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ANTHONY HOROWITZ
Batalhas e Monstros
1a edição 2015
Tradução
Marilena Moraes
Fernanda Lobo
Acompanhamento editorial
Sorel Silva
Preparação de texto
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Ana Maria de O. M. Barbosa
Solange Martins
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Horowitz, Anthony
Batalhas e monstros / Anthony Horowitz ; tradução de Marilena Moraes e Fernanda
Lobo. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2015.
Título original: Legends : battles and quest e Legends : beasts and monsters.
ISBN 978-85-7827-980-6
15-07079 CDD-823
Índices para catálogo sistemático:
1. Lendas : Mitologia : Literatura inglesa 823
Introdução
O enigma da Esfinge
Mitologia grega
A cabeça da Górgona
Mitologia grega
O Minotauro
Mitologia grega
Geriguiaguiatugo
Lenda dos índios Bororó
A esposa feia
Lenda celta
ANTHONY HOROWITZ
O enigma da Esfinge
MITOLOGIA GREGA
1 A imagem mais precisa do dragão foi pintada no século XV por um italiano chamado
Uccello, e está na National Gallery em Londres. Se houver alguma dúvida sobre a precisão
da minha descrição, basta conferi-la.
A lavadeira no vau do rio
LENDA CELTA
As três Górgonas
De todas as bestas, gigantes, dragões e semideuses da Grécia
Antiga, as Górgonas eram, talvez, as mais temíveis. Elas
petrificavam as pessoas, literalmente.
As Górgonas eram três: Esteno, Euríate e Medusa. As duas
primeiras eram imortais, ou seja, viveriam para sempre. A terceira,
Medusa, a mais temível delas, não era imortal. Era a única que
Perseu tinha alguma chance de conseguir matar.
Estranhamente, em outros tempos as Górgonas tinham sido três
jovens muito bonitas.
Medusa, particularmente, tinha sido uma jovem linda, de cabelos
loiros, olhos azuis e sorriso maravilhoso. Infelizmente, ela foi se
apaixonar por Poseidon, deus dos mares e, como se não bastasse
(os mortais sempre cometiam a imprudência de se aproximar
demais dos deuses), ela havia dormido com ele no templo de Atena,
deusa da sabedoria. Isso tinha sido uma enorme insensatez. Para
puni-la pelo comportamento impróprio, Atena transformou Medusa e
suas irmãs em Górgonas. Foram-se os vestidos brancos, as
margaridas e os rabos de cavalo. Bastou um gesto de Atena e elas
se tornaram monstros.
Monstros horríveis. Em vez de dentes, tinham presas afiadas,
como javalis selvagens. Suas mãos eram de bronze, e asas de ouro
brotavam de seus ombros. Mas o mais notável dos horrores era a
transformação dos cabelos. Eram serpentes vivas, viscosas, verdes
e prateadas, com línguas sibilantes e olhos brilhantes. Dúzias delas
despontavam dos crânios das Górgonas, contorcendo-se sobre
suas testas, enrolando-se em seus pescoços, enroscando-se em
seus ombros.
Se alguém tivesse o azar de pôr os olhos numa Górgona… não
faria nada. Essa era a parte mais cruel da arapuca que o rei
Polidectes tinha armado para Perseu. Todos os que viam a cara de
uma Górgona ficavam tão assustados que, na mesma hora,
transformavam-se em pedra, e o rei sabia que Perseu nunca teria
como chegar perto de nenhuma delas. Bastaria lançar um olhar para
qualquer uma delas que ele estaria condenado.
A deusa da sabedoria
Perseu não fazia ideia de que havia sido enganado. Também
não sabia o que estava acontecendo com a coitada de sua mãe
enquanto ele estava fora. E já fazia um bom tempo que estava fora.
Tinha viajado para longe e procurado por muito tempo, sem
encontrar nem sinal da Medusa nem de suas irmãs horrendas.
Ninguém parecia saber onde elas moravam. A maioria dos viajantes
com quem cruzou parecia não querer falar nelas.
Uma noite, viu-se sentado debaixo de uma árvore à beira de um
pântano, num país desconhecido. Estava sem dinheiro, de modo
que não podia ficar em uma pousada ou hospedaria, mesmo que
encontrasse algo desse tipo. Seu único alimento, como sempre,
eram frutos e grãos que encontrava ao longo do caminho. Estava
com frio e sozinho. Pela primeira vez, começava a pensar se não
tinha se precipitado ao concordar com o pedido do rei.
Foi nesse momento que, de repente, uma figura surgiu das
chamas da fogueira minguada que fizera para se aquecer. Era uma
mulher, alta e imponente, de olhos brilhantes e expressivos. Sua
cabeça estava coberta por um capacete prateado e ela segurava
uma lança e um escudo reluzente. Perseu a reconheceu na hora.
Como toda criança, tinha aprendido sobre deuses e deusas, embora
nunca esperasse encontrar um. Aquela mulher só podia ser Atena, a
deusa da sabedoria.
– Perseu – ela disse, postada diante dele. – Vim ajudá-lo. Você
tem bom coração, e sei que um dia será um grande herói. Porém
você é também jovem e ingênuo e deixou que o rei Polidectes o
enganasse.
– Obrigado, grande Atena – disse Perseu. – Preciso de sua
ajuda, mesmo. Veja, estou procurando…
– Sei quem você está procurando – interrompeu Atena. – Afinal,
sou a deusa da sabedoria. E, por sorte, você não interrompeu meu
pai de maneira tão rude. Ele o teria transformado numa bolota, num
sapo ou algo assim. Mas, como eu disse, resolvi ajudá-lo e
começarei por dizer que a única maneira de encontrar as Górgonas
é perguntar às irmãs delas, as Greias.
– Onde posso encontrá-las? – perguntou Perseu.
– Por uma feliz coincidência, elas vivem no pântano, a poucos
minutos daqui. No entanto, Perseu, ouça. Tenha muito cuidado com
a maneira de matar a Medusa, pois quem a vê transforma-se em
pedra.
– Quer dizer que… não posso nem olhar para ela?
– Não diretamente. Não. – Atena sorriu brevemente e sem
muito humor. – Polidectes não lhe contou isso, não é? Mas não tem
importância. Posso lhe mostrar o que fazer.
– Muito obrigado, poderosa Atena – disse Perseu.
– Não há de quê. Na verdade, nunca me importei muito com a
Medusa, e está na hora de alguém dar um fim nela. Agora ouça o
que vou dizer, Perseu. Sua vida depende disso…
As Greias
Pouco depois, Perseu se aproximou rastejando das Greias, que
estavam sentadas ao lado de um brejo, discutindo. Elas estavam
sempre discutindo. As Greias não eram exatamente monstros, mas
eram muito estranhas. Tinham nascido de cabelos grisalhos, o que
deu origem a seus nomes, e tinham apenas um olho e um dente,
que compartilhavam entre as três. Chamavam-se Ênio, Penfredo e
Dino.
Assim que Perseu as abordou, ouviu a seguinte conversa.
– Posso usar o dente, por favor, Ênio? – disse Penfredo.
– Para quê? – perguntou Ênio.
