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A química da felicidade
Existe uma molécula que determina se as lembranças serão boas ou ruins. Veja esta e
outras descobertas da ciência sobre os mecanismos cerebrais ligados à felicidade. E a
relação disso com a polêmica dos antidepressivos.
Por Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
19 jan 2023, 15h25
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Você é feliz? E agora, neste exato momento, você está feliz? Esperamos que
sim. Mas, seja qual for o seu veredicto, você provavelmente hesitou um
pouquinho antes de responder.
Como escreveu Machado de Assis, a felicidade é uma quimera: algo que você
passa a vida tentando alcançar, mas está sempre escapando. Ela é muito mais do
que ter saúde, dinheiro, liberdade e uma rede de apoio social – os critérios usados
pelo World Happiness Report, da ONU, para medir o grau de felicidade de uma
nação.
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Cada vez mais gente tenta resolver o problema recorrendo aos antidepressivos,
mas isso desencadeou um fenômeno curioso: ao mesmo tempo em que aumenta o
uso desses medicamentos, a porcentagem de deprimidos na sociedade segue
crescendo (1). Em 2013, segundo dados do IBGE, eram 7,6% dos brasileiros. Em
2019, antes da pandemia, 10,2%. Hoje, são 11,3%. Será que os remédios estão
mesmo funcionando?
A felicidade sempre parece estar um pouco à frente – como uma miragem no deserto. (Liniker
Eduardo/Superinteressante)
A notícia correu o mundo, com uma onda de manchetes dizendo que essas drogas
não funcionam, e seu efeito é mero placebo. Não é bem assim. Todos os
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Descobriu, por exemplo, uma molécula que “carimba” cada uma das memórias –
e determina se ela vai ser positiva ou negativa. E que o cérebro possui uma malha
de circuitos, a chamada “Rede de Modo Padrão”, que pode ser decisiva para a
sensação de (in)felicidade.
Da Grécia ao tálamo
O ranking da ONU mede coisas concretas, que levam à hedonia. Mas, quando
você pergunta a si mesmo se é feliz, na verdade está pensando na eudaimonia. E
ela é o saldo das experiências e emoções vividas. Ou seja, das suas memórias. Ao
gravá-las, o cérebro atribui a cada uma delas uma “valência emocional”.
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Foi uma lembrança feliz, certo? Aquela memória tem valência positiva. Agora
imagine que você levou um pé na bunda, justo naquela lanchonete. Nunca mais
volta lá, por razões óbvias. Mas tempos depois está na casa de um amigo que
pede aquele mesmo lanche por delivery.
Desta vez, o sanduíche evoca em você uma memória ruim – com valência
emocional negativa. Percebeu? A lembrança do hambúrguer em si não mudou
(você continua sabendo exatamente que gosto, cheiro e textura ele tem), mas seu
significado sim.
Quanto mais memórias positivas você acumula, mais perto da felicidade estará.
Isso é óbvio. O que não é óbvio: aparentemente, o cérebro gasta mais energia
para carimbar uma memória como positiva – e, por isso, ele pode ser
naturalmente pessimista.
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(Liniker Eduardo/Superinteressante)
Ela circula por todo o sistema nervoso, embora sua maior concentração esteja no
hipotálamo (que regula funções básicas, como sede, apetite, temperatura corporal
e pressão arterial) e na amígdala (ligada ao comportamento social, ao controle
das emoções e ao medo).
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O estudo em ratos demonstrou que o cérebro deles precisa fazer mais esforço,
produzindo a neurotensina, para gravar memórias boas. Existe uma propensão à
negatividade; e isso pode ser proposital.
Você já deve ter notado isso. Quando acontece alguma coisa boa, a gente
eventualmente esquece dela – mas as ruins ficam na cabeça por muito mais
tempo. E a neurotensina (ou a ausência dela) pode ter a ver com isso.
O papel dessa substância na formação das memórias começou a ficar mais claro
em 2011, quando cientistas dos EUA e da China submeteram 460 voluntários a
análises genéticas e testes de memória (5).
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A depressão pode turvar tudo – e tornar impossível alcançar, ou mesmo enxergar, a felicidade. (Liniker
Eduardo/Superinteressante)
Mas a neurotensina não está ligada apenas às memórias; também pode influenciar
a resposta emocional imediata. Em 2021, cientistas da Alemanha e do Irã
submeteram 22 voluntários adultos a um procedimento experimental (6): eles
receberam uma corrente elétrica de baixíssima intensidade, 1,5 miliampère, sobre
o córtex frontal dorsolateral (dlPFC) ou o córtex pré-frontal ventromedial
(vmPFC) durante 15 minutos.
