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ALLENE LAGE E ÉMERSON SANTOS (Orgs.

Escritos sobre a educação a partir de uma pers-


pectiva latino-americana

1ª edição
2017
Copyright © 2017 por Allene Carvalho Lage, Márcio Rubens de Oli-
veira, Émerson Silva Santos, Marcos Diego Carneiro de Freitas, Edima
Verônica Morais, Antonio Alves de Santana, Maria Girlene Callado da
Silva, Tatianne Amanda Bezerra da Silva, Halda Simões Silva, Allene Car-
valho Lage, Roberta Rayza Silva de Mendonça, Paloma Raquel de Almei-
da, Sergio Antônio Silva Rego, Filipe Antonio Ferreira da Silva, Vanessa
Azevedo Cabral da Silva, Alexandre Evangelista da Silva, Izaquiel Arruda
Siqueira, Amanda do Nascimento Rosa, Andrielle Maria Pereira, Benedito
Leite de Souza Júnior, Hélida Suelen Cordeiro de Souza

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CAPA, REVISÃO E DIAGRAMAÇÃO

Equipe Cia do eBook

ISBN

9788555850899
______________________________________________________
Lage, Allene
Escritos sobre a educação a partir de uma perspectiva latino-a-
mericana / Allene Lage, Émerson Santos, organizadores. Timburi,
SP: Cia do eBook, 2017.
265p.

ISBN: 978-85-55850-89-9

1. Material didático. 2. Educação.


I. Título.

CDD 371.3

Índices para catálogo sistemático:


1. Material didático 371.3
2. Educação 370

______________________________________________________
EDITORA CIA DO EBOOK

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Allene Carvalho Lage ............................................... 08

OLHARES SOBRE A CRIAÇÃO E REFORMAS DAS UNIVER-


SIDADES NO BRASIL E AMÉRICA LATINA: TESSITURAS EN-
TRE DARCY RIBEIRO E FLORESTAN FERNANDES
Márcio Rubens de Oliveira ....................................... 14

A UNIVERSIDADE PÚBLICA NO PENSAMENTO DE DARCY


RIBEIRO E FLORESTAN FERNANDES
Émerson Silva Santos ................................................ 36

FERNANDES E FREIRE: EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA EM TEM-


POS DE ESCOLA SEM PARTIDO
Marcos Diego Carneiro de Freitas ............................ 59

PENSAMENTO PEDAGÓGICO LATINO-AMERICANO: A CON-


CEPÇÃO DE EDUCAÇÃO EM JOSÉ MARTÍ, FLORESTAN FER-
NANDES E ERNESTO CHE GUEVARA, AS CONTRIBUIÇÕES
DESSES PENSADORES PARA OS DESAFIOS POSTOS PARA
EDUCAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
Edima V. Morais e Antonio A. de Santana ................. 84

EDUCAÇÃO PÚBLICA DE QUALIDADE: PERSPECTIVAS


ATUAIS NO CONTEXTO DAS ESCOLAS DO CAMPO
Maria Girlene Callado da Silva .............................. 108
A EDUCAÇÃO PARA ALÉM DO CAPITAL: REFLEXÕES ACER-
CA DE PEDAGOGIAS CONTRA-HEGEMÔNICAS LATINO-A-
MERICANAS
Tatianne Amanda Bezerra da Silva .......................... 135

O QUE É UMA ESCOLA PÚBLICA LATINO-AMERICANA? EN-


CONTRANDO CAMINHOS NOS PENSAMENTOS PEDAGÓGI-
COS DE SIMÓN RODRÍGUEZ E ANÍSIO TEIXEIRA
Halda Simões Silva .................................................. 159
CONVERGÊNCIAS DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO LATI-
NO-AMERICANO QUE APONTAM PARA A EDUCAÇÃO DA
MULHER NOS MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO

Allene Carvalho Lage .............................................. 181


DIÁLOGOS ENTRE EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA E FORMA-
ÇÃO EM/PARA OS DIREITOS HUMANOS: INTERSEÇÕES EN-
TRE MARIA LACERDA DE MOURA E PAULO FREIRE

Roberta Rayza Silva de Mendonça .......................... 209


FEMINISMO E EDUCAÇÃO: EMANCIPAÇÃO ATRAVÉS DO
CONHECER-SE. BREVE ANÁLISE DO PENSAMENTO PEDA-
GÓGICO DE NÍSIA FLORESTA E MARIA LACERDA DE MOU-
RA

Paloma R. de Almeida e Sérgio Antônio S. Rego ..... 232


A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO FEMI-
NISTA DE NÍSIA FLORESTA E MARIA LACERDA DE MOURA
NA PRÁTICA EDUCATIVA DO MOVIMENTO DE MULHERES
RURAIS/DO CAMPO

Filipe Antonio Ferreira da Silva .............................. 255


OS MARCOS HISTÓRICOS PARA A FORMAÇÃO DA EDUCA-
ÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

Vanessa Azevedo Cabral da Silva ............................ 283


SAÚDE DO PROFESSOR E PARASITISMO SOCIAL: DILE-
MAS E EXPERIÊNCIAS NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE
JABOATÃO DOS GUARARAPES, PERNAMBUCO (2013-2016)

Alexandre Evangelista da Silva ............................... 305


A EDUCAÇÃO POPULAR E AS CONTRIBUIÇÕES DE PAULO
FREIRE E ORLANDO FALS BORDA PARA O PENSAMENTO
PEDAGÓGICO DA AMÉRICA LATINA

Izaquiel Arruda Siqueira ......................................... 334


EDUCAÇÃO POPULAR: UM DIÁLOGO ENTRE LATINOS/AS-
-AMERICANOS/AS

Amanda do Nascimento Rosa e Andrielle Maria Perei-


ra ............................................................................. 361
PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS DE ELIZARDO PEREZ EM
FAVOR DE UMA EDUCAÇÃO INDIGENISTA A PARTIR DAS
ESTRUTURAS-BASE NUM DIÁLOGO COM FANON ONDE
DISCORRE SOBRE “A PELE NEGRA E MÁSCARAS BRAN-
CAS” UTILIZANDO A PEDAGOGIA DA PRÁXIS, EM ORLAN-
DO FALS BORDA

Benedito Leite de Souza Júnior ............................... 384


A PEDAGOGIA DE ENSINO BRASILEIRO DENTRO DE UMA
PERSPECTIVA ATUAL: COM ANÁLISES PRECEDENTES NOS
ESTUDOS DE ANÍSIO TEIXEIRA, PEDRO VARELLA E FLO-
RESTAN FERNANDES

Hélida Suelen Cordeiro de Souza ............................ 408


APRESENTAÇÃO

O livro que ora apresentamos resulta do Compo-


nente Curricular Pensamento Pedagógico Latino-Ame-
ricano ofertado no âmbito da linha de pesquisa Estado,
Diversidade e Educação do Programa de Pós-Graduação
em Educação Contemporânea da Universidade Federal de
Pernambuco – Centro Acadêmico do Agreste.
O Componente Curricular citado em tela, trabalhou
com as principais referências teóricas do pensamento peda-
gógico latino-americano que apontam para uma educação
do povo igualitária, emancipatória e autônoma, reletindo
sobre suas contribuições para educação contemporânea.
Nessa direção, os/as discentes tiveram acesso e debateram
o pensamento de autores/as como: Simón Rodriguez, An-
drés Bello, Nísia Floresta, José Pedro Varela, José Mar-
tí, Manoel Bomim, José Vasconcelos, Marcia Lacerda
de Moura, Gabriela Mistral, Elizardo Pérez, José Carlos
Mariátegui, Anísio Teixeira, Leopoldo Zea, Florestan Fer-
nandes, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Luis Antônio Bigott,
Orlando Fals Borda, Frantz Fanon e Ernesto Che Guevara.
Ao inal desses debates, os/as discentes produziram um
conjunto de trabalhos que estão reunidos nesta obra.
O primeiro artigo intitulado “Olhares Sobre a Cria-
ção e Reformas das Universidades no Brasil e América

8
Latina: Tessituras Entre Darcy Ribeiro e Florestan Fer-
nandes”, lança relexões sobre a perspectiva de pensar a
universidade latino-americana, a partir do seu potencial de
diálogo com as demandas sociais e construção da demo-
cracia. Fundamentando-se também no pensamento de Dar-
cy Riberto e Florestan Fernandes, o segundo artigo, cujo
título é “A Universidade Pública no Pensamento de Darcy
Ribeiro e Florestan Fernandes”, aponta que estes auto-
res têm concepções de Universidades como instituições
produtoras de cultura, ciência e tecnologia; fundamentais
para o progresso econômico e social do país; indispensá-
veis na busca pela superação das desigualdades sociais; e
capazes de realizar uma formação que possibilite aos/às
estudantes, uma visão crítica da realidade.
Ainda em diálogo com Florestan Fernandes, o ter-
ceiro artigo “Fernandes e Freire: Educação e Ideologia
em Tempos de Escola Sem Partido”, trata de uma temática
bastante atual, muito discutida na sociedade, sobretudo en-
tre educadores/as, problematizando uma série de questões
relacionadas ao Projeto de Lei 867/2015 conhecido como
o projeto da Escola Sem Partido. Por sua vez, o quarto ar-
tigo intitulado “Pensamento Pedagógico Latino America-
no: A Concepção de Educação em José Martí, Florestan
Fernandes e Ernesto Che Guevara, as Contribuições Des-
ses Pensadores Para os Desaios Postos Para Educação
na Contemporaneidade”, buscou identiicar elementos de
aproximação no pensamento destes autores, com vistas a
compreender a concepção de educação emancipatória pre-
sente em cada um deles, bem como demostrar a atualidade
dos seus pensamentos.

9
O quinto artigo que tem como título “Educação Pú-
blica de Qualidade: Perspectivas Atuais no Contexto das
Escolas do Campo”, propõe uma relexão sobre o pensa-
mento dos autores José Pedro Varela, José Vasconcelos e
Paulo Freire, em torno da temática escola pública de qua-
lidade, identiicando traços que revelam a defesa de uma
educação pública voltada para as classes populares do
campo. O sexto trabalho “A Educação Para Além do Ca-
pital: Relexões Acerca de Pedagogias Contra-Hegemôni-
cas Latino-Americanas”, trabalhando com o pensamento
de José Carlos Mariátegui (2011), Che Guevara (1959;
1965) e Florestan Fernandes (1984; 1975), apresenta al-
gumas propostas pedagógicas contra-hegemônicas socia-
listas latino-americanas, ou seja, orientações que, embora
não sejam dominantes, visam colocar a educação a serviço
das forças que lutam para revolucionar a ordem vigente.
O pensamento do venezuelano Símon Rodríguez ga-
nhou espaço no sétimo artigo que tem como título “O Que
é Uma Escola Pública Latino-Americana? Encontrando
Caminhos nos Pensamentos Pedagógicos de Simón Ro-
dríguez e Anísio Teixeira”, apoiado nos autores citados no
seu título, discute um pensamento pedagógico que nos faz
reletir sobre o cerne de uma educação pública direcionada
ao atendimento de demandas do povo latino-americano.
Já o oitavo artigo, intitulado “Diálogos Entre Educação
Emancipatória e Formação Em/Para os Direitos Huma-
nos: Interseções Entre Maria Lacerda de Moura e Paulo
Freire”, propõe novos olhares para as propostas de edu-
cação emancipatória de Maria Lacerda de Moura e Paulo
Freire, observando como elas culminam, também, em uma
Educação em Direitos Humanos.

10
As questões relativas à mulher nos movimentos so-
ciais ganham espaço no nono artigo intitulado “Conver-
gências do Pensamento Pedagógico Latino-Americano
que Apontam Para a Educação da Mulher nos Movimen-
tos Sociais do Campo”. Este trabalho é resultado de um
projeto de produtividade do CNPq e discute questões liga-
das à educação, identidades e saberes de luta das mulheres
que atuam em movimentos sociais campesinos. O texto
parte de uma discussão teórica das ideias de Nísia Flores-
ta, Maria Lacerda de Moura e Gabriela Mistral e conclui
apontando a atualidade do pensamento dessas três intelec-
tuais e a convergência de suas ideias com as compreen-
sões das mulheres trabalhadoras rurais em Pernambuco.
A temática da educação feminista ganha corpo no
décimo artigo, “Feminismo e Educação: Emancipação
Através do Conhecer-se. Breve Análise do Pensamento Pe-
dagógico de Nísia Floresta e Maria Lacerda de Moura”,
que relete a importância do pensamento destas autoras
que pensaram numa educação emancipadora, enxergando
na mulher um sujeito de direitos, capaz de se manter e de
viver com dignidade, independentemente da possibilidade
de casamento. Com uma proposta semelhante, o décimo
primeiro artigo intitulado “A Contribuição do Pensamen-
to Pedagógico Feminista de Nísia Floresta e Maria La-
cerda de Moura na Prática Educativa do Movimento De
Mulheres Rurais/Do Campo”, analisa as práticas educati-
vas das mulheres campesinas do Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE).
Voltando-se ao debate sobre a educação pública no
Brasil, o décimo segundo artigo que tem como título “Os

11
Marcos Históricos Para a Formação da Educação Públi-
ca Brasileira”, problematiza como o Manifesto dos Pio-
neiros da Educação Nova e a Lei de Diretrizes e Bases im-
pactaram na escola pública até os dias de hoje, para isso se
utiliza das produções dos pensadores Florestan Fernandes,
Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Já o décimo terceiro ar-
tigo intitulado “Saúde do Professor e Parasitismo Social:
Dilemas e Experiências na Rede Municipal de Ensino de
Jaboatão Dos Guararapes, Pernambuco (2013-2016)”,
fundamenta-se no pensamento de Manuel Bomim, Frantz
Fanon e Paulo Freire para entender os problemas enfrenta-
dos pelos professores nas salas de aula, chamando a aten-
ção para a Síndrome de Burnout.
O décimo quarto artigo “A Educação Popular e
as Contribuições de Paulo Freire e Orlando Fals Bor-
da Para o Pensamento Pedagógico da América La-
tina”, busca compreender e apresentar as principais
contribuições teóricas do pensamento social e pedagógico
de Paulo Freire e Orlando Fals Borda para a constituição
da Educação Popular como expressão de uma pedagogia
latino-americana. Ainda dentro dessa discussão, o décimo
quinto artigo intitulado “Educação Popular: Um Diálogo
Entre Latinos/As-Americanos/as”, trabalha as contribui-
ções do pensamento pedagógico latino-americano de José
Vasconcelos, Gabriela Mistral e Paulo Freire em favor de
uma educação que visa a transformação social e individual
dos sujeitos.
O pensamento dos teóricos latinos Elizardo Perez,
Frantz Fanon e Orlando Fals Borda são discutidos no dé-
cimo sexto artigo intitulado “Perspectivas Pedagógicas

12
de Elizardo Perez em Favor de uma Educação Indigenis-
ta a Partir das Estruturas-Base num Diálogo com Fanon
Onde Discorre Sobre “A Pele Negra E Máscaras Bran-
cas” Utilizando a Pedagogia da Práxis, Em Orlando Fals
Borda”. Finalmente, o décimo sétimo artigo intitulado “A
Pedagogia de Ensino Brasileiro Dentro de Uma Perspec-
tiva Atual: Com Análises Precedentes nos Estudos de Aní-
sio Teixeira, Pedro Varella e Florestan Fernandes”, rele-
te a importância das contribuições destes pensadores para
a atualidade.
Findada esta apresentação, agradecemos a participa-
ção de todos/as os/as estudantes na organização deste livro
e ao Programa de Pós-Graduação em Educação Contem-
porânea da Universidade Federal de Pernambuco – Centro
Acadêmico do Agreste. Agora, convidamos os leitores a
se debruçarem sobre os artigos que compõem esta obra.
Boa leitura!

Caruaru, 2017.
Allene Lage

13
OLHARES SOBRE A CRIAÇÃO E REFORMAS
DAS UNIVERSIDADES NO BRASIL E AMÉRICA
LATINA: TESSITURAS ENTRE DARCY RIBEIRO
E FLORESTAN FERNANDES
Márcio Rubens de Oliveira. Graduado em Psicologia pela Faculdade do Vale
do Ipojuca – FAVIP – em 2010. Discente do Programa de Pós-Graduação em
Educação Contemporânea – PPGEduC –, na Universidade Federal de Pernam-
buco – UFPE –, Campus Acadêmico do Agreste. marciorubensoliveira@ht-
mail.com.

Resumo
Considerando a construção histórico-relexiva que pretendemos de-
senvolver, conceitos sobre ensino superior, universidade, gratuidade
de acesso à educação superior, interiorização de universidades, entre
outros temas, tornarão possível uma melhor compreensão sobre a cons-
tituição e inluências da universidade pública no Brasil, referente à re-
lexão e enfrentamento às diversas questões que envolvem processos
de exclusão. Nomes como o de Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes
serão fundamentais para sustentar a nossa relexão sobre a perspectiva
de pensar a universidade, a partir do seu potencial de inferência e de
pensamento sobre as demandas sociais. Pensadoras e pensadores como
eles ajudaram na crença de que a educação brasileira e a latino-ameri-
cana trilharam em direção a ressigniicações e conquistas nunca antes
vivenciadas, como a democracia, por exemplo. Democracia pensada
por estas pessoas como aquela de fato e não a naturalizada e pertencente
a uma classe dominante.
Palavras-chaves: Universidade. Darcy Ribeiro. Florestan Fernandes.
Democracia.

14
Introdução
A atual conjuntura política brasileira aponta para
uma série de possibilidades relexivas em torno da manei-
ra pela qual a história do nosso país foi se desdobrando ao
longo do tempo. As conquistas alcançadas pela população
brasileira rememoram lutas, exclusões, omissões, entre
tantas outras situações de enfrentamento a discursos hege-
mônicos e cerceadores de avaliações e intervenções mais
relexivas.
Muitas pessoas e instituições ocuparam lugares im-
portantes nas lutas em favor de um país mais justo para
com aquelas e aqueles que não dispunham de oportunida-
des mais ampliadas de acesso a condições de vida, sociais,
educacionais e culturais mais favoráveis. Ainda há muito
a conquistar, principalmente se considerarmos os últimos
eventos que a sociedade brasileira tem vivenciado. Uma
verdadeira crise política, que assombra a todas e a todos
com a sua, pouco compreendida, capacidade de suscitar
posicionamentos e comportamentos, escancaradamente
antidemocráticos, opressores, separatistas, geradores de
preconceitos inindos, principalmente se considerarmos os
discursos que defendem práticas ditatoriais e de exceção.
Uma situação que exige atenção, resistência e luta.
Apesar do atual momento, uma leitura mais apro-
fundada sobre as conquistas que a população brasileira al-
cançou decorre da tentativa de tornar o acesso a melhores
condições de sobrevivência e ampliação do conhecimento
em uma realidade possível. Teríamos, portanto, um con-
junto relevante de situações que demonstrariam os esfor-
ços de muitas pessoas, organizações e instituições em ga-

15
rantir tal acesso. Não pretendemos neste enredo classiicar
as diversas conquistas em mais ou menos relevantes, mas
destacar aquela que contribui para o estudo que se pre-
tende desenvolver em torno da universidade pública, sua
história, conquistas e atores importantes nesta trajetória.
Assim, pretendemos destacar o percurso pelo qual
o acesso ao ensino superior público foi traçado em nossa
história. Para tamanha empreitada será preciso destacar as
inluências que recebemos das lutas, resistências e enfren-
tamentos vivenciados pelos irmãos e irmãs de países lati-
no-americanos, os quais ocupam, inclusive, papel de des-
taque na maneira como operaram as suas reivindicações
em torno da reformulação do ensino superior, oferendo,
não parâmetros, mas condições para que possamos repen-
sar a maneira pela qual o ensino superior e a universida-
de pública no Brasil estavam e estão sendo constituídos.
Também nos valeremos do pensamento de alguns pensa-
dores e educadores brasileiros, com especial atenção para
as contribuições de Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes,
ambos defensores de uma educação pública gratuita, de
oferta ampliada, principalmente para as classes sociais
menos favorecidas, e, democrática desde as séries iniciais
até à universidade.
Considerando a construção histórico-relexiva que
pretendemos desenvolver, conceitos sobre ensino supe-
rior, universidade, gratuidade de acesso à educação supe-
rior, interiorização de universidades, entre outros temas
correlatos, tornarão possível uma melhor compreensão
sobre a constituição e inluências da universidade pública
no Brasil, no tocante à relexão e enfrentamento às diver-

16
sas questões que envolvem exclusões de todas as ordens.
O nosso objetivo envolve a realização de uma (re)
leitura histórica sobre a constituição e reinvenção da uni-
versidade pública em nosso país, destacando, entre outras
coisas, a inluência de intelectuais importantes, os quais
representam marcos essenciais para a história da educação
brasileira, sobretudo no que se refere à educação superior
e à universidade pública.
Como já foi destacado anteriormente, nomes como o
de Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes serão fundamen-
tais para sustentar a nossa relexão sobre a perspectiva de
se pensar a universidade, a partir do seu potencial de infe-
rência e de pensamento sobre as demandas da sociedade,
sobretudo, possibilitando a aproximação, que defendemos
necessária, entre os conhecimentos que são construídos
dentro dos muros das universidades e as exigências sociais
– que mobilizam tais conhecimentos – cada vez mais dinâ-
micas e desaiadoras e que emergem fora dos seus muros.
Além das questões já apontadas, buscaremos pensar,
também, sobre a importância do desenvolvimento do pen-
samento nacionalista, no âmbito das universidades. O que
pudemos constatar, observando o histórico da universida-
de em nosso país, bem como na América Latina, é a gran-
de importância das inluências – para não dizer dominação
– dos modelos do exterior, principalmente os europeus e
os norte-americanos. Estas relexões serão oportunas, pois
possibilitarão pensarmos sobre o julgo colonizador ao qual
às universidades latino-americanas e brasileiras ainda hoje
carregam, e, consequentemente reproduzem.

17
Estes modelos, além de ditarem, em muito, o modus
operandi da dinâmica universitária, interferem diretamente
na estrutura de interesse cientíico e de conhecimento de-
senvolvido pelas universidades, manipulando efetivamen-
te toda a estrutura social, cultural e econômica da socie-
dade. Como consequência disso, o modelo hegemônico de
dominação, baseado na igura daqueles que não pertencem
ao hall da diversidade se fortalece.

Fundamentação Teórica
Diante de todas as provocações que trouxemos ante-
riormente, faz-se necessário traçar um delineamento que
possibilite aprofundarmos as questões aqui apresentadas.
Desse modo, é fundamental começar trazendo breves da-
dos sobre a história e o papel da universidade, inclusive
problematizando as conceituações que a acompanharam
ao longo do tempo e da sua consolidação.
Criadas com a inalidade de gerar uma elite aristo-
crática e, posteriormente complementada por uma elite
de mérito, as primeiras universidades surgiram na Idade
Média, decorrentes dos studia generalia1. Elas se caracte-
rizavam pelo seu caráter conservador, pelos longos cursos,
estudos e polêmicas, principalmente em torno da Teolo-
gia, pelo regime de internato, pelo espírito universalista do
professorado italiano, pelas aulas orais e pelas defesas de
teses ao término dos estudos.
Algumas fontes sugerem que o termo universidade
1 Lugares onde estudantes de várias partes do mundo frequentavam
para estudar e a partir disso receber concessões, benefícios e privilégios do
papa, do rei ou do imperador.

18
(universitas) nasceu a partir de sociedades corporativas
escolásticas2, possivelmente no decorrer do século XIV.
O termo assume o sentido de uma comunidade de profes-
sores e alunos, tendo a sua existência corporativa condi-
cionada ao reconhecimento da autoridade eclesiástica ou
civil.
Durante séculos as universidades foram se expan-
dindo em território Europeu. Ao passo que se multiplica-
vam fazia-se necessário adaptarem-se ao desenvolvimen-
to social e econômico de cada nação. Elas sofreram várias
transformações, pois precisavam adaptar-se a novas con-
dições econômicas e sociais impostas pela realidade, con-
dições que tencionavam o modo pelo qual sua organização
se constituía (LEOPOLDO E SILVA, 2006). Um de vários
exemplos que poderíamos destacar desta adaptação decor-
re da revolução industrial e da consolidação do modelo de
produção capitalista, situação que fez emergir e exigir a
necessidade do desenvolvimento de especializações que
se ajustassem à nova divisão social do trabalho.
Com a grande disseminação de ideias liberais, as
universidades passam a buscar a integração entre ensi-
no e pesquisa, dando origem a uma nova coniguração e
estrutura. Originalmente pensadas para atender e formar
os ilhos da burguesia, serão aos poucos pressionadas a
atender aos reclames da classe média e transformam-se
em lugares apropriados para a concessão da permissão do
exercício das proissões, através do reconhecimento de di-
plomas e títulos conferidos pelos órgãos governamentais
2 A Escolástica está relacionada ao pensamento cristão da Idade Mé-
dia. Baseia-se na tentativa de conciliar a racionalidade à verdade revelada,
como concebe a fé cristã.

19
e de classes.
Segundo nos aponta Wanderley (2003), na Améri-
ca Latina o sistema universitário se estabeleceu, a partir
do início do século XVI, com universidades no México,
Cuba, Guatemala, Chile, Peru, Argentina, etc. Trazido pe-
los espanhóis, tinha para a sua formação contribuições im-
portantes nos campos da arte e literatura, principalmente
nos séculos XVI e XVII. Entretanto, com a força oriun-
da da Inquisição, a universidade latino-americana sofreu
grandes repercussões, principalmente no que se refere à
dominação das instituições pelo clero, obscurecendo a
ciência moderna. Porém, com o posterior enfraquecimen-
to da Inquisição e com a reorganização social pós-revolu-
ções de independências, as universidades da América La-
tina passaram a adotar o modelo universitário francês, que
estabelecia a existência de faculdades para cada proissão,
diplomando os alunos para o exercício proissional, além
de outorgar títulos e qualiicações, reconhecidos pelos go-
vernos.
É importante destacar que na história das
universidades na América Latina, elas serviram como locais
apropriados para a formação educacional das elites dos
países desta região, garantido a inserção e o acesso destas
mesmas elites aos postos políticos e burocráticos. Soam
com familiaridade situações dessa natureza, ainda nos dias
atuais, onde acompanhamos, seja através de excertos da
história, seja através de uma avaliação mais empírica da
conjuntura atual da política e economia dos países latino-
americanos, o favorecimento e maiores garantias de
ingresso, tanto para a formação educacional universitária,

20
quanto para o acesso aos cargos mais elevados da política
e do empresariado, daqueles pertencentes à classe social e
econômica dominante.
No século presente o que acompanhamos foi a pe-
netração, em todas as áreas, mas, sobretudo nas ciências
exatas, das inluências norte-americanas no âmbito das
universidades latino-americanas, inclusive na brasileira,
graças ao caráter e peril tecnocrático e positivista dos Es-
tados Unidos.
Diante de tudo o que já expusemos até agora, não
podemos deixar de registrar que muitas lutas foram tra-
vadas em função da (re)signiicação e (re)estruturação da
universidade na América Latina. O açulamento do mo-
vimento estudantil, da classe média e de alguns intelec-
tuais, decorrente da insatisfação dos modelos opressores
e, sobretudo, excludentes da universidade, provocaram
importantes mobilizações em função de reformas na uni-
versidade latino-americana. Uma das mais importantes re-
formas universitárias, que inclusive, serviu de inspiração
para muitas outras iniciativas foi a ocorrida em Córdoba,
na Argentina, em 1918.

El Movimiento de Córdoba, que se inició en ju-


nio de 1918, fue la primera confrontación entre
una sociedad que comenzaba a experimentar cam-
bios en su composición social y una Universidad
enquistada en esquemas obsoletos.[...] La impor-
tancia de este Movimiento es tal, que varios estu-
diosos de la problemática universitaria latinoame-
ricana sostienen que ésta no puede ser entendida,
en su verdadera naturaleza y complejidad, sin un
análisis de lo que signiica la Reforma de Córdo-
ba. Con ella entroncan, por cierto, de un modo u

21
otro, todos los esfuerzos de Reforma Universitaria
que buscan la transformación de nuestras Casas
de Estudios por la vía de originalidad latinoame-
ricana que Córdoba inauguro. (TÜNNERMANN
BERNHEIM, 2008, p. 40).

Como destacado, Córdoba representou um marco


importante de luta da classe média pela garantia do ensino
universitário e da conquista da hegemonia, no que se re-
fere à direção da sociedade civil. Dentre os seus objetivos
estava a reinvindicação por maior democratização interna
e autonomia frente ao Estado. Apesar de não ter alcançado
todos os seus objetivos, considerando o amadorismo polí-
tico inicial, a reforma possibilitou, com o passar do tempo
e com o fortalecimento do movimento, a criação da pri-
meira universidade nova da América Latina, ascendendo
para outras cidades argentinas, até inalmente ser derruba-
da por ditaduras (TÜNNERMANN BERNHEIM, 1998).
Entretanto, a semente plantada em Córdoba atraves-
sou as fronteiras e inluenciou muitas reformas universitá-
rias na América Latina, fortaleceu vozes de lutas e resis-
tências, que buscavam por melhores condições de ensino,
de educação, de democratização, de consciência naciona-
lista e de participação política, entre outras coisas. Não
parece demais airmar que na América Latina, a univer-
sidade serviu, a partir das reformas universitárias, como
reduto político das classes médias.

[...] A reforma universitária constituiu-se na maior


escola ideológica para os setores avançados da pe-
quena burguesia, no espaço de onde se recrutam
de modo frequente as contra-elites que frequenta-
ram as oligarquias [...] (WANDERLEY, 2003, p.

22
26).

No Brasil, o sistema universitário implantado se deu


por meio de muita fragmentação, através de escolas de en-
sino superior. Só apenas em 1920 é que foi criada a pri-
meira universidade do país, sediada no Rio de Janeiro, mas
que nunca foi concretizada, mesmo oferecendo importan-
tes inovações e desenvolvimentos (FÁVERO, 2006). Sob
forte inluência das reformas universitárias ocorridas na
América Latina, o Brasil, a partir da década de 1930, vai
consolidando as raízes para a sua reforma universitária,
concretizada em 1968, a qual foi muito inluenciada pelo
sistema norte-americano, principalmente no que se refe-
rem aos objetivos, métodos e técnicas.
A história da universidade brasileira tem uma ca-
racterística importante, a de importar teorias, métodos e
técnicas do exterior. Esse fenômeno parece suscitar uma
tendência que sempre se atualiza, referente à despolitiza-
ção da universidade, ao passo que valoriza o pensamento
tecnocrático e a reforma curricular e de programas, inspi-
rados em modelos norte-americanos, os quais valorizam
mais a análise quantitativa do que a qualitativa.
Também no Brasil, muitas lutas foram travadas em
função da reforma universitária de 1968 e dos desdobra-
mentos ocorridos posteriormente. Muitos intelectuais da
época contribuíram para que a reforma fosse possível, mas
também, para problematizar seu desenvolvimento, consi-
derando que o processo de ditadura militar em nosso país,
estabeleceu muitos impeditivos para maiores avanços e
democratização do ensino superior e da universidade.

23
Uma das iguras de maior relevância neste processo
foi Darcy Ribeiro. Educador, etnólogo, romancista, polí-
tico, entre outras categorizações que poderíamos destacar
em relação a sua obra e a sua prática. Podemos segura-
mente airmar que ele representou um marco importante
de conquistas, no que se refere ao campo educacional bra-
sileiro, inluenciando, também, o pensamento latino-ame-
ricano. Nascido no dia 26 de outubro de 1922, em Mon-
tes Claros, Minas Gerais, dedica-se, desde muito cedo, ao
estudo das Ciências Sociais, assumindo posteriormente,
sob inluência do seu mestre Anísio Teixeira3, o papel de
educador, o que acabou por torná-lo o primeiro reitor da
Universidade de Brasília. Entre muitas das suas conquis-
tas, podemos destacar a elaboração da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – LDB –, sancionada em 20
de dezembro de 1996, conhecida como Lei Darcy Ribeiro.
Ao lado de Leopoldo Zea4 e de vários pensadores
humanistas de sua época, Darcy Ribeiro acreditava que um
projeto universitário, isto é, um projeto educacional seria
capaz de confrontar as ideologias elitistas. Contudo, para
este confronto, fazia-se necessário, a reboque, visibilizar

3 Educador nascido em 1900 e falecido em 1971. Defendia a relação


da educação com a democracia como condições essenciais de emancipação
social. Para ele a educação era um direito de todas e de todos e não um privi-
légio. Em sua obra podemos perceber a tentativa de reconstrução da escola, da
educação e da educação do Brasil. Sua atuação enquanto professor universitá-
rio inluenciou muitos jovens da época, inclusive Darcy Ribeiro, a quem nos
dedicaremos mais adiante.
4 Pensador mexicano, nascido em 1912 e falecido em 2004. Seu
principal projeto seria o de estabelecer uma ilosoia da história da América
Latina possibilitando o resgate do passado e fortalecendo a história dos povos
originários.

24
e valorizar a cultura da América Latina, nesta época, já
compreendida como a fusão de múltiplas culturas. Desde
1960 Darcy apontava que qualquer que fosse o modelo ou
projeto político, cultural e socioeconômico, ele só seria
genuíno, se nascesse da própria realidade latino-americana.
Se suscitasse uma ilosoia que lhe fosse própria, que
corporiicasse as experiências e as características do lugar
de onde eram produzidas (ROGGE, 2010).
Darcy Ribeiro defendia uma universidade gratuita
para todos e com potencial de modiicar a realidade social.
Ele a compreendia como engrenagem de desenvolvimento
nas sociedades, creditando à autonomia e à utopia os ele-
mentos essenciais para a ressigniicação da identidade e
do papel da universidade.
Intelectual preocupado com a universidade reconhe-
cia a importância de que ela fosse relexiva, no sentido de
ser capaz de colaborar para a emancipação social e nacio-
nal, inclusive, oferecendo condições para o enfrentamen-
to dos desaios da sociedade. Em “A universidade neces-
sária” (RIBEIRO, 1978), uma das suas mais importantes
obras, ele defende que a democratização e o diálogo são
os caminhos mais seguros e efetivos para a ressigniicação
e consolidação de uma universidade relexiva, e, portanto,
necessária, capaz de superar a lógica colonial a qual foi,
historicamente, submetida.

Para Darcy Ribeiro, a “universidade necessária”


deve dominar o saber moderno até mesmo para
atentar a seus paradoxos e à colonialidade nele
contida. Apenas pelo auto conhecimento um povo
galga seu desenvolvimento. (RIBEIRO, 2014,
p.161).

25
Outro pensador que contribuiu de maneira efeti-
va para a construção de novas possibilidades de pensar
e fazer em educação no Brasil foi Florestan Fernandes.
Ele compreendia o papel do professor para além das con-
ceituações tradicionais, defendia o professor como sendo
educador, igura capaz de converter a educação sistêmi-
ca em poderoso instrumento do progresso social, aquele,
consciente da prática que pratica, com clara compreensão
do seu papel de formular conceitos de elevada signiicação
para o conhecimento dos fenômenos educativos, um for-
mador de homens (SAVIANI, 1996).
Florestan defendia que o papel de elementos políti-
cos, no que tange aos raciocínios, às opções e às inluên-
cias dos educadores deveria ser reexaminado, principal-
mente em relação à sociedade moderna de massas e às
condições da vida social. Considerava que os educadores
do passado haviam vivenciado uma prática educacional
mais limitada, no que pese o reduzido número de convic-
ções, geralmente baseadas nas normas cívicas da sua épo-
ca. Contudo, para se pensar em termos de uma educação
democrática é preciso levar em consideração que todas as
pessoas tenham acesso a ela (WEYH, 2010). Para o desen-
volvimento da democracia faz-se oportuno deixá-la livre,
sem amarras, pois do contrário, ela se torna condicionada a
interesses escusos e particulares de governos e/ou classes
sociais, comprometendo, portanto, a organização, integra-
ção e expansão de uma estrutura social igualitária. Desse
modo, uma nova realidade social exige novas convicções,
exige novas educadoras e novos educadores.
Esta discussão leva-nos a reletir sobre a atual rea-

26
lidade do nosso país. Já em meados da década de 1970,
Florestan demonstrava a importância da liberdade de pen-
samento e convicções das educadoras e educadores, ele
acreditava ser possível mudar a realidade educacional e
consequentemente a realidade social e de um país, por
meio da democratização do pensamento e do reconheci-
mento do poder oriundo dela.
Mais de quarenta anos depois e ainda somos assalta-
dos com propostas parlamentares que retrocedem a ques-
tões já confrontadas por Florestan Fernandes, por Darcy
Ribeiro e por tantos outros pensadores latino-americanos
da época. Um exemplo que podemos citar refere-se ao
projeto de lei 867/2015 que prevê a inclusão do “Progra-
ma Escola sem Partido”, nas diretrizes e bases da educa-
ção nacional. Esta proposta busca limitar o exercício do-
cente, no sentido de que não haja “doutrinação” política
ou ideológica nas escolas, situação exposta na PL como
sendo práxis da educação brasileira nos últimos 20 ou 30
anos. Importante destacar que mesmo aludindo a aspectos
democráticos, a proposta parece cercear muito mais os
direitos da educadora e do educador, do que “libertar” as/
os estudantes da inluência “doutrinadora” de professoras
e professores.
O que vemos diante de proposições dessa ordem é
que a atual sociedade e, sobretudo, a escola, ainda evocam
ranços coloniais e ditatoriais, o que acaba por ferir profun-
damente a democracia, que, nessa lógica parece atender
apenas a interesses restritos, bem como, aos interesses de
grupo sociais dominantes. Para Florestan, mesmo fundan-
do-se em valores democráticos, a escola ainda funciona

27
segundo interesses pré ou antidemocráticos. Nesse senti-
do, ele aponta, aludindo a estudos de outros especialistas,
que a “tal” democracia na educação provoca “dilemas”
(FERNANDES, 1974). Estes dilemas, defende, exprimem
muito mais a posição do indivíduo em termos econômi-
cos, ocupacionais e de poder, do que pelas suas aptidões
pessoais. O que se vê, portanto, é a defesa de interesses
particulares e a compreensão de uma democracia da classe
dominante que constrói a escola e a educação conforme as
suas intenções.

[...] A escola é uma produção do homem. Ela pode


ser explorada de várias maneiras. A questão que se
coloca diante de nós consiste em saber se preten-
demos utilizá-la para instituir no Brasil um novo
tipo de civilização. (FERNANDES, 1975, p.68).

Florestan Fernandes, também se preocupou com as


questões relacionadas ao ensino superior e à universidade.
Fervoroso analista da reforma universitária brasileira, de-
senvolveu críticas importantes sobre o percurso do ensino
superior em nosso país. Segundo ele, as históricas inluên-
cias europeias, izeram do Brasil um herdeiro da coloniza-
ção portuguesa e dos baixos níveis de ambição educacio-
nal, bem como da propensão em barrar a democratização
do ensino e a compreensão de que o ensino superior é pri-
vilégio destinado aos ilhos das classes abastadas.
Com o mesmo ainco com que defendia a educação
escolar, Florestan defendeu a educação superior. Para ele,
a universidade deveria ser compreendida como a referên-
cia fundamental, no que se refere à sua integração e à sua
multifuncionalidade. Esta conceituação deu-se, fundamen-

28
talmente pela necessidade percebida à época, de expandir
o acesso ao ensino superior. Desse modo, a universidade
deveria oferecer maior possibilidade de ingresso, inclusi-
ve das camadas sociais menos abastadas, tornando-se uma
universidade de massa. “[...] A universidade moderna não
se organiza para pequenos números. [...]” (FERNANDES,
1975, p.72).
As muitas contribuições desenvolvidas por Flores-
tan Fernandes, no que concerne ao campo educacional,
seja ele escolar ou universitário, possibilitaram a supera-
ção de vários pensamentos e práticas ao longo do tem-
po. No que pese à educação superior, ele propõe superar a
compreensão “naturalizada” de que o ensino superior es-
taria no campo das capacidades transcendentais, ele busca
extrapolar o entendimento do acesso à universidade como
um “dom”, ou mesmo como privilégio de poucos. Para ele
o acesso e ampliação do ensino superior constituía uma
necessidade social fundamental.
Nesta perspectiva e, sobretudo, na tentativa de com-
preender de maneira mais horizontalizada a tradição in-
telectual brasileira, principalmente para reletir sobre os
embargos oriundos dela, Florestan aponta para algumas
características que interferiram na história da intelectuali-
dade do nosso país, ele dizia que nossa tradição não prevê
a formação intelectual autossuiciente, o que ocorre é o
desenvolvimento de dependência do aluno em função da
igura do professor e uma lógica de ensino técnico-prois-
sional que limita a autonomia do aluno, não o incentivan-
do a trabalhar sozinho ou sob supervisão. Uma outra situa-
ção não menos importante está relacionada à escassez de

29
recursos humanos brasileiros, o que concorre para a busca
constante de intelectuais estrangeiros. E, inalmente, as
condições peculiares, principalmente econômicas e so-
ciais do Brasil não favorecem a dedicação exclusiva para
o estudo cientíico e pesquisa, desse modo o aluno sente
maiores diiculdade de acesso e de se manter na univer-
sidade. No tocante à pós-graduação, Florestan Fernandes
defendia a disponibilização de inanciamento que pudesse
incentivar e garantir a permanência dos alunos em tempo
integral, na universidade.
No que se refere à reforma universitária, Florestan
acreditava que para uma verdadeira reforma seria neces-
sária uma revolução cultural e educacional, pois as pri-
meiras iniciativas resultantes de reforma universitária no
Brasil, como por exemplo, a criação da Universidade de
Brasília, mesmo representando um avanço neste campo,
ainda era incipiente para a emancipação e expansão do
ensino superior no país. Fazia-se necessário reorganizar
a universidade superando a lógica das escolas superiores,
caracterizadas pela dominação de práticas tecnicistas e da
dominação de professores catedráticos. Em sua obra “A
universidade brasileira: reforma ou revolução?” ele diz:

[...] nunca se chegará a uma universidade inte-


grada e multifuncional sem liquidar o padrão
brasileiro de escola superior e, com ele, o poder
irresponsável e ilimitado do professor catedrático.
(FERNANDES, 1975, p.70).

Ao longo de suas trajetórias Darcy Ribeiro e Flo-


restan Fernandes dedicaram-se a oferecer melhores con-
dições para se pensar a educação do e no nosso país, em

30
todos os seus níveis. Fiéis à causa da democratização edu-
cacional construíram teorias riquíssimas, que inluencia-
ram e ainda continuam inluenciando estudiosas e estu-
diosos do mundo inteiro, mas principalmente da América
Latina e do Brasil.

Tessituras Analíticas
Como pudemos perceber, foram muitas as contribui-
ções que personagens como Florestan Fernandes e Dar-
cy Ribeiro, entre tantos outros, desenvolveram em nosso
país, no sentido de problematizar a possibilidade de for-
mas mais eicientes e democráticas de acesso à educação
de qualidade, de oferta gratuita e ampliada para todas as
pessoas brasileiras.
Da tessitura que fazemos em torno das obras destes
autores, destacamos o papel educativo e político com que
lutaram para possibilitar uma educação que mesmo com
as suas fragilidades, possibilita condições e ressigniica-
ções de práticas e de espaços educacionais e políticos. A
democracia defendida por Darcy Ribeiro parece exercer a
mesma força daquela confrontada por Florestan Fernan-
des, ainal, é na vivência, problematização e ressigniica-
ção dela que o país vai se construindo, a passos, às vezes
largos, mas sempre titubeantes.
Este resgate histórico e por vezes conceitual nos pro-
voca a repensar a atual conjuntura política educacional do
nosso país, principalmente no que se refere à universidade
brasileira. São relexões importantes, essencialmente por-
que as realidades sociais atuais exigem novas perspectivas

31
e a universidade precisa, para além da reforma universitá-
ria, ocorrida há mais de 50 anos, reconhecer a diversidade
de todos os elementos culturais existentes na sociedade e
pertencentes ao espaço acadêmico.
Tanto Florestan Fernandes como Darcy Ribeiro,
estiveram muito além do seu tempo. A perspectiva de se
pensar na diversidade cultural, de crença, de orientação
sexual, de negritude, de etnia, entre tantas outras coisas,
parece contemplada através das contribuições e relexões
destes dois pensadores. É clara em suas obras a ausência
de discursos de exclusão, pelo contrário, a defesa pela am-
pliação e expansão do ensino, sobretudo o ensino superior,
revela a preocupação, mas, acima de tudo, o anseio por
uma universidade de acesso gratuito e massivo.
Estas relexões nos fazem lembrar e destacar a im-
portância dessa ampliação e expansão. Somos testemu-
nhas do poder da universidade, no que tange ao impacto
social que ela provoca, principalmente quando do proces-
so de interiorização das universidades públicas, sobretudo
as federais, vivenciadas a partir da primeira metade dos
anos 2000, e que se estendeu por mais de uma década,
levando ensino superior de qualidade e gratuito para gran-
des massas populacionais. Mas é preciso atentar para os
diversos desaios existentes neste contexto, pois ainda ve-
mos muitos grupos que tencionam em favor de pressupos-
tos tradicionais, tecnicistas e elitistas, ameaçando inverter
a lógica de uma política de acesso a todas as pessoas, para
uma que defende uma suposta “democracia”, que só bene-
icia a poucos.

32
(In)Conclusões
Concluímos apontando para a importância do resga-
te histórico em torno das lutas e conquistas da universida-
de no que concerne às experiências do Brasil e da América
Latina. As reformas universitárias representaram marcos
estruturante e fundamental para as novas convicções, prá-
ticas e discursos vivenciados até hoje.
Sob o amparo e preocupação de muitas pensadoras e
pensadores, a educação brasileira e latino-americana pôde
trilhar em direção a ressigniicações e conquistas nunca
antes vivenciadas. A ampliação e expansão da interioriza-
ção das universidades é um exemplo dessa nova possibili-
dade de pensar e encarar a universidade.
Muito ainda temos a conquistar. Os legados deixa-
dos por Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes, tanto como
educadores, quanto como políticos, ainda reverberam atra-
vés de mentes mais revolucionárias e cônscias do poder
emancipador que deve emergir da educação, e, sobretudo
das universidades. A democracia educacional pensada por
estes autores deve ser democracia de fato e não aquela na-
turalizada como pertencente a uma classe dominante que
se estabelece como merecedora das benesses democráti-
cas limitadas.
Que todas as vozes latino-americanas que gritaram
em favor da liberdade e do acesso aos direitos fundamen-
tais sejam ouvidas por longas datas. Que possamos ver
brilhar novas luzes e dias melhores cheguem com promes-
sas que concorram para uma educação menos limitadora,
uma sociedade menos excludente, um povo mais cônscio

33
de sua diversidade e da riqueza de suas diferenças, de um
país que defenda seu povo de todo e qualquer golpe e de
uma universidade cada vez mais inclusiva, revolucionária,
problematizadora, integrada e multifuncional.

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Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010, 313-327.

