha que o homem pode tudo e a mulher não, ele costuma pensar dessa

maneira, que ele pode, ele pode sair, que não tem problema nenhum; agora se eu sair ele já

fica de orelha em pé, se eu sair, se eu demorar ele já fica muito chateado. Às vezes eu saio

para resolver qualquer coisa, vou à cidade comprar algo... Se eu demorar, ele fica

perguntando porque eu cheguei àquela hora e tal, fica desconfiado, cobrando.

Eu já deixei currículo na área do comércio e minha cunhada está me ajudando. A

família dele é a favor de mim, sabe como ele é... Eu gosto dele! Eu não sonho em ter outro

homem... Ás vezes eu fico imaginando ele com alguém, então fico com ciúme, eu não

quero aquilo. Antes havia momentos em que ele ficava jogando comigo, dizendo que ia

arrumar alguém, que vai... Mas eu sinto que ele diz para me chatear, e quando ele fala isso,

me incomoda, pois eu não quero que aconteça. Se eu chegar a vê-lo com outra, sei que vou

me sentir bastante mau, então isso me faz ver que eu gosto dele. Às vezes eu fico muito na

minha, calada, quando ele diz as coisas eu fico agüentando calada... Às vezes eu quero ser

diferente e não consigo, assim, ser mais compreensiva, quando ele chegar em casa, eu não

perguntar nada, não começar uma discussão, às vezes começa com qualquer besteirinha, eu

mesma começo, fico desconfiada, o fato dele sair sozinho, me incomoda. Teve um dia que

as crianças estavam na casa da minha mãe e, mesmo assim, ele não quis ir para uma festa

comigo, então às vezes não tem como eu não discutir, pois ele dá motivo.
159

Eu só queria saber assim, se esses problemas que eu sinto são psicológicos, se tem

alguma maneira de mudar, de eu ficar mais tranqüila... Eu me acho muito nervosa, muito

estressada, eu podia ser mais paciente, mas eu me irrito com qualquer coisa... E queria

melhorar. Se tivesse algum medicamento ou alguma coisa assim que me fizesse ficar mais

tranqüila... Sempre eu tenho dor de cabeça, tenho uma agonia, uma coisa ruim... Na cabeça.

Eu acho que isso tudo está ligado aos problemas que eu vivo com o meu marido, e eu estou

batalhando para ver se eu arrumando um emprego, eu trabalhando, se melhora.

Narrativa 04: Sofia, 29 anos

Sobre o meu relacionamento amoroso, meu casamento, eu nunca namorei muito

tempo com muitas pessoas... Na época em que eu era adolescente, a minha intenção

sempre foi me divertir, sempre tive muita vontade de me divertir. Então, os meus

namoros nunca passaram de três meses... Nesse período eu achava até engraçado, porque

a minha mãe reclamava muito que quando começava a gostar de um namorado meu,

quando se acostumava com ele, o namoro acabava; eu terminava ou a pessoa terminava.

Com I, meu marido, eu namorei quase quatro anos, já foi um relacionamento bom...

Assim, apesar de no início... Ele sempre foi uma pessoa muito “fechada”, sempre viveu

num mundo só dele. Logo quando a gente começou a namorar, ele me chamou para passar

um dia na praia, então ele foi com o barquinho dele e eu fiquei o dia inteiro sozinha, sem

conversar com ninguém... Eu vim de uma família grande, por isso eu sinto a necessidade de

estar conversando, trocando idéias...


160

No dia do passeio, no final da tarde, eu pensei que não ia namorá-lo, porque não ia

dar certo. Mas aconteceu que eu já estava gostando um pouco dele, porque antes a gente

conversava muito pelo telefone; eu passei quase dois meses só conversando... Então a gente

já tinha um determinado convívio, um certo nível de convívio mais amigável e já havia o

interesse. Eu resolvi continuar, ele melhorou em relação a isso, e a gente namorou muito

tempo. Nos organizamos para casar, tudo, noivamos... Foi muito bom o relacionamento

antes de casar.

Os meus outros relacionamentos, mesmo sendo curtos, foram bons também, sempre

foram com pessoas que tinham algo a acrescentar, eu sempre conversei muito, então nunca

tive essa dificuldade que até hoje eu tenho com o meu marido.

Quando eu comecei a namorar I, eu estava perto de completar vinte e um anos; casei

com vinte e quatro. Aconteceu de logo antes do casamento, durante o noivado, a gente já

ter alguns atritos... Eu percebi que ele ainda se interessava por determinadas pessoas e,

durante muitas vezes, eu quis terminar o relacionamento, mas nunca consegui. Ele sempre

me convencia a continuar, e como eu estava apaixonada, não era muito difícil. Eu acho que

não é muito difícil você convencer uma pessoa que está apaixonada... E eu permaneci. Não

existia agressão, nunca existiu, então eu acho que esses fatores influem para permanecer,

não é? A gente nunca teve briga, discussão séria, nem nunca houve agressão de maneira

nenhuma, até porque eu acho que aí já seria um absurdo... Eu não concordo de jeito

nenhum. Havia desentendimentos sim, mas era num nível normal.

Eu pensei em acabar algumas vezes, mas foi justamente por eu achar que ele ainda

estava interessado por outra pessoa, porque antes da gente começar a namorar, ele falava

muito de uma ex-namorada. Ele não queria que o nosso relacionamento fosse igual ao que

tinha terminado... Parece que, numa festa, ele ficou olhando muito para outra pessoa e ela
161

deu um tabefe na cara dele. Eu acho isso um absurdo! No momento em que você agride

fisicamente outra pessoa, você está dando o direito da outra pessoa te agredir também. Ele

falava muito nessa pessoa e não queria que acontecesse a mesma coisa.

Depois que a gente começou a namorar, eu percebi que ele ainda observava muito

essa ex-namorada dele. E aí, me incomodava, não é? A gente fica com ciúme. Algumas

vezes, eu tinha vontade de terminar, até falei que se ela fosse a pessoa que ele queria, ele

fosse atrás, conversasse... Parece que na época do namoro, ela engravidou dele e abortou.

Esse era outro trauma na vida dele, porque eu acho que ela fez o jogo: engravidou e ficou

querendo que ele casasse; ficou dizendo que se ele não quisesse ela ia tirar. Enfim, ele não

casou, então ela tirou a criança. Eu acho que isso aí é um trauma muito grande para ele.Em

relação a isso, eu passei a ter determinados conflitos, algumas discussões, mas nada sério,

até que a gente casou. E foi muito bonito! Cartório, igreja, recepção... Eu nunca sonhei em

casar, eu nunca quis casar, nunca pensei na minha vida em casar. A minha idéia, quando eu

era adolescente... Eu comecei a trabalhar muito cedo e sempre achei que ia estudar. Lá em

casa são onze filhos, eu sou a décima primeira, então eu já observava que o meu pai tinha

uma “carga” muito pesada em relação a estudo, educação, alimentação... E meu pai não é

rico. A gente sempre morou em casa própria, mas muito pequena, a gente sempre viveu

todo mundo muito junto, os irmãos, todo mundo muito junto. Com catorze anos, eu decidi

trabalhar porque eu queria estudar em escola particular... Eu não achava que o meu pai

tinha obrigação de me sustentar, eu achava que eu é que tinha que batalhar para pagar os

meus estudos. Apesar de saber que ele tinha essa obrigação, eu achava que era muito

pesado para ele, então eu comecei a trabalhar e coloquei sempre na minha cabeça que o

meu objetivo era estudar, terminar minha faculdade e ser mãe... Nunca inclui um homem

permanente na minha vida.


162

Eu sempre tive vontade de ter um filho, e esse é um desejo antigo que eu ainda

pretendo realizar. Não sei como vai ser daqui para frente, mas eu sempre gostei de criança,

sempre gostei de dar carinho e de receber também... Eu sempre quis, eu sempre imaginei

um filho na minha vida... E I veio, mudando todos esses meus conceitos, pois tudo o que eu

pensava, eu continuei a pensar, mas incluindo ele na minha vida. Ele me conta que também

nunca pensou em casar, ele queria ser pai, mas não queria casar. Até acho que ele pensava

realmente assim, porque a idéia de família dele é um pouco diferente do normal. Pelas

coisas que ele me diz, família para ele é ele ter um filho, não é ele ter uma mulher e daí da

união de duas pessoas, surgir uma terceira pessoa que vem de amor, de carinho, de

companheirismo, de atenção, tudo, normal. Então, família para ele é um filho, ele quer um

filho.

Faltava algo no início do casamento... A festa foi muito boa, a gente viajou, passou

uma semana em Fortaleza; quando retornamos, comecei a trabalhar. Eu casei em dezembro

e em janeiro comecei a trabalhar... Trabalhava oito horas por dia e durante o primeiro ano

foi assim, depois eu comecei a estudar a noite, mas ele não gostou do meu trabalho; ele não

queria que, logo depois do casamento, eu começasse a trabalhar. Eu acho que ele não

imaginava isso. Mas ele me conheceu trabalhando e eu deixei tudo muito bem claro. Eu não

acho que ele esperava que eu fosse dona-de-casa, eu penso que ele esperava que, pelo

menos no primeiro período, eu fosse dar mais atenção a ele, que fosse passar mais tempo,

esperasse um ano para poder arranjar um emprego. Pelo que ele fala, eu acho que ele não

queria que eu fosse dona-de-casa não, mas não gostou de eu ter começado a trabalhar logo

em janeiro. Neste mês, ele estava de férias, aí eu comecei a trabalhar na época das férias

dele. Naquele período, a gente não tinha empregada, então eu trabalhava, eu organizava a
163

casa, eu cozinhava, fazia tudo... E à noite, ainda estava muito disposta para esperar o meu

marido!

Ele sempre foi uma pessoa muito dedicada ao trabalho, a ponto dele me esquecer...

E por isso eu não esperava. No início do nosso casamento, nós passamos um mês sem

contato íntimo nenhum. A partir daí, já me causou uma decepção muito grande! Eu já

fiquei assim... Arrasada. Porque eu era jovem, ele também (ele tinha vinte e sete anos

quando casou), e eu não entendia porque o desprezo, pois o que eu senti... Na verdade foi

desprezo.

Nós vivíamos juntos, mas não nos relacionávamos sexualmente, porque ele estava

sempre muito cansado. E acredito que tenha sido isso, porque eu não acredito que ele tenha

arranjado ninguém, ainda pensei... Fiz tratamento espírita, tudo no mundo eu fiz para saber

o que estava acontecendo. No início, eu achava que a culpa era minha; alguma coisa estava

errada, mas eu sempre achava que esse erro estava em mim, não estava nele, não estava no

relacionamento. Então, durante muito tempo eu fiquei com isso, por isso que eu busquei

muitas alternativas: tratamento espírita, sexólogo... Eu perguntava o motivo a ele, mas ele

me respondia que era o cansaço. Isso não me convencia, porque eu trabalhava o dia todo,

ainda arrumava a casa, fazia comida... Então não me convencia. Passou-se esse período, as

coisas foram se normalizando, eu fui buscando outras alternativas, coisas que mulher gosta

de fazer, como por exemplo: jantar íntimo, arrumar uma roupa diferente, chamar para ir a

um lugar diferente... Isso tudo que a gente está sempre buscando. Ele também começou,

porque antes de casar, ele sempre aparecia com vinho, com alguma novidade, sempre me

levava para jantar em algum lugar diferente, era sempre gostoso. Então ele passou a ser

assim também.
164

Passamos um período bem. A gente gostava muito de sair no final de semana, de

viajar, isso tudo era muito bom! Só que, depois, o cansaço voltou novamente. Depois de um

ano e meio, dois anos, eu comecei a estudar a noite e não tinha ninguém (empregada

doméstica) fazendo nada para mim, então, no final de semana eu sempre fazia tudo em

casa. Antes de ir para a faculdade, eu corria em casa e ajeitava o jantar, chegava à noite e

passava roupa, e ainda estava disposta para se ele quisesse... Mas ele sempre adormecia,

sempre!