Durante o teste, cada voluntário era apresentado a uma coleção de 100 imagens,
mostrando cenas boas e ruins, e devia classificar o “grau de positividade” de cada
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uma delas em uma escala de 1 a 9 pontos (bem como seu grau de “excitação” e
“dominância”, ou seja, agressividade). A experiência foi repetida três vezes, com
um intervalo de 72 horas.
Inclusive porque ela também tem outra função: ajuda a controlar a quantidade de
dopamina (7), um neurotransmissor relacionado à memória e à sensação de
prazer – e que, se estiver em níveis acima ou abaixo do ideal, pode levar à
depressão ou a comportamentos compulsivos.
A mente ruminante
O cérebro está sempre funcionando a todo vapor. Ele gasta muito mais energia do
que qualquer outro órgão (sozinho, queima 20% de todas as calorias que você
ingere), e isso acontece mesmo quando a mente está em repouso, sem prestar
atenção a estímulos externos ou raciocinar para tentar resolver alguma tarefa.
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(Liniker Eduardo/Superinteressante)
A existência da DMN foi teorizada pelo psiquiatra alemão Hans Berger, que em
1924 inventou o exame de eletroencefalograma (usado para monitorar as ondas
cerebrais). Cinco anos mais tarde, ele publicou uma sequência de artigos
científicos defendendo a tese de que o cérebro não desacelera quando a pessoa
está descansando – ele aciona regiões diferentes, mas continua trabalhando à
toda.
Era uma teoria polêmica para a época. Mas começou a ser comprovada na década
de 1950, quando a equipe do neurocientista americano Louis Sokoloff colocou
voluntários para resolver problemas matemáticos enquanto monitorava a
atividade cerebral deles.
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Como os exames de neuroimagem ainda não existiam, Sokoloff usou uma técnica
curiosa (9): fez os voluntários inalarem óxido nitroso, também conhecido como
“gás hilariante” (porque deixa a pessoa relaxada e com vontade de rir).
Foi uma quantidade bem pequena, insuficiente para causar esses efeitos. Mas o
bastante para que as moléculas do gás se espalhassem pela corrente sanguínea e
penetrassem no cérebro dos voluntários.
O objetivo disso era pegar, ao mesmo tempo, sangue arterial (que está indo
irrigar os órgãos) e sangue venoso (que já passou por eles). Comparando a
quantidade de óxido nitroso nas duas amostras, você consegue saber o volume de
sangue que passou pelo cérebro – e, a partir daí, calcular o consumo de energia
dele.
Legal, né? Esse método foi inventado em 1944, e é usado até hoje. Mas voltando
ao estudo de Sokoloff. Depois dos testes de matemática, ele permitiu que os
voluntários descansassem, mas continuou fazendo as medições. E viu que o
consumo de energia do cérebro permanecia o mesmo quando as pessoas estavam
em repouso.
Com o passar das décadas, novas técnicas e estudos foram confirmando isso – e
exames de neuroimagem revelaram as regiões cerebrais envolvidas. No início
dos anos 2000, o neurologista Marcus Raichle, da Universidade de Washington,
encaixou a última peça: ele cunhou o termo “modo padrão” para definir o que o
cérebro faz nesses momentos de descanso.
Quem tem depressão também costuma fazer isso. E o motivo pode estar na Rede
de Modo Padrão.
A felicidade não é sólida; ela oscila, momento a momento. Uma hora nos
sentimos felizes e outra não, mesmo quando não há estímulos claramente
negativos – aquele hambúrguer que hoje nos parece delicioso, amanhã pode não
satisfazer (mesmo não havendo um fim de relacionamento envolvido na história).
Para tentar entender isso, é preciso voltar ao outro tipo de felicidade segundo
Aristóteles: a hedônica. E a ciência também tem descoberto coisas novas sobre
ela.
Por razões éticas, não dá para fazer esse tipo de teste em humanos (eles
provavelmente ficariam viciados). Mas, na década de 1970, a ciência conseguiu
identificar regiões cerebrais envolvidas no prazer – monitorando a atividade
cerebral de voluntários durante o orgasmo (11).
A área mais ativada foi a do septo cerebral, uma membrana bem no meio do
cérebro – a mesma que havia sido estimulada, e gerado uma forte reação, nos
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testes em ratos.
Nas décadas seguintes, outros estudos foram mostrando que o prazer (em sua
definição mais ampla, não só sexual) envolve várias áreas do cérebro humano,
como a área tegmental ventral, o núcleo accumbens, o corpo estriado, o
hipocampo e a amígdala.
