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Roteiro – Entrevista com professora Tarsilla Couto de Brito

Apresentação e introdução
Apresentação da professora Tarsilla: currículo
Tarsilla Couto de Brito é poeta, professora e pesquisadora. Seu vínculo profissional se
faz com a Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Goiás. Como pesquisadora,
seus trabalhos se voltam para questões como cânone literário, escrita de mulheres e
agora mais especificamente para o feminicídio na literatura brasileira e na literatura
ocidental.
Agradecimento à Tarsilla
Apresentação do tema: a FUVEST, vestibular que seleciona ingressantes da USP,
anunciou em novembro de 2023, pela primeira vez na história, listas de leituras
obrigatórias só com obras escritas por mulheres. Isso começa a valer a partir do
vestibular 2026 até o vestibular 2029. A lista contém nomes da literatura brasileira,
literatura portuguesa e literatura africana de língua portuguesa.
Posso mencionar alguns desses nomes¿
2026 – SÓ MULHERES
Opúsculo Humanitário (1853) – Nísia Floresta
Nebulosas (1872) – Narcisa Amália
Memórias de Martha (1899) – Julia Lopes de Almeida
Caminho de pedras (1937) – Rachel de Queiroz
O Cristo Cigano (1961) – Sophia de Mello Breyner Andresen
As meninas (1973) – Lygia Fagundes Telles
Balada de amor ao vento (1990) – Paulina Chiziane
Canção para ninar menino grande (2018) – Conceição Evaristo
A visão das plantas (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida
2027 – SÓ MULHERES
Opúsculo Humanitário (1853) – Nísia Floresta
Nebulosas (1872) – Narcisa Amália
Memórias de Martha (1899) – Julia Lopes de Almeida
Caminho de pedras (1937) – Rachel de Queiroz
A paixão segundo G. H. (1964) – Clarice Lispector
Geografia (1967) – Sophia de Mello Breyner Andresen
Balada de amor ao vento (1990) – Paulina Chiziane
Canção para ninar menino grande (2018) – Conceição Evaristo
A visão das plantas (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida
2028 – SÓ MULHERES
Conselhos à minha filha (1842) – Nísia Floresta
Nebulosas (1872) – Narcisa Amália
Memórias de Martha (1899) – Julia Lopes de Almeida
João Miguel (1932) – Rachel de Queiroz
A paixão segundo G. H. (1964) – Clarice Lispector
Geografia (1967) – Sophia de Mello Breyner Andresen
Balada de amor ao vento (1990) – Paulina Chiziane
Canção para ninar menino grande (2018) – Conceição Evaristo
A visão das plantas (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida
O RETORNO DOS HOMENS – MAS EM MINORIA
2029 – MAIORIA DE MULHERES
Conselhos à minha filha (1842) – Nísia Floresta
Nebulosas (1872) – Narcisa Amália
D. Casmurro (1899) – Machado de Assis
João Miguel (1932) – Rachel de Queiroz
Nós matamos o cão tinhoso! (1964) – Luís Bernardo Honwana
Geografia (1967) – Sophia de Mello Breyner Andresen
Incidente em Antares (1970) – Érico Veríssimo
Canção para ninar menino grande (2018) – Conceição Evaristo
A visão das plantas (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida

