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Batalhas e Monstros

ANTHONY HOROWITZ

Batalhas e Monstros

Tradução de Marilena Moraes e Fernanda Lobo

SÃO PAULO 2015


Os textos que compõem esta obra foram publicados originalmente em inglês em dois
volumes, LEGENDS – BATTLES AND QUEST e LEGENDS – BEASTS AND MONSTERS,
por Macmillan Children’s Books, uma divisão da Macmillan Publishers Limited.
Copyright © 1985, 2010, Anthony Horowitz
Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em parte,
armazenado em sistemas eletrônicos recuperáveis nem transmitido por nenhuma forma ou
meio eletrônico, mecânico ou outros, sem a prévia autorização por escrito do editor.
Copyright © 2015, Editora WMF Martins Fontes Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1a edição 2015
Tradução
Marilena Moraes
Fernanda Lobo
Acompanhamento editorial
Sorel Silva
Preparação de texto
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Ana Maria de O. M. Barbosa
Solange Martins
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Horowitz, Anthony
Batalhas e monstros / Anthony Horowitz ; tradução de Marilena Moraes e Fernanda
Lobo. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2015.

Título original: Legends : battles and quest e Legends : beasts and monsters.
ISBN 978-85-7827-980-6

1. Lendas 2. Literatura inglesa 3. Mitologia I. Título.

15-07079 CDD-823
Índices para catálogo sistemático:
1. Lendas : Mitologia : Literatura inglesa 823

Todos os direitos desta edição reservados à


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SUMÁRIO

Introdução

O enigma da Esfinge
Mitologia grega

O incrível ovo pintado


Lenda dos índios Cheiene

O dragão e São Jorge


Lenda inglesa

A lavadeira no vau do rio


Lenda celta

A cabeça da Górgona
Mitologia grega

O Minotauro
Mitologia grega

O grande sino de Pequim


Lenda chinesa
Rômulo e Remo
Mitologia romana

Geriguiaguiatugo
Lenda dos índios Bororó

Uma oferenda para o Sol


Lenda inca

A esposa feia
Lenda celta

Dez feras e monstros incríveis de que você provavelmente nunca


ouviu falar

Dez armas incríveis de mitos e lendas


INTRODUÇÃO

Sempre gostei de mitos e lendas, mas algumas versões que li na


adolescência eram um tanto secas. Significa que tinham pouco
humor. Não havia sangue suficiente. Os autores me davam a
sensação de que eu estava lendo algo sério e importante só porque
eram histórias famosas e antigas – e a linguagem usada era quase
sempre deliberadamente antiquada. Era um pouco como andar por
um museu, vendo relíquias empoeiradas, atrás de vitrines de vidro,
com placas de “Não toque” por todo lado.
Tomei duas decisões: primeiro, iria me divertir. Tentaria escrever
as histórias como se estivessem sendo contadas pela primeira vez.
Não precisaria ser muito reverente só porque estava tratando de
deuses e heróis. Também queria lançar minha rede mais longe. Não
contaria só histórias que todos conhecem – O Cavalo de Troia, O
Minotauro etc. Quase todas as histórias mais famosas vêm da
Grécia Antiga, mas cada cultura tem seus próprios mitos e lendas.
Por isso, também procuraria mitos dos chineses, egípcios, índios
Cheiene, celtas, incas e assim por diante, do mundo todo.
É incrível pensar quanta coisa aconteceu desde que comecei a
trabalhar nesta coletânea. Quando escrevi as primeiras histórias (à
máquina, pois na época não havia computadores), eu não era
casado. Meus dois filhos não tinham nascido. Eu morava num
quarto alugado na região oeste de Londres. O tal Alex Rider não
existia, nem mesmo nos meus pensamentos mais distantes.
Isso foi há muito tempo. Mas as histórias existiam muito antes
disso. Na verdade, elas existem há séculos e, enquanto
continuarmos a contá-las, certamente sobreviverão ainda por muitos
séculos.

ANTHONY HOROWITZ
O enigma da Esfinge
MITOLOGIA GREGA

– Qual criatura tem quatro pernas de manhã, duas pernas à


tarde e três pernas à noite?
É quase certo que este tenha sido o primeiro enigma inventado.
Foi pronunciado por uma criatura medonha que, certa vez, chegou
aos arredores da cidade de Tebas, na Grécia Antiga. A criatura foi
chamada de Esfinge e tinha cabeça de mulher, corpo de leão, asas
de águia e cauda de serpente. Havia apenas uma estrada para
Tebas, o que tornava impossível entrar na cidade sem passar pela
Esfinge. E era impossível passar por ela, que também era muito
grande e veloz, sem decifrar o enigma.
Uma das primeiras pessoas que cruzou com a Esfinge foi um
jovem chamado Hemon. Seguia ao encontro do tio, rei de Tebas,
quando viu seu caminho bloqueado. Muita gente teria fugido de tão
bizarra mistura de ave, fera, serpente e mulher, mas Hemon, que
pertencia à linhagem real, não tinha medo de nada.
– Pare onde está! – a Esfinge ordenou, com voz de professor
zangado. Sua cauda se contorcia na poeira, e as asas se agitavam
no ar.
– O que você quer? – perguntou Hemon, com a mão já se
dirigindo à sua espada.
– Tenho um enigma para você decifrar – disse a Esfinge.
– Um enigma? – Hemon relaxou. – Parece divertido. Qual é?
– Qual criatura tem quatro pernas de manhã, duas pernas à
tarde e três pernas à noite?
– Bom… deixe-me ver. Quatro pernas de manhã? Não é um
cachorro ou algo parecido? Certa vez vi uma cabra de três pernas,
mas ela não estava viva, então acho que não conta. Um sapo,
talvez? Não sei. Desisto…
Mal as palavras acabaram de sair da boca de Hemon, a Esfinge
o agarrou e saiu voando. Então, sua cauda deslizou até o pescoço
do jovem e começou a apertar. Finalmente, enquanto seu rosto de
mulher gargalhava insanamente, suas garras o rasgaram em mil
pedaços e, em segundos, a estrada estava toda coberta de sangue.
E esse foi um dos mais antigos gracejos: a palavra grega haimon
significa “sangrento”. No entanto, Hemon, que estava sendo
devorado, não achou muita graça.
Também os habitantes de Tebas não acharam graça. Quando
descobriram que era impossível ir a qualquer lugar próximo à cidade
sem ser desafiado por um monstro terrível, chamado a resolver um
enigma impossível e dilacerado se não conseguisse, quase
armaram um rebelião. Porém não havia nada que pudessem fazer.
Foi um ano ruim para os negócios em Tebas. As atividades turísticas
entraram em franca decadência. Apesar de o rei Laio e a rainha
Jocasta, que governavam a cidade, terem oferecido uma grande
recompensa para quem os livrasse da Esfinge, ninguém jamais foi
premiado.
Claro que muitos príncipes e guerreiros vieram de longe para
tentar lançar seu exército contra aquela criatura, mas ela jamais
seria destruída por espadas e flechas. Sua pele era resistente como
ferro. Suas garras enormes eram afiadas como navalha. Com suas
asas podia erguer-se no ar, e sua cauda estrangulava qualquer
pescoço num piscar de olhos. Algumas pessoas tentaram decifrar o
enigma. Com o passar dos meses, respostas de todo tipo foram
tentadas: ratos, morcegos, gatos, mosquitos e jaguatiricas foram só
algumas das respostas malsucedidas. A cada dia, mais um grito
cortava os ares, e sangue fresco se espalhava pela estrada.
Finalmente, a situação ficou tão ruim que o rei concluiu que
precisaria fazer alguma coisa por conta própria.
– Se pelo menos soubéssemos por que essa terrível criatura
veio parar aqui – ele dizia –, talvez pudéssemos encontrar uma
maneira de nos livrar dela.
– Por que não perguntar ao Oráculo? – sugeriu a rainha
Jocasta.
Oráculo era o nome dado a uma sacerdotisa capaz de prever o
futuro e, também, de responder a qualquer pergunta.
Assim que a rainha fez a sugestão, Laio se perguntou por que
ele mesmo nunca tinha pensado no Oráculo.
– Ótima ideia, querida – disse ele. – Farei isso já.
Ora, se o rei Laio tivesse procurado o Oráculo antes, teria tido
uma surpresa desagradável. Na verdade, a Esfinge estava ali por
culpa exclusiva de Laio, embora ele não soubesse.
Pouco tempo antes, Laio havia estado com um amigo e ficara
fascinado por seu filho. Na verdade, chegara a ponto de levar
consigo o garoto, Crisipo, e mantê-lo como escravo no seu palácio
em Tebas. Em dado momento, Crisipo se suicidara, e a história teria
ficado nisso se não tivesse sido testemunhada por Hera, a rainha
dos deuses. E para punir o rei Laio ela havia mandado a Esfinge
para Tebas.
Mas o rei Laio nunca consultou o Oráculo e nunca ficou sabendo
disso. Pois, guiando sua carruagem pela estrada, ele cruzou com
um jovem que estava a caminho de Tebas para desafiar a Esfinge. A
estrada era estreita e não havia espaço suficiente para os dois
passarem. Eles trocaram insultos, e o rei Laio passou com a
carruagem por cima dos pés do jovem, que tinha temperamento
violento e revidou, golpeando o estômago do rei com a lança antes
de seguir seu caminho.
O jovem se chamava Édipo e tinha um temperamento difícil.
Apesar disso, não era má pessoa. Na verdade, queria ser herói,
mas não sabia como consegui-lo. De qualquer maneira, estava
agora nos arredores de Tebas, enfrentando a Esfinge.
– Pare onde está! – a Esfinge exclamou. – Se tem amor à vida,
diga-me qual criatura tem quatro pernas de manhã, duas pernas à
tarde e três pernas à noite.
Édipo começou a pensar sobre a questão, enquanto a Esfinge
lambia os beiços e preparava as garras. Entretanto, dessa vez ela
não teve tanta sorte.
– Já sei! – Édipo disse, finalmente. – A resposta é o homem.
Pela manhã, quando é bebê, ele engatinha; na tarde da sua vida,
anda sobre duas pernas; e, quando está velho, à noite, ele caminha
com uma bengala.
Quando a Esfinge se deu conta de que o enigma finalmente
havia sido desvendado, ficou vermelha de raiva. Sua cabeça de
mulher gritou, seu corpo de leão se contorceu, as penas das suas
asas de águia caíram e seu rabo de serpente murchou. Por fim, ela
saltou no ar e explodiu. E foi esse o seu fim.
Já Édipo, como recompensa, recebeu a coroa de Tebas e se
casou com a rainha Jocasta. Nem por um minuto ele suspeitou que,
na verdade, a rainha era sua mãe, que havia muito tempo perdera
de vista, e que o homem que matara na estrada era, na realidade,
seu pai…
Mas essa é, definitivamente, outra história.
O incrível ovo pintado
LENDA DOS ÍNDIOS CHEIENE

Os índios Cheiene, que cavalgavam pelas planícies da América


do Norte nos séculos XVII e XVIII, tinham um estranho costume.
Sempre que se viam diante de uma grande extensão de água, como
um lago ou um rio, lançavam nela comida ou fumo antes de
atravessá-la. Ninguém perguntava aos Cheiene por que faziam isso,
mas naquela época, é claro, ninguém perguntava nada aos
Cheiene. Quando alguém cruzava com um Cheiene, na América do
século XVIII, era mais seguro simplesmente fugir.
No entanto havia uma razão, encontrada num conto narrado
pelos contadores de histórias Cheiene. Era um conto sobre o grande
monstro do rio e dois irmãos que descobriram um incrível ovo
pintado.
Os dois irmãos eram conhecidos apenas como Mais Velho e
Mais Novo. Certa vez, eles se perderam nas pradarias. O sol estava
se pondo, e o horizonte formava um círculo em torno deles, sem que
nada, nenhuma árvore, nuvem ou construção interrompesse aquela
linha contínua. Estavam cercados pelo capim silvestre que se
agitava ao vento e tropeçavam aqui e acolá nos ossos calcinados de
animais que tiveram o azar de perambular por aquele lugar ermo.
Os irmãos tinham um pouco de água, mas não tinham comida e
começavam a sentir que suas forças se esvaíam.
Caminharam algumas milhas, cada vez mais famintos, e logo
seus estômagos roncavam tão alto quanto o ruído do vento. Então,
de repente e sem que esperassem, deram com um ovo largado no
chão, sem que houvesse sinal de pássaro ou ninho por perto.
– O Grande Espírito foi bondoso conosco – Mais Novo disse. –
Veja aquele ovo. Calculo que para nós dois vai durar uma semana
inteira.
– Não tenho tanta certeza – grunhiu Mais Velho. – Não me
parece bom.
– O que quer dizer com isso? – Mais Novo perguntou. – É
apenas um ovo.
No entanto, mesmo sendo apenas um ovo, era certamente um
ovo muito peculiar. Para começar, era verde brilhante com pintas
vermelhas. Além disso, era enorme, muito maior que um ovo de
galinha. Na verdade, era maior do que uma galinha. E como havia
chegado lá? Afinal de contas, aquele ovo estava ali no meio do
nada.
– Para mim, parece um feitiço – disse Mais Velho. – Eu diria que
é melhor não tocar nele.
– Onde está sua coragem? – retrucou Mais Novo. – Esse ovo
foi botado por uma ave grande, ou talvez por uma tartaruga. Você
tem razão, meu irmão, a cor é estranha e curiosa. Mas meu
estômago está vazio. Se eu não comer logo, vou fazer companhia a
meus ancestrais. Eu comeria esse ovo mesmo que ele fosse da cor
de um besouro-tigre. Na verdade, eu comeria um besouro-tigre
também, cozido numa fogueira com suco de cacto…
Enquanto Mais Velho observava, Mais Novo acendeu uma
fogueira e assou o ovo. Em seguida, quebrou a casca e começou a
comer.
– Tem certeza de que não quer comer um pouco, meu irmão? –
perguntou.
– Não, obrigado – disse Mais Velho.
– Está magnífico. Você nem imagina o que está perdendo.
Na verdade, Mais Novo estava mentindo ao dizer aquilo. O ovo
era duro e borrachudo. A gema era verde, da mesma cor da casca,
e a parte branca não era branca, mas meio cor-de-rosa. E não tinha
o sabor que deveria ter um ovo. Tinha gosto de peixe.
Mais Novo começou a passar mal, mas alguma coisa o fazia
continuar comendo. Ele não conseguia parar. Devorava o ovo cada
vez mais rápido, até que só restou a casca.
– Espero que saiba o que está fazendo – Mais Velho
resmungou.
Na manhã seguinte, quando acordaram, Mais Novo estava se
sentindo muito mal. Seu estômago parecia um carrossel de parque
de diversões e seus olhos estavam do tamanho de bolas de pingue-
pongue. O pior de tudo é que estava com muita sede. Bebeu toda a
água do cantil, porém o efeito foi de um golinho de nada. Mais Velho
olhou para ele e suspirou.
– Você está com uma aparência péssima – disse ao irmão.
– Estou me sentindo péssimo – concordou Mais Novo.
– Você está verde!
– Verde?
– E com pintas vermelhas.
Mais Novo se levantou. – Vamos! – disse ele. – Quanto mais
depressa encontrarmos água, melhor. Preciso beber alguma coisa.
Caminharam até o sol se pôr e, àquela altura, a pele de Mais
Novo tinha se tornado verde brilhante e as pintas vermelhas
estavam maiores e mais nítidas. Todo o seu cabelo tinha caído e ele
parecia ter dificuldade para falar.
– Voccccê dissssse – ele sibilou – que eu não devia comer o
ovo.
– Disse mesmo, meu irmão – respondeu Mais Velho.
– Desssssconfio que foi uma essssstupidez. Vou me sssssentir
melhor quando chegar à água. Precccccisssso nadar.
Na manhã seguinte, Mais Novo estava pior. Seus braços tinham
se colado às laterais do corpo e seu nariz tinha caído. O verde e o
vermelho de seu corpo estavam mais intensos e sua pele estava
viscosa. Como pele de sapo.
– Essssstou pior – ele gemeu.
– Parece mesmo pior – disse Mais Velho.
– Água!
Encontraram água quando o sol se pôs. Era um rio, que,
espumando e borbulhando, serpenteava pela paisagem hostil.
Arbustos e flores brotavam próximos à margem. Talvez houvesse
um povoado por perto. O povo deles bem teria escolhido viver perto
de um rio como aquele.
Mais Novo, cujas pernas estavam quase se fundindo, preferiu
dormir dentro do rio, enquanto Mais Velho repousava na terra, ao
lado da fogueira. Mais Velho não comia havia cinco dias e estava
fraco e cansado. Não tardou a cair no sono.
Foi acordado pelo som de um canto estranho e sublime. Abriu os
olhos e a primeira coisa que viu foi uma enorme quantidade de
peixes jogados às margens do rio, esperando para ser cozidos.
Então, olhou para a água e viu seu irmão.
Só que já não era seu irmão. Mais Novo havia se tornado um
enorme monstro aquático, com dentes pontudos, escamas
prateadas e cauda bifurcada. Nadava de um lado para o outro,
parando de vez em quando para espetar um peixe com a ponta da
cauda e jogá-lo na margem.
– Bom dia, meu irmão! – Mais Velho exclamou. – Como está se
sentindo hoje?
– Sssssaudável! – Mais Novo respondeu. – Não é tão ruim ser
uma ssssserpente aquática. Além do maisssss, peguei um monte de
peixxxxes!
– Obrigado – disse Mais Velho.
– Então essscute – continuou Mais Novo. – Não se
essssssqueça de mim. Consssssegui comida para você,
consssssiga comida para mim. Não quero comer pei-xxxxe a vida
toda.
– Farei isso – prometeu Mais Velho.
– E fumo também. Ssssou um monsssstro, sssim, masssss
ainda posssso fumar!
E é por isso que os Cheiene sempre jogam comida e fumo na
água antes de atravessá-la (mesmo quando perseguidos pela
cavalaria). Tudo isso para a serpente aquática continuar cantando.
O dragão e São Jorge
LENDA INGLESA