A felicidade é alcançável. Mas ela sempre acaba sumindo, e reaparecendo, depois. E isso pode ter um
motivo. (Liniker Eduardo/Superinteressante)
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“Os antidepressivos funcionam, ainda que seu mecanismo de ação seja conhecido
apenas de forma periférica”, diz Ricardo Alberto Moreno, do Instituto de
Psiquiatria da USP. E esse é o xis da questão: o que esses medicamentos fazem,
exatamente, ainda é um mistério. “Não sabemos como eles atuam dentro das
células”, admite Moreno.
É assim com muitos remédios. Até alguns dos mais banais, como o anti-
inflamatório paracetamol, não têm seu mecanismo de ação plenamente
compreendido pela ciência. No caso dos antidepressivos, há dois complicadores:
os mistérios do cérebro, que ainda são muitos, e a própria natureza da depressão.
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“Ela é uma doença multifatorial, com diferentes causas, nem todas endógenas.
Existem fatores ambientais importantes”, lembra Martins-de-Souza, da Unicamp.
“As experiências de vida são preponderantes. Há casos de pessoas que, quando
confrontadas com algumas situações-gatilho, disparam a doença. Isso não quer
dizer que a serotonina não esteja envolvida, de alguma forma que varia de acordo
com o paciente”, diz.
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Mas, afirma ele, está claro que a serotonina tem um papel menos determinante do
que se imaginava – e pode variar de uma pessoa para outra. “A psiquiatria
caminha para tratamentos cada vez mais individualizados, que consideram o peso
de cada fator para cada pessoa, pensando em terapias e tratamentos que foquem
em cada uma das diferentes causas”, afirma.
Todo mundo oscila entre o feliz, o não tão feliz, o alegre, o neutro, o
melancólico, o triste e mil outras emoções. Todas têm sua função. Inclusive
porque elas podem ser instrumentos da razão, nos ajudando a fazer julgamentos
rápidos e com menos esforço cognitivo.
Tanto é assim que até animais com cérebros extremamente simples, como as
abelhas, parecem ter algum tipo de reação protoemocional, e se guiar por ela.
Quando estamos felizes, ficamos mais dispostos a correr riscos e tentar coisas
novas. As abelhas também.
Uma experiência feita por pesquisadores ingleses mostrou que, quando esses
insetos recebiam um néctar doce, seus cérebros liberavam dopamina – e elas se
tornavam mais corajosas, explorando mais o ambiente e fugindo por menos
tempo de um ataque de predador simulado pelos cientistas (14). Já quando as
abelhas eram tratadas com flufenazina, uma droga que bloqueia a dopamina, isso
não ocorria.
As emoções também resolvem muitas coisas por nós. Imagine se você tivesse de
decidir, de forma fria e racional, tudo o que costuma resolver por impulso
emocional – como escolher o que vai comer, fazer ou dizer. Seria absurdamente
cansativo.
“As emoções parecem operar num nível mais abstrato, mas elas trazem
experiências relevantes do passado e leituras do contexto que contribuem para a
tomada de decisões”, afirma o físico e escritor americano Leonard Mlodinow em
seu livro Emocional: A nova neurociência dos afetos (ed. Zahar, 2022).
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Vale a pena andar na montanha russa das emoções – mesmo que isso signifique
encarar uma sequência interminável, muitas vezes imprevisível, de subidas e
descidas. Por mais que estejamos sempre correndo atrás da felicidade, sabemos
que ela vai escapar e voltar sem muito controle, guiada por balés neuroquímicos
e ventos da vida.
E tudo bem, porque as coisas também precisam dos seus opostos. Se não
houvesse a escuridão da noite, jamais veríamos o sol nascer. Se tudo fosse feliz,
nada seria feliz.
***
Fontes
(5) Neurotensin
Receptor 1 Gene (NTSR1) Polymorphism Is Associated with
Working Memory. J Li e outros, 2011.
(6) The role of dorsolateral and ventromedial prefrontal cortex in the processing
of emotional dimensions. V Nejati e outros, 2021. (7) Presynaptic action of
neurotensin on dopamine release through inhibition of D2 receptor function. C
Fawaz, 2009.
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(10) Depressive
Rumination, the Default-Mode Network, and the Dark Matter of
Clinical Neuroscience. JP Hamilton e outros, 2015. (11) Pleasure and brain
activity in man. R Heath, 1972. (12) The serotonin theory of depression: a
systematic umbrella review of the evidence. J Moncrieff e outros, 2022.
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