Quando eu comecei a estudar à noite, ele começou a se chatear, voltou com a velha

história de eu não ter tempo... Ele chegava em casa do trabalho, ficava só e achava isso

muito chato, além do mais, não existia diálogo, ou ele estava de frente a o computador, ou

de frente para a televisão. Eu acho que só o fato dele saber que eu estava em casa, era o

suficiente para ele, coisa que para mim nunca foi. Assim, porque eu sempre estive com ele,

e sempre me senti só, então a presença acaba não fazendo muito sentido.

Aconteceu de eu largar a faculdade para ver se as coisas melhoravam, comecei a

ficar em casa à noite, só que eu não queria largar a faculdade, então não fiquei satisfeita. Eu

não fiz algo que eu queria fazer. Eu sempre tive o sonho de me formar, sempre tentei e

nunca tinha tido, de fato, a oportunidade. Sempre trabalhei e nunca tive tempo para me

dedicar aos estudos. E agora que eu estava começando, era uma coisa que ia me satisfazer.

Ele sempre dizia que queria que eu crescesse, fosse uma profissional liberal, tivesse

sucesso na vida. Mas, por outro lado, todo dia quando eu chegava em casa, ele estava com a

cara feia, arrumava alguma confusão, alguma... Besteira, alguma discussão besta.

Na prática, ele se contradizia, então o contato íntimo já passou a ser duas, três vezes

por semana, e eu passei um ano sem estudar... Depois eu decidi retomar os estudos. Não me

preocupei com o que ele ia pensar, não quis mais saber, já estava de saco cheio! Porque eu
165

voltei para ficar em casa e as coisas não mudaram, o diálogo não aconteceu, o desprezo

continuou, em menor intensidade, mas continuou.

Muitas vezes, eu... Assim, quando a gente deitava para dormir, ele me dava as

costas... Ele nunca gostou de dormir agarrado, abraçado. Às vezes dormia porque eu

queria... É muito chato você fazer alguma coisa que você não gosta. Ele ficava dez minutos

ali na posição que eu queria que ele ficasse, me abraçando, e depois já se virava, já ia para o

lugar dele na cama. Eu sempre achei isso tudo muito esquisito, porque eu tinha uma outra

idéia de casamento na minha cabeça.

Apesar de, em casa, eu ter ouvido muitas discussões, porque o meu pai, ele bebia,

mas eu sempre vi uma cumplicidade, eles sempre estavam juntos, ele sempre se preocupava

muito com a minha mãe e a minha mãe sempre viveu muito em função dele. Então você

acaba imaginando que casamento é algo para você viver em conjunto, e não você viver

sozinho no seu mundo e a outra pessoa viver lá no mundinho dela. A partir do momento em

que você decide se unir a outra pessoa, você quer compartilhar tudo, tanto as coisas boas

como as coisas ruins com aquela pessoa. Eu tinha muita vontade de falar do meu dia de

trabalho, de falar o que aconteceu na faculdade, de saber também, mas esse retorno eu

nunca tive. Muitas coisas podem até ser bestas, mas para mim eram coisas relevantes, eu

considerava. Por exemplo, I não me falava da sua vida profissional, de alguma coisa que

acontecia ou fosse acontecer, se tinha programado algo para o final de semana... Ele não me

dizia nada, ou então ele me dizia em cima da hora; se ele tinha algum aumento de salário,

eu sabia através de outra pessoa. Quer dizer, isso tudo pode ser bobo, mas eu acho que eu

merecia, ele tinha que dividir isso comigo. Eu sempre fiquei muito chateada com isso e

passei um bom tempo me sentindo assim, mas depois eu deixei para lá... Fui me adaptando

a situação. Aos poucos, passei a não querer mais saber da vida dele, não queria mais saber
166

de nada. Se ele quisesse me contar, tudo bem, se não quisesse, também não fazia diferença.

O sexo foi uma coisa que eu bloqueei na minha mente, porque se eu não tinha, e eu sentia

angústia em não ter, e não saber porque não tinha, eu preferi bloquear a sentir mais vontade

e acabar indo atrás de outra pessoa. Porque isso pode acontecer; poderia acontecer muito

mais cedo do que eu imaginava... Então eu acabei, assim, bloqueando isso tudo para mim.

Comecei a viver no meu mundo, igual a ele, deixei... Assim, é como se eu tivesse

deixado ele mais à vontade para viver no mundo dele. Só que até hoje eu não me sinto bem

em viver assim, e não consigo sair dessa relação. Já arrumei minha mala um milhão de

vezes para sair de casa e não consigo.

Há um ano e meio ou dois anos atrás, a gente teve uma discussão muito séria, talvez

a mais séria até hoje... Nesse dia, eu fiquei muito chateada e decidi sair. A gente tava em

um apartamento alugado, se organizando pra comprar e morar em outro apartamento.

Tivemos uma discussão muito séria, e eu senti o lado direito do meu rosto dormente,

completamente... Fiquei muito apavorada com isso, percebi que eu não iria ficar com ele, e

saí, fui para uma pousada. Ele chorou muito, foi na casa dos meus pais (eu havia saído sem

contar para ninguém). Ele foi falar com o meu pai, devolver a aliança, disse que eu tinha

saído, ou seja, fez um bicho ao meu respeito para a minha família e para a dele. Na minha,

ele não conseguiu muito não... Na dele, eu acho que durante muito tempo a mãe e as tias

ficaram um pouco sem falar comigo, mas também não me preocupei com isso não. Depois

ele veio, mais calmo, querendo falar comigo, disse que iria mudar, que ele realmente tinha

errado, que tudo estava errado desde o início... E eu voltei.

Quando eu falo isso, eu sinto, eu sinto uma pontinha de raiva de mim, porque eu não

devia ter voltado. Essa foi a melhor oportunidade que eu tive de decidir a minha vida, mas

eu não fui firme e fiquei realmente sozinha, como eu devia ter ficado. Eu voltei imaginando
167

que tudo ia ser diferente, tudo... Mas não foi. Logo que a gente voltou a morar junto, ele

não fez questão de mostrar que ia ser diferente... As coisas continuaram do mesmo jeito!

Assim, a gente continuava saindo normal, mas, sexualmente, eu já não tinha tesão nenhum.

Eu sentia a necessidade, eu acho que era uma necessidade orgânica que eu tinha, sentia

necessidade de ter um relacionamento íntimo com ele, mas... Já não era mais aquela pessoa

que me despertava desejo, não era como antes. Havia noites, para você ter uma idéia, que

eu me deitava pelada do lado dele, e ele adormecia, nem me tocava. Olha, quando isso

acontecia, a sensação, a maior sensação que eu tenho até hoje, eu não consigo me livrar, é a

sensação de desprezo. Essa aí, eu não consigo me livrar, por mais que eu busque, procure

fazer uma terapia, alguma coisa, eu não consigo me livrar dessa sensação de desprezo.

Apesar de eu e ele sempre ter tido vontade de ter filho, a gente nunca conversou

sobre isso, não se conversar sobre nada não. Ele desejava ter um filho e esperava que logo

no início do casamento, eu engravidasse, mas as coisas começaram a acontecer e eu

comecei a ter receio de ter um filho, com um relacionamento do jeito que estava. Eu sempre

pensei que para ter um filho, para eu engravidar, teria que ser um momento muito

agradável... A gente teria que planejar tudo direitinho, porque a minha vida iria mudar

muito, e a dele também, mas a minha, eu acho que iria mudar muito mais. Ele nunca

chegou assim para conversar sobre a decisão de ter um filho em tal período da vida da

gente, em tal ano... Eu fui então tomando os meus comprimidos, me prevenindo e decidi

não engravidar, até o nosso relacionamento melhorar.

Acho que eu fiz a coisa certa, porque, gradativamente, a relação piorou. Se hoje é

difícil tomar uma decisão de separação... É muito complicado você tomar uma decisão e

você separar, porque, na hora do casamento, você está investindo ali um sentimento, muita

vontade que dê certo. Ninguém casa para separar com um mês depois, a gente casa, pelo
168

menos a minha idéia era essa: eu tinha vontade de envelhecer com ele. Eu ficava

imaginando a gente velhinho com os netos.... Então, é uma frustração muito grande. A

partir do momento em que o negócio vai dando errado, você vai se desestimulando

completamente. Eu fui me desestimulando... Se eu tivesse hoje um filho, eu estaria numa

situação muito pior, porque já existiria uma terceira pessoa que não faria parte só de mim,

então a decisão não poderia ser somente minha; ele também teria que opinar, o que seria

muito mais complicado. É muito mais fácil você, solteira, decidir ser mãe com uma pessoa,

um homem lá no lugar dele e você no seu, essa criança já vai crescer tendo consciência que

o seu pai mora numa casa e sua mãe mora na outra. É diferente dela nascer e ver duas

pessoas juntas, se acostumar com aquela situação e, de uma hora para outra... Porque

ninguém vai estar contando a vida para o filho, ninguém vai estar dizendo que não dá certo,

e tudo o que se passou. Então, de uma hora para outra, você decide separar... E a criança

fica como? Sem saber, não é?

Com relação aos meus pais, eles esperavam a mesma coisa que eu, ou seja, que o

meu casamento desse certo. A minha mãe, ela não admite separação, ela é muito católica.

Se hoje eu me separasse, ela seria uma pessoa que não iria saber, eu iria fazer o impossível

para não contar nada a ela, ela não iria saber, porque eu sei que ela é uma pessoa que não

aceita. Para ela, é aquela história: o que Deus uniu na Terra ninguém separa, e eu assimilei

isso muito bem. Isso em mim é muito forte, muito forte! Lá em casa são cinco mulheres; eu

acho que só a minha irmã mais velha e eu absorvemos toda a criação da minha mãe, são

conceitos difíceis demais. Eu sinto que isso contribui muito para que eu sinta essa

dificuldade de me separar. Um dia desses, eu estava conversando com a minha mãe e eu

falei sobre a possibilidade de me separar, para ver a reação dela. Ela me disse que isso não

existe! Que se eu decidi casar, eu tenho que ir até o final, que se uma mulher um dia pensar
169

em separar de um homem, é porque ela levou uma surra, muitas surras. A idéia dela é essa,

que a gente tem que aceitar tudo, menos apanhar, essa é a idéia dela... E nesse dia, eu fui

até assim, depois eu fiquei, meio assim, porque eu fui até grosseira, porque eu disse a ela

que o que ela tinha para, assim, o ela pôde fazer para estragar a minha vida, ela já tinha

feito. Eu quis dizer que todos esses conceitos que me impedem de tomar as minhas

decisões, tudo isso acaba dificultando, e muito! A gente vive numa sociedade que cobra,

mas não age da maneira como ela cobra, mas a gente vive em função dela. Então é o medo

de ficar só, de todo mundo pensar que eu estou disponível para qualquer pessoa... Eu tenho

esse medo... De ficar só, e de pensarem que eu estou disponível, de quiserem qualquer

envolvimento comigo, que eu não queira. O medo de eu chegar num lugar e ser desprezada

porque eu sou uma mulher separada. Quer dizer, hoje, a gente vive... Talvez não tenha tanto

isso, entre aspas, que eu acho que existe muito. Se você tem um grupo de amigos, e você se

separa, todas as mulheres do seu grupo de amizade vão ficar com medo que o marido delas,

ou que você, dê em cima; ou seja, que o marido dê em cima de você e você dê em cima do

marido. Isso é muito chato! E você tem que dar satisfação da sua vida às pessoas. Eu não

quero isso não.

Voltando a falar sobre como está sendo a minha vida amorosa, eu percebo que ainda

estou presa a valores e padrões antigos, antigos demais. Para mim, esses valores que a

minha mãe passou estão bastante presentes na minha vida, e ela sempre cobra, porque ela

sabe que as coisas não andam nada bem, e sempre que eu vou lá, ela faz questão de

cobrar... Cobra o comportamento. Como se eu devesse estar sempre bem, não reclamar da

situação que eu vivo com o meu marido... Coisa que ela fez a vida toda... Interessante, eu

sempre fui muito determinada, e mesmo quando acabava um namoro, eu não ficava
170

choramingando, nem achando que o mundo tinha acabado, não, eu sempre saía, me

divertia, partia para outra.