Ok, isso é muito importante, nós temos discussões que estão acontecendo há décadas
acerca do apagamento e do silenciamento de mulheres ao longo do tempo em toda a
história do mundo. Entretanto, isso provocou um grande incômodo naqueles que
discordam dessa lista tão “radical”, segundo alguns, e temos diferentes tipos de
argumentos, os quais partem desde pessoas leigas e completamente alheias ao trabalho
de professora, ao trabalho com a literatura, gente que não é da área, mas também de
especialistas, professores e professores que têm anos de carreira e experiência na sala de
aula ensinando sobre literatura.
Outra coisa que eu gostaria de ressaltar é que essa notícia provocou estardalhaço não só
entre as figuras posicionadas à extrema direita. Li comentários e reações de figuras que
se afirmam progressistas bem incomodadas com essa notícia
Você pode falar um pouco sobre isso, para nos contextualizar e até nos direcionar sobre
os pontos que tocaremos nessa conversa?
Você usou a palavra apagamento – esse é o contexto -, aqui temos uma excelente
oportunidade de observar como ele acontece tanto num momento só, como no caso das
listas da fuveste, como historicamente.
1) Nós acabamos de ler a lista da polêmica, a lista de escritoras mulheres. Um dos
argumentos de professores que sempre se apresentaram como posicionados à esquerda é
o argumento de que uma lista composta apenas por mulheres não leva em conta ou até
mesmo deixaria de lado o valor estético. Mas nós acabamos de ver a lista; quem, de
posse de sua capacidade de juízo crítico, seria capaz de dizer que Júlia Lopes de
Almeida, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Sophia de Mello Breyner Andresen,
Paulina Chiziane, Djamilia Pereira e Conceição Evaristo não estão qualificadas
esteticamente¿ Dizer que uma lista de escritoras mulheres não tem qualidade estética,
sugerindo que uma lista de homens teria é sugerir que a qualidade estética estética
estaria naturalmente de um lado e não de outro. Isso se chama mistificação. Isso
confunde o publico em geral. E mantem enraizado o senso comum de que escrita,
criação, intelectualidade, razão, autoria, autoridade, genialidade são atributos e
atividades exclusivas da masculinidade. Assim funciona o apagamento. E ainda poderia
acrescentar aqui o fato de que se deixa fora de alcance do grande público a discussão
sobre o que é qualidade estética, como se constitui, quem tem o poder de dizer onde
está. Porque se trata sim de uma questão de poder. A qualidade estética não nasce com o
objeto, muito menos com o sujeito que o cria. Mas discutir isso é democratizar o debate
sobre obra de arte, ninguém quer fazer isso.
2) E tem o apagamento mais óbvio, aquele que se manifesta qdo vc pesquisa as listas
anteriores da Fuvest. A gente pode encontrar essas listas desde 1994.
1994
Nelson Rodrigues, "Vestido de Noiva"
Machado de Assis, "O Espelho", "Dona Benedita", "A Sereníssima Repú blica", "A
Causa Secreta", "Missa do Galo", "O Segredo do Bonzo" e "Entre Santos"
Eça de Queiroz "A Cidade e as Serras"
Má rio de Andrade, "Amar, Verbo Intransitivo"
Cecília Meireles, com o "Romanceiro da Inconfidência"
Rubem Fonseca, “A grande arte”
José Saramago, "Memorial do Convento"
1995
"Sonetos" (Bocage), "A Cidade e as Serras" (Eça de Queiroz) e "Memorial do
Convento" (José Saramago), da literatura portuguesa. Da literatura brasileira, as
obras sã o: "O Espelho", "Dona Benedita", "A Sereníssima Repú blica", "A Causa
Secreta", "Missa do Galo", "O Segredo do Bonzo" e "Entre Santos" (contos de
Machado de Assis); "Lira dos Vinte Anos" (Á lvares de Azevedo); "Romanceiro da
Inconfidência" (Cecília Meireles); "Amar, Verbo Intransitivo" (Má rio de Andrade);
"Brá s, Bexiga e Barra Funda" (Alcâ ntara Machado); "Vestido de Noiva" (Nelson
Rodrigues) e "A Grande Arte" (Rubem Fonseca).

1996
1- "Sonetos", Bocage;
2- "Memórias de um Sargento de Milícias", Manoel Antônio de Almeida;
3- "Lira dos Vinte Anos", Álvares de Azevedo;
4- "A Cidade e as Serras", Eça de Queiroz;
5- "Dom Casmurro", Machado de Assis;
6- "São Bernardo", Graciliano Ramos;
7- "Romanceiro da Inconfidência", Cecília Meireles;
8- "Campo Geral" (in "Manuelzão e Miguilim");
9- "As Meninas", Lygia Fagundes Teles; e
10- "Memorial do Convento", José Saramago

1997 e 1998
Gil Vicente, "Auto da Barca do Inferno"
Castro Alves, "Espumas Flutuantes"
Eça de Queirós, "O Primo Basílio"
Machado de Assis, "Dom Casmurro"
Mário de Andrade, "Contos Novos"
Graciliano Ramos, "São Bernardo"
João Guimarães Rosa, "Campo Geral (in Manuelzão e Migulim)"
João Cabral de Melo Neto, "Morte e Vida Severina"
José Lins do Rego, "Fogo Morto"
Rubem Braga, "Os Melhores Contos de Rubem Braga" (organização de Davi Arrigucci Jr.)

1999
"Vidas Secas", de Graciliano Ramos
"A Ilustre Casa de Ramires", de Eça de Queiroz
"Lira dos Vinte Anos", de Á lvares de Azevedo
"O Guarani", de José de Alencar
"Macunaíma", de Mario de Andrade
"Os Lusíadas" (episó dios de Inês de Castro -118-135- e do Velho do Restelo -90-
104).
"Memó rias Pó stumas de Brá s Cubas", de Machado de Assis
"Alguma Poesia", de Carlos Drummond de Andrade
"Primeiras Estó rias", de Joã o Guimarã es Rosa
"Morte e Vida Severina", de Joã o Cabral de Melo Neto.