35
A UNIVERSIDADE PÚBLICA NO PENSAMENTO
DE DARCY RIBEIRO E FLORESTAN FERNAN-
DES
Émerson Silva Santos. Bacharel em Administração Pública (UFRPE/2015).
Especialista em Administração Pública (UCAM/2016). Discente do Mestrado
em Educação Contemporânea na Universidade Federal de Pernambuco/Cam-
pus Acadêmico do Agreste. Emersonssantos1@gmail.com.

Resumo
O processo de criação de novas universidades públicas no Brasil e a
ampliação do número de vagas no ensino superior público, a partir do
ano de 2003 têm atraído pesquisadores/as, a realizarem uma relexão a
respeito dessas instituições. Nessa direção e considerando as contribui-
ções das epistemologias do sul, este ensaio tem por objetivo apresen-
tar as concepções de Universidade Pública presentes no pensamento
de Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes. No percurso metodológico
adotado para alcançar este objetivo, optou pela abordagem de pesquisa
qualitativa, por meio de um estudo exploratório e bibliográico, a aná-
lise de conteúdo foi adotada como perspectiva analítica. Observamos
que guardadas algumas singularidades, os autores têm concepções de
Universidades como instituições produtoras de cultura, ciência e tecno-
logia; fundamentais para o progresso econômico e social do país; indis-
pensáveis na busca pela superação das desigualdades sociais; e capazes
de realizar uma formação que possibilite aos/às estudantes uma visão
crítica da realidade.
Palavras-chaves: Universidade. Darcy Ribeiro. Florestan Fernandes

Introdução

36
Nos últimos anos o Brasil vivenciou uma amplia-
ção do número de universidades e consequentemente a
ampliação do número de vagas, possibilitando o acesso
de setores sociais da população brasileira, historicamen-
te excluídos, ao ensino superior. De 2003 até 2014 foram
criadas 422 escolas técnicas, 18 universidades federais e
173 novos campi universitários, em sua ampla maioria no
interior.
Essa ampliação do número de universidades e esco-
las técnicas federais se deu, em grande medida, a partir do
REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e
Expansão das Universidade Federais), instituído através
do Decreto nº. 6.096, de 24 de abril de 2007. Este Decreto
airma:

§ 1º O Programa tem como meta global a elevação


gradual da taxa de conclusão média dos cursos
de graduação presenciais para noventa por cento
e da relação de alunos de graduação em cursos
presenciais por professor para dezoito, ao inal de
cinco anos, a contar do início de cada plano.

[...]

Art. 2o O Programa terá as seguintes diretrizes:

I - redução das taxas de evasão, ocupação de vagas


ociosas e aumento de vagas de ingresso, especial-
mente no período noturno;

II - ampliação da mobilidade estudantil, com a


implantação de regimes curriculares e sistemas de
títulos que possibilitem a construção de itinerários
formativos, mediante o aproveitamento de crédi-
tos e a circulação de estudantes entre instituições,
cursos e programas de educação superior;

37
III - revisão da estrutura acadêmica, com reorga-
nização dos cursos de graduação e atualização de
metodologias de ensino-aprendizagem, buscando
a constante elevação da qualidade;

IV - diversiicação das modalidades de graduação,


preferencialmente não voltadas à proissionaliza-
ção precoce e especializada;

V - ampliação de políticas de inclusão e assistên-


cia estudantil; e

VI - articulação da graduação com a pós-gradua-


ção e da educação superior com a educação bá-
sica.

Em que pese as críticas existentes ao REUNI, como


a meta de duplicação da oferta de vagas e aumentar, pelo
menos em 50%, o número de concluintes, a partir de um
incremento de apenas 20% das atuais verbas de custeio
e pessoal, nos seus cinco anos de vigência, este progra-
ma possibilitou a criação de novas universidades e novos
campus universitários justamente naquelas regiões em que
apenas ou sequer existiam faculdades privadas.
A missão inal da Universidade é desempenhar um
papel protagonista na formação dos/as cidadãos/ãs, in-
luenciando diretamente suas escolhas proissionais, po-
líticas e pessoais. Por essa razão, tem uma função fun-
damental na formação de pessoas, podendo inluenciar
diretamente os rumos proissionais dos/as indivíduos/as e
suas concepções de mundo.
Além disso, na compreensão de Melo et al (2009),
o ensino superior e as universidades contribuem para a
renovação social, tendo em vista que as universidades ao

38
assumirem seu papel podem se transformar em vetores para
concretização das mudanças sociais, como a superação da
pobreza, das desigualdades e das opressões.
Assim, com a ampliação das vagas e do acesso às
universidades, cabem algumas ponderações no sentido de
inferir questionamentos sobre qual o papel da universida-
de em nosso tempo, quais são seus objetivos, por quem a
universidade tem sido ocupada, como se dá sua organi-
zação interna e a que interesses servem essas universida-
des. Na compreensão de Boaventura de Sousa Santos, a
universidade vive uma crise de hegemonia, legitimidade e
institucional, segundo o autor:

A universidade sofre uma crise de hegemonia na


medida em que a sua incapacidade para desem-
penhar cabalmente funções contraditórias leva
os grupos sociais mais atingidos pelo seu déice
funcional ou o Estado em nome deles a procurar
meios alternativos de atingir os seus objetivos.
(...) A universidade sofre uma crise de legitimida-
de na medida em que se torna socialmente visível
a falência dos objectivos colectivos assumidos.
(...) A universidade sofre uma crise institucional
na medida em que a sua especiicidade organiza-
tiva é posta em causa e se lhe pretende impor mo-
delos organizativos vigentes noutras instituições
tidas por mais eicientes (SANTOS, 1995, p. 190).

Nessa direção, partindo das relexões provocadas


pelas contribuições da obra “Epistemologias do Sul”
(SANTOS; MENESES, 2010), que aponta a necessidade
de também haver uma valorização de epistemologias di-
ferentes daquelas do norte global, este trabalho se propõe
a responder a seguinte pergunta: quais as concepções de

39
Universidade presentes no pensamento de Darcy Ribeiro
e Florestan Fernandes?
Reletir sobre a Universidade a partir das constru-
ções teóricas de dois autores latino-americanos e brasi-
leiros, como Darcy Ribeiro e Florestam Fernandes, pode
nos ajudar a pensar qual o modelo de universidade que
serve à nossa realidade brasileira e latino-americana. Pre-
tendemos, assim, responder ao objetivo deste trabalho que
é apresentar as concepções de Universidade Pública pre-
sentes no pensamento de Darcy Ribeiro e Florestan Fer-
nandes.

Discussão Teórica
As produções de qualquer pesquisador/a são inluen-
ciadas por uma série de fatores que perpassam o período
histórico em que o/a autor/a viveu, sua formação, suas re-
lações com outras pessoas, seus interesses e compromis-
sos. Nesse sentido, antes de apresentar uma discussão teó-
rica propriamente dita, faremos uma breve apresentação
da trajetória de vida destes dois grandes pesquisadores
latino-americanos, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes.
De acordo com Rogge (2010), escrever sobre o mes-
tre Darcy Ribeiro é um desaio, dada a quantidade de pa-
péis sociais que o mesmo exerceu. Ao longo de sua vida,
Darcy desempenhou os papéis de etnólogo, educador, en-
saísta, romancista e político.

Nascido em Montes Claros, Minas Gerais, em


26 de outubro de 1992, graduou-se em Ciências
Sociais pela Escola de Sociologia Política de São

40
Paulo, em 1946, realizando pesquisas etnológicas
no Pantanal e na Amazônia. A partir de meados da
década seguinte, tendo como mestre Anísio Tei-
xeira, Darcy veste a pele de educador, e acaba por
ser o fundador e primeiro reitor da Universidade
de Brasília, durante o governo Juscelino Kubits-
chek, o que o leva ao Ministério da Educação e
da Casa Civil, durante o governo João Goulart,
entre 1961 e 1964. Com o golpe militar, até 1979,
vive exilado em vários países latino-americanos
e europeus, tendo então produzido a maior par-
te de sua obra. Uruguai, Venezuela, Chile, Peru,
em todos esses cantos da América Latira Darcy
deixou sua marca. De volta ao Brasil, elegeu-se
vice-governador do estado do Rio de Janeiro em
1982, no mandato de Leonel Brizola. Foi secretá-
rio da Cultura e coordenador do Programa Espe-
cial de Educação, com o encargo de implantar 500
Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs).
Criou, nessa mesma época, a Biblioteca Pública
Estadual, a Casa França-Brasil, a Casa Laura Al-
vim, o Centro Infantil de Cultura de Ipanema e
o Sambódromo. Em 1990, foi eleito senador da
República. Faleceu em 17 de fevereiro de 1997,
logo após inalizar sua obra maior, O povo brasi-
leiro (ROGGE, 2010, p.347, grifos do original).

Darcy Ribeiro tinha uma forte relação com a Améri-


ca Latina, a educação e sobretudo com a universidade. En-
tre sua vasta produção encontramos obras que centram seu
olhar sobre estes temas. Além da sua produção teórica, sua
atuação priorizou a educação pública, a criação e implan-
tação de universidades e a integração latino-americana.
Discutindo sobre a concepção de um modelo de uni-
versidade, Darcy Ribeiro airmou que:

O modelo de universidade buscado será também

41
utópico no sentido de antecipar, conceitualmen-
te, as universidades do futuro, conigurando-se
como meta a ser alcançada um dia, em qualquer
sociedade. Proceder doutro modo seria construir
um modelo de universidade para nações subde-
senvolvidas que seria, também, uma universidade
subdesenvolvida, embora destinada a instrumen-
tar a luta contra o atraso. E isto exige que o mo-
delo proposto seja, por um lado, um padrão ideal
e válido em qualquer situação; e, por outro lado,
que possa ser um projeto aberto à revisão para
poder ser apresentado em cada momento como o
objetivo a dar sentido e justiicação aos diversos
projetos concretos a ele tendentes, como etapas de
transição (RIBEIRO, 1969, p. 172).

Tendo uma trajetória mais ligada aos movimentos


populares, Florestan Fernandes também teve como tema
de seus estudos a integração da América Latina, a edu-
cação e a universidade. Para Weyh (2010), as obras de
Florestan Fernandes marcaram o pensamento sociológi-
co-educacional brasileiro e latino-americano, tanto pela
consistência de suas obras como também pelo seu com-
promisso com a construção de uma sociedade mais demo-
crática e igualitária.

Desde a tenra idade Fernandes conheceu as dii-


culdades que a classe trabalhadora enfrentou na
condição de categoria coletiva que luta por me-
lhores condições de trabalho e também como
subjetividade cidadã na concretização dos sonhos
de vida mais digna. Seus primeiros anos de vida
foram de extrema diiculdade. Na terceira série
do ensino fundamental abandonou a escola para
ajudar a sustentar a si e à mãe, retomando os es-
tudos aos 18 anos no curso de Madureza. Entre
os anos de 1941 e 1953 graduou-se em Ciências
Sociais e fez mestrado, doutorado e livre-docên-

42
cia na Universidade de São Paulo. [...] Fernan-
des, como docente, militante, político, socialista
de caráter humanista, construiu-se no cotidiano
das lutas dos marginalizados da sociedade brasi-
leira e latino-americana. [...] Por não se submeter
ao regime militar ditatorial, Fernandes, o pai da
sociologia crítica no Brasil e guru da juventude
estudantil, foi denunciado e preso por pregar a
subversão da ordem imposta. Na clandestinidade,
persistiu na defesa dos ideais socialistas e, com
a abertura política a partir de 1979, intensiicou
ainda mais a sua inserção nos movimentos sociais
populares. [...] Chegou ao parlamento como de-
putado da Assembleia Nacional Constituinte em
1987 na condição de defensor dos interesses das
camadas empobrecidas no tocante à escola públi-
ca, gratuita e laica. Reelegeu-se como deputado
federal em 1988 e como tal demarcou a luta em
defesa da educação (WEYH, 2010, p. 313, 314 e
315).

Como pensador e militante socialista, Fernandes


buscou referenciar seus escritos nos estudos de Marx, Le-
nin, José Martí, Anísio Teixeira, Paulo Freire, entre ou-
tros. Merece destaque a sua atuação junto aos movimentos
sociais, sendo até hoje, referência política e teórica para
diversos movimentos, entre eles o Movimentos dos Tra-
balhadores Sem-Terra (MST) que em 2005, inaugurou a
Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guara-
rema-SP (WEYH, 2010).
Fernandes (1975), entendia a Universidade como
uma instituição capaz de elevar o desenvolvimento do
país. Tendo em vista a situação econômica, política e so-
cial do Brasil na década de 1970, o autor acreditava que
esta instituição poderia contribuir para o país sair da sua
condição de subdesenvolvimento e para a redução das de-

43
sigualdades sociais vigentes. Mas para isso seria neces-
sário a concepção de um modelo de Universidade com-
prometida com a superação dos problemas do país. Nesse
sentido o autor alertava:

Não precisamos da universidade como um bem


em si, como um símbolo de progresso e de adian-
tamento cultural. Precisamos dela como um meio
para avançarmos da periferia para o núcleo dos
países que compartilham a civilização baseada na
ciência e na tecnologia cientíica (FERNANDES,
1975, p. 29).

Ao se referir à situação de periferia do Brasil, Fer-


nandes (1975) está tratando também do lugar secundário
ocupado pelo nosso país na geopolítica do conhecimento
e da ciência mundial. Assim, não bastava que nossas uni-
versidades fossem tratadas simplesmente como símbolos
de progresso, mais que isso, se fazia necessário que as uni-
versidades brasileiras alavancassem o país em termos de
produção de ciência e tecnologia.

Metodologia
Para o desenvolvimento deste ensaio utilizamos a
abordagem qualitativa (MINAYO, 2008; CRESWELL,
2007; LUDKE; ANDRÉ, 1986; GONSALVES, 2001), na
medida em que essa abordagem foi a que mais se adequou
ao objetivo deste trabalho. A abordagem qualitativa tam-
bém foi priorizada dada a sua ainidade com as pesquisas
do campo das ciências humanas e sociais, tendo em vista
que ela:

44
Responde a questões muito particulares. Ela se
ocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de rea-
lidade que não pode ou não deveria ser quantiica-
do. Ou seja, ela trabalha com o universo dos signi-
icados, dos motivos, das aspirações, das crenças,
dos valores e das atitudes. (...) O universo da pro-
dução humana que pode ser resumido no mundo
das relações, das representações e da intencionali-
dade e é objeto da pesquisa qualitativa diicilmen-
te pode ser traduzido em números e indicadores
quantitativos (MINAYO, 2008, p. 21).

Na compreensão de Creswell (2007), são caracterís-


ticas das pesquisas qualitativas a utilização de materiais e
métodos múltiplos e diversos, sua essência é interpretativa
levando em consideração o contexto sociopolítico e histó-
rico, analisa os fenômenos de maneira histórica e holística
priorizando uma visão mais ampla, o/a pesquisador/a qua-
litativo/a a adota e usa uma ou mais estratégias de inves-
tigação como um guia para os procedimentos no estudo.
Em relação ao seu objetivo, esse é um estudo do tipo
exploratório. Segundo Gonsalves, (2001, p. 65) “a pesqui-
sa exploratória é aquela que se caracteriza pelo desenvol-
vimento e esclarecimento de ideias, com o objetivo de ofe-
recer uma visão panorâmica, uma primeira aproximação a
um determinado fenômeno que é pouco explorado”. Já há
um número considerável de trabalhos que estudam o pen-
samento de Darcy Ribeiro e o pensamento de Florestan
Fernandes sobre a Universidade, mas até aqui, esses estu-
dos são realizados de forma separada, ou seja, estuda-se só
pensamento de Ribeiro ou só o pensamento de Fernandes.
Neste trabalho fazemos uma relexão entre o pensamento
destes autores.

45
Além de exploratório, este trabalho também é uma
pesquisa bibliográica. Para Antônio Carlos Gil:

A pesquisa bibliográica é desenvolvida a partir de


material já elaborado, constituído principalmente
de livros e artigos cientíicos. Embora em quase
todos os estudos seja exigido algum tipo de traba-
lho desta natureza, há pesquisas desenvolvidas ex-
clusivamente a partir de fontes bibliográicas. Par-
te dos estudos exploratórios podem ser deinidos
como pesquisas bibliográicas, assim como certo
número de pesquisas desenvolvidas a partir da
técnica de análise de conteúdo (GIL, 2008, p.50).

A coleta dos dados foi feita a partir das obras de


Darcy Ribeiro (A universidade necessária, 1969; UnB:
Invenção e Descaminho, 1978; Universidade do terceiro
milênio – plano orientador da Universidade Estadual do
Norte Fluminense, 1993) e das obras de Florestan Fernan-
des (A Universidade em uma sociedade em desenvolvi-
mento, 1966; Universidade brasileira: reforma ou revolu-
ção?, 1975; O desaio educacional; 1989).
Para o exame do material coletado e para análise e
sistematização dos dados optamos pela técnica de Análise
de Conteúdo (BARDIN, 1998; AMADO, 2000). De acor-
do com Amado (2000, p. 53) a análise de conteúdo “trata-
-se de uma técnica que procura “arrumar” num conjunto
de categorias de signiicação o conteúdo manifesto dos
mais diversos tipos de comunicações”.

Análises e Resultados: o que Darcy Ribeiro e Florestan


Fernandes nos dizem sobre a Universidade?

46
A vasta e diversiicada produção de livros, ensaios,
cessão de entrevistas e participação em documentários de
ambos os autores reservam um lugar especial para a edu-
cação e para a universidade brasileira e latino-americana.
Guardadas algumas singularidades, tanto Ribeiro quando
Fernandes pensavam a Universidade como uma institui-
ção capaz de promover o progresso da sociedade.
Algumas obras de Darcy Ribeiro (1969, 1978, 1993),
evidenciam o pensamento deste autor sobre a função da
Universidade. A sua obra A universidade necessária, pu-
blicada inicialmente em 1967, é uma síntese de um semi-
nário sobre reformas universitárias ministrado pelo autor
durante o seu exílio no Uruguai. Discorrendo sobre a crise
vivenciada pelas universidades naquele período de ditadu-
ras na América Latina, o autor expõe:

A crise de nossas universidades somente pode ser


entendida no âmbito da crise geral que divide in-
ternamente as sociedades latino-americanas, sub-
metidas a’ pressões opostas: dos que querem in-
duzi-las à atualização histórica e dos que querem
elevá-las à aceleração evolutiva. Estas pressões
se exercem sôbre tôdas as instituições, porém de
modo particularmente grave sôbre as universida-
des, dividindo seus corpos acadêmicos em grupos
contrapostos e desencadeando o terrorismo cultu-
ral sôbre as mais autênticas e eicazes (RIBEIRO,
1969, p.17).

Na compreensão de Ribeiro (1969), os regimes mili-


tares ditatoriais que se instalaram na América Latina acen-
tuaram a crise das universidades, sobretudo na medida em
que tais regimes que eram inanciados pelos Estados Uni-

47
dos da América (EUA), se submetiam aos interesses norte-
-americanos que buscaram, através das ditaduras militares
nos países da América Latina entre 1960 e 1980, afastar a
possibilidade de instalação de regimes socialistas nos paí-
ses do continente, implantar suas empresas multinacionais
para maximizar suas riquezas, entre outros interesses.

A crise estrutural instaura-se quando a sociedade


e a universidade divergem e andam em ritmos dis-
tintos, generalizando-se atitudes inconformadas
que começam a pôr em causa tudo o que antes
parecia aceito, indagando – de cada instituição e
de cada forma de conduta – se contribuem para
as coisas permanecerem como são, ou se, inversa-
mente, concorrem para que se alterem de acordo
com as novas aspirações. (RIBEIRO, 1969, p. 49).

Dentro desse contexto, reletindo agora sobre uma


universidade necessária à América Latina, o autor airma:

A Universidade de que precisamos, antes de exis-


tir como um fato no mundo das coisas deve exis-
tir como um projeto, uma utopia, no mundo das
ideias. Nossa tarefa, pois, consiste em deinir as
linhas básicas deste projeto utópico, cuja formu-
lação deverá ser suicientemente clara e atraente
para poder atuar como uma força mobilizadora na
luta pela reforma da estrutura vigente. Deverá ter,
além disto, a objetividade necessária para ser um
plano orientador dos passos concretos pelos quais
passaremos na Universidade atual à universidade
necessária. Forçosamente, este modelo utópico
será mantido muito geral e abstrato, afastando-
-se, assim, de qualquer dos projetos concretos que
possa inspirar. Só deste modo poderá satisfazer,
conjuntamente, a dois requisitos básicos: a) ser
uma guia na luta pela reestruturação de qualquer
das unidades das nações subdesenvolvidas, sem

48
o que estarão propensas a cair na espontaneidade
das ações meritórias em si mesmas mas incapazes
de somarem-se para criar a Universidade necessá-
ria e, b) poder converter-se em programas concre-
tos de ação que considerem as situações locais, as
possibilidades de cada país e, com a capacidade
de transformar a Universidade em agente de mu-
dança intencional da sociedade (RIBEIRO, 1969,
p. 168).

No trecho acima, extraído da obra de Ribeiro (1969),


é perceptível uma concepção de Universidade enquanto
agente de transformação social. Na sua compreensão as
Universidades devem atuar como forças mobilizadoras
para reforma da estrutura econômica e social desiguais.
Assim, o papel da Universidade não deve se resumir à for-
mação de mão de obra qualiicada para atender os interes-
ses do mercado.
Do mesmo modo que Darcy Ribeiro, algumas obras
do pensador latino-americano Florestan Fernandes (1966,
1975, 1989) também evidenciam a concepção deste últi-
mo, sobre o papel da universidade enquanto instituição
que deve centrar sua atenção no desenvolvimento da na-
ção e na superação das desigualdades sociais. Discutindo
sobre a crise e os problemas vivenciados pelas universida-
des na década de 1960, o autor expõe:

Embora a intensidade dos sucessos e dos malo-


gros marcantes sejam variáveis, todos os países
se defrontaram com dilemas educacionais muito
parecidos e com problemas universitários análo-
gos [...] os modelos institucionais vigentes, par-
ticularmente no setor educacional e com respeito
ao ensino universitário, possuem as mesmas ori-
gens e sofrem os mesmos percalços. Extraídos

49
inicialmente do estoque cultural ibérico, sofreram
renovações durante o ciclo de emancipação polí-
tica (...) e recebem, agora, o impacto da posição
hegemônica dos Estados Unidos. (FERNANDES,
1966, p. 145 e146).

Ampliando suas relexões sobre o papel da Univer-


sidade para a sociedade, Florestan Fernandes publicou
a obra Universidade brasileira: reforma ou revolução?.
Neste trabalho, o autor passou a apontar de forma mais
enfática os entraves do modelo de universidade até então
vigente.

Tudo se passa, pois, como se as Universidade


existissem na sociedade se não para a sociedade.
Elas não se engrenam, por falta de mecanismos
culturais adequados, como o luxo da vida, que
liga o pensamento inventivo aos processos civi-
lizatórios de crescimento autônomo da cultura
(FERNANDES, 1975, p. 204).

Assim, as críticas realizadas por Fernandes (1975)


consistiam no fato de as Universidades existirem por si
mesmas, como se estas instituições fossem criadas para
elas mesmas, não tendo nenhum compromisso com a so-
ciedade, sobretudo com os menos favorecidos e com o de-
senvolvimento econômico e social da nação.
Já na sua obra O desaio educacional, Fernandes
(1989), aponta os problemas dos acordos MEC-USAID,
realizados na conjuntura dos governos ditatoriais milita-
res. Estes acordos tinham o objetivo de reformar o ensino
brasileiro de acordo com padrões impostos pelos EUA e
tiveram forte rebatimento na organização das universida-

50
des. Na compreensão de Fernandes (1989), estes acordos
aproximaram a educação de um bem mercadológico e fo-
ram perversos para as universidades brasileiras.

O grande propósito do governo Marechal Caste-


lo Branco era implantar o modelo MEC-USAID.
Esse modelo, que corresponde no essencial ao que
deve ser formalmente a Universidade hoje, calca-
va-se em receitas norte-americanas, absorvidas
de uma missão mista e partidária de especialistas
brasileiros e norte-americanos. Quer dizer, é a
Universidade de uma colônia, a Universidade que
a metrópole aconselha que exista na colônia! Foi
muito grave que professores brasileiros tivessem
aceitado esse diálogo e muito mais grave ainda
que o governo militar adotasse como objetivo imi-
tar o poder imperial. Esse é um processo de des-
nacionalização cultural especíico, pelo qual nós
dançamos de acordo com a música que se toca no
centro e os centros decidem o que nós devemos fa-
zer, e nós fazemos (FERNANDES, 1989, p. 181).

Todavia, apesar das críticas que tecia ao modelo de


Universidade vigente no período militar, Florestan Fer-
nandes compreendia a importância desta instituição para
a sociedade e até para o reestabelecimento da democracia.
Nesse sentido, na sua condição de deputado da Assem-
bleia Nacional Constituinte, Florestan Fernandes teve um
papel de relevância na elaboração da Constituição Federal
de 1988. Destaca-se entre as proposições de sua autoria,
o Artigo 207 da nossa Carta Magna que estabeleceu: “As
universidades gozam de autonomia didático-cientíica, ad-
ministrativa e de gestão inanceira e patrimonial, e obe-
decerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão” (BRASIL, 1988).

51
É importante considerar a natureza política das
obras de Florestan Fernandes, como um pensador latino-
americano, comprometido com os interesses do seu povo,
se opondo intelectual e politicamente às importações pe-
dagógicas norte-americanas para as nossas universidades
e para o nosso sistema educacional.
Por sua vez, Ribeiro (1978) em sua obra UnB: In-
venção e Descaminho, airma que a universidade não deve
ser burocratizada e proissionalizante, uma mera reprodu-
tora de técnicas. Pois se assim for, o objetivo maior destas
instituições será o de apenas preencher as necessidades do
mercado. Nessa direção, Ribeiro (1978) acrescenta que a
universidade proissionalizante não tem capacidade criati-
va nem poder de transformação social, na medida em que
serve apenas como instrumento de manutenção do status
quo.
No seu texto Universidade do terceiro milênio – pla-
no orientador da Universidade Estadual do Norte Flumi-
nense, Ribeiro (1993), sistematiza de modo ainda mais
objetivo sua concepção de universidade e seu papel social:

A Universidade Estadual do Norte Fluminense –


uma universidade para o 3.º Milênio – (...) uma
instituição de cultivo das ciências e das técnicas
de alto padrão, capaz de estabelecer um constante
intercâmbio entre o saber acadêmico e os proble-
mas apresentados pela sociedade, e com a tônica
na prática experimental. Dessa forma, colocando
o conhecimento adquirido e as tecnologias desen-
volvidas a serviço da comunidade regional e do
Brasil, a UENF estará estimulando a cada dia a
pesquisa em áreas diversiicadas do saber. Estará
formando pessoas capacitadas para a reconstrução

52
da realidade brasileira, ao mesmo tempo em que
estará adquirindo domínio sobre conhecimentos
diferenciados e atualizando-se constantemente
para atender às exigências dos novos tempos (RI-
BEIRO, 1993, p.3).

Além de sua produção como intelectual, Darcy Ri-


beiro foi um dos autores da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB). Esta importante lei do sistema
educacional brasileiro instituiu que:

Art. 52. As universidades são instituições pluridis-


ciplinares de formação dos quadros proissionais
de nível superior, de pesquisa, de extensão e de
domínio e cultivo do saber humano, que se carac-
terizam por: I - produção intelectual instituciona-
lizada mediante o estudo sistemático dos temas e
problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista
cientíico e cultural, quanto regional e nacional;
II - um terço do corpo docente, pelo menos, com
titulação acadêmica de mestrado ou doutorado; III
- um terço do corpo docente em regime de tempo
integral.

Na condição de político, ocupando o cargo de Sena-


dor da República, Darcy Ribeiro também deixou eviden-
te suas concepções de como devem ser as Universidades.
Mais que uma instituição de ensino superior, para Ribeiro
as universidades são centros de produção e difusão de cul-
tura, ciência e tecnologia.

Considerações inais
Este trabalho buscou apresentar as concepções de
Universidade presentes no pensamento de Darcy Ribeiro

53
e de Florestan Fernandes. Compreendemos que em fun-
ção do seu formato e volume, não conseguimos esgotar
aqui todos os apontamentos desses dois pensadores lati-
no-americanos sobre a universidade. Entretanto, ao lon-
go deste ensaio, guardadas algumas singularidades, foi
possível notar algumas aproximações no pensamento de
Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes no que diz respeito
à Universidade. Ambos os autores apresentaram diversas
críticas ao modelo burocrático, autoritário e técnico-pro-
issionalizador das universidades brasileiras no período da
Ditadura Militar (1964-1985).
Outra aproximação que pudemos veriicar no pensa-
mento dos autores diz respeito ao papel da Universidade
no desenvolvimento do país. Para Ribeiro e Fernandes, as
Universidades devem contribuir para a elevação da pro-
dução de ciência e tecnologia, possibilitando que o Brasil
passe a integrar o grupo dos países com maior desenvolvi-
mento econômico e social.
Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes também ocu-
param papéis políticos importantes. Ambos izeram parte
do Congresso Nacional Brasileiro. A atuação de Flores-
tan como deputado da Assembleia Nacional Constituin-
te resultou na conquista da autonomia didático-cientíica,
administrativa, inanceira e patrimonial das Universidades
brasileiras, através do Artigo 207 da CF/1988. Já Darcy
Ribeiro, na condição de Senador da República, foi um dos
responsáveis pela elaboração da LDB, incluindo nesta le-
gislação uma concepção de Universidade como um espaço
de produção de conhecimento através do ensino, pesquisa
e extensão.

54
No pensamento de Darcy, as universidades formam
o andaime básico da civilização, atuando na sociedade e
a modiicando. Além disso, este autor acreditava que as
universidades poderiam auxiliar o país na direção de um
crescimento autônomo, como forma de desenvolvimento
e libertação do Terceiro Mundo. Florestan Fernandes de-
fendeu também a Universidade como uma instituição que
tinha um papel central no progresso econômico e social
do país. Fernandes foi um político e intelectual assíduo
na defesa de uma educação pública, gratuita e laica para
todos/as, principalmente para os mais excluídos e margi-
nalizados socialmente.
Assim, temos no pensamento destes dois autores,
concepções de Universidade como instituições produto-
ras de cultura, ciência e tecnologia; fundamentais para o
progresso econômico e social do país; indispensáveis na
busca pela superação das desigualdades sociais; e capazes
de realizar uma formação que possibilite aos/às estudantes
uma visão crítica da realidade.

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58
FERNANDES E FREIRE: EDUCAÇÃO E IDEOLO-
GIA EM TEMPOS DE ESCOLA SEM PARTIDO
Marcos Diego Carneiro de Freitas. Mestre em sociologia pela Universidade
Federal de Alagoas (UFAL), além de possuir especialização em programação
do ensino de história pela Universidade de Pernambuco (UPE). diegocarnei-
rof@gmail.com.

Resumo
É surpreendente as mudanças ocorridas no mundo nos últimos seis anos:
impedimento de uma presidente legitimamente eleita, radicalização e
ódio nos discursos políticos e a implantação de leis contra a liberdade
de expressão dos professores (PL 867/2015) em algumas cidades
brasileiras. É no bojo destes acontecimentos que este trabalho se presta
a ser antes de tudo um alerta, como é o pensamento pedagógico latino-
americano, contra os perigos das ideologias do capitalismo radical
(liberalismo) no campo escolar que se materializa na PL acima citada.
Quais os impactos destas ideologias para a educação e sociedade é a
questão que busco responder aqui. Assim, se aventa neste trabalho a tese
de que as teorias libertárias não possuem fundamentos epistemológicos
e são na verdade uma manifestação piorada daquilo que elas mesmas
atacam.
Palavras-chaves: Educação; Marxismo; Liberalismo; Ideologia.

Introdução
Acompanhando as mudanças ocorridas nos últimos
seis anos, pode-se veriicar um mundo muito diferente da-
quele que conhecíamos em 2010. É surpreendente como

59
um período tão curto de tempo pode trazer mudanças tão
signiicativas. Imagine que alguém estivesse dormindo
desde 2010 e só acordasse em junho de 2016. Ele se de-
pararia com novidades difíceis de aceitar imediatamente.
No Brasil, ele veria o esgotamento das esquerdas, o im-
pedimento questionável da presidente reeleita em 2014,
defesas abertas do regime militar, bem como de torturado-
res, além de propostas de lei que criminalizam a postura
crítica, a sociedade por parte dos professores das ciências
humanas. Veria, no cenário internacional, o plebiscito que
culminou com a saída do Reino Unido da União Europeia
com o pano de funda da imigração, mas com a justiicativa
da luta contra o terrorismo e também veria um bilionário,
apresentador de tevê, ganhando a corrida à Casa Branca
com um discurso de ódio. Acredito que o desafortunado
dorminhoco teria diiculdades em acreditar que estaria de
fato acordado ou tendo um pesadelo. Mas provavelmente,
o que mais o surpreenderia seria a rápida escalada ideo-
lógica das teorias do capitalismo radical e a tentativa de
criminalização dos professores que defendessem ideias
críticas em sala de aula através da PL 867/2015.
Devido à atualidade do tema, poucas obras têm sido
produzidas com o intuito de analisar as ideologias “liber-
tárias5” em confronto com a pedagogia crítica de Fernan-
des e Freire. Em outras palavras, desde os séculos XVIII
e XIX que grande parte dos pensadores educacionais lati-
no-americanos se empenha em alertar para as consequên-
cias nefastas da vinculação entre capital e educação. Entre
5 O libertarianismo é o termo utilizado por aqueles que defendem o
im do Estado e a total autorregulação do mercado como saída para os proble-
mas atuais. Os mesmos criticam o termo neoliberalismo e por este motivo não
o utilizarei aqui.

60
estes autores temos Rodrigues, Marti, Varela, Mariategui,
Fernandes, Freire, etc. que, aos seus modos, lutaram por
uma educação pública e de qualidade. Os mesmos identi-
icavam como negativa as propostas de educação “estrita-
mente” para o mercado. Na contramão disto tem crescido,
mesmo entre os pedagogos, a análise que privilegia uma
visão atomista ou micrológica naquilo que Mises vai cha-
mar de praxiologia.
Este trabalho se propõe a servir de alerta e iniciação
aos estudos do tema por parte de professores e alunos, no
sentido de municiá-los no atual debate sobre a ascensão
do capitalismo radical no Brasil e no mundo. Sendo assim,
optou-se pelo método de pesquisa bibliográica relativa ao
tema. As principais obras que fundamentam o pensamento
de Mises, tido como o maior nome da “Escola Austríaca
de Economia”, serviram como sustentáculo para o estudo
da teoria citada acima. Em contrapartida, as obras baliza-
res da pedagogia de Florestan Fernandes e de Paulo Freire
são a justa oposição ao atomismo praxiológico de Mises.
Também darei ênfase às principais materializações sociais
derivadas deste embate que se consubstanciam em peças
jurídicas como o PL 867/2015.
Sendo assim, o problema que norteia o presente tra-
balho diz respeito à seguinte questão: qual o impacto das
ideologias liberais no sistema escolar após a queda das es-
querdas no Brasil? Ao estudar a obra máxima de Ludwig
Von Mises, A Ação Humana, percebe-se, como sociólogo
e historiador, algumas lacunas no que se refere aos estudos
do funcionalismo e do estruturalismo. Provavelmente o
autor sonegou estes aportes do conhecimento deliberada-

61
mente por fatores ideológicos que apontarei nas próximas
linhas, no entanto, para um leitor incauto, pode parecer
que os axiomas misisianos são bem fundamentados, o que
levaria a aceitação irrestrita destas e a concordância em
uma neutralidade “impossível” de se alcançar no fazer es-
colar.
A tese central levantada por este trabalho diz respei-
to ao perigo da ascensão das ideologias de direita, como
as libertárias, em uma sociedade tão desigual quanto à bra-
sileira. É neste sentido que defendo aqui que os praxiolo-
gistas não passam de seguidores de uma ideologia infun-
dada, mas com desdobramentos muito perigosos diante do
momento histórico pelo qual passamos como exemplos da
concentração de capitais (PIKETT, 2014), as crises cícli-
cas que arrastam milhões de pessoas ao desemprego e o
consumismo com suas implicações do ponto de vista dos
impactos ambientais.

Mercado ou estado: como a ideologia pode inluenciar


na prática educacional?
Não poderia começar um artigo sobre ideologia sem
antes apresentar as bases históricas e o desenvolvimento
do conceito de “ideologia” e, mais importante ainda, dei-
xar claro sob que perspectiva a ideologia é compreendida
aqui. Esta ação vai evitar o constrangimento de equívocos
ou posteriores explicações quanto às bases teóricas do pre-
sente trabalho, bem como demonstrar a impossibilidade
de uma neutralidade axiológica (WEBER, 1974) que, em
muitos casos (senão em todos) é impossível de se con-
seguir, lato senso, nas ciências humanas e, strictu senso,

62
na educação. A caracterização e diferenciação das ideolo-
gias que mais inluenciam o campo educacional também
podem ajudar a compreender melhor a quadra nebulosa à
qual estamos passando neste momento da história do Bra-
sil e suas consequências para o futuro próximo e que tem
como um dos seus principais sintomas o PL 867/2015 “es-
cola sem partido”.
Um bom passo inicial para o estudo da ideologia é
começar pelas suas origens etimológicas. O termo ideolo-
gia possui suas raízes na palavra “idéologie” (HOUAISS,
2001), criada por Destutt de Tracy (1754-1836), e apareceu
pela primeira vez em seu livro “Eléments d´idéologie”
com o sentido de “ciência que tem por objeto de estudo
as ideias”. Variando de positivo para negativo conforme
as mudanças de poder na França, o termo é, ele mesmo,
testemunha de lutas encarniçadas no período da sua cons-
trução como deixa claro Marilena Chauí (2006) em seu
livro O que é ideologia, nas palavras de Luiz Napoleão:

O sentido pejorativo dos termos “ideologia” e


“ideólogos” veio de uma declaração de Napoleão
que, num discurso ao Conselho de Estado em
1812, declarou: “Todas as desgraças que aligem
nossa bela França devem ser atribuídas à ideolo-
gia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com
sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre
suas bases a legislação dos povos, em vez de
adaptar as leis ao conhecimento do coração huma-
no e às lições da história.” (CHAUÍ, 2006, p. 10).

No entanto, como esta mesma autora deixa claro, as


origens práticas podem ser veriicadas muitos séculos an-
tes.

63
Em Aristóteles, por exemplo, a causalidade é o pon-
to de partida para a compreensão das bases históricas do
conceito de ideologia. Em outros termos, a vontade de
quem ordena a produção de algo seria superior à própria
ação de produzir a algo ordenado (CHAUÍ, 2006. pág. 5).
O que o exemplo acima deixa claro é que mesmo o grande
Aristóteles não escapou de uma visão invertida da reali-
dade social e de uma construção ideologizada do mundo.
Se você acompanhou até aqui a leitura e o referencial
teórico, então já se deu conta das nossas escolhas relativas
ao posicionamento ideológico. Faz-se, pois, necessário,
que nos aprofundemos na teoria marxiana para balizar o
que compreendemos por ideologia.
Para Marx:

Toda a ilusão que consiste em pensar que o do-


mínio de uma classe determinada é apenas o do-
mínio de certas ideias, cessa naturalmente desde
que o domínio de uma classe deixa de ser a forma
do regime social, isto é, quando deixa de ser ne-
cessário representar um interesse particular como
sendo o interesse geral ou de representar o “Uni-
versal” como dominante. (...) Esta subordinação
dos indivíduos a determinadas classes não pode
acabar enquanto não existir uma classe que já não
tenha necessidade de fazer prevalecer um interes-
se de classe particular contra a classe dominante
(MARX, 1998, p. 31).

Apesar da estrutura social, na visão de Marx, estar


alicerçada por fatores econômicos e a ideologia igurar
como um elemento secundário, o mesmo não separa as
ideias das condições históricas às quais elas fazem parte.

64
Ou seja, as ideias e a história criam uma circulação em es-
piral ascendente onde uma realimenta a outra, assim como
muitos dos seus colaboradores como Gramsci, Bourdieu,
Althusser, etc. perceberam. É neste sentido que a sociali-
zação secundaria (VILA NOVA, 2004) é tão importante
para os estudos estruturalistas e do materialismo histórico.
Muito sabiamente Marx deixa claro que a história é a
mãe das ciências. Portanto, só ocasionando um assassínio
desta ciência, bem como de outras, é que se pode incul-
car o arbitrário cultural da classe dominante (BOUDIEU;
PASSERON, 1982, p. 44) e é por esta via que o novo go-
verno brasileiro está agindo, pelas conjunturas que a pró-
pria história lhe legou. Então, faz-se necessário analisar a
ideologia que dá base para as ações dos agentes políticos
no poder, para então veriicar a importância de pensadores
como Fernandes e Freire para a construção de uma so-
ciedade mais igualitária, em especial, no que se refere ao
campo educacional.
Contra que tipo de ideologia os autores aqui elenca-
dos lutam? Contra aquela ideologia que credita ao mer-
cado a resolução de todos os problemas humanos e que
tem encontrado, hoje, ressonância no principal aparelho
ideológico do estado (ALTHUSSER, 1985) que é a mí-
dia. As principais obras que fundamentam esta ideologia,
chamada de liberalismo, em voga nas rodas de debate e
nos intentos políticos é a da famigerada “Escola Austríaca
de Economia”, no entanto, o seu principal método inves-
tigativo é a praxiologia (MISES, 2010) e é sobre ela que
nos debruçaremos nestas resumidas linhas abaixo. A tese
central levantada por ela defende que o movimento social

65
se dá no e pelo indivíduo exclusivamente, ou que apenas
o estudo atomista ou micrológico é que possui validade
como se pode ver nesta passagem:

O curso da história é determinado pelas ações dos


indivíduos e pelos efeitos dessas ações. As ações
são determinadas pelos julgamentos de valor dos
agentes individuais, isto é, pelos ins que preten-
dem obter e pelos meios que utilizam para atingir
esses ins. (MISES, 2010, p. 66).

Para um leitor incauto, pode parecer que os axiomas


misisianos são bem fundamentados, o que levaria a acei-
tação irrestrita destes. O dilema micro-macro é talvez o
mais antigo das ciências sociais e que foi, há muito tem-
po, identiicado como um falso problema por Elias (1994),
Bourdieu (1984), Guiddens (1978), entre tantos outros.
É neste sentido que defendo aqui a tese de que os
praxiologistas não passam de seguidores de uma ideologia
tal qual também o são aqueles que defendem a inexistência
do indivíduo. A praxiologia, pelos motivos apontados
acima, não é suiciente para compreender e explicar as
consequências e desdobramentos de categorias como
“poder”, das instituições nem dos grandes ciclos históricos
que, como vimos, ele simplesmente nega para adequar a
realidade à sua teoria e não a sua teoria à realidade.
A praxiologia se detém sobre a ação do indivíduo na
sua relação com a natureza, mas muito pouco ou nada so-
bre a sua relação com as classes sociais, que, a propósito,
ela também nega a existência.

66
A partir da distinção entre empregado e empre-
gador, traça-se, no plano da teoria econômica,
uma distinção que não existe na vida real. Nesta,
empregador e empregado são, em última análise,
uma só e a mesma pessoa. (MISES, 2009 p. 20).

Neste mesmo sentido se nega a importância e até


mesmo se questiona a necessidade do Estado como me-
diador dos conlitos de classe. Como a relação de classe se
baseia na divisão desigual das oportunidades, seja no que
se refere à riqueza ou ao capital cultural (BOURDIEU,
2007), é mais do que compreensível que a praxiologia e
seus defensores lutem por negar a existência das classes,
da história e da desigualdade de oportunidades. Assim a
reprodução do modelo social que presenciamos neste re-
corte de tempo está garantida, privilegiando os privilegia-
dos e excluindo os excluídos (BOURDIEU; PASSERON,
1982). Como uma última crítica, nota-se que o elemento
sacrossanto desta ideologia só pode ser então a proprieda-
de privada, pois todos os outros direitos podem ser derru-
bados, menos este.

Escola sem partido: a materialização das ideologias li-


berais
É neste sentido silogístico que a PL 867/2015 ganha
força como o meme (DAWKINS, 2007) deste momento
histórico no Brasil. Um momento de esgotamento das
esquerdas que, por pouco mais de 13 anos, tiveram como
sua principal plataforma propagandística o estado de
bem-estar social fundamental naquilo que se convenciona
chamar de pós-neocolonialismo (SADER, 2013). As
principais contradições inerentes ao fazer educacional

67
neste projeto de lei, estão perfeitamente em ordem com a
nova pauta neoliberal proposta pelo atual governo. Entre
estas está a negação do caráter de crítica social que a
escola nos países da América Latina tem como uma de
suas características.
Teoria do indivíduo: o fundamento da teoria liberal
é a crença na total importância do indivíduo como agente
de toda a mudança social contrariamente ao que se vê em
Marx. Tudo o que foi tratado acima se consubstancia na
criação de leis como a PL 867/2015. Busco aqui verii-
car os seus pontos mais agressivos ao fazer educacional
e àqueles que afrontam mais diretamente aquilo que os
autores escolhidos lutaram. Apesar de não ser um projeto
tão recente quanto se possa imaginar, esta PL coube como
uma luva para os interesses dos novos grupos de poder es-
tabelecidos no governo a partir do impeachment de 2016.
A sua projeção tem sido muito rápida e

projetos de lei semelhantes ao presente – inspira-


dos em anteprojeto de lei elaborado pelo Movi-
mento Escola sem Partido (www.escolasemparti-
do.org) – já tramitam nas Assembleias Legislativas
dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e
Espírito Santo, e na Câmara Legislativa do Distri-
to Federal; e em dezenas de Câmaras de Vereado-
res (v.g., São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, Curi-
tiba-PR, Vitória da Conquista-BA, Toledo-PR,
Chapecó-SC, Joinville-SC, Mogi Guaçu-SP, Foz
do Iguaçu-PR, etc.), tendo sido já aprovado nos
Municípios de Santa Cruz do Monte Carmelo-PR
e Picuí-PB (www.camara.gov.br).

Seu autor, o advogado Miguel Nagib, atendendo

68
ao pedido do deputado Flávio Bolsonaro6, desenvolveu
o projeto “escola sem partido” com o intuito de acabar
com a “doutrinação” de esquerda desenvolvida, delibera-
damente, pelo Partido dos Trabalhadores enquanto esteve
no poder. Esta doutrinação se refere, na ótica dos defenso-
res do projeto, a um plano de enfraquecimento da noção
tradicional de família e à implantação de um Marxismo
cultural nas escolas de todo o país.

Diante dessa realidade – conhecida por experiên-


cia direta de todos os que passaram pelo sistema
de ensino nos últimos 20 ou 30 anos –, entende-
mos que é necessário e urgente adotar medidas
eicazes para prevenir a prática da doutrinação
política e ideológica nas escolas, e a usurpação do
direito dos pais a que seus ilhos recebam a educa-
ção moral que esteja de acordo com suas próprias
convicções. (www.camara.gov.br).