Meu marido me tornou muito dependente, de uma certa forma, e eu fui me

acostumando a essa dependência. Apesar disso tudo, ele é uma pessoa muito boa, de

valores também, uma pessoa difícil de se conseguir. Hoje em dia, os homens são muito

vulneráveis, querem ter vários relacionamentos. Eu acredito até hoje que I nunca teve outro

relacionamento além de mim, então isso acaba sendo um ponto positivo... Saber que ele é

só meu, apesar de tudo. Além disso, ele é uma pessoa muito boa, interiormente, ele é uma

pessoa que não tem raiva de ninguém, ele não cria confusão com ninguém, ele se preocupa

muito comigo, em relação a outros fatores, como bem-estar. Não me deixa faltar nada, em

termos materiais, mas não é assim no lado emocional, então isso acabou fazendo com que

eu ficasse um pouco dependente disso tudo.

A independência que eu tinha, parece que está adormecida, porque eu tenho certeza

que eu não perdi, toda aquela minha garra de antes, quando eu trabalhava, vendia calcinha,

sutiã, e juntava dinheiro de um lado, de outro, para pagar o colégio, para me virar, para

comprar a minha roupa. Eu estou querendo dizer que hoje eu dependo dele

financeiramente, mas só em parte. Eu sinto que posso me prover por completo, eu posso...

Posso... Eu tenho só que tomar mais consciência disso, porque eu tenho condições de me

manter sim. Eu não posso deixar que essa dependência que foi se acumulando, permaneça,

eu acho que se tornou até uma dificuldade, o fato de eu ser muito consciente das coisas. Eu

sei da dependência, sei que tenho condições de me manter, se eu sair do relacionamento, eu

sei que tenho condições de me manter! Sei que morrer de fome eu não vou! Eu aprendi

cedo a ser independente, e houve esse processo de regressão durante o meu casamento.
171

Durante muito tempo, para mim, foi um processo de regressão, ao invés de evoluir, eu

regredi.

Há um ano atrás, eu estive muito mal, eu tive depressão, tive pânico, então comecei

a fazer tratamento com psiquiatra, depois desisti, porque eu nunca quis tomar remédio.

Ainda tomei alguns antidepressivos, mas muito esporadicamente, nunca com freqüência, só

no dia em que eu não agüentava mais... A questão do pânico também foi um fator muito

forte, eu tive que lutar muito para me manter firme, porque eu tinha que trabalhar, ir para a

faculdade... E eu não podia mostrar para todo mundo a minha fraqueza, no trabalho eu não

podia mostrar minha fraqueza. Eu atribuo essa depressão e esse pânico a todo esse processo

que começou no início do casamento, até hoje... Esse período de depressão foi devido a

todo esse processo assim de desprezo, de descaso, de não ter realmente o companheiro que

eu imaginava, que eu queria ter, então chegou o momento em que eu caí completamente.

Eu tinha uma expectativa diferente em relação ao meu casamento e acabei me adaptando a

situação, então adoeci... Bastante...

Eu fui criada na religião católica, sempre tive isso muito forte na minha vida. Com

sete anos de idade, eu já participava do movimento, viajava com freiras, fazia retiros

espirituais, essas coisas todas; influenciada pela minha mãe; ia eu e minha irmã mais velha.

Esta já é muito mais bem resolvida na vida dela em relação a isso, ou seja, em relação ao

lado espiritual, pois não deixa que os conceitos e dogmas estabelecidos pela igreja

influenciem tanto em sua vida, impedindo-a de tomar certas decisões. Pelo menos eu acho,

pelas coisas que a gente conversa; mas eu não, eu fiquei muito ligada a isso, aos dogmas

espirituais (pecado, castigo de Deus, o que é certo ou errado) e eu só consegui sair mesmo

dessa depressão, já que eu não utilizei remédio constantemente, através da fé, da

espiritualidade. Eu trabalhei muito, a minha espiritualidade, durante todo esse tempo...


172

Agora eu não vou dizer a você que eu não sinto angústia, sinto, geralmente todos os dias,

mas com bem menos intensidade e nada que vá me prejudicar, como me prejudicou. Essa

angústia é uma coisa que está presente, mas que eu controlo... Eu sei que essa angústia

existirá até o momento em que eu tomar uma decisão na minha vida, disso aí eu também

tenho consciência, porque eu, eu... Eu acho que eu vou sentir um alívio, quando eu decidir.

Eu já quis decidir tudo muito rápido, porque eu não sabia esperar, eu queria decidir e a

angústia aumentava, porque eu não via a perspectiva de tomar essa decisão, não tinha

coragem, não era o momento. E aí, outra pedra grande foi posta em cima disso, porque eu

tenho que esperar o momento certo, eu não posso ficar parada, todo dia tenho que trabalhar

um pouquinho para tomar essa decisão, mas eu sei que o momento certo vai acontecer. Mas

não adianta ficar mais angustiada ainda, só piora a minha situação, se eu ficar angustiada

porque eu não tomo a minha decisão amanhã, só vai piorar a minha situação.

Hoje eu sinto um carinho muito grande pela pessoa que o meu marido é, não sinto

desejo, não tenho vontade de fazer sexo com ele, não tenho vontade de beijar, é tudo muito

mecânico se acontecer... Não... Eu não tenho medo de perdê-lo, dele arranjar outra pessoa,

eu nunca, nunca pensei nisso com medo, acho que eu não tenho medo. Não posso te dizer

assim com certeza porque nunca aconteceu, por isso, eu não sei o que eu sentiria, mas eu

não tenho raiva dele, não tenho, não tenho raiva... Tenho carinho, eu gosto dele como

pessoa, acho que ele é uma pessoa maravilhosa, que daria muito certo com uma pessoa que

o aceitasse como ele é.

Os momentos que nós temos de bem-estar são quase inexistentes, algumas vezes,

por exemplo, sexualmente, eu permiti que acontecesse por ele, e quando terminava, eu me

sentia muito ruim. Os momentos de prazer, em termos gerais, hoje em dia são poucos, esses

momentos são escassos.


173

Eu venho me preparando, é... Porque todo o sofrimento que eu passo, já que desde o

momento em que tudo deu para traz, não teve um só dia em que eu não me sentisse triste,

eu tenho consciência que eu não quero continuar passando. Então, cada dia eu avalio tudo o

que eu já passei, que eu não quero ter novamente. Eu venho amadurecendo essa idéia todo

dia; pode demorar, não sei, seis meses, um ano, um mês, ou até amanhã eu posso chegar e

dizer assim: Não, hoje é o momento! Hoje eu vou tomar essa decisão. Mas até então, eu

venho amadurecendo isso todo dia, mas eu amadureço em forma de pensamento, todo dia

eu penso em tudo o que eu já passei, repenso todas as coisas que aconteceram, as que foram

ruins e as que foram boas. Todo o sofrimento que eu já tive, e aí, eu decido todo dia que eu

não quero mais ter isso na minha vida, até o dia de chegar a decisão, e já estar tudo

acertado. É dessa forma que eu vou fazer, é dessa forma que eu estou fazendo, foi a

maneira que eu encontrei, e está sendo difícil, porque é lento... Mas eu sei que é uma

decisão só minha, e que eu estou nesse caminho hoje porque eu optei, de uma certa forma...

Ninguém tomou a decisão por mim, eu casei porque quis, eu permaneci no casamento

porque quis. Eu tentei todas as alternativas: fui a psicólogo, psiquiatra, sexólogo, centro

espírita... Já comecei a fazer terapia, mas nunca conclui, sinto a necessidade de concluir,

porque me fazia muito bem; eu saí por motivos financeiros, mas eu pretendo retornar. Eu

acho que preciso desse apoio, aí eu não sei se vou voltar quando eu tomar minha decisão ou

se eu vou voltar antes, eu não sei, mas eu vou retornar sim, basta minha situação financeira

melhorar um pouco, porque essa história de dinheiro é muito complicada... A gente vive

aqui em função de dinheiro, tudo, o meu trabalho é com dinheiro, eu vivo em função de

dinheiro para pagar a faculdade, para... Eu curso Administração de Empresas e trabalho

com serviços de transporte aéreo, tomo conta do departamento financeiro, mas é muito

complicado, porque também não é algo que eu gosto muito de fazer não... Eu gosto mais de
174

lidar com pessoas, eu gosto de estar em contato com seres humanos. Estou trabalhando

nessa empresa, nesse departamento, mas não é o que eu quero para o resto da minha vida,

eu não quero isso não, eu quero mais... Mas eu quero mais em termos de viver bem, eu não

quero viver em função de dinheiro. Eu quero chegar num momento da vida, a vida da gente

acaba ficando muito subjetiva, e eu quero chegar num momento de um dia eu fazer com

prazer o que eu estiver fazendo, sem precisar me preocupar com muito dinheiro, só o

essencial. Eu já quero estar formada, eu já quero não me preocupar mais, não quero que o

dinheiro seja para mim uma preocupação constante, eu quero que ele seja uma coisa boa,

que vá me ajudar, não algo ligado só a preocupação.

Lembrando do que eu havia falado antes, mamãe sempre foi muito chantagista

comigo... Às vezes, quando eu ia sair, ela chegava ao ponto de dizer que, se alguma coisa

acontecesse com ela, em termos de algum problema de saúde, a culpa seria minha. Ela é

cardíaca, é hipertensa, tem problema na coluna, além de outros, mas o mais grave, que eu

acho que pode ocasionar alguma coisa assim é a pressão e o coração. Então tenho medo

dela ter alguma coisa séria e as pessoas acabarem colocando a culpa em cima de mim... Eu

temo isso. Quando eu era adolescente e ia sair para algum lugar que ela não queria, ela

sempre dizia que, se alguma coisa acontecesse com ela, a culpa seria minha, então isso

acaba ficando na memória. Durante muito tempo, muitas vezes, eu só saía escondido, para

ela não ver e eu não ter que escutar isso... E se alguma coisa tiver de acontecer com ela, vai

acontecer. Dependendo... E, aí, “pôxa”, aí é demais, não é? Mas o receio existe, o medo em

relação a isso existe, pois ela tem pressão muito alta, tenho medo que ela vá para o hospital,

que ela adoeça e aí o sentimento de culpa é muito ruim. Eu não quero me sentir culpada por

uma coisa dessas, por isso eu não contaria.


175

Isso me faz sentir limitada, eu me sinto presa, a minha vida é como se estivesse

presa a vida dela, a vida de outras pessoas. Aí eu acabo não resolvendo as coisas porque eu

fico pensando muito nos outros, no que pode acontecer. Aí já não sou só por mim, sou pelo

meu marido, sou pela minha mãe, sou por muita gente.

Às vezes meu marido fala em separação, mas é de tanto eu falar, porque ele não tem

a intenção. Acho que ele vai levando até... Talvez arranjar outra pessoa, porque eu acho que

para o homem, é mais fácil definir (uma separação) no momento em que aparece outra

pessoa na vida dele. Ele se sente mais forte, assim ele define mais. É como se eu tivesse

uma certa expectativa dele encontrar alguém, cansar de mim, porque aí ele tomaria a

decisão e eu não precisaria tomar. Além disso, eu não iria me sentir culpada pela separação,

se isso acontecesse. Nessa situação, não seria eu quem teria decidido, se acontecer dele

tomar a decisão. Existe essa vontade, não posso nega, não é? Eu sei que a decisão da minha

vida quem toma sou eu, e da dele, quem vai tomar é ele, mas em relação a nós dois, se ele

decidisse seria muito melhor. Com certeza!