2000
Memó rias pó stumas de Brá s Cubas, de Machado de Assis;
Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade;
Primeiras estó rias, de Joao Guimaraes Rosa;
Morte e vida severina, de Joao Cabral de Melo Neto
Camõ es - poesia épica: episó dios de Inês de Castro (III, 118-135) e do Velho do
Restelo (IV, 90-104), de Os Lusíadas;
O guarani, de José de Alencar;
Lira dos vinte anos, de Alvares de Azevedo;
A ilustre casa de Ramires, de Eça de Queiró s;
Macunaíma, de Má rio de Andrade;
Vidas secas, de Graciliano Ramos.

2001
Camõ es - poesia épica: episó dios de Inês de Castro (III, 118-135) e do Velho do
Restelo (IV, 90-104), de Os Lusíadas;
José de Alencar . O guarani;
Á lvares de Azevedo . Lira dos vinte anos;
Eça de Queiró s - A ilustre casa de Ramires;
Machado de Assis - Memó rias pó stumas de Brá s Cubas;
Má rio de Andrade - Macunaíma;
Carlos Drummond de Andrade – Alguma poesia;
Graciliano Ramos - Vidas secas;
Joã o Guimarã es Rosa - Primeiras estó rias;
Joã o Cabral de Melo Neto - Morte e vida severina.

2002
A hora da estrela* - Clarice Lispector

2003
A hora da estrela (Clarice Lispector)

2004
"A Hora da Estrela", de Clarice Lispector.

2005
"A Hora da Estrela", de Clarice Lispector.

2006
"A Hora da Estrela", de Clarice Lispector.

De 2007 a 2019 nenhum livro de mulher é indicado. São doze anos.

2020
Minha vida de menina, Helena Morley

2021
Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles

2022
Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles

2023
Á gua Funda - Ruth Guimarã es

2024
Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles

2025
Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles
Á gua Funda - Ruth Guimarã es

A primeira pergunta que eu gostaria de fazer para você, que além de professora e
pesquisadora de literatura, é também escritora, ou seja, ocupada lugares diferentes e
importantes nesse debate, é por que essa decisão anunciada pela FUVEST é importante?
O que podemos esperar disso? E como, de que maneira ela é importante para o Brasil,
para a literatura, para a educação básica, para o ensino de literatura no Brasil? Por que
essa lista é importante.
A importância dessa lista pode ser medida quando tomamos como parâmetro o impacto
da prova de redação do Enem sobre o ensino de produção textual no Brasil: desde que o
modelo enem tornou-se o modelo predominante nas provas de redação do país
presenciamos um engessamento no ensino/aprendizagem de produção textual. Uma
prova qualquer pode até solicitar um artigo de opinião crítico em primeira pessoa que a
maioria dos candidatos, naquela prova, vai fazer uma conclusão em formato de proposta
de solução porque não sabe mais escrever outro tipo de conclusão. O impacto da prova
do Enem reflui sobre o modo como nós professores ensinamos redação em sala de aula
desde o 1º ano do Ensino Médio, senão antes. Mas quando falo do impacto do Enem,
estou falando de um impacto negativo. Uma lista de literatura que recomenda apenas
mulheres pode ter um impacto bastante positivo, afinal, lemos pouca literatura
dissidente do cânone na escola. E quando a lemos, lemos com os mesmo instrumentos
de leitura, como a tal da ideia da autonomia da obra de arte, e ainda podemos
acrescentar: ironia, paradoxo, singularização da personagem, estranhamento da
linguagem – são todos protocolos de leitura da modernidade que estão presentes nos
livros didáticos como se tivessem nascidos juntos com Adão e Eva ou com Gilgamesh
(a depender do credo do leitor). Mas esses protocolos nem sempre vão servir para
mulheres como Conceição Evaristo, uma das autoras que está merecidamente na lista da
Fuvest. E por isso ela não deve ser considerada uma “Machado de Assis de saias”, isso a
diminui, ela tem seu próprio jeito de escrever, e precisamos ainda entender e definir o
melhor jeito de ler Conceição – ela bem que tem tentado nos ensinar, escrevendo sobre
o conceito de Escrevivência, pois que é, além de uma grande escritora de literatura, uma
grande teórica também. Por isso uma lista de escritoras mulheres que contemple pessoas
negras, indígenas como Eliane Potiguara, trans como Amara Moira, donas de casa da
pequena burguesia como Clarice Lispector, revolucionárias como Pagu, entre tantas
possibilidades de existência para as mulheres é uma oportunidade para que as escolas,
os professores e os alunos não apenas leiam mulheres, mas aprendam outras formas de
ler o mundo. Porque é isso que ler mulheres nos oferece: vivências que nunca foram
nomeadas, descritas, estetizadas, marcadas com verbo, vírgula e ponto – maternidade,
alimentação, guerra, estupro, tanta coisa que não conhecemos, uma infinidade de
sentimentos de poderemos gozar, todos nós, ampliando a experiência de sermos gente.
Encerro com uma citação da escritora Rosa Montero: se os homens tivessem regras
(menstruação), a literatura universal estaria cheia de metáforas do sangue, diz ela no
livro A louca da casa. Acho que, com isso, não precisa de muito esforço de imaginação
para entender porque essa lista causa tanto incômodo. Tirar a primazia da experiência
masculina do centro da produção de conhecimento é sugerir que formas alternativas de
vida são possíveis. Ninguém quer abrir mão do privilégio de poder dizer como viver,
nem os mais generosos professores.