O principal alvo deste projeto são os professores,


que, caso não se adequem a já citada neutralidade na edu-
cação, poderão sofrer as mais duras penas, que vão de ad-
vertência, demissão e até prisão como expresso pelo pro-
jeto do deputado do PSDB – RN Rogerio Marinho:

Art. 146 – A. Expor aluno a assédio ideológico,


condicionando o aluno a adotar determinado po-
sicionamento político, partidário, ideológico ou
constranger o aluno por adotar posicionamento di-
verso do seu, independente de quem seja o agente:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano e

6 A família Bolsonaro é tida como a mais polêmica da política na-


cional por suas propostas violentas, sexistas e racistas entre os políticos brasi-
leiros e é um forte candidato a ser o próximo presidente do Brasil nas eleições
de 2018.

69
multa. (www.camara.gov.br)

Um dos documentos que dá suporte para este PL é


o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de
1969 e que foi aderido pelo governo brasileiro em 25 de
setembro de 1992. Vale salientar, no entanto, que existe
uma incongruência no que tange aos objetivos do pacto
acima citado e ao referido PL, como ica claro nos artigos
12 e 13:

Art. 12 Liberdade de Consciência e de Religião

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de cons-


ciência e de religião. Esse direito implica a liber-
dade de conservar sua religião ou suas crenças, ou
de mudar de religião ou de crenças, bem como a
liberdade de professar e divulgar sua religião ou
suas crenças, individual ou coletivamente, tanto
em público como em privado.

2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas


que possam limitar sua liberdade de conservar sua
religião ou suas crenças, ou de mudar de religião
ou de crenças.

Art. 13 Liberdade de Pensamento e de Expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensa-


mento e de expressão. Esse direito compreende a
liberdade de buscar, receber e difundir informa-
ções e ideias de toda natureza, sem consideração
de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em
forma impressa ou artística, ou por qualquer outro
processo de sua escolha. (www.camara.gov.br).

Com as passagens acima, quero mostrar que os direi-


tos dos alunos são os mesmos dos professores e que não
é ético restringir os direitos dos professores em apresen-

70
tar suas visões de mundo e suas opiniões quanto aos seus
posicionamentos políticos em detrimento de imposições
ideológicas advindas do legislativo.

Florestan Fernandes e a educação crítica


Florestan Fernandes é, sem sombra de dúvidas, o
maior sociólogo que o Brasil já teve e também responsá-
vel por uma nova escola sociológica que icou conhecida
como a escola paulistana de sociologia, que possuía, em
seus quadros, iguras de renome como Fernando Henri-
que Cardoso, Octavio Iani, Ruth Cardoso, etc. Nos seus
75 anos de vida, este autor se aprofundou na pergunta que
veio a ser mais cara para a nossa sociologia: o que é o
Brasil?
Florestan Fernandes nasceu em São Paulo em 1920
e era ilho de uma descendente de imigrantes portuguesa
que engrossou o contingente de indivíduos malsucedidos
na busca por melhores condições de vida aqui no Brasil.
Sua mãe era trabalhadora doméstica que teve a oportuni-
dade de trabalhar para a família Bresser que acolheu o seu
ilho Florestan quase como um membro. Isto lhe possibi-
litou a incorporação do capital simbólico e cultural desta
família desde a mais tenra idade. Estes hábitos primários
(SOUZA, 2009) seguiram o jovem Florestan por toda a
sua vida. O apreço pelos livros, o linguajar polido e a pos-
tura corporal nobiliárquica abriram muitas e muitas portas
a Florestan, fazendo com que aquele jovem, que passou
por proissões menos glamourosas como engraxate e gar-
çom, logo se inserisse nos restritos círculos dos estabele-
cidos (ELIAS, 1994) intelectuais da sociedade paulistana

71
e daí para as aulas na USP.
Entre os anos de 1941 e 1953 faz sua graduação,
mestrado e doutorado em ciências sociais pela já citada
instituição. No entanto, com a delagração do golpe militar
de 1964, Florestan se vê perseguido, assim como muitos
dos que assumiram uma postura crítica ao novo governo, e
por sua atitude questionadora e grande inluência no cam-
po educacional é preso e exilado. Após três duros anos
de exílio retorna para o Brasil trazendo na bagagem os
embriões das suas mais profundas percepções acerca da
realidade brasileira.
A partir dos primeiros anos da década de 1970, Flo-
restan se aprofunda nas obras marxianas e marxistas atri-
buindo à sua teoria um caráter mais ideológico de esquer-
da, o que vem a repercutir profundamente em sua biograia
e produção acadêmica. É neste período em que relete a
educação como

O processo que visa a transformação interna dos


sujeitos pela incorporação de elementos que não
são dados naturalmente e nem adquiridos espon-
taneamente, mas que, uma vez incorporados pela
mediação da ação educativa, passam a operar
como se fossem naturais (SAVIANI, 1996, p. 72).

Inicia, então, a sua carreira de político em 1984 pelo


Partido dos Trabalhadores e é eleito deputado federal por
São Paulo, onde contribui sobremaneira na defesa da es-
cola pública e da emancipação das instituições de ensi-
no superior com o artigo 207 da Constituição Federal de
1988. A partir disso passa a concluir que a categoria cul-

72
tura é menos relevante no tocante à dependência brasileira
aos países centrais do capitalismo do que supunha uma
vez e passa a atribuir o núcleo da questão aos fatores eco-
nômicos, sem desprezar o aspecto cultural. Cunhou en-
tão o conceito de capitalismo dependente (FERNANDES,
1973), o que veio a ser um dos seus maiores legados.
Com uma sociologia que parte do povo para com-
preender o povo, a educação brasileira é vista pelo autor
como um grande dilema que é

Determinado pela situação de subdesenvolvimen-


to o qual, ao mesmo tempo, coloca necessidades
que exigem a intervenção da educação e obstácu-
los a que essa intervenção se efetive. Isso é ilus-
trado por um exemplo: a estabilidade e a evolução
do regime democrático estão exigindo a extensão
das inluencias socializadoras da escola às cama-
das populares e a transformação rápida do estilo
imperante de trabalho didático, pouco propício a
formação de personalidades democráticas. (SA-
VIANI, 1996, p. 76).

Os educadores possuem uma ideologia? Essa foi uma


das questões que animou o nosso autor. Florestan aponta a
ideologia na proissão docente como um resultado “natu-
ral” na formação de qualquer espécie de carreira compe-
titiva no mundo em que vivemos (STRECK, 2010 p 320).
O que levou estes proissionais a se valerem de muitas
técnicas de ação como as restritas; associações sindicais,
greves, paralizações de advertência e as abrangentes como
a luta por interesses dos pais de alunos e comunidade, bem
como a que visa maior liberdade de expressão, o que faz
acreditar no caráter multifacetado das lutas ideológicas no

73
campo escolar.
O fenômeno da sistematização da educação como
mais um produto no mercado capitalista preocupava Flo-
restan. Este mesmo fenômeno descrito pelo autor pode ser
veriicado, em sua forma embrionária, na atual conjuntura
histórica do Brasil, pois

A situação atual exige uma nova espécie de pre-


paração do educador para seus papeis sócias, para
que ele não seja reduzido a condição de mero ins-
trumento, no entrechoque de interesses e conlitos
sociais, que operam além e através das funções
preenchidas pela educação sistemática na ordem
social estabelecida. Como já aconteceu com enge-
nheiros, médicos, ciêntistas de laboratório, antro-
pólogos etc, os professores precisam elaborar um
código de ética próprio. (STRECK, 2010, p. 321).

É de causar espécie a atualidade de tais palavras.


No momento, mesmo em que a educação no Brasil se vê
mais uma vez em uma encruzilhada de interesses: educar
para a vida ou para o mercado de trabalho? A preocupação
despretensiosa dos cientistas do passado, que izeram
seus inventos ganharem uso estritamente econômico,
ocasionando a morte de milhões de pessoas em nome da
busca por acumulação não está distante da que se deparam
os proissionais da educação de hoje. Em suma, há que
se reletir acerca do uso social do fazer educacional, que
transcende a proissionalização, e seu uso para a produção
de um contingente para atender as necessidades do mer-
cado em mão de obra desqualiicada e consequentemente
barata. O olhar acautelado do passado nos dá as pistas de
que caminho seguir.

74
Paulo Freire e a educação libertadora
Reconhecido como o patrono da educação brasilei-
ra, Paulo Freire é um dos principais expoentes, senão o
principal, da educação crítica no Brasil e no mundo. Em
sua teoria, o foco principal é a visão não-conformista com
as desigualdades inerentes ao sistema capitalista e, assim
como Fernandes, sua biograia se confunde com a sua
obra.
Freire nasceu em Recife no ano 1921. Filho de Joa-
quim Temístocles Freire, tenente de polícia, que apesar de
fazer parte da classe média da época, vivenciou os duros
anos 1930 sob muitas privações, inclusive a fome, o que
fez com que Paulo Freire se deparasse com o sofrimento
das classes sociais menos favorecidas, e veio a marcar o
seu pensamento por toda a sua vida. Criador de um méto-
do voltado para as camadas menos privilegiadas da socie-
dade nordestina, o professor ganhou extrema notoriedade
quando, em 1963, alfabetizou 300 jovens e adultos em
apenas 45 dias.
Assim como Fernandes, não tardou para que seu
trabalho de crítica ao status quo e sua visão progressista
em favor dos mais pobres fossem perseguidos pelas
novas formas políticas emergentes em meados dos anos
de 1960. Freire então passa quase que a integralidade
do período militar brasileiro no exílio, onde continuou
seu profícuo trabalho em diversos países como Uruguai,
Estados Unidos e Suíça. Autor de uma vasta bibliograia,
Paulo Freire possui livros traduzidos em diversos
idiomas e igura entre os mais importantes pedagogos do
séc. XX (GADOTTI, 1993, p 253). Entre as suas obras

75
podemos destacar Educação como prática da liberdade,
de 1967, Pedagogia do oprimido, de 1970, Ideologia e
educação: relexões sobre a não neutralidade da educa-
ção, Rio de Janeiro: Paz e Terra, de 1981, entre várias
outras da sua fértil produção acadêmica.
Em sua trajetória acadêmica ica nítido o seu apreço
por um novo tipo de educação que buscava retirar o véu
da invisibilidade das camadas menos favorecidas, que,
até então, deveriam reproduzir o linguajar das elites para
poderem ser aceitas por partes destes que transmitiam o
conhecimento (FREIRE, 1987), mas Paulo Freire inaugu-
ra uma nova perspectiva de ensino, uma que dá voz aos
excluídos do sistema com o intuito de acessar o real co-
nhecimento de mundo destes.
Esta postura de Freire foi vista, e ainda é, como mui-
to perigosa, pois seu intuito era revolucionar a forma como
se alfabetizava os adultos, trazendo para estes elementos
de sua realidade e consequentemente, levantando questões
sobre as suas condições de classe, no caso de isso ser visto
como algo importante por parte dos agentes envolvidos no
processo de ensino de aprendizagem.

Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso


compreender qual a posição que Eva ocupa no seu
contexto social, quem trabalha para produzir a uva
e quem lucra com esse trabalho. (...) Os defenso-
res da neutralidade da alfabetização não mentem
quando dizem que a clariicação da realidade si-
multaneamente com a educação é um ato político.
“Falseiam, porém, quando negam o mesmo cará-
ter político à ocultação que fazem da realidade”.
(GADOTTI, 1993, p 255).

76
O motivo acima enunciado faz com que este autor
seja o mais perseguido pelos ideólogos e propagadores do
“Escola Sem Partido”. Na visão destes, Paulo Freire seria
apenas o porta-voz da doutrinação de esquerda por propor
que os seus alunos analisem e questionem as condições de
vida às quais estão sujeitos e, para os entusiastas do libera-
lismo escolar, incutindo uma visão de mundo pautada em
uma luta de classes que não existe.
A dialogicidade é uma das mais importantes colabo-
rações do autor para o fazer e o pensar pedagógico. Nela,
os mais diversos tipos de conhecimentos se entrecruzam
e se somam para, a partir desta ação, produzir algo to-
talmente novo e que não desprezará, como é comum ao
fazer bancário, nenhum aspecto do ato gnosiológico. Esta
práxis educativa ica clara como cristal nos seus mais di-
versos textos que trazem o amor para a pauta da educação,
pois só através do amor que os agentes da educação pode-
rão ver no outro um ser tal qual ele mesmo:

A auto-suiciência é incompatível com o diálogo.


Os homens que não têm humildade ou a perdem,
não podem aproximar-se do povo. Não podem ser
seus companheiros de pronúncia do mundo. Se
alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão ho-
mem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito
que caminhar, para chegar ao lugar de encontro
com eles. Neste lugar de encontro, não há ignoran-
tes absolutos, nem sábios absolutos: há homens
que, em comunhão, buscam saber mais. (FREIRE,
1987, p 52).

Seria desnecessário fazer uma defesa da obra de Pau-


lo Freire quanto ao seu aspecto ideológico, pois sua obra

77
é suicientemente eloquente para dar cabo desta emprei-
tada secundária, no entanto, em decorrência dos tempos
nebulosos aos quais vivemos hoje no Brasil, é que uma ou
outra palavra deve ser dita com o intuito de dirimir esta
nevoa de dúvidas que acomete aqueles que não tiveram
nem sequer o respeito de ler a obra freireana antes de tecer
críticas infundadas.
A postura ideológica de Freire é reconhecidamente
marxista, mas não de um marxismo tacanho que se limita
a repetir os excertos marxianos. Em sua obra não é Freire
que se submete à teoria de Marx, mas sim uma adequação
da teoria de Marx às intenções teóricas de Freire em uma
perspectiva de solidariedade, fraternidade e compaixão
pelo próximo. O reducionismo de se limitar a teoria de
Freire a uma doutrinação, cega os críticos ao que há de
mais importante na obra de Freire, que é a sua visão de um
mundo mais igualitário pautado na oportunidade de cada
ser humano em manifestar totalmente a sua humanidade.
Esta cegueira das forças conservadoras no poder
atualmente no Brasil lhes impossibilita de perceber que o
autor aqui tratado era contra a doutrinação, seja ela qual
fosse, por entender que este não é o papel do educador
nem da educação, como ica claro abaixo:

Para o educador humanista ou o revolucionário


autêntico a incidência da ação é a realidade a ser
transformada por eles com os outros homens e não
estes. Quem atua sobre os homens para, doutri-
nando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade
que deve permanecer intocada, são os dominado-
res (...) Por isto é que não podemos, a não ser inge-
nuamente, esperar resultados positivos de um pro-

78
grama, seja educativo num sentido mais técnico
ou de ação política, se, desrespeitando a particular
visão do mundo que tenha ou esteja tendo o povo,
se constitui numa espécie de “invasão cultural”,
ainda que feita com a melhor das intenções. Mas
“invasão cultural” sempre. (FREIRE, 1987, p 54
e 55).

Ora, onde que se identiica aqui a tão famosa dou-


trinação de esquerda se é o próprio Freire quem nos alerta
contra tais práticas? O autor era contra os fatalismos, como
um historicista que era, pregados pela educação neolibe-
ral. O alerta de Freire ainda é muito atual, assim como o de
Fernandes, quanto às forças nefastas das ideologias fata-
listas que transferem a condição social das classes menos
favorecidas ao imóvel campo da transcendência religiosa,
onde estes estão presos, tal qual Íxion em sua roda7, a gri-
lhões inquebrantáveis:

É exatamente por causa de tudo isso que como


professor, devo estar advertido do poder do discurso
ideológico, começando pelo que proclama a morte
das ideologias. Na verdade, só ideologicamente
posso matar as ideologias, mas é possível que não
perceba a natureza ideológica do discurso que fala
de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder
de persuasão indiscutível. O discurso ideológico
nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir,
das coisas, dos acontecimentos. (FREIRE, 1996,
p 132)

A partir do que foi dito acima é que chego a con-


cluir o caráter cruel e maldoso daqueles que desrespeitam
a obra de Paulo Freire.
7 Mito grego onde Íxion é condenado a passar a eternidade sofrendo
preso em uma roda em chamas.

79
Considerações inais
O legado teórico dos autores aqui elencados possui
mais convergências que divergências. Neste primeiro as-
pecto, posso salientar a sua consciência em relação aos
mais necessitados e, eu diria, até mesmo uma visão pro-
gressiva de que não há futuro promissor em uma socieda-
de que não trata os seus cidadãos como seres merecedores
da dignidade relativa de ser tratado como humano. O meio
pelo qual ambos intentaram manifestar o que foi dito aci-
ma está na luta encarniçada em defesa da escola pública de
qualidade para todos e a diminuição das desigualdades. Os
mesmos apenas divergem no que se refere ao método para
se alcançar este intento. Para Fernandes, a atual situação
brasileira passa pela dependência econômica em relação
ao capitalismo central e a saída encontra-se na constitui-
ção de classes para si. Enquanto que para Freire, a catego-
ria educação possui um lugar central nesta emancipação
das camadas menos privilegiadas da sociedade brasileira.
Este breve artigo não se furta ao seu teor ideológico
e até mesmo panletário, além de não intentar pretensões
maiores das de que servir como testemunho e alerta de
quem está vivendo um dos momentos mais importantes
para a democracia brasileira. O que está em jogo, nesta
encruzilhada na qual nos encontramos, é nada mais nada
menos que as nossas próprias liberdades, pois como dito
acima, a erva dos totalitarismos germina em terrenos onde
proissionais como os educadores perdem os seus direitos
de exercer a mais importante das missões, que é a de edu-
car.

80
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83
PENSAMENTO PEDAGÓGICO LATINO-AMERI-
CANO: A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO EM JOSÉ
MARTÍ, FLORESTAN FERNANDES E ERNESTO
CHE GUEVARA, AS CONTRIBUIÇÕES DESSES
PENSADORES PARA OS DESAFIOS POSTOS
PARA EDUCAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
Edima Verônica Morais. Pedagoga e Mestre pela Universidade Federal de
Pernambuco/Centro Acadêmico do Agreste. Doutoranda do Programa de Pós-
-Graduação em Educação/UFPE. edimamorais@hotmail.com.

Antônio Alves de Santana. Cientista Social e Especialista em Educação em


Direitos Humanos UFPE. Professor de Sociologia da Educação Básica no mu-
nicípio de Caruaru. tonyufcg@hotmail.com.

Resumo
Este trabalho nasce do nosso interesse em estabelecer um diálogo com
importantes autores da América Latina analisando o pensamento peda-
gógico desses pensadores visto que suas perspectivas de análise partem
da realidade latino-americana e da sua constituição sócio-histórica, ele-
mento de suma importância para entendermos a atual coniguração so-
cial, educacional e política na América Latina e especialmente no Brasil
em tempos de Reforma do Ensino Médio, que apresenta outra dimensão
da reforma neoliberal que é a abertura desse nível de ensino para a ex-
ploração de empresas privadas nacionais e internacionais. Nesse senti-
do, izemos uma relexão a partir de autores como José Martí, Florestan
Fernandes e Ernesto Che Guevara, identiicando elementos de apro-
ximação no pensamento desses autores na tentativa de compreender a
concepção de educação emancipatória presente em cada um deles para
encontrar chaves de compreensão para realidade atual, demonstrando a

84
atualidade desses pensamentos. Para atender os nossos propósitos rea-
lizamos uma pesquisa de cunho bibliográico.
Palavras-chaves: América Latina; Educação emancipatória; Autono-
mia.

Introdução
Este trabalho nasce do nosso interesse em estabelecer
um diálogo com importantes autores da América Latina
analisando o pensamento pedagógico desses pensadores
visto que suas perspectivas de análise partem da realida-
de latino-americana e da sua constituição sócio-histórica,
elemento de suma importância para entendermos a atual
coniguração social, educacional e política na América La-
tina e especialmente no Brasil. É importante destacar que
não se trata de falar de uma pedagogia latino-americana
como campo isolado, mas reconhecer que aqui houve e
há uma rica produção pedagógica. (STRECK, 2007). De
modo que ainda segundo esse autor é necessário encontrar
caminhos coerentes com a história e a cultura latino-ame-
ricano.
Nesse sentido, pretendemos fazer uma relexão a
partir do pensamento pedagógico de autores como José
Martí, Florestan Fernandes e Ernesto Che Guevara, bus-
cando elementos de aproximação no pensamento desses
autores. Além do que, a partir de um esforço teórico no
sentido de compreender a concepção de educação eman-
cipatória presente no pensamento de cada um deles, bus-
car chaves de compreensão para realidade atual, ou seja,
demonstrar a atualidade do pensamento desses autores.
Portanto, acreditamos que esses autores ainda têm muito

85
a nos dizer, especialmente neste momento em que convi-
vemos com um retrocesso no sentido de perdas de direitos
sociais, inclusive no campo da educação no Brasil.
Importante salientar que o desejo em estudar sobre
o tema supracitado surge a partir de uma disciplina ofe-
recida no Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal de Pernambuco Centro Acadêmico do Agreste,
que tinha como objetivo estudar o pensamento pedagógi-
co de autores latino-americanos numa perspectiva de edu-
cação para o povo que seja emancipatória e libertadora,
compreendendo a atualidade das relexões produzidas por
esses autores. Além do que, também objetiva trazer para
arena das discussões autores que por vezes são esquecidos
ou negligenciados na academia, ou seja, dá visibilidade a
esse pensamento como forma de fortalecimento da identi-
dade latino-americana.
Dito isto, nosso trabalho caminha no esforço de res-
ponder à seguinte questão: quais contribuições estão pre-
sentes no pensamento de José Martí, Florestan Fernandes
e Ernesto Che Guevara que ajudam na compreensão da
realidade educacional na contemporaneidade no Brasil?
Nessa direção, para dar conta dessa questão, a partir
do diálogo com esses autores elencamos como objetivo
geral: analisar as contribuições presentes no pensamento
de José Martí, Florestan Fernandes e Ernesto Che Gueva-
ra que contribuem para compreensão da realidade educa-
cional na contemporaneidade no Brasil. E como objetivo
especíico: conhecer a concepção de educação emancipa-
tória de José Martí, Florestan Fernandes e Ernesto Che
Guevara.

86
Dessa forma, com intuito de alcançarmos os objeti-
vos propostos realizamos uma pesquisa de cunho biblio-
gráico.

Metodologia
Para dar conta das discussões desenvolvidas neste
ensaio realizamos uma pesquisa bibliográica, buscando
identiicar alguns conceitos básicos sobre educação dos
autores estudados, José Marti, Florestan Fernandes e Er-
nesto Che Guevara, identiicando as aproximações e dis-
tanciamentos entre eles bem como buscamos identiicar as
contribuições de suas análises para pensarmos a realidade
educacional brasileira na contemporaneidade.
Nesse sentido, segundo Gil (2006), esse tipo pesqui-
sa consiste em analisar material já elaborado, como livros
e artigos cientíicos. Sabendo que nesse tipo de pesquisa
em quase todos os estudos é exigido algum tipo de traba-
lho dessa natureza, algumas pesquisas são exclusivamente
realizadas a partir de um escopo bibliográico, como é o
caso do nosso trabalho. A vantagem desse tipo de estudo
reside no fato de podermos cobrir uma gama de fenôme-
nos muito mais ampla do que se izéssemos diretamente
(GIL, 2006).

José Martí: o apóstolo cubano


Estudo do pensamento de José Martí pode ser reali-
zado a partir de diversas óticas. Sua construção teórica é
vasta e profunda passando por discursos revolucionários,
por poemas e versos para crianças, mas neste ensaio pre-

87
tendemos direcionar nosso olhar e nossas análises para seu
pensamento pedagógico, no entanto, este aparece de for-
ma muito imbricada em todos seus escritos, já que esses
escritos estão dispersos nos seus mais variados trabalhos.
Desde tenra idade José Martí se engajou em movi-
mentos de luta pela liberdade de seu país, Cuba, e nesse
projeto se incluía a libertação dos povos escravizados, o
que o levou por duas vezes a ser exilado de seu país. Du-
rante o exílio continuou estudando, escrevendo em perió-
dicos, exercendo a docência e realizando diversas ativi-
dades de agitação política e cultural. Sua passagem por
diversos países como Guatemala, México, Espanha e Es-
tados Unidos contribui para aprofundar seu entendimento
sobre a América Latina e seu povo e da necessidade de se
construir uma identidade latino-americana e uma educa-
ção autônoma pensada a partir das necessidades históricas
da nossa região. Portanto, seu pensamento critica aquilo
que ainda hoje acontece, a cópia de ideias. Diante do ex-
posto podemos inferir que o estudo do pensamento martia-
no continua atual e pertinente, pois historicamente nossas
“referências didáticas e modas pedagógicas estiveram vol-
tadas para o Atlântico e para o Norte” (STRECK, 2007).
Mesmo longe do seu país nunca desistiu da luta para
libertar seu país da dominação espanhola, seus ideais o le-
varam à morte na Batalha de Boca de Dois Rios em 19 de
maio de 1895. Sua morte parece ter sido um ato criativo,
tal qual sempre desejara: “Como um homem bom, com
meu rosto ao sol” (NASSIF, 2010, p.15). Portanto, seu
pensamento não deve ser desvinculado da sua luta revo-
lucionária e política e neste aspecto a educação para Martí

88
deve preparar os indivíduos para a vida.
Nesse sentido, uma das mais marcantes deinições
de educação que encontramos em Martí é a seguinte:

A educação [...] habilita os homens para obter,


com desafogo e honradez, os meios indispensá-
veis de vida no seu tempo de existência, sem des-
denhar, por isso, as aspirações delicadas, superio-
res e espirituais que representam a melhor parte do
ser humano. (MARTÍ apud NASSIF, 2010).

Observamos que além da educação contribuir para


que os sujeitos obtenham os meios materiais para sua
existência, segundo Martí a educação tem um papel mais
amplo que é de formação humana na sua integralidade
que contemple todas as suas dimensões cultivando assim
o melhor do ser humano. Nesse sentido, pensamos que o
modelo de educação proposta por esse pensador privilegia
uma educação que não nega a todos e todas de se apropriar
dos conhecimentos produzidos pela humanidade ao longo
da sua história, criando assim nos homens e mulheres uma
capacidade crítica e de compreensão do seu tempo.

A educação tem um inescapável dever para com


o homem [...]: conformá-lo com seu tempo, sem
aliená-lo da grande da grande e inal tendência hu-
mana. Educar é depositar no homem toda a obra
humana que o antecedeu; é fazer de cada homem
síntese do mundo vivente (...) colocá-lo ao nível
de seu tempo (...) prepará-lo para a vida. Educar
é dar ao homem as chaves do mundo que são a
independência e o amor, e preparar suas forças
para que a elas recorra por si, no passo alegre dos
homens naturais e livres. (MARTÍ apud NASSIF,
2010, p.16).

89
Como podemos perceber a educação tem um objeti-
vo de formar o homem e a mulher para poder atuar no seu
tempo e para isso é preciso que tenha um conhecimento
amplo e que este possa propiciar aos sujeitos uma capaci-
dade de pensar e agir sobre sua realidade. Enquanto Martí
estava pensando uma educação integral dos sujeitos, hoje
no Brasil vivenciamos um movimento contrário a essa
ideia, através das alterações na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDBEN 9394/96), que envolvem
o ensino médio e também mudanças no nível fundamen-
tal, retirando a obrigatoriedade do ensino de Sociologia,
Filosoia, Artes, Educação Física, Música, como também
não é mais obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira,
além de não ser mais garantida a universalidade do ensino
básico e a gratuidade do ensino público básico. Ou seja,
estamos vivenciando um empobrecimento da formação
dos nossos jovens e crianças que contraria completamente
o que pensa Martí. Como formar as novas gerações para
que elas assumam o protagonismo do seu tempo? Para que
elas tenham autonomia e amor preparando-os para a vida?
São questões que precisam ser respondidas e que pode-
mos encontrar no pensamento martiano várias indicações
de como a educação tem um papel preponderante nesse
caminhar.

Florestan Fernandes: o intelectual do povo


Escrever sobre o pensamento e sobre o homem Flo-
restan Fernandes é deveras desaiador por sua magnitude e
profundidade, portanto, não pretendemos e nem queremos
apresentar sua extensa obra, até porque não seria possível
fazê-lo neste pequeno ensaio. Mas, apenas trabalhamos

90
com alguns elementos de seu pensamento sobre a educa-
ção e de como podemos analisar a realidade e as reformas
em curso no Brasil na atualidade a partir do pensamento
de um intelectual que tão bem soube analisar e pensar a
constituição sociocultural do país e de seu tempo.
Para entendermos um pouco o homem Florestan
Fernandes é interessante conhecer a sua trajetória de vida.
Nasceu na casa de uma família rica onde sua mãe era em-
pregada doméstica e conheceu de perto o estilo de vida
da elite urbana. Foi como muitas crianças negras daquela
época “cria da casa” e vivenciou a mesma socialização do
paternalismo branco que ele mesmo descreveu tão bem
airmando que ele afeta o horizonte cultural dessas crian-
ças e gera uma vontade de “ser gente” (FERNANDES,
2009).
Diante disso, como vimos, sua infância junto com
a mãe foi marcada pela pobreza e desamparo, e por isso
desde muito cedo começou a trabalhar como engraxate,
balconista, entregador, garçom. No entanto, sempre foi
sequioso por conhecimento, sempre lia tudo que chega-
va a suas mãos. Apoiado por frequentadores do bar onde
trabalhava como garçom voltou a estudar quando esta-
va com 17 anos, tinha abandonado a escola no terceiro
ano, matriculando-se no curso madureza, equivalente ao
supletivo. Aos 22 anos, em 1941, ingressou no curso de
Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Inseguro
em relação às falhas na sua formação passou a frequentar
diariamente bibliotecas públicas e estudando com bastan-
te compromisso e seriedade, fato que foi reconhecido por
seus amigos e professores (PIZETTA, 2009). Nesse senti-

91
do, devido a seu empenho e obstinação tornou-se um dos
maiores sociólogos brasileiros e em 2005 tornou-se Patro-
no da Sociologia Brasileira. Durante quase 15 anos esteve
à frente de um grupo de sociólogos que icaria conhecido
com o nome de Escola Paulista de Sociologia.
Após essa exposição preliminar, importante fazer o
destaque sobre sua temática de estudo, a saber: a mudança
social a partir do padrão de dominação de classes, isto é,
sob a perspectiva da luta de classes.

A tese central é a de que o Brasil é a história de um


só ator: a classe dominante. Existem lutas entre as
diferentes frações e facções que compõem a classe
dominante, mas, em geral, elas não ecoam, nem
se transformam em alianças com os de baixo por-
que a dominação se realiza através de um padrão
de conciliação e de rearranjo entre os de cima. As
mudanças implementadas pela classe dominante,
em geral através do estado são mudanças para que
tudo permaneça como estava. (PIZETTA, 2009,
p.13).

Nesse sentido, se observarmos a história do Brasil


podemos notar um padrão de dominação de classe que se
reletiu na não aceitação pelas classes ou frações de clas-
ses dominantes de uma ampla participação do povo, dos
movimentos sociais, dos movimentos de resistência, dos
indígenas das populações negras, etc. Esse é o que Flo-
restan Fernandes chamou do “veneno da cobra”. Esses
extratos da sociedade sempre foram invisibilizados, des-
credibilizados e reprimidos para que não ocorresse uma
transformação real nas estruturas da sociedade brasileira,
oligárquica, patriarcal e branca.

92
Quando os extratos marginalizados começam a ga-
nhar voz e espaço como notadamente nos últimos 14 anos
no Brasil, a burguesia nacional, para manter a ordem bur-
guesa, começa a desmantelar esses grupos a partir da re-
pressão aos mesmos e no ataque aos direitos sociais con-
quistados, como por exemplo, a proposta de mudança à
LDBEN (9393/96), onde passa a não ser mais garantida
a universalidade do ensino básico e a gratuidade do ensi-
no público básico, como já indicado neste trabalho. Para
manter essa ordem a burguesia nacional “resolve suas ten-
sões internas através da política de conciliação por cima”,
fato que também vivenciamos em nosso país nos últimos
anos com os acordos e conchavos feitos que culminaram
com o afastamento da Presidenta eleita Dilma Roussef.
Mas, o próprio Florestan indicava o antídoto para
esse veneno, a “intransigência do pobre”, ou seja, sua ca-
pacidade de resistência e luta diante dos massacres sofri-
dos, e hoje não é diferente, temos notícias de que estudan-
tes se mobilizam e ocupam escolas e universidades contra
as reformas impostas pelo governo federal que apontam
para um retrocesso em relação à educação e um desman-
telamento em relação a direitos dos/as trabalhadores/as.
Colocar em prática essa intransigência signiica fortalecer
o espírito revolucionário não se deixando cooptar, mas,
trazendo vitórias para o povo, como dizia o próprio Flo-
restan.
Portanto, para ele a ruptura com o sistema capitalista
existente irá ocorrer e a Revolução necessitará fazer um
“acerto de contas” como o passado escravocrata e colonial
do Brasil que promoveu exclusão e o apartheid social.

93
Para isso, o primeiro acerto de contas será a Revolução
Democrática, “incorporando as classes populares à
sociedade política e enfrentando as mazelas da exclusão
política e da discriminação social” que historicamente se
perpetua no Brasil desde o período colonial. Fazem parte
dessa revolução democrática:

a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma


educacional . Políticas de redistribuição de renda,
de pleno emprego, de saúde pública etc. Em suma,
um conjunto de reformas produtoras da cidada-
nia ampla, plena e ativa. Essa revolução exigirá
a reorganização profunda da economia, com uma
redeinição das prioridades a partir dos interesses
dos trabalhadores, na perspectiva da construção
de um projeto popular. (PIZETTA, 2009, p.15).

A partir desse conceito de revolução democrática


percebemos como ainda temos muito que avançar, pois na
contramão do que propõe Florestan Fernandes as últimas
medidas anunciadas pelo governo federal apontam para
um congelamento nos gastos públicos, inclusive em rela-
ção à educação e saúde. E no que se refere às políticas de
redistribuição de renda, a Bolsa Família deixará de aten-
der mais de 10 milhões de famílias pobres de acordo com
a estimativa feita pela Fundação Perseu Abramo8. No en-
tanto, para que consigamos realizar a revolução democrá-
tica é necessário que as classes dominantes não consigam
mais governar como antes e que por outro lado as classes
oprimidas tomem consciência dos mecanismos de explo-

8 Disponível em: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/iles/


fpa-discute-bolsa-familia-2305.pdf. Acesso em: 01/11/2016.

94
ração para que assim passem a não aceitar a exploração e
a dominação e exijam que as transformações se efetivem
de fato e de direito.
Dessa forma, pensa que isso só é possível a partir de
um processo de formação da consciência crítica que acon-
teceria através da educação escolar. Para esse pensador o
espaço de formação do trabalhador é a escola, pois como
ele indicava, sem estudo é difícil desvendar os “mistérios”
da realidade; impossível descortinar a realidade revelando
a verdadeira causa dos acontecimentos: “os fatos não fa-
lam por si, é preciso interrogá-los e para isso é preciso ter
algum domínio teórico” (FERNANDES, 1986).
Nesse sentido, observamos como a luta por uma
educação pública universal, laica, gratuita e de qualidade
como direito de todos e todas foi de grande importância
para esse grande mestre e como ele depositava esperan-
ças na educação como possibilidade de vencer as mazelas
impostas às classes populares durante anos de exploração,
de colonização e escravização, ou seja, a educação escolar
como o lugar de formação da consciência crítica.
No entanto, não é qualquer modelo de escola que
contribuirá para formação da consciência crítica que leve
o povo a lutar por uma sociedade justa e equânime, é pre-
ciso um modelo de educação libertadora que construa nos
sujeitos a capacidade de agir e pensar sobre o seu tempo
e espaço. Nesta direção, o que hoje se apresenta no Brasil
é um completo retrocesso no que diz respeito ao modelo
de educação escolar proposto, convivemos com a reforma
do Ensino Médio (Medida Provisória nº 746) que torna o
ensino de ilosoia e sociologia, entre outras disciplinas,

95
não obrigatório, exatamente disciplinas que levam os/as
estudantes a pensarem criticamente a realidade. Para Silva
(2016), esta medida “visa tão somente abrir o setor edu-
cacional para exploração como “nicho de mercado” por
empresas nacionais e internacionais, que irão aumentar
seus lucros vendendo uma educação aligeirada e de má
qualidade à juventude”9.
Por outro lado, um projeto intitulado “Escola sem
Partido” cujo objetivo é tirar todo teor político do ato de
educar como se isso fosse possível, alegando que há nas
salas de aula doutrinação ideológica e, portanto, temas
como gênero, questões étnico-raciais, questões sobre se-
xualidade, etc., não devem ser debatidos em sala de aula,
temas estes de fundamental importância para formação de
sujeitos justos, livres e que respeitam a diversidade.
Nessa breve exposição destacamos como vários con-
ceitos formulados por Florestan Fernandes permanecem
válidos, contribuindo para explicar a realidade, tirando o
véu que cobre a forma como os arranjos políticos, eco-
nômicos e sociais se estabelecem numa sociedade de ca-
pitalismo tardio e dependente como o Brasil. Entre esses
nos interessa o conceito do dilema educacional brasileiro,
desenvolvido nos anos de 1950.

[...] Como ocorre em outros países subdesenvol-


vidos, ele é de fundo institucional. O sistema edu-
cacional brasileiro abrange instituições escolares
que não se ajustam, nem qualitativamente nem
quantitativamente, a necessidades educacionais
prementes, que são compartilhadas em escala
nacional ou que variam de uma região para outra

9 Disponível em: http://blogdejamerson.blogspot.com.br/

96
do país. Daí ser urgente e vital alterar a estrutu-
ra, o funcionamento e o modo de integração das
instituições. O aspecto prático do dilema revela-
-se neste plano: o reconhecimento dos problemas
educacionais de maior gravidade e a realização
dos projetos de reforma educacional esbarram,
inelutavelmente, com diversos obstáculos, do
apego a técnicas obsoletas de intervenção na reali-
dade à falta de recursos para inanciar até medidas
de emergência. (FERNANDES apud SOARES,
2009, p.57-58).

Sua análise permanece atual visto que até hoje o


Brasil não solucionou problemas de ordem institucional
como, por exemplo, o número de escolas para o Ensino
Médio não se ajusta quantitativamente às necessidades
educacionais, sem falar que a expansão quantitativa de
matrículas no Ensino Fundamental não foi acompanhada
por uma expansão qualitativa. Em diversos municípios do
país a proliferação dos anexos escolares é uma realidade,
esses anexos geralmente são instalados em casas ou gara-
gens sem a menor infraestrutura, são espaços pequenos,
sem ventilação e/ou iluminação adequada, entre outros
problemas. Por outro lado, quanto ao inanciamento pre-
visto para educação, hoje a proposta de emenda consti-
tucional PEC 55/2016 (antiga PEC 241) prevê congelar
nos próximos vinte anos investimentos em todas as áreas,
inclusive na educação, o que signiica menos creches, me-
nos escolas, menos materiais, menos investimentos, etc.
Na verdade, o pensamento de Florestan Fernandes
para educação e suas contribuições para o momento atual
são imensos e profundos, e demonstram uma preocupação
que já apresentava inicialmente uma vez, que considerava

97
que as reformas republicanas burguesas, ou seja, as refor-
mas democráticas para educação nacional ainda não fo-
ram atingidas (SOARES, 2009). Por diversas vezes disse
que nos anos de 1980 e 1990 ainda lutávamos por ideais
republicanos, e nos arriscamos a dizer que ainda hoje luta-
mos. Enim, para esse pensador é necessário e urgente que
se faça uma revolução educacional, para que as popula-
ções empobrecidas encontrem condições de emancipação
intelectual, cultural e política, sem essa transformação é
impossível outros tipos de transformações.

Ernesto “Che” Guevara: o médico revolucionário


Iniciamos esse tópico com uma licença poética e
para isso utilizamos o que nos diz Saramago (2001): “Che
Guevara, se pode dizer, já existia antes de ter nascido, Che
Guevara, se tal se pode airmar, continuou a existir depois
de ter morrido. Porque Che Guevara é só outro nome do
que há de mais justo e digno no espírito humano. O que
tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que deve-
mos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescen-
tar o passo humilde de cada um ao caminho de todos”.
Trazer o pensamento de Che Guevara para essa dis-
cussão é desaiador, já que sua igura desperta sentimentos
diversos e por vezes contraditórios, e por essa razão inicia-
mos o tópico com essas palavras de Saramago, pois para
entendermos o homem, o intelectual, o revolucionário, o
médico, é preciso resgatar essa percepção daquilo que ele
representou e representa, a justeza e a dignidade do espíri-
to humano, a luta incessante por construir um mundo mais
justo e igualitário, pensando isso a partir da libertação

98
da América Latina. Poderíamos estudar seu pensamento
a partir de diferentes óticas, mas aqui queremos desta-
car suas contribuições para o pensamento pedagógico na
América Latina. Outro aspecto importante da sua perso-
nalidade é a busca constante e cotidiana de viver de forma
coerente com aquilo que pensava, podemos observar isso
nas palavras da sua ilha Aleidia: “meu pai procurou vi-
ver todos os dias de forma coerente com o que pensava”
(ALEIDITA apud PÉREZ, 2001).
Ernesto Guevara de La Serna nasceu na cidade ar-
gentina Rosário, em uma família de classe média. Era o
ilho mais velho de uma família de cinco irmãos. Mui-
to criança, com dois anos, teve os primeiros sintomas de
asma, doença que o acompanhara pelo resto de sua vida e
que de certa forma o levou ao curso de medicina e a desen-
volver trabalhos voluntários em um Instituto de Pesquisas
Alérgicas. Desde cedo demonstrou apreço pelas atividades
realizadas ao ar livre, se interessando por diversos espor-
tes. O ambiente familiar favoreceu seu gosto e curiosidade
pela leitura e a cultura de forma geral.
Importante destacar uma passagem muito signiica-
tiva da sua vida, que foi a viagem que realizou de motoci-
cleta em 1951 com seu amigo Alberto Granado percorren-
do vários países da América do Sul, onde pôde observar e
sentir o sofrimento e a miséria dos camponeses, mineiros
e trabalhadores em geral desses países. Acreditamos que
essa experiência contribuiu muito para forjar seus valores
e sua forma de pensar o mundo e a realidade e também o
seu humanismo. Nesse sentido, para ele o objetivo prin-
cipal de toda luta é o homem, ou seja, os seres humanos.

99
Seu bem-estar, sua superação enquanto ser que
busca se aperfeiçoar, que busca a felicidade, que
busca viver numa sociedade justa. A luta, o parti-
do, a guerrilha, sempre são interpretados por Che
como meios. O im é alcançar uma sociedade de
homens livres e fraternos. (PÉREZ, 2001, p.13).

Depois de formado em medicina, em 1953, realiza


outra viagem, desta vez para a Bolívia, onde presenciou a
implementação da Reforma Agrária, ainda foi ao Equador
seguindo pela América Central até à Guatemala, onde co-
nhecerá Ñico López e outros dissidentes cubanos que lhes
falam sobre Fidel Castro e o assalto ao Quartel de Mon-
cada10. Nessa época segue para o México devido ao golpe
sofrido pelo governo de Jacobo Árbenz. Neste país co-
nhecerá Raul Castro e, em seguida Fidel, e aqui recebe o
apelido de “Che”. Em 25 de novembro de 1956 parte para
Cuba no iate Granma com mais 82 combatentes, chegan-
do a Havana vários desses combatentes morrem e aqueles
que sobreviveram se reagruparam e se encontraram em
Sierra Maestra, aqui começava a se forjar o guerrilheiro,
o estrategista militar. E destacamos que a cada nova área
conquistada uma das primeiras providências era construir
um espaço para atendimento médico e uma escola, ain-

10 No dia 26 de julho de 1953 Fidel Castro e seu irmão Raul Castro


junto com outros revolucionários tentaram tomar de assalto o Quartel de Mon-
cada em Santiago de Cuba, e Carlos de Céspedes, em Bayamo. No entanto,
a investida não obteve sucesso, mas é considerada o princípio da derrocada
da ditadura de Fulgêncio Batista. Muitos combatentes foram presos e assas-
sinados, Fidel foi julgado e condenado a 15 anos de prisão. Sendo advogado
pronuncia sua autodefesa que passou a ser conhecida como “A história me
absolverá”. Após forte campanha popular conseguiram anistia e se exilaram no
México onde se reorganizaram e partiram clandestinamente a Cuba iniciando
a Revolução Cubana que triunfaria em 1º de Janeiro de 1959. Disponível em:
www.sintesecubana.com.br. Acesso em 08/11/2016.

100
da em Sierra Maestra liderou uma grande campanha de
alfabetização das populações campesinas e durante todo
processo revolucionário sua prioridade era a alfabetização
e o estudo dos guerrilheiros.

Insistirá na importância da formação cultural de


seus homens, só possibilitando sua ascensão den-
tro dos quadros do Exército Rebelde se soubes-
sem ler e escrever. Para isso, dará aulas a alguns
de seus subordinados pessoalmente e promoverá
a criação de escolas na região em que seu grupo
atuava e libertava. É bom lembrar que durante a
luta guerrilheira lia trechos de Dom Quixote para
seus companheiros de armas, e que iria incentivar
a publicação deste e de outros livros depois da re-
volução. (PERICÁS, 2010, p.395).

Assim, podemos perceber a importância que a edu-


cação e a cultura tinha no seu pensamento, como formação
de um novo tipo de homem e mulher livres das amarras
da ignorância e do jugo da subserviência. Nesse sentido,
destacamos a aproximação do seu pensamento como os
outros autores discutidos neste texto, já que todos acredi-
tavam na educação como um elemento fundamental para a
construção de uma América Latina livre e autônoma. De-
pois do triunfo da revolução, Che continuou dando ênfase
à educação e em muitos dos seus discursos demonstrava a
importância dos estudos e da consciência na construção do
“homem novo” e do socialismo (PERICÁS, 2010).
Ainda segundo Pericás (2010), pode- se destacar di-
versos aspectos do pensamento pedagógico de Che, entre
eles: sua intenção de erradicar o analfabetismo; a incor-
poração plena da mulher em todos os aspectos da vida

101
política e social cubana; o estímulo para a formação de
técnicos e do ensino em áreas tecnológicas; uma educa-
ção de caráter popular; a conversão de alguns quartéis em
escolas; o maior conhecimento pelos trabalhadores do seu
próprio trabalho; e uma escola onde todos pudessem estu-
dar sem distinção de idade ou sexo. Mais uma vez pode-
mos airmar como nossos autores se aproximam ao pensar
sobre a educação e seu papel na formação dos sujeitos,
destacamos aqui a importância que esses intelectuais dão
à necessidade de uma educação de caráter popular e uma
escola onde todos e todas possam estudar sem distinção.
Chamamos a atenção para a luta de Che em inserir a mu-
lher em todos os aspectos da vida social e política cubana,
tema esse muito atual onde ainda persiste a desigualda-
de na participação feminina especialmente na política em
toda América Latina e em particular no Brasil.
Destacamos que ao longo de toda sua trajetória Che
buscou colocar em prática o ideário de José Martí no que
diz respeito à construção e consolidação de um espírito
latino-americano, isto porque contribuiu para se com-
preender que as causas dos problemas sociais nos diferen-
tes países são as mesmas e que nenhum país conseguirá
construir uma sociedade mais justa e fraterna na América
Latina isoladamente, isso só acontecerá com a união do
povo latino-americano (PÉREZ, 2001).
Uma importante contribuição de Che para nós, neste
trabalho, é seu pensamento sobre o papel da universida-
de que ele expressa em seu discurso na Universidade de
Las Villas em 1959, ao receber o título de Doutor Honoris
Causa da Faculdade de Pedagogia. E assinala como artigo

102
primeiro, sobre a função da universidade.