Em relação a tudo o que eu já falei, eu sinto que é bom falar, porque a gente falando

a gente vai tomando mais consciência. Eu, quando falo sobre as minhas coisas, às vezes eu

falo só, até para mim mesma, na rua, em qualquer lugar. Se você, alguma vez, me pegar

falando sozinha, no meio da rua, não é porque eu estou ficando maluca, não, é para tomar

cada vez mais consciência da minha vida, do que eu estou passando e do que eu tenho que

decidir, do que eu tenho que definir. Então para mim alivia muito falar, eu me sinto mais

aliviada, eu tomo mais consciência do que está acontecendo comigo diariamente. Então

mesmo que eu não tenha outra pessoa, em determinado momento, mas eu falo pra mim, eu

falo só, eu acho bom falar.


176

O que mais me chamou atenção, em relação a tudo o que eu falei, foi num

determinado momento, quando eu falei que eu tenho condições de me manter

(financeiramente). Nesse momento, eu senti garra, que era uma coisa que eu não estava...

Eu quero dizer que algumas vezes eu falei, mas falei um pouco tímida, e hoje não, hoje eu

falei com vontade de falar, com vontade de... Assim, me libertar disso tudo. Foi o que ficou

mais presente na minha mente. E foi bom, é bom.

Falar dessa forma traz a tona, assim... Vai trazendo a tona tudo o que eu estou

sufocando, não é? E mostra que eu estou viva, que eu sou capaz, que eu não dependo de

ninguém... Que a felicidade, ela está dentro de mim. Acho que é isso. E hoje já apareceu a

vida que tem dentro de mim... Eu já fiquei igual a um zumbi, totalmente sem vida, com

uma tonelada nos meus ombros, uma tonelada, um peso nos olhos. Eu não conseguia abrir

os olhos direito, sabe? Quando estava imaginando que ia para casa, eu já sentia uma

tonelada nos ombros, uma angústia... Muitas vezes eu entrava e saía de casa, porque eu não

conseguia ficar... Quer dizer, isso tudo, eu não quero nunca mais para mim. Não vale a

pena, eu não sou desse jeito... O que me fez ficar triste foi a situação do meu casamento e a

falta de perspectiva de dar certo. Então, na realidade, eu não sou assim, eu não mereço.

Ninguém merece, não é? Tanto sofrimento. E eu vou chegar lá, ou seja, vou me encontrar

novamente, encontrar a liberdade de pensamento e atos, parar de me preocupar tanto com

os outros e sim comigo. Vou definir minha vida, colocar um ponto final no sofrimento,

encontrar a paz, o equilíbrio, enfim ser feliz novamente... Sei que sou capaz.

O sofrimento faz parte da vida da gente, para que tenhamos consciência das nossas

atitudes, mas não podemos permitir sua permanência constante, pois estaríamos afirmando

a nossa incapacidade, a nossa resistência às mudanças. Infeliz daquele que não aprende a

levantar-se com as quedas da vida.


177

Narrativa 05: Vera, 42 anos.

O meu relacionamento amoroso, no início, era bom, mas de um tempo para cá, está

sendo assim, uma coisa vazia, não existe mais amor entre a gente. Existe sim, da minha

parte, mas da parte dele, eu acho que não existe mais não, porque ele me trata como se eu

fosse uma pedra dentro de casa; aí pronto, eu fico muito solitária, muito sozinha, não tenho

com quem conversar. Eu termino ficando solitária... Assim sozinha, me sinto abandonada.

Ele já tem o problema do alcoolismo, então eu já me sinto responsável por ele, eu renunciei

a tudo entendeu? Só para cuidar de casa, deixei de trabalhar, só para cuidar dos meninos...

E cuidando dele assim, todo o meu tempo!

Eu era professora do ensino primário e quando eu engravidei do meu segundo filho,

deixei o emprego; isso foi há quatro ou cinco anos, e foi nesse período que ele começou a

me abandonar... Começou a chegar bêbado... Aí assim, quando eu fico só, a minha reação é

só chorar! Entendeu? Só chorar, chorar, chorar, chorar, chorar! Aí eu peguei uma depressão

muito grande, fui para o médico e não podia tomar medicamento, passei uns sete meses

assim... Ansiosa... Tremia direto! Eu era doente mesmo, só não fiquei internada porque o

médico conversava comigo... Apoio familiar, eu não tinha, minha família é muito

problemática, eu não podia levar esse problema nem para a minha família, nem para o meu

marido, então ficava sozinha... Me “tranquei” sozinha. A barra ficou muito difícil, assim, o

amor, já passa a ser mais humano, do que aquele amor entre marido e mulher.

Essa depressão que eu tive, após o nascimento do meu segundo filho, surgiu

decorrente da solidão, de quando eu engravidei, que ele começou a me deixar sozinha em

casa, saia de casa, dava atenção mais aos amigos... Ele dizia que ia sair e não sabia a que

horas iria voltar! Aí pronto, eu ficava sozinha com minha filha, porque eu tenho uma
178

menina com doze anos. Depois de oito anos, eu engravidei do menino, aconteceu por

acaso... Meu marido estava desempregado, mas a gente aceitou, eu aceitei porque sempre

gostei muito de criança, eu sempre fui muito humana assim... Eu sempre fui contra aborto,

até anticoncepcional... Sempre tudo no lado natural da vida, não é? Eu fui aceitando a vida

assim, como ela foi me levando... Não queria sair de casa porque meu pai já é idoso, não

queria levar problema para ele... Eu estou sempre pensando nos outros, nos outros, nos

outros, chegou a ponto de dar um circuito na minha cabeça. Aí pronto, o meu

relacionamento conjugal está muito difícil... Em casa, eu chorava toda noite, passava a

noite toda chorando e meu marido perguntava o que eu tinha, porque eu estava chorando,

começava a brigar comigo... Então eu comecei a ficar triste e a gostar dele mais pelo lado

humano. Eu não posso abandoná-lo, porque ele tem pressão alta, se ele ficar doente, se ele

morrer, eu vou me sentir culpada. É muito difícil, estou sempre pensando nos outros, mas

eu gosto dele, assim, eu cheguei a amar tanto, que eu desejei que ele arrumasse outra

mulher, desde que ele deixasse o álcool. Eu me sentiria melhor, acho que por esse lado aí

eu aceitaria. O meu amor por ele era tão grande... Ainda é... Eu gosto muito dele!

Para mim o maior problema do amor, ultimamente, é a traição, ás vezes a mulher é

traída, mas esse problema, eu nunca tive. Pelo menos assim, eu nunca percebi nada,

ninguém nunca me contou. Eu sei bem que ele é fiel a mim e eu sou a ele, mas chegou um

momento em que ele não ligava mais para mim, e permanece do mesmo jeito. Por exemplo,

ele acorda, não diz “bom dia”, não fala comigo, toma banho, toma café e sai; quando chega,

toma banho e dorme, acorda de quatro horas da tarde, vai beber de novo, quando volta, é

com uma garrafa na mão.

Ele está desempregado, começou a beber quando ficou desempregado pela primeira

vez, que foi na época da última gravidez. Antes, ele bebia pouquinho assim, só socialmente,
179

mas o problema, é que quando ele voltou a trabalhar, não deixava de beber em final de

semana, feriado, tudo... Eu não existia na vida dele, não é? Eu só existo para ele como uma

empregada, para fazer a comida, lavar tudo direitinho... Quando eu falei que sou como uma

empregada para ele, não foi ódio que eu senti, eu achei engraçado... Ele me tratar assim,

como uma empregada. Eu já disse a ele assim: - Menino, você me tirou da casa dos meus

pais, casou comigo, diz que me ama e depois me faz de empregada! Sim, porque eu faço as

coisas todas direitinho para ele.

Eu olho para mim e para o meu marido, todos dois perfeitos, a gente tem uma vida,

duas crianças perfeitas, meus filhos são bons, não dão trabalho, a gente tem uma boa

morada, que é muito... Eu digo que ele tem tudo para ser feliz! Mas cadê o amor? No caso,

da parte dele. Eu não sinto que ele me ama, porque... Assim, quando a gente ama, a gente

não quer ver a pessoa sofrendo... Renuncia a tudo, não é? Minha irmã diz que eu sou

acomodada, pois devia largar tudo, ir trabalhar e me cuidar, morar só com os meus filhos,

mas eu digo que não posso abandoná-lo. Seria uma covardia minha também, logo agora que

ele está desempregado.

Ás vezes eu me sinto... Sei lá! Esquisita! Eu nunca pensei que pudesse acontecer

comigo. Eu via uns casos na televisão e dizia que isso nunca iria acontecer comigo, mas

está acontecendo... Aí pronto, eu peguei essa labirintite, e ele diz que eu não tenho doença,

não leva a sério essas coisas que eu tenho. Quando eu disse que nunca pensei que isso

pudesse acontecer comigo, eu estava falando do amor que destruiu... Do casamento

destruído. Eu queria que ele me desse mais atenção, que a gente acordasse abraçado um

com o outro, tivesse beijo, tivesse “bom dia”... Antes de encontrá-lo, eu pensava em casar,

em me formar, e não me formei... Passei no vestibular, aí comecei a trabalhar, comecei a

namorar o meu marido, ele me pediu em casamento... Até aí, eu ainda achava as coisas
180

muito abstratas... Assim, casar, assumir... O tempo foi passando, eu amadureci e decidi

casar, mas eu pensei que a gente ia se amar, que ele podia trabalhar, que ele podia me

ajudar, eu podia ajudá-lo... Ser uma união, uma coisa mais bonita. Pensei que íamos viver

para os nossos filhos, mas só que as coisas mudaram muito.

Eu não fiz amizade com ninguém lá no condomínio... Já fiquei envergonhada... Por

causa dele... Porque ele anda bêbado e isso me choca, porque eu não tive essa criação,

sempre ignorei essas coisas, sempre achei errado. Eu leio muito, sozinha em casa, eu

pesquiso sobre o efeito do alcoolismo, essas coisas... Então eu sei que isso é uma droga e eu

sei do efeito das drogas no amor, no relacionamento, tudo, mas nunca pensei que fosse

acontecer comigo, entendeu? Eu estava mergulhando no mesmo assunto de droga, mas sem

saber que o alcoolismo era uma droga, que ia destruir o meu casamento, eu não conseguia

ver isso! Até antes de eu ficar... De eu ter essa, essa tontura, eu não me sentia uma pessoa

doente, eu me sentia uma pessoa batalhadora, está entendendo? Eu sentia que estava

lutando pelo meu casamento, mas só que quando eu fiquei doente, eu pensei que tinha que

procurar um tratamento, pela minha saúde também, não só pelo meu casamento.

O que eu sinto que me dava força assim, para abandonar meu emprego e viver para

o meu marido, era o amor que eu sentia por ele, eu ainda o amo, e esse amor... Não sei,

pode ser até uma coisa assim... Doentia, não é? Não sei, pode ser isso, no momento é assim

que eu sinto, porque quando está na hora dele chegar em casa e ele não chega, fico... Sabe?

Eu fico de janela em janela olhando, entendeu? Fico doidinha quando ele não chega em

casa, aí eu queria me libertar entendeu? Eu tenho que amar entendeu? Assim, eu tenho que

amar o meu marido! Tenho que lutar por ele! Porque eu gosto dele, apesar dele não gostar

de mim, porque eu não sinto que ele gosta de mim, mas apesar disso, gosto muito dele,

assim, sei lá! Eu gosto da voz dele, ele me faz bem, é carinhoso, quando ele... Isso é... Isso
181

é coisa de, de antes, cinco anos atrás, ele era muito carinhoso comigo, ele me respeitava

como mulher, como pessoa... Também tem esse fato dele nunca ter me traído e... Pode ser

até que ele ainda goste, porque até agora ele não arrumou outra. Não sei, aí fica uma

interrogação! Como é que o amor pode ser assim, tão estranho não é? Da parte dele.