– Para comer uma maçã.
– Mas estou comendo um caramelo.
– O caramelo você pode chupar. Quero o dente.
– Tudo bem, tudo bem. Aqui está ele.
– Não consigo vê-lo.
– Você não está com o olho?
– O olho está comigo – disse Dino.
– Me dê – Penfredo exigiu.
– Não, estou olhando uma coisa.
A discussão continuou interminavelmente, e Perseu deduziu que
as três horríveis velhas deviam ter a mesma conversa todos os dias
de suas vidas. Sem fazer barulho, caminhou na ponta dos pés por
detrás delas e apanhou ambos, o olho e o dente.
– Quem é? – Ênio interpelou.
– Morda-o! – exclamou Penfredo.
– Não consigo – gritou Dino. – Ele está com o dente.
– Muito bem – disse Perseu. – Estou com seu olho e seu dente
e não devolverei até que me digam onde posso encontrar sua irmã,
a Górgona Medusa.
As três Greias levantaram-se e tentaram capturá-lo, mas,
incapazes de enxergar, acabaram se agarrando entre si.
Finalmente, sentaram-se novamente batendo os punhos na lama,
gemendo de frustração.
– Se vocês não me disserem o que preciso saber – continuou
Perseu –, eu jogarei fora o olho e o dente e vocês não poderão
enxergar nem morder alguém novamente.
– Está bem!
– Está bem!
– Está bem!
As Greias tentaram ranger o dente, mas, como era impossível,
rangeram as gengivas.
– Vá para a Terra de Hiperbórea – disse Ênio. Sua voz estava
estridente e amarga. – Lá, existe uma grande caverna no vale. Não
tem como errar.
– É lá que você irá encontrá-la – acrescentou Penfredo. –
Certifique-se apenas de dar uma boa olhada em direção a ela.
– Olhe-a diretamente nos olhos – Dino riu-se. – Você nunca
esquecerá sua primeira visão da Medusa.
Perseu devolveu o olho e o dente e partiu; aquelas risadas
ecoavam em seus ouvidos. As Greias ainda tagarelavam entre si,
pensando no quão espertas tinham sido, quando ele chegou à Terra
de Hiperbórea.
Medusa
Atena não só disse a Perseu como destruir a Górgona, como lhe
deu os meios para isso. Então se aproximou da caverna de Medusa,
tentando não fazer nenhum barulho, levando o escudo reluzente e
polido da deusa em uma mão e sua própria espada do exército na
outra.
Sabia que deveria ser aquele o lugar onde Medusa morava. Ele
estava em um barranco, uma estreita fenda na paisagem rochosa,
preenchida por pessoas petrificadas; algumas ficaram presas ao
virar-se para correr, enquanto outras congelaram de susto, com as
bocas abertas e os gritos ainda em seus lábios. Era como se
estivessem sido fotografadas no último segundo de suas vidas.
Suas reações, naquele último segundo, tinham sido capturadas para
a eternidade. Um jovem soldado tinha coberto seu rosto com a mão,
mas tentou espiar por entre os dedos. Sua mão de pedra ainda
tampava seus olhos de pedra. Um fazendeiro com uma foice
petrificou-se tendo ainda um sorriso intrigado; seus dedos de pedra
envolviam a arma, quando tentava agitá-la no ar. Havia mulheres e
crianças de pedra. Era como um insano museu a céu aberto.
Perseu viu a boca de uma grande caverna sinistramente
escancarada diante dele. Segurando o escudo com mais força
ainda, escalou um pequeno barranco e, respirando fundo, entrou na
penumbra.
– Medusa! – ele gritou. Sua voz pareceu perder-se entre as
sombras.
Algo se moveu no fundo da caverna.
– Medusa! – ele repetiu. Agora ouviu ruídos de respiração e
chiados.
– Sou eu, Perseu – ele anunciou.
– Perseu! – uma voz grave e gutural veio do fundo da caverna.
Seguiu-se uma risadinha. – Você veio para me ver?
A Górgona avançou até a claridade. Por um trágico momento,
Perseu sentiu-se tentado a olhá-la, a cruzar seu olhar. No entanto,
usando de toda a sua força, manteve a cabeça virada para o outro
lado, seguindo as instruções de Atena, concentrando-se na imagem
refletida no escudo. A pele verde da Medusa, seus venenosos olhos
vermelhos, seus dentes amarelos, tudo isso se refletia no bronze
lustroso do escudo. Perseu levantou a espada.
– Olhe para mim! Olhe para mim! – a Górgona gritava.
Perseu continuou olhando para o escudo e deu mais um passo
para dentro da caverna. O reflexo era enorme, e os dentes da
Medusa se arreganhavam para ele. As serpentes se contorciam
furiosas, sibilando como o som de agulhas quentes sendo
mergulhadas na água.
– Olhe para mim! Olhe para mim!
Como seria possível Perseu acertá-la se ele só via um reflexo?
Com certeza, seria mais fácil matá-la se desse uma olhada furtiva,
só para se certificar de que não erraria o golpe…
– Isso, está certo! Estou aqui.
– Não!
Com um grito desesperado, Perseu deu um golpe de espada
violento. Então, sentiu o aço afiado atravessar carne e ossos. A
Górgona gritou. As serpentes explodiram em volta de sua cabeça,
enquanto ela voava dos seus ombros, lançada contra a parede da
caverna até rolar para o chão. Um manancial de sangue jorrou do
pescoço do monstro enquanto seu corpo murchava. Finalmente,
tudo estava terminado. Com os olhos ainda fixos no escudo, Perseu
pegou o cruel troféu da vitória e o enfiou num saco.
A cabeça da Górgona
Perseu tinha levado meses procurando a Górgona e teve muitas
outras aventuras no caminho de volta para Sérifos. Assim, um ano
tinha se passado quando ele retornou.
A primeira pessoa que viu na ilha foi um velho pescador que
acabava de trazer o produto da pesca da manhã. Seu nome era
Dictes e, por coincidência, ele é que havia descoberto Perseu e sua
mãe quando tinham vindo dar naquela praia. Os dois se
cumprimentaram como velhos amigos.
– Meu querido Dictes – disse Perseu. – Aqui estou eu,
finalmente de volta. Conte-me agora, o rei se casou?
– Não – disse o pescador –, o rei Polidectes vive sozinho.
– E como está minha mãe? – perguntou Perseu.
O velho então se pôs a chorar. – Ó senhor Perseu! – ele
lamentou. – Foi com sua mãe que o rei perverso quis se casar.
Assim que você se foi, tentou forçá-la a dormir com ele, mas, como
ela se recusou, transformou-a em escrava. Já faz um ano que ela se
mata de trabalhar na cozinha do palácio, fazendo limpeza e serviços
pesados. É uma coisa terrível, senhor Perseu. O rei só faz rir-se
dela.
– Ah, é assim? – Perseu disse entre os dentes. – Logo
veremos!
Lançando sobre os ombros o fardo que levava, Perseu entrou no
palácio e foi direto para o salão onde o rei Polidectes estava
sentado no trono.