Tenho que dizer que ela se pinte de negro, que se


pinte de mulato, não só entre os alunos, mas tam-
bém entre os professores; que se pinte de operá-
rio e camponês, que se pinte de povo [...] [...] e a
Universidade deve ser lexível, pintar-se de negro,
de mulato, de operário, de camponês ou icar sem
portas, e o povo a arrebentará e pintará a Universi-
dade com as cores que melhor lhe pareça. (GUE-
VARA, 1981. p.87-88).

Nesse sentido, no Brasil, em contrapartida, o que


vivenciamos hoje é a diminuição de vagas nos cursos de
graduação, medida imposta pelo Ministério da Educação
às Universidades Públicas, o que poderá acarretar num
processo de exclusão ainda maior que deixará a Universi-
dade Brasileira ainda mais monocromática. E ainda neste
discurso Che fala sobre seu desejo que a juventude seja
formada para assumir qualquer posto que lhe for atribuído
com competência e sem vacilação e neste ponto vemos
mais uma aproximação com o pensamento de Martí sobre
a necessidade de uma Universidade que forme sujeitos co-
nhecedores da realidade na qual estão inseridos, conhece-
dores dos problemas que aligem o povo latino-americano.

[...] que se prepare a juventude estudantil do país,


para que cada um, em um futuro imediato, tome
posto que lhe seja destinado, e o tome sem vacila-
ção e sem necessidade de aprender pelo caminho,
mas este professor que está aqui também quer i-
lho do povo, criado pelo povo, que seja este mes-
mo povo que tenha direito também aos benefícios
do ensino, que se derrubam os muros do ensino,
que o ensino não seja simplesmente o privilégio
dos que têm algum dinheiro, para poder fazer que

103
seus ilhos estudem que o ensino seja o pão de to-
dos os dias do povo de Cuba. (GUEVARA, 1981.
P.90).

Diante do exposto percebemos como seu pensamen-


to e legado continuam atuais e presentes em nossas vi-
vências, pois os problemas sociais e concretos dos povos
da América Latina permanecem, apesar de todo desenvol-
vimento das forças produtivas. E desejamos, assim como
Che, que o ensino no Brasil seja para todos e todas inde-
pendentemente de classe, gênero, etnia e/ou de religião,
que os benefícios do ensino possam alcançar a todos e to-
das promovendo uma verdadeira transformação no nosso
país.

Algumas considerações
Diante do exposto, destacamos a atualidade do pen-
samento destes intelectuais, retomando a pergunta inicial:
quais contribuições estão presentes no pensamento de
José Martí, Florestan Fernandes e Ernesto Che Guevara
que ajudam na compreensão da realidade educacional na
contemporaneidade no Brasil? Acreditamos que ao longo
do ensaio conseguimos apresentar várias contribuições
que esses autores trazem para pensarmos a realidade edu-
cacional em nosso país. Dentre as já citadas todos esses
autores se aproximam na luta e defesa de uma educação
pública universal, gratuita e laica, tema tão caro a esses
autores e que hoje no Brasil sofre ataque sem tamanho,
a partir do próprio Ministro da Educação que propõe pa-
gamento nas Universidades Públicas e gestão privada da
escola pública.

104
Dentre vários pontos de intersecção no pensamen-
to desses autores podemos destacar também a crença na
educação escolar para a liberdade e para a formação da
consciência crítica. A educação como elemento essencial
para a revolução, no sentido de transformar uma realidade
de exploração, opressão e exclusão.
Consideramos que a identiicação desses autores
com os pobres, os excluídos e explorados é balizadora do
pensamento, das relexões e análises construídas por eles,
e por isso mesmo continuam atuais. Outro ponto em co-
mum, agora entre Fernandes e Guevara, é o fato de José
Martí ter sido inspiração para os dois, o reconhecimento
de sua grandeza e do papel preponderante do seu pensa-
mento e ação para a emancipação da América Latina. Para
Guevara, Martí foi o grande mentor da Revolução Cuba-
na, era a ele que sempre recorriam quando queriam fazer
uma interpretação justa dos fenômenos históricos ou cada
vez que queriam fazer algo que transcendesse a Pátria,
porque ele, além de ser cubano, era americano, pertencia a
todos os países que compõem a América Latina (GUEVA-
RA, 1960)11. Já para Fernandes, além de jornalista, poeta
e cientista social foi um lutador e um educador sempre
pronto a servir, a colocar seu ardor revolucionário a ser-
viço de Cuba e de toda Nuestra América (FERNANDES,
1984).

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nal. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece
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105
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107
EDUCAÇÃO PÚBLICA DE QUALIDADE: PERS-
PECTIVAS ATUAIS NO CONTEXTO DAS ESCO-
LAS DO CAMPO
Maria Girlene Callado da Silva. Graduada em Pedagogia pela Universida-
de Federal de Pernambuco/ Campus Acadêmico do Agreste (UFPE/CAA).
Email: girlenecallado@hotmail.com

Resumo
Este artigo pretende apresentar um panorama do pensamento latino-
-americano partindo de uma realidade histórica presente em nossa so-
ciedade no que se refere à educação do campo, a proposta é descrever,
através dos pensamentos dos autores José Pedro Varela, José Vasconce-
los, e Paulo Freire, o pensamento em torno da temática escola pública
de qualidade. O artigo tem como objetivo geral: analisar se a educação
pública tem garantido aos sujeitos do campo acesso a uma educação de
qualidade. E como objetivos especíicos: I) Identiicar como os teóricos
latino-americanos, José Vasconcelos, José Pedro Varela e Paulo Freire,
discutem a educação pública; e II) Compreender como a educação pú-
blica vem sendo pensada para a educação do campo. Os resultados da
pesquisa possibilitaram identiicar no pensamento dos teóricos latino-a-
mericanos traços que revelam a defesa de uma educação pública volta-
da para a classe popular e percebemos que as políticas para a educação
do campo precisam avançar.
Palavras-chaves: Escola pública, qualidade da educação e Educação
do Campo.

Introdução

108
Tratar o pensamento pedagógico à luz de teóri-
cos latino-americanos é perceber o quão pertinentes são
os conteúdos a respeito dessas temáticas. Para tanto, as
discussões pontuadas na disciplina: Tópicos Atuais em
Educação I Pensamento Pedagógico Latino-Americano,
ofertado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
Contemporânea pela Universidade Federal de Pernambuco
– Centro Acadêmico do Agreste, despertou em nós o
desejo de construir um entendimento acerca da educação
pública no contexto das escolas do campo a partir do olhar
de José Vasconcelos, José Pedro Valera e Paulo Freire.
A escola pública continua abrigando em sua orga-
nização uma discussão muito presente: as escolas são de
fato para todos? Que ensino tem sido pensado para estas
escolas? É um ensino de qualidade ou não? E que quali-
dade estamos falando? Diante desses questionamentos é
necessário compreender, portanto, o lugar do qual estamos
falando.
Para compreender a situação atual da Educação do
Campo, é preciso recorrer às condições históricas as quais
essa foi submetida ao longo dos tempos, através dos fatos
que a coniguram. Fonseca e Mourão (2012) nos ajudam
a compreender o movimento de construção do sistema do
capital, o qual constituiu historicamente a educação do
campo.
Dentro dessa perspectiva percebemos que, a lógica
do capital penetra no campo, portanto, a marca do capital
toma espaço e faz com que os sujeitos lutem pelas suas
terras. Da resistência dos trabalhadores subalternizados
expostos a condições escravizadas, vai surgindo a discus-

109
são da educação do campo, que vai tomando uma dimen-
são de luta pela situação a qual esta é colocada.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
(MST) é um dos herdeiros desse processo histórico de re-
sistência e de luta para o campo brasileiro, são esses os
protagonistas pela ressigniicação da terra e educação do
homem do campo.
A educação do campo então nasce da articulação
com os movimentos sociais, que diante da situação preci-
savam resistir. Dentro dessa perspectiva de luta dos MST,
discutimos a partir de Caldart (2012) que:

[...]a Educação do campo nomeia um fenômeno


da realidade atual, protagonizado pelas lutas dos
trabalhadores do campo e suas organizações que
visa incidir sobre a política de educação desde os
interesses sociais das comunidades camponesas
(CALDART, 2012, p.259).

A resistência à luta pela terra vai quebrando os pa-


radigmas e as condições subalternas às quais os sujeitos
do campo foram submetidos. Portanto, concebidos como
sujeitos educativos, que lidam com esta realidade, preci-
samos compreender como a escola pública tem sido pen-
sada e discutida em todas as esferas sociais. Nesse senti-
do, apresentamos como questão de pesquisa: a educação
pública tem garantido aos sujeitos do campo acesso a uma
educação de qualidade?
Para tanto, temos como objetivo geral: analisar se
a educação pública tem garantido aos sujeitos do campo
acesso a uma educação de qualidade. E como especíicos:

110
I) Identiicar como os teóricos latino-americanos, José
Vasconcelos, José Pedro Varela e Paulo Freire, discutem
a educação pública; e II) Compreender como a educação
pública vem sendo pensada para a educação do campo.
A pesquisa está estruturada de maneira que o leitor
compreenda o marco teórico metodológico constituído a
partir das categorias: Escola Pública de qualidade para to-
dos sob o olhar de: Gadott (2013), Ocampo (2005) e Roc-
chietti (2010); e Educação do Campo a partir de: Caldart
(2004;), Caldart (2012), Borges e Silva (2012), Ribeiro
(2012), Oliveira e Campos (2012), Faccio (2012), Fernan-
des, Ceriole e Caldart (2004) e Freire (2006).
Seguimos com a metodologia apresentada na pers-
pectiva de uma pesquisa bibliográica, chegamos à análise
dos dados a partir categorias analíticas: i) educação pú-
blica: relexões a partir de José Vasconcelos, José Pedro
Varela e Paulo Freire; ii) a qualidade da educação: pers-
pectivas e desaios na educação do campo. E por im apre-
sentaremos as considerações e nossas referências.

Escola Pública de qualidade para todos


No âmbito de um cenário nada amimador, o qual es-
tamos vivenciando nos últimos tempos, em relação à edu-
cação em nosso país, temos assistido a um grande desaio
no que tange à questão das políticas públicas de educação
para garantia de uma qualidade mínima no ensino.
A educação pública hoje carece de mais atenção e
precisa ser pensada e ressigniicada no sentido de que pos-
sa garantir aos sujeitos uma maior emancipação e parti-

111
cipação social nas tomadas de decisões. Hoje a educação
tornou-se uma conquista e deve ser assegurada para todos,
como mostra a própria Constituição:

[...] a educação, direito de todos e dever do Es-


tado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao ple-
no desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualiicação para o
trabalho. (BRASIL 1988).

A Constituição deixa evidente que todos os sujeitos


têm o direito de estudar, e de ser educado, entretanto, esse
direito tem sido tomado como um desaio frente aos fa-
tores em que se encontra a atual situação educacional do
país. Como bem sabemos, o direito à educação escolar é
um assunto que não perdeu nem perderá sua atualidade,
principalmente diante das mudanças que estamos enfren-
tando nos dias de hoje com as rupturas políticas de um
governo que pouco tem feito pela educação.
O desaio que está posto, é pensar como a escola pú-
blica pode oferecer uma educação de qualidade aos seus
sujeitos? De que qualidade estamos falando? Se a ofer-
ta de educação nos centros urbanos deixa dúvida sobre o
ensino que se mostre eiciente e democrático, o que dizer
desse ensino pensado para as escolas do campo? Que por
muito tempo foram os sujeitos dessa localidade marginali-
zados e vistos como coitadinhos e como ignorantes.
Ao tratar sobre educação pública para todos, parti-
remos de uma questão inicial para estabelecer uma com-
preensão em torno do que estamos discutindo. Quando a

112
escola pública era destinada apenas à elite, esta por sua
vez era de qualidade. Quando tornou-se obrigatória para
todos, existem muitas limitações que precisam ser releti-
das no que concerne a uma qualidade social adequada. Ao
falar sobre educação de qualidade nos apoiamos ao pensa-
mento de Gadotti 2013, quando sinaliza que:

[...] qualidade signiica melhorar a vida das pes-


soas, de todas as pessoas. Na educação a qualida-
de está ligada diretamente ao bem viver de todas
as nossas comunidades, a partir da comunidade
escolar. A qualidade na educação não pode ser boa
se a qualidade do professor, do aluno, da comuni-
dade é ruim. Não podemos separar a qualidade da
educação da qualidade como um todo, como se
fosse possível ser de qualidade ao entrar na escola
e piorar a qualidade ao sair dela. (Gadotti 2013,
p.2).

A citação acima nos remete a pensar as condições


que possibilitam uma nova qualidade para a vida das pes-
soas, que é permitida por meio da educação, qualidade
esta que permite fazer com que os sujeitos tenham melho-
res condições de vida. Mas isso só será possível se de fato
tivermos uma educação pública para todos.
Sobre o pensamento de uma escola pública para to-
dos, alguns teóricos latino-americanos defendem esta es-
cola em seus pensamentos. A exemplo do intelectual me-
xicano José Vasconcellos, que concebe a educação com
ênfase na identidade dos sujeitos, este pensava uma edu-
cação voltada para as classes populares como mostra a se-
guir:

113
[...] El humanista José Vasconcelos dedico todas
sus energias a la causa de la educacion popular,
pues em su política educativa empesó su obra
desde abajo. En sus anõs como Secretario de ins-
trucción Pública desde 1991 hasta 1924, se dedico
a combatir el analfabetismo y a crear numerosas
escuelas em todo el territorio de la república de
México (OCAMPO, 2005, p. 150)12.

A citação de Ocampo (2005) nos mostra a intencio-


nalidade de José Vasconcelos para com as classes menos
favorecidas. Vasconcelos pensava numa formação de um
homem novo para o mundo contemporâneo e isso só era
possível se a educação chegasse a todos, mostrando uma
forte relação com a educação popular. Este mesmo teórico
se preocupou com a educação do campo criando escolas
nessas localidades, para que todos pudessem ter acesso à
educação.
A educação pública deve ser pensada para todos,
com condições de gratuidade, laicidade e obrigatoriedade
dos governantes. Nesse sentido, José Pedro Varela Uru-
guaio revela em suas práticas uma proposta de educação
que alcançasse a todos, numa condição de equiparação das
populações.
O pensamento de educação pública de qualidade que
oriente os sujeitos a crescerem como verdadeiros cidadãos
de diretos, que possam aprender além do ler e escrever, ter

12 O humanista José Vasconcelos dedicou todas as suas energias


para a causa da educação popular, desde a sua educação em política, começou
o seu trabalho a partir de baixo. Em seus anos como secretário de Educação
1991-1924, ele foi dedicado à luta contra o analfabetismo e a criar numerosas
escolas em todo o território da República do México (OCAMPO, 2005, p.
150).

114
condições para viver sua cultura, sua identidade e agir na
sociedade democraticamente. Nesse sentido dialogamos
com Rocchietti (2010) ao airmar que:

[...] a educação não signiica só sabe ler e escre-


ver, nem a aquisição de um grau, por considerável
que seja, de mera cultura intelectual. Ela é, em
seu mais amplo sentido, um procedimento que se
estende desde o princípio até o im da existência
(ROCCHIETTI 2010, p.128).

A partir da citação acima, percebemos que, uma edu-


cação para ser de fato eiciente precisa romper com esse
pensamento que escola é lugar apenas de ler e escrever, é
preciso novos métodos, novas possibilidades para o de-
senvolvimento de uma educação que seja para o povo,
para o melhoramento de suas condições de vida e aperfei-
çoamento de sua instrução.
Tais relexões tentam igurar como fundamentos
para a construção de uma compreensão sobre a educação
pública, que por sua vez aparece nas concepções teóricas
dos teóricos latino-americanos.
O comprometimento com uma escola pública de
qualidade precisa estar atrelado às políticas que garantam
a sua existência e permanência para a população. Isto sig-
niica que para que a educação seja pública e de qualidade,
esta precisa ser pensada de maneira que possa chegar a to-
dos democraticamente e que seja voltada para a realidade
de seu público.

Educação do Campo

115
Educação do Campo pressupõe a luta dos movimen-
tos sociais em busca de uma educação que seja de quali-
dade e que possa ser oferecida na própria localidade na
qual os sujeitos se encontram. Nesse contexto de lutas por
uma educação que seja “No e Do campo”, No por saber-
mos que o povo tem direito de ser educado no lugar onde
vive, e Do por entendermos que o povo tem direito a uma
educação pensada desde o seu lugar” (CALDART, 2004,
p. 149). Notamos que a educação do campo pressupõe um
novo redimensionamento da educação do trabalhador no
campo, pensada de maneira que o homem do campo seja
protagonista dos processos educativos onde quer que es-
teja.
A Educação do Campo trata-se de um conceito em
construção como a própria Caldart (2012) nos revela, este
conceito de educação está relacionado à valorização da
identidade própria de cada sujeito do campo e de suas lo-
calidades, nesse sentido o campo é visto como o espaço
de vida, local em que os moradores, sejam eles agricul-
tores e suas famílias, bem como assalariados, assentados,
ribeirinhos, caiçaras, extrativistas, pescadores, indígenas,
remanescentes de quilombolas, enim, que todos os povos
do campo do Brasil” (BORGES E SILVA 2012, p.215)
possam viver dignamente e possam ser educados.
Ao contrário da educação do campo, a educação ru-
ral foi pensada para as elites dominantes, trata-se de uma
educação que funcionou como um instrumento formador
tanto de uma mão de obra disciplinada para o trabalho as-
salariado rural quanto de consumidores dos produtos agrí-
colas (RIBEIRO, p. 299). Trata-se de uma educação que

116
se assemelha à educação urbana, não leva em considera-
ção as especiicidades dos sujeitos.
Na educação rural o saber continua sendo subalter-
nizado, e os conhecimentos distanciados dos valores cul-
turais próprios, ou seja, é uma educação que se distancia
dos trabalhos desenvolvidos na terra, nessa educação não
é tarefa da escola formar as crianças, por isso muitas delas
costumam ir tarde para a escola, porque têm que trabalhar
desde cedo ou desistem antes mesmo de terminar o ensino
fundamental.
A educação do campo carrega nas suas concepções
históricas a marca do capitalismo na educação do cam-
po; a subalternização na qual os sujeitos do campo foram
submetidos; as relações entre o latifúndio e minifúndio; a
leitura dos sujeitos como seres menos pensantes; o movi-
mento do ruralismo pedagógico; a articulação dos movi-
mentos em prol das políticas públicas de educação.
Sobre a educação do campo ica evidenciado ainda o
protagonismo dos movimentos sociais, pois, compreender
como a educação vem se constituindo ao longo do pro-
cesso histórico, é perceber como as lutas dos movimen-
tos sociais campesinos estão diretamente relacionadas a
essa conquista, nesse caso não podemos negar a luta do
MST13 (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Ter-
ra), em defesa de políticas públicas para uma educação do
13 O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é um
movimento social brasileiro de inspiração marxista que declara em seu objeti-
vo buscar a implantação da reforma agraria no Brasil. O MST nasceu da junção
de outros movimentos que faziam oposição ou não viam com bons olhos a
proposta da reforma agrária imposta pelo regime militar, principalmente na
década de 1970 (FACCIO, 2012, P. 199).

117
campo que seja exclusivamente destinada ao homem do
campo.
O debate sobre a educação do campo perpassa por
algumas relexões, entre elas a sua nomenclatura e os pa-
radigmas que a sustentam. A educação do campo aqui
defendida, a partir da classe trabalhadora, se fundamenta
num paradigma que rompe com a concepção de educação
rural.
Trata-se de uma ruptura de oferta de educação pen-
sada numa perspectiva urbanocêntrica, os conteúdos a se-
rem trabalhados com os alunos não consideram as lutas
dos sujeitos do campo pelo direito à educação, à cultura, à
memória, à vida digna, considerando seu espaço. Ao tra-
tarmos da educação rural a compreendemos como aquela
que tem:

[...] como propósito a escolarização como instru-


mento de adaptação do homem ao produtivismo
e à idealização de um mundo do trabalho urbano,
tendo sido um elemento que contribuiu ideolo-
gicamente para provocar a saída dos sujeitos do
campo para se tornarem operários na cidade. A
educação rural desempenhou o papel de inserir os
sujeitos do campo na cultura capitalista urbana,
tendo um caráter marcadamente “colonizador”, tal
como critica Freire (1982) (OLIVEIRA E CAM-
POS 2012, p.240).

Essa visão de escola é “[...] destinada de modo geral,


à população agrícola constituída por todas aquelas pessoas
para as quais a agricultura representa o principal meio de
sustento” (RIBEIRO 2012, p.295), este tipo de educação
não se adequa à realidade de vida dos camponeses, se

118
preocupando somente com a produção capitalista.
É notável a multiplicidade de sujeitos que faz
parte do campo, o que nos remete a compreender que,
o compromisso com esses povos demanda atenção para
sua localidade. Desse modo, é imprescindível discutir
a educação do campo tomada como uma política que
possibilite a esses diferentes sujeitos a participação no
conjunto das ações que envolve o educar.
Tratar a educação do campo no viés da inclusão dos
sujeitos, na participação da tomada de decisão e das ques-
tões identitárias é pensar num processo educacional que
fortaleça o paradigma para as lutas dos povos dos campos
em prol de uma educação que seja de qualidade social-
mente referenciada, que considere uma educação no e do
campo que por muito tempo foi negada aos seus sujeitos.
Para tal, Fernandes, Ceriole e Caldart sinalizam:

[...] precisamos de políticas públicas especíicas


para romper com o processo de discriminação,
para fortalecer a identidade cultural negada aos
diversos grupos que vivem no campo, e para ga-
rantir atendimento diferenciado ao que é diferente
mas que não deve ser desigual (2004, p. 49).

Dessa forma, a educação do campo marcada pela


luta dos trabalhadores terá outra perspectiva a partir do
momento que a educação for pensada nesse viés, levando
em consideração o horizonte de direitos que cabe ao ho-
mem, à mulher, à criança e ao jovem que vivem no campo,
com as suas histórias e o seu modo de viver.
Para Freire, grande defensor da escola pública, que

119
é a escola da maioria dos cidadãos, vem nos mostrar que:

[...] é preciso que a educação esteja - em seu


conteúdo, em seus programas e em seus méto-
dos - adaptada ao im que se persegue: permitir
ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como
pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os
outros homens relações de reciprocidade, fazer a
cultura e a história [...] uma educação que liberte,
que não adapte, domestique ou subjugue. (FREI-
RE, 2006, p. 45).

A percepção que Paulo Freire apresenta ao pensar o


homem, a sociedade e suas relações, é uma concepção de
torná-los melhores mediante o compromisso e a participa-
ção de todos, na perspectiva de uma educação popular que
de fato seja libertadora, capaz de contribuir para que os
tornem sujeitos de seu próprio desenvolvimento.
Nesse sentido, a educação pública pensada também
como um projeto popular, carrega em si a construção de
um ensino que esteja voltado para a educação libertadora,
que reconheça os sujeitos como protagonistas dos saberes
e está atrelado a construções de aprendizagens críticas, ca-
pazes de construir novos conhecimentos e novos saberes a
partir da realidade dos sujeitos e de suas localidades.

Desenho metodológico
A metodologia do trabalho constitui em elucidar ele-
mentos constitutivos do pensamento pedagógico latino-a-
mericano dos autores José Vasconcelos, José Pedro Varela
e Paulo Freire. Para atender aos objetivos da pesquisa, a
construção do objeto de estudo: educação pública, o ponto

120
de vista da abordagem do problema, está pautada na abor-
dagem qualitativa que é profícua para se compreender os
estudos sociais, nesse sentido Minayo ressalta que:

[...] este tipo de pesquisa trabalha com um uni-


verso dos signiicados, dos motivos, das aspira-
ções, das crenças dos valores e das atitudes. Esse
conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui
como parte da realidade social, pois o ser humano
se distingue não só por agir, mas por pensar sobre
o que faz e por interpretar suas ações dentro e a
partir da realidade vivida e partilhada com seus
semelhantes (2009, p.21).

A pesquisa qualitativa nos ajuda a entender melhor


os conhecimentos que vão sendo constituídos nas relações
entre os pares. Os procedimentos técnicos adotados aqui
estão voltados para a pesquisa bibliográica, que por sua
vez é:

[...] feita a partir do levantamento de referências


teóricas já analisadas, e publicadas por meio escri-
tos e eletrônicos, como livros, artigos, cientíicos,
páginas de web sites. Qualquer trabalho cientíico
inicia-se com uma pesquisa bibliográica que per-
mite ao pesquisado conhecer o que já se estudou
sobre o assunto. Existem porém pesquisas cienti-
icas que se baseiam unicamente na pesquisa bi-
bliográica, procurando referências teóricas publi-
cadas com o objetivo de reconhecer informações
ou conhecimentos prévios sobre o problema a res-
peito do qual se procura a resposta (FONSECA,
2002, p. 32).

A partir de textos selecionados procedemos a análise


de conteúdo estabelecendo uma relação entre as propostas

121
para a educação dos autores e os contextos históricos dos
mesmos. Este tipo de análise “tem como ponto de partida
a mensagem – seja ela verbal (oral ou escrita), gestual,
silenciosa, igurativa, documental ou diretamente provo-
cada” (FRANCO, 2008 p.19). Estas podem expressar um
signiicado e um sentido que deverá ser interpretado, con-
siderando-se as condições textuais, sob uma concepção
crítica e dinâmica da linguagem. Portanto, trata-se de um
tipo de análise que nos permite perceber como os registros
são importantes em nossas análises e discussão do objeto
de estudo.

Educação pública: relexões a partir de José Vasconce-


los, José Pedro Varela e Paulo Freire
O pensamento pedagógico latino-americano presen-
te em José Vasconcelos, José Pedro Varela e Paulo Frei-
re, encontra-se no debate da educação pública para todos.
Cada um desses teóricos apresentam, dentro de suas con-
cepções, marcas de uma educação popular, que por sua
vez seja democrática e que seja alcance de todos(as).
A discussão sobre a qualidade da educação pública
adquiriu nos últimos anos uma centralidade que gira em
torno de uma educação que seja para todos. Entretanto,
essa discussão precisa ser compreendida e estudada a par-
tir dos teóricos que falaram e a defenderam essa escola.
Por meio de suas relexões sobre a educação, José
Vasconcelos foi considerado apóstolo da Educação Me-
xicana, tinha um ideário de educação baseado na educa-
ção que pudesse reconhecer as identidades dos sujeitos,

122
portanto, para ele o objetivo da educação não era apenas
adquirir competências técnicas, mas também transcender
o mundo empírico e chegar a uma visão mais integral do
mundo.
Ao tratar sobre educação, Vasconcelos não dedicou-
-se apenas ao urbano, mas às escolas do campo, segundo o
mesmo, a criação de escolas é importante tanto na cidade
como no campo, como inferimos a seguir:

[...] Se consideró muy importante la fundacioón


de las escuelas normales para la formación de los
maestros rurales. Su propósito, la ensenânza a
los niños de los campos mexicanos, u además, la
enseñanza a los adultos en las cosas más elemen-
tales para su vida más practica y cómoda en los
campós; y especialmente para la salud y una vida
mejor. También se consideró importante ayudar
a las comunidades rurales para su mejoramiento
economico y social. El objtivo fundamental de
la educacion rural fue hacer de escuela una casa
del pueblo, y del maestro, un líder de comunidade
(OCAMPO, 2005, p153)14.

O argumento presente no pensamento de Vasconce-


los, revela sua preocupação para com a educação chama-
da por ele de rural, tendo em vista a melhoria de vida do

14 “A Fundação das escolas normais para a formação de professores


rurais foi considerada muito importante. A sua inalidade, ensinando os ilhos
de campos mexicanos, ou adultos também ensino nas coisas mais básicas para
a vida mais prática e confortável nos campos; e, especialmente, para a saúde e
uma vida melhor. Ela também foi considerada importante para ajudar as comu-
nidades rurais para melhorias económicas e sociais. O objetivo fundamental da
educação rural era fazer uma casa da escola da aldeia, e o professor, um líder
da Comunidade” (OCAMPO, 2005, p. 153).

123
povo do campo. Por outro lado, Vasconcelos nos mostra
ainda a importância de formar os professores para atuarem
junto aos seus alunos. A educação pensada do micro para
o global foi marca em suas relexões. O referido autor de-
fendia a educação para todos porque, segundo ele, esta é
conscientizadora, e formava o homem para o mundo con-
temporâneo.
Dessa forma, percebemos que este autor defendeu a
escola pública e pensava meios de garantir uma qualida-
de do ensino para seus sujeitos. Essa qualidade pensada
em uma dimensão pedagógica que compreende desde a
formação dos professores à valorização das experiências
individuais de cada sujeito, seja do campo ou da cidade.
Dentro dessa discussão, a escola pública foi pensada
por Pedro Varela como a escola em que todos deveriam ter
acesso, e é ela que pode tornar as sociedades equiparadas,
ou seja, a grande niveladora da sociedade, como podemos
perceber a seguir:

[...] seu projeto pedagógico estava intimamente


relacionado a propósitos políticos, sociais e huma-
nos: instaurar e defender a democracia em todos
os aspectos da vida da nação. A democracia como
governo do povo, para o povo e pelo povo seria o
princípio fundamental de seu pensamento e ação
pedagógica. E nessa estrutura, a educação exercia
um papel essencial, uma educação igual para to-
das as crianças sem importar sua classe social ou
a condição econômica do país. (ROCCHIETTI,
2010, p.119-120).

Nesse sentido, observamos que Pedro Varela é mais


um teórico latino-americano defensor da escola pública e

124
que esta seja voltada para o povo. Percebemos ainda a sua
preocupação em determinar os ins da educação, voltada
para as classes populares. É uma educação pensada de fato
para o povo e do povo. O pensamento desse teórico corro-
bora para questionarmos sobre a obrigatoriedade da edu-
cação e a importância da mesma para a vida das pessoas.
Assim como José Vasconcelos e José Pedro Varela,
Paulo Freire apresentava em seu pensamento o paradigma
de uma educação popular, uma educação libertadora que
levasse a transformação da vida dos sujeitos. Paulo Frei-
re foi um teórico brasileiro pernambucano, comprometido
com as causas sociais. Para este, a educação deveria ser
humanista, popular e de formação consciente e crítica, e
que, portanto, deveria chegar a todos e principalmente às
classes menos favorecidas.
A educação popular traz em si elementos que se
constituem como mecanismos de democratização, em que
o respeito e a reciprocidade fazem parte do aprender. Nes-
sa direção, Paulo Freire (1989) propõe um diálogo no qual
se constituem as práticas e as ações entre o educador e o
ato de educar.
Freire, inteiramente presente nesse caminho da edu-
cação popular, nos mostra uma concepção de educação em
que: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua produção ou a sua construção”
(FREIRE, 1996, p. 21). Portanto, uma educação dialógica
é o caminho, segundo este teórico. O pensamento de Frei-
re nunca esteve tão atual como estamos vendo nos dias de
hoje, o quanto é preciso de uma educação libertadora e
dialógica.

125
O modelo da educação popular, elaborado na rele-
xão sobre a prática da educação tornou-se uma contribui-
ção da América Latina para a prática educativa no âmbito
internacional. Pensar a educação a partir do conhecimento
do sujeito, a noção de ensinar a partir de palavras e temas
geradores, a educação como ato de conhecimento e trans-
formação social, são apenas alguns dos legados da educa-
ção popular para a pedagogia crítica, para tanto:

[...] a educação é possível para o homem, porque


este é inacabado e sabe-se inacabado. Isto leva-o
a sua perfeição. A educação, portanto implica uma
busca realizada por um sujeito que é o homem. O
homem deve ser o sujeito de sua própria educa-
ção. Não pode ser o objeto dela. Por isso ninguém
educa ninguém. (FREIRE, 1979, p.14).

A fala acima, fortemente impregnada na educação


popular, nos coloca em confronto frente a realidade que
estamos vivendo hoje, sobre a dura realidade das escolas
públicas e o ato de ensinar, que muitas vezes foge da rea-
lidade dos sujeitos e não considera suas peculiaridades.
O atual sistema público de ensino do nosso país tem
revelado que embora se tenha estudos e teóricos que de-
fendam a escola pública para todos e uma educação de
qualidade, esta ainda é um desaio a ser enfrentado, o que
antes era uma luta pela conquista de uma educação me-
lhor, hoje se revela uma luta pela permanência da educa-
ção pública em nosso país, há uma descontinuidade das
melhorias, o que nos preocupa e teria certamente preocu-
pado esses teóricos tratados aqui.

126
A qualidade da educação: perspectivas e desaios na
educação do campo
É perceptível que nos dias de hoje se fala em uma
qualidade de educação inferior à que é desejada. E quando
o assunto é voltado para a educação do campo a discussão
é ainda mais delicada, porque esta educação vem
enfrentando ao longo dos tempos muitos desaios, dentre
eles a sua existência e a permanência de uma educação
voltada para os povos dessa localidade, que considere o
seu modo de ser.
Ao se falar em qualidade da educação, vários são os
fatores que surgem, seja qualidade na infraestrutura, na
formação dos professores, nas metodologias, nos mate-
riais ou nos currículos, mas quando falamos em qualidade
da educação, estamos pensando uma educação no seu sen-
tido total, que leve em conta tanto os aspectos da dimen-
são física quanto os aspectos da dimensão pedagógica.
O direito à educação de boa qualidade, prevista pela
Constituição de 1988, ainda não foi suiciente para modi-
icar a realidade na qual nos encontramos. Percebemos na
atualidade, que as desigualdades educacionais ainda per-
passam com força em nossa sociedade e na qualidade do
ensino, e a qualidade muitas vezes é medida apenas pelo
rendimento escolar apresentado pelas escolas, conforme
podemos notar na inferência abaixo:

[...] tem sido quase sempre deinida na literatura


pertinente como o rendimento escolar satisfatório
do aluno, demostrando ora em forma de escores
em testes padronizados, ora em forma de aprova-
ção na série (PEREIRA 2015, p. 101).

127
Essa referência de educação limita a amplitude da
qualidade da educação e precisa ser reletida e questiona-
da. A educação pública pensada para o campo carece de
mais atenção, as políticas públicas ainda não conseguiram
equiparar a educação do campo e a educação urbana no
sentido de percebê-las como importantes em ambos os lo-
cais. O que vai para o campo é quase sempre o que sobra
da cidade, sem contar as propostas pedagógicas que na
maioria das vezes foge da realidade daqueles povos.
Nesse cenário em que se encontra o país a luta por
melhores condições na educação do campo ica ainda mais
desaiador. O percurso histórico nos revela no início a luta
dos movimentos sociais por uma educação no e do campo,
e agora a história se repete, mas é a luta pela permanên-
cia dessas escolas. Enquanto temos teóricos, a exemplo de
Vasconcelos, que pensavam na educação do campo e cria-
vam escolas nesse local, hoje vemos o inverso, as escolas
do campo estão fechando suas portas e os sujeitos dessas
localidades estão sendo obrigados saírem de suas localida-
des, e virem para a escola urbana.
Que educação de qualidade é essa que não garante
escola na própria comunidade? Não é uma educação hu-
manizadora, como pensou Paulo Freire, nem muito menos
uma educação democrática, como pensava Varela, uma
educação que contribuísse para a vida, que equiparasse as
pessoas. O que temos visto é uma educação excludente,
desumana e que precisa ser questionada em busca de so-
luções.
Nesse sentido, os teóricos latino-americanos, trata-
dos aqui, dialogam entre si e nos ajudam a entender como

128
uma educação pode ser de qualidade a partir do momento
em que leve em conta os saberes desses povos, seja uma
educação para todos, que possa garantir a participação so-
cial e que seja uma educação que parta de suas realidades,
portanto, uma educação que surja do micro para o global,
que perceba os sujeitos enquanto protagonistas do saber e
do fazer.
A educação do campo tem mostrado nos últimos
anos alguns avanços, mas é preciso sua continuidade, há
muito o que se fazer para que essa educação seja de quali-
dade, partindo primeiro do reconhecimento que ela é uma
educação especíica para os povos dessa localidade, que
devem trabalhar suas identidades atreladas a outras reali-
dades, com condições tanto de infraestrutura como o pe-
dagógico adequado, só assim teremos uma educação que
favoreça o aprendizado signiicativo e uma educação de
qualidade para todos.

Considerações inais
Nossa pesquisa teve como objeto de estudo “a edu-
cação pública”. Com o objetivo geral de analisar se a es-
cola pública tem garantido aos sujeitos do campo acesso
a uma educação de qualidade, e como objetivos especíi-
cos identiicar como os teóricos latino-americanos, José
Vasconcelos, José Pedro Varela e Paulo Freire, discutem
a educação pública, e compreender como a educação pú-
blica vem sendo pensada para a educação do campo. Pro-
curamos, portanto, traçar um diálogo que nos ajudasse a
reletir sobre essas questões.

129
Na perspectiva do que foi exposto até aqui, perce-
bemos que não existem assuntos inéditos, porém, as in-
terpretações e os pensamentos apresentados pelos teóri-
cos latino-americanos, certamente representam uma visão
viva e original da educação pública. Suas contribuições
representam para nós caminhos para que possamos apren-
der, criticar e dialogar sobre as dinâmicas socioeducacio-
nais às quais estamos inseridos.
O estudo nos mostrou que os teóricos latino-ameri-
canos José Vasconcelos, José Pedro Varela e Paulo Freire
discutem a Educação Pública numa perspectiva de edu-
cação popular, os mesmos pensavam em uma educação
que atendesse a todos(as) e que pudesse garantir melhores
condições de vida.
Diante do que foi apresentado sobre a educação pú-
blica e a educação do campo num diálogo traçado pelos
teóricos, a resposta à nossa pergunta inicial é: não, a esco-
la pública não tem garantido aos sujeitos do campo acesso
a uma educação de qualidade. Isto é, embora as políticas
públicas tenham tentado tratar a educação do campo de
uma forma diferenciada da qual vinha sendo, não percebe-
mos muitos avanços nesse cenário, uma vez que os sujei-
tos dessas localidades enfrentam diariamente situações de
diiculdade para o ensino e a permanência de suas escolas.
A educação do campo não é uma educação de faz de
conta, esta precisa ser respeitada e ressigniicada e, assim
como os teóricos José Vasconcelos, José Pedro Varela e
Paulo Freire defenderam, uma escola pública para todos,
a educação precisa ser defendida e precisa existir, pois os
sujeitos do campo têm direito a uma educação de quali-

130
dade tanto quanto os sujeitos que vivem no meio urbano.
Por im, é preciso que a educação do campo esteja
alicerçada na valorização dos povos do campo no sentido
de melhoria e qualidade de vida desses e que as políti-
cas públicas tomem essa dimensão como ponto de partida
para suas ações.

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FLEXÕES ACERCA DE PEDAGOGIAS CONTRA-
-HEGEMÔNICAS LATINO-AMERICANAS
Tatianne Amanda Bezerra da Silva. Bacharel em Serviço Social pela AS-
CES/UNITA. Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Educação Con-
temporânea da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE-CAA). E-mail:
tatiannebezerra1@hotmail.com.

Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar algumas propostas peda-
gógicas contra-hegemônicas socialistas latino-americanas, ou seja,
orientações que, embora não sejam dominantes, visam colocar a edu-
cação a serviço das forças que lutam para revolucionar a ordem vi-
gente. Entendemos que a construção socialista na América não pode
ser uma cópia europeia, por este motivo, buscamos desenvolver
nossas relexões sobre a pedagogia socialista levando em consideração
ideias de autores marxistas latino-americanos, dando destaque para
suas propostas de transformação qualitativa da sociedade rumo ao
socialismo mediante a construção de uma educação libertadora. Para
tanto, utilizamos abordagem qualitativa e pesquisa bibliográica acerca
do tema. Na construção teórica, buscamos fundamentar nossas relexões
no pensamento de José Carlos Mariátegui (2011), Che Guevara (1959;
1965) e Florestan Fernandes (1984; 1975).
Palavras-chaves: Educação para o socialismo; Pedagogias contra-he-
gemônicas; América Latina.

Notas à guisa de introdução

135
Airmou José Paulo Netto (1995, p. 32) que a tarefa
dos opositores do neoliberalismo não consiste apenas em
criticá-lo, mas, sobretudo, em lhe oferecer alternativas.
No entanto, segundo o autor, a grande problemática que
se enfrenta na atualidade para construção de alternativas
consiste na desesperança por parte dos intelectuais quanto
à superação da barbárie neoliberal. Predomina-se a falsa
ideia de que teríamos chegado ao im da história. “Não sei
se a desesperança é, exatamente, uma resultante da ação
neoliberal – talvez seja –, mas, certamente, ela é um com-
ponente favorecedor da programática neoliberal”.
Acreditamos que sim, que esta desesperança é mais
um dos elementos criados pelo neoliberalismo e favore-
cedor de sua reprodução. Tal como defendido nos primór-
dios do liberalismo clássico, difunde-se atualmente a ideia
fatalista de que teríamos chegado ao im da história e de
que não existe, portanto, alternativas ao capitalismo, de-
senvolvendo-se uma capacidade de tolerância na popula-
ção quanto à deterioração de suas condições de vida.

Há algum tempo, não muito, quando participava


de debates como o que travaremos aqui, assalta-
va-me a sensação de que estava a ler ao contrário
o Manifesto do Partido Comunista – ou seja, eu
tinha a impressão de que o fantasma que batia à
porta era o do capitalismo. Quase no meio da dé-
cada de noventa, parece que não se trata mais de
fantasma: o capitalismo, revigorado pelo neolibe-
ralismo, dá a impressão de estar mais vivo do que
nunca. Nem por isto, porém, eu penso que a parti-
da esteja encerrada. Recuso-me a crer – e atenção:
não por um ato de fé ou por principismo, mas pela
convicção teórica e prática, fundada no que sabe-
mos acerca da história dos homens –, recuso-me

136
a crer que este quadro aparente “im da história”,
dessa hegemonia neoliberal seja algo deinitiva-
mente duradouro. Estou convencido – teórica e
praticamente – de que há tendências objetivas que
põem em xeque a possibilidade de um grande fu-
turo para o neoliberalismo. (NETTO, 1995, p. 33).

Conforme dito na citação acima, há aproximadamen-


te duas décadas o importante pensador marxista brasileiro,
José Paulo Netto, já parecia apontar a possibilidade de su-
peração do fenômeno neoliberal, justamente quando este
se mostrava tão valente no cenário internacional. O autor
concebe, portanto, a possibilidade de fenecimento deste
modelo de Estado capitalista, alimentando a esperança dos
pensadores de esquerda no que diz respeito à construção
de um mundo mais justo.
Embora não trate especiicamente do ideal educa-
cional, o posicionamento de Netto contra as mentalidades
fatalistas aponta para importância da construção de uma
educação libertadora, que possibilite ao ser humano uma
maior conscientização e que o libere do determinismo neo-
liberal, reconhecendo que a história é um espaço aberto
de possibilidades. Dito de outra forma, uma educação que
permita aos indivíduos libertar-se do fatalismo neoliberal,
reconhecendo suas possibilidades históricas concretas.
Contudo, esta mesma educação que pode ser um
impulso para a mudança, vem tornando-se cada vez mais
um instrumento de transmissão dos valores da sociedade
capitalista. Isto é, em lugar de um instrumento de liberta-
ção humana, a educação funciona cada vez mais como um
mecanismo de reprodução do sistema.

137
Não poderia ser diferente, pois um sistema que se
apoia na separação entre capital e trabalho, na exploração
e na disponibilidade de uma enorme força de trabalho de
reserva, necessita de uma educação alienante que permi-
ta sua reprodução. Seria de fato inimaginável contar com
ideais educacionais desenvolvidos no interior do capitalis-
mo que possibilitassem a dominação da classe trabalhado-
ra. Qualquer reforma no ensino deve, portanto, do ponto
de vista do capital, icar restrita aos limites de reprodução
do sistema. Em vista disto, conforme airma Fernandes
(1975, p. 11), “se me colocasse diante dos nossos proble-
mas educacionais e dos nossos dilemas culturais em ter-
mos de minhas convicções, só recomendaria uma saída,
que a fornecida pelo socialismo”.
No capitalismo, faz-se necessário uma educação que
proclame e inculque cotidianamente seus valores nas men-
tes das pessoas, visto que o desenvolvimento do modo de
produção capitalista e seus fenômenos não se resumem à
esfera de produção, mas também à esfera de sua reprodu-
ção social. Não se trata apenas de um modo de produção
que cria mercadorias, mas que é também reproduzível em
nível social, adequando os indivíduos a sua lógica mer-
cantil. Em outras palavras, conforme se desenvolvem as
forças produtivas na sociedade, em cada uma de suas fa-
ses, faz-se necessário alterar também as formas ideológi-
cas, das quais os indivíduos se apropriam de modo a ade-
quá-las às mudanças, permitindo a reprodução do sistema.
É primordial a produção de subjetividades
compatíveis com a organização da produção, uma vez que
pela transformação da base econômica toda a superestru-

138
tura deve também se transformar, adaptando-se à base ma-
terial, ou seja, conforme considera a tradição marxista, em
cada momento histórico a produção econômica determina
toda a base política e intelectual da época15.
A força da lógica do capital sobre a educação tem
sido grande ao longo do sistema, alterando na atualida-
de apenas as modalidades de imposição dos elementos
capitalistas. Nesse sentido, se em seus primórdios eram
utilizados muito frequentemente meios repressivos e vio-
lentos, atualmente busca-se, cada vez mais, alternativas
subjetivas de adequação dos indivíduos à lógica mercantil.
A questão fundamental é garantir a naturalização e
assimilação dos indivíduos de sua posição de classe, ado-
tando posturas concernentes à mesma. Enquanto assimila-
ção for capaz de controlar as massas, as adoções de pos-
turas violentas tornam-se desnecessárias. Nas palavras de
Che:

El capitalismo recurre a la fuerza, pero, además,


educa a la gente en el sistema. La propaganda di-
recta se realiza por los encargados por explicar la
ineluctabilidad de un régimen de clase, ya sea de
origen divino o por imposición de la naturaleza
como ente mecánico. Esto aplaca a las masas que
se ven oprimidas por un mal contra el cual no es
posible la lucha. (GUEVARA, 1965, s/p.).