Já não existem dragões nos dias de hoje, graças sobretudo aos


soldados e heróis que irrefletidamente os matavam. É uma pena,
pois os dragões devem ter sido criaturas espantosas: parte
serpente, parte crocodilo, com fragmentos de leão, de águia e de
falcão misturados em medidas adequadas. Não só eram capazes de
saltar pelos ares e voar (uma tremenda façanha, se pensarmos no
peso que deviam ter suas escamas), como também eram capazes
de correr a grande velocidade. Não é que os dragões fugisssem.
Geralmente, eram criaturas muito corajosas. Quando nervosos ou
assustados, soltavam fumaça pelas narinas. Quando as coisas se
complicavam de verdade, lançavam chamas pela boca. Mas não
havia dragões covardes.
Somente os chineses entendiam e admiravam os dragões. Com
frequência, dizia-se que alguns de seus maiores imperadores eram
filhos de dragões. Ossos e dentes de dragão eram usados com fins
medicinais. Era um dragão que vigiava a morada dos deuses
chineses e fazia chover na terra quando as plantações
necessitavam. Por isso, os chineses ainda soltam pipas de dragões
e os homenageiam em suas comemorações de ano novo,
decoradas com dragões de papel. Os chineses gostavam mesmo
dos dragões.
Na Palestina do século IV, quando São Jorge ainda estava vivo,
os dragões eram mais temidos do que admirados. É verdade que
eles tinham, mesmo, hábitos perturbadores. Em geral, por exemplo,
viviam em cavernas úmidas e sujas, muitas vezes acumulando
imensas pilhas de tesouros que quase certamente eram roubados.
Também tinham um apetite pouco saudável por carne humana. Seu
alimento favorito eram as princesas, embora qualquer mulher jovem
os satisfizesse. Contudo, não eram os únicos animais do planeta
que comiam carne humana. O fato é que acabaram levando a má
fama.
De todo modo, São Jorge foi o mais famoso matador de
dragões, o que é estranho, pois na verdade ele nunca matou um
dragão. Outra coisa estranha é que, apesar de hoje ser mais
conhecido como o santo padroeiro da Inglaterra, Jorge (como era
chamado antes de se tornar santo) nem era inglês. Na verdade ele
nasceu na Palestina.
Seu pai era um oficial de alto escalão do exército romano e, por
algum tempo, Jorge seguiu seus passos, servindo como soldado no
Império de Diocleciano. Foi educado pelos pais cristãos e viajou o
mundo pregando o evangelho e fazendo o bem.
Seu confronto com o dragão ocorreu numa pequena cidade
chamada Silene. E é aí que a história começa.
O povo da cidade de Silene passou muitos anos amedrontado
pelo dragão, que vivia numa caverna à beira de uma lagoa de águas
estagnadas. Com frequência os vapores da lagoa eram levados pelo
vento para dentro da cidade, e as pessoas acreditavam que o
dragão fosse o responsável pelo cheiro de podridão que se
espalhava pelas ruas. Então, começaram a alimentar o dragão com
duas ovelhas por dia, na esperança de que ele partisse. É claro que
foi uma ideia particularmente estúpida e teve exatamente o efeito
contrário. Ora, acostumando-se a receber uma refeição grátis
regularmente ao meio-dia, o dragão concluiu que o povo da cidade
estava simplesmente feliz com a situação e queria, na verdade, que
ele ficasse. Com certeza, não fazia ideia de que as pessoas
estavam com medo.
A situação perdurou por muitos anos até que, como era de se
esperar, os carneiros começaram a ficar escassos. Assim, reuniu-se
um conselho com todos os políticos locais e o próprio rei para
decidirem o que fazer.
O ministro das relações exteriores foi o primeiro a se pronunciar.
– Honoráveis amigos – ele começou –, a situação é séria. Sinto-
me tentado a dizer que estamos em crise. Já não temos costeletas
nem empadões de cordeiro. A lã está acabando. E tudo isso por
quê? Porque entregamos todas as nossas ovelhas! E, ainda assim,
o dragão se recusa a partir.
– Que situação! – todos os outros conselheiros exclamaram,
apesar de, na verdade, o ministro não ter dito nada que eles já não
soubessem.
O líder da oposição tomou a palavra. – Gostaria de lembrar que
sempre fui contra dar carneiros ao dragão. Se tivéssemos entregado
galinhas, conforme sugeri, não estaríamos diante dessa crise. Esse
é mais um exemplo da incompetência do governo. Essa atitude do
governo só pode ser descrita como… ovelhacaria!
Seus amigos todos gargalharam da piada sem graça. Mas, em
seguida, o ministro de relações interiores levantou-se de um salto. –
A política de entregar as ovelhas ao dragão tem sido um sucesso. É
verdade que o dragão ainda não foi embora, mas tudo leva a crer
que logo irá. Basta alimentá-lo um pouco mais.
Houve uma explosão de vaias e gritos. Bolas de papel foram
arremessadas, até que o responsável pelo conselho pediu ordem.
O ministro dos assuntos ministeriais se adiantou. – Se, como diz
meu honorável amigo, nossas ovelhas estão escasseando,
poderíamos tentar dar outra coisa ao dragão.
A ideia causou um repentino silêncio, enquanto os outros
membros do conselho consideravam as alternativas.
Então o rei falou, com expressão sombria.
– Já é mais do que sabido que dragões gostam do sabor de
crianças. Parece-me, portanto, que não há alternativa. Teremos que
lhe entregar nossas crianças. Uma vez por semana, alimentaremos
o dragão com nossos filhos e filhas.
Por um momento, ninguém disse nada. Todos os participantes
do conselho ficaram alarmados, mas ninguém queria discutir com o
rei. Afinal, tinham que pensar em suas carreiras.
– Não sei se essa ideia vai agradar aos eleitores – alguém
resmungou.
– Como selecionaremos as crianças? – outro perguntou.
– Faremos um sorteio – respondeu o rei. – Cada criança da
cidade receberá um número. Uma vez por semana, um número será
retirado de um chapéu. A criança que tiver esse número será
entregue ao dragão, para salvar a cidade – ele concluiu, pondo-se
de pé. – Essa é a minha lei. E não haverá exceções.
Três meses se passaram e, ao longo desse tempo, doze
crianças foram capturadas pela guarda real, arrancadas dos pais
desesperados, amarradas e deixadas à porta da caverna do dragão.
Foi esse o terrível fim de sete meninos e cinco meninas. A carne
dessas crianças era devorada até os ossos, e seus esqueletos
apareciam completamente limpos e brancos, reluzindo ao sol da
manhã. Quanto ao dragão, ele notou as mudanças de sua
alimentação e ficou até meio intrigado. Mas o rei tinha acertado em
cheio ao dizer que o sabor agradaria ao dragão. Na verdade, ele já
estava estava ficando farto de ovelhas, e a troca pelas crianças lhe
agradou. Não é necessário dizer que, se em algum momento o
dragão considerou se mudar, agora estava decidido a ficar
exatamente onde estava e até pensou em convidar alguns amigos
para se juntar a ele.
Quando Jorge chegou, pairava sobre Silene uma atmosfera mais
venenosa do que qualquer névoa que pudesse vir da lagoa. Todas
as terças-feiras, dia do sorteio, as ruas ficavam tão silenciosas que,
se a cidade tivesse se transformado num cemitério, ninguém teria
notado a diferença. Pouca gente saía de casa, e quem saía
caminhava para o trabalho com o rosto pálido, a boca contraída num
esgar de pavor, evitando os olhares dos outros. Então, ao meio-dia,
um sino tocava. Soldados batiam à porta de alguma casa da cidade.
Um terrível grito de dor e desespero quebrava o silêncio. E, por toda
parte, pais abraçavam os filhos e agradeciam aos deuses por seu
número não ter sido sorteado.
Jorge chegou numa terça-feira à tarde, poucas horas depois de
um dos sorteios terminar. Não demorou muito para que soubesse o
que estava acontecendo em Silene. Quando descobriu, balançou a
cabeça, um pouco por espanto e um pouco por desespero. Seguiu
direto para o palácio à procura do rei e, ao entrar na sala do trono,
ouviu a seguinte conversa:
– Não pode ser! – dizia o rei. – Eu proíbo!
– Mas foram ordens suas – um dos ministros retrucou.
– O senhor fez a lei – disse um segundo ministro.
– E disse que não haveria exceções – um terceiro ministro
acrescentou.
– Mas ela é uma princesa… minha filha. – Lágrimas rolavam
pelas faces do rei. – Ela nem me disse que havia recebido um
número. Quando eu encontrar o imbecil que lhe deu o número,
mandarei acabar com ele. Será esfolado vivo!
– Foi o ministro das relações interiores – exclamou o ministro
das relações exteriores.
– Não foi não, Majestade! – gritou o ministro das relações
interiores. – Na verdade, fui eu que disse que a família real e todos
os políticos deveriam ser poupados, que nenhum de nós deveria ser
sorteado. No entanto, ela quis pegar um número. Disse que queria
ser como todas as outras crianças.
Isso era verdade. A princesa, apesar de ter somente catorze
anos, estava horrorizada com os acontecimentos em Silene. Ela era
uma menina inteligente e educada e, alguns diziam, bem à frente de
seu tempo. Por exemplo, tinha argumentado veementemente que
criminosos não deveriam receber pena de morte sem provas e que,
talvez, fosse uma péssima ideia entrar em guerra por uma razão
qualquer, sem medir as consequências. E tinha sido uma das
primeiras a se pronunciar contra aquele sorteio infernal. Como o rei
se recusou a ouvi-la, ela decidiu tomar uma posição. Insistiu para
que lhe dessem um número e, quando foi sorteada, apresentou-se
aos soldados sem discutir. Quando fosse morta, talvez seu pai
mudasse de ideia sobre aquela lei estúpida. Era o mínimo que ela
esperava.
O rei havia mudado de ideia. Mas parecia ser tarde demais.
– Ela já foi para a caverna – explicou o ministro das relações
interiores. – Na verdade, receio que já tenha sido devorada.
– Minha única filha! – lamentou o rei. E, pela primeira vez, ele
entendeu um pouco do sofrimento de seu povo. – Minha princesa…!
Jorge percebeu que não havia tempo a perder. Deixou o palácio
sem nem se apresentar, montou no cavalo e saiu da cidade rumo à
lagoa. Não foi difícil encontrar. O odor da água parada era tão forte
que ele podia, literalmente, seguir seu faro.
O barulho de choro avisava que ele havia encontrado a caverna
e que, ao contrário do que o ministro dissera, não era tarde demais.
Aquele dia o dragão tinha dormido muito, e a princesa ainda estava
viva, sentada no chão, com as mãos atadas por trás das costas.
Jorge desceu do cavalo para ir até ela, mas, mal havia dado uns
poucos passos, ouviu um súbito estrondo vindo de dentro da
caverna, e o dragão apareceu.
Ele era, na verdade, bem menor do que Jorge esperava, pouco
maior que seu cavalo. Era verde brilhante e tinha o corpo
estranhamente desproporcional. As asas, por exemplo, eram muito
pequenas para que fosse capaz de voar. Numa delas havia uma
argola cor-de-rosa e, na outra, uma vermelha. Tinha as patas
atarracadas, com garras, e um pescoço longo como uma serpente.
A única coisa realmente ameaçadora que ele tinha eram os dentes,
brancos e muito afiados1.
Quando a princesa viu o dragão, fechou os olhos e esperou pelo
fim. Mas Jorge não teve medo. – Ó dragão! – ele exclamou. – Vejo
que tem jantado bem ao longo dos anos, mas talvez tantas refeições
grátis tenham embaralhado seu juízo. Você pretende mesmo
devorar esta menina?
O dragão rosnou, hesitante. A menina abriu os olhos.
– Deus não criou as pessoas para serem servidas aos animais
selvagens – continuou Jorge. – E, como criatura de Deus, você
deveria se envergonhar. Só porque você foi criado por Ele é que não
pego minha espada e arranco sua cabeça agora mesmo. Até aos
animais deve ser dada a possibilidade de se arrepender.
As narinas do dragão expeliram uma fumaça que formava um
ponto de interrogação sobre sua cabeça.
– Chega de tolice! – Jorge desamarrou a menina e ajudou-a a
levantar-se. Então tirou uma fita do vestido dela e a amarrou em
volta do pescoço do dragão. – Vamos voltar a Silene para terminar
de resolver isso – e, inclinando-se diante da princesa, Jorge
continuou: – Parece-me que a senhorita se tornará uma governante
mais sábia e bondosa do que seu pai. Suas ações já demonstram
muito bem isso.
Quando Jorge voltou, houve um grande alvoroço em Silene.
Para começar, as pessoas viram a princesa caminhando ao lado
dele, quando todos já davam como certo que ela estivesse morta.
Seu obituário já havia aparecido em várias revistas de celebridades.
Mais espantoso ainda era ver o próprio dragão, que seguia atrás,
andando timidamente, puxado por uma fita. Era aquilo que os tinha
apavorado por tantos anos? Como puderam ter ouvido o rei e seus
conselheiros, de certo modo tão maldosos quanto o próprio dragão,
alimentado tão facilmente pelo medo da população?
Daquele dia em diante, Silene nunca mais foi a mesma. Até o fim
da semana, toda a cidade havia se convertido ao cristianismo e, na
verdade, o dragão também.
Pouco tempo depois, o rei se aposentou e sua filha se tornou
rainha. Todos os ministros e conselheiros foram destituídos e,
apesar de alguns terem ficado para escrever sua autobiografia e
alguns outros terem sido convidados para fazer parte do quadro de
funcionários do banco local, todo o restante deixou a cidade. Não
fizeram a menor falta.
A princesa se casou com um príncipe local, e os dois
governaram honrada e sabiamente por muitos anos. Quanto ao
dragão, terminou seus dias no jardim do palácio, sendo amigo e
companheiro dos filhos da rainha. Tornou-se também um
vegetariano convicto.

1 A imagem mais precisa do dragão foi pintada no século XV por um italiano chamado
Uccello, e está na National Gallery em Londres. Se houver alguma dúvida sobre a precisão
da minha descrição, basta conferi-la.
A lavadeira no vau do rio
LENDA CELTA