Eu falei desse amor que eu sinto por ele, lembrando de coisas do passado... É como

se eu ficasse presa ao passado... Presa! É como se eu tivesse esperança assim de resgatar,

sabe? Pronto, aí quando ele... Às vezes, quando ele fica doente ele pára de beber, aí é uma

outra pessoa, vem me abraçar, tudo, aí pronto, aí eu cedo, já que eu gosto dele! Também se

eu for rejeitar aí vou, vou... Afastar. Mas é, eu fico tentando resgatar aquela relação que a

gente tinha... Mas está muito difícil! Então eu fico solitária assim, sem amizade, ninguém

para conversar.

Na minha família, eu era rebelde, assim, eu sonhava muito alto e meus pais não

aceitavam... Eu sonhava assim, ser independente, ir morar sozinha, cheguei até a falar que

não ia casar, ia ter uma produção independente, não é? Queria me formar e ter um filho,

não queria casar, queria só... Juntar-me, como se diz no popular. Então isso causou atrito

em casa, sabe? Mas depois que eu comecei a namorar o meu marido, isso também eles não

aceitaram muito, por causa do racismo também, pois eles não gostavam de pessoas morenas

e o meu marido é negro mesmo!

Antes de conhecer o meu marido, eu tive aqueles namorinhos, namoro rápido, sem

muita importância, e que chamam de “ficar” hoje, mas assim, de namoro mesmo, foi só ele.

Quando eu falava em morar só, em ser independente, meus pais não davam muita atenção,

diziam que eu não ia ter futuro... Sabe? Pois, segundo eles, eu tinha umas conversas

estranhas, não sei o quê! Ficavam me chamando... Às vezes de palavrão... De prostituta...

Mas eu não aceitava, eu dizia que ia ser assim e pronto! Eles queriam que eu estudasse, me
182

formasse, escolhesse a carreira que eu comecei, mas que eu fiz não sei nem porque! Eu fiz

Eletro-técnica lá na ETFERN, não sei porque fiz aquele curso. Meu pai, minha família,

todos me influenciaram nessa escolha, mas eu nem estagiei, sabe? Quando eu me casei, foi

que eu fiz magistério, eu me descobri, entendeu? Assim, eu vi que gostava de criança, então

queria trabalhar com criança, eu queria brincar com menino, ouvir grito de menino!

Entendeu? Desenhar, pintar, eu queria essas coisas... Aí eu fiz o magistério, ainda ensinei,

eu me realizei um pouquinho (dois anos). Aí parei, porque começou o que já lhe disse, mas

a relação dentro de casa era assim, meu pai sempre escolheu, dizia que eu ia casar com uma

pessoa branca, porque negro, negro... Aí eles falavam aquelas coisas, falavam que pessoa

preta é diferente, quando fica com raiva, passa não sei quanto tempo para voltar ao normal,

não sei... Essas coisas assim.

Eu lembro que, na época, era o auge fazer Eletro-técnica, quem cursava, se dava

bem, então, estava tudo planejado para mim: eu ia fazer esse curso, ia trabalhar, casar e ter

filhos, mas eu não queria que fosse assim, queria me soltar... Assim, para a vida. Mas era

uma coisa errada, o que eu queria, não é? Naquela época, eu me sentia revoltada porque

meus pais não explicavam o motivo, só faziam dizer: - Não faça isso! Entendeu? Ao invés

de dizer porque não ia dar certo, que eu não tinha maturidade para isso. Com minha filha,

eu ajo diferente, ela tem 12 anos e quando me pede para ir a um show, eu digo que ela não

vai, porque ainda não tem cabeça para ir a um show. Digo que quando ela estiver madura,

eu a deixo ir, bem acompanhada... Mas eles não, eles diziam que eu ia ter que fazer tal

coisa e pronto! Eu fazia cursinho à noite, quando era nove e meia, eu saía correndo com

medo, chegava em casa e perguntavam onde eu estava, que isso não era hora de moça

chegar em casa!
183

Meus pais só agiam assim com as filhas. Ao todo, são oito irmãos, quatro homens e

quatro mulheres, eu sou a caçula, mas eu sempre fui diferente... Assim, quando eu entrei na

escola bem novinha ainda, era a época do movimento hippie e eu andava como uma hippie,

meu cabelo, pintei com água oxigenada, cheguei am casa com o cabelo bem amarelinho,

meu pai não aceitou. Então eu passava o dia mais na escola, comia com os amigos, você

sabe como é a vida de estudante... Quando meu pai estava dormindo, eu chegava e entrava

em casa escondida, eu usava aquelas calças, rasgava as calças compridas, sabe? E ele não

aceitava, ele dizia que eu era maconheira... Hum! Eu nunca nem tive contato! Graças a

Deus! De drogas eu nunca gostei não, mas eu andava assim: os cabelos bem grandes,

cacheados, toda pirada, toda doida mesmo! Eles não aceitavam de jeito nenhum!

Quando eu saí da escola, fui chamada para o estágio, que era em Roraima, mas eles

não deixaram, ou seja, cortaram as asas, não deixaram, porque mulher não deve ser...

Mesmo tendo mandado eu fazer esse curso, eles diziam que eu tinha que procurar emprego

aqui. Eu resolvi procurar outra profissão... Mas abandonei, não me dediquei não. Eu queria

um futuro diferente, mas foi como se eu quisesse voar e alguém cortou a asa, sabe? Eu

perdi tempo, perdi a minha vida quase toda...

No início do casamento, eu trabalhava, gostava do que fazia, mas abandonei...

Também quando eu estava trabalhando, as escolinhas particulares não pagavam um bom

salário, aí eu... Assim... Também eu nunca iria me sentir bem em deixar meu filho com

qualquer pessoa, está entendendo? Disso aí eu não me arrependo não, eu renunciei porque...

Assim, eu não me arrependo. O problema maior está sendo mais recente entendeu? Pois eu

não posso sair, porque não tenho segurança de deixar meu marido com os meninos... Eu me

conformei em ser dona de casa, mas desde que tivesse amor, que ele me amasse, porque se

ele me amasse, assim como eu o amo, ele mudava, ele fazia as coisas que eu gosto, ele já
184

compartilhava comigo, está entendendo? Por exemplo, não está trabalhando, mas ficava em

casa, eu ia batalhar, porque para mulher é mais fácil, para mulher é! Pode pegar lavagem de

roupa, pegar uma faxina... Desde que tivesse amor, tivesse uma vida normal, porque aí ele

já me ajudava, um ajudava o outro. Você sabe, quando existe amor, existe união, existe

força... Mas desse jeito, ele não me dá segurança. Eu não posso sair, deixar ele com as

crianças, não dá para eu fazer nada, só para ter raiva dele!

Meu marido é assistente administrativo e a dificuldade financeira que a gente está

tendo, também perturba... Tanto a minha família como a dele, estão ajudando. Mas Deus

mantém, assim, esse problema aí, não me choca muito, o financeiro não me perturba em

nada, você acredita? Nada me perturba, o que perturba mais é esse problema que eu venho

passando, porque mexe com o meu sistema nervoso, mexe com a minha vida, mexe com

tudo! Relacionamento amoroso mexe com tudo! Está entendendo como é? É como que seja

na base, na estrutura, assim de... De uma pessoa é o amor! Eu acho que é assim, sabe? Não

entendo muito, mas eu vejo assim, é assim que eu me sinto... Como que se tivesse assim,

desmoronando, sem ter estrutura!

É como se eu me segurasse muito nesse amor, e perder isso, ver isso se

desestruturando é triste! É muito triste assim, mas eu oro, sabe? Eu clamo a Deus, eu tenho

esperança de adquirir ele de volta, porque para Deus nada é impossível. Quando a gente vê

que não consegue materialmente, a gente busca o lado espiritual, assim, a gente busca sair

daí. Eu tenho fé, sabe? Eu quero abraço, eu quero beijo, principalmente abraço, se ele me

desse um abraço, já seria alguma coisa... Eu tenho uma carência de afeto, de toque, de

abraço... É como se, no fundo, isso fosse até mais importante do que o amor entre homem e

mulher. Pronto, é nisso que eu estou... “Viajando”, é isso sabe? Nesse aspecto. Fiquei muito

triste assim eu... Sábado à tarde, domingo à tarde, sozinha, deitada no sofá, vendo
185

televisão... Meu marido dormindo, aí acorda, bota só a bermuda e sai... Nem olha para

você, isso é triste! Essa carência que eu sinto, é algo já antigo, eu acho que é antigo,

assim... No lado de me realizar... Eu não tenho muita amizade, na minha família ninguém

tem ligação um com o outro... Só na hora de ajudar materialmente. Mas não considera data

de aniversário, não é de dar um abraço, beijo... Não dialoga, nem costuma contar o

problema um do outro, está entendendo como é? Quando eu era criança, eu não sei se eu já

sentia essa carência, não me lembro muito, mas sempre foi assim mesmo! Povo muito

esquisito. Assim... Esquisito!

Voltando a falar sobre quando eu era criança, era assim, a gente morava no sítio...

Eu estudava na creche de manhã e passava a tarde brincando no sítio, só vinha para casa

quando minha mãe ia buscar. Eu me resgatava muito em casinha de boneca, agora eu

lembro... Eu fazia o cafezal, botava aquelas coisinhas dentro de círculos, ficava me

resgatando... A minha vida era muito jogada, agora eu lembro... Eu fazia, construía casinha

no começo do quintal, brincava sozinha, gostava muito de fazer casinha, com o pai, a mãe,

o filho... Fazia as roupinhas, fazia tudo, fazia fogo, brincava de cozinhar, fazia as comidas...

Fui muito só! Muito só assim... Eu era assim... Caçula, aí assim, eu nunca tinha direito a

algo, porque eles me viam sempre como uma criança, não tinha direito a sair só, eles me

viam sempre pequena. Está entendendo como é?

Quando eu pergunto se você está entendendo o que eu estou falando, é porque

assim... Eu acho que só eu entendo, sabe? Assim... É muito estranho... Eu nunca tenho

alguém para me escutar, realmente eu não tenho não! Tenho não, porque se eu for

conversar com o meu marido, ele não vai querer me ouvir... Vai dizer que eu só falo

besteira, então quem me escuta mais é minha filha, a gente conversa... Mas é aquele assunto

de adolescente. Assim, eu falo as coisas para ela, falo tudo, mas eu preciso de alguém da
186

minha idade para conversar, para dividir as coisas... Eu tenho uma amiga que sempre

telefona para mim, não sabe? Mas aí eu já fico com medo de ir lá e atrapalhar, com as

minhas conversas... Fico com receio de mostrar minhas conversas, então eu vou me

trancando cada vez mais! É desse jeito, eu vou me trancando cada vez mais, desde pequena

eu vivo muito assim, trancada no meu mundo. É tanto que assim... Até no lado profissional,

às vezes passam umas coisas assim na minha cabeça; por exemplo, acho que se eu tivesse

dinheiro, ia inventar de fazer qualquer coisa... Ia comprar uma máquina de fazer fralda,

botar em casa para eu fazer fralda. Assim, eu procuro sempre fazer as coisas em casa, está

entendendo? Sempre me trancando mais, porque eu acho que as pessoas não vão me aceitar

como eu sou... Será que aceitam? Eu me sinto rejeitada, é, eu me sinto rejeitada sim, sabe?

Eu me sinto rejeitada dentro de casa, me sinto rejeitada na sociedade, porque eu não sou

ninguém, porque eu não tenho dinheiro, porque eu não tenho nada, eu não... Eu me sinto

rejeitada por todo mundo. Pela minha família também, pois uns têm mais condições, outros

não têm; quem tem me isola, quem não tem me procura, então eu vejo que existe só o meu

marido... Ele não me amou? Porque não pode continuar com esse amor?