Contudo, se consideramos até o momento o papel


desempenhado pela educação no processo de conservação
do status quo, devemos considerá-la também no movi-
15 Marx e Engels realizam considerações a respeito do tema em O
Manifesto do Partido Comunista (2014).

139
mento de conversão ideológica e preparação das massas
subversivas ao sistema opressor. Assim, é preciso conside-
rar o papel elementar da educação para o processo revolu-
cionário e também a possibilidade de se forjar, no interior
da própria ordem capitalista, formas contra-hegemônicas
de educação, ou melhor, forjar uma educação para além
do capital16 no interior do próprio capitalismo, tendo por
im a superação deste modelo societário e a implantação
do socialismo.
Não pretendemos cair na visão fatalista tão em voga
e, ao defender a ligação da educação com os interesses
burgueses dominantes, desconsiderar a possibilidade de
estratégias pedagógicas contra-hegemônicas no interior
desta sociedade. Por este motivo, objetivamos neste arti-
go apresentar algumas propostas pedagógicas contra-he-
gemônicas socialistas latino-americanas, ou seja, orienta-
ções que, embora não sejam dominantes, visam colocar a
educação a serviço das forças que lutam para revolucionar
a ordem vigente, buscando instaurar um novo modelo de
sociedade em nível mundial.
Para tanto, utilizamos abordagem qualitativa e pes-
quisa bibliográica acerca do tema. Na construção teórica,
buscamos fundamentar nossas relexões no pensamento
de José Carlos Mariátegui (2011), Che Guevara (1959;
1965) e Florestan Fernandes (1984; 1975).
Partimos da compreensão de que propostas pedagó-
gicas contra-hegemônicas e de revoluções nacionais socia-
listas não podem ser obstruídas por uma visão estagnada
16 Algumas considerações deste texto e a expressão A Educação
para além do capital estão inspirados no livro de Mészáros (2008).

140
e preestabelecida, sendo antes, como destaca Mariátegui
(2011, p. 122), um método interpretativo e uma prática de
vida que devem ser construídos segundo a realidade de
cada país. Segundo o autor, “o partido socialista adapta
sua práxis às circunstâncias concretas de cada país”, ainda
que obedeça a uma ampla visão de classe. Ele deve con-
siderar, portanto, a particularidade de orientação “impri-
mida à estratégia da luta de classes na periferia, em países
que contam com desenvolvimento industrial de certo por-
te” (FERNANDES, 1984, p. 75).
Portanto, entendendo que a construção socialista na
América não pode ser uma cópia europeia, buscamos de-
senvolver nossas relexões sobre a pedagogia socialista
levando em consideração ideias de autores marxistas la-
tino-americanos, não com a pretensão de aprofundar suas
relexões particulares sobre a realidade nacional, visto
que não caberia neste artigo tamanha relexão, mas como
modo de valorizar autores que pensaram o movimento so-
cialista dentro das especiicidades do continente.
Logo, longe de desconsiderar as contribuições de
pensadores de outros continentes, pretendemos destacar
as relexões particulares dos autores latino-americanos e
discutir os seus pensamentos marxistas de crítica à socie-
dade capitalista, dando destaque para suas propostas de
transformação qualitativa da sociedade rumo ao socialis-
mo mediante a construção de uma educação libertadora,
frisando uma educação que permita aos indivíduos des-
vencilhar-se do determinismo neoliberal, reconhecendo
suas possibilidades históricas concretas.

141
Metodologia
A investigação foi desenvolvida por meio de uma
abordagem qualitativa e pesquisa bibliográica acerca do
tema. Segundo Minayo (2010, p. 22), as abordagens qua-
litativas são entendidas como “aquelas capazes de incor-
porar a questão do signiicado e da intencionalidade como
inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais”.
A abordagem qualitativa permite compreender os
signiicados dos discursos, a dinâmica das relações que
se estabelecem entre os sujeitos e as suas contradições,
bem como apreender algumas das propostas de pedago-
gias contra-hegemônicas latino-americanas.
O contexto de análise se constitui em um conjunto
de atividades interpretativas acerca do objeto de estudo,
empregados múltiplos métodos e estratégias de pesquisa,
“[...] é uma atividade situada que localiza o observador no
mundo. Consiste em um conjunto de práticas materiais e
interpretativas que dão visibilidade ao mundo” (DENZIN
e LINCOLN, 2006, p. 17). Partindo do princípio de que
a compreensão da realidade está ligada ao ato existencial
humano, as abordagens qualitativas não se preocupam em
estabelecer leis para generalizações (GOLDENBERG,
2004).

Relexões acerca das pedagogias contra-hegemônicas


latino-americanas de Mariátegui, Guevara e Fernan-
des
Se o pretendido é organizar uma forma educacional
contraposta à difusão e reprodução da ideologia das elites,

142
essa deve ser construída, sem dúvidas, pelo povo e para
o povo, porém, não conferida a ele mediante interesses
alheios de grupos dominantes. Deve ser uma educação
que liberta, que desmistiica a forma de organização social
e da produção, assim como que possibilite aos sujeitos que
estabeleçam os rumos de suas vidas. Uma educação críti-
ca, relexiva e emancipatória.
Em concordância com esta ideia, ao reletir sobre a
possibilidade de criação de uma organização educacio-
nal libertadora, o pensador peruano Mariátegui17 propõe
novas fórmulas escolares, baseadas na autoformação
e no controle dos métodos e dos conteúdos de ensino
pelas próprias massas, para, com isso, possibilitar o
surgimento de uma consciência revolucionária a partir de
uma progressiva educação ideológica dos trabalhadores
(PERICÁS, 2010b). Segundo o autor,

Marx só podia conceber e propor uma política


realista e, por isso, esmerou-se na demonstração
de que o próprio processo da economia capitalis-
ta, quanto mais plena e vigorosamente se cumpre,
conduz ao socialismo; mas sempre considerou
como condição prévia de uma nova ordem a capa-
cidade espiritual e intelectual do proletariado para
realizá-la, através da luta de classes. (MARIÁTE-

17 José Carlos Mariátegui nasceu em 14 de junho de 1894, em Mo-


quegua, uma pequena cidade ao sul de Lima, Peru. Fruto de uma família muito
pobre, viveu somente até os 36 anos, tempo suiciente para imortalizá-lo na
história do marxismo latino-americano. Seu livro mais conhecido é, sem dú-
vidas, Sete Ensaios sobre a realidade Peruana. No Brasil a referida obra foi
impulsionada por Florestan Fernandes, que conseguiu editar e publicar o texto
no país, em plena ditadura militar, pela Editora Alfa Omega, 47 anos após ter
sido publicada no Peru. A chegada de Sete Ensaios na Cuba revolucionária se
dá em 1963. Para mais informações sobre vida e obra de Mariátegui, consultar
Pericás (2006).

143
GUI, 2011, p. 212-213).

É preciso dar condições para que a classe trabalhadora


se liberte, sendo necessário, pois, formular um modelo
educacional que desenvolva a capacidade relexiva dos
trabalhadores, que os faça terem conhecimento das
correntes que os prendem. Só tomando conhecimento do
estado em que se encontram é que poderão pensar um
movimento verdadeiramente revolucionário. A revolução
não pode proceder se formada por uma massa de indivíduos
alienados, sendo conduzida por um líder iluminado. É
fundamental que seja formada por uma classe-para-si,
uma classe e/ou massa de indivíduos consciente de sua
posição social e consciente das razões de luta.
Evidentemente, não é simples a tarefa de criar meios
pedagógicos contra-hegemônicos. Em uma sociedade fun-
damentada na exploração da força de trabalho e na alie-
nação do trabalhador, uma educação emancipatória sofre
grandes diiculdades de implantação. As estratégias de re-
sistência, que são as formulações de medidas pedagógicas
subversivas por instituições de ensino e/ou professores,
encontram cada vez mais diiculdades, todavia, uma vez
realizadas, possibilitam aos sujeitos um alto nível de cons-
ciência social e política.
Mariátegui (2011, p. 209) defende com veemência
a força e tenacidade das energias socialistas que, segundo
ele, se caracterizam como um caso verdadeiramente novo
e imponente de pedagogia social, ou seja, que em núme-
ro tão grande de operários e pequenos burgueses formem
uma consciência nova, para a qual contribui o sentimento

144
determinante da situação econômica, que induz à luta e à
propaganda do socialismo, entendido como meta a ser al-
cançada. Em outras palavras, o autor ressalta a importân-
cia educadora que a própria luta pelo socialismo e a cons-
ciência da condição de classe tem para a população. Ele
complementa airmando que “se o socialismo não chegar a
se realizar como ordem social, basta esta obra formidável
de educação e elevação para justiicá-lo na história”. Por-
tanto, ainda que o socialismo não seja alcançado, o empo-
deramento e desalienação que sua pedagogia proporciona
à população já representa relevante ganho social.
Contudo, essa airmativa não justiica adotar uma
postura passiva e/ou conformista em relação ao capitalis-
mo. Como postula Mariátegui (2011, p. 212) “marxismo,
onde se mostrou revolucionário – vale dizer, onde foi mar-
xismo –, nunca obedeceu a um determinismo passivo e
rígido”, por este motivo, apesar da consideração da im-
portância da pedagogia socialista por si própria, a meta de
revolução não deve ser perdida.
Para o autor, um conceito moderno de escola deveria
unir trabalho manual e intelectual em um mesmo ambien-
te. Também deveria se constituir como um sistema único
de educação, pelo qual a população de origem pobre con-
seguiria ter acesso às mesmas possibilidades de desenvol-
vimento intelectual das crianças de origem rica. Segundo
ele, é preciso eliminar essa enorme injustiça educacional e
classista, que separa as crianças de origem operária das de
origem burguesa18.
18 É importante ressaltar que a preocupação de Mariátegui não es-
tava voltada exclusivamente para os espaços formais de ensino. Havia uma
inquietação do autor para que os ensinamentos socialistas chegassem aos di-

145
Só o socialismo pode resolver o problema de uma
educação efetivamente democrática e igualitária,
em virtude da qual cada membro da sociedade re-
ceba toda a instrução a que sua capacidade lhe dê
direito. O regime educacional socialista é o úni-
co que pode aplicar plena e sistematicamente os
princípios da escola única, da escola do trabalho,
das comunidades escolares e, em geral, de todos
os ideiais da pedagogia revolucionária contem-
porânea, incompatível com os privilégios da es-
cola capitalista, que condena as classes pobres à
inferioridade cultural e faz da instrução superior
o monopólio da riqueza. (MARIÁTEGUI, 2011,
p. 124).

Conforme destaca o autor, somente com a superação


da sociedade capitalista e, por conseguinte, de sua edu-
cação, seria possível desenvolver um sistema educacional
de qualidade e para todos. Contudo, ainda que dentro dos
marcos do capitalismo, é preciso se aproximar desta “fór-
mula” pedagógica socialista a im de alcançar um objetivo
revolucionário. Deve-se tentar obter ganhos nesse senti-
do, pois como destaca Fernandes (1984, p. 77) “em dadas
circunstâncias, nas quais os proletários não podem ousar
ou nas quais o máximo que podem pretender é a condição
de cauda de uma classe social hegemônica, não há mal
em travar batalhas de ganhos muito pequenos”, isto é, de
ganhos formais e/ou reformistas19.
versos espaços, exemplo disto é o fato da revista que dirigia e publicava (Re-
vista Amauta) ser “difundida no interior do Peru, em áreas rurais, lida em voz
alta para os camponeses e depois transformar-se em objeto de discussão cole-
tiva. Ou seja, não era apenas direcionada a um público intelectualizado, mas
também aos camponeses e indígenas, muitas vezes analfabetos ou com pouca
instrução formal” (PERICÁS, 2006, p. 190).
19 Nunca é demais lembrar que realizar reformas no ensino não é
a mesma coisa que executar uma revolução do ensino nos marcos da velha
ordem. Somente uma revolução da ordem societária poderia efetivamente re-

146
A desigualdade estrutural e a necessidade de reforma
do sistema de ensino valem tanto para a educação básica,
quanto para a universitária. Mariátegui, neste contexto,
formula sua tese acerca do socialismo tipicamente perua-
no20, destacando também a importância de uma mudança
na estrutura universitária para o alcance do socialismo.
Seria preciso, portanto, levar para as universidades
docentes críticos e comprometidos com os problemas so-
ciais, de modo que fosse possível formar também alunos
com tal peril. Em sua concepção, as universidades de sua
época eram privilégios das elites, vivendo à margem dos
novos tempos quando deveriam colocar o conhecimento
a serviço do proletariado. Um dos sinais apontados pelo
pensador para a resolução desse problema estaria, destaca
Pericás (2010b), nas Universidades Populares21, cuja mis-
volucionar o sistema de ensino, isto é, somente a superação da ordem capi-
talista permitia a superação de seu modelo educacional desigual. A educação
reproduz o modelo societário do qual faz parte.
20 Ao contrário das análises fechadas então predominantes dentre os
partidos comunistas europeus, Mariátegui parte de uma observação fundamen-
tal: o socialismo em um país onde três quartos da população são indígenas não
pode ser criado sem a participação efetiva dos índios. A liberação do índio pe-
ruano passa pela união dos povos indígenas, em luta conjunta com camponeses
e trabalhadores urbanos, na construção de um socialismo adequado à realidade
histórica do Peru. Passa também pela reforma agrária democratizar a terra para
que o índio pudesse melhorar sua situação como um todo. Sobre essa questão
o autor airma: “Em relação à convergência ou articulação de “indigenismo”
e socialismo, ninguém que considere o conteúdo e a essência das coisas pode
surpreender-se. O socialismo ordena e deine as reinvindicações das massas,
da classe trabalhadora. E, no Peru, as massas – a classe trabalhadora – são in-
dígenas na proporção de quatro quintos. Nosso socialismo, pois, não seria pe-
ruano – sequer seria socialismo – se não se solidarizasse, primeiramente, com
as reinvindicações indígenas. Nesta atitude, não se esconde nenhum oportunis-
mo. Não se descobre nenhum artifício, se se pensa por dois minutos no que é
socialismo. Esta atitude não é postiça, ingida ou astuta. É apenas socialista”
(MARIÁTEGUI, 2011, p. 110).
21 Tratando sobre esta temática, Pericás (2006, p. 186) destaca que

147
são deveria ser a constituição de uma cultura revolucioná-
ria.
Esse divórcio entre as instituições de ensino superior
e as necessidades de revolução socialista também é pen-
sado pelo guerrilheiro e socialista latino-americano, Che
Guevara22. O pensador, em concordância com o autor an-
tes mencionado, defende a importância prioritária da edu-
cação e formação cultural das massas para efetivação do
processo revolucionário, tanto que, como destaca Pericás
(2010a, p. 395),

Durante o processo revolucionário em Cuba, dará


prioridade para o estudo e a alfabetização dos
guerrilheiros pertencentes à sua coluna. Insisti-
rá na importância da formação cultural de seus
homens, só possibilitando a ascensão dentro dos
quadros do Exército Rebelde se soubessem ler e
escrever. Para isso, dará aulas a alguns de seus su-
bordinados pessoalmente e promoverá a criação
de escolas na região em que seu grupo atuava e
libertava. [...] Também se preocupará com a di-
vulgação de ideias através de revistas e jornais.
Criará o boletim El Cubano Libre, e mais tarde,
colaborará com diversas publicações da impren-
sa cubana. Colocará a mesma ênfase de antes na
questão da educação depois do triunfo da revolu-
ção, constituindo uma academia cultural em La
Cabaña e sendo o responsável pela área de instru-
o objetivo dessas universidades populares seria o de “promover um ‘ciclo’
de cultura geral, com caráter ‘nacionalista’, e outro de especialização técnica,
abrindo a universidade para o proletariado e para as camadas mais pobres da
população, criando assim a possibilidade de uma maior democratização no
ensino e o aprimoramento do nível educacional e crítico dos trabalhadores”. A
primeira universidade fundada neste modelo foi inaugurada no dia 22 de janei-
ro de 1921, seguida por diversas outras distribuídas pelo país.
22 Ernesto Guevara de la Serna, nasceu Rosário, Argentina, em 14 de
junho de 1928, contudo, icou conhecido mundialmente como cidadão cubano.
Mais informações sobre vida e obra do autor, consultar Pericás (2010a).

148
ção e preparação ideológica.

Na concepção de Guevara, somente um indivíduo


culto, capaz de pensar por si próprio e estando desalie-
nado, poderia construir uma sociedade mais justa, isto é,
uma sociedade socialista. “Che Guevara e Fidel Castro
acreditavam que ‘não se pode construir o socialismo com
pessoas tendo o signo do dólar nos olhos’” (PETRAS,
1999, p. 19). É preciso construir uma educação política
que prepare as classes exploradas para autolibertação.
Para tanto, necessita-se de uma educação de caráter popu-
lar e democrático que torne os indivíduos sujeitos de sua
própria história, relexivos e ativos.
Portanto, para Che, a educação, seja ela formal ou
informal, básica ou superior, deve ser para todos e to-
das. Somente um povo culto e com consciência política
pode criar e sustentar uma revolução, de modo que a
preocupação com a educação deve ser uma constante.
A educação superior, em seu ponto de vista, também
deve atender os anseios revolucionários, cabendo à uni-
versidade receber toda a população que dela deseje fazer
parte, mantendo as portas abertas para o negro, o operário,
a mulher, o camponês, etc.
Conforme defende o autor em discurso proferido a
uma universidade Cubana, após a revolução, a universida-
de deve atender às necessidades da nação, isto é, formar
quadros técnicos necessários para garantir a independên-
cia industrial nacional, assim como incorporá-la às linhas
principais do governo. Ela deve se caracterizar como um

149
castelo de realizações concretas da revolução, defender e
formar dentro das aspirações revolucionárias. Segundo o
pensador “[...] la Universidad es la gran responsable del
triunfo o la derrota, en la parte técnica, de este gran expe-
rimento social y económico que se está llevando a cabo en
Cuba” (GUEVARA, 1959, s/p.).
Entretanto, apesar da defesa de democratização do
ensino básico e superior, o guerrilheiro se opõe a autono-
mia universitária. Não por incoerência aos princípios re-
volucionários e democráticos, mas em decorrência da ain-
da recente revolução cubana e seus anseios reacionários.
É devido ao contexto extremamente desfavorável
do Estado socialista, quase isolado em nível mundial,
que Che posiciona-se contra a autonomia universitária.
Segundo ele, em momentos difíceis é preciso assegurar
o controle do Estado sobre a Universidade, pois, somente
com esse controle, pode-se frear pretensões reacionárias
no seu interior. Ele airma:

Y la Universidad, dando batallas a veces feroces,


luchando encarnizadamente en torno a la palabra
autonomía, como naturalmente luchando encarni-
zadamente en torno a cuestiones de menor impor-
tancia como es la elección de los líderes estudian-
tiles, están creando precisamente el campo para
que se siembre con toda fertilidad esa simiente
que tanto anhelan sembrar los reaccionarios. Y
este lugar, este lugar que ha sido en las luchas
vanguardia del pueblo, puede convertirse en un
factor de retroceso si no se incorpora a las grandes
líneas del Gobierno Revolucionario. (GUEVARA,
1959, s/p.).

150
Se não houver cuidado inicial do Estado, apesar do
que isso pode signiicar do ponto de vista da autonomia,
um lugar como a universidade, campo fértil para discus-
sões e para formação de quadros críticos e revolucionários,
poderia converter-se em espaço de contrarrevolução. Con-
trarrevolução deinida por Florestan Fernandes23 (1984, p.
9) como o caminho contrário da revolução, “não apenas a
revolução pelo avesso: é aquilo que impede ou adultera a
revolução”.
Se a classe trabalhadora deseja desempenhar práti-
cas especíicas e criadoras, conforme diz o autor supraci-
tado, ela deverá se apropriar dos conceitos de revolução e
contrarrevolução. Deverá também, assim como ressalta-
ram Mariátegui e Guevara, estar dotada da capacidade de
conduzir ações revolucionárias de massa bastante vigoro-
sas para destruir completamente o antigo governo, “que
não cairá jamais, mesmo em épocas de crises, se não for
compelido a cair” (FERNANDES, 1984, p. 33).
O pensador ressalta, também em concordância com
a concepção marxista dos outros dois autores, que a lei
fundamental da revolução se encontra na junção entre
condições objetivas e subjetivas do movimento revolu-
cionário. Pois para que a revolução tenha lugar não basta
que as condições concretas sejam dadas, ou melhor, que o
capitalismo se encontre em período de crise e que a clas-
se dominante tenha diiculdades de governar; é preciso,
também, que a classe trabalhadora tome consciência da
23 Florestan Fernandes (1920-1995) nasceu no Brasil e construiu,
ao longo dos 75 anos de vida, um pensamento que marcou a produção socioló-
gica-educacional brasileira e latino-americana. Para mais informações sobre o
autor, consultar Weyh (2010).

151
impossibilidade de viver a vida tal como as coisas se en-
contram e demande mudanças. De tal modo,

A irmeza da ação revolucionária de classe depen-


derá, assim, de formas de solidariedade de classe,
de consciência revolucionária de classe e de com-
portamento revolucionário de classe: se o proleta-
riado não estiver preparado para enfrentar suas ta-
refas revolucionárias concretas, não poderá levar
a revolução até o im e até o fundo, no contexto
social imediato e a longo prazo. (FERNANDES,
1984, p. 27).

Mas como preparar o proletariado para enfrentar


essa tarefa? A resposta novamente remonta à educação
emancipatória e/ou a uma pedagogia revolucionária, pois
não basta um aumento em número da classe trabalhadora,
é preciso que a expansão do proletariado seja acompanha-
da da proletarização política revolucionária. Ou seja, “é
necessário educar politicamente os proletários para distin-
guir a sua revolução da revolução burguesa e para querer
algo coletivamente: a transformação socialista da socieda-
de” (idem, p. 65, grifos do autor).
Assim como Mariátegui e Guevara, que buscavam
disseminar suas ideias pedagógicas revolucionárias para
além dos espaços formais de ensino, também Florestan
Fernandes tinha consciência de que a educação política
deveria penetrar em outros espaços. Conforme postula Sa-
viani (1996, p. 82), a par da produção de conhecimento e
transmissão através do ensino institucionalizado, Florestan
não negligenciou a difusão de seu pensamento da forma
mais ampla possível. O autor, ao longo de sua trajetória,
“frequentou assiduamente a imprensa escrita, divulgando

152
incansavelmente um saber crítico da sociedade encarado
como instrumento para a necessária ação transformadora
a ser protagonizada pelos debaixo”. Ele também, assim
como os outros dois socialistas, possui uma militância
educativa signiicativa, participando de diversos momen-
tos em defesa da educação pública.
Sua luta se dá, portanto, também em prol de reformas
educacionais nas instituições formais e governamentais de
ensino. Isto é, apesar de socialista e não acreditar na possi-
bilidade reformista de resolução do problema educacional
nos marcos da ordem capitalista, o pensador brasileiro re-
conhecia a importância de fornecer contribuições técnicas
que auxiliassem a melhoria das condições educacionais.
O autor airma que muitas vezes as reformas técnicas
são colocadas à margem pelos socialistas, por estes acre-
ditarem que se trata de um reforço ao poder conservador.
Contudo, na verdade, “ignora-se que elas podem desenca-
dear uma espiral de alterações entrelaçadas incontroláveis,
lançando o poder conservador ao abismo” (FERNANDES,
1975, p. 17). Portanto, ainda que não sejam suicientes, a
depender do modo como são mobilizas, as reformas po-
dem auxiliar no processo de ruptura mais amplo.
No que se refere à reforma universitária brasileira,
Florestan ratiica essa ideia. Ele destaca que ela sozinha
não é capaz de libertar a população da servidão, mas que
“poderá ensinar caminhos intelectualizados e políticos
que permitirão conquistar a própria liberdade intelectual e
política, condição moral para extinguir todas as formas de
servidão, internas e externas” (idem, p. 18).

153
Esse processo vale para todos os níveis educacio-
nais, tendo em vista que, como propõe o autor, é necessá-
rio contarmos com condições objetivas e subjetivas de re-
volução. As universidades podem, assim como os demais
níveis de ensino, auxiliar no processo de conscientização,
todavia, eles não podem sozinhos carregar o peso do pro-
cesso revolucionário.

Considerações inais
Nossa intenção neste artigo foi de apresentar algu-
mas propostas pedagógicas contra-hegemônicas latino-
-americanas, propostas socialistas revolucionárias, cujas
representações no texto se deram mediante a exposição
do pensamento de Mariátegui, Guevara e Fernandes. Ten-
tamos contribuir também, ainda que modestamente, para
difusão do pensamento desses autores.
Entre nós, sem dúvidas, o mais conhecido é Flores-
tan Fernandes, por tratar-se de um autor brasileiro, cujos
pensamentos e obras são ainda recentes. Che Guevara,
embora tenha um nome bastante familiar, muitas vezes
tem sua igura associada pura e simplesmente a de um
guerrilheiro ou, até mesmo, a de um assassino, icando em
segundo ou em último plano a discussão e difusão de suas
ideias pedagógicas para a população em geral.
Mariátegui apesar de ser considerado o grande pro-
pulsor do socialismo no Peru, ainda é pouco conhecido
em nossa realidade. Somente em 1975 teve uma obra sua
publicada no país, intitulada Sete Ensaios sobre a Reali-
dade Peruana. A referida obra, conforme ressaltado, foi

154
impulsionada por Florestan Fernandes, que conseguiu edi-
tar e publicar o texto no Brasil, em plena ditadura militar,
pela Editora Alfa Omega, 47 anos após ter sido publicada
no Peru.
Esse fato aponta para a diiculdade de reconheci-
mento das obras de autores latino-americanos no pró-
prio continente. Ademais, comprova as convergências
entre os pensadores utilizados neste artigo. É o próprio
Florestan quem elabora o prefácio da versão brasileira da
obra de Mariátegui, tecendo-lhe diversos elogios. A che-
gada de Sete Ensaios na Cuba revolucionária, em 1963,
ratiica a aproximação de ideias entre os autores marxistas
presentes neste artigo.
A aproximação, todavia, não ica restrita a tal fa-
tor. Acredita-se ter icado claro durante a discussão aqui
empreendida que as coincidências entre eles se dão, so-
bretudo, no reconhecimento do papel desempenhado pela
consciência política para o processo revolucionário, que
se suporta na intervenção educativa para a criação do su-
jeito crítico, bem como a crença de que essa intervenção
deveria ser pensada e aplicada dentro das particularidades
nacionais.
Seus distanciamentos se dão em decorrência, justa-
mente, das particularidades dos locais nos quais se situa-
vam. Cada um dos pensadores viveu uma realidade pecu-
liar e um momento histórico particular que possibilitou a
cada um construir ideias socialistas especíicas. Entretan-
to, todas elas com riquezas e contribuições presentes na
teoria e ação revolucionária.

155
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158
O QUE É UMA ESCOLA PÚBLICA LATINO-A-
MERICANA? ENCONTRANDO CAMINHOS NOS
PENSAMENTOS PEDAGÓGICOS DE SIMÓN RO-
DRÍGUEZ E ANÍSIO TEIXEIRA
Halda Simões Silva. Licenciada em História pela Universidade de Pernambu-
co (UPE/2008) e Bacharel em Direito pela Associação Caruaruense de Ensino
Superior (ASCES/2009). Discente do Mestrado em Educação Contemporâ-
nea da Universidade Federal de Pernambuco/Campus Acadêmico do Agreste.
E-mail: haldasimoes@hotmail.com

Instruir no es educar; ni la instruccíon pue-


de ser um equivalente de la educacíon, aunque
instruyendo se eduque, y asumiendo la conse-
cuencia de esa sentencia concluía: Enseñem y
tendrán quien sepa; eduquen y tendrán quien
haga. (Simón Rodríguez)

Só existirá democracia no Brasil no dia em que


se montar no país a máquina que prepara as de-
mocracias. Essa máquina é a da escola pública.
(Anísio Teixeira)

Resumo
Muito se fala sobre os espaços públicos, quais são suas inalidades
e os interesses que precisa atender. Em democracias recentes como
a brasileira, pensar a ideia de público é mais que mensurar a oposi-
ção à esfera privada, pois se trata também de reconhecer lugares em
que haja isonomia, onde todos possam ter seus direitos respeitados.

159
O campo da educação pública emerge nesse cenário com intensidade,
na medida em que, ao se deparar com a pluralidade cultural de alunas
e alunos, professoras e professores, torna-se necessária a construção
de uma educação voltada para e nas diferenças. A conciliação desses
interesses nem sempre é uma missão simples, mas é essencial para que
se pense uma educação efetivamente democrática e igualitária. Nesse
sentido, passaremos a dialogar com Simón Rodríguez (1771-1854) e
Anísio Teixeira (1900-1971), enquanto propulsores de um pensamento
pedagógico que nos faz reletir sobre o cerne de uma educação pública
que atenda as demandas latino-americanas.
Palavras-chaves: educação pública latino-americana, democracia.

Introdução
Talvez uma das tarefas mais difíceis dentro do cam-
po da educação seja atender a um contexto que contemple
as diferenças dos estudantes e docentes, perfazendo-se um
caminho em que direitos sejam assegurados e efetivamen-
te a educação seja um construto para a cidadania e a de-
mocracia. Em uma sociedade múltipla como a brasileira,
torna-se complexo pensar um espaço educacional que seja
capaz de dilacerar preconceitos e que respeite as condi-
ções dos sujeitos. O quadro de desigualdades geradas no
Brasil e nos demais países latino-americanos, resquício do
denso processo de colonialidade, como nos alerta Quija-
no24, diiculta ainda mais as relações de uma escola que
24 Sobre o processo de colonialidade que permeou a história da
América Latina, Quijano preleciona a prejudicial supremacia do discurso eu-
ropeu, ao elencar a Colonialidade do Poder como elemento constitutivo da
dominação. Para o autor, é a colonialidade que alimenta hoje a concepção de
que padrões europeus são superiores a formas outras de conhecimento. Obser-
vando-se a compreensão da Colonialidade do Ser (assimilação da condição de
inferioridade pelos povos subalternos) e da Colonialidade do Saber (concep-
ção da epistemologia eurocêntrica como única legítima), percebemos um trato
unilateral para enxergar os processos históricos e sociais, onde o conhecimento
é validado tão somente a partir do olhar eurocêntrico (QUIJANO, 2005).

160
ainda teima em ofuscar as diferenças, em nome de uma
pseudo isonomia.
Se as diiculdades enfrentadas nas sociedades podem
instigar transformações, buscaremos conhecer o pensa-
mento pedagógico de Simón Rodríguez e Anísio Teixeira.
Embora tenham vivenciado contextos distintos, ambos têm
em comum um olhar acurado sobre os problemas sociais,
de maneira que a educação pública parece ser a porta de
entrada para amenização das desigualdades. Compreende-
mos que essa espécie de contexto preigura não apenas
problemas vivenciados no Brasil ou nos demais países da
América Latina, mas também nos instiga a relexão sobre
como os entraves sociais podem gerar perspectivas de so-
lução.
É respeitando as condicionalidades históricas de
cada um desses pensadores que tentamos aqui expor suas
contribuições para a construção latino-americana de uma
escola pública.

Discussão teórica
Antes de adentrar nas principais contribuições des-
ses pensadores, torna-se necessário tracejar um pouco do
contexto vivenciado, pois suas concepções sobre educa-
ção derivam de um momento histórico que subscreve suas
trajetórias.
Assim, comecemos por Simón Rodríguez. A ousa-
dia de Rodríguez o caracteriza. Não uma ousadia pejora-
tiva, petulante. Sua capacidade de inovar em processos de
adversidade o faz uma inspiração para que se pense uma

161
educação diferenciada e plural. No contexto da emancipa-
ção venezuelana, as ideias de Rodríguez para a educação
prezam pela originalidade.
Para compreender a forma aguerrida que Rodríguez
defendia suas ideias, precisamos entender a intensidade do
eurocentrismo vivenciado, em todos os aspectos, inclusive
epistemológicos. Como nos lembra Galeano (2001):

Não faltavam as justiicativas ideológicas. A san-


gria do Novo Mundo convertia-se num ato de
caridade ou uma razão de fé. Junto com a culpa
nasceu um sistema de álibis para as consciências
culpáveis. Transformava-se os índios em bestas de
carga, porque resistiam a um peso maior do que
suportava o débil lombo da lhama, e de passagem,
comprovava-se na realidade, os índios eram bes-
tas de carga (...).

Discutindo a suposta supremacia europeia, reverbe-


rada no pensamento ilosóico e cientíico vigente, arre-
mata:

A América de Voltaire, habitada por índios pre-


guiçosos e estúpidos, tinha porcos com umbigos
nas costas e leões carecas e covardes. Bacon, De
Maistre, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer
como semelhantes os ‘homens degradados’ do
novo mundo. Hegel falou da impotência física e
espiritual da América e disse que os índios tinham
perecido ao sopro da Europa. (GALEANO, 2001,
p. 52).

Nesse cenário de imposição, ciente que a implan-


tação de modelos educacionais de outras nações não re-
dundaria nos efeitos requeridos, Rodríguez pensa a edu-

162
cação de acordo com as condições sociais do seu país. A
sociedade colonial o faz perceber que, para além das cam-
panhas em favor da independência, o instrumento para a
reabilitação da estima de seu povo era a educação. Portan-
to, se a República seria o im pretendido, a escola seria o
meio para a formação de bons cidadãos.
Entretanto, não nos parece que a perspectiva de edu-
cação republicana de Rodríguez esteja condicionada à
desigualdade entre homens e mulheres, por exemplo, es-
pectro que insiste em se amoldar no decurso da história
das sociedades. Assim, “para alcançar tal objetivo entende
que a condição era uma educação para todos os cidadãos,
começando pelas crianças, sem distinção de raças. Para
educá-las desde a primeira infância defendia a necessida-
de de mestres idôneos para encaminhar democraticamen-
te os jovens” (STRECK, ADAMS e MORETTI, 2010, p.
57). Na perspectiva de uma educação popular, seu projeto
educacional objetiva a construção do diálogo, da ética e da
moralidade.
Seus escritos demonstram a visão de uma educação
que a despeito das críticas de uma suposta hostilidade, tal
qual o intento de Bolívar, grande estadista latino-ameri-
cano e aluno de Rodríguez, esta objetivava minimizar as
desigualdades sofridas pelas populações subalternizadas.
Deixemos que Rodríguez exponha seus argumentos:

Ele (Bolívar) expediu um decreto para que se re-


colhessem as crianças pobres de ambos os sexos...
não em casas de misericórdia para iar por conta
do Estado – não em conventos para rogar a Deus
por seus benfeitores – não em cárceres para purgar
a miséria ou os vícios de seus pais – não em hospí-

163
cios, para passar seus primeiros anos aprendendo
a servir (...). As crianças deveriam ser recolhidas
em casas cômodas e asseadas, com peças desti-
nadas a oicinas, e estas sortidas de instrumentos
e dirigidas por bons professores (...). A intenção
não era (como se pensou) encher o país de arte-
sãos rivais ou miseráveis, mas instruir e acostumar
ao trabalho para gerar homens úteis – destinar-
-lhes terras e auxiliá-los em seu estabelecimento
(...) era colonizar o país com seus próprios ha-
bitantes. Davam-se instrução e ofício às mulhe-
res para que não se prostituíssem por necessidade
nem izessem do matrimônio uma especulação
para assegurar sua subsistência (...).

Nas entrelinhas dos argumentos expostos por Ro-


dríguez, observa-se que uma constante é a ideia de uma
sociedade mais isonômica. Para além de uma suposta arbi-
trariedade nas medidas educacionais tomadas, a intenção
maior era conferir aos cidadãos uma educação que lhes
possibilitasse a autonomia e a reabilitação da população
indígena, a qual fora vilipendiada no processo de coloni-
zação. O conhecimento no pensamento de Rodríguez é o
cerne dessa desejável libertação:

La ignorancia es la causa de todos los males que el


hombre se hace y hace a otros, y esto es inevitab-
le, porque la omnisciência no cabe en un hombre:
pude caber, hasta cierto punto, en una sociedad
(por el más y el menos se distingue uma de otra).
No es culpable um hombre porque ignora – poco
es lo que puede saber -, pero lo será si se encarga
de hacer lo que no sabe.

Discutindo sobre o caráter político da instituição


escolar, ainda argumenta: “En las Repúblicas, la escuela

164
debe ser política también, pero sin pretextos ni disfarces.
En la sana política no entran mañas, tretas, ni ardides. La
política de las Repúblicas, em punto a instrucción es for-
mar hombres para la sociedad”.
Mesmo que não haja aqui a intenção de promover
anacronismos, não se pode deixar de perceber que as an-
tigas lutas promovidas em favor de uma educação mais
igualitária e crítica perpassam o discurso atual da educa-
ção latino-americana. Os resquícios das desigualdades co-
loniais ainda impulsionam as transformações sociais ne-
cessárias, contexto em que a educação é aclamada como
meio de reverter as opressões historicamente vivenciadas.
Se assim não fosse, em um outro contexto latino-a-
mericano, passados pouco mais de duzentos de história,
não emergiriam vozes também em favor de uma educação
capaz de respeitar diferenças e fazê-las dialogar. É nesse
cenário que destacamos Anísio Teixeira. O momento de
euforia da industrialização vivenciada no Brasil nos anos
de 1930 é o cenário que envolve e propulsiona as suas
ideias.
Às portas do Brasil moderno varguista, Anísio
pensa a existência de uma educação que, se olharmos
de maneira descontextualizada, acreditaremos que
suas ideias não passam até mesmo de senso comum.
Entretanto, se observarmos as condições de um Brasil
recém-republicano, envolvido em disparidades sociais,
perceberemos a relevância e pertinência de suas ideias.
É nessa perspectiva que Brandão traz as diiculdades
vivenciadas no início do Brasil República, por meio dos
argumentos de Roberto Moreira, educador que trabalhou

165
diretamente com Anísio Teixeira:

O Brasil era ainda um país extremamente inculto e


subdesenvolvido, quando do advento da Repúbli-
ca. No que se refere à Primeira República, enfatiza
que nesta ocasião experimentava-se um sentimen-
to da necessidade inadiável da criação de sistema
educacional e de outras instituições culturais que,
articuladas ao desenvolvimento urbano social
respondessem ao processo de amadurecimento
político e social do povo brasileiro (BRANDÃO,
2002, p. 138).

Diante dos anseios percebidos, as ideias de Teixeira


propõem uma visão senão nova, ao menos mais política e
crítica de educação, obviamente de acordo com as pecu-
liaridades vivenciadas. A tônica capaz de deinir sua peda-
gogia é a democratização. A preocupação com as condi-
cionantes da escola pública são questionamentos centrais
em seu trabalho, que é consonante com um momento his-
tórico de busca da identidade nacional.
Atuando fortemente na perspectiva da Administra-
ção Pública, a formação de professores estava como uma
de suas preocupações centrais. No cenário de uma repú-
blica forjada e incipiente, “não bastava haver escola para
todos, era indispensável que todos aprendessem” (COR-
SETTI, 2010, p. 262). Em síntese, temos como pressupos-
tos centrais de seu pensamento pedagógico os seguintes
termos, os quais são sistematizados por Brandão (2002):
a) defesa de uma escola comum ou única: tal preo-
cupação se dava diante da necessidade de uma escola para
todos, cujo padrão de ensino fosse o mesmo para as clas-

166
ses distintas;
b) laicidade da escola pública: no que toca à escola
laica, observa-se a reprodução da disposição constitucio-
nal de 1891, onde se dispõe que a novidade republicana se
tratava da separação do Estado e Igreja, diferenciando-se
dos tempos monárquicos. Assim, compete também à es-
cola pública, enquanto instituição estatal, a separação en-
tre religião e Estado. Evidentemente essa separação não é
meramente reprodutiva ou despretensiosa. É preciso con-
siderar que a pluralidade social demanda respeito às dife-
renças, e mais: reconhecimento de que tais diferenças não
trazem prejuízos, mas sim ganhos no sentido de gerar um
diálogo de saberes e culturas. Colacionamos nesse senti-
do, o entendimento de Candau (2010), para quem “não há
educação que não esteja imersa nos processos culturais do
contexto em que se situa” (p. 13). A escola pode e deve
ser um espaço para a materialização de direitos, e aqui
ressaltamos os direitos à educação e à cultura. Trata-se de
um lugar em que os “educadores devem favorecer expe-
riências de produção cultural e de ampliação do horizon-
te cultural de alunos e alunas” (MOREIRA; CANDAU,
2010, p. 35);
c) gratuidade e obrigatoriedade da escola pública:
diante das desigualdades socioeconômicas vivenciadas, o
ensino público defendido por Teixeira tratava-se de uma
possibilidade para que todos pudessem frequentar a es-
cola. Como nos alerta Brandão (2002), a escola gratuita
e obrigatória tratava-se de uma estratégia para garantir o
acesso ao cidadão comum. Essa inquietação perpassa o
sentido argumentado pelo próprio Teixeira, uma vez que

167
não se cogitava de dar ao pobre a educação conve-
niente ao rico, mas antes, de dar ao rico a educação
conveniente ao pobre. Não se tratava, com efeito,
de generalizar a educação para os «privilégios»,
mas de acabar com tais «privilégios», em uma so-
ciedade hierarquizada nas ocupações, mas desie-
rarquizada socialmente... (TEIXEIRA, 1967).

d) uma escola coeducativa: acenava-se aqui uma


educação voltada para a equidade de gênero. Nessa pers-
pectiva, homens e mulheres deveriam ser reconhecidos
como cidadãos de iguais direitos e deveres na construção
democrática. O discurso da igualdade de gênero também
nos parece ter evidente ligação com a época vivenciada.
Não se pode esquecer, por exemplo, que direitos políticos
para as mulheres emergem na década de trinta, fruto do
trabalho diuturno de movimentos sufragistas.
Nessa perspectiva, Nunes (2000), aponta sintetica-
mente as críticas do sistema educacional vigente, no olhar
de Teixeira:

Era contra: a educação como processo exclusi-


vo de formação de uma elite; o analfabetismo; a
ausência, a evasão, a repetência da criança na es-
cola; a falta de consciência pública para situação
tão grave; a desvinculação do ensino médio das
exigências da sociedade moderna; a seletividade
extrema no ingresso às universidades; o esvazia-
mento do ensino superior e a dispersão de esforços
pela multiplicidade, nesse nível de ensino, de es-
colas improvisadas ao invés da expansão e forta-
lecimento das boas escolas (NUNES, 2000, p. 20).

Na senda do senso comum, é possível que as inquie-


tações de Teixeira nos pareçam bastante óbvias para as

168
discussões atuais. Todavia, uma análise mais acurada, pas-
sados mais de oitenta anos do Manifesto da Escola Nova
(1932), revela-nos que os velhos problemas ainda muito
repercutem na construção de uma educação pública, e, re-
dundantemente, como necessário no cenário atual, a todos
oportunizada. É necessário reforçar as desigualdades de
um processo republicano ao qual o povo assistiu bestiali-
zado, como nos sugere Carvalho (2004), ou seja, apática
e ilegitimamente. Dessa maneira, pensar a democracia e a
igualdade em um cenário totalmente adverso e desigual,
torna-se revolucionário e libertador. Acreditamos que em
tempos de adversidades o grito por isonomia deve ecoar
ainda mais forte.

Metodologia
Considerando a proposta do presente trabalho, opta-
mos pela realização de um estudo bibliográico, que nos
possibilitasse conhecer, de maneira contextual, as ideias
defendidas para uma educação pública latino-americana,
de acordo com as compreensões de Rodríguez e Teixeira.
Cremos que esse tipo de estudo perfaz as necessidades dos
pesquisadores em sua trajetória, propulsando o amadure-
cimento e aprendizado.