– Saudações, Majestade! – ele exclamou para o rei, que ficou
atônito. – Sou eu, Perseu, retornando após doze longos meses.
Trouxe comigo o presente que me pediu.
– A cabeça da Górgona? – Polidectes murmurou. – Até parece!
– Não acredita em mim, Majestade? – perguntou Perseu.
– Claro que não – disse o rei.
– Acreditaria em seus próprios olhos?
– Está aí? – o rei apontou para o saco.
– Veja, então, com seus próprios olhos.
Dizendo isso, Perseu tirou do saco a cabeça da Górgona e a
ergueu para que o rei a visse.
– É… – o rei Polidectes não conseguiu continuar. O que ele ia
dizendo? É terrível? É impossível? Ninguém jamais saberia. No
instante seguinte, o que se viu foi uma estátua de pedra inclinada
para fora do trono, com uma expressão de escárnio imobilizada no
seu rosto de pedra e sua sobrancelha de pedra levantada, incrédula.
Perseu perguntava-se o que aconteceria em seguida. Afinal, ele
tinha acabado de assassinar o rei. Estava completamente cercado
pelos cortesãos e pela guarda real, preparado para virar a cabeça
da Górgona para qualquer pessoa que tentasse prendê-lo. No
entanto, assim que Polidectes se petrificou, vivas se ergueram ao
redor do trono e se espalharam por todo o palácio, pois todos na ilha
estavam cansados daquele monarca cruel e mesquinho. Finalmente
Perseu os libertara e, por aclamação popular, foi convidado a se
tornar o novo rei.
Perseu, porém, estava farto de Sérifos. Indicou Dictes para
ocupar o trono, com a certeza de que um pescador honesto seria o
homem ideal para governar um reino, principalmente um cercado de
água. Perseu foi ter com sua mãe, e, carregados de presentes e
levando algumas peças do tesouro real, os dois resolveram partir
em busca de novas aventuras. Depois, ele se tornou o rei de
Micenas. Atena estava certa: ele tinha um bom coração e nascera
para ser herói.
Entregou a cabeça da Górgona à deusa, que, por magia, tornou-
a parte de sua armadura, que usaria para aterrorizar seus inimigos
nas batalhas. Dictes governou Sérifos por muito tempo.
Quanto a Polidectes, ele foi instalado no jardim do palácio como
um divertido ornamento, e provavelmente lá está até hoje.
O Minotauro
MITOLOGIA GREGA
O nascimento do Minotauro
Minos era o rei de Creta, a Ilha das Cem Cidades. Era um dos
soberanos mais poderosos do mundo, e sua ilha, uma das mais
magníficas. O enorme porto fora construído para abrigar uma
centena de navios e era cercado por muros altíssimos, dia e noite
guardados por homens instalados em torres. A capital – Cnossos –
era uma mistura de cor e vida. O povo cretense, ciente de sua
condição, adorava usar roupas caras e comer as mais finas iguarias,
trazidas dos mais longínquos recantos do mundo civilizado. As
barracas do mercado, aglomeradas nas ruas estreitas, eram
repletas de mercadorias requintadas, incluindo sedas e cetins,
especiarias exóticas, marfim e joias, raros papagaios, macacos
performáticos e muito, muito mais. Enquanto o sol brilhava, a
compra e a venda não paravam e, mesmo à noite, com as tochas
acesas, dançarinos e engolidores de fogo, encantadores de
serpente e mágicos iam para as ruas entreter a multidão.
Apesar de tudo, Creta tinha seu lado sombrio. Nem mesmo
Minos, com toda a sua riqueza e sucesso, podia escapar dessa
sombra.
O Minotauro. Era como um câncer de pele, a desagradável
verdade que estraga tudo. Minos teria prazer em esvaziar os
mercados e jogar os ricos no mar se pudesse se livrar dele. E o pior
– ele próprio era o culpado de tudo. Se não tivesse sido tão
ganancioso e insensível, o Minotauro nunca teria existido. Havia
cometido um erro. E pagava por isso desde então.
Foi assim que aconteceu.
Todos os anos, por muitos anos, Minos sacrificava o melhor
touro de seu rebanho para Poseidon. Creta dependia de seu poderio
marítimo, e Poseidon era, naturalmente, o deus do mar. Um ano, no
entanto, em um momento de loucura, Minos decidiu não ceder seu
melhor animal… um enorme touro branco, como ele jamais vira. O
touro poderia gerar todo um rebanho premiado. Seria um completo
desperdício abatê-lo e, em seguida, queimar seus restos em um
altar. Imaginou que Poseidon não notaria se outro animal, não tão
magnífico, fosse sacrificado em seu lugar.
Foi o que Minos pensou, mas naturalmente Poseidon percebeu,
encheu-se de uma raiva terrível e se vingou de modo estranho e
cruel. Nada fez contra o rei, mas usou seus poderes contra sua
mulher, a jovem e inocente Pasífae, fazendo-a apaixonar-se pelo
touro branco. Em uma noite de tempestade, sem saber o que estava
fazendo, a rainha foi para os estábulos, e dessa união tão pouco
natural nasceu o Minotauro.
Minotauro significa, simplesmente, o touro de Minos.
O rei e a esposa cuidaram da horrenda criatura até quando
puderam, tentando deixá-la longe dos olhos inquisidores. Mas, no
momento em que teve pernas firmes para andar, o Minotauro se
libertou e deixou o palácio. Nos dias que se seguiram, furioso, ele
destruiu boa parte de Creta e matou muitos de seus habitantes. Foi
como se um assassino psicopata tivesse chegado à ilha. Ele matava
simplesmente porque tinha de matar.
Minos se encheu de vergonha e horror. Desesperado, foi ao
Oráculo para saber o que fazer. Não podia matar a criatura. Afinal,
era filho de sua mulher.
Mas como lidar com aquilo? Como evitar o terrível escândalo
que agora o cercava?
Como de costume, o Oráculo tinha todas as respostas. Disse ao
rei para construir um labirinto em Cnossos, para esconder o
Minotauro e também sua infeliz esposa. O labirinto seria tão
complicado, com tantas voltas e reviravoltas, tantos falsos caminhos
e becos sem saída, que nenhum homem que nele se visse preso
saberia como sair. Os dois ali estariam a salvo, seguros. Minos
jamais voltaria a vê-los.
Minos seguiu a sugestão do Oráculo. Encomendou o trabalho a
Dédalo, o arquiteto da corte; o labirinto era tão fantástico que vários
escravos que nele trabalharam desapareceram sem deixar rastro. E
isso poderia ter sido o fim da história. Minos continuaria seu
governo, sozinho e solitário, mas um pouco mais sábio sobre como
lidar com os deuses.
No entanto, alguns meses mais tarde, outro evento ocorreu que
iria mudar sua vida mais uma vez. Minos tinha um filho adorado, o
jovem Androgeu. Pouco depois de o Minotauro ter sido encarcerado,
Androgeu embarcou para a cidade de Atenas para participar dos
jogos pan-atenienses, que ali se realizavam a cada cinco anos. Ele
era um atleta forte, habilidoso e se saiu bem em diversas
competições. Logo foi aclamado o favorito do grande público, para
grande ressentimento da corte real e, em particular, dos sobrinhos
do rei Egeu.