Eu já pensei em largar tudo, já pensei em me oferecer como voluntária para

trabalhar em creche, mas vi que ia fazer uma injustiça com os meus filhos e com meu

marido, não é? Assim, largar tudo para ir trabalhar como voluntária... E será que lá (nesse

trabalho) eles iriam me aceitar? O que existe em mim, que eu acho que as pessoas podem

não aceitar... São as conversas? Será que é isso? Não sei, eu acho minhas conversas

diferentes, pois eu sempre tenho a mania de querer ensinar as coisas às pessoas, então

minha menina diz que eu falo muito! Pronto, aí quando chegou a hora dessa entrevista, eu

pensei: - Será que vou falar besteira? Ela vai pensar que eu estou doida! Fiquei até com

medo, mas eu sinto sofrimento mesmo. -Você acha que tem solução? É... Difícil!
187

Eu gosto muito das pessoas e, para mim, é muito importante quando eu percebo que

elas gostam! Pronto, no caso da família do meu marido, o pai dele é ótimo, mas a mão dele

já... Parece que ela não é normal. Assim, eu me sinto mais normal do que ela! Ela briga

com tudo, fala com tudo e eu já aceito as coisas como elas são, entendeu? Assim, as coisas

materiais, pois as espirituais eu fico buscando... Mas a mãe dele fica reclamando de tudo, aí

a pessoa, ou seja, a nora que ela humilhava mais era eu... Ela me humilhava muito! Mas

hoje ela me vê como... Assim... Como uma filha, porque eu nunca respondi, eu não dou

atenção às coisas que ela briga, sempre fico calada, calada, calada, calada, calada. Eu

sempre procuro dar muita atenção a ela, está entendendo? Sim, porque eu vejo o pai dele

como um pai para mim, a mãe dele não, é muito... Assim, eu olho mais assim pelo lado

humano também, está entendendo? Ela fala do meu cabelo, ela fala das... Fala de tudo,

reclama, essas coisas de gente idosa, mas eu até gosto dela. Eu vou lá, faço companhia... Ás

vezes ela diz que eu pareço “alesada”, diz que o povo faz o que quer comigo, que eu não

estou nem aí. Assim, eu tenho que respeitar as pessoas como elas são, embora ninguém me

aceite, mas eu aceito, porque eu posso perder a amizade da pessoa, está entendendo? Os de

casa, eu fico orientando, em tudo, agora, já os de fora eu aceito tudo, porque eu não sei

fazer inimizade com ninguém! Pronto, se eu discutir com uma pessoa, eu passo a noite toda

sem dormir, enquanto eu não faço as pazes, enquanto não peço desculpas, não fico bem. Eu

acho que eu, como se diz no popular, me acostumei em só ser “batida”, sem retribuir, está

entendendo?

Quando meus pais me criticavam, eu só reagia me isolando, passando o dia fora, o

lugar pra onde eu podia ir era a escola, pois eu morava perto. Eu não podia reagir de outra

forma porque meu pai batia, era daqueles que batia com aquele mesmo chicote de bater nos

cavalos, aí eu já temia era o chicote! Está entendendo? Mas aí, quando eu fui crescendo, eu
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não aceitava! Mas hoje em dia, eu continuo aceitando e reagindo da mesma forma, porque

se eu responder mal ou arengar, não aceitar uma pessoa como ela é, se prepare que é uma

noite sem sono; eu fico com a consciência pesada. Com o meu marido mesmo, se eu não

fizer uma coisa para o meu marido, eu me sinto assim, culpada. É muito difícil me sentir

desprezada! Eu até já me imaginei sem o meu marido, eu já imaginei isso, mas assim...

Ficar só sabe? Não ter mais ninguém... Aí pronto, é o que eu lhe falei, ficando sem ele, eu

penso em levar a vida dedicada à creche, abrigo, visitar hospitais, essas coisas. Buscar...

Assim, fora sabe?

Quando eu me imagino sem o meu marido, eu sinto... Eu posso falar? Assim, sinto

liberdade! Tive receio de falar, porque as pessoas podem pensar que eu quero ficar livre

dele, mas não é dele, é dos problemas que eu quero me livrar. Eu gosto dele, é... Depois

meus filhos, assim eu... Assim, enquanto ele for vivo, eu tenho que agüentar porque eu

tenho meus filhos, eu não tenho capacidade de criá-los sozinha! Pode até ser que eu tenha,

não é? Quando eu, assim... Ficar sem ele mesmo, Deus dá um jeito, mas eu não me acho

capaz, está entendendo? Não me acho com capacidade de segurar a barra sozinha. A vida é

difícil... Sair, ter que botar menino em creche, ter que sair de manhã e chegar de noite...

Minha filha é adolescente, já vai ficar sem o meu acompanhamento na escola. Ela faz a

sétima série, mas eu estudo com ela, faço vocabulário, eu pergunto, estudo matemática,

português, estudo acompanho ela, converso, ensino as coisas da vida pra ela... Ao mesmo

tempo, aprendo no computador, pois ela me ensina, com um pouco de paciência, mas ela

me ensina. Aí pronto, eu já vou ter que deixar de dar atenção aos filhos, abandonar a casa,

para ir trabalhar, para poder buscar e sustentar... E eu me sinto incapaz disso também.

Eu sonhei muito em ser livre, ser independente, mas hoje eu não sinto que posso

buscar esse sonho, não tenho direito... Devido às circunstâncias... É porque eu sou uma
189

pessoa que não tem amor, eu não sou amada, não tenho amigo, não tenho ninguém, como é

que eu vou poder passar amor para as pessoas? Apesar de eu fazer o maior esforço para

passar, está entendendo? Eu faço o máximo! Mesmo não tendo, mas eu tento por meu

esforço, eu busco através da televisão, de revistas, de livros, eu busco ser diferente, não

entrar naquela de revolta, não estou revoltada com isso não! Eu sinto falta, é diferente, sinto

dificuldade... Então eu me entrego totalmente às outras pessoas, querendo dar amor e

recebendo o contrário! Por isso alguns me chamam de “alesada”... Como tem gente lá no

condomínio, que um dia me cumprimenta, outro dia não. Eu pergunto à pessoa porque ela

não falou comigo. Aí, sabe? Busco sabe? Está entendendo? Eu faço tudo para ter amigo,

mas... Sei lá! É difícil!

Foi bom me abrir com você! Eu nunca contaria isso para ninguém, é... Eu senti

assim... Que você é uma pessoa que gosta de mim. Assim, eu senti que de qualquer forma

eu sou importante pra você, seja pelo amor que você tem à profissão... De qualquer forma

eu estou aqui porque eu sou importante para você... Mas dá para você tirar alguma coisa?

Assim para... Para o seu trabalho? Também eu me preocupei com isso, eu desabafei, mas...

É que eu fico sempre pensando que não tenho ninguém... Eu não tenho com quem contar!

Eu não posso desabafar com ninguém, eu não posso falar para ninguém! Não tenho com

quem contar! Se eu for contar às minhas irmãs, elas vão dizer para eu deixar essas besteiras

para lá, pois eu tenho tudo na vida para ser feliz... É... Embora eu escute todo mundo...

Escuto, porque eu leio a Bíblia e tem uma passagem que diz para a gente ouvir as pessoas.

Eu mudei muito depois que conheci a palavra de Deus, sabe? Estava tão difícil, que havia

dias que eu não tinha nem coragem de tomar banho. Isso era uma depressão tão grande!

Mas já venho me sentindo melhor; eu preciso resgatar a auto-estima, pois também não

tenho... Tenho que me amar. Porque meu marido não me quer mais, não olha nem para
190

mim, então eu vou ficar me arrumando pra quem? Peço a Deus para chegar a noite, porque

eu vejo que o dia acabou, na esperança do outro dia ser melhor, sabe? Na esperança de

Deus tocar no coração do meu marido, para ele ver a mulher que tem... Porque é difícil a

gente amar e nunca ter... Assim, é difícil alguém amar outro assim como eu gosto dele. O

que mais está atrapalhando a gente é esse lado dele assim seco, com essas coisas secas, pois

ele não dá bom dia, não... Isso me dói muito! Viver feito uma pedra!

Narrativa 06: Elisa, 29 anos

O meu relacionamento amoroso hoje em dia está sendo muito difícil. Antes, a gente

vivia super bem, mas de uns tempos para cá, meu marido está muito diferente, mudou

muito em vista do que era. Ele sai para trabalhar cedo, eu também saio; aí ele chega em

casa primeiro e quando chega, às vezes... Sai normal, vai trabalhar, quando chega em

casa é de cara feia, como se tivesse um problema... Quando chega em casa quer

descontar. Aí, fica uma coisa bem difícil, não é? Porque se ele tem algum problema, tem

alguma coisa lá fora, aquilo ali não poderia afetar em casa, porque aí vai prejudicar a

mim, até a ele mesmo no nosso relacionamento, entende? Aí fica bem difícil!

Já faz mais de um ano que isso começou... A gente tem treze anos de casamento e

temos dois filhos, de onze e nove anos. Ele gosta muito de farrear, sempre gostou, a gente

sempre conviveu assim, “brincando” (se divertindo) normalmente; mas tem final de semana

que ele sai, no sábado, por exemplo, sai de manhã e chega em casa de madrugada... No

domingo sai também, e às vezes chega na segunda feira, é assim! Ele acha que tem que ser

desse jeito. Eu vou conversar, não sei o que... Fica com umas coisas sabe? Diz que estava

“brincando”. Eu sempre digo que sei que ele estava “brincando”, mas... Ele sai para passar
191

um dia ou dois fora... Aí fica reclamando depois. É assim! Quando vai farrear, chega em

casa no outro dia, e às vezes em que só encontra meus filhos, já quer sair novamente.

Minha filha fecha o portão e não o deixa sair... É assim. Eu não sei se ele tem outra pessoa

lá fora, isso eu não sei... Eu já conversei e ele nunca diz nada, só diz que é porque ele sai

para “brincar” com os meninos. Eu deixo claro que sei que ele sai com os amigos, vem com

eles, tudo bem, mas é preciso estar fazendo isso? Uma vez ele saiu e só chegou no outro

dia, chegou na segunda feira ao meio dia. Liguei para ele durante a madrugada, mas o

celular estava desligado. Quando ele chegou, minha filha colocou o cadeado no portão para

ele não sair novamente.

As crianças ficam apreensivas, todas duas, então muitas vezes choram. A gente

também estava na praia e, de lá para cá, quando a gente vinha embora, eu, minha irmã...

Então ele disse que não queria voltar para casa naquele momento. Eu disse que se todo

mundo tinha ido junto, então ia voltar junto. No caminho ele dizia que eu ia ficar na casa da

minha mãe, que eu não ia para casa! Eu disse que ia para casa, sim! Chegou em casa, a

gente desceu, tudo bem... Tiramos as coisas, e ele ficou dizendo que eu ia embora, morar

com a minha mãe. Eu disse que não tinha motivo para ir embora de casa, se ele quisesse,

que saísse, porque eu não ia sair! Os meninos começaram a chorar, ele começou a arrumar

a roupa dele e os meninos disseram que iam junto.

Os meninos tanto são apegados a mim como a ele, mas eles dizem que se o pai for

embora, eles vão com o pai. Aí, ele ficou dizendo que ia embora e não sei o quê... Eu disse

que tudo bem, se ele queria ir, que fosse!

Às vezes desconfio que ele tem uma pessoa lá fora, porque se ele não tivesse ele não

faria isso comigo. Aconteceu muitas vezes na cama... Por exemplo, uma vez a gente estava

fazendo amor e ele chamou o nome da dona, assim na minha cara! Pronto! Ali a mulher
192

morreu. Para mim ali eu parei tudo, pronto. Ele perguntou o que havia acontecido e eu,

revoltada, lhe disse que não entendia como é que ele estava fazendo aquela pergunta!