Alguns argumentos e comentários nas redes sociais: “reparação histórica” – podemos


chamar essa iniciativa de reparação histórica? “uma lista sem Machado de Assis, como
assim?” – como professora, o que você diz de uma lista obrigatória sem Machado de
Assis?
Eu entendo que uma lista obrigatória é uma lista obrigatória para uma determinada
situação de prova. O escândalo que essa lista causa faz parecer que essa lista é
obrigatória para todas as escolas de Ensino Médio em todo o país. Não é. É um alista
obrigatória para o vestibular da Usp. Quem trabalha em escola sabe que no Ensino
Médio precisa trabalhar para preparar seus alunos para diferentes situações de prova.
Uma mesma turma de 3º ano no Estado de São Paulo vai se preparar para a Fuvest, para
a Unicamp e para o Enem, no mínimo. Ou seja, essa turma hipotética e ao mesmo
tempo muito possível, vai ter lido Machado de Assis em algum momento de sua
formação porque nosso autor está mais que canonizado. Não é uma lista de vestibular
que vai abalar sua importância. Além disso, ele está lá no último ano da lista junto com
Érico Veríssimo, os dois benditos frutos entre mulheres maravilhosas.
“a culpa é do identitarismo” – não sei nem perguntar sobre isso, mas o que dizer disso?
Onde entra identitarismo, o que não é identitarismo (a literatura não se separa da vida
nem da política)? O que é identitarismo.
Identitarismo, como toda palavra terminada em ismo, remete a algo ruim, doentio,
pernicioso. Os movimentos identitários são movimentos sociais que tem lutado por
direitos e reparação histórica, o que faz muito sentido num país com tantas feridas da
colonização como o Brasil. Nos EUA alguns movimentos sociais ficaram bem famosos
como o Black Lives matte. Acontece que esses movimentos sociais não se
autodenominam identitaristas, mas são acusados de identiratismo. Isso acontece porque
não compartilham das mesmas estratégias de luta de movimentos mais consolidados
como sindicatos e partidos por exemplo. Talvez a lista da Fuvest seja chamada de
identitarista. Mesmo dentro da esquerda progressista há um forte pensamento
masculinizado. Acho inevitável e até previsível.

Transcrição de um comentário: “Polêmico. Por um lado acho lindo pagarmos a dívida