Esses sobrinhos eram um bando desprezível, que passava o
tempo lutando nas ruas e à toa ao redor do palácio. Agora, com
inveja do sucesso de Androgeu, eles lhe prepararam uma
emboscada uma noite, após o término dos jogos, quando ele voltava
ao alojamento. Androgeu lutou bravamente, mas era um contra
muitos. O bando o matou e abandonou o corpo na estrada.
Quando Minos soube o que acontecera, quase perdeu os
sentidos, de dor e raiva. Imediatamente ordenou à sua frota que
zarpasse e, no dia seguinte, quando o rei Egeu acordou, a cidade
estava cercada. O combate era impossível. O exército cretense
cercara totalmente a cidade; a frota, ancorada nas áreas mais rasas,
ao largo da costa, era maior que toda a frota de Atenas. Egeu não
teve escolha. Ajoelhando-se ante Minos, ele e sua cidade se
renderam à misericórdia do rei cretense.
– Vim em busca dos assassinos do meu filho – disse Minos. –
Entregue-os para mim e não tocarei em Vossa Majestade.
– Não tenho como – Egeu respondeu. – Lamento, grande rei.
Foi um ato infeliz, e eu teria prazer em entregar-lhe os assassinos
se soubesse quem são. Mas não sei! Os covardes continuam
escondidos! E teremos todos de pagar por esse crime.
– E vão pagar – disse Minos, que, após pensar por um
momento, chegou a uma sentença terrível. – Eis a minha decisão –
ele continuou. – Eu perdi um filho. Pois os filhos e filhas de Atenas
terão de pagar o preço. No final de todo Grande Ano, ou seja, a
cada sete anos, Atenas vai me enviar seus sete rapazes mais
corajosos e as sete donzelas mais lindas. Não me pergunte o que
vai acontecer com eles! O que importa é que nunca mais irá vê-los.
Será o preço a pagar pela morte do meu filho mais velho. Se eu não
receber o tributo, Atenas vai arder.
Não havia o que o rei Egeu pudesse fazer. De sete em sete
anos, os catorze atenienses eram escolhidos por sorteio e levados
de navio para Creta e para uma morte desconhecida. Em Creta,
enquanto a multidão colorida se acotovelava nas ruas, o Minotauro
perseguia suas vítimas pelo labirinto subterrâneo e as matava para
satisfazer seu desejo de sangue.
A chegada de Teseu
Ficará na memória de todos o dia em que Teseu chegou a
Atenas. Ter chegado a salvo já foi considerado notável, uma vez que
escolheu viajar pela estrada costeira, por onde circulavam ladrões e
bandidos de todo tipo. Poucos viajantes faziam esse caminho – mas
Teseu não só chegou ileso como matou não menos que cinco dos
piores malfeitores, chutando um deles do alto de um penhasco,
decepando as pernas de outro e esmagando um terceiro com uma
pedra enorme.
Teseu era, na verdade, filho do rei Egeu, embora não se
conhecessem – Egeu abandonara a mãe de Teseu antes de o
menino nascer. De qualquer forma, foi um prazer para o pai estar
com o filho. Teseu tinha agora dezessete anos. Era forte, destemido,
bonito e inteligente… em suma, tudo o que um pai desejaria para
um filho. Os sobrinhos de Egeu, infelizmente, não estavam achando
tanta graça. Mais uma vez, foram dominados pela inveja e decidiram
dar a Teseu exatamente o mesmo tratamento que tinham
dispensado ao pobre Androgeu. Foi um grande erro. Teseu matou
cada um deles, sem se importar com o fato de serem seus primos.
Egeu estava realmente encantado com o rumo que tomaram os
acontecimentos. Seus sobrinhos haviam ficado cada vez mais fora
de controle, a ponto de o rei temer que pudessem se voltar contra
ele. Assim, naquela noite houve uma celebração inédita em Atenas.
Acenderam-se grandes fogueiras, bois foram sacrificados aos
deuses. Parecia que, em cada rua, mesas e cadeiras foram
dispostas para um banquete que se estendeu por toda a cidade.
Houve dança e fogos de artifício, e à meia-noite Egeu levantou-se
para anunciar que a partir de então Teseu seria conhecido como o
príncipe de Atenas e que um dia herdaria o trono. As estrelas
brilhavam naquela noite e, por um breve período, Creta e o
Minotauro foram esquecidos.
Mas o tempo não para e, inevitavelmente, o fim de mais um
Grande Ano se aproximou. Mais uma vez, a sombra voltou. Com a
chegada da primavera, a velha doença reapareceu nas ruas, aquele
terrível medo das coisas não ditas. E um dia, quando as flores
estavam no auge da beleza, o navio do tribunal de Creta chegou à
costa para coletar o tributo de sete homens e sete mulheres.
– O Minotauro…
Teseu jamais ouvira falar do tributo exigido por Minos e implorou
que o pai lhe dissesse o que estava acontecendo. Relutante, Egeu
explicou o que ocorrera vinte e um anos antes – pois era a terceira
vez que o navio com as velas negras tinha ido até Atenas.
– Não é justo! – Teseu gritou. – Não matei os assassinos de
Androgeu com minhas próprias mãos? Nós pagamos o tributo
integralmente. Basta!
– O rei Minos ainda exige o tributo – disse Egeu.
– Não vou permitir isso!
– Você não pode impedi-lo. Temos de pagar o tributo até o
Minotauro ser destruído, e isso nunca vai acontecer, porque ele se
alimenta de suas vítimas, sem armas, sem nenhuma esperança de
sobrevivência.
– E como é esse monstro? – perguntou Teseu.
– Ninguém jamais viveu para descrevê-lo.
– Então vou ter que descobrir por mim mesmo. Vou viajar como
um dos sete homens, vou entrar na caverna da criatura e destruí-la.
Então, talvez, Minos fique satisfeito.
Egeu tentou dissuadi-lo, mas Teseu não quis ouvir. Os catorze
infelizes já haviam sido escolhidos e estavam prestes a ser levados
para o porto, porém, no último momento, ele conseguiu que um
homem e duas mulheres fossem libertados.
– Vou tomar o lugar do homem – ele explicou. – E dois soldados
virão comigo. Eles vão usar maquiagem e vestidos e se passarão
por moças. O rei Minos não estará preparado e, com um pouco de
sorte, ninguém vai examinar muito de perto.
O rei Egeu não estava gostando nada daquela ideia, mas agora
deu a Teseu uma vela branca.
– Sou um homem velho – ele disse. – Talvez não me restem
muitos dias. Assim, tendo sucesso nessa perigosa demanda, volte
para casa com a vela branca no mastro. Assim saberei antes de
todos que meu amado filho está salvo.
Mas foi com velas negras que partiram de Atenas, levados a
Creta pelo vento vindo do sul. Foram apenas dois dias para chegar
à ilha, onde uma enorme multidão os esperava no porto. O próprio
Minos estava lá para contar as vítimas, para verificar se Egeu não
estava tentando enganá-lo e lançar um olhar sobre as donzelas para
ver se alguma seria digna do leito real.