Pronto! Ali ele parou também, não falou mais nada. A gente conversou no outro dia, ele

disse que não tem outra pessoa, e eu perguntei então como é que ele dizia isso, se tinha

chamado o nome dela. Eu disse que nunca fiz isso, mas que ele, hoje, tinha que fazer isso

comigo... Falando nisso, agora, eu me sinto assim... Angustiada... Muito mal, sabe? É

porque um relacionamento de tanto tempo, a gente nunca espera, a gente nunca sabe a que

ponto chega. Fica muito difícil! Difícil demais! Aí, assim... Hoje em dia, eu... Porque eu

trabalho... Nós trabalhamos juntos e ele sai de lá mais cedo do que eu, antes do meu

horário, que é de sete horas. Eu estava até indo para o colégio, mas devido eu chegar muito

tarde, acabei trancando a matrícula, então quando chego em casa, ele está dormindo. Eu

chego para ajeitar a janta, ele levanta para comer e, depois, vai dormir. É assim! Está ali só

por estar! Eu acho assim!

Eu... Hoje em dia eu não sei mais o que me faz estar com ele, porque o amor que eu

sentia por ele, de tantas que ele já fez comigo, que eu não sinto mais, eu não sinto mais

nada por ele. Eu não sei nem porque, depois desse tempo todo, porque que eu ainda estou

ali, naquele mesmo local, junto com ele... Eu não sei dizer! Às vezes eu fico pensando

assim, mas... Tentando compreender, sabe? Porque que eu ainda estou lá.

O nosso relacionamento antes era bem estável mesmo, a gente convivia super bem,

mas depois que a gente casou, apareceu uma mulher dizendo que tinha um filho dele, uma

menina que já ia fazer oito anos. Depois que a gente casou, daí começou, porque toda vez

que essa menina aparecia, ele mudava totalmente em casa, comigo, ficava todo estranho,

sempre foi assim. Uma vez, ele chegou a me bater por causa dessa menina, então depois

que essa menina apareceu, começou a desandar tudo. Toda vez que essa menina aparecia,
193

ele ficava chateado, aí ele mudava totalmente dentro de casa, não falava comigo, passava

dois, três dias com raiva... Era assim! É bem antigo esse jeito dele, é já bem antigo, desde

que a gente casou. Depois de um ano em diante que eu tive minha menina, aí começou, pois

apareceram com essa menina lá, então ele começou a mudar totalmente dentro de casa.

A tia dele diz que quando foram fazer o exame, a mãe da menina não quis, foi

embora e não fez o exame. Quando ela aparece, ele compra alguma coisa escondida...

Quando eu descubro, ele diz que é porque ela veio buscar umas coisas, mas eu digo que não

é preciso ele esconder de mim, porque ele tira dos próprios filhos, que ele sabe que são

dele, para dar á ela, que ele não sabe! A partir daí, ele já começa a fazer um pé de briga...

Quando essa menina aparece, ele muda totalmente dentro de casa, até com os meninos

mesmo ele fica estranho, distante, não fala comigo... É assim!

Eu o conheci quando tinha dezesseis anos (ele é nove anos mais velho do que eu),

foi meu segundo namorado e eu o encontrei na casa de um tio meu. Então ele sempre

mandava recado para mim, mas eu nunca quis namorá-lo... Depois eu comecei a gostar dele

e a gente começou a namorar. Eu trabalhava a semana todinha, estudava, então a gente só

se encontrava no final de semana, mas era super legal! Eu acho que foi só um ano de

namoro, depois veio o casamento. A decisão de casar foi assim, porque a gente já passou

esse tempo todo namorando... A gente passou um ano namorando, então antes de um ano,

ele falou para a gente noivar, conversou com o meu pai, com minha mãe e a gente noivou.

Quando chegou no mês de maio, a gente resolveu casar, passamos um tempo morando de

aluguel, até construir a casa da gente. Até aí tudo bem... Foi o tempo em que essa menina

apareceu.

Eu sempre trabalhei e, hoje em dia, eu trabalho em um órgão público com ele, sou

ASG (assistente de serviços gerais). Eu sempre pensei em um dia casar, ter filho... Isso
194

sempre passou pela minha cabeça. Eu pensava em casar, ter filhos, tentar... Dependendo

dele, não é? Viver bem. Logo no começo a gente viveu bem, mas só que depois, pronto,

começou a desandar tudo! É tanto que desse tempo todo para cá ele já... Duas vezes já ele

disse que vai embora, arrumou roupa e tudo, mas acabou desistindo. Eu disse a ele que na

terceira vez ele vai, porque quem não agüenta mais sou eu! Porque do jeito que ele quer

viver, assim, não adianta a gente forçar, porque é forçar! Se ele não quer mais, então

procure o rumo dele; cada um vai para um lado. Muitas vezes eu já me imaginei sozinha

com meus filhos, vivendo normalmente, sabe? Toda vez que ele fala que vai embora, diz

que vai conversar com a minha mãe! Eu digo a ele que para mim tanto faz, porque mãe não

vai dar jeito não! Que se eu me decidir me separar dele, ela não vai me obrigar a viver com

ele, porque quem sabe sou eu, não ela! Porque na frente dela ele se faz de bonzinho, mas

por traz ele é bem diferente.

Eu imagino assim, no dia em que eu me separar do meu marido, eu não vou querer

mais outro homem para morar com ele... Vou viver apenas com os meus filhos, na casa que

a gente tem e pronto. Porque eu acho assim... Quando a gente se separa, que vê que não

está dando certo, vai arranjar outro homem para viver aquela vida do mesmo jeito que

estava vivendo? Aí não adianta! Não adianta a gente sair de um casamento, entrar em outro

e continuar a mesma coisa. Porque hoje em dia os homens são imprevisíveis, não é? Pronto,

eu vou deixar ele hoje, com o tempo eu vou arranjar outro marido, e vai ser melhor que

esse, mas às vezes a gente se engana, arranja outro que é pior ainda! Eu pensava que ia ser

feliz com o meu marido, mas hoje em dia é bem difícil mesmo, bem complicado! Então eu

digo assim, que no momento em que eu me separar, eu não quero mais outro homem para

morar comigo. Eu acho que se está horrível, então tudo vai ser a mesma coisa ou pior

ainda!
195

Quando eu era mais nova, antes de casar, pensava que ia casar... Eu estudava

normalmente, eu sempre ajudei todo mundo em casa... Eu nem pensava assim, em casar

logo, queria trabalhar, terminar meus estudos, um dia ter... Eu gostei sempre assim de

cuidar de criança, essas coisas, e dizia que ia fazer o curso de auxiliar de enfermagem, uma

coisa assim, para ver não é? Pois eu sempre gostei daquilo ali. Eu dizia que ia terminar

meus estudos, fazer um curso de auxiliar de enfermagem, ver se eu conseguia um trabalho

no hospital, porque a minha idéia era essa, não de chegar assim e casar logo. Mas

aconteceu, casei e pronto. O que me fez desistir do futuro que eu tinha em mente... Foi

assim, eu acho assim, porque antes da gente casar, a gente transou, aí eu engravidei, então

eu acho que também foi mais por isso. Agora eu ia ter uma responsabilidade maior, de ser

mãe, cuidar daquela criança, tudo isso! Eu desisti totalmente de ter uma vida profissional,

me dediquei só a casa, aos meus filhos, a ele... Era assim. Depois comecei a trabalhar

novamente e trabalho até hoje, coisa que ele nunca gostou, que eu trabalhasse fora. Eu não

sei porque ele nunca gostou... Toda vez que eu começava a trabalhar, ele passava duas, três

semanas em casa com raiva, sem falar comigo. Ah! Ele dizia que era porque a casa ia ficar

abandonada, os meninos, a menina ia ficar... Eu dizia que não ia ficar nada abandonado!

Para ele eu tinha que ficar em casa sabe? A responsabilidade era com a casa, com a filha e

com ele, dentro de casa e pronto, eu não podia ter responsabilidade com mais nada. Eu

voltei a trabalhar depois que tive minha filha, com dois anos depois de casada. E quando eu

o conheci, já trabalhava, estudava, tudo isso eu já fazia, mas ele queria que eu ficasse em

casa, direto... Mas aí eu me impus e disse que ia fazer aquilo que eu queria; eu queria

trabalhar, então eu ia trabalhar.

Minha mãe sempre disse para eu e meus irmãos terminarmos os estudos e fazermos

outros cursos, para hoje em dia sermos pessoas bem melhores na vida; era isso que ela
196

queria para a gente... Que tivéssemos a nossa própria profissão, uma formação melhor, era

isso que eles... Que meus pais sempre quiseram para os filhos. Minha mãe sempre trabalhou

fora, pois ela tinha lavagens de roupa e nunca ficou só em casa. Eu comecei a trabalhar com

onze anos, em casa de família, para já ajudar a minha mãe dentro de casa, porque nós, lá em

casa, somos oito irmãos; alguns trabalhavam e outros não. Eu comecei a trabalhar cedo em

casa de família, para ajudar, ela também trabalhava, saia quase às cinco horas da manhã,

chegava às seis horas da noite... Todo dia era essa rotina assim, e quando eu não estava

trabalhando fora, quem tomava conta da casa era eu, porque minhas irmãs mais velhas eram

casadas, então eu sempre ajudei em tudo dentro de casa.

Eu sempre me via assim, como... Porque quando a gente toma uma responsabilidade

dentro de casa, é como se a gente já fosse viver ali, uma responsabilidade muito grande,

não é? É uma responsabilidade que a gente só tem quando se casa, então ali em casa eu

tinha uma responsabilidade muito grande, porque eu era quem fazia de tudo: lavava,

cozinhava, tudo dentro de casa era eu. Eu nunca me senti como se aquilo fosse um peso

para mim, mas era uma responsabilidade grande... Eu gostava porque ali eu estava

ajudando a minha mãe, meus pais estavam precisando e eu estava ajudando. Com os meus

pais, o relacionamento sempre foi... Sempre foi bom... Mas minha mãe e meu pai, nunca

foram de chegar e fazer um carinho... Era só benção mãe, benção pai e pronto, eles nunca

tiveram aquele aconchego com a gente... Hoje em dia eles têm, mas com os netos, não é? O

que eles não deram para a gente, hoje em dia estão dando para os netos.

É uma falta de carinho que a gente fica sentindo, entendeu? E hoje, meu

relacionamento é a mesma coisa, porque marido, ele só quer saber da gente na hora de ir

para a cama, não chega para fazer um carinho nem nada, só quer saber mesmo na hora que

vai se deitar, fazer... Transar, fazer amor, pronto. Terminou ali, ele levanta, vai tomar
197

banho, fica assistindo (televisão); hoje em dia é desse jeito. Eu sempre gostei de dar carinho

e sempre gostei de receber, mas só que na minha casa a gente nunca recebeu da minha mãe,

nem do meu pai, e hoje também, com o meu marido, continua a mesma coisa. Eu já

conversei várias vezes com ele, eu digo que ele só quer saber de mim quando eu vou me

deitar, na hora que quer transar, depois se levanta, vai tomar banho, fica assistindo... Não,

assim não dá! Mas não tem jeito, continua a mesma coisa... Já conversei várias vezes, mas

não muda de jeito nenhum. Quando ele me procura, eu não tenho vontade! Eu aceito

porque acho assim, que é por obrigação, mas nem sempre eu faço, nem sempre eu cedo ao

desejo dele; quando eu cedo, eu acho assim, que já que eu casei... Hoje em dia eu não sinto

mais amor, nem nada. Aí ele vem me procurar várias vezes, pronto, que nem já várias vezes

ele vem me procurar e eu não quero fazer. Aí ele vai e diz que se fosse ele que não

quisesse, eu ia achar o quê? Ia achar que tinha outra, não é? Aí eu fico calada, não digo

nada... É como se eu me sentisse pressionada, obrigada a fazer aquilo ali na hora que ele

quer... Porque eu não tenho mais prazer assim, quando... Em fazer amor com ele! Tem hora

que quando faço, eu me sinto depois, eu fico me sentindo mal. É desse jeito, a minha

sensação é essa! Eu acho assim, que de tudo que ele já aprontou comigo, eu não tenho mais

vontade, de tantas que ele já aprontou desde que a gente casou, que eu não tenho mais

aquele prazer de fazer amor com ele, aquele carinho, na cama junto com ele.