Nas horas que antecedem uma batalha, uma grande serenidade


repousa sobre os homens que podem estar prestes a morrer. Os
sobreviventes se lembrarão desse momento por muitos anos. É
claro que sentem medo. Enquanto o sol baixa no horizonte, sombras
cobrem não apenas as encostas nas montanhas, mas também suas
almas. Veem lâminas de espadas imaginárias penetrando sua
carne. Sentem a dor de seus membros sendo dilacerados, seus
ossos sendo partidos em dois, imaginando como seria padecer
naqueles campos, vendo seu sangue espalhado ao redor deles. Ou
talvez seja uma flecha que os golpeará de surpresa… na garganta,
no peito. Será que vai doer muito? Quanto vai durar o sofrimento
antes de se entregarem ao conforto da morte? Sabem que muitos
homens que os cercam, amigos com os quais viajaram por anos,
talvez não voltem a ver o pôr do sol. Aqui estão, tomando vinho,
taciturnos, aquecendo-se à beira do fogo. Eles são humanos. Estão
vivos. Amanhã, talvez não sejam mais nada. Até seus pensamentos
poderão, em algumas horas, tornar-se nada, apenas escuridão.
E assim foi na noite anterior à batalha de Gabhra. Hoje Gabhra é
conhecida como Garristown e fica no noroeste do condado de
Dublin, mas isso aconteceu há quase dois mil anos, quando a
Irlanda era jovem e entre os homens ainda caminhavam estranhas
criaturas, bruxas e demônios. Muitos fianna não tinham ideia da
razão pela qual essa batalha estava prestes a se realizar. Nem se
importavam. Estavam ali, e ninguém poderia impedir o que estava
por acontecer. Só isso importava.
Os fianna eram um grupo de guerreiros. Alguns os chamavam
de mercenários; outros, de nomes ainda piores. De fato, o grupo era
composto por ladrões e bandidos, mas também por aristocratas,
fidalgos que ainda esperavam a herança que viria de seus pais.
Como os antigos samurais do Japão ou os homens de Robin Hood
da Inglaterra medieval, eles lutariam por seu país quando fosse
necessário e gostavam de pensar que eram poetas. Para se juntar
aos fianna, era preciso saber de cor doze livros de poesia! Não era
isso prova suficiente?
Havia outros testes, mais físicos. Um aspirante a fénnid, como
eram chamados os recrutas, teria de provar que conseguia andar
sobre galhos secos sem fazer nenhum barulho. Deveria arrancar
espinhos dos próprios pés enquanto corria, sem parar nem diminuir
a velocidade. Mas o desafio mais perigoso envolvia um poço cavado
no solo. O recruta deveria descer até a altura da cintura e lhe seria
dado um escudo e um graveto de avelã. Nove homens com lanças
ficariam ao redor do poço e, assim que fosse dado o sinal,
começaria o desafio. Uma batalha… que muitas vezes levava à
morte. O fénnid deveria se desviar dos golpes de lança. Se fosse
ferido uma única vez, já seria considerado fracassado.
Na realidade, ao nascer do sol, os fianna lutariam contra as
forças do rei supremo da Irlanda, um homem chamado Cairbre
Lifechair. A filha do rei havia se casado recentemente, e na época
era costume pagar um tributo aos fianna no dia do casamento. O rei
supremo se recusou a pagar. Por vingança, os fianna mataram um
dos servos reais. E, facilmente, uma simples desavença se tornou
uma guerra monumental! Lifechair convocou seu exército, e os dois
lados foram para o úmido e nebuloso pântano ao redor de Gabhra.
Ao amanhecer, acertariam suas diferenças de uma vez por todas.
Os homens já haviam jantado. Em breve, iriam dormir. Mas
agora estavam conversando. Fosse qual fosse seu modo de ver,
não havia nenhum deles que não estivesse orgulhoso por estar ali.
Afinal, estavam na companhia de um dos maiores heróis dos fianna,
um homem conhecido em toda a Irlanda. Seu nome era Oscar e,
apesar de ter apenas vinte e poucos anos, seus feitos já haviam
inspirado canções e poemas épicos. Seu pai se chamava Oisín,
outro guerreiro lendário que também estava presente, mas, ao
contrário do filho, preferia manter a discrição.
Dizia-se com frequência que, quando jovem, no início da
adolescência, Oscar era tão desajeitado e inseguro que nenhum dos
guerreiros mais velhos o queria por perto. No entanto, agora que já
tinha mais de vinte anos, tudo mudara: ele era Oscar, o Bravo;
Oscar, o Vitorioso; Oscar que nunca havia perdido uma batalha ou
um combate corpo a corpo. Parecia mais jovem do que realmente
era. Tinha longas madeixas loiras que lhe caíam pelos ombros, um
rosto fino e bem desenhado e brilhantes olhos azuis. Era famoso por
sua risada e seu jeito despreocupado diante dos perigos que tinha
pela frente.
Mas aquela noite ele estava estranhamente calado. Era como se
estivesse perdido em seus pensamentos e, quando alguém propôs
uma canção, Oscar balançou a cabeça lentamente e se afastou,
rastejando, para sentar na escuridão. Alguns homens ficaram
incomodados, mas outro guerreiro, um homem chamado Dáire,
repreendeu-os.
– Ele está apenas preservando sua força para amanhã. E, se
vocês tivessem juízo, fariam o mesmo. Precisamos dormir. A não
ser que vocês queiram adormecer, talvez para sempre, no campo de
batalha.
Secretamente, no entanto, Dáire estava preocupado. Desde que
chegara, aquele dia, Oscar já não era o mesmo. Dáire era dez anos
mais velho que o amigo, era sombrio e tinha cicatrizes de batalhas.
Considerava-se irmão mais velho de Oscar. Os dois passaram
juntos por muitas aventuras. Ele sabia quando alguma coisa estava
errada.
Num momento em que teve certeza de que ninguém estava
olhando, Dáire foi até Oscar e sentou-se a seu lado. Durante um
tempo, permaneceram calados. Dáire sacou um odre de vinho e
bebeu. Ofereceu ao amigo. Uma vez mais, Oscar balançou a
cabeça.
– O que há com você? – Dáire perguntou.
Não obteve resposta. Dáire estava prestes a repetir a pergunta
quando Oscar falou. Olhava fixamente à sua frente, como se
buscasse alguma coisa na escuridão da noite.
– Estava pensando em alguns monstros que enfrentei ao longo
da vida – disse Oscar. Sua voz era suave. Tinha a habilidade de
cantar, mesmo quando estava falando. Era um grande talento. Dáire
frequentemente ouvia, maravilhado, Oscar recitar poemas de seu
pai.
– Estava só pensando qual deles foi o pior.
– Está querendo dizer o mais feio ou o mais perigoso?
– Não sei ao certo o que estou querendo dizer.
– Então por que está pensando nessas coisas? Vai ter tempo
suficiente para pensar em monstros depois de terminada a batalha.
Agora o monstro é Cairbre Lifechair… Ele se acha rei, mas nos
coloca nessa situação terrível e joga fora a vida de seus homens,
apenas porque é avarento e não quer pagar por um casamento!
– Vou contar o que aconteceu comigo hoje, Dáire. Mas só para
você. Prometa-me que não vai contar a mais ninguém.
– Do que está falando, Oscar? – Dáire contraiu os lábios e
tomou um trago enorme. Independentemente do que fosse
acontecer no dia seguinte, não deixaria sobrar nem uma gota de seu
vinho.
– Trata-se da lavadeira no vau do rio – disse Oscar.
Fez uma pausa. Então começou a história.
– Eu estava cavalgando pela região e tive que atravessar o vau
de um rio. Vinha seguindo o rio ao longo de uma boa distância, a
água era profunda e a correnteza era forte. Mas era a única maneira
de chegar ao outro lado. Ora, lá avistei uma mulher. Ela estava
sentada, lavando umas roupas.
– Uma bruxa velha, aposto.
– Não. Era jovem e bem bonita. Tinha cabelos loiros, como eu,
só que mais claros. E sua pele era muito branca. Supus que fosse
casada, pois lavava roupas de homem.
– Do marido?
– Foi o que imaginei – Oscar respirou fundo. – De qualquer
maneira, meu cavalo precisava de água. Então apeei e me sentei
com ela por um momento. O sol brilhava e eu não tinha muita
pressa. Sabia que estava a poucas milhas daqui. Por um tempo,
nenhum de nós falou. A mulher continuou lavando suas roupas, e eu
sentado a seu lado. Mas então ela se dirigiu a mim e disse: “Você
está a caminho de uma batalha!” Fiz que sim. Imaginei que ela
tivesse visto muitos soldados passando por ali. Era óbvio que estava
para acontecer uma batalha. “Está com medo?”, ela perguntou.
“Não tenho medo de nada”, respondi. “É mesmo?” Ela estava
caçoando de mim. Eu percebia pela sua voz. E talvez por isso eu
tenha perdido a cabeça. “Nunca deparei com fera ou monstro capaz
de me amedrontar”, eu disse. “Ah, é? E qual foi o pior monstro que
já enfrentou?”, ela perguntou.
Oscar se calou. Dáire ouvira tudo em silêncio. Podia notar que o
amigo ainda estava mergulhado em seus pensamentos e tentou
levar na brincadeira. – Você deveria ter agarrado e empurrado a
moça para dentro da água junto com todas as roupas, para acabar
com a insolência dela.
– Talvez. Mas alguma coisa naquela pergunta me fez pensar.
Enfrentei muitos monstros na vida e venci todos eles, a começar por
aquele gigante feio com as peles de veado.
– A cabeça dele rolou montanha abaixo! – Dáire já ouvira Oscar
descrever o incidente várias vezes, principalmente quando os dois
estavam bêbados. Sempre davam muita risada.
O gigante tinha quase dois metros e meio de altura. Ele ia
subindo a tal montanha, que ficava na região ocidental da Irlanda,
levando debaixo dos braços duas pilhas de peles de veado. O
gigante tinha uma cara assustadora, com lábios grossos e
disformes, olhos inchados e um nariz que parecia ter sido usado
como saco de pancada. Sua pele era manchada, e o cabelo, de
uma horrível cor de gengibre, caía-lhe sobre a testa como um
esfregão. Sua camiseta se apertava sobre a barriga enorme, e o
casaco pendia, folgado, como se estivesse rasgado.
O gigante estava subindo a montanha, e Oscar, descendo. O
caminho era estreito e havia lama dos dois lados. Seria inevitável
uma discussão. Na época, Oscar tinha apenas quinze anos. Apesar
de ser minúsculo comparado ao gigante, ele se recusou a sair do
caminho.
– Saia da frente, sr. Gigante, a não ser que queira sentir a
lâmina da minha espada.
– Saia da frente você, menino insolente, a não ser que queira
enfrentar minha clava – e, largando no chão as peles de veado, o
gigante fez aparecer uma clava tão grande que parecia feita de um
tronco de árvore.
– Estou avisando, gigante…
– Fique quieto, garoto…
O combate foi breve. O gigante girou sua clava. Oscar se
desviou e saltou, brandindo a espada. O declive da montanha o
tornava mais alto, e a lâmina acertou o pescoço do gigante,
cortando-lhe a cabeça. Foi uma explosão, um jorro de sangue. A
cabeça do gigante, como bem disse Dáire, rolou montanha abaixo e
acabou entrando num convento das redondezas, onde as freiras
estavam prestes a almoçar. Depois de uma hora, elas ainda
estavam histéricas.
– Foi esse o pior dos monstros? – Dáire perguntou. Ao redor
dele, todos os fianna se preparavam para dormir, cobrindo-se com
seus mantos pesados. Algumas brasas ainda soltavam faíscas, e
também havia luzes ao longe, do outro lado do pântano, lembrando
os homens que, em situação muito semelhante à deles,
aguardavam os acontecimentos do dia seguinte.
– Pode ser – disse Oscar. – Mas eu também poderia ter
lembrado o javali selvagem em Ben Bulben.
– Outro forte candidato – Dáire concordou.
Essa era outra história famosa. Oscar estava nas florestas perto
de Sligo, caçando com seu avô, o grande herói Fionn mac Cumhaill,
e outros fianna. De repente, um enorme javali surgiu devastando
toda a vegetação rasteira. Era uma criatura assustadora, coberta de
pelos cinzentos, com olhos flamejantes, focinho úmido e levantado,
e presas que se curvavam para fora da boca como espadas
envenenadas. Antes que alguém pudesse fazer alguma coisa, o
animal atacou um dos mais velhos amigos de Fionn, um homem
chamado Diarmaid, cravando as duas presas em seu estômago.
Diarmaid gritou, agonizante, e caiu de joelhos, com o sangue
esguichando em seu colo. O animal gritava, como que triunfante,
caminhando em círculo e procurando a próxima vítima.
Um dos caçadores mais jovens atirou uma lança, que
simplesmente se partiu ao meio, ricocheteando nas costas do javali.
A criatura era incrivelmente veloz. Atacou mais uma vez, e de
repente o jovem estava no chão, aos berros, com uma perna
quebrada. Um terceiro homem se lançou contra o javali, sacando
uma faca. O javali rodopiou, desviando-se, e se preparou para
atacá-lo também.
Decerto naquele dia haveria outros mortos e feridos se não fosse
Oscar, que sacou sua faca e avançou, colocando-se entre o animal
e sua possível vítima. O javali não teve escolha. Soltando outro grito
agudo, abaixou a cabeça e se precipitou contra Oscar, com as
presas afiadas apontadas para ele.
Para todos, inclusive seu avô, parecia que Oscar seria cortado
ao meio. Mas, no último momento, ele se jogou no chão,
desaparecendo entre as pernas do javali. Num instante, ele se
contorceu e foi parar embaixo do monstro, que ficou com a barriga
imensa em cima do rapaz. Veloz como a luz, ele atacou. Sua faca
rasgou o animal da garganta à virilha. O javali uivava enquanto suas
vísceras saíam, cobrindo Oscar com um emaranhado de intestinos
sangrentos e fumegantes. A fera deu mais um passo e morreu.
Diarmaid não sobreviveu àquele dia. No entanto, foi também o
dia em que Oscar foi confirmado como o neto mais valoroso de
Fionn e um herói por virtude própria.
– Você contou à moça sobre o javali? – perguntou Dáire. Estava
ficando tarde e ele se perguntava aonde aquilo ia chegar.
– Contei do javali – respondeu Oscar. – Contei do gigante. E,
para ser exato, contei sobre outros reis e guerreiros contra os quais
lutei e sobre o Cairbre Lifechair. Descrevi a matilha de lobos
devoradores de homens que, certa vez, me perseguiu, uivando, pela
interminável floresta perto da região de Lago Triste, e também sobre
a criatura de três cabeças, o ellen, que saiu da caverna de
Cruachan. Mas a lavadeira no vau do rio apenas riu de mim. Nada
do que eu contei pareceu impressioná-la. E, finalmente, ela me
olhou e disse: “Existem monstros piores que todos esses.” E, assim
que ela acabou de pronunciar essas palavras, me dei conta de algo.
As roupas que lavava… suas mãos estavam cobertas de sangue.
– O quê? – Dáire já estava quase dormindo, embalado pelo
vinho. Mas, ao ouvir o que Oscar acabara de dizer, sentou-se de um
sobressalto, e havia algo em seu rosto que nenhum dos fianna
jamais havia notado.
Ele estava com medo.
– Ela estava lavando o sangue das roupas – disse Oscar,
baixinho. – E, de repente, eu entendi. Suponho que vi aquilo o
tempo todo. Mas, então, não conseguia parar de me perguntar: “A
quem pertenceriam aquelas roupas?” A mulher me encarou e foi
então que reparei: ela não era bonita. Era fria e vazia. Seus olhos
eram pretos e tão impiedosos quanto uma lagoa muito profunda em
pleno inverno. Seu sorriso era o de um rosto morto. “As roupas são
suas, Oscar”, ela disse. E se foi. Ela simplesmente se enrugou toda
diante de mim, e o vento a levou.
Houve um longo silêncio. A encosta ao redor de Oscar e Dáire
estava agora repleta de vultos adormecidos. E os dois sabiam que
não conseguiriam descansar pelo resto da noite.
– Ela era uma banshee – Oscar disse e em seguida se calou.
Todas as crianças naquelas terras conheciam banshees. Se
alguém encontrasse uma banshee, estaria morto em vinte e quatro
horas. Não havia desculpa nem escapatória. Uma banshee era uma
mensageira da morte.
E assim era para ser. A batalha de Gabhra começou na manhã
seguinte, e logo Oscar se viu frente a frente com Cairbre Lifechair.
Ele lutou bravamente e infligiu ao rei ferimentos muito graves que,
mais tarde, o levariam à morte. Mas Oscar foi também imprudente.
Por um breve momento, baixou a guarda, e o rei, embora mutilado e
sangrando, atingiu-o com a espada, matando-o na mesma hora.
Também para o restante dos fianna o dia não terminou bem.
Perderam a batalha, e esse foi o fim do poder que tinham na Irlanda.
De alguma maneira, Dáire sobreviveu. Voltou para seu lar no
condado de Kildare e viveu como fazendeiro o resto de seus dias.
Porém jamais esqueceu aquela última noite e a história que o amigo
lhe contara. A lavadeira no vau do rio pediu a Oscar que dissesse
qual era o maior dos monstros. Ele não se deu conta de que estava
falando com o próprio o tempo todo.
A cabeça da Górgona
MITOLOGIA GREGA

Havia um rei chamado Polidectes que governava uma ilha


pequena, mas encantadora, chamada Sérifos. Na verdade, é
preciso dizer que uma das coisas menos agradáveis da ilha era o
próprio rei. Como muitos governantes na Grécia Antiga, ele era cruel
e impulsivo. Fazia o que queria, sem nenhuma consideração por
ninguém.
E uma das coisas que ele queria era uma mulher que,
coincidentemente, vivia em seu palácio. Seu nome era Dânae. Ela
era bonita e, também, vulnerável, pois era uma estrangeira que lá
chegara por acaso, ao passo que ele, claro, era o rei. Dânae, na
verdade, fora vítima de um naufrágio. Havia sido arrastada até a ilha
poucos anos antes, sem dinheiro e sem ninguém que a auxiliasse, a
não ser seu jovem filho, Perseu, que naufragara com ela. O rei
cedeu a Dânae um quarto no palácio e obrigou Perseu a se tornar
soldado de seu exército. Assim, mantinha os dois exatamente onde
queria.
Polidectes se apaixonou por Dânae e estava determinado a
torná-la sua esposa. No entanto, Dânae não tinha os mesmos
sentimentos por Polidectes. Não era de estranhar. O rei era obeso.
Tinha um temperamento abominável. Mas o pior de tudo era que
tinha mau hálito. Dizia-se que seu hálito era capaz de deter um
ciclope a dez passos, e dez passos de ciclope é mesmo uma longa
distância.
Por sua vontade, Polidectes forçaria Dânae a se casar com ele,
mas obviamente era preciso levar em conta que havia Perseu. O
rapaz era forte, não tinha medo de nada e era muito genioso…
enfim, com certeza voaria com a espada em punho se alguém
encostasse um dedo em sua mãe. Pior ainda, ele era bastante
popular na ilha e haveria um tumulto se algo terrível acontecesse
com ele “acidentalmente”.
O rei pensou no assunto por um tempo e, finalmente, concebeu
um plano. Anunciou seu casamento, mas fingiu que se casaria com
a filha de um amigo. Organizou um grande banquete e convidou
toda a vizinhança.
É claro, todos trouxeram presentes. E, é claro, os presentes
(como a maior parte dos presentes de casamento) eram
completamente inúteis. Ele ganhou nada menos do que quinze
cálices e sete jarros de vinho, por exemplo, e, aliás, já tinha mais
taças e jarros de vinho do que era capaz de usar.
No entanto, sem dúvida eram presentes preciosos, todos de
ouro, prata, ônix ou do mais fino mármore. Todas as pessoas
fizeram o possível para mostrar que eram leais ao rei e que sua
amizade valia muito. Todos, com uma exceção.
O pobre Perseu não tinha condições de obter nada que fosse
feito de ouro ou prata, nem mesmo um objeto muito pequeno. O
salário de soldado mal dava para pagar por um pote de polidor de
espadas, e exigia-se que ele se apresentasse com armas limpas e
brilhantes todas as vezes que desfilasse. O máximo que poderia
fazer seria se vestir bem para a ocasião. Uma túnica nova e um par
decente de sandálias já levaram uma boa fatia de suas economias.
É claro que Polidectes sabia disso. Tudo fazia parte de seu plano.
– O quê? Nem um presente de casamento? – ele gritou quando
Perseu apareceu na festa.
Houve exclamações de surpresa em torno das mesas do
banquete.
– Sinto muito, Majestade… – Perseu começou.
– Você não sabe que é tradição presentear o soberano quando
ele resolve se casar?
– Infelizmente, não tenho nenhum dinheiro.
– Não é desculpa. Você poderia ter pedido emprestado. Poderia
ter roubado… de algum inimigo nosso, é claro. Vir aqui de mãos
vazias é um ultraje. Equivale a uma traição!
– Não tive a intenção de insultar Vossa Majestade. Eu lhe darei
o que quiser de presente de casamento, é só pedir.
– Qualquer coisa? – perguntou Polidectes, franzindo as
sobrancelhas.
– Qualquer coisa – disse Perseu.
– Qualquer coisa? – insistiu Polidectes, franzindo a outra
sobrancelha.
– Qualquer coisa do mundo – disse Perseu.
Era exatamente o que o rei havia planejado. Ele sabia que, se
colocasse Perseu naquela situação diante dos outros convidados, o
rapaz ficaria perturbado e faria uma promessa que não poderia
cumprir. Em outras palavras, ele preparou o laço e Perseu o colocou
no pescoço.
– Pois bem! – exclamou o rei. – De presente de casamento
quero ganhar a cabeça da Górgona. Se quiser provar sua lealdade,
vá buscá-la para mim.
Houve um silêncio de perplexidade no salão. Os convidados,
recostados nas mesas (que era o costume nos banquetes da Grécia
Antiga), ofegavam. Ninguém se mexia.
– Muito bem, Majestade – disse Perseu. – Já que deseja a
cabeça da Górgona, terá a cabeça da Górgona.
Com isso, Perseu girou sobre os calcanhares e saiu do recinto.
O rei esperou até ter certeza de que o rapaz tinha ido embora e,
então, deteve sua mãe. – Quero que venha ao meu casamento –
anunciou.
– Com prazer, Majestade – Dânae sussurrou.
– É claro que terá prazer, querida. É com você que vou me
casar!

As três Górgonas
De todas as bestas, gigantes, dragões e semideuses da Grécia
Antiga, as Górgonas eram, talvez, as mais temíveis. Elas
petrificavam as pessoas, literalmente.
As Górgonas eram três: Esteno, Euríate e Medusa. As duas
primeiras eram imortais, ou seja, viveriam para sempre. A terceira,
Medusa, a mais temível delas, não era imortal. Era a única que
Perseu tinha alguma chance de conseguir matar.
Estranhamente, em outros tempos as Górgonas tinham sido três
jovens muito bonitas.
Medusa, particularmente, tinha sido uma jovem linda, de cabelos
loiros, olhos azuis e sorriso maravilhoso. Infelizmente, ela foi se
apaixonar por Poseidon, deus dos mares e, como se não bastasse
(os mortais sempre cometiam a imprudência de se aproximar
demais dos deuses), ela havia dormido com ele no templo de Atena,
deusa da sabedoria. Isso tinha sido uma enorme insensatez. Para
puni-la pelo comportamento impróprio, Atena transformou Medusa e
suas irmãs em Górgonas. Foram-se os vestidos brancos, as
margaridas e os rabos de cavalo. Bastou um gesto de Atena e elas
se tornaram monstros.
Monstros horríveis. Em vez de dentes, tinham presas afiadas,
como javalis selvagens. Suas mãos eram de bronze, e asas de ouro
brotavam de seus ombros. Mas o mais notável dos horrores era a
transformação dos cabelos. Eram serpentes vivas, viscosas, verdes
e prateadas, com línguas sibilantes e olhos brilhantes. Dúzias delas
despontavam dos crânios das Górgonas, contorcendo-se sobre
suas testas, enrolando-se em seus pescoços, enroscando-se em
seus ombros.
Se alguém tivesse o azar de pôr os olhos numa Górgona… não
faria nada. Essa era a parte mais cruel da arapuca que o rei
Polidectes tinha armado para Perseu. Todos os que viam a cara de
uma Górgona ficavam tão assustados que, na mesma hora,
transformavam-se em pedra, e o rei sabia que Perseu nunca teria
como chegar perto de nenhuma delas. Bastaria lançar um olhar para
qualquer uma delas que ele estaria condenado.