Ele, de fato, viu uma jovem (felizmente não um dos soldados
disfarçados) e deu ordens para que ela fosse levada ao palácio.
Mas, quando os guardas deram um passo à frente, Teseu de
repente saltou entre eles.
– É assim que o tirano da ilha de Creta saúda seus convidados?
– ele gritou para que todos pudessem ouvir. – Esse é o tipo de
comportamento que se pode esperar de um grande rei?
Foi o que bastou para Minos tremer de raiva. – E quem você
pensa que é, rapaz? – ele rosnou.
– Sou Teseu, o príncipe de Atenas. O deus do mar, Poseidon, é
o meu protetor. E não estou com medo de você, rei Minos.
Era verdade que Poseidon sempre tinha visto Teseu com bons
olhos. O deus fora apaixonado por sua mãe, a quem prometera
olhar por seu primogênito como se fosse dele.
Contudo, quando Minos ouviu isso, apenas riu. – Poseidon! – ele
exclamou. – É muito fácil para um jovem príncipe arrogante alegar
parentesco com os deuses. Mas é necessário provar. – Ele tirou do
dedo um pesado anel de ouro, com o brasão real, e lançou-o ao
mar. – Se Poseidon é seu amigo, peça-lhe que me traga o anel de
volta.
Minos riu de novo, agora acompanhado pela multidão, até que
todo o porto se encheu com aquele som. Teseu estava ali sozinho,
lívido e desafiador, enquanto seus treze companheiros atenienses
esperavam nervosamente para ver o que iria acontecer.
Então, de repente, com um estrondo, a água se espalhou pelo
porto e um golfinho prateado pulou no ar, girou o corpo e voltou a
mergulhar. O som das risadas já se dissipava quando ele saltou
uma segunda vez, agora na verdade praticamente voando em um
grande arco sobre a embarcação. Durante o movimento, um objeto
dourado caiu de sua boca e aterrissou aos pés de Teseu. O príncipe
se inclinou e o apanhou. Era o anel do rei.
Não mais se ouviu uma só risada.
– Então parece que você é quem diz ser – Minos grunhiu. – O
que é uma pena. Ter vindo aqui como parte de meu tributo e
amanhã ter de morrer. – Virou as costas para o navio ateniense e
repentinamente deu uma ordem. – Leve-os para o palácio.
A tudo havia observado uma jovem sentada perto do rei; ela bem
que tentava ser discreta. Seus olhos tinham-se fixado em Teseu
desde o momento em que ele chegou. Minos tinha se levantado e já
caminhava de volta para o palácio; ela o seguiu, mas se virou para
olhar novamente para o príncipe. Sem emitir um som, seus lábios
formaram a palavra “Teseu…”; e, continuando seu caminho, ela
sorriu para si mesma.
O assassinato do Minotauro
Naquela noite, a moça foi procurar Teseu, conseguindo passar
pelos guardas e usando uma cópia da chave para entrar na cela.
– Teseu – ela sussurrou assim que trancou a porta às suas
costas. – Meu nome é Ariadne. Sou filha do rei Minos…
– Então você não é minha amiga – Teseu disse.
– Mas quero ser! Quero ser mais que amiga – ela correu os
olhos ávidos pelo seu corpo. Teseu, prestes a dormir, estava nu da
cintura para cima. – Se você fizer de mim… sua esposa, vou ajudá-
lo a matar meu meio-irmão, o Minotauro.
– Você pode ajudar?
– Claro – ela acariciou-lhe o braço, maravilhada com a firmeza
dos seus músculos. – Posso levar você lá agora. E veja, tenho uma
espada.
– Mas me disseram que há um labirinto…
– Não há nada a temer – ela falou tão perto do seu ouvido, que
ele sentia o calor de sua respiração. Com o dedo, ela enrolava e
desenrolava uma mecha do cabelo escuro do príncipe. – Vou dar-
lhe um novelo de linha – ela continuou. – Amarre uma ponta à
entrada e desenrole-o à medida que continuar, e não terá nenhuma
dificuldade em encontrar a saída. Mas lembre-se do que me
prometeu. Quero casar com você. Quero que você seja meu.
– Senhora – Teseu disse, afastando-se bruscamente. Então
lembrou-se de que, na verdade, ela estava tentando ajudá-lo, e
tentou sorrir. – Se eu conseguir matar o Minotauro, com certeza farei
o que me pede.
Ariadne assentiu. Teseu pegou a espada e a seguiu pelo palácio
adormecido, esquivando-se nas sombras sempre que um guarda
aparecia. Ele tinha sido trancado em um quarto no térreo e agora
eles desceram dois lances de escadas, indo bem abaixo do chão do
palácio. Não havia janelas, e o caminho era iluminado por
lamparinas de luz fraca. Chegaram a um corredor vazio, que levava
a uma pesada porta de madeira. Ariadne deu-lhe o novelo de lã,
prendendo uma extremidade à maçaneta.
– Aqui começa o labirinto, meu amor – disse ela. – Devo deixá-
lo. Seja rápido! Fique em segurança!
Teseu concordou com um aceno de cabeça, mas nada disse.
Começava a achar que entre Ariadne e o Minotauro não havia muita
escolha.
Ele abriu a porta e entrou.
Estava frio do outro lado. Mas Teseu estava em um mundo
subterrâneo, onde o sol nunca brilhara e um frio úmido enchia o ar.
As paredes eram formadas de enormes blocos de pedra e, a três
passos da porta, o corredor se ramificava em uma dúzia de
direções. Desenrolando o novelo, seguiu em frente na ponta dos
pés. Não havia luzes, mas alguma estranha propriedade da rocha
enchera as cavernas com um brilho verde fantasmagórico.
Teseu segurou a espada com mais firmeza e continuou. Mesmo
contra sua vontade, não pôde deixar de admirar a habilidade de
Dédalo. Se não fosse a linha da vida que o conectava com o
exterior, já estaria irremediavelmente perdido. Virou à esquerda e
depois à direita dezenas de vezes, percebendo que de alguma
forma cruzava o próprio caminho, pois via o fio serpentear ao longo
do chão à sua frente.
– Onde você está? – se perguntava baixinho. Sua respiração
formou uma nuvem fosforescente na frente de sua boca. O ar
cheirava a algas. Ele tremia, mas não parou; já não importava a
direção.
Todo caminho parecia o mesmo. Todo canto que ele virava o
conduzia a lugar nenhum. Toda arcada que escolhia apenas o
guiava a outra idêntica passagem. Chutando alguma coisa solta no
chão, olhou para baixo.
Um crânio humano rolou até a parede e lá ficou. Ele engoliu em
seco. O imenso silêncio do labirinto parecia pressioná-lo.
– Onde você está? – ele voltou a se perguntar, dessa vez em
tom mais alto. As palavras percorreram rapidamente os corredores,
ressoando nas paredes.
– Onde você está… onde você está… onde…?
Algo se mexeu.