A minha mãe, ela sempre dizia que a gente não deve aceitar tudo, porque meu pai

também sempre foi namorador, hoje em dia ele é, sem dúvida. Tem cinqüenta e oito anos,

mas ele sempre foi namorador e minha mãe sempre soube, sempre aceitou. Eu sempre vi

tudo isso dentro de casa... Ele trabalha aqui em Natal, só aparece em casa uma vez por mês,

assim mesmo quando vai, na mesma hora volta, é assim... Ele nunca fica em casa direito. E

no meu casamento, é como se eu estivesse revivendo isso. Eu digo não, não dá para
198

agüentar tudo não! Agüentar tudo até o dia que der. Eu já perguntei várias vezes se ele acha

que eu vou viver o resto da vida com ele desse jeito! Eu mesma respondo que não vou,

porque vai ter um dia que vai chegar no meu limite e eu não vou agüentar mais! Mas

enquanto não chega, é como se eu estivesse agindo como minha mãe, do mesmo jeito.

Muitas vezes, eu fico pensando comigo mesma que vai ter que chegar uma hora! Vai ter

que chegar naquele limite, porque eu não vou agüentar o resto da minha vida vivendo com

ele desse jeito! Eu acho que minha mãe não pensa nisso muito não, sabe? Para ela, continua

do mesmo jeito, aquela vida de sempre e não está nem aí... Mas eu vejo que eu não vou

mais passar o resto da minha vida com ele; eu vejo por esse lado, porque eu não o amo

mais, eu não sinto mais aquela, aquele... O que eu sentia antes por ele, aquela paixão,

aquele amor, eu não sinto mais, sabe?

Eu acho assim, que eu ainda continuo nesse relacionamento devido também aos

meus filhos, porque se o pai for embora, eles vão com o pai, não vão ficar comigo. E eles,

apesar da idade, já podem entender. Eu tenho medo de ficar sem eles, porque sempre que o

meu pai dizia que ia embora, a gente lá em casa nunca dizia que ia embora com ele, nunca!

Só tinha meu irmão mais novo que dizia que ia junto com ele! Era a única pessoa que dizia

isso. Eu me sinto muito angustiada ouvindo essas coisas dos meus filhos! Eu nunca pensei

que eles fossem chegar... Assim, o pai dizer que vai embora e eles dizerem que vão embora

com ele, porque quando eu engravidei da menina, ele dizia que não era dele e queria que eu

abortasse, então eu disse a ele que faria todos os exames para provar que a filha era dele. A

tia dele conversou com ele e ele acabou aceitando. O relacionamento já começou com uma

dificuldade grande, imensa! Porque, por ele, eu não tinha tido essa criança.

Os pais dele diziam que ele tinha que casar, porque eu estava grávida, mas por mim,

eu não tinha casado! Meu pai reclamou porque tinha acontecido aquilo, minha mãe não,
199

minha mãe me deu todo apoio, mas meu pai não, ele reclamou muito comigo, a família dele

pressionou muito... Então “painho” foi e disse que eu tinha que casar logo. Eu, por mim,

não tinha casado, mesmo gostando dele; eu aceitei mais, também, devido não querer dentro

da casa da minha mãe mais um neto para ela criar, porque já tinha uma irmã minha

separada e com três filhos para a minha mãe criar. Mas aí, depois do nascimento da minha

filha, a gente começou a viver bem; depois foi que desandou tudo.

Ele já disse que se for embora, deixa as crianças comigo, mas eu tenho medo que

ele mude de idéia. Eu não me vejo sem os meninos de jeito nenhum! Eu não me vejo assim,

sozinha. E o relacionamento é muito bom entre eu e meus filhos, para onde eu vou, no final

de semana, é com eles direto.

Meu marido costuma dizer que é homem e, por isso, pode fazer tudo, diferente de

mim, que sou mulher, então para mim “pega”. Eu digo que não é assim, o direito que ele

tem de sair, ir com um colega tomar cerveja, eu também tenho... Tenho o direito de sair

com minhas amigas, ir tomar uma cerveja, o direito que ele tem, eu também tenho! Um dia

eu fiquei até meia-noite no aniversário de uma prima e, quando cheguei em casa, ele

reclamou, disse que aquela não era hora de eu chegar e perguntou onde eu estava. Eu disse

que estava na casa da minha tia e não avisei porque ele tinha desligado o celular, então ele

continuou reclamando e eu disse que ele reclama porque eu cheguei à meia-noite, mas ele

chega no dia seguinte e eu não digo nada! Eu sei que eu fui dormir no quarto dos meninos,

ele levantou de madrugada e perguntou porque eu estava dormindo lá, eu respondi que era

porque eu queria. De manhã ele levantou cedo e saiu, chegou em casa eram umas três

horas. É assim, ele acha que só ele tem direito de fazer o que quer, e eu não tenho direito de

fazer nada, de sair, de chegar em casa mais tarde, esse direito eu não tenho, só quem tem é

ele. Muitas vezes eu falo mais do que ajo, porque eu nunca saio assim com minhas amigas,
200

para um show, nunca fico até mais tarde na rua com minhas amigas... Não pode. Também

às vezes não tenho com quem deixar os meninos, e não gosto de sair para deixar eles

sozinhos até tarde.

Meu marido trabalha numa fábrica de toalhas e eu sou quem faço tudo dentro de

casa, cuido dos meninos e tenho o meu trabalho. As despesas a gente divide e, muitas

vezes, sobra mais... Assim, as despesas ficam mais comigo, muitas vezes, porque tudo que

eles querem, os meninos, ele não vão pedir para o pai, só pedem para mim, quando eles

querem uma coisa, eu... Sempre foi assim, eles se sentem mais à vontade para pedir as

coisas a mim do que ao pai.

Se a gente se separar, eu não me vejo mais casada, posso namorar, mas cada um

morando na sua casa. Isso aí eu me vejo fazendo, mas para casar, morar comigo

novamente, eu não quero mais não... Chegar a ponto de casar novamente.

Eu acho assim, que a única coisa que eu posso dizer que é minha de verdade são

meus filhos, são eles dois! Eu sei que saiu de dentro de mim, então é a única coisa que eu

posso dizer que eu tenho de verdade, que eu tenho uma coisa que é minha... São eles dois!

E que sempre vai ser minha. Eu vejo que o meu casamento é uma coisa que não vai ser para

sempre, como eu pensava, e eles não, eles para sempre vão ser meus filhos.

Pra mim essa conversa foi desabafo, eu fico mais aliviada. Eu não tenho assim...

Uma pessoa assim, para eu chegar e conversar, não sabe? Muitas vezes eu fico até a hora

dele chegar, com uma coisa ruim dentro de mim e nunca vou desabafar, mas agora eu estou

me sentindo mais aliviada.

Quanto ao meu futuro, meus projetos, eu não sei... Eu penso assim em me realizar

profissionalmente, porque o meu sonho sempre foi fazer enfermagem e eu vou batalhar

para isso! Porque eu vejo assim, que é uma coisa que eu sempre quis fazer, eu sempre
201

sonhei em fazer aquilo, então eu vou lutar para conseguir fazer. Eu me sinto muito feliz

falando isso, porque eu vou aprendendo uma coisa, não só para mim, mas para eu poder

ajudar outras pessoas, porque eu não penso em aprender e ficar com aquilo só para mim.

Realizando esse sonho, eu vou ajudar muitas pessoas que eu sempre gostei de ajudar, pois

isso é uma coisa que eu sempre gostei... Sempre adorei lidar com criança! E eu fazendo

isso, conseguindo, vou estar ajudando muitas pessoas.

Eu me vejo assim... Porque eu sempre fui uma pessoa bem alegre, eu posso estar

com a maior tristeza, mas eu sempre fui uma pessoa bem alegre! Lá no trabalho, o pessoal

diz que nunca me viu com raiva, triste... Eu não expresso, vou expressar para que, para

magoar as pessoas? Eu não posso fazer isso! Não adianta ficar com raiva e querer descontar

alguma coisa nos outros, pois eles não têm culpa; eu sempre fui assim e assim eu vou ser

até... Bem descontraída mesmo! Mas esse meu jeito de está mal e passar alegria também me

traz algo ruim... Isso vem de muito tempo, nunca quero magoar os outros. Quando eu era

criança, que me sentia mal e não podia fazer nada, eu só me vingava em chorar, e somente

eu era assim em casa, os outros falavam tudo. É porque eu nunca quis contrariar a minha

mãe, mas os meus irmãos a contrariam até hoje, chegam lá reclamando de minhas coisas

para ela... Ela fica preocupada. Aí pronto, eu fico angustiada, eu começo a chorar, é sempre

assim. Quando eu vejo aquilo ali, eu também sofro muito com isso, porque ela tem

problema de saúde e não pode ter contrariedade de jeito nenhum. Ela sabe o que eu estou

passando, nós já conversamos, e ela disse para eu ver, até o dia que eu agüentar... Disse que

quando chegar no meu limite, eu devo resolver. Eu disse a ela que eu sei disso, quando eu

não agüentar mais, eu resolvo a minha vida, eu decido, pois eu não vou passar o resto da

minha vida desse jeito.


202

Apêndice A

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

TÍTULO DO PROJETO: COMPREENDENDO A EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO


DA MULHER NA RELAÇÃO AMOROSA.

PESQUISADOR: ANA REGINA DE LIMA MOREIRA


FORMAÇÃO: PSICÓLOGA (CRP 13/2154)
TELEFONE: (84) 9964-8292

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

O objetivo do presente trabalho é compreender a experiência de permanência no


sofrimento da mulher na relação amorosa.
Para tal, serão realizadas entrevistas que poderão durar a princípio cerca de uma
hora, durante as quais serão feitas perguntas ao informante, sempre visando alcançar os
objetivos deste empreendimento e dentro do intuito maior que é contribuir para a
construção do conhecimento científico.
Com a finalidade de trabalharmos dentro de uma ética estabelecida para a pesquisa
psicológica, o informante tomará ciência dos princípios abaixo discriminados e que regerão
sua participação.
Este TERMO, em duas vias, é para certificar que eu,
_______________________________________ , concordo em participar deste projeto
científico, bem instruído neste termo de consentimento, de acordo com os seguintes
princípios:
Autonomia: Considero preservada minha participação como voluntária, sem coerção
pessoal ou institucional, dando minha permissão para ser entrevistada e para estas
203

entrevistas serem gravadas em fitas cassete. Estou ciente de que sou livre para recusar e dar
e dar respostas a determinadas questões durante as entrevistas, retirar meu consentimento e
terminar minha participação a qualquer tempo, bem como terei a oportunidade para
perguntar sobre qualquer questão que eu desejar, e que todas deverão ser respondidas pelo
pesquisador a meu contento.

Beneficência: Estou ciente de que poderá não haver benefícios diretos para mim enquanto
entrevistada deste estudo, além de eventuais ganhos altruísticos e emocionais de poder falar
sobre o assunto em pauta. Sei também que poderá haver alguma mudança positiva nos
cuidados dispensados às mulheres que passam pela mesma experiência que eu, após outros
profissionais tomarem conhecimento das conclusões desta pesquisa.

Não-maleficência: Estou ciente de que estará garantida a não invasão de minha privacidade.
Sei que, além do pesquisador, o material coletado na entrevista poderá ser conhecido por
colegas pesquisadores, especialistas da área, ou seja, poderão conhecer trechos do conteúdo
para discussão dos resultados, mas meu nome será omitido e estas pessoas estarão sempre
submetidas às normas do sigilo profissional. O relatório final estará disponível para todos
quando estiver concluído o estudo, inclusive para apresentação em encontros científicos e
publicações em revistas especializadas, podendo conter citações literais da entrevista, mas
sempre de modo anônimo e evitando a identificação do informante. Finalmente, estou
ciente de que serei respeitada quanto a não mencionar aspectos de foro íntimo, a não ser
quando for de minha concordância abordá-los.

Pesquisador: __________________________________________________________

Entrevistado: _________________________________________________________

Entrevista n.º ______

Local: ___________________________________________________________

Data: ____/____/_______

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