A deusa da sabedoria
Perseu não fazia ideia de que havia sido enganado. Também
não sabia o que estava acontecendo com a coitada de sua mãe
enquanto ele estava fora. E já fazia um bom tempo que estava fora.
Tinha viajado para longe e procurado por muito tempo, sem
encontrar nem sinal da Medusa nem de suas irmãs horrendas.
Ninguém parecia saber onde elas moravam. A maioria dos viajantes
com quem cruzou parecia não querer falar nelas.
Uma noite, viu-se sentado debaixo de uma árvore à beira de um
pântano, num país desconhecido. Estava sem dinheiro, de modo
que não podia ficar em uma pousada ou hospedaria, mesmo que
encontrasse algo desse tipo. Seu único alimento, como sempre,
eram frutos e grãos que encontrava ao longo do caminho. Estava
com frio e sozinho. Pela primeira vez, começava a pensar se não
tinha se precipitado ao concordar com o pedido do rei.
Foi nesse momento que, de repente, uma figura surgiu das
chamas da fogueira minguada que fizera para se aquecer. Era uma
mulher, alta e imponente, de olhos brilhantes e expressivos. Sua
cabeça estava coberta por um capacete prateado e ela segurava
uma lança e um escudo reluzente. Perseu a reconheceu na hora.
Como toda criança, tinha aprendido sobre deuses e deusas, embora
nunca esperasse encontrar um. Aquela mulher só podia ser Atena, a
deusa da sabedoria.
– Perseu – ela disse, postada diante dele. – Vim ajudá-lo. Você
tem bom coração, e sei que um dia será um grande herói. Porém
você é também jovem e ingênuo e deixou que o rei Polidectes o
enganasse.
– Obrigado, grande Atena – disse Perseu. – Preciso de sua
ajuda, mesmo. Veja, estou procurando…
– Sei quem você está procurando – interrompeu Atena. – Afinal,
sou a deusa da sabedoria. E, por sorte, você não interrompeu meu
pai de maneira tão rude. Ele o teria transformado numa bolota, num
sapo ou algo assim. Mas, como eu disse, resolvi ajudá-lo e
começarei por dizer que a única maneira de encontrar as Górgonas
é perguntar às irmãs delas, as Greias.
– Onde posso encontrá-las? – perguntou Perseu.
– Por uma feliz coincidência, elas vivem no pântano, a poucos
minutos daqui. No entanto, Perseu, ouça. Tenha muito cuidado com
a maneira de matar a Medusa, pois quem a vê transforma-se em
pedra.
– Quer dizer que… não posso nem olhar para ela?
– Não diretamente. Não. – Atena sorriu brevemente e sem
muito humor. – Polidectes não lhe contou isso, não é? Mas não tem
importância. Posso lhe mostrar o que fazer.
– Muito obrigado, poderosa Atena – disse Perseu.
– Não há de quê. Na verdade, nunca me importei muito com a
Medusa, e está na hora de alguém dar um fim nela. Agora ouça o
que vou dizer, Perseu. Sua vida depende disso…

As Greias
Pouco depois, Perseu se aproximou rastejando das Greias, que
estavam sentadas ao lado de um brejo, discutindo. Elas estavam
sempre discutindo. As Greias não eram exatamente monstros, mas
eram muito estranhas. Tinham nascido de cabelos grisalhos, o que
deu origem a seus nomes, e tinham apenas um olho e um dente,
que compartilhavam entre as três. Chamavam-se Ênio, Penfredo e
Dino.
Assim que Perseu as abordou, ouviu a seguinte conversa.
– Posso usar o dente, por favor, Ênio? – disse Penfredo.
– Para quê? – perguntou Ênio.
– Para comer uma maçã.
– Mas estou comendo um caramelo.
– O caramelo você pode chupar. Quero o dente.
– Tudo bem, tudo bem. Aqui está ele.
– Não consigo vê-lo.
– Você não está com o olho?
– O olho está comigo – disse Dino.
– Me dê – Penfredo exigiu.
– Não, estou olhando uma coisa.
A discussão continuou interminavelmente, e Perseu deduziu que
as três horríveis velhas deviam ter a mesma conversa todos os dias
de suas vidas. Sem fazer barulho, caminhou na ponta dos pés por
detrás delas e apanhou ambos, o olho e o dente.
– Quem é? – Ênio interpelou.
– Morda-o! – exclamou Penfredo.
– Não consigo – gritou Dino. – Ele está com o dente.
– Muito bem – disse Perseu. – Estou com seu olho e seu dente
e não devolverei até que me digam onde posso encontrar sua irmã,
a Górgona Medusa.
As três Greias levantaram-se e tentaram capturá-lo, mas,
incapazes de enxergar, acabaram se agarrando entre si.
Finalmente, sentaram-se novamente batendo os punhos na lama,
gemendo de frustração.
– Se vocês não me disserem o que preciso saber – continuou
Perseu –, eu jogarei fora o olho e o dente e vocês não poderão
enxergar nem morder alguém novamente.
– Está bem!
– Está bem!
– Está bem!
As Greias tentaram ranger o dente, mas, como era impossível,
rangeram as gengivas.
– Vá para a Terra de Hiperbórea – disse Ênio. Sua voz estava
estridente e amarga. – Lá, existe uma grande caverna no vale. Não
tem como errar.
– É lá que você irá encontrá-la – acrescentou Penfredo. –
Certifique-se apenas de dar uma boa olhada em direção a ela.
– Olhe-a diretamente nos olhos – Dino riu-se. – Você nunca
esquecerá sua primeira visão da Medusa.
Perseu devolveu o olho e o dente e partiu; aquelas risadas
ecoavam em seus ouvidos. As Greias ainda tagarelavam entre si,
pensando no quão espertas tinham sido, quando ele chegou à Terra
de Hiperbórea.

Medusa
Atena não só disse a Perseu como destruir a Górgona, como lhe
deu os meios para isso. Então se aproximou da caverna de Medusa,
tentando não fazer nenhum barulho, levando o escudo reluzente e
polido da deusa em uma mão e sua própria espada do exército na
outra.
Sabia que deveria ser aquele o lugar onde Medusa morava. Ele
estava em um barranco, uma estreita fenda na paisagem rochosa,
preenchida por pessoas petrificadas; algumas ficaram presas ao
virar-se para correr, enquanto outras congelaram de susto, com as
bocas abertas e os gritos ainda em seus lábios. Era como se
estivessem sido fotografadas no último segundo de suas vidas.
Suas reações, naquele último segundo, tinham sido capturadas para
a eternidade. Um jovem soldado tinha coberto seu rosto com a mão,
mas tentou espiar por entre os dedos. Sua mão de pedra ainda
tampava seus olhos de pedra. Um fazendeiro com uma foice
petrificou-se tendo ainda um sorriso intrigado; seus dedos de pedra
envolviam a arma, quando tentava agitá-la no ar. Havia mulheres e
crianças de pedra. Era como um insano museu a céu aberto.
Perseu viu a boca de uma grande caverna sinistramente
escancarada diante dele. Segurando o escudo com mais força
ainda, escalou um pequeno barranco e, respirando fundo, entrou na
penumbra.
– Medusa! – ele gritou. Sua voz pareceu perder-se entre as
sombras.
Algo se moveu no fundo da caverna.
– Medusa! – ele repetiu. Agora ouviu ruídos de respiração e
chiados.
– Sou eu, Perseu – ele anunciou.
– Perseu! – uma voz grave e gutural veio do fundo da caverna.
Seguiu-se uma risadinha. – Você veio para me ver?
A Górgona avançou até a claridade. Por um trágico momento,
Perseu sentiu-se tentado a olhá-la, a cruzar seu olhar. No entanto,
usando de toda a sua força, manteve a cabeça virada para o outro
lado, seguindo as instruções de Atena, concentrando-se na imagem
refletida no escudo. A pele verde da Medusa, seus venenosos olhos
vermelhos, seus dentes amarelos, tudo isso se refletia no bronze
lustroso do escudo. Perseu levantou a espada.
– Olhe para mim! Olhe para mim! – a Górgona gritava.
Perseu continuou olhando para o escudo e deu mais um passo
para dentro da caverna. O reflexo era enorme, e os dentes da
Medusa se arreganhavam para ele. As serpentes se contorciam
furiosas, sibilando como o som de agulhas quentes sendo
mergulhadas na água.
– Olhe para mim! Olhe para mim!
Como seria possível Perseu acertá-la se ele só via um reflexo?
Com certeza, seria mais fácil matá-la se desse uma olhada furtiva,
só para se certificar de que não erraria o golpe…
– Isso, está certo! Estou aqui.
– Não!
Com um grito desesperado, Perseu deu um golpe de espada
violento. Então, sentiu o aço afiado atravessar carne e ossos. A
Górgona gritou. As serpentes explodiram em volta de sua cabeça,
enquanto ela voava dos seus ombros, lançada contra a parede da
caverna até rolar para o chão. Um manancial de sangue jorrou do
pescoço do monstro enquanto seu corpo murchava. Finalmente,
tudo estava terminado. Com os olhos ainda fixos no escudo, Perseu
pegou o cruel troféu da vitória e o enfiou num saco.

A cabeça da Górgona
Perseu tinha levado meses procurando a Górgona e teve muitas
outras aventuras no caminho de volta para Sérifos. Assim, um ano
tinha se passado quando ele retornou.
A primeira pessoa que viu na ilha foi um velho pescador que
acabava de trazer o produto da pesca da manhã. Seu nome era
Dictes e, por coincidência, ele é que havia descoberto Perseu e sua
mãe quando tinham vindo dar naquela praia. Os dois se
cumprimentaram como velhos amigos.
– Meu querido Dictes – disse Perseu. – Aqui estou eu,
finalmente de volta. Conte-me agora, o rei se casou?
– Não – disse o pescador –, o rei Polidectes vive sozinho.
– E como está minha mãe? – perguntou Perseu.
O velho então se pôs a chorar. – Ó senhor Perseu! – ele
lamentou. – Foi com sua mãe que o rei perverso quis se casar.
Assim que você se foi, tentou forçá-la a dormir com ele, mas, como
ela se recusou, transformou-a em escrava. Já faz um ano que ela se
mata de trabalhar na cozinha do palácio, fazendo limpeza e serviços
pesados. É uma coisa terrível, senhor Perseu. O rei só faz rir-se
dela.
– Ah, é assim? – Perseu disse entre os dentes. – Logo
veremos!
Lançando sobre os ombros o fardo que levava, Perseu entrou no
palácio e foi direto para o salão onde o rei Polidectes estava
sentado no trono.
– Saudações, Majestade! – ele exclamou para o rei, que ficou
atônito. – Sou eu, Perseu, retornando após doze longos meses.
Trouxe comigo o presente que me pediu.
– A cabeça da Górgona? – Polidectes murmurou. – Até parece!
– Não acredita em mim, Majestade? – perguntou Perseu.
– Claro que não – disse o rei.
– Acreditaria em seus próprios olhos?
– Está aí? – o rei apontou para o saco.
– Veja, então, com seus próprios olhos.
Dizendo isso, Perseu tirou do saco a cabeça da Górgona e a
ergueu para que o rei a visse.
– É… – o rei Polidectes não conseguiu continuar. O que ele ia
dizendo? É terrível? É impossível? Ninguém jamais saberia. No
instante seguinte, o que se viu foi uma estátua de pedra inclinada
para fora do trono, com uma expressão de escárnio imobilizada no
seu rosto de pedra e sua sobrancelha de pedra levantada, incrédula.
Perseu perguntava-se o que aconteceria em seguida. Afinal, ele
tinha acabado de assassinar o rei. Estava completamente cercado
pelos cortesãos e pela guarda real, preparado para virar a cabeça
da Górgona para qualquer pessoa que tentasse prendê-lo. No
entanto, assim que Polidectes se petrificou, vivas se ergueram ao
redor do trono e se espalharam por todo o palácio, pois todos na ilha
estavam cansados daquele monarca cruel e mesquinho. Finalmente
Perseu os libertara e, por aclamação popular, foi convidado a se
tornar o novo rei.
Perseu, porém, estava farto de Sérifos. Indicou Dictes para
ocupar o trono, com a certeza de que um pescador honesto seria o
homem ideal para governar um reino, principalmente um cercado de
água. Perseu foi ter com sua mãe, e, carregados de presentes e
levando algumas peças do tesouro real, os dois resolveram partir
em busca de novas aventuras. Depois, ele se tornou o rei de
Micenas. Atena estava certa: ele tinha um bom coração e nascera
para ser herói.
Entregou a cabeça da Górgona à deusa, que, por magia, tornou-
a parte de sua armadura, que usaria para aterrorizar seus inimigos
nas batalhas. Dictes governou Sérifos por muito tempo.
Quanto a Polidectes, ele foi instalado no jardim do palácio como
um divertido ornamento, e provavelmente lá está até hoje.
O Minotauro
MITOLOGIA GREGA

Houve um tempo em que Atenas não tinha a importância que


tem hoje; era apenas uma pequena cidade à beira de um penhasco,
a cerca de cinco quilômetros do mar. O trono era ocupado pelo rei
Egeu, que era um bom governante. Eram tempos de paz, havia
alimentos em abundância para todos, e o território estava livre de
pragas e monstros.
No entanto, a cada sete anos, algo estranho acontecia. Sem
alarde ou sinal, de repente, as ruas se esvaziavam. Homens e
mulheres corriam para casa, evitando os olhares uns dos outros,
recolhendo seus filhos e levando-os para dentro. Parecia que
Atenas havia sido abandonada. E, nos lares, os membros das
famílias se sentavam todos juntos, escondendo-se nas sombras, em
total silêncio.
Um forasteiro que por ali passasse poderia pensar que alguma
terrível catástrofe acabara de acontecer. E já não haveria nenhum
sinal de dano, como o causado por um terremoto ou um incêndio.
As ruas estariam limpas e organizadas, mesmo que todo o comércio
se encontrasse fechado. Árvores com os primeiros brotos da
primavera o cercariam se ele desse uma volta pelos parques.
Um mistério.
Ficando ali, o forasteiro poderia sentir um vento frio sussurrando
pelas ruas e, se prestasse atenção, seria capaz de ouvir o que dizia:
– Minos está chegando. Minos em breve estará aqui…
O forasteiro, então, compreenderia. Daria meia-volta, fugindo
depressa desse lugar maldito, deixando o povo infeliz abandonado à
própria sorte. Por toda a Grécia Antiga, todos sabiam o que havia
acontecido com o filho do rei Minos e a vingança cruel que ele havia
imposto à cidade. Também conheciam o terrível segredo que ele
mantinha escondido nas profundezas de seu palácio.
O Minotauro.
Mesmo a brisa tinha pavor de pronunciar tal nome. Corria pelas
ruas sem nada dizer, esgueirando-se pelos cantos, como se
também tivesse pressa de fugir.

O nascimento do Minotauro
Minos era o rei de Creta, a Ilha das Cem Cidades. Era um dos
soberanos mais poderosos do mundo, e sua ilha, uma das mais
magníficas. O enorme porto fora construído para abrigar uma
centena de navios e era cercado por muros altíssimos, dia e noite
guardados por homens instalados em torres. A capital – Cnossos –
era uma mistura de cor e vida. O povo cretense, ciente de sua
condição, adorava usar roupas caras e comer as mais finas iguarias,
trazidas dos mais longínquos recantos do mundo civilizado. As
barracas do mercado, aglomeradas nas ruas estreitas, eram
repletas de mercadorias requintadas, incluindo sedas e cetins,
especiarias exóticas, marfim e joias, raros papagaios, macacos
performáticos e muito, muito mais. Enquanto o sol brilhava, a
compra e a venda não paravam e, mesmo à noite, com as tochas
acesas, dançarinos e engolidores de fogo, encantadores de
serpente e mágicos iam para as ruas entreter a multidão.
Apesar de tudo, Creta tinha seu lado sombrio. Nem mesmo
Minos, com toda a sua riqueza e sucesso, podia escapar dessa
sombra.
O Minotauro. Era como um câncer de pele, a desagradável
verdade que estraga tudo. Minos teria prazer em esvaziar os
mercados e jogar os ricos no mar se pudesse se livrar dele. E o pior
– ele próprio era o culpado de tudo. Se não tivesse sido tão
ganancioso e insensível, o Minotauro nunca teria existido. Havia
cometido um erro. E pagava por isso desde então.
Foi assim que aconteceu.
Todos os anos, por muitos anos, Minos sacrificava o melhor
touro de seu rebanho para Poseidon. Creta dependia de seu poderio
marítimo, e Poseidon era, naturalmente, o deus do mar. Um ano, no
entanto, em um momento de loucura, Minos decidiu não ceder seu
melhor animal… um enorme touro branco, como ele jamais vira. O
touro poderia gerar todo um rebanho premiado. Seria um completo
desperdício abatê-lo e, em seguida, queimar seus restos em um
altar. Imaginou que Poseidon não notaria se outro animal, não tão
magnífico, fosse sacrificado em seu lugar.
Foi o que Minos pensou, mas naturalmente Poseidon percebeu,
encheu-se de uma raiva terrível e se vingou de modo estranho e
cruel. Nada fez contra o rei, mas usou seus poderes contra sua
mulher, a jovem e inocente Pasífae, fazendo-a apaixonar-se pelo
touro branco. Em uma noite de tempestade, sem saber o que estava
fazendo, a rainha foi para os estábulos, e dessa união tão pouco
natural nasceu o Minotauro.
Minotauro significa, simplesmente, o touro de Minos.
O rei e a esposa cuidaram da horrenda criatura até quando
puderam, tentando deixá-la longe dos olhos inquisidores. Mas, no
momento em que teve pernas firmes para andar, o Minotauro se
libertou e deixou o palácio. Nos dias que se seguiram, furioso, ele
destruiu boa parte de Creta e matou muitos de seus habitantes. Foi
como se um assassino psicopata tivesse chegado à ilha. Ele matava
simplesmente porque tinha de matar.
Minos se encheu de vergonha e horror. Desesperado, foi ao
Oráculo para saber o que fazer. Não podia matar a criatura. Afinal,
era filho de sua mulher.
Mas como lidar com aquilo? Como evitar o terrível escândalo
que agora o cercava?
Como de costume, o Oráculo tinha todas as respostas. Disse ao
rei para construir um labirinto em Cnossos, para esconder o
Minotauro e também sua infeliz esposa. O labirinto seria tão
complicado, com tantas voltas e reviravoltas, tantos falsos caminhos
e becos sem saída, que nenhum homem que nele se visse preso
saberia como sair. Os dois ali estariam a salvo, seguros. Minos
jamais voltaria a vê-los.
Minos seguiu a sugestão do Oráculo. Encomendou o trabalho a
Dédalo, o arquiteto da corte; o labirinto era tão fantástico que vários
escravos que nele trabalharam desapareceram sem deixar rastro. E
isso poderia ter sido o fim da história. Minos continuaria seu
governo, sozinho e solitário, mas um pouco mais sábio sobre como
lidar com os deuses.
No entanto, alguns meses mais tarde, outro evento ocorreu que
iria mudar sua vida mais uma vez. Minos tinha um filho adorado, o
jovem Androgeu. Pouco depois de o Minotauro ter sido encarcerado,
Androgeu embarcou para a cidade de Atenas para participar dos
jogos pan-atenienses, que ali se realizavam a cada cinco anos. Ele
era um atleta forte, habilidoso e se saiu bem em diversas
competições. Logo foi aclamado o favorito do grande público, para
grande ressentimento da corte real e, em particular, dos sobrinhos
do rei Egeu.
Esses sobrinhos eram um bando desprezível, que passava o
tempo lutando nas ruas e à toa ao redor do palácio. Agora, com
inveja do sucesso de Androgeu, eles lhe prepararam uma
emboscada uma noite, após o término dos jogos, quando ele voltava
ao alojamento. Androgeu lutou bravamente, mas era um contra
muitos. O bando o matou e abandonou o corpo na estrada.
Quando Minos soube o que acontecera, quase perdeu os
sentidos, de dor e raiva. Imediatamente ordenou à sua frota que
zarpasse e, no dia seguinte, quando o rei Egeu acordou, a cidade
estava cercada. O combate era impossível. O exército cretense
cercara totalmente a cidade; a frota, ancorada nas áreas mais rasas,
ao largo da costa, era maior que toda a frota de Atenas. Egeu não
teve escolha. Ajoelhando-se ante Minos, ele e sua cidade se
renderam à misericórdia do rei cretense.
– Vim em busca dos assassinos do meu filho – disse Minos. –
Entregue-os para mim e não tocarei em Vossa Majestade.
– Não tenho como – Egeu respondeu. – Lamento, grande rei.
Foi um ato infeliz, e eu teria prazer em entregar-lhe os assassinos
se soubesse quem são. Mas não sei! Os covardes continuam
escondidos! E teremos todos de pagar por esse crime.
– E vão pagar – disse Minos, que, após pensar por um
momento, chegou a uma sentença terrível. – Eis a minha decisão –
ele continuou. – Eu perdi um filho. Pois os filhos e filhas de Atenas
terão de pagar o preço. No final de todo Grande Ano, ou seja, a
cada sete anos, Atenas vai me enviar seus sete rapazes mais
corajosos e as sete donzelas mais lindas. Não me pergunte o que
vai acontecer com eles! O que importa é que nunca mais irá vê-los.
Será o preço a pagar pela morte do meu filho mais velho. Se eu não
receber o tributo, Atenas vai arder.
Não havia o que o rei Egeu pudesse fazer. De sete em sete
anos, os catorze atenienses eram escolhidos por sorteio e levados
de navio para Creta e para uma morte desconhecida. Em Creta,
enquanto a multidão colorida se acotovelava nas ruas, o Minotauro
perseguia suas vítimas pelo labirinto subterrâneo e as matava para
satisfazer seu desejo de sangue.