Ele ouviu uma respiração; em seguida, o arrastar de pés na
areia. A respiração era lenta, irregular, como um animal em
sofrimento. Ele virou para outro canto e se viu em uma arena aberta,
rodeada por arcadas. Será que o som vinha dali? Não conseguia ver
nada. Não. Lá estava de novo. Ele virou o corpo. Uma figura
enorme, que estava parada sob uma das arcadas, resmungou.
Depois foi na direção dele.
O Minotauro era horrível, muito mais do que ele podia imaginar.
Tinha o tamanho de um homem, mas de um homem muito grande.
Nu em pelo, tinha os punhos cerrados, as pernas ligeiramente
separadas. A criatura era nojenta – coberta de poeira e sangue
seco. Um musgo azul pendia-lhe de um lado do corpo como
ferrugem, fazendo sua pele brilhar. Apesar do frio, o suor pingava de
seus ombros, brilhando em sua pele.
Era humano até o pescoço. A cabeça era de um touro…
grotescamente desproporcional ao resto do corpo. A cabeça era tão
pesada que o pescoço humano se retesava para aguentá-la, e via-
se a pulsação perto da garganta. Dois chifres se curvavam no ar,
acima de um par de olhos cor de laranja. A saliva espumava ao
redor do focinho e caía no chão de pedra. Os dentes não eram os
de um touro, mas de um leão, projetando-se da boca e rangendo
sem parar, como se a criatura estivesse tentando fazê-los caber na
boca de modo mais confortável. Carregava um pedaço de ferro
retorcido, que segurava como se fosse um taco.
Teseu ficou parado onde estava, no centro da arena, enquanto o
Minotauro se aproximava. Não se mexeu quando o monstro
levantou sua arma desajeitada. Só no último momento – quando o
Minotauro desceu a barra de ferro em direção à sua cabeça, ele
levantou a espada. Foi ensurdecedor o choque de metais. O
Minotauro recuou, berrando, surpreso, pois nenhuma de suas
vítimas jamais tinha levado uma arma. Tirando vantagem do
inesperado, Teseu avançou, mas o Minotauro foi muito rápido. Ele
se contorceu e sofreu apenas um corte no braço. Em seguida,
abaixou a cabeça e atacou violentamente. Muitas moças e rapazes
acabaram suas vidas empalados nas pontas daqueles chifres. Mas
Teseu estava acostumado a lutar. Com a graça de um matador, ele
parecia deslizar para um lado, então girar, brandindo a espada em
pleno ar. A lâmina atingiu o pescoço da criatura, cortando-lhe
tendões e ossos. O Minotauro guinchou. A cabeça de animal caiu
longe do corpo humano. Por um momento ele se levantou, jorrando
sangue, os braços balançando. O monstro caiu, finalmente.
Teseu lançou um último olhar para a criatura morta, então voltou
pelo caminho por onde viera e encontrou o início do novelo. Estava
tão cansado que o labirinto perdera o sentido. O fio o levou de volta
à porta e, com um suspiro de gratidão, ele saiu. Estava encharcado
com o sangue do Minotauro, ferido e exausto. Mas ainda não podia
parar.
Ariadne estivera ocupada enquanto ele lutava no labirinto.
Libertara os seis rapazes atenienses e os conduzira para fora do
palácio. Enquanto isso, os dois soldados que tinham ido a Cnossos
disfarçados de moças haviam cortado a garganta dos guardas que
os vigiavam e libertado as cinco donzelas reais. Agora todos
aguardavam no navio, e assim que Teseu conseguiu encontrar a
saída do palácio e chegar ao porto, eles se afastaram rapidamente,
remando, escapando protegidos pela escuridão.
O fim da história
Apenas três nós continuam a amarrar as pontas soltas desse
conto.
Quando Minos descobriu que o Minotauro estava morto, de tão
agradecido perdoou Teseu pela morte de seus dois guardas e a
perda da filha. A grande vergonha de sua vida fora finalmente
apagada e ele decidiu não cobrar mais tributos dos atenienses.
Nunca mais jovens homens e mulheres serviriam como pagamento
pela morte de Androgeu.
Ariadne nunca recebeu a recompensa que havia exigido porque,
infelizmente, adoeceu na viagem para Atenas e, embora bem
assistida, não resistiu. Ou, pelo menos, é o que algumas versões da
história dizem. Outras contam que Teseu quebrou sua promessa e a
abandonou em Naxos, a primeira ilha do caminho. Quem pode dizer
qual é a hipótese mais provável?
Mas há uma nota incontestavelmente triste. Teseu estava tão
feliz por estar voltando para casa a salvo que se esqueceu do
pedido do pai e não trocou as velas. O velho Egeu, esperando o
filho do alto do penhasco, viu as velas negras quando o barco ainda
estava a milhas da costa e, acreditando que o filho estava morto,
jogou-se ao mar. A partir daí, o mar passou a chamar-se Egeu,
nome que mantém até hoje.
Teseu foi coroado rei de Atenas. Foi um monarca forte, severo
até, acabando praticamente com quase todos os seus inimigos sem
pensar duas vezes. Mas suas ações pavimentaram o caminho para
uma Atenas segura e próspera. Foi também o primeiro rei ateniense
a cunhar moeda. Se você alguma vez encontrar uma moeda de
Teseu, vai reconhecê-la facilmente, pois ela tem de um lado a
cabeça de um touro.
O grande sino de Pequim
LENDA CHINESA
2 Mesmo hoje, se você visitar Roma, vai achar que ainda existe uma rivalidade entre
essas duas áreas da cidade. Esta nota revela o final da história, mas você já deve ter
adivinhado como ela termina.
Geriguiaguiatugo
LENDA DOS ÍNDIOS BORORÓ
A resposta
– Foi feitiço, meu senhor – Gawain gritou ao ouvir a história. –
Magia negra. Foi isso que lhe causou o medo, o que o fez clamar
por misericórdia. Com sua licença, vou pegar meu cavalo para ir a
esse castelo e…
– Não, caro Gawain – o rei o deteve. – Fui enviado em uma
demanda. Sou um homem honrado. O que é que as mulheres mais
desejam neste mundo? Tenho um ano para descobrir.
– Então irei acompanhá-lo – disse Gawain. – Talvez juntos
tenhamos mais sorte.
No dia seguinte, deixaram Carlisle e cruzaram o país, parando
todas as mulheres que encontravam, na tentativa de descobrir a
solução do enigma do cavaleiro. O problema era que elas
discordavam.
Algumas diziam que a maioria das mulheres desejava roupas
finas e joias. Outras insistiam que um bom marido e filhos amorosos
eram o mais importante. Luxo, lealdade, imortalidade,
independência… Essas foram apenas algumas das respostas.
Houve uma velha maluca que insistiu que o que todas as mulheres
realmente queriam era geleia de morango. As respostas variavam
entre o bizarro e o banal – mas nenhuma parecia de todo
convincente.
O tempo passou voando. Uma semana se transformou em um
mês. Mais um mês se passou, depois se passaram dois, depois
seis… Logo o rei Artur e Sir Gawain se viram no caminho de volta
para o castelo encantado. Tinham todo um catálogo de respostas
em seus alforjes, mas sabiam em seus corações que tinham
falhado.