literária de tempos (até recentes) em que a literatura é predominantemente masculina.
Afinal, quantas mulheres escritoras foram canonizadas? Por outro lado, penso que essa
separação por gênero tende a também limitar outras possibilidades literárias. A escolha
das obras literárias dos vestibulares deve ser diversa, sempre abrangendo a diversidade
das escolas literárias, dos gêneros textuais… e de escritorES e escritorAS.” Como
responder a esse tipo de expectativa?
Esse comentário é típico de quem gosta de se imaginar como uma pessoa ponderada.
Mas vejamos: ela pensa que a separação por gênero tende a limitar outras possibilidades
literárias e desdobra dessa afirmação a necessidade de uma diversidade de escola
literária (a lista vai Nísia Floresta, 1842 a Djamilia Pereira, 2019), diversidade de
gêneros literários (o Opúsculo Humanitário de Nísia Floresta é uma coletânea de 62
artigos publicados na imprensa carioca após a sua primeira viagem à Europa, há ainda
dois livros de poemas – de Amália e Sophia - , romance e a ficção experimental de
Conceição). Essas cobranças nunca foram feitas a uma lista em que predomina a autoria
masculina. São falsos problemas. Ou problemas que só surgem quando autorias
dissidentes resolvem adentrar a República Espiritual das Letras com seus corpos
marcados pela biologia, pela história, pela dor, pelo desejo. Literatura é poder.
Precisamos tratar disso abertamente.
Muitos argumentam falando que isso é uma radicalidade, radicalização, uma resposta
ressentida, uma birra, e toda radicalidade é burra. Essa iniciativa é uma radicalidade?
Eu não sei se toda radicalidade é burra. De qualquer forma, essa iniciativa não é uma
radicalidade, ao contrário, é uma solução burocrática, tomada instituticionalmente, por
uma banca, um grupo de professores especializados, uma decisão que teve assinatura da
sua reitoria, que foi aprovada em edital público. Radicalidade pra mim, no sentido burro
e negativo, como vc sugeriu incialmente, foi o 08 de janeiro do ano passado. Mas nós
temos também os radicalistas do bem e inteligentes, como o padre Julio Lancelotti.
Pensando nas críticas de alguns professores por aí, eu pergunto: em matéria literária, no
que diz respeito ao conceito da literatura, qual seria o impacto de uma iniciativa dessa?
Talvez o conceito de literatura que se relaciona com a composição dessa lista já esteja
circulando por aqui há alguns anos. E aí a relação seria invertida. A lista seria uma
consequência e não uma causa. Eu me lembro de que, no meu primeiro ano de letras,
em 1996, bombou um artigo da professora Leyla Perrone-Moises que se chamava “Que
fim levou a crítica literária”. Nesse artigo ela lamentava o fato da literatura ter se
transformado em reduto da memória, documento da cultura e ter perdido seu espaço de
crítica, de inovação, de ruptura. Colocadas essas concepções assim, parece algo ruim
mesmo. Mas quando você entende que começamos a valorizar e a fortalecer uma
literatura escrita por povos que tem na ancestralidade sua fonte de criação, não tem
como negar que memória é mais importante do que ruptura. Como Ana Maria
Gonçalves poderia ter escrita Um defeito de cor pensando em romper com a tradição se
como autora negra ela estava justamente em busca de sua tradição¿ Nunca existiu um
único conceito de literatura. Diferentes conceitos sempre estiveram em disputa. O
conceito que sustenta a ideia de que é importante lutar pela abertura do cânone é um
conceito que entende a literatura como memória, o cânone como documento da barbárie
e as autorias dissidentes como alternativas de conhecimento. Essas ideias incomodam
muita gente.

Esse incômodo tem muitas explicações. Quais você poderia elencar? Os interesses do
mercado editorial entrariam aqui?
O mercado editorial pode reclamar do fato de que algumas obras indicadas estão em
domínio público como Nísia Floresta e Júllia Lopes de Almeida. Mas duvido de que as
editoras que detém os direitos sobre Clarice, Conceição e cia vão reclamar.
Lembrar da história do Lucien de Rubempré.
Mas isso é só um lado da história.
Até agora, do que vi, quem mais reclamou foi a crítica especializada, os professores de
literatura.
Então estamos diante de dois dentre os vários agentes literários que participam dessa
grande arena de disputas onde se luta pela definição do que é a boa literatura. Cada um
joga com armas distintas, mas me parece que todos dissimulam a respeito do fato de que
definir o que é literatura é algo muito mais da ordem material do que espiritual como
muitos gostariam de dar a entender. É isso que chamo de mistificação da literatura.

Hoje, as listas de processos seletivos fazem parte dessa disputa, assim como feiras
literárias como a Flip, prêmios como Jabuti, casas de escrita criativa como a Casa das
Rosas, as faculdades de letras de todo o país, os professores-poetas, os documentos
governamentais que regulam o ensino de língua portuguesa e literatura – todos esses
elementos vieram expandir e acirrar a disputa pelo poder dizer o que é boa literatura. E
quem consegue se impor para dizer o que é, vai poder indicar o que uma editora deve
publicar e o que é urgente traduzir, vai ser chamado a dirigir políticas públicas como os
planos nacionais para acervo de bibliotecas, vai ser ministro da educação etc etc etc.
Eu fico pensando assim: se é preciso de novos protocolos de leitura para a escrita de
mulheres, esses professores e professoras que fizeram um abaixo assinado contra a lista
da Fuvest em nome da manutenção do valor estético, o que se trata evidentemente de
um falso argumento, dada a qualidade estética da lista, deveriam estar mais preocupados
em renovar suas estratégias de leitura literária porque afinal precisamos de um olhar
renovado para orientar os trabalhos a serem realizados em sala de aula no Ensino Médio
daqui pra frente.

Momento para Tarsilla acrescentar um algo mais que deixei passar, mas que ela
considera relevante
Fechamento: cumprimentos e agradecimentos

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