A chegada de Teseu
Ficará na memória de todos o dia em que Teseu chegou a
Atenas. Ter chegado a salvo já foi considerado notável, uma vez que
escolheu viajar pela estrada costeira, por onde circulavam ladrões e
bandidos de todo tipo. Poucos viajantes faziam esse caminho – mas
Teseu não só chegou ileso como matou não menos que cinco dos
piores malfeitores, chutando um deles do alto de um penhasco,
decepando as pernas de outro e esmagando um terceiro com uma
pedra enorme.
Teseu era, na verdade, filho do rei Egeu, embora não se
conhecessem – Egeu abandonara a mãe de Teseu antes de o
menino nascer. De qualquer forma, foi um prazer para o pai estar
com o filho. Teseu tinha agora dezessete anos. Era forte, destemido,
bonito e inteligente… em suma, tudo o que um pai desejaria para
um filho. Os sobrinhos de Egeu, infelizmente, não estavam achando
tanta graça. Mais uma vez, foram dominados pela inveja e decidiram
dar a Teseu exatamente o mesmo tratamento que tinham
dispensado ao pobre Androgeu. Foi um grande erro. Teseu matou
cada um deles, sem se importar com o fato de serem seus primos.
Egeu estava realmente encantado com o rumo que tomaram os
acontecimentos. Seus sobrinhos haviam ficado cada vez mais fora
de controle, a ponto de o rei temer que pudessem se voltar contra
ele. Assim, naquela noite houve uma celebração inédita em Atenas.
Acenderam-se grandes fogueiras, bois foram sacrificados aos
deuses. Parecia que, em cada rua, mesas e cadeiras foram
dispostas para um banquete que se estendeu por toda a cidade.
Houve dança e fogos de artifício, e à meia-noite Egeu levantou-se
para anunciar que a partir de então Teseu seria conhecido como o
príncipe de Atenas e que um dia herdaria o trono. As estrelas
brilhavam naquela noite e, por um breve período, Creta e o
Minotauro foram esquecidos.
Mas o tempo não para e, inevitavelmente, o fim de mais um
Grande Ano se aproximou. Mais uma vez, a sombra voltou. Com a
chegada da primavera, a velha doença reapareceu nas ruas, aquele
terrível medo das coisas não ditas. E um dia, quando as flores
estavam no auge da beleza, o navio do tribunal de Creta chegou à
costa para coletar o tributo de sete homens e sete mulheres.
– O Minotauro…
Teseu jamais ouvira falar do tributo exigido por Minos e implorou
que o pai lhe dissesse o que estava acontecendo. Relutante, Egeu
explicou o que ocorrera vinte e um anos antes – pois era a terceira
vez que o navio com as velas negras tinha ido até Atenas.
– Não é justo! – Teseu gritou. – Não matei os assassinos de
Androgeu com minhas próprias mãos? Nós pagamos o tributo
integralmente. Basta!
– O rei Minos ainda exige o tributo – disse Egeu.
– Não vou permitir isso!
– Você não pode impedi-lo. Temos de pagar o tributo até o
Minotauro ser destruído, e isso nunca vai acontecer, porque ele se
alimenta de suas vítimas, sem armas, sem nenhuma esperança de
sobrevivência.
– E como é esse monstro? – perguntou Teseu.
– Ninguém jamais viveu para descrevê-lo.
– Então vou ter que descobrir por mim mesmo. Vou viajar como
um dos sete homens, vou entrar na caverna da criatura e destruí-la.
Então, talvez, Minos fique satisfeito.
Egeu tentou dissuadi-lo, mas Teseu não quis ouvir. Os catorze
infelizes já haviam sido escolhidos e estavam prestes a ser levados
para o porto, porém, no último momento, ele conseguiu que um
homem e duas mulheres fossem libertados.
– Vou tomar o lugar do homem – ele explicou. – E dois soldados
virão comigo. Eles vão usar maquiagem e vestidos e se passarão
por moças. O rei Minos não estará preparado e, com um pouco de
sorte, ninguém vai examinar muito de perto.
O rei Egeu não estava gostando nada daquela ideia, mas agora
deu a Teseu uma vela branca.
– Sou um homem velho – ele disse. – Talvez não me restem
muitos dias. Assim, tendo sucesso nessa perigosa demanda, volte
para casa com a vela branca no mastro. Assim saberei antes de
todos que meu amado filho está salvo.
Mas foi com velas negras que partiram de Atenas, levados a
Creta pelo vento vindo do sul. Foram apenas dois dias para chegar
à ilha, onde uma enorme multidão os esperava no porto. O próprio
Minos estava lá para contar as vítimas, para verificar se Egeu não
estava tentando enganá-lo e lançar um olhar sobre as donzelas para
ver se alguma seria digna do leito real.
Ele, de fato, viu uma jovem (felizmente não um dos soldados
disfarçados) e deu ordens para que ela fosse levada ao palácio.
Mas, quando os guardas deram um passo à frente, Teseu de
repente saltou entre eles.
– É assim que o tirano da ilha de Creta saúda seus convidados?
– ele gritou para que todos pudessem ouvir. – Esse é o tipo de
comportamento que se pode esperar de um grande rei?
Foi o que bastou para Minos tremer de raiva. – E quem você
pensa que é, rapaz? – ele rosnou.
– Sou Teseu, o príncipe de Atenas. O deus do mar, Poseidon, é
o meu protetor. E não estou com medo de você, rei Minos.
Era verdade que Poseidon sempre tinha visto Teseu com bons
olhos. O deus fora apaixonado por sua mãe, a quem prometera
olhar por seu primogênito como se fosse dele.
Contudo, quando Minos ouviu isso, apenas riu. – Poseidon! – ele
exclamou. – É muito fácil para um jovem príncipe arrogante alegar
parentesco com os deuses. Mas é necessário provar. – Ele tirou do
dedo um pesado anel de ouro, com o brasão real, e lançou-o ao
mar. – Se Poseidon é seu amigo, peça-lhe que me traga o anel de
volta.
Minos riu de novo, agora acompanhado pela multidão, até que
todo o porto se encheu com aquele som. Teseu estava ali sozinho,
lívido e desafiador, enquanto seus treze companheiros atenienses
esperavam nervosamente para ver o que iria acontecer.
Então, de repente, com um estrondo, a água se espalhou pelo
porto e um golfinho prateado pulou no ar, girou o corpo e voltou a
mergulhar. O som das risadas já se dissipava quando ele saltou
uma segunda vez, agora na verdade praticamente voando em um
grande arco sobre a embarcação. Durante o movimento, um objeto
dourado caiu de sua boca e aterrissou aos pés de Teseu. O príncipe
se inclinou e o apanhou. Era o anel do rei.
Não mais se ouviu uma só risada.
– Então parece que você é quem diz ser – Minos grunhiu. – O
que é uma pena. Ter vindo aqui como parte de meu tributo e
amanhã ter de morrer. – Virou as costas para o navio ateniense e
repentinamente deu uma ordem. – Leve-os para o palácio.
A tudo havia observado uma jovem sentada perto do rei; ela bem
que tentava ser discreta. Seus olhos tinham-se fixado em Teseu
desde o momento em que ele chegou. Minos tinha se levantado e já
caminhava de volta para o palácio; ela o seguiu, mas se virou para
olhar novamente para o príncipe. Sem emitir um som, seus lábios
formaram a palavra “Teseu…”; e, continuando seu caminho, ela
sorriu para si mesma.

O assassinato do Minotauro
Naquela noite, a moça foi procurar Teseu, conseguindo passar
pelos guardas e usando uma cópia da chave para entrar na cela.
– Teseu – ela sussurrou assim que trancou a porta às suas
costas. – Meu nome é Ariadne. Sou filha do rei Minos…
– Então você não é minha amiga – Teseu disse.
– Mas quero ser! Quero ser mais que amiga – ela correu os
olhos ávidos pelo seu corpo. Teseu, prestes a dormir, estava nu da
cintura para cima. – Se você fizer de mim… sua esposa, vou ajudá-
lo a matar meu meio-irmão, o Minotauro.
– Você pode ajudar?
– Claro – ela acariciou-lhe o braço, maravilhada com a firmeza
dos seus músculos. – Posso levar você lá agora. E veja, tenho uma
espada.
– Mas me disseram que há um labirinto…
– Não há nada a temer – ela falou tão perto do seu ouvido, que
ele sentia o calor de sua respiração. Com o dedo, ela enrolava e
desenrolava uma mecha do cabelo escuro do príncipe. – Vou dar-
lhe um novelo de linha – ela continuou. – Amarre uma ponta à
entrada e desenrole-o à medida que continuar, e não terá nenhuma
dificuldade em encontrar a saída. Mas lembre-se do que me
prometeu. Quero casar com você. Quero que você seja meu.
– Senhora – Teseu disse, afastando-se bruscamente. Então
lembrou-se de que, na verdade, ela estava tentando ajudá-lo, e
tentou sorrir. – Se eu conseguir matar o Minotauro, com certeza farei
o que me pede.
Ariadne assentiu. Teseu pegou a espada e a seguiu pelo palácio
adormecido, esquivando-se nas sombras sempre que um guarda
aparecia. Ele tinha sido trancado em um quarto no térreo e agora
eles desceram dois lances de escadas, indo bem abaixo do chão do
palácio. Não havia janelas, e o caminho era iluminado por
lamparinas de luz fraca. Chegaram a um corredor vazio, que levava
a uma pesada porta de madeira. Ariadne deu-lhe o novelo de lã,
prendendo uma extremidade à maçaneta.
– Aqui começa o labirinto, meu amor – disse ela. – Devo deixá-
lo. Seja rápido! Fique em segurança!
Teseu concordou com um aceno de cabeça, mas nada disse.
Começava a achar que entre Ariadne e o Minotauro não havia muita
escolha.
Ele abriu a porta e entrou.
Estava frio do outro lado. Mas Teseu estava em um mundo
subterrâneo, onde o sol nunca brilhara e um frio úmido enchia o ar.
As paredes eram formadas de enormes blocos de pedra e, a três
passos da porta, o corredor se ramificava em uma dúzia de
direções. Desenrolando o novelo, seguiu em frente na ponta dos
pés. Não havia luzes, mas alguma estranha propriedade da rocha
enchera as cavernas com um brilho verde fantasmagórico.
Teseu segurou a espada com mais firmeza e continuou. Mesmo
contra sua vontade, não pôde deixar de admirar a habilidade de
Dédalo. Se não fosse a linha da vida que o conectava com o
exterior, já estaria irremediavelmente perdido. Virou à esquerda e
depois à direita dezenas de vezes, percebendo que de alguma
forma cruzava o próprio caminho, pois via o fio serpentear ao longo
do chão à sua frente.
– Onde você está? – se perguntava baixinho. Sua respiração
formou uma nuvem fosforescente na frente de sua boca. O ar
cheirava a algas. Ele tremia, mas não parou; já não importava a
direção.
Todo caminho parecia o mesmo. Todo canto que ele virava o
conduzia a lugar nenhum. Toda arcada que escolhia apenas o
guiava a outra idêntica passagem. Chutando alguma coisa solta no
chão, olhou para baixo.
Um crânio humano rolou até a parede e lá ficou. Ele engoliu em
seco. O imenso silêncio do labirinto parecia pressioná-lo.
– Onde você está? – ele voltou a se perguntar, dessa vez em
tom mais alto. As palavras percorreram rapidamente os corredores,
ressoando nas paredes.
– Onde você está… onde você está… onde…?
Algo se mexeu.
Ele ouviu uma respiração; em seguida, o arrastar de pés na
areia. A respiração era lenta, irregular, como um animal em
sofrimento. Ele virou para outro canto e se viu em uma arena aberta,
rodeada por arcadas. Será que o som vinha dali? Não conseguia ver
nada. Não. Lá estava de novo. Ele virou o corpo. Uma figura
enorme, que estava parada sob uma das arcadas, resmungou.
Depois foi na direção dele.
O Minotauro era horrível, muito mais do que ele podia imaginar.
Tinha o tamanho de um homem, mas de um homem muito grande.
Nu em pelo, tinha os punhos cerrados, as pernas ligeiramente
separadas. A criatura era nojenta – coberta de poeira e sangue
seco. Um musgo azul pendia-lhe de um lado do corpo como
ferrugem, fazendo sua pele brilhar. Apesar do frio, o suor pingava de
seus ombros, brilhando em sua pele.
Era humano até o pescoço. A cabeça era de um touro…
grotescamente desproporcional ao resto do corpo. A cabeça era tão
pesada que o pescoço humano se retesava para aguentá-la, e via-
se a pulsação perto da garganta. Dois chifres se curvavam no ar,
acima de um par de olhos cor de laranja. A saliva espumava ao
redor do focinho e caía no chão de pedra. Os dentes não eram os
de um touro, mas de um leão, projetando-se da boca e rangendo
sem parar, como se a criatura estivesse tentando fazê-los caber na
boca de modo mais confortável. Carregava um pedaço de ferro
retorcido, que segurava como se fosse um taco.
Teseu ficou parado onde estava, no centro da arena, enquanto o
Minotauro se aproximava. Não se mexeu quando o monstro
levantou sua arma desajeitada. Só no último momento – quando o
Minotauro desceu a barra de ferro em direção à sua cabeça, ele
levantou a espada. Foi ensurdecedor o choque de metais. O
Minotauro recuou, berrando, surpreso, pois nenhuma de suas
vítimas jamais tinha levado uma arma. Tirando vantagem do
inesperado, Teseu avançou, mas o Minotauro foi muito rápido. Ele
se contorceu e sofreu apenas um corte no braço. Em seguida,
abaixou a cabeça e atacou violentamente. Muitas moças e rapazes
acabaram suas vidas empalados nas pontas daqueles chifres. Mas
Teseu estava acostumado a lutar. Com a graça de um matador, ele
parecia deslizar para um lado, então girar, brandindo a espada em
pleno ar. A lâmina atingiu o pescoço da criatura, cortando-lhe
tendões e ossos. O Minotauro guinchou. A cabeça de animal caiu
longe do corpo humano. Por um momento ele se levantou, jorrando
sangue, os braços balançando. O monstro caiu, finalmente.
Teseu lançou um último olhar para a criatura morta, então voltou
pelo caminho por onde viera e encontrou o início do novelo. Estava
tão cansado que o labirinto perdera o sentido. O fio o levou de volta
à porta e, com um suspiro de gratidão, ele saiu. Estava encharcado
com o sangue do Minotauro, ferido e exausto. Mas ainda não podia
parar.
Ariadne estivera ocupada enquanto ele lutava no labirinto.
Libertara os seis rapazes atenienses e os conduzira para fora do
palácio. Enquanto isso, os dois soldados que tinham ido a Cnossos
disfarçados de moças haviam cortado a garganta dos guardas que
os vigiavam e libertado as cinco donzelas reais. Agora todos
aguardavam no navio, e assim que Teseu conseguiu encontrar a
saída do palácio e chegar ao porto, eles se afastaram rapidamente,
remando, escapando protegidos pela escuridão.

O fim da história
Apenas três nós continuam a amarrar as pontas soltas desse
conto.
Quando Minos descobriu que o Minotauro estava morto, de tão
agradecido perdoou Teseu pela morte de seus dois guardas e a
perda da filha. A grande vergonha de sua vida fora finalmente
apagada e ele decidiu não cobrar mais tributos dos atenienses.
Nunca mais jovens homens e mulheres serviriam como pagamento
pela morte de Androgeu.
Ariadne nunca recebeu a recompensa que havia exigido porque,
infelizmente, adoeceu na viagem para Atenas e, embora bem
assistida, não resistiu. Ou, pelo menos, é o que algumas versões da
história dizem. Outras contam que Teseu quebrou sua promessa e a
abandonou em Naxos, a primeira ilha do caminho. Quem pode dizer
qual é a hipótese mais provável?
Mas há uma nota incontestavelmente triste. Teseu estava tão
feliz por estar voltando para casa a salvo que se esqueceu do
pedido do pai e não trocou as velas. O velho Egeu, esperando o
filho do alto do penhasco, viu as velas negras quando o barco ainda
estava a milhas da costa e, acreditando que o filho estava morto,
jogou-se ao mar. A partir daí, o mar passou a chamar-se Egeu,
nome que mantém até hoje.
Teseu foi coroado rei de Atenas. Foi um monarca forte, severo
até, acabando praticamente com quase todos os seus inimigos sem
pensar duas vezes. Mas suas ações pavimentaram o caminho para
uma Atenas segura e próspera. Foi também o primeiro rei ateniense
a cunhar moeda. Se você alguma vez encontrar uma moeda de
Teseu, vai reconhecê-la facilmente, pois ela tem de um lado a
cabeça de um touro.
O grande sino de Pequim
LENDA CHINESA