Foi na véspera de se separarem, talvez para sempre, que
encontraram uma anciã ao pararem em uma clareira para descansar
os cavalos. Gaiwain a viu ao lado de um riacho, lendo um livro.
Estava bem vestida, pois usava os melhores tecidos e tinha o corpo
coberto de joias. Mas, quando ela se virou, ele percebeu que se
tratava, sem dúvida, da mulher mais feia que já tinha visto.
Uma feiura extraordinária. Os lábios, como os de um macaco
gigante, reuniam-se vários centímetros à frente do nariz e, quando
ela sorria, os dentes eram projetados para fora, amarelos e
desiguais. A pele era da cor e da textura de um pudim de arroz, e o
cabelo, fino e duro, brotava-lhe da cabeça, sem cor ou forma
definidas. O nariz tinha sido empurrado no rosto até quase
desaparecer, e ela era de tal forma estrábica que parecia estar
tentando olhar para as próprias narinas. Por fim, era terrivelmente
gorda – tão gorda, de fato, que as mãos e os pés pareciam brotar do
seu corpo, sem o benefício de braços e pernas.
Mas era uma mulher, e Artur decidiu fazer a última tentativa de
responder à pergunta. Aproximou-se, inclinando-se cortesmente,
porém, antes que pudesse falar, ela se dirigiu a ele com uma
estranha voz cacarejante.
– Eu sei qual é a pergunta que o senhor gostaria de fazer – ela
gritou – e também sei a resposta. Mas só a darei com uma
condição.
– E qual é? – o rei Artur perguntou.
A mulher horrível sorriu para Gawain e passou a língua molhada
sobre os lábios.
– Esse cavaleiro… – disse ela, rindo. – Ele é jovem e bonito.
Que lindo cabelo louro! Que delicados olhos azuis! Vou ter o maior
prazer em tê-lo como marido. Essa é a minha condição! Se o senhor
me concedê-lo em casamento, eu salvarei a sua vida.
Com isso, Gawain ficou pálido. Ele era realmente jovem e bem-
apessoado. Todos os seus amigos esperavam que ele voltasse para
casa um dia com uma bela esposa. O que diriam se aparecesse
com aquele monstro…?
Mas, mesmo com esses pensamentos passando-lhe pela mente,
seu caráter prevaleceu. Ele tinha um dever – para com seu tio, para
com o rei.
– Meu senhor – ele disse. – Se essa mulher pode salvar a sua
vida…
– Eu posso, eu posso! – a mulher cantarolou.
– … então terei prazer em me casar com ela.
– Meu caro sobrinho – o rei Artur gritou. – Você é generoso e
nobre. Mas não posso deixá-lo…
– O senhor não pode me impedir – Gawain respondeu. E
ajoelhou-se. – Senhora – exclamou –, dou-lhe a minha palavra de
Cavaleiro da Távola Redonda de que me terá como marido se puder
salvar o rei. Diga-lhe o que é que as mulheres mais desejam. E seu
desejo será satisfeito.
E foi assim que na manhã seguinte o rei Artur se foi – sozinho,
como prometido – para o castelo de Tarn Wathelyne. Mais uma vez
a sensação do mal o rodeava como uma grande escuridão, mas
agora conseguia avançar com confiança, como se a resposta que
carregava fosse um farol aceso. Pela segunda vez a grande ponte
levadiça se abriu, e o cavaleiro negro saiu a cavalo, com a espada
já desembainhada.
– Então está de volta, grande rei! – ele rosnou. – Perguntava-
me se teria coragem bastante. – Sua mão buscou a espada. – Dê a
resposta à minha pergunta. O que é que as mulheres mais desejam
neste mundo?
O rei Artur respondeu com coragem e clareza, repetindo as
palavras da mulher feia.
– Todas as mulheres querem que, como os homens, possam
controlar seus próprios corpos e que tenham permissão para tomar
decisões por si mesmas.
Por um momento, o cavaleiro negro ficou em silêncio. Em
seguida, deixou cair a espada e, para espanto de Artur, caiu de
joelhos.
– A resposta está correta, senhor, e por isso o feitiço que a
bruxa má Morgana le Fay lançou sobre mim se quebrou. Ela
obrigou-me a enviá-lo em sua demanda. Eu era seu escravo, mas
agora a sua magia terminou. Peço-lhe, senhor, que me deixe servi-
lo na Távola Redonda. Por baixo dessa armadura negra e suja, sou
um bom homem e vou provar ser digno dessa honra.
– Seja bem-vindo – disse o rei Artur.
Pronunciadas essas palavras, o pavoroso castelo de Tarn
Wathelyne rachou e desmoronou e, de repente, um vento surgiu
enquanto tijolos e ferragens começaram a desmoronar. Em seguida,
a luz do sol rompeu as nuvens. O castelo se despedaçou, o chão se
ergueu como se estivesse feliz por se libertar. Um momento depois
ele havia desaparecido, e os passarinhos voltaram a cantar.
– Vamos cavalgar juntos – convidou o rei, e assim eles voltaram
para a corte. No entanto, embora a aventura tivesse terminado bem
para ele, seu coração lhe pesava. Tinha um casamento para assistir,
um sobrinho para ver casado. Teria dado o seu reino para não ser
dessa forma.
O casamento
O casamento de Sir Gawain foi um evento que ninguém jamais
esqueceria. A mulher feia riu durante o ofício, e depois comeu tão
grotescamente na festa que quase havia tanta comida em seu
vestido quanto em sua boca. Sentou-se com as pernas abertas e os
cotovelos sobre a mesa e deliberadamente esqueceu o nome de
todos.
É claro que sendo uma época de cavalheirismo, os outros
convidados se esforçavam para ser escrupulosamente educados.
Quando a nova esposa de Sir Gawain ficou bêbada e caiu, correram
para ajudá-la como se ela tivesse apenas tropeçado. Quando fez
piadas grosseiras e desagradáveis, riram e aplaudiram. E todos
felicitaram Sir Gawain por sua boa sorte com a sinceridade que
conseguiram demonstrar.
Pobre Gawain, era o mais educado. Em nenhum momento
deixou transparecer que havia se casado com uma mulher medonha
porque tinha sido forçado. Ele a chamava de “minha senhora” e
segurou-lhe o braço no caminho para a mesa. Quando ela esvaziou
(ou derrubou) sua taça de vinho, ele a encheu para ela. E, embora
estivesse bem quieto, às vezes parecendo prestes a desmaiar,
continuou fingindo que nada estava errado.
Mas, no final da noite, sozinho no quarto de dormir com a
horrível esposa, não suportou vê-la empoar o nariz e seus três
queixos. Tudo foi demais para ele. Agarrou a espada. Agarrou o
cabelo. Então caiu em prantos.
– O que é, meu querido? – a senhora perguntou. – O que o
aborrece tanto na nossa noite de núpcias?
– Senhora, não posso ocultar-lhe meus pensamentos. A
senhora me forçou a ser seu marido. Na verdade, eu preferia não tê-
lo feito.
– E por quê? – ela quis saber.
– Não posso lhe dizer.
– Conte-me!