Resultados
O primeiro ponto que merece registro com a inali-
dade de aproximar esses autores de épocas diferentes, mas
que coadunam como aspectos similares, trata-se do peril
de Rodríguez e Teixeira, os quais tiveram como experiên-
cia proissional não apenas a docência, mas também a ex-

169
periência gerencial, administrativa. Rodríguez foi profes-
sor e diretor escolar. Anísio também lecionou, foi reitor,
dentre outras atribuições que exerceu.
Essas informações biográicas seriam irrelevantes, se
não fosse a perspectiva de que esses educadores não per-
maneceram na mera retórica, mas reportaram-se à ação.
A experiência que tiveram em cargos administrativos nos
dá indícios de que as transformações quando demandadas
podem ocorrer, não devendo a burocracia, geralmente tão
aclamada na perspectiva do público, servir de escusa para
o nada fazer.
Mesmo diante da existência de diiculdades, esses
educadores ao nosso ver, visavam a superação da aparente
dicotomia entre a práxis do ensino e da gestão pública,
desmistiicando o discurso de que a educação não pode
melhorar diante dos meandros burocráticos. É assim que a
capacidade de ação também merece destaque.
A valorização da igualdade entre todos também me-
rece destaque. Não uma igualdade que suprima as dife-
renças, mas que seja capaz de reconhecer a heterogenei-
dade dos indivíduos, compreendendo-os como sujeitos de
direitos. Não é vã a compreensão desses educadores por
uma educação que contemplasse pobres e ricos, indistin-
tamente.
Destaque-se ainda que os dois educadores aqui men-
cionados nutriam a preocupação com a igualdade de gê-
nero. Seja do alto do século XVIII ou do início do sécu-
lo XX, esses homens já observam a condição da mulher,
subalternizada historicamente. Para esses pensadores, a

170
escola oportuniza uma pluralidade para a igualdade, mo-
vimento em que se reconhece os diferentes e se constrói
pontes de diálogos. Através dessas pontes não se oprime,
mas se promove o respeito e reconhecimento das capaci-
dades de todos.
Observamos que a dimensão socioeconômica tam-
bém perpassa o pensamento dos autores. Cômoda é a re-
corrência de discursos que toquem nos índices de estudan-
tes matriculados nas escolas públicas. Dados quantitativos
por vezes soam como sinônimo de efetivação de direitos,
quando podem representar apenas máscaras que encobrem
dilemas sociais a serem resolvidos. Observamos inclusive
que este é um discurso muito comum na educação no Bra-
sil, onde o registro de número de estudantes matriculados
acaba sendo uma preocupação maior que os resultados al-
cançados por esses discentes. Acreditamos que esse pode
ser um lagrante na fala dos que se valem da educação
como falácia: há no seu discurso o otimismo dos números,
mas não a realidade do desenvolvimento pedagógico, de
uma educação qualitativa.
Contraditoriamente a essa dicotomia, não observa-
mos em Rodríguez ou em Teixeira a preocupação em ter-
mos quantitativos, como se é corriqueiro apontar no cená-
rio brasileiro, conforme exempliicamos. Retomando aos
nossos educadores, percebemos que a preocupação dos
mesmos não consistia em inserir todos em idade escolar
nos bancos da escola, embora esse fato fosse uma conse-
quência de uma educação democrática. O realce para as
questões suscitadas é uma proposta pedagógica qualita-
tiva e inclusiva. Essa era (e é) a essência de uma educa-

171
ção pública. Se assim não fosse, não teríamos Rodríguez
preocupado com a formação de cidadãos para a Repúbli-
ca, numa busca diuturna pela reabilitação da população
indígena. De outra parte, também não teríamos também
Teixeira, perseguindo uma escola comum, o qual ofertaria
um padrão qualitativo de educação, independente de crité-
rio socioeconômico.
Na perspectiva dos autores, a escola e o desenvol-
vimento da autonomia andam juntos. A escola é um lugar
capaz de contribuir na formação de alunos e alunas para
a cidadania. “Imitar a originalidade”, como nos lembra-
ria Rodríguez, dá-nos as possibilidades de pensar a escola
como um local voltado para o pensamento crítico e para
a ação.
Dessa maneira, observando as condicionalidades
dos países latino-americanos, ainda prejudicados pelo
estigma do colonizador, a ideia de escola pública nesses
países não deve ser limitada à oferta formal das vagas,
distanciando-se da pluralidade cultural que é inerente aos
nossos estudantes. Essa perspectiva aparentemente pode
ser óbvia, mas certamente se depara com os meandros de
uma educação pública ainda voltada para modelos de ou-
tros países, que desconsidera peculiaridades. Trata-se de
pensar a escola como lugar em que a autonomia discente
ocupe o seu lugar, onde mais que o conformismo com o
reprodutivismo, a consciência cidadã seja o cerne da edu-
cação.
Diante dos argumentos acima expostos, inferimos
algumas questões a partir das ideias propostas pelos auto-
res sob análise. Primeiramente, observamos que os distin-

172
tos contextos históricos não foram impeditivos para que
algumas perspectivas de Rodríguez e Teixeira fossem in-
terseccionadas. Existe para os pensadores a necessidade
de se rever a educação pública para todos os cidadãos. O
acesso formal à educação não sacia as demandas das po-
pulações da América Latina, de maneira que existe uma
preocupação com a erradicação da ignorância. Se por um
lado Rodríguez propõe uma educação crítica, que permi-
ta a conscientização dos sujeitos, a im de que se tornem
bons cidadãos republicanos, Teixeira coloca a preocupa-
ção com a oferta de uma educação desigual, onde ricos e
pobres têm acessos distintos, e que apenas compactuam
para a permanência da desigualdade.
Pensamos que talvez essa seja uma das maiores con-
tribuições desses pensadores: não usar o discurso letárgico
de uma educação para todos, sem que a ação e prática te-
nham seu lugar, de maneira a fortalecer a permanência de
uma sociedade desigual. A despeito da incômoda maneira
de pensar uma educação acessível a todos, que se con-
trapõe às concepções elitistas de educação, não se pensa
aqui no mero ingresso da população em uma instituição
escolar. Mais que a formalidade, preocupa-se com a qua-
lidade e os objetivos da atividade escolar a ser construída
juntamente com os sujeitos.
Reletindo sobre o contexto atual, diante das in-
quietações e argumentos trazidos até aqui, pensemos nos
velhos problemas que assolam a educação brasileira, os
quais demandam o fomento de educação decolonial25. Oli-
25 Por decolonialidade, entende Oliveira e Candau que é visibilizar
as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais,
epistêmicas e políticas. A decolonialidade representa uma estratégia que vai

173
veira e Candau (2010), ao discutir sobre o impasse das
políticas educacionais até então construídas na perspec-
tiva étnico-racial, relacionados com a complexidade das
mudanças pedagógicas e políticas demandadas, faz-nos
reletir: “como aplicar um dispositivo legal, que traz uma
fundamentação teórica e epistemológica não-eurocêntrica,
numa realidade em que enfoques teóricos e epistemoló-
gicos eurocêntricos vêm tradicionalmente fundamentando
a prática de ensino da maioria dos docentes? (OLIVEI-
RA e CANDAU, 2010, p. 19)”. É nesse cenário que os
autores sinalizam para as diiculdades na construção de
novas epistemologias, tendo em vista que no Brasil ainda
paira o imaginário da democracia racial, que invisibiliza
as demandas de uma sociedade historicamente desigual,
de modo que transformações substanciais minimamente
podem ser geridas a partir das ações dos sujeitos que fo-
mentam tais processos nos espaços escolares.
A despeito desses meandros institucionais que po-
dem interferir na projeção de uma educação mais crítica
e decolonial, professores e professoras podem (e devem)
avocar para si a responsabilidade de problematizar suas
práticas também junto a alunos e alunas. É preciso fortale-
cer o protagonismo dos sujeitos, fazendo-os perceber que
também são responsáveis por evitar as condutas recoloni-
zadoras. Podem reescrever a história, na medida em que,
valendo-se de suas práticas, propulsionam saberes outros,
tornando-os visíveis, ao tempo em que fomentam também
capacidade dialógica.

além da transformação da descolonização, ou seja, supõe também construção


e criação. Sua meta é a reconstrução radical do ser, do poder e do saber (OLI-
VEIRA E CANDAU, 2010, p. 24).

174
É insistindo no papel da escola enquanto fomentadora
de uma prática não limitada a conhecimentos formais, de
um espaço que não despreze realidades e contribuições
culturais que também acreditamos na vivacidade do
pensamento pedagógico de Rodríguez e Teixeira. Os
possíveis processos de colonialidade vivenciados nos
bancos escolares, por si só servem de argumento para que
uma educação mais equitativa seja construída.

Considerações inais
Pelo exposto, compreendemos que é preciso enten-
der os autores estudados nesse trabalho, a partir de seu
tempo, das suas condicionantes históricas. Evidentemen-
te os trazemos à discussão não como modelos herméti-
cos e incontestáveis do que é uma escola pública, mas
não poderíamos deixar de registrar que as contribuições
elencadas, não defendem uma educação passiva, massiva.
Mesmo diante das implicações históricas, observa-se nas
entrelinhas de seus pensamentos, a busca pela isonomia na
educação, para que o povo seja protagonista, não coadju-
vante no cenário social.
Inferimos ainda que uma das diiculdades observa-
das na atual educação brasileira pode ser observada na
existência de uma inversão: a educação pública no Brasil
não é pensada a partir de seus sujeitos e potencialidades,
mas através de entraves burocráticos e escassez de recur-
sos. Quando a educação não é percebida como prioridade,
já é sinalizada a existência de desigualdades entre os di-
versos sujeitos.

175
Existe um grande mérito no pensamento pedagó-
gico de Rodríguez, que necessita também ser salientado.
Observamos a partir dessa relexão, que, do alto do sé-
culo XIX, já nos são mostrados os prejuízos de amoldar
experiências outras, ainda que exitosas, quando descon-
textualizadas. A percepção de uma escola pública para a
América Latina necessariamente perpassa por um pensa-
mento contextual. No caso brasileiro, em tempos de cortes
de investimentos em educação e implementação de mo-
delos educacionais que não são coerentes com demandas
locais, como produzir uma educação decolonial, quando
os modelos e legislações existentes não corroboram para
esse im? São desaios postos para as inquietudes atuais.
Vale salientar o modus que se operam essas alterações
no cenário educacional, quando, propostas em nome da
pluralidade cultural e até mesmo de uma perspectiva
decolonial, ainda reproduzem modelos de subalternização
e de desigualdade.
Ainda assim, mesmo diante dos obstáculos percebi-
dos, os pequenos passos nessa trajetória devem ser reco-
nhecidos, pois esses também são uma característica atual
do espaço escolar: resiliência e compromisso em ações
simples, porém efetivas no que se refere à formação de
sujeitos, a despeito das intempéries de uma história episte-
mologicamente colonial. Serão essas ações que irão perfa-
zer novos caminhos para a reescrita da história na educa-
ção brasileira e dos demais países latino-americanos.
Por im, compreendemos que as maiores contribui-
ções de Rodríguez e Teixeira para a construção de uma
educação pública estão consubstanciadas nas seguintes

176
questões: a) iguais condições de acesso à escola; b) igual
acesso à educação entre homens e mulheres; c) fomento
de uma educação para a cidadania; d) construção de um
modelo de educação que contemple as necessidades lo-
cais; e) ineicácia de cópias de modelos educacionais.
Compreendemos também que essas questões neces-
sitam ser retomadas constantemente, diante das inquietu-
des político-institucionais exercidas sobre o pensamen-
to educacional brasileiro, bem como de outros países da
América Latina.
As ideias pedagógicas aqui apresentadas muito têm
a contribuir para a coniguração de modelos de educação
pública latino-americana, os quais sejam inclusivos não
apenas em termos legais e institucionais, mas em essên-
cia. O desaio hodierno da educação pública consiste em
sair das barreiras de modelos engessados e implantados,
alcançando perspectivas qualitativas, as quais reconheçam
e instiguem o fortalecimento de direitos e da cidadania,
tendo o pensamento crítico como exercício que permeie
a sala de aula recorrentemente. É também, ao nosso ver,
a alternativa que temos para combalir o que Grosfoguel
(2008), denominou de racismo epistêmico, que “considera
conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhe-
cimentos ocidentais” (GROSFOGUEL, 2008, p. 32). Re-
letir sobre esses novos (mas já tão discutidos) modelos de
educação pública, torna-se premente para um indicativo de
que é factível uma educação de qualidade, sem as amarras
do processo de colonização e seus desdobramentos.
Saliente-se que em tempos em que se vivencia o tra-
cejar inverso de redução de recursos para a educação, e

177
onde a perspectiva de um pensamento massivo parece ser
mais proeminente do que o reconhecimento das peculia-
ridades sociais, a inspiração pedagógica aqui apresentada
ica, não só como condição relexiva, mas sobretudo ativa
para professoras e professores que reconhecem no seu de-
ver a relevância da construção de um espaço público volta-
do para as diferenças. É necessário superar a compreensão
do público enquanto lugar que a ninguém pertence, em
que nada se pode fazer e que inexiste responsabilização.
Seguramente (re)pensar a educação pública fora desses
moldes provoca o incômodo de furtar-se do comodismo e
lançar-se às inseguranças dos desaios sociais.
Na educação, não devem existir integrantes imunes
a esse exercício: professores, estudantes, gestores, enim,
todos os sujeitos devem partilhar dessa prática crítica e
reconstrutiva. Registramos, nessa perspectiva, a preocu-
pação que esses autores reportavam em relação aos docen-
tes, enquanto sujeitos que necessitam de diuturna forma-
ção e exclusividade, para a execução de um bom trabalho.
Acreditamos que é também esse investimento que auxilia
na superação do hiato entre a teoria e a prática escolar.
Assim, nunca será demais lembrar das lições acima
cotejadas, no sentido de reletir sobre a educação pública
latino-americana. Se para muitos as questões acima elen-
cadas não passam de retórica subordinada aos desmandos
institucionais, mais ainda há que se fazer. São questões há
muito já discutidas, mas que não perdem sua atualidade e
relevância.
Em resposta às desigualdades e opressões vividas
nos países latino-americanos, a nossa educação pública

178
deve ser inerente à relexão, à criatividade, e ao questiona-
mento, sempre imbricados numa perspectiva democrati-
zante e que comporte as nossas singularidades. Sobre tudo
isso, Rodríguez e Teixeira já nos alertava. Mesmo diante
dos obstáculos percebidos, os passos nessa trajetória de-
vem ser reconhecidos, valorizados. Ainal, parece-nos ser
características necessárias ao atual do espaço escolar, a re-
siliência e compromisso em ações simples, porém efetivas
no que se refere à formação dos sujeitos, a despeito das in-
tempéries de uma história epistemologicamente colonial.

Referências
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Vozes, 2010.
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Rio de Janeiro e a República dos que não foi. Saão Paulo:
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opção descolonial e signiicado de identidade em política.
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179
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de & CANDAU, Vera
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racista e Intercultural no Brasil. In. Educação em Re-
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colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais
Perspectivas latino-americanas. Trad. Júlio César Casarin
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VILAGRÁN, Fernando (comp.). Simón Rodríguez:
las razones de educacion pública. Relexiones del educa-
dor americano que vence el passo de los siglos. Santiago
de Chile: Catalonia, 2011.

180
CONVERGÊNCIAS DO PENSAMENTO PEDA-
GÓGICO LATINO-AMERICANO QUE APONTAM
PARA A EDUCAÇÃO DA MULHER NOS MOVI-
MENTOS SOCIAIS DO CAMPO26
Allene Lage. Doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Pro-
fessora Associada da Universidade Federal de Pernambuco-Campus Agreste
(UFPE/CAA). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação e do
Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE. Email: allenela-
ge@yahoo.com.br.

Resumo
Este artigo se insere no âmbito de um projeto de produtividade do CNPq
e está orientado para estudar os fenômenos envolvidos na questão da
mulher dentro dos movimentos sociais do campo em Pernambuco, es-
pecialmente os que se relacionam com a educação, a identidade e os sa-
beres de luta. Assim, partimos da ideia da convergência do pensamento
pedagógico latino-americano produzido no século XIX e XX que tra-
tam da questão das relações desiguais de gênero e educação, nas ideias
de Nísia Floresta (1810-1885), Maria Lacerda de Moura (1887-1945) e
Gabriela Mistral (1889-1957). Nesse sentido, procurar ecos desse pen-
samento nas atuais experiências educativas dos movimentos sociais do
campo de/com mulheres, especialmente do MST-PE e o MMTR-NE.
No que se refere à metodologia utilizada, foi de cunho qualitativo, com
estudo bibliográico sobre a obra de Nísia Floresta, Maria Lacerda de
26 As relexões deste artigo estão baseadas na minha experiência
de docente e de pesquisadora nos últimos dez anos, na área de movimentos
sociais e educação, e no atual projeto de pesquisa de produtividade cientíica
do CNPq, “A mulher nos Movimentos Sociais do Campo: identidades, saberes
de luta e educação: um estudo comparado entre as mulheres do Movimento
Sem Terra (MST) e as do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do
Nordeste (MMTR-NE), que se encontra em fase inal.

181
Moura e Gabriela Mistral e com coleta de dados em duas oicinas rea-
lizadas entre as mulheres destes dois movimentos sociais, sob o tema
educação, violência e mulheres nos movimentos sociais do campo. As
nossas conclusões apontam para a atualidade do pensamento destas três
intelectuais e convergência de suas ideias com as compreensões das
mulheres trabalhadoras rurais em Pernambuco.
Palavras-chaves: Nísia Floresta, Maria Lacerda de Moura, Gabriela
Mistral, pensamento latino-americano, mulheres trabalhadoras rurais.

Introdução
A década de 1980 é o marco histórico de (re)organi-
zação de muitos movimentos sociais do campo na Améri-
ca Latina. É também nesse período, pós-ditadura e no bojo
das transformações políticas neoliberais que os movimen-
tos de mulheres do campo ganham força e signiicativa
expressão em seus processos de luta.
As experiências de luta contra a ditadura civil-mili-
tar empreendida pelos movimentos camponeses e as expe-
riências sindicais que muitas mulheres participaram e o re-
conhecimento de que as mulheres passam por problemas
especíicos tanto pelas instâncias sindicais como pelos de-
mais movimentos sociais foi um processo lento, mas que
levou as mulheres a questionarem sua condição social.
Esse é também um dos principais argumentos legi-
timadores da “autonomia” dos movimentos de mulheres
frente a outros movimentos sociais, uma vez que consi-
deram que suas demandas sempre foram secundárias nes-
ses espaços. Através de um discurso construído a partir
de conceitos como opressão, liberdade, igualdade, justiça,
emancipação, solidariedade, poder e dominação, os mo-
vimentos sociais do campo de mulheres ou com mulheres

182
justiicam sua existência histórica em termos de autono-
mia política.
Neste sentido, as experiências políticas e os proces-
sos de educação dentro dos movimentos sociais motivam
o estudo com teóricos que trazem um aporte diferenciado,
que contribui para uma nova consciência que leva a apro-
priação do conhecimento por diversas razões, tais como o
sonho de conquistar direitos, a descoberta de novas sub-
jetividades, a perspectiva da apropriação do saber como
aspecto importante para a capacitação da luta política, a
realização pessoal, entre outros, são fatores que motivam
este processo. Assim o conhecimento se torna transforma-
dor quando o sujeito se reconhece no outro, dentro de um
movimento de ida e volta, onde o conhecimento das dife-
rentes áreas forma uma totalidade articulada entre si, que
transforma a forma de pensar o mundo, para nele agir.
Entender esta dinâmica que respeita as desigualdades
sociais construídas e as diferenças de gênero, religião e de
etnia dentro de um processo de politização e humanização
da pessoa, conduz o sujeito a compreender a importância
do conhecimento como uma construção histórico-social,
fundada numa relação predominante de troca de saberes.
Em face do exposto o nosso objetivo geral é, consi-
derando o pensamento pedagógico latino-americano pro-
duzido no século XIX e XX que tratam da questão das
relações desiguais de gênero e educação, veriicar se há
repercussões às ideias de Nísia Floresta, Maria Lacerda
de Moura e Gabriela Mistral que encontram eco nas atuais
experiências educativas dos movimentos sociais do cam-
po de/com mulheres.

183
Referencial teórico
Nossas referências reúnem três ícones do pensamen-
to pedagógico latino-americano que têm grandes reper-
cussões na atualidade, quando se trata da relação educa-
ção e mulher, que são: Nísia Floresta (1810-1885); Maria
Lacerda de Moura (1887-1945) e Gabriela Mistral (1889-
1957)27.

Nísia Floresta
Nísia Floresta foi uma das pioneiras da educação fe-
minista do Brasil, tendo sua obra voltada para a defesa da
educação das meninas e da criação de escolas. Precursora
não apenas da luta das mulheres por educação igualitária
entre mulheres e homens, mas também por uma educa-
ção melhor para todos. Para esta intelectual a mulher tem
um papel fundamental na transformação da sociedade, por
isto era necessário investir na educação das mulheres.
Segundo Graziela Rinaldi da Rosa (2010), em sua
análise sobre a obra de Anísia Floresta, airma que esta
propôs uma reforma sobre o comportamento, posição e
atuação política das mulheres. Nessa direção destaca ain-
da que para esta feminista as mulheres devem ser reco-
nhecidas, ao mesmo tão capazes quanto aos homens de
ensinar ciências e que se as mulheres não são vistas nas
cadeiras da universidade, não se pode dizer que seja por
incapacidade, mas sim por efeito da violência com que os
homens se sustentam nesses lugares, sob o prejuízo das
27 A síntese sobre estas autoras centrou-se respectivamente na con-
tribuição de ROSA (2010), ADAMS (2010) e EGGERT e PACHECO (2010),
situados na obra “Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia”, or-
ganizado por Danilo Streck (2010).

184
mulheres.
Na obra denominada “Opúsculo humanitário” faz
uma crítica radical sobre a educação formatadora de com-
portamentos e visões de mundo construída socialmente
para mulheres, no sentido de torná-las descrentes de suas
potencialidades emancipatórias, ao mesmo tempo reféns
da imagem de um mundo onde só há subalternidade,
quando diz que “a ignorância de nossas mulheres poderá
um dia ser substituída por conhecimentos que as tornem
dignas de renome. Mas o mesmo não acontecerá a respei-
to da viciada educação que, como incêndio, vai lavrando
pelo centro das famílias e deixando consideráveis vestí-
gios, que nenhuma instrução conseguirá apagar”.

Maria Lacerda de Moura


Maria Lacerda de Moura, expoente de luta da mu-
lher no movimento anarquista e libertário no qual reivin-
dicava de maneira contundente uma educação igualitária
para mulheres e homens, em oposição à discriminação da
mulher na educação que a colocava em posição de igno-
rância e infantilidade.
Em 1921 fundou a Federação Internacional Femini-
na, com o objetivo de debater questões relativas à mulher
e também à criança, na perspectiva de transformar as re-
lações sociais capitalistas. Encampou também a luta pelo
voto, mas conforme airmam Edla Eggert e Joice Oliveira
Pacheco (2010), Maria Lacerda de Moura “entendeu que
o voto, na verdade, era um processo inadequado de luta
pelo poder, pois beneiciava poucas mulheres sem pensar
de fato na multidão feminina que era explorada e oprimida

185
pela organização social injusta”.
Trouxe à discussão, na década de 1960, como agen-
da de luta feminista a questão da mulher nos trabalhos
acadêmicos, antes mesmo deste debate surgir entre as fe-
ministas norte-americanas. Para a época suas ideias eram
consideradas revolucionárias, especialmente no campo da
educação, na medida em que defendia questões sobre o
controle da natalidade, através da maternidade consciente,
a independência inanceira das mulheres para romper com
a submissão ao homem e sobre a desigualdade de direitos
entre mulheres e homens.
Na sua obra denominada “A mulher é uma degene-
rada? Das vantagens da educação intelectual e proissional
da mulher na vida prática das sociedades” diz que “con-
siderando a escravidão secular feminina (...) a educação
é incapaz de desenvolver aptidões e faculdades latentes
– deseduca, continua o prejuízo tradicional (...). Assim é
indispensável revolução na educação, a im de ruir todo o
edifício antigo e reconstruir novos alicerces mais sólidos,
racionais, cientíicos”.

Gabriela Mistral
Gabriela Mistral, poeta chilena, Prémio Nobel de Li-
teratura (1945), dedicou parte de sua obra literária para
a educação, com foco sobre a criança, na perspectiva da
urgência do trabalho com as crianças. Traz as defesas em
seus escritos sobre educação da beleza e da ternura como
parte intrínseca da prática pedagógica. Conheceu de perto
a realidade indígena e especialmente a população mapu-
che, além da realidade de muitos outros países. Coope-

186
rou com o governo do México nos planos de ensino nas
missões rurais e indígenas, ao mesmo tempo em que con-
tribuiu decisivamente para as campanhas de bibliotecas
populares.
Segundo Telmo Adams (2010) destacou-se por sua
obra carregada de intensidade e sentido humano e se apro-
ximam de modo especial das crianças, na qual tratou de te-
mas vitais tais como: a vida, a escola e o ensino, a criação
literária, o religioso, o social e a mulher de seu tempo e de
todo tempo o indígena, a natureza, o geográico, o mito, os
costumes, as artes, as questões chilenas e da América toda.
Em seu poema “La maestra rural” quando diz “La
maestar era pobre. Su reino no es humano (...) La maes-
tra es alegre. ¡Pobre mujer herida”, discute as precárias
condições da professora rural. Em outro poema, “A oração
da professora”, retrata o silenciamento de uma professora
que dentro das amarras da resignação que aprenderam a
ser, luta contra o desejo de justiça que a perturba, como
se vê: “Mestre, torna-me perdurável o fervor e passageiro
desencanto. Arranca de mim este impuro desejo de justiça
que ainda me perturba, a mesquinha insinuação de protes-
to que sobe de mim quando me ferem”.

Metodologia
Esta pesquisa é de cunho qualitativo, com estudo bi-
bliográico sobre a obra de Nísia Floresta, Maria Lacerda
de Moura e Gabriela Mistral e suas repercussões nos pro-
cessos educativos do Movimento das Mulheres Trabalha-
doras Rurais do Nordeste (MMTR/NE) e do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de Pernambuco (MS-

187
T-PE), ambos com sede na cidade de Caruaru.
Esta pesquisa, que fez parte de um projeto de pro-
dutividade cientíica do CNPq e esteve orientada para
estudar os fenômenos envolvidos na questão da mulher
dentro dos movimentos sociais do campo em Pernambu-
co, especialmente os que se relacionam com a educação, a
identidade e os saberes de luta. Procurando compreender
os caminhos das mulheres do campo para as suas emanci-
pações, resistências e transgressões, em face ao desaio de
superação das opressões, das invisibilidades, da constru-
ção de novas identidades, de novos saberes.
Seguindo a linha do projeto principal essa pesquisa
é do tipo exploratória e explicativa. Exploratória, porque
está sendo realizada no contexto do estudo sobre a ques-
tão da mulher dentro dos movimentos sociais, com o pro-
pósito de desvelar e compreender novos aspectos dessa
temática em diferentes contextos e formas de estruturação
social. É também explicativa, pois terá a preocupação cen-
tral de identiicar fatores que contribuem para a ocorrência
de fenômenos que afetam de forma positiva ou negativa,
os processos de luta e resistência deste grupo de mulheres
e as possibilidades de transformação social a partir de suas
ações e ressigniicação de suas visões de mundo.
As técnicas de coleta de dados foram várias, pois
buscou atender as oportunidades de compreensão de duas
oicinas realizadas entre as mulheres destes dois movi-
mentos sociais. O relatório dessas oicinas, dentro de
uma perspectiva de observação participante se converteu
no principal instrumento de sistematização dos dados do
campo.

188
As duas oicinas realizadas sob o tema educação,
violência e mulheres nos movimentos sociais do campo,
no mês de março de 2011, no Campus Agreste da UFPE,
para ins deste projeto que foram as seguintes:
• 29/03/2011 - Oicina – Violências contra as Mu-
lheres do Campo
• 30/03/2011 - Oicina – Educação da Mulher Tra-
balhadora Rural

Método do Caso Alargado


O melhor método a ser utilizado não é aquele mais
conhecido e de domínio amplo, mas aquele que consegue
investigar todos os pontos relevantes para que os resulta-
dos da pesquisa sejam alcançados. Nesse sentido, esta pes-
quisa foi fundamentada no Método do Caso Alargado que
parte do Estudo de Caso e ao inal alarga suas implicações
ao olhar a sociedade.
A base inicial, especialmente procedimental do Es-
tudo de Caso, proporciona aprender com a experiência e
enriquecer o aprendizado a partir do encontro da teoria
com a realidade, da ação e da criatividade. Nesta direção,
a utilização do Estudo de Caso é importante para a com-
preensão do tema pesquisado, por proporcionar um exame
mais abrangente sobre as várias implicações do estudo da
mulher dentro dos movimentos sociais do campo em Per-
nambuco. Segundo Goldenberg (2000):

O estudo de caso não é uma técnica especíica,


mas uma análise holística, a mais completa possí-
vel, que considera a unidade social estudada como

189
um todo, seja um indivíduo, uma família, uma ins-
tituição ou uma comunidade, com o objetivo de
compreendê-los em seus próprios termos. O estu-
do de caso reúne o maior número de informações
detalhadas, por meio de diferentes técnicas, com o
objetivo de aprender a totalidade de uma situação
e descrever a complexidade de um caso comple-
xo. Através de um estudo profundo e exaustivo em
um objeto delimitado, o estudo de caso possibilita
a penetração na realidade social, não conseguida
pela análise estatística (Goldenberg, 2000: 33-34).

Após esta análise holística, surge a necessidade de


ampliar o universo das implicações sobre o estudo. Dentro
desta perspectiva, o Método do Caso Alargado consubs-
tancia a necessidade de ampliar as conclusões do estudo
de caso, pela especiicidade do tema da pesquisa. Assim,
elegemos o Método do Caso Alargado, utilizado por Boa-
ventura de Sousa Santos (1983) e posteriormente por Mi-
chael Burawoy (1991; 2000), e por Lage (2005) para ins
desta pesquisa, de modo a visibilizar uma convergência
pedagógica entre dois movimentos sociais do campo que
atuam no estado de Pernambuco.
Desse modo, o caso torna-se alargado nas suas im-
plicações, não é na análise estrita do caso – o estudo de
caso é uma janela através da qual se vê a sociedade e ou-
tras coisas de forma mais ampla. Neste sentido, o método
do caso alargado propõe:

Em vez de reduzir os casos às variáveis que os


normalizam e tornam mecanicamente semelhan-
tes, procura analisar, com o máximo de detalhe
descritivo, a complexidade do caso, com vista a
captar o que há nele de diferente ou de único. A
riqueza do caso não está no que nele é generalizá-

190
vel, mas na amplitude das incidências estruturais
que nele se denunciam pela multiplicidade e pro-
fundidade das interacções que o constituem (San-
tos, 1983: 11).

De fato, o Método do Caso Alargado propicia uma


conclusão de maior profundidade sobre a investigação
realizada, incidindo não apenas sobre os casos estudados
– isoladamente ou comparados –, mas porque oferece uma
estrutura metodológica capaz de ampliar o espectro das
relexões, amplia o universo da análise de modo que esta
possa discorrer acerca de questões importantes relaciona-
das com o tema e presentes na sociedade.

Universo da pesquisa – MST-PE e MMTR-NE


O Universo da nossa pesquisa será representado por
dois importantes movimentos sociais: o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra de Pernambuco e o Mo-
vimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste.
A escolha destas duas experiências se deu em primeiro lu-
gar por se tratarem de dois movimentos sociais do campo
e em segundo lugar pelo tempo da vida destes.
Mesmo havendo diferenças entre os dois movimen-
tos, especialmente porque um contempla as lutas de gêne-
ro entre mulheres e homens dentro da mesma organização
e dentro de uma luta maior e, o outro a luta de gênero
dentro de uma organização somente de mulheres, há entre
estas experiências uma convergência dos limites, diicul-
dades e dos esforços por mudarem as relações de gêneros
e a preocupação com melhores condições de vida para as
mulheres do campo.

191
Neste sentido, o quadro a seguir nos aponta as pri-
meiras aproximações para este estudo comparativo sobre
a mulher dentro destes dois movimentos sociais.
MOVIMENTO DOS TRABA- MOVIMENTO DAS MULHE-
LHADORES RURAIS SEM RES TRABALHADORAS RU-
TERRA - PE RAIS - NE
Ano de Fundação: Ano de Fundação:
1989 com a primeira ocupação de 1986
Terra em SUAPE Município do
Cabo-PE.
Origem: Origem:
Pastorais da Terra Sindicatos rurais
Nº aproximado de pessoas da Nº aproximado de pessoas da
organização: organização:
12 mil famílias Assentadas e 18 180
mil acampados em Pernambuco
em 154 assentamentos.
Área de atuação geográica: Área de atuação geográica:
Ao nível nacional está organiza- Região Nordeste
do em 24 Estados brasileiros. Em
Pernambuco está organizado em
todas as regiões do Estado.

192
Objetivos gerais ou missão da Objetivos gerais ou missão da
organização: organização:
O principal objeto do MST é rea- • Articular, capacitar e organizar
lização de uma Reforma Agrária mulheres trabalhadoras rurais nos
no Brasil e a concretização de nove Estados do Nordeste des-
uma sociedade socialista. pertando e fortalecendo grupos
e outras organizações de modo a
construir na elevação de sua au-
tonomia autoestima e criatividade
para o enfrentamento de proble-
mas e desaios do mundo rural,
principalmente no combate a todo
tipo de discriminação e violência
sexista rumo à construção de no-
vas relações de gênero e de uma
sociedade justa e solidária;
• Reforçar a participação cons-
ciente das mulheres trabalhadoras
rurais para transformar a realida-
de de opressão nas relações exis-
tentes;
• Construir mecanismos para am-
pliar a participação das mulheres
trabalhadoras rurais nos espaços
públicos a nível Estadual, Regio-
nal, Nacional e Latino América;
• Trabalhar a questão da produ-
ção, articulando-se com a proble-
mática de gênero e as políticas de
governo para o campo.

193
Temas, áreas de trabalho ou Temas, áreas de trabalho ou
atuação atuação
Educação, Produção, Formação Articulação, Capacitando e or-
Política, Saúde Alternativa e Pre- ganizando; Relações de Gênero;
ventiva, Cultura, Comunicação, Violência Contra Mulher; Ci-
Gênero, Direitos Humanos e dadania; Relações de Parcerias;
Meio Ambiente. Valorização da Arte e da Cultura;
Políticas Públicas; Terra, Produ-
ção e Geração de Renda; Convi-
vência com o Semiárido; Fortale-
cimento Institucional; Formação
de Educadoras; Capacitação de
Lideranças.

As informações foram extraídas do Catálogo das Or-


ganizações da Sociedade Civil de Caruaru – CAA/UFPE
–, resultante do projeto “Identiicação e caracterização da
sociedade civil de Caruaru/PE” coordenado por Allene
Lage.

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –


Pernambuco
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Ter-
ra – MST – tem sua origem no inal da década de 1970,
num cenário de im de ditadura militar, abertura política
e retomada do processo de democratização do Brasil. A
organização da primeira ocupação de terra – a gleba Ma-
cali, em Ronda Alta, em 7 de setembro de 1979, realizada
por um grupo de agricultores sem-terra no estado do Rio
Grande do Sul, apoiados pela Comissão Pastoral da Terra
foi o marco de fundação desse Movimento. Em janeiro de
1985, oitenta representantes de organizações camponesas
de dezoito estados brasileiros reuniram-se próximo à ci-

194
dade paranaense de Cascavel e decidiram criar um movi-
mento nacional que congregasse camponeses para reivin-
dicar o acesso à terra.
A organização do MST em Pernambuco aconteceu
desde a fundação do Movimento, mais concretamente
a partir do primeiro congresso, realizado em janeiro de
1985. A estratégia foi, desde o início, massiicar a luta pela
terra nas principais regiões do país, levando em conside-
ração a concentração de Trabalhadores Rurais Sem Terra
e o potencial de desenvolvimento da agricultura. No ano
de 1989 o MST realiza no Estado de Pernambuco a pri-
meira ocupação de terra com grande expectativa, pois o
Movimento Sem Terra contava com a história de luta dos
trabalhadores e trabalhadoras da região. Contava com o
apoio do então governador Miguel Arraes, que tinha uma
história muito vinculada às grandes lutas dos camponeses
da Zona da Mata de Pernambuco, principalmente porque
fora governador do Estado durante o auge das lutas das
Ligas Camponesas.
Segundo Amorim e Souza (2008) a lógica do surgi-
mento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
na Zona da Mata do Estado de Pernambuco se deu a partir
da estratégia de expandir a bandeira da luta da Reforma
Agrária e resgatar as lutas históricas do povo nordestino,
levando em conta as lutas pela terra já desenvolvidas nes-
ta região. Esperava-se que a conjuntura fosse favorável à
fundação do MST já que se tinha o entendimento de um
governo popular, de Miguel Arraes, e um sindicalismo
combativo.
Um marco importante da luta do MST em Pernam-

195
buco na região do Agreste foi a ocupação da Fazenda Nor-
mandia, por 179 famílias no dia primeiro de maio de 1993.
Para Amorim e Souza (2008), a ocupação se transformou
em símbolo de resistência e de luta, pois foram quatro
despejos e cinco ocupações até a vitória deinitiva, em
novembro de 1997. Essa luta projetou o Movimento Sem
Terra no cenário da luta política no Estado de Pernambu-
co. A luta da Normandia e todas as contradições surgidas a
partir do processo legitimaram a luta pela Reforma Agrá-
ria em Pernambuco, principalmente quando se dava por
certa a derrota do processo de desapropriação da Fazenda.
Na luta pela reforma agrária a participação das mu-
lheres na conquista da terra tem sido fundamental e tem
feito emergir outras lutas, como a pela igualdade nas re-
lações de gênero. Neste sentido, Lage (2005) airma que
a vivência no acampamento é o primeiro espaço de luta
conquistado, por meio de um intenso processo de socia-
lização e politização, na medida em que esta oportunida-
de, que inicialmente está voltada para a gestão dos bar-
racos, extrapola imediatamente para a gestão quotidiana
do acampamento. Simultaneamente, organizam-se uma
rede de solidariedades e aprendizagens, ampliando assim
o campo de atuação. Passam a resolver as questões da luta
diária, relativa ao viver num acampamento com todas as
suas precariedades.
Contudo, vencer a cultura machista, nem dentro de
um movimento social é tarefa fácil. Para reforçar a cons-
trução de uma nova consciência de relações iguais entre
homens e mulheres, o MST tem adotado desde a última
década uma política de gênero mais impositiva em todos

196
os assentamentos e acampamentos de reforma agrária de
modo a forçar a mudança destas relações, na medida em
que tornou-se obrigatório em todas as instâncias represen-
tativas do Movimento ser formada por um homem e uma
mulher. De qualquer modo são as mulheres que estão a
carregar esta bandeira da igualdade, tanto no âmbito fami-
liar quanto no coletivo.

Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais –


Nordeste
O Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do
Nordeste – MMTR-NE – nasceu das relexões e do inter-
câmbio de mulheres em duas microrregiões dos estados
de Pernambuco e Paraíba, na década de 1980. A partici-
pação destas mulheres no III Encontro Feminista Latino
Americano e do Caribe, em 1985, foi um momento muito
importante para fortalecer essa deinição. Assim, inicia-se
a articulação nos nove (09) estados do Nordeste.
O MMTR-NE com sede por vinte e um anos em Per-
nambuco surge a partir de demandas que agregam a con-
dição de trabalhadora rural, a experiência das mulheres
em mobilizações nas frentes emergenciais e por direitos
previdenciários. Entretanto, ainda que estes se constituam
enquanto espaços apenas de mulheres, este movimento
traz o legado da luta pela sindicalização de mulheres, pelo
seu reconhecimento como trabalhadora rural e direciona
suas lutas para os sindicatos, buscando, sobretudo, ocupar
espaços de peso na hierarquia sindical.
O MMTR-NE começou a se organizar a partir da
discussão das diiculdades, dos sonhos e dos desaios de

197
grupos de mulheres das áreas rurais da Paraíba e de Per-
nambuco na década de 1980. Atualmente, são mais de três
mil mulheres organizadas, lideranças de organizações de
base comunitária em nove estados (Alagoas, Bahia, Cea-
rá, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Paraíba, Rio Grande do
Norte, e Sergipe).
Segundo a Secretária Geral, Sra. Margarida, em en-
trevista para o projeto “Organizações da Sociedade Civil
de Caruaru”, antes as mulheres não tinham direito de par-
ticipar de discussões políticas, fato que está mudando com
o tempo. Além disso, não existia, entre as organizações fe-
ministas, um movimento voltado para as mulheres traba-
lhadoras rurais no Nordeste. Tudo isso foram fatores que
contribuíram para a criação do MMTR naquele momento.
Atualmente, com sede em Caruaru (Pernambuco), a orga-
nização conta com coordenações municipais e estaduais,
diretoria composta por duas mulheres em cada estado da
Região Nordeste e uma secretária executiva. O Movimen-
to desenvolve programas de: Formação de Lideranças,
Formação de Educadoras, Geração de Renda, Comunica-
ção, e Cidadania da Trabalhadora Rural.
Neste sentido o MMTR-NE ainda trabalha com di-
versas temáticas, que vão desde questões relacionadas à
saúde até assuntos envolvendo direito previdenciário.
Atualmente, a temática mais discutida é a violência contra
a mulher, pois esta é uma realidade enfrentada por muitas
mulheres, particularmente em Pernambuco, que é um dos
estados brasileiros onde há um maior índice de violência e
crimes contra a mulher.
Um dos maiores problemas enfrentados pelas mu-

198
lheres vítimas de violência é a falta de documentação.
Ainda segundo a Secretária Geral do MMTR-NE, muitas
mulheres vão à delegacia dar queixa, mas não conseguem
registrar por não terem documentos. A falta de documenta-
ção faz com que a mulher não deixe apenas de denunciar,
mas também de exercer o papel de cidadã, com direitos e
deveres.
Por isso, um dos grandes desaios do MMTR-NE foi
fazer com que todas as mulheres membros deste Movi-
mento tivessem a documentação básica. Neste sentido o
MMTR-NE lança a campanha fortíssima de documenta-
ção em 1997, que culminava com possibilidade da capa-
citação das mulheres na questão da cidadania, indo para
além da documentação, levando-as a reletirem sobre ou-
tros aspectos sociais relacionados à questão da mulher e
suas subalternizações históricas.
Nesta direção, Cabral (2006) airma que o Movimen-
to Feminista e o MMTR-NE trazem consigo alguns traços
que se assemelham, principalmente, quanto às metodolo-
gias de trabalho, quando ambos resgatam a identidade e
promovem a autoestima das mulheres.

Diálogos e convergências
A nossa proposta é procurar convergências de pen-
samentos entre Nísia Floresta, Maria Lacerda de Moura e
Gabriela Mistral na compreensão das questões relaciona-
das à desigualdade de gênero entre mulheres do MST-PE
e do MMTR-NE, bem como estas questões repercutem ou
são percebidas por estas mulheres na escola ou na vida co-
tidiana nos processos formativos dentro dos movimentos

199
sociais do campo.
O que há de comum nestas três mulheres, além da
convergência de seus pensamentos, é o fato de elas em
sua época viverem a marginalização da mulher e por isto
suas ideias revolucionárias tiveram grande importância
enquanto crítica feminista, mas fortemente precisamente
Nísia Floresta e Maria Lacerda de Moura, e a crítica peda-
gógica de Gabriela Mistral, com um olhar crítico voltado
para as questões da educação que negavam as subalterni-
dades por ela mesma reforçada.
Considerando que a obra destas três intelectuais é
vasta, procuramos no conjunto de suas ideias-temas pre-
sentes nas obras apontadas, articular aquelas que de algu-
ma maneira dialogam com as compreensões das mulheres
trabalhadoras rurais de Pernambuco. Não identiicamos
as autoras das falas, porque o interesse não são as ideias
individualmente, mas sim, enquanto trabalhadoras rurais
ligadas a movimentos sociais do campo.
Sobre cidadania:

A gente sabe que para se atingir a Cidadania, a


gente precisa discutir a questão da saúde, da edu-
cação, que no meio rural entra as mulheres é uma
grande diiculdade, discutir a questão do crédito.
Apesar de termos o Programa de Geração de Ren-
da, a gente sabe que se as mulheres não tiverem
sua autonomia, não alcançarão a cidadania.

[...]

A gente acredita que as mulheres trabalhadoras


rurais foram um segmento na sociedade que avan-
çou muito no seu protagonismo político. Nós mu-
lheres somos atualmente organizadas, mulheres

200
que tiveram muitas conquistas, mas a questão da
violência contra as mulheres trabalhadoras rurais
foi uma questão que cresceu ao longo da história.

[...]

Então a gente precisa fortalecer as mulheres! E


isso só pode acontecer com o conhecimento [...].
E que conhecimentos são esses? Também não é
qualquer um. Eu tinha uma preocupação muito
grande, como o campo ainda é uma área muito
prejudicada nestas questões das políticas publicas,
na saúde publica para a mulher, da educação.

[...]

E não existe soberania quando a gente estiver so-


frendo lá na ponta, mulher sendo surrada, mulher
sendo assassinada por problemas banais. Nós po-
demos considerar que as mulheres vivem numa
guerra civil e aí a gente não consegue trazer essa
discussão pra um âmbito maior, ou talvez isso não
seja o interesse do conjunto da própria sociedade,
que já naturalizou tanto.

Sobre violência contra a mulher e autonomia do cor-


po:

[...] a gente conseguiu esclarecer o que é esta vio-


lência contra a mulher, que esta não se refere só
a violência física, mas são todos os tipos de vio-
lência que causam danos a vida econômico, emo-
cional das mulheres. A violência não é só aquela
que dá um tapa, que ica roxo, que ica a marca.
Tem violência que ica outros tipos de marca e que
como ela não é percebida, ela não é considerada.
Muitas vezes, nem as próprias vítimas tem a cons-
ciência de que isso é violência.

[...]

Se você falar em aborto, é onde a casa cai. E mui-


tas mulheres são obrigadas a transar sem camisi-

201
nha por que não é admitido, por que a mulher é
considerada prostituta, promiscua.

[...]

Então a questão da violência também passa por


isso, a questão do direito ao corpo. E o direito ao
corpo é dizer: Eu quero, não quero, eu quero ou
não quero ter ilho, eu quero ou não quero abortar.
O direito ao corpo é também o direito de decidir
se quer ou não abortar. Isso não é uma questão da
Igreja, de decidir sobre o corpo da mulher.

[...]

Então a questão da violência é também uma dis-


cussão que a gente tem que ter sobre o direito da
mulher sobre seu próprio corpo.

Desde menina a gente já é educada a negar a nos-


sa sexualidade, a negar o direito ao nosso corpo
então se a gente não tem direito ao nosso corpo,
se o corpo não é nosso, é de quem? Ás vezes é do
Estado ou é do nosso companheiro, ou de alguém
que a gente escolhe pra dividir nossa vida.

[...]

O homem bate, o homem violenta a mulher por


que ele acredita que ele tem o direito, por que ele
é superior, por que ele é homem. Ele tem o direito
da propriedade sobre a mulher. A mulher esposa,
a mulher ilha, a mulher irmã, muitas vezes a mãe.
Essa é uma violência de gênero. Qual é o gênero
que está em desvantagem nesse caso?

Sobre desigualdade, ideologia e gênero:

Nossos inimigos não são os homens, nosso maior


inimigo é essa questão que foi formada pela ideo-
logia cultural, por que nada se transforma numa
sociedade se a gente não transformara a ideologia
de um povo, a cultura de um povo. E tudo isso

202
que estamos discutindo está incluído dentro da
questão cultural e quando a gente entende que tem
essa questão cultural por traz de tudo isso existe a
tendência de naturalizar alguma violência, alguma
opressão.

[...]

Como a gente trabalhar uma formação cultural


que envolve o homem e a mulher? [...] Tudo está
ligado a questão cultural, o azul e o rosa, o lilás.
Gente eu não posso usar rosa senão eu vou virar
mulher. Mas as mulheres vestem preto, vestem
azul, veste rosa, veste vermelho e nunca muda-
mos essa questão da sexualidade e o homem acha
que isso vai mexer muito com ele. É uma questão
muito forte que a gente não consegue mudar do
dia para a noite e não é as mulheres sozinhas que
vão mudar não. As mulheres sozinhas precisam se
fortalecer. Mas a transformação não vai ser dada
somente para as mulheres se a gente pensar numa
emancipação mais humanitária, a gente tem que
pensar nessa questão de conjunto mesmo entre ho-
mens e mulheres, nas questões das novas relações.

[...]

Hoje a gente percebe dentro de nossas áreas que


não é fácil quebrar essas relações de gênero, da
participação da mulher. E quando você ver que
uma mulher tem outra atividade, a gente percebe
uma agregação de tarefas. E como se dá essa agre-
gação de tarefas? Se você quer ir para uma assem-
bleia, vai primeiro cuidar do feijão, do arroz e dar
conta disso até 8h, coisa que você só dar conta de
11h, tem que acordar mais cedo e fazer as coisas
para que você participe.

Sobre Educação:

Ninguém ique iludido que a coisa que vem do


Ministério da Educação foi por que o Ministério

203
da Educação pensou e achou que estava na hora
de fazer e agora vamos fazer. Não! Foram os mo-
vimentos que foram lá e exigiram que isso acon-
tecesse.

[...]

Eu vou sempre quebrar essa barreiras. Mesmo que


seja dentro de uma sala de aula e icar só ali absor-
vendo e observando o conhecimento, mas um dia
você vai abrir a boca e vai falar. Um dia você vai
denunciar, um dia você vai se expor e vai colocar
suas ideias. Mas assim você vai se enriquecendo
de conhecimento. Então isso é uma das formas de
se empoderar. Se eu pego uma arma como inte-
resse de matar, isso é empoderamento? Não é! A
gente tem que ter o conhecimento que o empode-
ramento ele vem junto com a própria liberdade.

[...]