Quando Pequim se tornou a capital da China, o imperador Yung


Lo decretou a construção de duas torres. Uma seria de observação,
equipada com um magnífico tambor. A outra seria de alarme, e nela
seria colocado um grande sino, que teria dois objetivos. O primeiro,
avisar se algum inimigo fosse avistado fora das muralhas da cidade.
Mas seria também maior e soaria mais alto do que qualquer outro
sino na China e, como tal, seria um símbolo apropriado para a nova
capital do país.
Assim, Yung Lo foi procurar o mais renomado sineiro da China,
um homem de nome Kuan Yu. O imperador explicou o que queria e
lhe entregou uma bolsa de moedas de ouro para que empregasse
um pequeno exército de artesãos e comprasse a quantidade
necessária de metal. Kuan Yu logo começou a trabalhar, mas se
passaram três meses antes que ele conseguisse anunciar que o
sino estava pronto.
Imediatamente o imperador saiu de seu palácio em uma triunfal
procissão. Levado em seu trono de ouro e cercado por cortesãos e
músicos, ele chegou à oficina do sineiro anunciado por címbalos e
tambores em alto volume. Na verdade, o que estava pronto não era
o sino, mas o molde em que iria ser colocado; o metal estava
fundido e borbulhante.
O imperador tomou seu lugar e deu um sinal para a última etapa
da feitura do sino. Entornaram o líquido que estava no enorme
tanque. Um rio de prata correu sibilando pelas canaletas até se
encaixar no molde. Em seguida, houve uma longa espera enquanto
o metal resfriava, até que finalmente o molde pudesse ser quebrado,
revelando o sino. O imperador e seus cortesãos inclinaram o corpo
para ver melhor. O molde foi retirado, como uma casca de ovo.
Kuan Yu ficou pálido. Os cortesãos engasgaram. Alguma coisa tinha
dado errado! O sino estava cheio de buracos. De nada servia. O
trabalho de três meses e uma pequena fortuna tinham ido pelo ralo.
Felizmente, era da natureza de Yung Lo perdoar. Ele deu ao
sineiro outra bolsa de ouro e instruiu-o a recomeçar. Mais três
meses se passaram e, durante esse tempo, Kuan Yu trabalhou sem
descanso, conferindo uma, duas vezes seus planos, cuidando dos
fornos e acompanhando todas as fases da construção do novo
molde. Finalmente chegou a hora da segunda tentativa. O
imperador foi chamado. A oficina, preparada.
Enquanto o segundo rio de prata escorria pelas canaletas, o
silêncio era total. A espera foi longa e tensa enquanto o molde
esfriava. Finalmente, com a mão trêmula, Kuan Yu o abriu. Dessa
vez, o choque foi tão grande que ele quase desmaiou. Pois o sino
havia rachado em três partes, uma para cada mês de construção.
Mais uma vez, era de todo inútil. Mais uma vez o dinheiro do
imperador tinha sido desperdiçado.
Yung Lo era um homem paciente. Muitos imperadores teriam
tomado os dois fracassos do sineiro como um insulto pessoal e
imposto ao pobre homem uma morte horrível. Mas ele não perdeu a
calma. Deu a Kuan Yu uma terceira bolsa de ouro, inclinando-se na
sua direção.
– Falhar uma vez é compreensível. Duas vezes é possível
perdoar. Mas não posso permitir que haja uma terceira vez. Nem
mesmo eu – o imperador lhe sussurrou.
– Entendo, senhor − disse o sineiro, tremendo.
– Mais um erro vai lhe custar a vida – o imperador disse. – Você
tem mais três meses para terminar o trabalho. Dê-me o sino ou
morrerá.
Mais uma vez Kuan Yu se pôs a trabalhar, mas agora com um
peso no coração, pois passou a acreditar que o sino estava
amaldiçoado, que jamais seria capaz de terminá-lo como devia e
que, por mais que tentasse, ainda acabaria perdendo a vida. Foi
nesse estado de espírito que a filha o encontrou numa noite,
sentado junto ao fogo, com a cabeça entre as mãos.
Kuan Yu era viúvo. Sua esposa, doente, tinha morrido muitos
anos antes, e ele morava sozinho com a filha, Ko-ai. Agora com
dezesseis anos, era uma linda menina com suaves olhos
amendoados, longos e sedosos cílios e cabelos negros como a
meia-noite. Esbelta e graciosa, com voz suave, praticamente
cantava em vez de falar. Além de cuidar da casa e cozinhar para o
pai, Ko-ai era uma hábil poetisa e uma pintora de talento. É
desnecessário dizer que Kuan Yu amava a filha ternamente.
Vendo como o pai parecia infeliz, Ko-ai se sentou perto dele,
descansou a cabeça em seu colo e perguntou-lhe o que estava
acontecendo.
– Falhei duas vezes com meu imperador – Kuan Yu murmurou.
– Se acontecer uma terceira vez, estou acabado. E, além do mais…
– Virou os planos do terceiro sino entre as mãos. – Estou com medo
– ele sussurrou.
– Se ao menos eu pudesse ajudar… – Ko-ai disse.
– Não há nada que você possa fazer – Kuan Yu respondeu. –
Vou desenformar o sino em apenas alguns dias. Não há nada mais
que se possa fazer.
No dia seguinte Ko-ai se levantou e saiu sem o pai notar. Cruzou
Pequim a pé até alcançar a casa de um famoso mago, de nome Kuo
Po. Ao chegar, a porta se abriu sozinha antes que ela batesse, e a
moça se viu em uma passagem escura cheia de fumaça de incenso
que levou a uma sala circular, onde o mago estava à espera dela,
sentado de pernas cruzadas sobre um tapete de pouco valor.
– Saudações, Ko-ai – ele a cumprimentou.
– O senhor sabe o meu nome!
O homem inclinou a cabeça calva. – Faz parte do meu trabalho.
Sei também o que a traz aqui. Você tem uma pergunta. Mas aviso:
não queira saber a resposta. Você pode não gostar.
– Mas preciso saber – Ko-ai disse em voz baixa.
– Muito bem. – O mago fez uma pausa. – O terceiro sino irá
falhar.
Ko-ai caiu para trás, as lágrimas brotando de seus olhos. Mas,
então, o mago levantou a mão.
– O sino irá falhar – ele disse –, a menos que o sangue de uma
jovem seja misturado ao metal fundido.
– Mas…
– Eu avisei para não perguntar. Agora você sabe. Apenas o
sangue de uma jovem salvará seu pai da execução. Agora, vá
embora!
O dia de abrir o terceiro molde chegou.
Mais uma vez o imperador saiu do palácio, mas agora, junto com
os cortesãos e músicos, sua comitiva incluía um carrasco
encapuzado carregando um machado. Pela terceira e última vez o
caldeirão do metal foi aquecido até o ponto de fervura, o vapor
subindo em círculos, a superfície borbulhando e lançando gotas.
Todos na sala estavam suando… e não era apenas por causa do
calor.
Então, um segundo antes de ser dado o sinal para virar o
caldeirão, Ko-ai apareceu, correndo ao longo de um pórtico logo
abaixo do teto.
– Pai! – ela gritou – Faço isso por você!
Antes que alguém pudesse detê-la, ela saltou do pórtico com um
grito terrível e mergulhou de cabeça no metal fundido. Um servo
tentou alcançá-la, mas só conseguiu pegar seu sapato, que ficou em
sua mão.
Kuan Yu gritou e desmaiou.
O corpo de sua filha atingiu a superfície do metal e desapareceu
dentro dele como se passasse por um espelho mágico. O grito
imediatamente cessou. Ao mesmo tempo, ouviu-se um grande
chiado e um cheiro horrível encheu o ar.
No mesmo instante, o caldeirão que já começava a se inclinar,
virou. O metal escorreu pelas canaletas para dentro do molde. Mas
dessa vez estava frisado de vermelho.
Ninguém jamais esqueceria o pesadelo que foi aquele dia. Kuan
Yu precisou de ajuda para ir para o quarto, onde permaneceu
completamente enlouquecido pelo que tinha visto. Daquele
momento em diante, sempre que ouvia o som de um sino, ele
gritava e se debatia, e eram necessários seis homens fortes para
amarrá-lo à cama. O imperador voltou para o palácio com seus
cortesãos atônitos. Nunca mais seus músicos conseguiram acertar o
tom. Aliás, nem o carrasco conseguiu fazer outra execução, pois
seus nervos ficaram abalados para sempre.
Mas, quando o sino esfriou e se quebrou o molde, descobriu-se
que, assim como previra o mágico, aquele era o maior triunfo de
Kuan Yu. E, apesar de tudo, o imperador ordenou que o sino fosse
pendurado na torre, como previsto.
Quando os cidadãos de Pequim souberam da história de
heroísmo de Ko-ai e viram o sino sendo levado da casa por
cinquenta homens fortes, ficaram muito curiosos para saber como
ele soaria. O sino certamente parecia peculiar, por conta dos frisos
vermelhos que ainda podiam ser vistos na prata. Observaram com
interesse o sino ser içado e pendurado na torre e, quando chegou o
dia de ele soar pela primeira vez, as ruas estavam tão cheias que
ninguém na cidade conseguia se mover. Até mesmo o imperador
apareceu para a primeira badalada, que seria exatamente ao meio-
dia.
O sol apareceu no céu. Chegou o momento esperado.
O sino foi golpeado, e o som era tão alto e tão impressionante
que o imperador pensou que ele valia o dinheiro gasto. Mas, então,
a multidão engasgou horrorizada, pois o soar do sino foi
imediatamente seguido por um grito medonho − exatamente o
mesmo som do corpo de Ko-ai batendo no metal escaldante. E,
mesmo quando o grito se extinguiu, ouviu-se a palavra Hsieh,
ecoando dentro do sino. Hsieh é a palavra chinesa para sapato – só
o que se salvou de Ko-ai.
Esta é a lenda do grande sino de Pequim. Se você não acreditar,
vá até lá e espere o soar do sino. Você ouvirá o grito seguido pelo
sussurro. Se alguém lhe perguntar o que é aquele som, você poderá
explicar. É o som de uma morte terrível.
Rômulo e Remo
MITOLOGIA ROMANA

Era uma vez dois irmãos, Numitor e Amúlio.


Numitor era um rei, mas não um rei malvado como costumam
ser os soberanos, e governava a grande cidade de Alba Longa no
norte da Itália, com tolerância e generosidade incríveis. Mas,
infelizmente, seu irmão mais novo não era tão agradável. Não lhe
bastava ser príncipe, viver em um palácio. Como muitos homens
poderosos, desejava mesmo era mais poder e faria qualquer coisa
para consegui-lo. E então ele maquinou, sussurrou, conspirou e
planejou até reunir pessoas que pensavam como ele para apoiá-lo;
assim, um dia, liderou um ataque armado ao trono, que tomou para
si. O rei Numitor foi pego completamente de surpresa. Tentou reagir,
mas já era tarde demais e de repente se viu forçado ao exílio.
Amúlio confiscou todos os seus bens – o que incluía a sua filha,
Rhea Silvia. O novo rei não poderia matá-la. Ela era por demais
popular e haveria protestos. Então, em vez disso, ele a forçou a se
tornar uma Virgem Vestal (o que foi muito possivelmente a melhor
segunda opção). Significava que ela estava proibida de se casar ou
ter filhos – e era exatamente o que Amúlio queria. Ele sabia que, se
Rhea Silvia tivesse filhos, talvez, quando crescessem, desejassem
se vingar.
Mas havia uma coisa que Amúlio ignorava. Marte, o grande deus
da guerra, cobiçava a jovem e bela Rhea Silvia. E uma noite, não
conseguindo mais se conter, escapuliu para a terra e surpreendeu a
jovem enquanto dormia. O resultado − nove meses depois − foi o
nascimento de gêmeos. Eles foram chamados Rômulo e Remo.
O rei Amúlio ficou furioso quando descobriu o que tinha
acontecido. Apesar de não ser culpa de Rhea Silvia, ele mandou
jogá-la no rio Tibre. Mas a raiva não acabou ali. Com um tipo de
crueldade que certamente teria alarmado os serviços sociais, caso
existissem naquela época, ele colocou os recém-nascidos em um
cesto amarrado com uma corda e jogou-o no rio. A mãe se afogou,
mas os meninos tiveram mais sorte. Uma correnteza alucinante
arrastou o cesto e o largou finalmente na praia, logo abaixo do
monte Palatino.
Os bebês poderiam ter morrido de fome ou sufocados, mas, em
uma reviravolta impressionante, foram encontrados por uma loba
que passava e que roeu as cordas e descobriu lá dentro,
gorgolejando, os meninos, sãos e felizes. A loba, claramente um
animal extraordinário, decidiu criar Rômulo e Remo como se fossem
seus filhotes, amamentando-os e se enrolando em volta deles à
noite, para aquecê-los. Eles também foram alimentados por pica-
paus, que lhes traziam nozes e frutas e até mesmo pedaços de
carne, e assim cresceram seguros e saudáveis. Desde então, o lobo
e o pica-pau passaram a ser os animais sagrados do deus Marte.
Um dia, quando os gêmeos tinham por volta de quatro anos,
foram descobertos, vivendo na floresta, por um pastor chamado
Fáustulo. Ele era uma alma gentil e não tinha filhos, e decidiu levá-
los para casa e cuidar deles. Pela primeira vez, usaram roupas e
comeram comida quente. Fáustulo os ensinou a falar, e sua esposa,
a ler e a escrever. Durante dez anos lá viveram, tratando o pastor
como pai.
Naqueles dias, os pastores tinham uma vida difícil, pois o país
estava cheio de bandidos que os atacavam, roubando-lhes o gado,
a comida ou o vinho. Mas a essa altura, Rômulo e Remo tinham
chegado à adolescência. Eram fortes e totalmente destemidos.
Também eram hábeis com a espada e o cajado. E de repente foram
os bandidos que começaram a ser atacados.
Rômulo e Remo se tornaram tão hábeis em roubar os ladrões
que logo sua fama se espalhou por todo o país. Aonde quer que
fossem, os pastores ficavam satisfeitos de vê-los, e até mesmo as
ovelhas pareciam felizes em tê-los por perto. No entanto, era
inevitável que a sua sorte mudasse, e um dia foram surpreendidos,
cercados por um bando de trinta bandidos que rosnavam, liderados
por um brutamontes de nome Josefo.
Josefo era imensamente gordo, com uma barba que emoldurava
seu rosto como borlas marrons em uma almofada rosa. Sempre que
seus homens roubavam uma ovelha, ele comia pelo menos metade
dela, às vezes nem sequer esperava até que a coitada tivesse
morrido. De qualquer forma, era o encarregado da emboscada e,
apesar de Rômulo e Remo lutarem com vigor, era óbvio que
estavam irremediavelmente em desvantagem. Mesmo assim,
conseguiram matar ao menos vinte dos inimigos antes que suas
espadas se quebrassem. Rômulo conseguiu fugir, mas Remo foi
capturado e levado à presença do rei dos bandidos.
– Vamos matá-lo, meu senhor? – gritaram os bandidos. Josefo
era um camponês, não um senhor, mas era assim que gostava de
ser chamado.
– Não. – Josefo pensou por um momento, uma atividade não
muito fácil para ele. Era forte e torto, mas não era particularmente
brilhante. – Vamos levá-lo ao proprietário destas terras – sugeriu. –
Dessa forma, ele vai levar a culpa por todos os nossos crimes e
estaremos livres.
Se os bandidos tivessem prestado atenção na proposta, teriam
percebido sua falta de lógica, mas desde quando bandidos usam a
lógica? Eles eram bons em matar e roubar, não mais do que isso.
Foi assim que se tornaram bandidos. Então fizeram como lhes fora
dito; amarraram Remo, o imobilizaram e, em seguida, carregaram-
no nos ombros até a cidade mais próxima.
E assim o levaram à presença do proprietário das terras, um
ancião que morava sozinho, cercado de livros e instrumentos
musicais. Tentaram explicar que se tratava de um vilão que haviam
apanhado na floresta, o responsável por todos os crimes na área –
mas, apesar de tudo o que diziam, o velho se recusou a acreditar.
Ora, os bandidos não eram exatamente testemunhas confiáveis,
gritando uns com os outros para conseguirem se ouvir e
esfaqueando qualquer um que os interrompesse. Mas também havia
algo no comportamento do jovem. Ele não parecia um criminoso. Na
verdade, parecia quase um nobre.
Ele pediu que Remo contasse sua história e, à medida que
falava, Remo se surpreendia ao ver que seu relato fazia lágrimas
brotarem dos olhos do homem. Acabou por descobrir que o ancião,
afinal, era Numitor, o rei deposto pelo irmão mais novo. Sim,
Numitor soubera o que tinha acontecido à sua pobre filha, Rhea
Silvia, e, tinha de admitir, o jovem se parecia muito com ela.
Também ouvira rumores de que ela tinha dado à luz antes de
morrer. Ficou mais do que feliz em juntar dois e dois e concordar,
sem dúvida, que Remo devia ser seu neto.
Josefo e os bandidos sobreviventes foram imediatamente
presos. Uma equipe de busca foi enviada para a floresta para
encontrar Rômulo e, naquela noite, os três – Numitor, Rômulo e
Remo – jantaram juntos, reunidos finalmente como uma família.
Poucas semanas depois, Numitor voltou a Alba Longa ao lado
dos netos, seguido por um considerável exército. O rei Amúlio
estava completamente despreparado. Havia passado os últimos
catorze anos bebendo vinho e perseguindo as criadas do palácio, e,
quando soube que havia um exército à sua porta, era tarde demais.
Foi derrubado por uma chuva de flechas, e ninguém ficou triste ao
ver o seu fim. Naquele mesmo dia, o trono foi devolvido a Numitor.
Com Numitor outra vez no poder, você talvez tenha pensado que
tudo teria um final feliz para Rômulo e Remo, mas infelizmente não
foi o caso.
Os irmãos decidiram que queriam ter sua própria cidade e,
despedindo-se de Numitor, voltaram para o Palatino, de onde tinham
saído em um cesto, jogados na água, tantos anos antes. Mas agora
o ciúme que começara a história, e que sempre correra no sangue
da família, estava vindo à tona.
– Vamos construir uma grande cidade – disse Remo. – E eu
serei o rei.
– Perdoe-me – Rômulo rebateu. – Certamente, eu deverei ser o
rei da nossa nova cidade.
– Por que você? – perguntou Remo.
– Bem, eu tive a ideia de construir uma cidade primeiro.
– Espere um minuto, querido irmão – disse Remo, um tanto
ruborizado. – Se eu não tivesse sido levado por Josefo, nada disso
jamais teria acontecido.
– Ser capturado por um bandido obeso não é nada do que se
orgulhar – rebateu Rômulo, ruborizado dessa vez. – Foi ideia minha,
serei o rei da nova cidade, e ela será chamada Roma, como eu.
– Eu serei o rei – gritou Remo. – E será chamada Reme, como
eu.
– Roma!
– Reme!
Parecia não haver solução. Sendo gêmeos, não podiam sequer
dizer quem era o mais velho – o que poderia ter sido uma maneira
de resolver a questão. Mas, ao mesmo tempo, não queriam lutar
entre si. Haviam passado por muita coisa juntos para acabar assim.
No final, decidiram deixar que os deuses resolvessem o
problema. Rômulo escalou o monte Palatino, enquanto Remo subiu
o Aventino, perto dali2. Não tiveram de esperar muito pela resposta.
Quase ao mesmo tempo as nuvens se retraíram e seis grandes
abutres voaram para o Aventino e começaram a circular em torno de
Remo.
– Aí está! – Remo gritou, triunfante. – A cidade será Reme, e eu
serei o rei. Os deuses decidiram.
– Não!– Rômulo retrucou. – Os deuses estão do meu lado. A
cidade será Roma e vou governar. Olhe!
Remo olhou para cima, e a cor se esvaiu de seu rosto quando
mais doze abutres dispararam do céu e voaram em torno de seu
irmão. Rômulo teve o dobro de aves. Remo tinha perdido.
Remo teve dificuldade em encarar a derrota e, depois disso,
nunca houve amor entre os irmãos. Na verdade, mesmo depois de
construída a nova cidade, ele não deixava passar oportunidade para
espezinhar Rômulo, dizendo que as ruas eram estreitas demais, os
muros muito altos, havia templos demais e lojas de menos. As
coisas finalmente explodiram quando Rômulo marcou as suas
fronteiras com uma longa trincheira, que Remo saltou, rindo, como
se quisesse dizer que Roma poderia ser capturada muito facilmente.
Para Rômulo foi a gota d’água. Ele puxou a espada. A lâmina cortou
o ar. E, antes que percebesse o que tinha feito, o irmão jazia a seus
pés – imerso numa poça de sangue.
Foi assim a fundação da cidade de Roma – banhada em sangue.
E talvez por essa razão tanto sangue tenha corrido por suas ruas
nos dois mil anos seguintes.
Mas isso não é uma questão de mito ou lenda. É uma questão
de história.