– Está bem. – Gawain respirou fundo. – Não quero ofendê-la,
minha esposa, mas a senhora é velha e feia e evidentemente de
baixa estirpe. Perdoe-me. Falo apenas o que sinto.
– Mas o que há de tão errado? – a mulher borbulhou. – Com a
idade vêm a sabedoria e a prudência. Estas não são coisas boas
para uma mulher possuir? Talvez eu seja feia. Mas, se assim for,
nunca terá de se preocupar com os rivais, enquanto estiver casado
comigo. Os outros homens, sim, podem viver com medo de que
alguém fuja com suas esposas. Por fim, me acusa de ser de baixa
estirpe. Você é realmente tão esnobe, Gawain? Acha que a nobreza
vem só por se ter nascido em uma boa família? Com certeza isso
depende do caráter de uma pessoa! Por que não me ensina a ser
nobre também?
Gawain pensou por um momento. Apesar de seus sentimentos
mais íntimos, via-se obrigado a concordar. Ao mesmo tempo, sentia-
se envergonhado. Não importava o que pensava, ela salvara a vida
de seu tio. Havia se comportado mal. Não como um cavaleiro da
Távola Redonda.
– Minha esposa, a senhora está certa em tudo o que diz. Fui
descortês com a senhora e peço-lhe perdão.
– Então venha se deitar – ela disse.
Mas, enquanto ela falava, Gawain percebeu que sua voz estava
diferente e, quando se virou, para seu espanto, não era uma mulher
gorda e feia que estava sobre a cama, mas uma moça jovem, bela,
de pele clara e suaves olhos verdes.
– Gawain – ela disse, sorrindo. – Deixe-me explicar. Gromer
Somer Joure, que conhece como o cavaleiro negro, é meu irmão.
Estávamos escravizados pela malvada rainha Morgana le Fay.
Ajudei o rei a libertar meu irmão do feitiço, mas só a bondade e a
compreensão de um espírito nobre poderia me salvar do meu
horrível encantamento. Foi isso o que me deu, querido Gawain, e
agora, enfim, eis-me como realmente sou. Sou sua esposa – se o
senhor quiser. Mas dessa vez a escolha é realmente sua.
Gawain a olhava, sem palavras. Em seguida, tomou sua mão e a
trouxe para perto do rosto.
Na manhã seguinte, a corte ficou surpresa ao ver o que tinha
acontecido, e o rei ordenou uma segunda festa de casamento para
que todos pudessem realmente se divertir sem ter que fingir. Gawain
e sua senhora viveram felizes juntos por muitos anos e, embora
ninguém jamais contasse a história quando um dos dois estava
presente (por medo de envergonhá-los), em muitas noites de
inverno os cavaleiros e pajens se reuniam em volta do fogo
crepitante para ouvir, mais uma vez, o estranho conto da esposa
feia.
Dez feras e monstros incríveis de
que você provavelmente nunca ouviu
falar
AL-MI’RAJ
Uma fera mitológica encontrada na poesia islâmica, o Al-mi’haj é
um coelho enorme e amarelo com um único chifre, como o de um
unicórnio. Pode parecer inofensivo, mas é extremamente agressivo
e capaz de matar e devorar animais bem maiores do que ele
mesmo.
BONNACON
Este animal mítico, oriundo da Ásia, tem aparência semelhante à
do bisão, mas possui um chifre comprido e encaracolado. Sua
característica mais excêntrica é seu excremento, que pega fogo
constantemente.
BARBEGAZI
Variedade de gnomo encontrada no folclore suíço. Ele tem pés
extremamente grandes, úteis para esquiar pelas montanhas ou
surfar pelas avalanches.
CARÍBDIS
Monstro marinho que tem origem na mitologia grega. É
basicamente uma boca gigante que engole enormes quantidades de
água (e qualquer barco desavisado que esteja navegando por perto)
e depois os cospe na forma de um redemoinho.
CHONCHON
Criatura interessante da mitologia indígena Mapuche, o
Chonchon é uma cabeça humana sem corpo, que usa suas
enormes orelhas como asas.
PUCKWUDGIE
Pequeno demônio semelhante ao troll, originário da América do
Norte nativa, o Puckwudgie tem pele cinza e lustrosa, com a
peculiaridade de brilhar no escuro. É capaz de criar fogo e mudar de
forma, sendo conhecido por provocar encrencas!
ROMPO
Em alguns folclores africanos e indígenas, Rompo tem orelhas
humanas, cabeça de coelho, corpo esquelético, braços de texugo e
pernas de urso. Diz-se que se alimenta de carne humana e canta
enquanto come.
NONTHYA
Sacerdotisa da mitologia nubiana, essa velha bruxa tem três
olhos. Um enxerga o passado, outro enxerga o futuro, e o outro é
cego. Ela mora numa caverna com uma serpente falante.
AMMIT
Significa “devorador” ou “comedor de ossos”. Ammit é um
demônio egípcio que é parte leão, parte hipopótamo e parte
crocodilo. Segundo a mitologia egípcia, quando alguém morre, seu
coração é pesado numa balança por Anúbis. Se o coração for mais
leve que uma pena, a pessoa poderá continuar na vida após a
morte, caso contrário será devorada por Ammit.
TÍFON
O monstro mais mortífero da mitologia grega, Tífon é alto como
as estrelas, com cabeças de cem dragões saindo de cada mão. Sua
metade inferior é constituída por víboras enormes, e todo o seu
corpo é coberto de asas.
Dez armas incríveis de mitos e
lendas
CALADBOLG
O nome significa “raio forte” e trata-se da espada de Fergus mac
Roich, herói da mitologia irlandesa. Diz-se que, empunhando-a, ele
era capaz de criar arco-íris − e a lâmina, de tão poderosa, podia
cortar o topo de montanhas.
KUSANAGI
Descoberta na barriga de um monstro de oito cabeças, essa
lendária espada japonesa permitia a quem a manejasse controlar a
direção do vento.
EXCALIBUR
Sem dúvida, a mais famosa espada da Inglaterra, Excalibur foi
arrancada de uma pedra pelo jovem Artur antes de se tornar rei, e
permaneceu com ele por toda a sua vida.
ARIT NEME
Na mitologia celta, era o canhão enorme que protegia o palácio
de Camulos, o deus da guerra. Cada bala de canhão tinha o
tamanho do mundo e dizia-se que, se fosse acionado, seria o fim do
universo.
GÁE BULG
Na mitologia irlandesa, seria uma lança mortal feita de osso de
um monstro marinho. Ela penetraria na vítima como dardo,
dividindo-se, então, em muitas farpas, que atingiriam todo seu
corpo, invariavelmente em um ataque fatal.
TRIDENTE DE POSEIDON
Uma lança de três pontas usada por Poseidon, o deus do mar.
Zangado, Poseidon podia criar terremotos e tsunamis simplesmente
batendo o tridente no chão.
MJÖLLNIR – O MARTELO DE THOR
Mjöllnir significa “o que tritura”, e essa era a arma de Thor, o
deus do trovão na mitologia norueguesa. Ele jamais perdeu sua
marca nos lançamentos e podia aplanar uma montanha com um
golpe único.