Esse preconceito de raça e de gênero e também


quando um menino é meio afeminado todo mundo
começa a ‘mangar’ na escola e começa o menino a
icar escanteado. Aquele menino é diferente, aque-
le menino não é um bom exemplo pra brincar com
os nossos ilhos. E também a professora não vai
lidar com esses conlitos com os pais nem com os
outros alunos, deixa quieto. Deixa aquele menino
quieto, e ele vai icar isolado na escola ate o dia
que ele realmente resistir, ou tem aquele que de-
siste e sai da escola. Então esse é o tipo de escola
que a gente quer que mude.

[...]

Eu acho que você não consegue nem realizar real-


mente um processo pedagógico se você traz um
conhecimento em que o educando não consiga re-
lacionar aquilo com sua própria vida. Isso não é
interessante! Não é que eu esteja dizendo aqui que
a teoria é menos importante do que a prática. Não
esse o objetivo! Mas que uma teoria sem prática,
ela é infértil. Ela é estéril, ela é morta, ela não tem

204
alma! É realmente mais interessante que a gente
consiga partir da prática para chegar à teoria.

[...]

As mulheres trabalhadoras rurais possuem uma


gama de saberes independente do nível de esco-
laridade delas.

Principais resultados
Nas falas das mulheres, tanto do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST), quanto das Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE), reconhe-
cemos em seus processos educativos, no interior destes
dois Movimentos, aspectos centrais das ideias pedagógi-
cas destas três importantes pensadoras latino-americanas;
o que evidencia a atualidade de suas obras tanto com a
questão da mulher e das relações de gênero quanto com a
questão da educação.
Questões sobre cidadania, violência e corpo, e o
grande desaio da ideologia e concepção cultural de mun-
do foram partes em maior ou menor intensidade das preo-
cupações destas intelectuais e que hoje ainda fazem partes
das lutas das mulheres do campo. Nesta direção, os pro-
cessos educativos realizados por estes dois movimentos
procuram situar a desigualdade das relações de gênero,
como uma construção história que tem mantido em condi-
ção de subalternidade mulheres de todas as classes sociais,
especialmente as do campo. Assim, por meio da educação
diferenciada, dialógica e emancipadora, que percebemos
que os processos formativos levam as mulheres desses
movimentos à desconstrução de suas subalternidades, a

205
reconhecerem a força social e política que por questões
culturais negavam possuir.
Assim, as vozes de Nísia Floresta, Maria Lacerda
de Moura e Gabriela Mistral ressoam e mantêm vivas
as lutas das mulheres do presente na América Latina,
enquanto lugar privilegiado de construção de alternativas
políticas contra as desigualdades sociais, na qual inclui as
de relações de gênero que passam obrigatoriamente pela
luta pela educação emancipatória, especialmente para as
mulheres.

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cess on 24 June 2012.

208
DIÁLOGOS ENTRE EDUCAÇÃO EMANCIPATÓ-
RIA E FORMAÇÃO EM/PARA OS DIREITOS HU-
MANOS: INTERSEÇÕES ENTRE MARIA LACER-
DA DE MOURA E PAULO FREIRE
Roberta Rayza Silva de Mendonça. Mestranda em Direitos Humanos –
UFPE. Graduada em Direito – UNIFAVIP. Email: robertas.mendonca@hot-
mail.com.

Resumo
O presente estudo buscar relacionar a proposta de educação emancipa-
tória de Maria Lacerda de Moura e Paulo Freire, observando como elas
culminam, também, em uma Educação em Direitos Humanos. O obje-
tivo geral que norteia nossa pesquisa é: compreender como a educação
emancipatória proposta por Maria Lacerda de Moura e Paulo Freire dia-
loga com a educação em/para os direitos humanos. A metodologia por
nós utilizada se fez a partir de um estudo bibliográico (GIL, 2009), e é
fundamentada, principalmente, nos estudos realizados por Silva (2010),
Freire (2013), Zenaide (2010), Leite (2005) e outros. Assim, pensamos
ser possível entender que Maria Lacerda e Freire, quando se utilizavam
da pedagogia emancipatória também estavam propondo educar em/para
os direitos humanos.
Palavras-chaves: Educação emancipatória. Educação em Direitos Hu-
manos. Maria Lacerda de Moura. Paulo Freire.

Introdução
O objetivo de empoderar sujeitos de direitos sobre
sua condição humana, por meio da disseminação de sabe-

209
res, hoje, depende diretamente dos conhecimentos produ-
zidos/articulados a partir da Educação em Direitos Huma-
nos (EDH), assim, a educação emancipatória atua como
elemento de suma importância para que possamos garantir
o empoderamento desse sujeito.
É importante que este campo do saber seja
compreendido, uma vez que busca pela airmação de
valores e práticas que expressem uma cultura de Direitos
Humanos (DH), que depende diretamente da articulação
de experiências que, quando materializadas em pesquisas
cientíicas, contribuem diretamente para a airmação
de uma consciência cidadã e, consequentemente, para
práticas sociais que tenham por inalidade a promoção da
cidadania.
Assim, a partir do campo do saber da EDH, junto
com a noção de educação emancipatória, assumimos a
possibilidade de integração, de dialética e de totalização
dos conhecimentos e de experiências político-empíricas
produzidas.
Airmar a educação em direitos humanos como pon-
to de partida nessa proposta de pesquisa signiica assumir
a importância dessa área do saber na trajetória pela air-
mação de direitos, onde é possível pensar/problematizar/
fundamentar a relação de investigação entre sujeitos e rea-
lidade(s).
É a partir da EDH e da noção de educação
emancipatória, que nos propomos a analisar e discutir
sobre a seguinte problemática de pesquisa: como a
educação emancipatória proposta por Maria Lacerda

210
de Moura e Paulo Freire dialoga com a educação em/
para os direitos humanos? Pensamos que tais relexões
podem nos ajudar a apresentar como as ideias advindas do
pensamento desses autores contribuem para a formação de
um sujeito livre e detentor de direitos.
O objetivo geral se orienta em: compreender como
a educação emancipatória proposta por Maria Lacerda de
Moura e Paulo Freire dialoga com a educação em/para
os direitos humanos. Assim, para alcançar nosso objeti-
vo maior, foi preciso estabelecer objetivos especíicos
que são: i) discutir sobre educação em/para direitos a par-
tir do Plano Nacional de Educação em Direitos Huma-
nos; ii) estudar sobre a noção de educação emancipatória
e seus desaios; iii) apresentar interseções teóricas entre a
proposta pedagógica de Maria Lacerda de Moura e Paulo
Freire.
Este estudo se deu a partir de um estudo bibliográi-
co, uma vez que as informações, por nós utilizadas, foram
extraídas de livros, artigos e dissertações, para que pudés-
semos aprofundar a discussão e os aspectos teóricos em
relação à proposta (GIL, 2009).

Discussão teórica
Iremos discorrer acerca da Educação em Direitos
Humanos (EDH), apresentando também o Plano Nacional
de Educação em Direitos Humanos, além de observar a
educação emancipadora, e seus desaios, para então de-
monstrar como as ideias de Maria Lacerda e Paulo Freire
convergem.

211
Educação em Direitos Humanos e o Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos
A Educação em Direitos Humanos (EDH), pode ser
entendida como um processo que orienta a formação de
sujeitos de direitos, através da airmação de uma consciên-
cia cidadã por meio do fortalecimento de práticas sociais
em favor da defesa e promoção dos Direitos Humanos.
Viola (2010), vai nos dizer que o tema da Educação
em Direitos Humanos ainda é recente no Brasil, e que sur-
giu durante o processo de redemocratização que marcou
os anos de 1980, com uma proposta “ousada” de construir
uma cultura de participação cidadão, por meio da qual a
sociedade brasileira se reconhecesse como sujeito de di-
reitos.
A partir dessa nova conjuntura de redemocratização
(pós-ditadura), as críticas aos Direitos Humanos, especial-
mente por parte da mídia, de um pensamento conservador
e de um Estado autoritário militar, passaram a introdu-
zir, no senso comum, que defender e promover Direitos
Humanos estava diretamente ligado à ideia de “defender
bandido”, o que impedia/impede, uma promoção desses
direitos.
Era no interior dos movimentos sociais, a partir da
sociedade civil, que se começou a discutir sobre a ideia de
educar em direitos humanos, uma vez que a partir do ato
educativo e transformador, seria possível transformar o
esquecimento em uma cultura feita de memória, o que não
daria espaço para que barbáries como as que aconteceram
no período ditatorial voltassem a acontecer, aqui nasce a

212
ideia de educar os jovens para apoderar-se de seu passado,
bem como a ideia de memória e verdade (VIOLA, 2010).
Naquela época estava presente a ideia de que se é
possível existir um modelo de educação que espalha ter-
ror e medo, é viável produzir uma educação, através do
ato pedagógico, que seja capaz de alcançar a liberdade e
consciência de igualdade, o que quer dizer que, através da
EDH, é possível projetar um futuro que torne viável a luta
política dentro da sociedade, educando assim para o não
retorno de governos autoritários.
Durante esse período ditatorial, no Brasil, pudemos
observar o crescimento de movimentos sociais, que ga-
nharam força através de sua luta contra esse governo, e
sob a inluência de que os direitos humanos devem ser os
princípios fundamentais de uma sociedade livre, harmôni-
ca e justa, e uma vez que isso não ocorre continuaremos
em um cenário onde “haverá brasileiros nascendo muito
ricos, ao lado de outros que já nascerão herdeiros, unica-
mente, da miséria de seus pais” (DALLARI, 2007, p. 42).
Sader (2007) nos explica que educar é ter a com-
preensão de mundo, e de si mesmo, e que se essa educa-
ção não for conduzida de maneira racional e correta, po-
derá culminar em uma educação “alienada”, dando lugar
a mitos e ilusões que podem acabar fazendo com que as
pessoas não se percebam no mundo, nem se apropriem de
seus direitos.
A educação é a única maneira capaz de fazer com
que os seres humanos se tornem, de fato, humanos e hu-
manizados, podendo ser considerada não apenas um direi-

213
to humano, mas ainda característica que compõe o sujei-
to. Como no Brasil a educação, muitas vezes, é marcada
como um sistema de exclusão, e não de inclusão, isso faz
com que seja fomentada a desigualdade social em nosso
país, o que vem de longa data, para deixar mais claro, des-
de a época da colonização (DIAS, 2007).
Foi a Constituição de 1934 que trouxe a educação
como um direito para nosso país, no entanto, mesmo ga-
rantindo esse direito em nossa Constituição, só aqueles
que eram privilegiados tinham acesso à educação, o que
excluía grande parte da população, o que não garantia,
neste caso, a educação como sendo para todos, a educação
só ganha efetividade com a Constituição Federal de 1988.
A década da educação em direitos humanos, que
compreendeu o período de 1º de janeiro de 1995 a 31 de
dezembro de 2004, tinha como objetivo sensibilizar, mo-
bilizar e comprometer a comunidade internacional para
estimular essas atividades educacionais, tendo as ações do
Estado como parte do processo de formação dos sujeitos.
Temos ainda o Plano Nacional de Educação em Di-
reitos Humanos (PNEDH), que busca compreender a edu-
cação em direitos humanos como um processo de múlti-
plas dimensões, orientado para a formação de sujeitos de
direito. Esse plano trouxe 05 eixos que podem promover
essa educação, quais sejam: educação básica; ensino supe-
rior; educação não formal; agentes da justiça, educação e
segurança e educação e mídia.
Aqui iremos tratar de eixos que consideramos de
grande importância nesse processo: a educação básica, o

214
ensino superior, e a educação formal.
Em se tratando do eixo referente à educação bási-
ca, Silva (2010) observa que para a criação do PNEDH, o
Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos
foi de grande importância, uma vez que ele orientou as di-
retrizes do Plano Nacional. A autora ainda faz lembrar que
a educação básica se torna um espaço signiicativo para
a construção do sujeito, observando as contribuições que
pode oferecer ao longo desse desenvolvimento.
A educação básica serve como base essencial para
dar condições à evolução dos processos educativos das
pessoas, são ainda, espaços de grande relevância para os
grupos sociais mais invisibilizados e desfavorecidos, uma
vez que a escola se torna o principal ambiente de apren-
dizado, é nesse espaço que a criança inicia seus contatos
sociais para além da família, onde aprende regras de con-
vivência e aprende a lidar com o outro (SILVA, 2010).
Em se tratando da educação de ensino superior,
Zenaide (2010) observa que o PNEDH espera dele que
a EDH não seja desenvolvida apenas com os universitá-
rios, mas que esse conhecimento seja compartilhado com
a sociedade através de grupos de pesquisa e/ou extensão.
O PNEDH coloca como tarefa para a educação de nível
superior o desaio de formar sujeitos livres, democráticos
e tolerantes com todas as possíveis diferenças. O papel do
ensino superior seria propagar conhecimento no sentido
de promover justiça social e igualdade, e ainda estimular a
capacidade crítica dos sujeitos (BRASIL, 2007).
O eixo que trata da educação formal talvez seja um

215
dos que mais precise de atenção, uma vez que trata dos
conhecimentos dissipados e adquiridos dos movimentos
sociais populares e organizações populares da sociedade
civil, promovendo assim uma grande e rica troca de sabe-
res entre os sujeitos (CARBONARI, 2010).
Os conhecimentos adquiridos da educação formal
têm um objetivo “político-organizativo”, o que, como en-
sina Carbonari (2010), acaba por fortalecer suas lutas na
busca por seus direitos e airmação de suas identidades.
Em seus dizeres, Lage (2013), ao falar de territórios
como sendo o lugar onde se faz história, através de movi-
mentos sociais, observa que esta nova construção, deste
espaço político, é ainda pedagógica, uma vez que não te-
mos apenas militantes, mas também um conjunto de sabe-
res que pode desembocar na contribuição de outras áreas
da educação, sociologia e política.
Estes eixos se dispõem a traçar caminhos para que
seja possível inserir a educação em direitos humanos na
sociedade como um todo, observando como cada um deles
pode se desenvolver e alcançar seus objetivos.
A educação em direitos humanos é cada vez mais
importante na sociedade ocidental, uma vez as negações
de direitos, e as violências sofridas por nossa sociedade se
fazem cada dia mais presentes. É preciso educar os indi-
víduos para que eles possam respeitar o outro, com todas
as suas diferenças, e garantir um sujeito de direitos, mas
também consciente de seus deveres.

Os desaios para uma educação emancipatória

216
A proposta pedagógica de uma educação emancipa-
dora tem suas bases incadas na noção de que é preciso
educar para a autonomia, e parte de uma formação cons-
ciente e signiicativa, que deve ser continuada.
O princípio dessa educação está no fato de conside-
rar o indivíduo em sua totalidade, viabilizando a liberdade
do sujeito de poder desenvolver sua personalidade, tanto
intelectual, quanto emocional. É conduzir o ser humano a
pensar de maneira relexiva e com criticidade através das
inquietações postas pelo professor.
É um conhecimento que começa a ser desenvolvido,
de maneira contínua, por meio desses questionamentos
críticos, que irão culminar em um saber consciente e
autônomo, é preciso que os professores tenham coerência
quanto aos procedimentos que adotam, uma vez que
devem considerar todas as problemáticas que envolvem o
processo educativo.
Um dos grandes desaios que envolvem o processo
educativo, se faz a partir das desigualdades sociais, fator
este cada vez mais presente em nosso país, e presente, de
maneira acentuada, nas grandes cidades, fazendo com que,
em um mesmo local existam vários e diferentes grupos so-
ciais, com interesses diversos, sejam eles econômicos, po-
líticos e/ou sociais (GUZZO; EUZEBIOS FILHO, 2005).
Os autores fazem com que possamos enxergar a i-
nalidade da educação para que assim possamos entender
seus limites e possibilidades, e utilizá-la como um pro-
cesso emancipatório, mas lembram que é preciso entender
que a educação não pode compreender um “superdimen-

217
sionamento” para além do papel que ela pode exercer, que
seria o de uma verdadeira transformação social.
A noção de educação emancipadora se torna mais
clara, quando observamos que ela deve ser entendida
como uma proposta também a ser inserida dentro das lutas
de classe, com vistas à discussão do capitalismo, para que
seja possível entender como as necessidades dessas dife-
rentes classes se consolidam, e como podem ser equilibra-
das (GUZZO; EUZEBIOS FILHO, 2005).
Uma educação emancipadora deve perceber seus li-
mites e sua viabilidade dentro da realidade a qual se inse-
re, para que assim consiga alcançar o seu objetivo maior,
que é o de propiciar uma consciência crítica, dos professo-
res e estudantes, através das interferências que se propõe
a fazer em relação à melhoria de vida dos “menos abasta-
dos da população” (GUZZO; EUZEBIOS FILHO, 2005,
p. 47).
É preciso entender, como ressaltam Guzzo e Euzebios
Filho (2005), que o papel dessa transformação que a
educação emancipatória sugere, de transformação social,
não cabe apenas ao professor, trata-se de uma metodologia
que tem como ideia maior estimular a criticidade das
populações menos favorecidas, a despertarem para
questões sociais, e se posicionarem ética e politicamente.
Em se tratando da escola, enquanto espaço educativo
e formador, dentro de um sistema neoliberal, observamos
que:

Na educação emancipadora ensino e aprendiza-

218
gem fazem parte de um todo indivisível. A edu-
cação não pode ser considerada apenas como
aprendizagem. Na visão neoliberal a centralidade
na aprendizagem esconde a centralidade que é
dada ao indivíduo, ao cliente que acaba sendo o
verdadeiro responsável pela sua aprendizagem. A
educação não é mercadoria, é um direito, e, por
isso não pode ser limitada aos indivíduos que po-
dem comprá-la. Esta é também a visão de um cer-
to empreendedorismo que joga a responsabilidade
no indivíduo, seja no que se refere à sua formação,
seja no que se refere ao seu emprego (GADOTTI,
2012, p. 05).

Como as escolas não constituem um possível mer-


cado para o neoliberalismo, e a educação não se trata de
uma mercadoria, ela não pode, e não deve/deveria ser um
direito daqueles que podem “comprar” por ela, esta é a
ideia de uma formação emancipatória.
A noção de que o conhecimento está apenas na igu-
ra do professor também deve ser deixada de lado, a pro-
posta desta educação é de que não existe uma hierarquia
de conhecimento, e de que não existem detentores de um
conhecimento maior, mas sim conhecimentos que devem
ser compartilhados de maneira crítica, para formar sujei-
tos emancipados.
Gadotti (2012, p. 06) fala em “educar para outros
mundos”, entendendo que a educação emancipatória é um
processo de educar para dar visibilidade ao que foi, por
tanto tempo, oprimido, fala ainda da “luta feminista, o
movimento LGBT, o movimento ecológico, o movimento
zapatista, o movimento dos sem-terra e outros”, que não
eram/são reconhecidos.

219
Essa proposta do autor de “educar para outros mun-
dos” é pautada na não alienação dos alunos, uma educação
feita para conscientizar, uma vez que essa alienação torna
as relações sociais cada vez mais distantes da realidade, e
tem raízes em um discurso político avesso a avanços so-
ciais das camadas menos favorecidas, e completa dizendo
que: “educar para outros mundos possíveis é educar para
a emergência do que ainda não é, o ainda-não, a utopia”
(GADOTTI, 2012, p. 05).
Esse processo da educação, como meio para a mo-
dernidade, deve ser entendido através de uma perspectiva
de melhorias sociais, emancipação e criticidade de uma
sociedade, de seus indivíduos, e não como um im, onde a
educação esteja fadada a uma possível competividade, se
tornando fator econômico.
Silva (1992, p. 158) diz ainda que aqueles que se
dedicam a educar para a modernidade devem dar atenção
ao modelo educacional norte-americano, modelo neolibe-
ral, que acaba conquistando a simpatia de países menos
desenvolvidos, uma educação que “resolveu o problema
da educação pública e gratuita, mas distanciou-se como
nunca da inalidade emancipatória da educação”.
Como exemplo, o autor traz as chamadas “high
schools”, onde os alunos têm a possibilidade de escolher
as disciplinas que mais se assemelham aos seus interes-
ses, ou seja, a escola aparentemente tem um cuidado com
as escolhas das novas gerações, “mas esse cuidado não
transcende os limites do jogo do mercado” (SILVA, 1992,
p. 159).

220
A proposta das “high schools”, vale ressaltar, mode-
lo norte-americano, muito se assemelha à Medida Provi-
sória nº 746/2016, onde o aluno poderá escolher quais as
matérias de seu interesse, e assim alcançar a formação de
nível médio, o que mostra que, mais uma vez, importamos
um modelo de educação que não é nosso, e que não tem a
inalidade de emancipar.
A realidade americana não é a realidade brasileira, e
quando a educação é diretamente ligada a expectativas do
mercado ela perde sua essência e seu real objetivo, uma
vez que a competitividade do mercado torna a educação
um produto, um valor de troca, e não ferramenta capaz de
formar cidadãos críticos, sujeitos humanizados e respon-
sáveis socialmente (SILVA, 1992).
Observamos, assim, que a educação emancipatória
tem como norte a formação de sujeitos críticos, orientados
para mudanças sociais políticas e econômicas no que diz
respeito às camadas sociais menos favorecidas, por assim
dizer, aquelas classes sociais que sempre foram margina-
lizadas e segregadas dentro de um regime político capita-
lista.

Interseções teóricas entre a proposta pedagógica de


Maria Lacerda de Moura e Paulo Freire
Considerada uma mulher forte, à frente de seu tempo
em todos os quesitos, mulher de luta, feminista, revolucio-
nária, jornalista e anarquista, assim era conhecida Maria
Lacerda de Moura, que fugia a qualquer tipo de padroni-
zação, inclusive chegando a não se reconhecer enquanto

221
feminista, uma vez que acreditava que o movimento não
dava conta de todos os direitos que as mulheres necessi-
tavam.
Maria Lacerda sempre se interessou pelo pensamen-
to social e por ideias anticlericais, ideias que fugiam da
inluência das instituições religiosas. Formou-se na Escola
Normal de Barbacena e aos 17 anos passou a dar aula nes-
ta escola (EGGERT; PACHECO, 2010).
Como professora, passou a adotar a pedagogia de
Francisco Ferrer (espanhol, pedagogo, político e criador
da Escola Moderna), adotando assim a pedagogia libertá-
ria, uma pedagogia que se propõe a buscar a transforma-
ção da sociedade.
Em 1919, juntamente com Berta Lutz, fundou a
“Liga pela Emancipação Feminina”, elas pretendiam
emancipar a mulher através da inserção de uma matéria,
chamada “História da Mulher”, nos currículos escolares.
Entretanto, Maria Lacerda percebeu que a proposta de
emancipação feminina da Liga era voltada para mulheres
da burguesia, momento este que se afastou do projeto, e
passou a negar o feminismo daquela época (EGGERT;
PACHECO, 2010).
Em suas muitas relexões sobre o papel da mulher
naquela época, Maria Lacerda observava que as mulheres
eram criadas e ensinadas a cuidar do lar e de seus maridos,
o que fazia com que, para elas, a ideia de “libertinagem
masculina”, fosse algo natural dentro das casas dessas mu-
lheres (LEITE, 2005).

222
Em se tratando de amor, Leite (2005, p. 54) nos fala
que as mulheres daquela época eram ensinadas que, para
elas, só haveria um grande amor, e que essa falsa ideia
seria a grande tragédia feminina, fazendo com que as mu-
lheres fossem sempre ieis, e aceitassem a traição de seus
maridos, naturalizando a ideia de que, “o amor para o ho-
mem é apenas um acidente na vida, e para a mulher, é toda
a razão de ser da sua vida”.
A educação feminina, ou deseducação, era o ponto
chave das inquietações de Maria Lacerda, ela acreditava
que a educação que as mulheres recebiam só servia para
mantê-las em seu status de inércia, aceitando todo e qual-
quer tipo de sujeição, seja no trabalho, em casa, ou nas
escolas. “O que há é tão oposto as nossas necessidades que
urge uma revolução no ensino para demolir e reconstruir”
(LEITE, 2005, p. 79).
Observamos assim, que as ideias propostas por Ma-
ria Lacerda, através de uma educação emancipatória, e da
proposta pedagógica por ela adotada, a pedagogia liber-
tária, caminhavam na direção da libertação da mulher no
cenário em que lhe era apresentado.
Cenário este onde lhe eram negados vários direitos,
e que a todo instante tentavam cercear sua suposta “liber-
dade”, fazendo com que elas acreditassem que o lar e fa-
mília seriam seus campos de atuação, e onde poderiam
exercer seu papel.
As ideias propostas por Maria Lacerda seriam a de
educar as mulheres para que pudessem lutar por seus di-
reitos, se libertar das “algemas” que há tanto tempo lhes

223
haviam colocado, fazer com que as mulheres tivessem
consciência de seu papel na sociedade, e que assim pudes-
sem transformá-la.
As ideias de Maria Lacerda caminhavam sempre em
direção à mulher, por meio da educação emancipatória. As
ideias de Paulo Freire muito se assemelham às de Maria
Lacerda, embora Freire não tivesse como norte apenas as
mulheres, ambos lutavam por uma educação emancipató-
ria.
A obra de Freire intitulada de “Pedagogia da Espe-
rança”, traz algumas marcadas de como o autor percebe
a educação, são elas: a educação como um ato político,
a educação como um compromisso com a libertação do
oprimido, a educação como uma produção de conheci-
mento, a educação guiada pela busca de mudanças sociais,
dentre tantas outras.
No que trata sobre a educação como ato político,
Freire (2013) vai nos falar que o professor dever ter o dis-
cernimento necessário sobre a ideia de mundo que passa
para o aluno através de suas aulas, e que sua opinião po-
lítica não deve apenas icar em seu discurso, deve fazer
parte de suas ações.
O discurso e a prática não podem ser separados, e o
professor deve fazer com que seus alunos possam e con-
sigam identiicar as ideologias presentes por trás de todos
os discursos que são disseminados na sociedade, para que
ele, o aluno, consiga perceber as verdades que estão por
trás desses discursos.

224
Freire, ainda é um grande propulsor da educação po-
pular, e sobre isso Silva (2006, p. 14) diz:

Na proposta da Educação Popular há uma bus-


ca pela emancipação. Mas emancipar-se de que,
senão dos que, apossados de um poder de domi-
nação, oprimem os que estão à margem dos pri-
vilégios, dos desfrutes de riquezas materiais e
também do usufruto do próprio poder [...] É preci-
so, portanto, uma articulação dos que estão presos
para que venham alcançar a libertação das cadeias
opressoras.

Assim era o trabalho de Freire, buscando libertar o


oprimido de sua condição de oprimido, fazendo que ele se
tronasse um ser crítico, pensante e que pudesse lutar por
seus direitos, e por uma sociedade mais justa e humana,
seu discurso era um discurso apaixonado.
Outra grande preocupação de Freire dizia respeito
ao fato de como era passado esse conhecimento para os
alunos, se através de uma “transmissão de conhecimento”,
ou de “produção de conhecimento”.
A diferença estabelecida por Freire estava no fato de
que a “transmissão de conhecimento”, seria uma repro-
dução, tendência que estava a serviço de uma alienação,
e que favorecia a ideia de que existia uma superioridade
do professor em relação ao aluno, era uma educação forte-
mente negada por Freire, uma vez que não existia leitura
de mundo, tratava apenas de um treinamento técnico, uma
domesticação (FREIRE, 2013).
Em se tratando da “produção do conhecimento”,

225
Freire via essa maneira de educar como sendo primordial
e urgente, uma vez que ela se dispunha a despertar a cri-
ticidade dos sujeitos, tirava o aluno de sua condição de
oprimido, e gerava um inconformismo, o que levava o in-
divíduo a buscar por mudanças, mudanças sociais (FREI-
RE, 2013).
Freire (2013) acreditava que o professor tinha papel
fundamental na busca por uma educação emancipadora,
uma vez que ele seria aquele a desvelar as verdades que
estavam presentes na sociedade, sem que, para isso, se
colocasse como um opressor, fazendo existir a troca de
conhecimento entre aluno e professor, deixando o aluno
perceber que era o sujeito de sua própria educação.
Percebemos, assim, que as ideias e propostas peda-
gógicas de Maria Lacerda e Paulo Freire se relacionam
uma vez que ambos buscam por uma educação emancipa-
dora, uma educação que leva o sujeito a reconhecer seus
direitos, pensar de maneira crítica, relexiva e autônoma,
uma educação onde ele se percebe enquanto ator a buscar
por mudanças sociais.

Considerações inais
Partindo da pergunta de pesquisa, que estabelece-
mos assim: como a educação emancipatória proposta
por Maria Lacerda de Moura e Paulo Freire dialoga
com a educação em/para os direitos humanos? Pude-
mos observar que tanto a ideia de educação emancipatória
dos autores muito se assemelha às noções propostas pela
Educação em Direitos Humanos.

226
No início do nosso estudo trouxemos a perspectiva
da EDH, observando que ela contribui para a formação de
um sujeito de direitos, um ser livre, que se dispõe a pensar
em uma sociedade melhor para todos.
Foi possível observar, ainda, como o PNEDH, a par-
tir dos cinco eixos que foram estabelecidos por ele (edu-
cação básica; ensino superior; educação não formal; agen-
tes da justiça, educação e segurança e educação e mídia),
como a Educação em Direitos Humanos deve ser articula-
da em nossa sociedade ocidental, e como cada um desses
eixos deve trabalhar para e na promoção desses direitos.
Em um segundo momento nos debruçamos no que
toca à proposta pedagógica da educação emancipatória, e
seus desaios, compreendendo que ela busca a formação
de um sujeito crítico, relexivo, liberto e que atenta para as
demandas sociais.
Constamos, ainda, que a educação não deve ser tra-
tada como mercadoria, uma vez que acaba criando hierar-
quias entre os saberes, e, uma vez que se torna mercadoria
passa a se concentrar nas camadas sociais mais favore-
cidas, fazendo com que a educação perca a sua essência,
que é propor mudanças, sejam elas sociais, políticas e/ou
econômicas.
Após tratar de cada uma delas, tanto da EDH quanto
da educação emancipatória, pudemos observar que a pro-
posta de Maria Lacerda, enquanto caminha a partir de um
viés feminista, e a educação de Paulo Freire, que caminha
na direção de uma educação popular, ambas se colocam a
pensar em um sujeito livre, que pode desencadear mudan-

227
ças sociais a partir da educação.
Assim, para nós, ica clara a noção de que tanto Ma-
ria Lacerda, quanto Freire, estavam se utilizando não só
da proposta pedagógica de uma educação emancipatória,
mas estavam se propondo à educação, também, para uma
educação em direitos humanos, uma vez que ambos bus-
cavam construir uma educação onde o sujeito fosse livre e
detentor de direitos.

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231
FEMINISMO E EDUCAÇÃO: EMANCIPAÇÃO
ATRAVÉS DO CONHECER-SE. BREVE ANÁLI-
SE DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE NÍSIA
FLORESTA E MARIA LACERDA DE MOURA
Paloma Raquel de Almeida. Mestranda em Educação Contemporânea (PP-
GEduC) na Universidade Federal de Pernambuco – Centro Acadêmico do
Agreste (UFPE-CAA). Advogada. Especialista em Direito Público e em Ciên-
cias Criminais. Professora de Direito Constitucional, Administrativo, do Con-
sumidor e Econômico. Pesquisa Feminismos, Políticas Públicas e Direitos Hu-
manos. paloma.ufpe@gmail.com.

Sérgio Antônio Silva Rego. Doutorando em Sociologia na Universidade do


Minho. Mestre em Educação Contemporânea (PPGEduC) na Universidade
Federal de Pernambuco – Centro Acadêmico do Agreste (UFPE-CAA) –, es-
pecialista em Epistemologia e História pela Faculdade de Filosoia, Ciências e
Letras de Caruaru (FAFICA). Graduado em História pela Faculdade de Filo-
soia Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA, 2003). santoniorego@ig.com.br.

Resumo
A educação feminina, de acordo com os padrões eurocêntricos e pa-
triarcais de sociedade, sobretudo em ins do século XIX e XX, foi, em
grande medida, desprezada ou voltada aos conhecimentos relaciona-
dos à vida privada, à prática religiosa e ao treinamento da “mulher ho-
nesta”. Tais valores ixados por este ideário se mostraram violadores e
afastados da realidade social destas mulheres, que se viram tolhidas, an-
tes de tudo, da sua própria liberdade através do autoconhecimento. As-
sim, o presente trabalho busca analisar autoras que, rompendo com essa
concepção de ensino oferecido às mulheres, pensaram numa educação
emancipadora, enxergando na mulher um sujeito de direitos, capaz de
se manter e de viver com dignidade, independentemente do casamento.

232
É essa a educação que encontramos mediante literatura de Maria La-
cerda de Moura e Nísia Floresta, ambas educadoras que almejaram um
acesso à formação igualitária, contribuindo para se pensar uma América
Latina mais justa e igual para todas/os.
Palavras-chaves: Educação feminina, emancipação, dignidade, Amé-
rica Latina.

Introdução
A educação da mulher pensada de acordo com os
padrões eurocêntricos e machistas de sociedade foi em
grande medida desprezada ou voltada para a formação
que proporcionasse conhecimentos relacionados aos afa-
zeres domésticos, à vida privada, à prática religiosa e ao
treinamento do comportamento da mulher, que deveria ser
condizente com o que se esperava de uma dona de casa e
da dita “mulher honesta”.
Tais valores ixados pelos homens, ou seja, por um
outro, para ser imposto às mulheres, mostrou-se violador e
afastado da realidade social de cada uma dessas mulheres
que tiveram tolhida sua liberdade de escolha. Desse modo,
o presente trabalho visa analisar autoras que, já nos sécu-
los XIX e XX, romperam com essa concepção eurocen-
trada de educação da mulher, pensando em uma educação
emancipadora, que enxerga a mulher como sujeito de di-
reitos, que lhe proporciona formação para ser mantenedo-
ra de sua própria subsistência, viabilizando, dentre outras
coisas, relações afetivas baseadas no amor, e não no sus-
tento das necessidades. A ideia de emancipação vista por
estas mulheres se dá mediante o autoconhecimento, a va-
lorização e sentido de pertença de si mesma. Essa, por sua
vez, é caracterizada mediante a incorporação de diversos

233
saberes que possibilitem uma leitura mais ampla de si e
do mundo em que se vive. Assim sendo, as personalidades
que trabalhamos, visam a libertação de todas/os que se en-
contram amordaçadas/os por questões diversas, sobretudo
aquelas que são baseadas em concepções discriminatórias.
É essa a educação que encontramos na obra de Nísia
Floresta (1810-1885) e Maria Lacerda de Moura (1887-
1945). Estas mulheres brasileiras, fortes, educadoras,
almejaram, através de suas vidas, um mundo onde o
acesso à educação estivesse dado de forma igualitária para
todas as pessoas. Contribuíram, assim, para a obtenção de
espaços mais justos e de quebra de paradigmas, a partir de
ideias que foram consideradas inovadoras e de concepções
que se chocavam com a realidade daquele momento.
As lutas do movimento feminista – antes mesmo da
nomenclatura surgir –, e de pessoas como Nísia Flores-
ta e Maria Lacerda de Moura apontam para um recorte
brasileiro, que a América Latina possui uma pedagogia de
resistência, de justiça social, mediante a produção de um
pensamento crítico, de uma agenda própria e que a coloni-
zação fomentou movimentos de resistência para superá-la.
Há aqui uma observação a ser feita com relação à
obra das mesmas: no que se refere a Nísia Floresta, a obra
é de acesso relativamente fácil, contendo a publicação de
diversos textos, além de ensaios monográicos acerca da
mesma. Já no caso de Maria Lacerda de Moura, o acesso
à literatura da mesma não é fácil, sendo encontradas algu-
mas obras de comentadores, bem como vídeos e artigos.
Mediante o que fora pesquisado, nos inquietamos

234
com relação a diversas questões que versam sobre a con-
dição do Brasil, inserido nesse recorte de latino-america-
no, tradicionalmente caracterizado por uma religiosidade
arraigada, além de um cruel processo colonizador. Como
seria o cenário analisado, caso tivéssemos posto em práti-
ca o projeto de educação empreendido por Nísia Floresta?
Como estaria a condição das mulheres caso o continen-
te tivesse posto em prática as teorias de Maria Lacerda
de Moura? Será que os índices de feminicídio seriam os
mesmos? Será que precisaríamos de políticas públicas de
inclusão da mulher num mercado de trabalho neoliberal
avassalador que simula dar oportunidades e que nos cul-
pa pelo fracasso próprio, das/os nossas/os ilhas/os, da so-
ciedade? A educação religiosa, racista, sexista, burguesa,
capitalista, patriarcal segue culpando, e pensar em outros
termos, em outro nível, junto com Maria Lacerda de Mou-
ra e Nísia Floresta remete-nos a uma outra dimensão. Di-
mensão na qual lutaram por um mundo mais justo, solidá-
rio, igualitário e livre para todas as pessoas.
Desse modo, realizaremos este estudo a partir da se-
guinte pergunta: como se conigura a emancipação fe-
minina na visão de Nísia Floresta e Maria Lacerda de
Moura?
Os objetivos especíicos são: 1 - estudar a pers-
pectiva emancipatória de educação feminina inserida no
pensamento de Nísia Floresta; 2 - analisar a contribuição
do pensamento ilosóico de Maria Lacerda de Moura na
construção de uma equidade de gênero; e 3 - realizar o
diálogo entre as perspectivas das autoras citadas.
A nossa metodologia está pautada na abordagem

235
qualitativa de pesquisa, conjugada com um estudo histó-
rico-bibliográico. Objetivando uma visão acerca do pro-
cesso de educação (compreendidas as perspectivas formal
e não formal), procuramos observar obras das autoras, as-
sim como comentaristas e bibliógrafos das mesmas, am-
pliando e aprofundando a dimensão de nosso estudo.

Nísia Floresta
Todos os brasileiros, qualquer que tenha sido o lugar
de seu nascimento, têm iguais direitos à fruição dos bens
distribuídos pelo seu governo, assim como à consideração
e ao interesse de seus concidadãos.
É, portanto, em favor de todas as mulheres brasileiras
que escrevemos, é a sua geral prosperidade o alvo de
nossos anelos, quando os elementos dessa prosperidade se
acham ainda tão confusamente marulhados no labirinto de
inveterados costumes e arriscadas inovações (FLORESTA,
1989, p. 130).
Nísia Floresta Brasileira Augusta é nome pelo qual
Dionísia Gonçalves Pinto icou conhecida. Nascida no in-
terior do estado do Rio Grande do Norte saiu de sua ter-
ra natal para ser cidadã do mundo, passando por diversos
estados e países. Educadora, escritora (poetisa, ensaísta,
romancista e tradutora), intelectual e ativista dos direitos
das mulheres e promoção da dignidade humana foi uma
incansável entusiasta da fraternidade entre os povos (Cf.
SHARPE-VALADARES In FLORESTA, 1989). É con-
siderada como sendo a primeira feminista do Brasil (Cf.
DUARTE, 2005).

236
Nísia Floresta é uma árdua defensora da educação
para as mulheres como forma de emancipação e transfor-
mação das mesmas do jugo machista, perpetrado por uma
sociedade que impõe a servidão como forma de quietude
e controle dessa metade da população. Sua atuação num
país essencialmente, até aquele momento, início do século
XIX, e saindo da região Nordeste brasileira, caracteriza-
da pelo mandonismo coronelístico, escassez d’água, além
da ideia de ser terra de “cabra macho” (Cf. ALBUQUER-
QUE Jr, 1999).
Desde cedo sofreu a opressão do sistema patriar-
cal e buscou romper com o mesmo mediante a educação.
Filha da pequena burguesia, Nísia conseguiu obter uma
educação que lhe proporcionou um senso crítico de si e
do mundo que a cercava. Ainda na primeira metade do
século XIX, divorciou-se, algo incomum para aqueles
dias. Mudou-se para Pernambuco onde iniciou suas pu-
blicações de artigos em periódicos locais. Em 1832 pu-
blica seu primeiro livro Direitos das mulheres e injusti-
ça dos homens (DUARTE, 2005, p. 17), uma tradução
do texto Reinvindicação dos direitos das mulheres de
Mary Wollstonecraft (Cf. WOLLSTONECRAFT, 2015);
(FLORESTA, 1989).
Em diversos espaços por onde passou os marcou
com uma profunda vontade de mudança das condições pe-
las quais as mulheres viviam e eram educadas (pelo me-
nos aquelas que possuíam renda suiciente para isso). Po-
rém, a instrução oferecida às mesmas girava em torno das
prendas domésticas, uma pequena iniciação em aritmética
e nos estudos da língua vernácula. Nísia incomodava-se

237
com isso e abriu escolas com currículos diferentes, que
ampliavam a oferta de disciplinas, o que proporcionava
diversas críticas em jornais da época.
Nísia está inserida num determinado contexto sócio-
-histórico-cultural e como tal possui algumas incongruên-
cias em seu pensamento, como por exemplo, a inferiorida-
de das mulheres indígenas, a diiculdade de romper com o
cânone religioso, entre outros aspectos. Podemos observar
isso na seguinte citação:

Retiremos por agora os olhos das tristes páginas


de nossa História, concernentes à situação da mu-
lher indígena, depois que o farol do cristianismo
veio esclarecer esta mais deliciosa porção do novo
mundo. Nós a analisaremos em lugar competente
e com o coração profundamente compenetrado da
sua sorte” (FLORESTA, 1989, p. 46).

Com isso, não signiica que a mesma não tenha lu-


tado por causas que, até então, não eram bastante ques-
tionadas. Para tanto, Nísia foi uma combativa defensora
das ideias abolicionistas (DUARTE, 2010, p.45), (SIL-
VA, 2014, p. 73). Comungava da ideia de que todos os
seres humanos deveriam ser livres por natureza e possuir
os mesmos direitos e deveres, demonstrando aqui certo
princípio republicano. Essa condição de país escravocrata
deixava, segundo ela, o Brasil numa categoria inferior aos
demais: “A esperança de que, nas gerações futuras do Bra-
sil, ela assumirá a posição que lhe compete nos pode so-
mente consolar de sua sorte presente” (FLORESTA, 1989,
p. 45).
Suas inluências epistemológicas, adquiridas ao

238
longo do tempo, ajudaram a moldar seu pensamento
(ROSA In STRECK, 2010, p. 91). Mesmo questionando
duramente princípios machistas, ela obteve grande apreço
de pensadores renomados e notadamente reacionários,
tais como Gilberto Freyre, no Brasil, e ainda mantinha
correspondência com Auguste Comte, quando de sua vida
na França.

A pedagogia nisiana pautava-se numa educação


para o progresso social da mulher. Onde só a par-
tir dessa educação o sexo feminino conseguiria
sua emancipação, se desprendendo do patriar-
cado. Um acontecimento inovador seria talvez o
uso de textos didáticos na educação das meninas,
com o seu livro “Conselhos a minha ilha” (1842),
dedicado a sua ilha, Lívia, e que foi adotado por
escolas italianas, “Daciz ou A jovem Completa” e
“Fany ou O modelo das donzelas”, novelas dedi-
cadas às estudantes do Colégio podem ter sido al-
guns dos seus escritos estudados por suas alunas.
Em seu discurso dirigido às suas educandas, no
encerramento das atividades do Colégio em 1847,
Nísia Floresta esclarece “Não vos repetirei aqui o
texto de minhas constantes lições: vós o achareis,
senão gravado em vossos corações, nem mesmo
em vossa memória, ao menos em todos meus es-
critos, que vos tenho dirigido” (SILVA, 2014, p.
62).

Chocava-se com a sociedade e seu pensamento dis-


criminatório e limitador das potencialidades femininas. E
empreendia duras críticas inserindo os homens em espa-
ços que os mesmos punham as mulheres, buscando assim
uma relexão mais ampla para os papéis que os mesmos
airmavam.

239
Que personagens singulares! Não são eles bem
dignos de tão alta preeminência! Exigir uma ser-
vidão a que eles mesmos não têm coragem de se
submeter, de um sexo, que sua vaidade qualiica
com o título de – vasos frágeis –, e querer que lhes
sirvamos de ludíbrio, nós, a quem eles são obriga-
dos a fazer a corte e atrair em seus laços com as
submissões as mais humilhantes! Têm porventura
eles alguns títulos para justiicar o direito com que
reclamam os nossos serviços, que nós igualmente
não tenhamos contra eles? (FLORESTA, 1989, p.
41-42).

Por diversas questões, Nísia sai do Brasil e vive na


Europa, onde percorre diversos países e passa a ter mais
publicações voltadas a relatos de viagens e impressões dos
locais por onde esteve (FLORESTA, 1998). Porém, isso
não limita seu pensamento ou mesmo a atuação nas cau-
sas em que acreditava. Mas, nessa produção, estão mais
evidentes suas contradições e pensamentos que a mesma
ainda buscava desenvolver (SILVA, 2014).
Em seu longo período de produção ela desempenhou
papel importante na busca de conscientização das mulhe-
res e suas “funções” na esfera da vida cotidiana. Sexuali-
dade (dentro da relação matrimonial), papel do casamen-
to, instrução feminina e papel social são temas recorrentes
da obra de Nísia Floresta.

Maria Lacerda de Moura


Não existe no Brasil, pelo menos que saibamos, uma
instituição docente ou uma entidade que tenha realizado
um trabalho de tanto alcance na esfera psicológica e na
ordem normativa que possa comparar-se à obra de Maria

240
Lacerda de Moura, que encarna o tipo da mentalidade fe-
minina evoluída, cultíssima, discreta e ponderada, audaz
e inaudita.
É indubitável que a produção ilosóica e pedagógica
devida à grande ideóloga, tem um extraordinário valor
intelectual; porém, é desde o ponto de vista ético que sua
personalidade se destaca de modo superlativo. Mesmo nos
países em que a literatura feminista logrou maior esplendor,
escritoras do porte de Maria Lacerda não abundam28.
A fala acima, publicada na Revista espanhola Estú-
dios, em 1931, demonstra a grandiosidade intelectual e
pessoal de Maria Lacerda de Moura. A história desta gran-
de brasileira exerce um fascínio sobre quem a estuda e
chama a atenção para o seu desconhecimento em geral no
Brasil, especialmente entre as/os educadoras/es.
Brasileira, nascida na cidade mineira de Barbacena,
em 16 de maio de 1887, e falecida no Rio de Janeiro, em
1945. Filha de pai espírita29, maçom e anticlerical, Maria
Lacerda foi praticante do ocultismo hindu, da meditação
e da Rosa Cruz (USP, 2003). No inal de sua vida, Maria
Lacerda se distanciou da militância política, “retirando-se
28 CAMP, Santiago Valenti. “La pensadora María Lacerda de Mou-
ra”, Estúdios, Barcelona, fevereiro de 1931, ano IX, n.90, p.11, apud RAGO,
2014, p. 6 e 7.
29 O Espiritismo ou doutrina espírita “tem por princípio as relações
do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível” (KARDEC,
2002, p. 13). A codiicação dos princípios fundamentais dessa ilosoia, reli-
gião e doutrina tem origem na cidade de Paris, França, quando, em 1857, o
professor do Instituto Pestalozzi, Denizard Hippolyte-Léon Rivail, adotando
o pseudônimo de Allan Kardec, escreve O livro dos Espíritos, ditado por estes.
Fonte: Biograia de Allan Kardec. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/
ba/ile/oqueespiritismo/AllanKardec.pdf>. Acesso em: 09.out.2016.