2 Mesmo hoje, se você visitar Roma, vai achar que ainda existe uma rivalidade entre
essas duas áreas da cidade. Esta nota revela o final da história, mas você já deve ter
adivinhado como ela termina.
Geriguiaguiatugo
LENDA DOS ÍNDIOS BORORÓ

Os índios Bororó da América do Sul contam uma estranha


história sobre um jovem que recebeu o difícil nome de
Geriguiaguiatugo. Antes de começar, talvez valha a pena eu
mencionar algumas coisas.
1. Esses mitos e lendas, contados por povos primitivos, muitas
vezes não têm nenhuma lógica. Eles pertencem a um mundo
totalmente distinto do nosso.
2. Podem ser extremamente violentos.
3. Cada versão é ligeiramente diferente. Os índios Bororó
tinham uma tradição oral, passando as histórias de geração em
geração.
4. Eu reuni as versões que consegui encontrar, mas acrescentei
bem pouco por minha conta.
Em todo caso, a história começa com Geriguiaguiatugo atacando
a mãe com violência, em uma floresta. Não tenho ideia do que a
pobre mulher tinha feito para merecer isso, mas geralmente é assim
que começa.
De qualquer forma, com a mãe deitada, brutalmente espancada,
no chão da floresta, Geriguiaguiatugo retornou à aldeia e continuou
a viver como se nada tivesse acontecido. Seu pai, no entanto, ficou
desconfiado. Não havia como descobrir a verdade – as contusões
nos nós dos dedos do filho, as enormes manchas de sangue em sua
tanga, talvez –, mas de alguma forma ele tinha certeza de que o
jovem era o responsável pelas terríveis lesões da esposa.
Assim, decidiu se vingar e designou a Geriguiaguiatugo uma
série de missões, cada uma mais perigosa do que a anterior. Por
exemplo, ordenou que o filho removesse um chocalho sagrado do
Lago das Almas. O lago era um lugar de pesadelo onde as mãos de
homens mortos rompiam a superfície negra da água para arrastar
os viajantes desavisados a uma morte congelante. Mas
Geriguiaguiatugo sobreviveu. Guiado por um beija-flor, navegou
para o outro lado, pegou o chocalho sagrado e o trouxe de volta
para a aldeia, assoviando alegremente como se estivesse voltando
de um dia de pesca.
Embora tentasse não demonstrar, o pai ficou furioso porque o
filho retornou ileso e imediatamente deu-lhe uma segunda tarefa – e
dessa vez os dois partiram juntos. Iam em busca de um papagaio
raro, o pai explicou, que só poderia ser encontrado no topo de um
penhasco a certa distância dali. Geriguiaguiatugo não tinha razão
para duvidar daquela história. Não imaginava que havia alguma
coisa errada.
No entanto, quando chegaram ao penhasco, viram que era
incrivelmente alto. No pé da montanha com a cabeça inclinada para
trás, Geriguiaguiatugo não conseguia ver onde terminava a
superfície do rochedo escarpado e começava o céu. Parecia uma
subida sem fim.
– Como chegaremos ao topo? – perguntou.
O pai cravou um prego de ferro no penhasco, errando a cabeça
do filho por centímetros. – Escalando – rosnou.
E foi o que fizeram. Era um trabalho lento, exaustivo. Quase não
havia pontos de apoio para os pés, e as poucas saliências eram
pequenas e traiçoeiras. Mesmo Geriguiaguiatugo, que estava em
boa forma física e não tinha medo de nada, achou difícil seguir. Em
um momento seu pé estava firmemente fixado à rocha. No outro,
sua barriga fez um movimento, e ele procurou loucamente um apoio,
enquanto as pedras desmoronavam sob seus pés. Logo, estavam
muito, muito longe do solo. Olhando para baixo, Geriguiaguiatugo
conseguia ver as árvores que agora não eram maiores do que uma
helicônia3. Praguejando baixinho, se concentrava em encontrar uma
forma de vencer os próximos quinze centímetros do penhasco.
Seu pai subia logo atrás dele. Em certo momento não havia um
único apoio para o pé à vista, e Geriguiaguiatugo teve que martelar
uma escada de pregos que se estendia por cerca de um metro. Foi
quando seu pai atacou. Com as mãos desprotegidas, puxou todos
os pregos, cortou a corda que o separava do filho e desceu pelo
caminho por onde tinham subido. Ao se virar, Geriguiaguiatugo
percebeu que estava em apuros.
– Seu porco! – gritou. – Você não pode me deixar aqui!
– Posso, sim! – veio a resposta entusiasmada.
– Volte! E a missão? E o papagaio? E eu?
Mas o pai apenas riu.
Logo ele desapareceu completamente, e Geriguiaguiatugo foi
forçado a fazer um balanço de sua situação. Não era nem um pouco
agradável. Ele estava no meio de um penhasco. Tinha as mãos em
carne viva e que sangravam após todo aquele esforço. A noite
estava chegando. Embora ainda tivesse o martelo e o saco de
pregos, era fisicamente impossível fazer uma nova escada sob os
pés. E, ainda mais, sem uma escada não havia como descer. A
superfície do penhasco era lisa demais, perigosa demais.
Só lhe restava subir.
Foi o ele que fez. Subiu até que cada músculo de seu corpo
estivesse gritando com ele e as lágrimas lhe corressem pelo rosto.
– O que eu fiz para merecer isso? – gemeu (esquecendo-se,
por um momento, do fato de ter mandado a mãe para o hospital). –
Como é que o meu pai pôde fazer isso comigo? Bem, isso não é
nada comparado ao que farei ao velho tolo quando colocar as mãos
nele…
Um escorregão e a história teria terminado ali mesmo. Mas, de
alguma forma, Geriguiaguiatugo conseguiu chegar ao topo. Seus
problemas, no entanto, estavam longe de acabar. Como seu pai
sabia desde o início, o penhasco levava simplesmente a um
pequeno platô e lá nada havia: nem plantas, nem água, nem
pássaros… menos ainda a pena de um papagaio raro. Ele tinha
chegado ao topo, mas parecia que tudo o que o esperava era uma
morte lenta pela fome.
O sol tinha baixado, e uma lua pálida pairava no céu.
Geriguiaguiatugo ficou surpreso ao descobrir que já não estava
sozinho. Toda uma colônia de lagartos habitava as rochas áridas no
topo do penhasco, e, agora que o calor do dia terminara, eles
estavam saindo para se esticar no pó.
Mas pelo menos era uma boa notícia. Para os índios Bororó, os
lagartos eram uma espécie de iguaria. Era comum serem comidos
fritos em um pouco de gordura de frango e aromatizados com ervas.
Também eram ótimos mastigados frescos e vivos, triturados entre os
dentes. Em questão de segundos, Geriguiaguiatugo tinha pegado
alguns bem gordinhos atordoando-os com o martelo. Comeu-os
imediatamente. Em seguida, pegou mais uma meia dúzia e os
pendurou em uma corda em torno da cintura.
No dia seguinte, quando acordou, o sol estava mais quente do
que nunca. Quente demais até mesmo para pensar em uma
maneira de sair do platô; então ele apenas ficou lá, se divertindo em
imaginar coisas ainda mais dolorosas para fazer com o pai quando
voltasse para a aldeia. Por volta do meio-dia, começou a notar um
cheiro desagradável. No final da tarde, o cheiro tinha se tornado
nauseante. Ele se levantou e caminhou até o outro lado do platô. O
mau cheiro o seguiu. Uma hora depois, o fedor era tanto que ele
vacilou, cambaleou e finalmente perdeu a consciência.
A culpa era dos lagartos mortos. Pendurados ao redor de sua
cintura no sol quente, tinham apodrecido – e agora o mau cheiro
atraíra um bando de urubus que passava. As aves medonhas com
suas cabeças calvas, penas verdes esfarrapadas e pescoços
sinuosos gostavam mais da carne quando estava bem pendurada.
Assim que pousaram no corpo inconsciente de Geriguiaguiatugo,
começaram a rasgar a carne podre com seus bicos e garras. E
estavam com tanta fome que não ficaram só com os lagartos.
Comeram as nádegas de Geriguiaguiatugo, arrancando a carne,
que engoliram também.
Geriguiaguiatugo acordou algum tempo depois e ficou tão
aliviado ao descobrir que o cheiro tinha passado que nem sequer
percebeu a hedionda mutilação que sofrera. A uma pequena
distância, os urubus o observavam explorar a borda do penhasco
em busca de uma maneira de descer.
– Devemos um favor ao garoto – disse um deles. – Talvez
devêssemos levá-lo para a parte de baixo.
Vários urubus riram ao ouvir isso. Afinal, era a parte de baixo
dele que tinham acabado de devorar… uma piada bastante fraca,
mas os urubus não têm um senso de humor muito desenvolvido.
– Se o deixarmos aqui, ele não terá muito futuro pela frente – o
urubu insistiu.
– E terá muito pouco atrás também – observou outro abutre.
Assim, as aves voaram de volta até Geriguiaguiatugo e, com as
garras, o ergueram pela camisa, levando-o até a base do penhasco.
Geriguiaguiatugo ficou completamente espantado com aquele
golpe de sorte e começou a viagem de volta para a aldeia, parando
apenas para colher algumas frutas de uma árvore, pois estava com
fome de novo. Foi então que descobriu o que lhe tinha acontecido.
Pois, não tendo a parte de baixo, a fruta literalmente passava direto
pelo corpo. Mas não ficou aborrecido. Lembrou-se de como a avó
costumava fazê-lo comer purê de batata quando era um garotinho –
fazendo formas com ele no prato. E assim desenterrou algumas
batatas doces, que cozinhou e amassou, fazendo com elas um novo
par de nádegas que encaixou no lugar.
Sentindo-se muito mais inteiro, tomou o caminho de volta para
sua aldeia. A viagem levou várias semanas, mas, mesmo assim, os
aldeões ainda estavam comemorando sua suposta morte quando
ele chegou. Imediatamente tentaram fingir que estavam na verdade
lamentando sua partida, mas não conseguiram enganar
Geriguiaguiatugo. Ele nem se impressionou quando o pai veio
cumprimentá-lo praticamente se arrastando.
– Olá, meu filho – o pai disse, tentando estampar um sorriso nos
lábios enquanto o sangue sumia de seu rosto.
– Olá, pai – Geriguiaguiatugo respondeu. – Tem subido muitas
montanhas ultimamente?
– Bem… – o velho corou. – Eu tentei mesmo voltar para buscar
você. De verdade! Mas…
– Mas?
– Mas…
– Vou acabar com você, seu palhaço!
E com essas palavras Geriguiaguiatugo magicamente se
transformou em um alce e lançou-se contra o pai, jogando-o (com o
traseiro) no chão. Os aldeões gemiam, mas ele ainda não tinha
terminado. Enfiou os chifres no estômago do pai e, em seguida,
atirou o velho para o ar com um movimento do pescoço. Fez isso
por três vezes. Na primeira, o pai pousou em uma moita de cardos.
Na segunda, bateu em um ninho de vespas. E na terceira caiu em
um rio próximo, onde foi feito imediatamente em mil pedaços por um
cardume de piranhas famintas.
Depois disso, Geriguiaguiatugo governou a aldeia. E só posso
dizer que todos foram infelizes para sempre.

3 Flores vívidas encontradas na floresta tropical.


Uma oferenda para o Sol
LENDA INCA

– Por que nós, os incas, adoramos o Sol? – o menino


perguntou.
– Você não aprendeu isso na escola? – retrucou o sacerdote
inca, irritado.
– Sou novo demais para ir à escola – o menino respondeu.
O sacerdote abrandou a voz. – Muito bem – disse. – Vou lhe
contar a história de como o Sol veio para a terra…
“Houve uma época, há muito tempo, em que toda a terra era
coberta pelas trevas. Era um deserto cruel e desolado, com
montanhas rochosas se estendendo para o norte e grandes falésias
ao sul. Naquela época as pessoas não tinham conhecimento. Eram
um pouco melhores do que animais, andando nuas pelos campos,
sem sentir vergonha. Não tinham casas nem aldeias; viviam em
cavernas, amontoando-se para se aquecer, incapazes até mesmo
de acender uma fogueira. Alimentavam-se de frutos silvestres e de
quaisquer animais que conseguissem pegar – ratos selvagens e
raposas –, rasgando a carne com os dentes e comendo-os crus.
Quando as coisas ficavam particularmente difíceis, comiam grama
ou raízes de ervas daninhas, plantas selvagens e às vezes (horrível
dizer isso) se banqueteavam até com carne humana.
“Então veio Inti – pois esse é o nome que demos ao Sol, um
nome que apenas um verdadeiro inca pode proferir –, e a sua luz
iluminou o mundo e mostrou o estado miserável das pessoas. E,
porque o Sol era bondoso, sentiu vergonha por elas. Então decidiu
enviar um de seus filhos do céu para a terra. Esse filho do Sol
mostraria aos homens e às mulheres como lavrar o solo, semear,
criar gado, colher frutos das plantações. Também os ensinaria a
adorar o Sol como seu deus, pois sem luz e calor eram como
animais.”
– Qual era o nome do filho do Sol? – o menino perguntou.
– O nome dele era Manco Capac – o sacerdote respondeu. – E
com ele veio Occlo Huaco. Ela era filha da Lua.
– O Sol e a Lua eram amigos?
– Eram casados – o sacerdote explicou. – Então, as duas
crianças eram irmão e irmã.
“Manco Capac e Occlo Huaco foram colocados em duas ilhas no
lago Titicaca, que é o lago mais alto do mundo. Até hoje elas são
conhecidas como as Ilhas do Sol e da Lua. Então, eles
atravessaram o lago, a água brilhando como diamantes a seus pés,
até que finalmente pisaram em terra seca e começaram seu
trabalho.
“Antes que deixassem o céu, o Sol lhes dera um bastão de ouro.
Era quase tão grosso quanto dois dedos e um pouco mais curto do
que o braço de um homem.
“‘Vão aonde quiserem’, ele lhes dissera. ‘Mas sempre que
pararem para dormir ou comer, tentem enfiar este bastão na terra.
Se ele não entrar, ou entrar apenas um pouquinho, continuem a
andar. Mas, quando chegarem a um lugar onde, com um golpe
único, ele desaparecer completamente, saberão que estão em um
lugar sagrado para mim. E é aí que devem ficar. Pois vocês estarão
no local que vai se tornar uma grande cidade, cheia de palácios e
templos. E essa cidade será o centro do meu império, um império
como nunca se viu antes no mundo.’
“Manco Capac e Occlo Huaco deixaram o lago Titicaca e
começaram a caminhar em direção ao norte. Todos os dias,
tentavam enfiar o bastão de ouro na terra, mas sem sucesso. Isso
continuou por várias semanas até que finalmente chegaram ao vale
de Cuzco, então nada mais do que um deserto selvagem e
montanhoso. Quando cravaram o bastão ali, ele desapareceu
completamente no chão; assim, souberam que tinham chegado ao
lugar onde o Império Inca seria fundado.
“Os dois então seguiram caminhos separados, conversando com
todo selvagem que encontravam, explicando por que estavam ali.
Os selvagens, é claro, ficaram bastante impressionados, pois os
estranhos usavam belas roupas. Discos de ouro pendiam de suas
orelhas. Os cabelos eram curtos e arrumados, e seus corpos eram
limpos. Nunca houvera por ali duas pessoas como eles, e logo
milhares de homens e mulheres tinham vindo ao vale de Cuzco para
ver os dois visitantes e ouvir o que tinham a dizer.
“Foi quando Manco Capac começou a construir a cidade exigida
pelo pai. Ao mesmo tempo, ele e a irmã ensinaram ao povo tudo o
que precisavam saber se quisessem ser adequadamente
civilizados.”
– A cidade era a mesma em que estamos agora? – o menino
perguntou.
– Sim – o sacerdote respondeu. – Chamava-se Cuzco. E estava
dividida em duas metades. A parte mais alta de Cuzco foi construída
pelo nosso rei. A parte mais baixa, pela rainha.
– Por que duas metades?
– Foi construída como o corpo humano, com um lado direito e
um lado esquerdo. Todas as nossas cidades foram construídas da
mesma forma. Mas o sol está nascendo, menino. Receio que logo
tenhamos de terminar…
“Em pouco tempo, os selvagens não eram mais selvagens. Eles
moravam em casas de alvenaria e usavam roupa adequada. Manco
Capac ensinou os homens a cultivar os campos, e a irmã ensinou as
mulheres a fiar e tecer. Havia até mesmo um exército em Cuzco
com arcos, flechas e lanças, pronto para lutar contra aqueles que
permaneciam em estado selvagem. Mas, gradualmente, o império
se espalhou e Manco Capac se tornou o primeiro Inca, o que quer
dizer o primeiro rei do povo Inca.
“Sempre, desde então, os Incas adoram o Sol. Cada rei que
governa é descendente de Manco Capac, o que significa que
também é descendente do Sol. O Sol dá luz e calor e faz crescer a
colheita. O Sol enviou o seu próprio filho ao mundo para que as
pessoas não mais se comportassem como animais. Grandes
templos foram construídos para homenagear o Sol, refletindo seus
raios em folhas de ouro batido.
“E no Inti Raymi – que é o solstício de verão, o dia em que o Sol
atinge sua declinação máxima na sua viagem para o sul – há um
festival com músicas, danças e um banquete. Nesse dia oferecem-
se sacrifícios. As lhamas têm suas gargantas cortadas antes de
serem colocadas no fogo. A fumaça se eleva no ar e, dessa forma,
são oferecidas ao Sol. E, se há um evento especial a ser
comemorado, uma grande vitória, por exemplo, então não é um
animal, mas uma criança que deve morrer.”
– E eu vou ser oferecido ao Sol –o menino sussurrou.
– É uma honra para você, minha criança – disse o sacerdote.
O Sol agora estava acima do horizonte. O sacerdote deitou o
menino na pedra de sacrifícios e, em seguida, cravou fundo a faca
cerimonial em seu coração. Uma pira foi acesa, e logo a fumaça
subia em caracóis em direção ao céu brilhante.
A esposa feia
LENDA CELTA

Este é um conto sobre o rei Artur, o lendário rei da Grã-Bretanha,


que liderava os famosos Cavaleiros da Távola Redonda. É também
sobre Sir Gawain, seu sobrinho, e o mais nobre dos cavaleiros que
tomaram lugar ao redor da Távola Redonda. Começa (como muitos
desses contos) com uma dama em perigo.
Ela surgiu enquanto a corte estava em Carlisle. Seu cabelo
estava sujo, as roupas rasgadas e os olhos desvairados de dor.
– Ajude-me, rei Artur – ela gritou. – Meu marido foi levado e
escravizado pelo perverso cavaleiro de Tarn Wathelyne. Embora eu
também tenha lutado – como pode ver, tenho as roupas rasgadas e
estou coberta de hematomas –, não havia nada que eu pudesse
fazer. Meu marido se foi! E então lhe suplico, grande rei. Traga-o de
volta para mim. Acabe com o cavaleiro de Tarn Wathelyne.
Embora chocado ao ouvir isso, o rei ficou discretamente
satisfeito. A visão da pobre mulher genuinamente o comoveu, mas,
ao mesmo tempo, ele secretamente amava a aventura e já ansiava
por aquele novo desafio. No mesmo dia, partiu a cavalo. Sozinho,
armado apenas com uma lança e com Excalibur, a espada mágica,
assobiava sem ter medo, sentimento que não conhecia – ou, se
conhecia, jamais tinha demonstrado.
Mas dessa vez algo muito estranho aconteceu. Enquanto
cavalgava e se embrenhava cada vez mais no bosque (que se
tornava mais e mais escuro), o assobio morreu em seus lábios.
Passou por um lago negro como sangue em uma noite sem lua, e
todo o seu corpo estremeceu. Todas as árvores tinham perdido as
folhas. Os galhos se contorciam como cobras ao vento, e corvos
esfarrapados pairavam acima deles, gritando como se
compartilhassem segredos desagradáveis. Apesar de seus
esforços, o rei Artur tremia e sabia que não era apenas por causa do
frio.
Por fim, viu o castelo do cavaleiro. Era grande, mais largo no
topo do que na base, com duas janelas altas escuras e uma ponte
levadiça sólida e negra. De longe, parecia um enorme crânio
humano. O rei Artur se forçou a continuar, guiando seu cavalo em
direção à ponte levadiça. Mas, quando ela se abriu com um rangido
metálico e alto e o cavaleiro de Tarn Wathely surgiu, o pouco de
coragem que lhe restava desapareceu. Com um gemido, Artur caiu
ao chão, quase desmaiando de medo.
O cavaleiro, invisível em sua armadura negra, apeou do cavalo e
caminhou até onde Artur estava ajoelhado, sem forças sequer para
olhar para cima. Artur ouviu o ruído de passos no cascalho e o
tilintar da armadura. Em seguida, veio o som de metal contra metal
quando o cavaleiro puxou a espada. Houve um minuto de silêncio
que pareceu arrastar-se por uma hora. Finalmente soou uma voz
tão fria quanto a própria morte.
– Então esse é o grande rei Artur! – sussurrou o cavaleiro. –
Diga-me, Majestade, por que eu não cortaria a sua cabeça enquanto
o tenho ajoelhado diante de mim?
– Você… é… é… o diabo! – o rei engasgou.
– Não! – o cavaleiro riu. – Meu nome é Gromer Somer Joure e
eu sou servo da rainha Morgana le Fay, a sua maior inimiga. Mas,
veja, a senhora está aqui comigo.
O rei teve de se esforçar para erguer a cabeça; ali, ao lado do
cavaleiro, estava a mulher que o enviara pela primeira vez em uma
demanda. Mas agora era maligno o seu sorriso. Morgana usara
seus poderes para se disfarçar e, mesmo em seu medo, Artur tremia
de raiva com a facilidade com que tinha sido enganado.
– Tenha piedade de mim! – ele gritou.
– Acabar com sua vida agora seria muito fácil – respondeu o
cavaleiro. – Então, em vez disso, vou enviá-lo em uma demanda.
Prometa-me que vai voltar aqui, de livre vontade, exatamente daqui
a um ano. Mas, quando voltar, deve trazer a resposta a essa
pergunta: o que é que as mulheres mais querem no mundo? Se me
trouxer a resposta correta, pouparei a sua vida miserável. Mas, se
estiver errado, então, rei Artur, você morrerá. Você morrerá
lentamente – e seus ossos vão decorar as paredes do meu castelo.
O cavaleiro negro riu, depois pegou a mão de Morgana e eles se
afastaram. A ponte levadiça desceu, e o rei Artur foi deixado
sozinho.

A resposta
– Foi feitiço, meu senhor – Gawain gritou ao ouvir a história. –
Magia negra. Foi isso que lhe causou o medo, o que o fez clamar
por misericórdia. Com sua licença, vou pegar meu cavalo para ir a
esse castelo e…
– Não, caro Gawain – o rei o deteve. – Fui enviado em uma
demanda. Sou um homem honrado. O que é que as mulheres mais
desejam neste mundo? Tenho um ano para descobrir.
– Então irei acompanhá-lo – disse Gawain. – Talvez juntos
tenhamos mais sorte.
No dia seguinte, deixaram Carlisle e cruzaram o país, parando
todas as mulheres que encontravam, na tentativa de descobrir a
solução do enigma do cavaleiro. O problema era que elas
discordavam.
Algumas diziam que a maioria das mulheres desejava roupas
finas e joias. Outras insistiam que um bom marido e filhos amorosos
eram o mais importante. Luxo, lealdade, imortalidade,
independência… Essas foram apenas algumas das respostas.
Houve uma velha maluca que insistiu que o que todas as mulheres
realmente queriam era geleia de morango. As respostas variavam
entre o bizarro e o banal – mas nenhuma parecia de todo
convincente.
O tempo passou voando. Uma semana se transformou em um
mês. Mais um mês se passou, depois se passaram dois, depois
seis… Logo o rei Artur e Sir Gawain se viram no caminho de volta
para o castelo encantado. Tinham todo um catálogo de respostas
em seus alforjes, mas sabiam em seus corações que tinham
falhado.
Foi na véspera de se separarem, talvez para sempre, que
encontraram uma anciã ao pararem em uma clareira para descansar
os cavalos. Gaiwain a viu ao lado de um riacho, lendo um livro.
Estava bem vestida, pois usava os melhores tecidos e tinha o corpo
coberto de joias. Mas, quando ela se virou, ele percebeu que se
tratava, sem dúvida, da mulher mais feia que já tinha visto.
Uma feiura extraordinária. Os lábios, como os de um macaco
gigante, reuniam-se vários centímetros à frente do nariz e, quando
ela sorria, os dentes eram projetados para fora, amarelos e
desiguais. A pele era da cor e da textura de um pudim de arroz, e o
cabelo, fino e duro, brotava-lhe da cabeça, sem cor ou forma
definidas. O nariz tinha sido empurrado no rosto até quase
desaparecer, e ela era de tal forma estrábica que parecia estar
tentando olhar para as próprias narinas. Por fim, era terrivelmente
gorda – tão gorda, de fato, que as mãos e os pés pareciam brotar do
seu corpo, sem o benefício de braços e pernas.
Mas era uma mulher, e Artur decidiu fazer a última tentativa de
responder à pergunta. Aproximou-se, inclinando-se cortesmente,
porém, antes que pudesse falar, ela se dirigiu a ele com uma
estranha voz cacarejante.
– Eu sei qual é a pergunta que o senhor gostaria de fazer – ela
gritou – e também sei a resposta. Mas só a darei com uma
condição.
– E qual é? – o rei Artur perguntou.
A mulher horrível sorriu para Gawain e passou a língua molhada
sobre os lábios.
– Esse cavaleiro… – disse ela, rindo. – Ele é jovem e bonito.
Que lindo cabelo louro! Que delicados olhos azuis! Vou ter o maior
prazer em tê-lo como marido. Essa é a minha condição! Se o senhor
me concedê-lo em casamento, eu salvarei a sua vida.
Com isso, Gawain ficou pálido. Ele era realmente jovem e bem-
apessoado. Todos os seus amigos esperavam que ele voltasse para
casa um dia com uma bela esposa. O que diriam se aparecesse
com aquele monstro…?
Mas, mesmo com esses pensamentos passando-lhe pela mente,
seu caráter prevaleceu. Ele tinha um dever – para com seu tio, para
com o rei.
– Meu senhor – ele disse. – Se essa mulher pode salvar a sua
vida…
– Eu posso, eu posso! – a mulher cantarolou.
– … então terei prazer em me casar com ela.
– Meu caro sobrinho – o rei Artur gritou. – Você é generoso e
nobre. Mas não posso deixá-lo…
– O senhor não pode me impedir – Gawain respondeu. E
ajoelhou-se. – Senhora – exclamou –, dou-lhe a minha palavra de
Cavaleiro da Távola Redonda de que me terá como marido se puder
salvar o rei. Diga-lhe o que é que as mulheres mais desejam. E seu
desejo será satisfeito.
E foi assim que na manhã seguinte o rei Artur se foi – sozinho,
como prometido – para o castelo de Tarn Wathelyne. Mais uma vez
a sensação do mal o rodeava como uma grande escuridão, mas
agora conseguia avançar com confiança, como se a resposta que
carregava fosse um farol aceso. Pela segunda vez a grande ponte
levadiça se abriu, e o cavaleiro negro saiu a cavalo, com a espada
já desembainhada.
– Então está de volta, grande rei! – ele rosnou. – Perguntava-
me se teria coragem bastante. – Sua mão buscou a espada. – Dê a
resposta à minha pergunta. O que é que as mulheres mais desejam
neste mundo?
O rei Artur respondeu com coragem e clareza, repetindo as
palavras da mulher feia.
– Todas as mulheres querem que, como os homens, possam
controlar seus próprios corpos e que tenham permissão para tomar
decisões por si mesmas.
Por um momento, o cavaleiro negro ficou em silêncio. Em
seguida, deixou cair a espada e, para espanto de Artur, caiu de
joelhos.
– A resposta está correta, senhor, e por isso o feitiço que a
bruxa má Morgana le Fay lançou sobre mim se quebrou. Ela
obrigou-me a enviá-lo em sua demanda. Eu era seu escravo, mas
agora a sua magia terminou. Peço-lhe, senhor, que me deixe servi-
lo na Távola Redonda. Por baixo dessa armadura negra e suja, sou
um bom homem e vou provar ser digno dessa honra.
– Seja bem-vindo – disse o rei Artur.
Pronunciadas essas palavras, o pavoroso castelo de Tarn
Wathelyne rachou e desmoronou e, de repente, um vento surgiu
enquanto tijolos e ferragens começaram a desmoronar. Em seguida,
a luz do sol rompeu as nuvens. O castelo se despedaçou, o chão se
ergueu como se estivesse feliz por se libertar. Um momento depois
ele havia desaparecido, e os passarinhos voltaram a cantar.
– Vamos cavalgar juntos – convidou o rei, e assim eles voltaram
para a corte. No entanto, embora a aventura tivesse terminado bem
para ele, seu coração lhe pesava. Tinha um casamento para assistir,
um sobrinho para ver casado. Teria dado o seu reino para não ser
dessa forma.

O casamento
O casamento de Sir Gawain foi um evento que ninguém jamais
esqueceria. A mulher feia riu durante o ofício, e depois comeu tão
grotescamente na festa que quase havia tanta comida em seu
vestido quanto em sua boca. Sentou-se com as pernas abertas e os
cotovelos sobre a mesa e deliberadamente esqueceu o nome de
todos.
É claro que sendo uma época de cavalheirismo, os outros
convidados se esforçavam para ser escrupulosamente educados.
Quando a nova esposa de Sir Gawain ficou bêbada e caiu, correram
para ajudá-la como se ela tivesse apenas tropeçado. Quando fez
piadas grosseiras e desagradáveis, riram e aplaudiram. E todos
felicitaram Sir Gawain por sua boa sorte com a sinceridade que
conseguiram demonstrar.
Pobre Gawain, era o mais educado. Em nenhum momento
deixou transparecer que havia se casado com uma mulher medonha
porque tinha sido forçado. Ele a chamava de “minha senhora” e
segurou-lhe o braço no caminho para a mesa. Quando ela esvaziou
(ou derrubou) sua taça de vinho, ele a encheu para ela. E, embora
estivesse bem quieto, às vezes parecendo prestes a desmaiar,
continuou fingindo que nada estava errado.
Mas, no final da noite, sozinho no quarto de dormir com a
horrível esposa, não suportou vê-la empoar o nariz e seus três
queixos. Tudo foi demais para ele. Agarrou a espada. Agarrou o
cabelo. Então caiu em prantos.
– O que é, meu querido? – a senhora perguntou. – O que o
aborrece tanto na nossa noite de núpcias?
– Senhora, não posso ocultar-lhe meus pensamentos. A
senhora me forçou a ser seu marido. Na verdade, eu preferia não tê-
lo feito.
– E por quê? – ela quis saber.
– Não posso lhe dizer.
– Conte-me!
– Está bem. – Gawain respirou fundo. – Não quero ofendê-la,
minha esposa, mas a senhora é velha e feia e evidentemente de
baixa estirpe. Perdoe-me. Falo apenas o que sinto.
– Mas o que há de tão errado? – a mulher borbulhou. – Com a
idade vêm a sabedoria e a prudência. Estas não são coisas boas
para uma mulher possuir? Talvez eu seja feia. Mas, se assim for,
nunca terá de se preocupar com os rivais, enquanto estiver casado
comigo. Os outros homens, sim, podem viver com medo de que
alguém fuja com suas esposas. Por fim, me acusa de ser de baixa
estirpe. Você é realmente tão esnobe, Gawain? Acha que a nobreza
vem só por se ter nascido em uma boa família? Com certeza isso
depende do caráter de uma pessoa! Por que não me ensina a ser
nobre também?
Gawain pensou por um momento. Apesar de seus sentimentos
mais íntimos, via-se obrigado a concordar. Ao mesmo tempo, sentia-
se envergonhado. Não importava o que pensava, ela salvara a vida
de seu tio. Havia se comportado mal. Não como um cavaleiro da
Távola Redonda.
– Minha esposa, a senhora está certa em tudo o que diz. Fui
descortês com a senhora e peço-lhe perdão.
– Então venha se deitar – ela disse.
Mas, enquanto ela falava, Gawain percebeu que sua voz estava
diferente e, quando se virou, para seu espanto, não era uma mulher
gorda e feia que estava sobre a cama, mas uma moça jovem, bela,
de pele clara e suaves olhos verdes.
– Gawain – ela disse, sorrindo. – Deixe-me explicar. Gromer
Somer Joure, que conhece como o cavaleiro negro, é meu irmão.
Estávamos escravizados pela malvada rainha Morgana le Fay.
Ajudei o rei a libertar meu irmão do feitiço, mas só a bondade e a
compreensão de um espírito nobre poderia me salvar do meu
horrível encantamento. Foi isso o que me deu, querido Gawain, e
agora, enfim, eis-me como realmente sou. Sou sua esposa – se o
senhor quiser. Mas dessa vez a escolha é realmente sua.
Gawain a olhava, sem palavras. Em seguida, tomou sua mão e a
trouxe para perto do rosto.
Na manhã seguinte, a corte ficou surpresa ao ver o que tinha
acontecido, e o rei ordenou uma segunda festa de casamento para
que todos pudessem realmente se divertir sem ter que fingir. Gawain
e sua senhora viveram felizes juntos por muitos anos e, embora
ninguém jamais contasse a história quando um dos dois estava
presente (por medo de envergonhá-los), em muitas noites de
inverno os cavaleiros e pajens se reuniam em volta do fogo
crepitante para ouvir, mais uma vez, o estranho conto da esposa
feia.
Dez feras e monstros incríveis de
que você provavelmente nunca ouviu
falar

… mas talvez eu tenha inventado um deles. Você é capaz de


identificar o intruso?

AL-MI’RAJ
Uma fera mitológica encontrada na poesia islâmica, o Al-mi’haj é
um coelho enorme e amarelo com um único chifre, como o de um
unicórnio. Pode parecer inofensivo, mas é extremamente agressivo
e capaz de matar e devorar animais bem maiores do que ele
mesmo.

BONNACON
Este animal mítico, oriundo da Ásia, tem aparência semelhante à
do bisão, mas possui um chifre comprido e encaracolado. Sua
característica mais excêntrica é seu excremento, que pega fogo
constantemente.

BARBEGAZI
Variedade de gnomo encontrada no folclore suíço. Ele tem pés
extremamente grandes, úteis para esquiar pelas montanhas ou
surfar pelas avalanches.
CARÍBDIS
Monstro marinho que tem origem na mitologia grega. É
basicamente uma boca gigante que engole enormes quantidades de
água (e qualquer barco desavisado que esteja navegando por perto)
e depois os cospe na forma de um redemoinho.

CHONCHON
Criatura interessante da mitologia indígena Mapuche, o
Chonchon é uma cabeça humana sem corpo, que usa suas
enormes orelhas como asas.

PUCKWUDGIE
Pequeno demônio semelhante ao troll, originário da América do
Norte nativa, o Puckwudgie tem pele cinza e lustrosa, com a
peculiaridade de brilhar no escuro. É capaz de criar fogo e mudar de
forma, sendo conhecido por provocar encrencas!

ROMPO
Em alguns folclores africanos e indígenas, Rompo tem orelhas
humanas, cabeça de coelho, corpo esquelético, braços de texugo e
pernas de urso. Diz-se que se alimenta de carne humana e canta
enquanto come.

NONTHYA
Sacerdotisa da mitologia nubiana, essa velha bruxa tem três
olhos. Um enxerga o passado, outro enxerga o futuro, e o outro é
cego. Ela mora numa caverna com uma serpente falante.

AMMIT
Significa “devorador” ou “comedor de ossos”. Ammit é um
demônio egípcio que é parte leão, parte hipopótamo e parte
crocodilo. Segundo a mitologia egípcia, quando alguém morre, seu
coração é pesado numa balança por Anúbis. Se o coração for mais
leve que uma pena, a pessoa poderá continuar na vida após a
morte, caso contrário será devorada por Ammit.

TÍFON
O monstro mais mortífero da mitologia grega, Tífon é alto como
as estrelas, com cabeças de cem dragões saindo de cada mão. Sua
metade inferior é constituída por víboras enormes, e todo o seu
corpo é coberto de asas.
Dez armas incríveis de mitos e
lendas

… mas receio ter inventado uma delas. Você é capaz de


localizar a intrusa?

CALADBOLG
O nome significa “raio forte” e trata-se da espada de Fergus mac
Roich, herói da mitologia irlandesa. Diz-se que, empunhando-a, ele
era capaz de criar arco-íris − e a lâmina, de tão poderosa, podia
cortar o topo de montanhas.

RUYI JINGU BANG


Esse bastão mágico que pertenceu a Sun Wukong, o rei Macaco
do mundo lendário chinês, podia ser mais pesado que um
Tyrannosaurus rex (cerca de sete toneladas e meia), mas, sob um
comando, podia encolher e chegar ao tamanho de uma agulha.

KUSANAGI
Descoberta na barriga de um monstro de oito cabeças, essa
lendária espada japonesa permitia a quem a manejasse controlar a
direção do vento.

AS SETAS ENVENENADAS DE HÉRCULES


Mergulhadas no sangue envenenado da Hidra de Lerna de nove
cabeças, essas setas provocavam um ferimento que levava a uma
morte rápida e muito dolorosa.

EXCALIBUR
Sem dúvida, a mais famosa espada da Inglaterra, Excalibur foi
arrancada de uma pedra pelo jovem Artur antes de se tornar rei, e
permaneceu com ele por toda a sua vida.

RELÂMPAGOS E TROVÕES DE ZEUS


Relâmpagos e trovões eram as armas de Zeus, o rei dos deuses
na mitologia grega. Recebeu-as de presente de Ciclopes, o gigante
caolho. Ele usava suas armas como uma lança.

ARIT NEME
Na mitologia celta, era o canhão enorme que protegia o palácio
de Camulos, o deus da guerra. Cada bala de canhão tinha o
tamanho do mundo e dizia-se que, se fosse acionado, seria o fim do
universo.

GÁE BULG
Na mitologia irlandesa, seria uma lança mortal feita de osso de
um monstro marinho. Ela penetraria na vítima como dardo,
dividindo-se, então, em muitas farpas, que atingiriam todo seu
corpo, invariavelmente em um ataque fatal.

TRIDENTE DE POSEIDON
Uma lança de três pontas usada por Poseidon, o deus do mar.
Zangado, Poseidon podia criar terremotos e tsunamis simplesmente
batendo o tridente no chão.
MJÖLLNIR – O MARTELO DE THOR
Mjöllnir significa “o que tritura”, e essa era a arma de Thor, o
deus do trovão na mitologia norueguesa. Ele jamais perdeu sua
marca nos lançamentos e podia aplanar uma montanha com um
golpe único.

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