241
socialmente e abraçando o espiritismo” (RAGO, 2014, p.
13). Essa formação espiritualista contribui para a sua vi-
são ampla, seu olhar ilosóico e aberto das questões da
vida. Outra inluência de seu pai, foi a sua retirada da es-
cola, que à época, adotava abertamente o catolicismo e seu
modo de vida30. A saída da escola levou-a a aprofundar o
estudo da ilosoia (EGGERT e PACHECO, 2010, p. 200).
Integrante de família de classe média, Maria Lacerda for-
ma-se professora na Escola Normal de Barbacena, e já
em 1904 tem contato com a pedagogia, além de ter par-
ticipado da fundação da Liga contra o Analfabetismo em
1912 (EGGERT e PACHECO, 2010, p. 199 e 200). Maria
Lacerda foi autora de diversos livros, como Em torno da
Educação (1918), Renovação (1919), A mulher é dege-
nerada? (1924), Lições de Pedagogia (1925), Religião
do amor e da beleza (1926), Clero e Estado (1921), Amai
e não vos multipliqueis (1937), Han Ryan e o amor no
plural: a pobreza do amor único (1933), Serviço militar
obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! (1933),
além das muitas publicações no jornal O Combate, des-
de 1928, e das conferências em Rosário, Buenos Aires,
para a Internacional do Magistério Americano, em 1929
(EGGERT e PACHECO, 2010, p. 200), sendo suas obras
mais conhecidas na Argentina do que no Brasil, infeliz-
mente (CCSP, 2015). Muitos dos seus escritos também
foram publicados nas revistas libertárias espanholas Es-
túdios e La Revista Blanca (RAGO, 2014, p. 6). Tratou
de “temas como educação, direitos da mulher, amor livre,

30 Maria Lacerda via no cristianismo, no clero, na Igreja Romana,


na religião e no dogma, os piores inimigos da emancipação feminina, pois em-
penhados “na escravidão da mulher, para, através da sua ignorância cultivada,
escravizar e explorar a todo o gênero humano” (LEITE, 2005, p. 56).

242
combate ao fascismo e antimilitarismo”, e participou de
grupos anarquistas e sindicatos locais na Argentina e no
Uruguai (EGGERT e PACHECO, 2010, p. 200). Ademais,
Maria Lacerda dialogava e debatia de frente com correntes
médicas que queriam, a partir da ciência, da medição dos
crânios de homens e de mulheres, airmar a inferioridade
biológica dessas (LEITE, 2005, p. 90 a 94):

Discutindo com o médico português Miguel Bom-


barda, que procurava demonstrar, na trilha do ita-
liano Cesare Lombroso, que a mulher é um ser
biológico e moralmente inferior ao homem, em
seu livro A Epilepsia e as pseudo epilepsias, Ma-
ria Lacerda escreve A Mulher é uma Degenera-
da?, uma de suas obras mais importantes. Nesta,
questiona o mito da inferioridade cerebral das mu-
lheres, desautorizando o regime de verdade cons-
truído pela ciência médica da época. Já no prefá-
cio ao livro do psiquiatra argentino Julio Barcos,
intitulado Liberdade sexual das mulheres, que,
aliás, ela traduz para o português, Maria Lacer-
da questiona a identiicação elementar da mulher
com seu órgão reprodutivo e ataca a dupla moral
escravizadora do chamado “sexo frágil” (RAGO,
2014, p. 8 e 9).

Desse modo, podemos ver a amplitude das questões


tratadas por Maria Lacerda de Moura ao questionar e pro-
por uma nova ordem de pensamento para questões morais,
éticas, sociais, culturais e cientíicas, que deveriam se dar
de maneira igualitária entre mulheres e homens.
Embora encaixar Maria Lacerda em qualquer forma-
to seja uma tarefa por demais limitadora, pode-se dizer
que ela foi uma anarcofeminista (RAGO, 2014, p. 12),
tendo rompido com o feminismo sufragista/liberal para

243
pensar em práticas individuais que pudessem beneiciar de
modo mais efetivo a coletividade. Na sua crítica ao voto
feminino, Maria Lacerda questiona: “De que serve o direi-
to político para meia dúzia de mulheres, se toda multidão
continua vítima de uma organização social de privilégios
e castas em que o homem tomou todas as partes do leão?”
(USP, 2003). Inspirou-se no “ilósofo libertário francês
Han Ryner”, e na “famosa revolucionária russo-americana
Emma Goldman”, uma das pioneiras do anarcofeminismo
(RAGO, 2014, p. 6, 9 e 13), dentre outros. Para Maria
Lacerda, a mentalidade individual implica responsabilida-
de, assim que não defende um pensamento egoísta, mas
antes um pensamento solidário (LEITE, 2005, p. 106 e
108). Maria Lacerda de Moura, então, parte para o interior
de São Paulo onde vivencia suas ideias de uma sociedade
mais justa e igualitária para todas/os.

A educação da mulher para Maria Lacerda de Moura


A pedagogia é tida por Maria Lacerda como ferra-
menta de intervenção na sociedade, e, ao viver numa co-
munidade em Guararema, interior de São Paulo, de 1928
a 1937 (EGGERT e PACHECO, 2010, p. 200), ela põe em
prática o respeito à diferença e à liberdade individual anar-
quistas (RAGO, 2014, p. 11), e de suas demais crenças (a
exemplo do amor plural que, na sua visão, não se confun-
dia com promiscuidade). Ali ela se isolou da sociedade e
praticou o estoicismo da vida rústica, pregou e praticou
a não violência (USP, 2003), demonstrando a inluência
do pensamento de Tolstói (1828-1910) de não-violência,
suprema resistência, ação educativa e vida rústica/simples
sobre Maria Lacerda de Moura (CCSP, 2015) (LEITE,

244
2005, p. 184, 343 e 344).
Maria Lacerda era crítica do amor singular enquanto
mecanismo de dominação das mulheres, que eram edu-
cadas para esperar por um único e grande amor, enquan-
to aos homens desde cedo lhes era ensinada, legitimada,
autorizada e incentivada a prática do amor plural. Esta
teria como consequência a formação de mulheres dema-
siadamente submissas e com suas inteligências atroiadas,
uma vez que toda a educação da mulher girava em tor-
no da vida privada e da passagem da tutela do pai para a
tutela do marido. Essa educação da mulher mostrava-se
limitadora do desenvolvimento de suas potencialidades e
contrapunha-se à educação emancipadora do homem. Este
viajava, tinha acesso a todas às ciências e melhores forma-
ções, e podia amadurecer sentimentalmente ao vivenciar
diversos amores ao longo de sua vida. Maria Lacerda de
Moura, então, não estimulava a promiscuidade, mas an-
tes questionava a dupla moral sexual da sociedade para
homens e mulheres – idelidade feminina, libertinagem
masculina (LEITE, 2005, p. 51 e 54), o que gerava (e em
muitos casos, ainda hoje gera) ciúmes, crimes passionais e
toda ordem de desequilíbrio emocional nas relações afeti-
vas (EGGERT e PACHECO, 2010).
Maria Lacerda entende que a sociedade como se
encontrava (e, podemos dizer, como ainda se encontra)
é uma “mentira convencional, precisa ruir”. Entende que
a educação feminina e masculina dentro desse contexto
é uma fraude que deve ser atacada, “como imoral, como
corruptora da sociedade futura”, e que a mulher, “igno-
rante, contribui para perpetuar a mentira no lar, na escola,

245
como mãe, educadora, como mundana” (LEITE, 2005, p.
73 e 76). Assim, ela segue fazendo crítica ponto por ponto
do que vê de errado na educação e no sistema social da
época.
O acesso à educação, seja ela escolar ou não, era tido
por Maria Lacerda como o principal motor da diferença
entre os gêneros e da condição da mulher na sociedade
de sua época, sendo suas ideias sobre educação, especial-
mente a feminina, tidas como revolucionárias (EGGERT e
PACHECO, 2010, p. 201). Alguns pontos que podem ser
destacados sobre a educação feminina pensada por Maria
Lacerda de Moura são: a defesa do controle de natalidade
pelas mulheres por meio da maternidade consciente – “ser
mãe é missão mas não é proissão” (LEITE, 2005, p. 72);
a independência inanceira como motor da autonomia da
mulher; o amor plural; o casamento de livre escolha e a fa-
mília baseada no amor; a coeducação para homens e mu-
lheres (eles deveriam ser educados lado a lado, para serem
companheiros); o fato de a educação do homem não lhe
ensinar a ser pai, enquanto que a educação da mulher gira
em torno da maternidade como missão divina e natural,
intrínseco a toda mulher; a educação cientíica como meio
para a mulher alcançar a clarividência moral (passando a
ser capaz de reletir e se indignar com os acontecimen-
tos sociais do seu entorno); a educação da mulher voltada
para o bem-estar individual e coletivo (ou seja, fora da
ótica sexista de uma educação aprisionadora que apenas
reforça os padrões sociais e culturais existentes acerca do
papel da mulher31) (EGGERT e PACHECO, 2010, p. 201
31 Sobre a feminização do magistério, veja LOURO, Guacira Lopes.
Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópo-
lis, RJ: Vozes, 1997.

246
e 202); o acesso da mulher ao mercado de trabalho gerado
pela sociedade capitalista industrializada, que questiona a
posição dessa mulher apenas quando se trata de cargos de
poder, e que lhe dá direito ao salário, mas segue negan-
do-lhe o direito ao próprio corpo (LEITE, 2005, p. 51 e
75). Ela já antecipa a crítica hoje feita em relação à desva-
lorização das/os professoras/es e é favorável ao trabalho
proissional/manual ao lado do intelectual para todas/os
nas escolas, a im de preparar para a vida (LEITE, 2005,
p. 78 a82). Assim, Maria Lacerda entende que para se tra-
tar de modo aprofundado o tema da educação intelectual
da mulher, dever-se-ia igualmente tratar de temas como
higiene nervosa, solução econômica, direitos de igualdade
entre os sexos, o problema do amor, dos ilhos, a educação
religiosa, entre outros (LEITE, 2005, p. 61).
Em relação à coeducação, Maria Lacerda de Moura
entende que mulher e homem guardam esta condição antes
de serem mãe ou pai, assim, a educação teria dois ramos:

- Educar o pai de família para os deveres do lar.

- Educar o homem para ser útil à coletividade.

- Educar a mulher para ser esposa e mãe.

- Educar a mulher para colaborar na vida social


(LEITE, 2005, p. 60).

É nesse sentido que ela deine a educação como:

O aperfeiçoamento de todas as qualidades e facul-


dades tendentes a um im social sempre melhor
em vista do futuro; o completo desenvolvimento
da individualidade para a expansão, para a ple-

247
nitude de toda a nossa vocação (LEITE, 2005, p.
60).

Maria Lacerda entende que a educação da mulher


na sua época em verdade deseducava, e que, em virtude
dessa deseducação realizada ao longo dos tempos, a mu-
lher estaria com seu cérebro de certo modo atroiado, dei-
xando-se envolver por questões menores e tendendo mais
para a histeria do que os homens. Exemplo disso seria o
desenvolvimento de atividades minuciosas, como costura
e bordado, que terminavam por reletir na forma como as
mulheres encaravam a vida, o que lhes era repassado na
escola e dentro de casa. Entendia que a mulher era dife-
rente, mas não inferior ao homem, e que sua inferioridade
seria apenas econômico-social, de preconceito (LEITE,
2005, p. 62, 63, 81, 86 e 93).
Algo que avulta nas colocações da Maria Lacerda de
Moura é o ato de invocar as mulheres para que sejam as
protagonistas de sua própria libertação e educação, uma
vez que mesmo os homens intelectuais mostravam-se, na
prática, despreparados para pensar a educação da mulher;
isto seria demonstrado pelo fato dos intelectuais valoriza-
rem as mulheres pensantes como eles em rodas de diálogo,
mas de escolherem as mulheres enquadradas nos padrões
da sociedade machista (“mulheres melindrosas”) para se
casar (LEITE, 2005, p. 67). Maria Lacerda questiona “o
que é ser honesta?”, pois as mulheres escolhidas para ca-
sar, ditas “honestas”, seriam as que adotariam o ingimen-
to e o ardil para a conquista (LEITE, 2005, p. 68).
A deseducação das mulheres tem consequências gra-

248
ves para Maria Lacerda. Esta elabora o seguinte raciocí-
nio: a mulher não foi habituada a observar, reletir nem
meditar, mas sim a ser bela, agradar, brilhar e conquistar
um homem. Então, entrega-se a essa mulher o destino de
gerações, dentro das escolas e das maternidades. Ela ques-
tiona: “quem não foi habituada a reletir – como pode dar
o hábito da relexão?” (LEITE, 2005, p. 112 e 113). Desse
modo, a mulher possui uma missão regeneradora, e liber-
tá-la, emancipá-la do sectarismo, implica “alargar as suas
concepções acerca da vida e fazê-la ver os vastos horizon-
tes da inteligência humana, num sonho de redenção bem
maior que as pequeninas minudências da vida banal”. Esta
é a inalidade da educação da mulher buscada por Maria
Lacerda de Moura (LEITE, 2005, p. 113).
Portanto, uma educação de mulheres e homens com
igualdade de direitos e deveres possibilitaria a ambos o
desenvolvimento de suas potencialidades para o bem-estar
individual e coletivo, de modo a libertar toda a Humani-
dade, pois, para Maria Lacerda de Moura, enquanto não
houver a plena emancipação da mulher, todos terão atra-
sado o seu desenvolvimento enquanto civilização (LEITE,
2005, p. 63). E ela nos mostra quão brilhante é seu projeto
de sociedade: “Emancipar a mulher? Não! Emancipar o
gênero humano!” (Maria Lacerda de Moura apud RAGO,
2007, p. 4).

Considerações inais
Este trabalho partiu da seguinte pergunta: como se
conigura a emancipação feminina na visão de Nísia
Floresta e Maria Lacerda de Moura?

249
Após estudar a perspectiva emancipatória de educa-
ção feminina inserida no pensamento de Nísia Floresta e
analisar a contribuição do pensamento ilosóico de Maria
Lacerda de Moura na construção de uma equidade de gê-
nero, concluímos que a emancipação feminina na visão
dessas autoras rompeu com os padrões da época em que
viveram. Acreditamos que as incongruências encontradas
no pensamento de Nísia devem-se ao contexto histórico-
-social em que viveu (Nordeste extremamente machista do
século XIX), o que, por isso mesmo, demonstra a coragem
e pioneirismo desta mulher. Entendemos que o pensamen-
to avançado proposto por Maria Lacerda ainda hoje não
foi discutido ampla e seriamente, nem amadurecido e pos-
to em prática. Ambas as pensadoras são admiráveis pois,
além de serem mulheres (vistas como seres passivos, não
produtores de ciência, dependentes), o são num contexto
de América Latina de pensamento ainda colonizador, de
um Brasil pós-escravatura, de uma sociedade abertamente
machista, clerical, dominadora, subjugadora e patriarcal.
Assim, este feminismo latino-americano, com a marca
do questionamento da servidão que os homens/coronéis
aplicavam (aplicam) às mulheres, mas que não lhes servia
(serve), e do anarquismo em Maria Lacerda, resulta numa
obra que merece ser conhecida por todas/os, a im de que
possamos construir uma sociedade mais igualitária e justa.
Como uma das semelhanças entre as autoras aqui estuda-
das, pode-se airmar que ambas combateram o modelo de
educação imposto no Brasil pelo Cristianismo. Nísia Flo-
resta airmava que sua luta era por uma educação de qua-
lidade e acessível a todas as mulheres, independente de
classe e raça; essa educação para todas/os também era al-

250
mejada por Maria Lacerda. Dentre as diferenças, pode-se
pontuar o fato de que Nísia teve a oportunidade de implan-
tar a educação feminina por ela pensada no Colégio Au-
gusto, que fundou; já Maria Lacerda não teve tal condição.
A prosperidade pensada por Nísia para todas as mulheres
e o desenvolvimento das mulheres como pressuposto para
o desenvolvimento da Humanidade são questões que me-
recem nosso olhar interessado em fazer ciência a partir
de uma noção mais solidária de mundo, uma noção que é
encontrada na obra de Nísia Floresta e de Maria Lacerda
de Moura. Valorizemo-las!

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FLORESTA, Nísia. Opúsculo humanitário. Ed. Atual.


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254
A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO PEDAGÓ-
GICO FEMINISTA DE NÍSIA FLORESTA E MA-
RIA LACERDA DE MOURA NA PRÁTICA EDUCA-
TIVA DO MOVIMENTO DE MULHERES RURAIS/
DO CAMPO
Filipe Antonio Ferreira da Silva. Graduado em Pedagogia pela UFPE/CAA.
Discente do Mestrado em Educação Contemporânea na Universidade Federal
de Pernambuco/Campus Acadêmico do Agreste.

Resumo
A situação de vulnerabilidade social e econômica das mulheres brasilei-
ras tem sido fruto de inúmeros estudos promovidos no campo da edu-
cação, revelando a permanente violação dos direitos, promovidos pelo
patriarcado. Quando o recorte dos estudos se volta para as mulheres
que vivem no campo, essa realidade é ainda mais brutal, tendo em vista
as diiculdades que essas mulheres encontram no acesso à educação e
às demais políticas sociais. Nesse sentido, este trabalho tem por obje-
tivos compreender a contribuição do pensamento pedagógico de Nísia
Floresta e Maria Lacerda de Moura e analisar como as mulheres femi-
nistas rurais do campo lutam pelas suas identidades, exercendo práticas
educativas, uma luta política pela desconstrução das desigualdades de
gênero. A metodologia utilizada foi a abordagem qualitativa, pesqui-
sa exploratória com estudo de caso, utilizando-se do método do caso
alargado. Como técnica de coleta de dados foram realizadas entrevis-
tas com as mulheres do MMTR/NE, situado em Caruaru/Pernambuco.
Para análise e sistematização dos dados foi utilizada a técnica de análise
de conteúdo.
Palavras-chaves: Mulheres, Movimentos Sociais, Práticas Educativas,
Feminismo.

255
Introdução
O contexto das mulheres no meio rural/campesino
tem-se demonstrado inferior à situação das mulheres que
vivem na área urbana. Uma vez que essas mulheres so-
frem com o descaso de políticas públicas, bem como o
machismo predominante no meio em que vivem. No con-
texto especíico do Nordeste brasileiro, as desigualdades
de gênero entre mulheres e meninas são devastadoras, seja
pelo descaso do poder público, seja pela negligência dos
direitos humanos.
Mas esse modelo de sociedade que oprime e silen-
cia a garantia dos direitos das mulheres rurais/campesinas
está muito bem arquitetado, e historicamente enraizado
em nossa cultura, como nos aponta os estudos feministas:
o patriarcado (a dominação masculina) que garante voz,
vez e poder aos homens. Essa hierarquização de poder
é histórica, causando principalmente a exclusão das mu-
lheres em espaços políticos, assim como o sexo femini-
no sendo percebido como fraco e submisso. Em face dis-
so, podemos airmar que a experiência política dentro do
movimento social pode moldar o ser feminino para que o
mesmo construa uma identidade política que não dependa
apenas da formação escolar, mas também das vivências na
luta coletiva, que diante da intensa aprendizagem modi-
ica concepções sobre o posicionamento político, social,
sexual, desconstruindo os tabus de gênero na formação
social e moldando o ser feminino.
O movimento feminista surge como proposta de de-
sestabilizar os pares dicotômicos impostos pela socieda-
de (homem-mulher) e no enfrentamento das desigualda-

256
des de gênero com estratégias educativas bem deinidas e
abordagens diferenciadas. A pesquisadora Guacira Lopes
Louro situa que o Movimento Feminista é um movimento
social do século XIX, do Ocidente e ligado estritamente
à luta das mulheres para superar o patriarcado e pautar as
relações de gênero. Sendo o início do movimento divi-
do por fases, que iremos conceituar aqui como “ondas”,
como nos fala Louro:

Como uma amplitude inusitada, alastrando-se por


vários países ocidentais, (ainda que com força e
resultados desiguais), o sufragismo passou a ser
reconhecido, posteriormente, como a “primeira
onda’ do feminismo (...)

Será no desdobramento da assim denominada


“segunda onda” – aquela que se inicia no inal
da década de 1960- que o feminismo, além das
preocupações sociais e políticas, irá se voltar para
as construções propriamente teóricas (LOURO,
1997, p. 15).

Na primeira onda, conhecida como sufragismo, as


mulheres pautavam o direito do voto em eleições políticas,
pautavam também o direito de exercer proissões restritas
apenas aos homens e reivindicavam os estudos como su-
porte de uma vida digna. As mulheres que estavam à frente
do sufragismo32 eram mulheres brancas e de classe média.
32 No ano passado, 2015, as telas dos cinemas retrataram o drama
vivido pelas mulheres sufragistas no inal do século XIX e início do século
XX, na Inglaterra. O ilme teve a direção de Sarah Gavron, lançado no dia 24
de dezembro de 2015. O longa retrata como as mulheres lutaram pela digni-
dade e opressão diária que recebiam em seus núcleos familiares e no trabalho.
Analisamos que o momento em que o ilme vai para as telas de cinema, um
grande avanço acontece na luta das mulheres pelo im do machismo. Fazer
esse resgate histórico prova que nossa sociedade está abrindo os olhos para as
pautas feministas, silenciadas e negadas pela cultura áudio visual.

257
Sendo essas pautas negligenciadas em alguns momentos.
Já na segunda onda, o conceito de gênero será o grande
combustível das estudiosas acadêmicas e as questões
sociais e políticas será o grande trunfo das militantes. É
também no ano de 1968 que os novos movimentos sociais
surgem com suas pautas políticas e sociais. Negando o
modelo de sociedade patriarcal e burguesa, reivindicando
uma sociedade sem segregação e sem discriminação.
Os/as protagonistas que se rebelaram contra o sistema
foram negros e negras, gays, lésbicas e travestis, jovens e
mulheres. O cenário de contracultura se instaura e o amor
e a liberdade serão o combustível dessa nova geração de
movimentos sociais de identidade. Segundo Lage:

Foi a partir dos anos 1960, que a maioria dos paí-


ses do ocidente vivenciou importantes movimen-
tos sociais da forma como hoje conhecemos, tais
como movimento estudantil, movimento pelos di-
reitos civis, movimentos pela libertação nacional,
como a maioria dos países da África ou contra a
ditadura, como os países da América Latina, até
mesmo porque o cenário político de ditadura e lu-
tas coloniais nos países desses continente exigiam
uma resposta política por parte da sociedade civil
organizada para superar, quer seja o colonialismo,
quer seja os regimes ditatoriais (LAGE, 2013. p.
23).

As mulheres feministas começam a introduzir os es-


tudos da mulher nas várias ciências, trazendo ao debate
características universalizantes femininas, denunciando
sua invisibilidade e criando guetos para reescrever a his-
tória e “até pretensões mais ambiciosas de “subversão dos
paradigmas teóricos vigentes” (LOURO, 1997, p. 18). As

258
pesquisadoras feministas denunciavam a neutralidade da
ciência, assumindo uma subversão ao escrever e a inter-
pelar os discursos machistas. Os estudos feministas, assim
como outros campos do conhecimento possuem como ob-
jetivos, segundo Louro:

Objetividade e neutralidade, distanciamento e


isenção, que haviam se constituído, convencional-
mente, em condições indispensáveis para o fazer
acadêmico, eram problematizados, subvertidos,
transgredidos. Pesquisas passavam a lançar mão,
cada vez com mais desembaraço, de lembranças
e de histórias de vida; de fontes iconográicas, de
registros pessoais, de diários, cartas e romances
(LOURO, 1997, p. 19).

Escreviam e denunciavam as violências simbólicas


e físicas vivenciadas, e essa forma de objetividade deu
voz e vez àquelas que antes eram silenciadas. Suas vidas,
suas sexualidades, a família e seu cotidiano eram valiosos
ao olhar subvertido das estudiosas feministas, pois nesse
momento as mesmas terão que enfrentar os obstáculos da
lógica androcêntrica33, que essencializa os papéis mascu-
linos e femininos na sociedade, interpelando esses discur-
sos, criando uma objetividade analítica conhecida como o
“feminismo radical”.
O feminismo radical irá negar as explicações biologi-
zantes dos corpos feminino e masculino. O grande embate
nesse momento será em desnaturalizar o sexo e o gênero,
e problematizá-los como distintos entre si. Indo contra aos
33 Postura segundo a qual todos os estudos, análises, investigações,
narrações e propostas são enfocados a partir de uma perspectiva unicamente
masculina, e tomadas como válidas para a generalidade dos seres humanos,
tanto homens como mulheres (OLIVEIRA, 2004, p. 43).

259
pares dicotômicos (homem e mulher) que reforçam a ma-
triz heterossexual da sociedade, negando as identidades
sexuais e padronizando os corpos. Na revista UTOPIA de
número #9 MOURA faz várias críticas ao Movimento Fe-
minista que surgia na época, pois acreditava que o mesmo
se enquadrava em modelo de caridade para as mulheres, e
não para a sua emancipação.

É a razão por que não posso aceitar nem o


feminismo de votos e muito menos o feminismo
de caridades. E enquanto isso a mulher se esquece
de reivindicar o direito de ser dona de seu próprio
corpo, o direito da posse de si mesma. Sou
«indesejável», estou com os individualistas livres,
os que sonham mais alto, uma sociedade onde
haja pão para todas as bocas, onde se aproveitem
todas as energias humanas, onde se possa cantar
um hino à alegria de viver na expansão de todas
as forças interiores, num sentido mais alto –
para uma limitação cada vez mais ampla da
sociedade sobre o indivíduo. Que representa uma
«creche», um hospital ou o direito de voto ante a
vastidão dos nossos sonhos de redenção humana
pela própria humanidade? É subir mais alto o
coração e o cérebro, ver horizontes mais dilatados
-além do sectarismo religioso ou da superstição
social governamental. Isso é feminismo? Dêem
o nome que quiserem, pouco importa: o que
esse feminismo (não me agrada a expressão
tão estreita para ideal tão amplo) reivindica é o
«Direito Humano», o Direito Individual, acima de
qualquer outro direito, além dos direitos limitados
ao parlamentarismo, além dos direitos de classe
(MOURA, REVISTA UTOPIA #9).

As mulheres lésbicas e bissexuais, assim como os


gays e transgêneros irão confrontar a heteronormativida-
de, assumindo uma identidade luída, transversalizando os

260
corpos, “construindo identidades sexuais e de gênero fora
dos modelos de masculinidade e feminilidade e de rela-
ções afetivo-sexuais convencionais” (GALINKIN E IS-
MAEL, 2011, p. 6). Nesse cenário, gênero terá um caráter
social, transformando o cenário dos estudos feminista, e
as discussões terão um caráter de identidade. Pois, com as
conquistas dos movimentos sociais de identidade (grupos
étnicos, raciais, de classe e sexuais) os estudos feministas
juntamente com os estudos culturais entenderão “os sujei-
tos como tendo identidades plurais, múltiplas; identidades
que se transformam, que não são ixas ou permanentes,
que podem até mesmo ser contraditórias” (LOURO, 1997,
p. 24).

Discussão teórica
Com o protagonismo da sociedade civil fazendo
alarde por todo o ocidente, o movimento feminista ganha
mais força para pautar suas lutas e um novo campo de
pesquisa surge: os estudos da mulher. Com publicações
em jornais, revistas e livros de literatura e acadêmicos, as
mulheres pesquisadoras começam a questionar a ciência
hegemônica, retirando-as da subalternização. Como nos
fala Louro:

Algumas obras hoje clássicas- como, por exem-


plo, Le deuxième sexe, de Simone Beauvoir
(1949), The feminine mystique, de Betty Fried-
mam (1963), sexual politics, de Kate Millet
(1969) – marcam esse novo momento. Militantes
feministas participantes do mundo acadêmico vão
trazer para o interior das universidades e escolas
questões que as mobilizavam, impregnando e
“contaminando” o seu fazer intelectual – como es-

261
tudiosas, docentes, pesquisadoras – com a paixão
política (LOURO. 1997, p. 16).

Diante dessas transformações radicais, o movimen-


to feminista passa a desnaturalizar o papel feminino na
sociedade, tornando-o visível e negando os discursos que
o colocaram na esfera do privado e do lar. Porém, algu-
mas mulheres ainda estavam presas ao modelo patriarcal,
mesmo quando elas conquistavam os lugares das fábricas
e lavouras, inseridas nesta dinâmica uma dupla jornada
de trabalho, e rigidamente controladas pelos homens. No
Brasil duas mulheres começam uma revolução feminis-
tas com seus textos sobre educação para emancipação das
mulheres. Maria Lacerda de Moura e Nísia Floresta. Duas
grandes feministas expoentes da vanguarda do Feminismo
Brasileiro. Segundo Elizabeth Maria da Silva:

É imperativo airmar que a potencialidade do


pensamento pedagógico feminista de Nísia
Floresta centra-se na questão emancipatória da
mulher e na equidade de gênero, contudo, não
dispensou questões estruturais e proissionais
do sistema de ensino brasileiro. Sua proposta de
ensino revelou que a feminista não condescendia
com a proposta adotada pelo Estado, pois
acreditava que a educação era a possibilidade
de mudança da condição de submissão em que
se encontravam as mulheres. O que, atualmente,
pode justiicar o avanço de diversas mulheres no
espaço público. Hoje as mulheres são maioria no
ensino básico e superior, mas a educação ainda
continua sexista (SILVA, 2014, p. 197).

Nísia Floresta foi uma grande pioneira feminista


brasileira, consagrando sua vida em prol da emancipação

262
feminina no contexto sexista e patriarcal que eram subme-
tidas as mulheres brasileiras. Já Maria Lacerda de Moura
foi uma mulher atemporal, professora e jornalista, fez de
sua vida uma jornada em busca do empoderamento das
mulheres por meio da educação e da liberdade de seus cor-
pos. Como nos fala Leite:

A singularidade de Maria Lacerda provém da


articulação que a autora faz entre o problema da
emancipação feminina, “como ativação da eman-
cipação do indivíduo, no sistema capitalista in-
dustrial”. Maria Lacerda compreendia que as de-
sigualdades sociais existentes entre os gêneros e
a condição em que se encontravam as mulheres
resultavam da diferente educação a que tinham
acesso, tanto escolar como não escolar (LEITE,
2005, p. 17).

Podemos situar o conceito das lutas feministas do


Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordes-
te (MMTR/NE) a partir das contribuições dos estudos de
gênero no Brasil e no mundo. Esses estudos apontam que:

As lutas das mulheres por direitos iguais e pela


transformação da sociedade, porque as desigual-
dades entre os sexos estão em todos os lugares:
na família, na produção, na política, na religião,
na arte, nos saberes. E, em todos esses lugares,
as mulheres tem sofrido opressão e exploração
de gênero. Como as desigualdades entre homens
e mulheres estruturam a sociedade, as lutas femi-
nistas transpassam as lutas de classe, de raça, de
preservação ambiental, de orientação sexual etc.
(MMTR/NE.2008, p. 100).

O MMTR/NE é organizado na luta pela “melhoria

263
das condições de vida e de trabalho rural” das mulheres
que moram nesses espaços, pois suas reivindicações sur-
gem de demandas especíicas e necessidades diferencia-
das.

De fato, as distinções entre os sexos, superam a


questão do biológico e se coniguram em repre-
sentações de masculino e feminino que são carre-
gadas de simbolismos e de papéis, consolidados
e hierarquias históricas, onde o feminino sempre
esteve em lugar de subordinação. Essa perspectiva
encontra lastro em Saioti quando argumenta que
“a sociedade delimita, com bastante precisão, os
campos em que pode operar a mulher, da mesma
forma como escolhe os terrenos em que pode atuar
o homem” (SAFFIOTI. 1987, p. 08).

Dessa maneira, a naturalização das discriminações


socioculturais entre mulheres e homens construídas e di-
fundidas ao longo dos tempos pela sociedade sexista e pa-
triarcal, legitima a mulher como um ser inferior de forma
natural, assim como desencadeia as diferenças de gênero.
Como nos fala Maria Lacerda de Moura:

É preciso acordar as forças latentes da mulher,


essas energias criptopsíquicas e desenvolver
as suas qualidades de caráter para a verdadeira
virtude, consciente, virtude que se não baseará
no hábito ou nos costumes ou nas prisões a sete
chaves e sim no sentimento do pudor consciente,
racional (se é possível), na responsabilidade que
o dever impõe, que o conhecimento indica, que
a clarividência sabe fazer prevalecer. Essa é a
mulher que sonhamos, num futuro quiçá remoto
(MOURA, 2005, p. 110).

264
A luta feminista é em sua origem uma postura políti-
ca que visa o reexistir da categoria mulher na reinvindica-
ção de seus direitos, historicamente negados pela pirâmide
excludente do patriarcado. Sendo o fazer político dinâmi-
ca fundamental para o processo de empoderamento das
mulheres feministas rurais/do campo. A obra Estrada da
Sabedoria organizada pelo MMTS-NE airma que:

O MMTR-NE surgiu como sujeito político pro-


tagonizado pelas mulheres trabalhadoras rurais,
numa clara tentativa de garantir a voz as especi-
icidades das mulheres, nos espaços de decisão,
dando uma resposta consistente ao vazio de au-
tonomia político que vivenciam as mulheres do
campo (MMTR/NE. 2008, p. 105).

Esse artigo cientíico teve início na disciplina Tópi-


cos Atuais em Educação I (Pensamento Pedagógico Lati-
no-Americano), do Programa de Pós-graduação em Edu-
cação Contemporânea situado na Universidade Federal de
Pernambuco, Centro acadêmico do Agreste (UFPE/CAA).
E também pelo desejo de luta por emancipação e descons-
trução das violências de gênero, assim como a dominação
masculina entre as mulheres.
Diante dessa sociedade dicotômica, que engendra os
corpos para ter absoluto controle, este trabalho pretende
apontar respostas para o seguinte problema: como as mu-
lheres feministas rurais do campo lutam pelas suas iden-
tidades, exercendo práticas educativas, uma luta política
pela desconstrução das desigualdades de gênero?

Metodologia

265
Para este trabalho foi utilizada a abordagem qualita-
tiva (MINAYO et al, 2008) e ao situar a abordagem qua-
litativa como abordagem social que não pode ser quanti-
icado e classiicado, como é comum nas ciências exatas,
compreendemos que a realidade do campo social pesqui-
sado tem seus aprofundamentos e signiicados. Segundo
Lage:

A pesquisa qualitativa tem um viés que leva o in-


vestigador ao encontro de subjetividades que não
conseguem se esconder, como acontece no uni-
verso da pesquisa quantitativa. As subjetividades
aloram das regras e condicionamentos prévios,
no contato, no diálogo e no confronto da realida-
de. Entender estas subjetividades e delas extrair
novas compreensões requer metodologias cla-
ras, que possam admitir a diversidade de discur-
sos, sentidos e sentimentos inéditos dos sujeitos
de pesquisa em seus lugares de atuação (LAGE,
2013, p. 50).

Compreender os valores, os jogos sociais, as atitu-


des, os confrontos e as representações faz da abordagem
qualitativa um campo de experimentações reais, traçando
novas descobertas e do fazer do universo pesquisado um
campo fértil de novas descobertas e novas (re)elaborações
de conhecimentos.
Minayo (2008, p. 26 e 27) discursa sobre um conjun-
to de procedimentos que fazem parte do trabalho cientíico
ao se utilizar da abordagem qualitativa de pesquisa, que de
maneira reduzida trazemos aqui e mais uma vez justiican-
do nossa escolha por essa abordagem cientíica:

• A fase exploratória consiste na produção do pro-

266
jeto de pesquisa e de todos os procedimentos ne-
cessários para preparar a entrada no campo. É o
tempo dedicado- e que merece empenho e investi-
mento- a deinir e delimitar o objeto, a desenvol-
ve-lo teoricamente e metodologicamente;

• O trabalho de campo consiste em levar para a


prática empírica a construção teórica elaborada na
primeira etapa. Essa fase combina instrumentos de
observação, entrevistas ou outras modalidades de
comunicação e interlocução com os pesquisados,
levantamento de material documental e outros;

• Análise e tratamento do material empírico e


documental, diz respeito ao conjunto de procedi-
mentos para valorizar, compreender, interpretar os
dados empíricos, articulá-los com teoria que fun-
damentou o projeto ou com outras leituras teóricas
e interpretativas cuja necessidade foi dada pelo
trabalho de campo.

Como Minayo (2008, p. 26 e 27) e Deslauriers (2008,


p. 131) nos orientam, a abordagem qualitativa prevê uma
investigação cientíica pautada nas signiicações e subje-
tividades dos sujeitos e sua realidade social, com métodos
e técnicas variadas que se assemelham também com as
colaborações de Lage, pois segundo ela:

O caminho epistemológico para a (ré) elaboração


do conhecimento tem coerência e desdobramento
que articulam todos os passos de uma pesquisa.
Trata-se, pois, de um caminho seguro que é mar-
cado em primeiro lugar pela Problematização e do
Objetivo Geral. A partir destes, o passo seguinte
é apontar as principais dimensões do tema que
contribuam objetivamente para aprofundar as re-
lexões propostas pelo Problema, de modo a se
alcançar novas compreensões durante o exercício
epistemológico da construção do saber cientíico.
Em seguida, fazem-se os desdobramentos a par-

267
tir destas dimensões que vão estruturar a pesqui-
sa- da deinição dos objetivos especíicos até as
categorias de análise. Completada essa costura
epistemológica é possível se encaminhar para as
conclusões (LAGE, 2013, p. 52 e 53).

As abordagens qualitativas, assim como outras exis-


tentes, fazem da ciência um campo novo de experimenta-
ções, e a cada passo que é dado, seu rigor cientíico ganha
mais notoriedade dentro de outros modelos já existentes.
Embasamo-nos também a partir do método do Caso
Alargado, proposto por Boaventura de Sousa Santos, esse
método consiste em ao estudar um caso isolado, particular,
estender as conclusões nascidas desse estudo a um campo
mais amplo, atribuindo aos outros contextos suas análises.
Neste sentindo, o método do caso alargado propõe que:

Em vez de reduzir os casos às varáveis que os nor-


malizam e tornam mecanicamente semelhantes,
procura analisar, com o máximo de detalhes des-
critivo, a complexidade do caso, com vista a cap-
tar o que há nele de diferente ou único. A riqueza
do caso não está no que é generalizável, mas na
amplitude das incidências estruturais que nele se
denunciam pela multiplicidade e profundidade das
interações que constituem (SANTOS, 1983 p. 11).

Ainda de acordo com a proposta metodológica de


Gil (2008), como técnica de coleta de dados foram reali-
zadas entrevistas com as mulheres integrantes do MMTR/
NE sediado em Caruaru-Pernambuco. Para análise e sis-
tematização dos dados utilizamos a técnica de análise de
conteúdo proposta por Bardin (2008).
Este artigo nasceu na disciplina Tópicos Atuais em

268
Educação I (Pensamento Pedagógico Latino-Americano),
do Programa de Pós-graduação em Educação Contem-
porânea, na Universidade Federal de Pernambuco, Cen-
tro Acadêmico do Agreste. Como local da pesquisa, nos
concentramos no estudo do Movimento da mulher traba-
lhadora rural do Nordeste (MMTR/NE) sediado em Ca-
ruaru-PE. A pesquisa de campo foi realizada na sede do
MMTR/NE com seus eventos e momentos educativos e
na Escola Feminista onde foram realizados três encontros
na UFPE-CAA.

Resultados e discussão

Movimento Feminista rural/do campo e a identidade


multifacetada
As identidades das mulheres feministas do MMTR/
NE fazem parte de uma luta política e também epistemo-
lógica, pois os saberes populares são fundamentais na ela-
boração da Escola Feminista, onde as mulheres aprendem
sobre sua realidade, no saber-fazer das relações existentes.
Sendo essa metodologia um currículo diferenciado e com
abordagens diferentes. Como nos fala Lage:

Este esforço conjunto de aliar a luta política à luta


epistemológica, articulando estratégias de ação
com saberes cientíico e militantes tem produzi-
do avanços signiicativos na forma de atuação dos
movimentos, tanto no que diz respeito à sua ca-
pacidade de negociação com e Estado quanto no
enfrentamento de debate político com as forças
conservadoras (LAGE, 2009, p. 2).

269
Diante da marginalidade imposta pela academia aos
grupos sociais, os movimentos lutam pelas suas trajetó-
rias de vida, assumindo um caráter também educativo nas
suas relações de enfretamento às desigualdades de gênero,
educacionais e políticas. Nesse sentindo Paulo Freire diz:

Quem melhor que os oprimidos, está preparado


para compreender o terrível signiicado de uma
sociedade opressora? Quem sofre os efeitos da
opressão com mais intensidade que os oprimidos?
Quem com mais clareza que eles pode captar a ne-
cessidade da libertação? Os oprimidos não obte-
rão a liberdade por acaso, senão procurando-a em
sua práxis e reconhecendo nela que é necessário
lutar para consegui-la (FREIRE, 1979, p. 31).

É possível observar a importância que as mulheres do


MMTR/NE empenham no movimento do qual participam:

(...) tenho orgulho de ser nordestina, tenho orgu-


lho da minha cidade, de ser mulher negra. E mais
orgulho ainda de participar do MMTR/NE. Aqui
eu me iz mulher, sei meus direitos (sorrindo, por
vezes, chorando) eu até já me expresso melhor nas
reuniões. (Mulher entrevistada 007).

É através dos espaços educativos que as mulheres


aprendem a importância de lutar e redescobrem toda uma
nova possibilidade de vida. Desta maneira a mulher vai se
construindo, desvencilhando-se de identidades impostas,
para se posicionar politicamente e adquirir seu lugar no
mundo. Desenvolvendo seu protagonismo e trabalhando
novas relações de poder de acordo com as suas novas
concepções, forma-se como sujeito crítico e apto a se
posicionar perante uma nova condição social. Desse

270
modo, essas manifestações coletivas no seu espaço de
luta vão forjando indivíduos, que segundo Lage (2011) se
coniguram, a partir do exercício de sua militância e do
seu processo de formação, como sujeitos políticos. Esses
elementos que contribuem na formação política desses
indivíduos são estratégias que coniguram o movimento
social e possuem as mais diversas características, desde
ações visíveis, como marchas, greves, até pensar uma
política de educação transformadora (LAGE, 2011)

Relações de gênero no combate ao patriarcado


Tendo em vista a posição social que ocupam, as mu-
lheres estão submetidas ao poder nos mais diversos âmbi-
tos de sua vida e em níveis diversos. Os espaços sociais,
espaços de poder, estão expressamente divididos em es-
paços que pertencem aos homens (públicos, em geral do-
tados de autonomia e de poder) e espaços que pertencem
às mulheres (em geral estão no âmbito privado, restritos e
limitados).

Todos los hechos sociales y culturales - las rela-


ciones, las instituiciones, las normas, y las con-
cepciones - son espacios del poder: el trabajo y las
demás actividades vitales, la sabiduría, el conoci-
miento, la sexualidad, los afectos, las cualidades,
las cosas; los bienes, las posesiones y los terriorios
materiales y simbólicos: el cuerpo e la subjetivi-
dad, es decir, los sujetos y sus creaciones (LOS
RIOS. 2005, p. 179).

As mulheres vivem em um cativeiro patriarcal como


indivíduos e como gênero, de variadas formas, graus e ní-
veis. Os poderes hegemônicos da sociedade, que partem

271
do modelo de sujeito universal, se articulam de maneira
organizada para reproduzir a opressão contra a mulher
e simultaneamente outras opressões. Nessa direção, em
“Direitos das mulheres e injustiça dos homens”, Nísia Flo-
resta defende uma educação voltada para a libertação das
mulheres do cativeiro do patriarcado:

Os homens não podendo negar que nós somos


criaturas racionais, querem provar-nos a sua opi-
nião absurda, e os tratamentos injustos que rece-
bemos, eu espero, entretanto, que as mulheres de
bom senso se empenharão em fazer conhecer que
elas merecem um melhor tratamento e não se sub-
meterão servilmente a um orgulho tão mal funda-
do (FLORESTA, 1989, p.41).

Porém, se ele é perfeito em um outro sexo, então


deve-se supor os homens invejosos e pode dizer,
sem temeridade, que a única razão porque nos fe-
cham o caminho às ciências é temerem que nós as
levemos a maior perfeição que eles (FLORESTA,
1989. p. 47).

Los Rios (2005) relete também que o poder patriar-


cal se estrutura em torno da dependência e da diferença,
rejeitando e aprisionando tudo que não pertence ao modelo
universal do qual o patriarcado se estrutura. As opressões
de gênero e sexualidades promovidas pelo poder patriar-
cal estão expressamente vinculadas.
No âmbito público o poder patriarcal institui ações
políticas dirigidas às mulheres que reforçam a sua função
de reprodução social e cultural. Mesmo na atuação públi-
ca, as mulheres estão sendo permanentemente empurradas
para o desempenho de atividades que requerem o cuidado,
reforçando o papel social de mãe, atribuído às mulheres

272
pelo patriarcado. Nesse sentido, as áreas de saúde e educa-
ção, foram e continuam sendo as áreas proissionais mais
ocupadas pelas mulheres.

Figura 1 – Produção de vídeo do MMTR.

Leite (2005) aponta para uma construção opressora


da personalidade da mulher como sendo ignorante, infan-
til, com sensibilidade exagerada, cérebro pouco desenvol-
vido, astuciosa, mentirosa, sedutora, descontrolada emo-
cionalmente. Como nos fala Maria Lacerda de Moura e
Nísia Floresta:

Dar-lhe ideal consciente é substituir o seu amor à


frivolidade pelo amor à humanidade, desconheci-
da para ela, é arrancar-lhe o sentimentalismo pie-
gas e fútil e dar-lhe o sentimento verdadeiro da
fraternidade humana, é fazer dela criatura útil em
vez de boneca de salão ou escrava do trabalho e do
homem, é inalmente salvar da corrupção a moci-
dade (MOURA, 2005, p. 64-65).

O ensinamento da igualdade que deve reinar en-


tre homem e mulher, começa neles em relação ás
próprias irmãs em seus jogos infantis, e em todos
aqueles milhares de costumes domésticos, nos
quais transparece orgulho excessivo e aquela pre-
tensão do rapazola que tanto vos diverte, que nada
mais é, ó mulheres, senão o germe deste presun-
çoso egoísmo que vos oprime por toda a vida[...]
(FLORESTA, 1997, p. 149).

Com todas essas barreiras, o poder patriarcal icou


numa posição confortável onde é possível justiicar a au-
sência ou pequena presença das mulheres nos lugares de

273
tomada de decisão. Nos espaços de poder, em geral, as
diferenças de gênero são perceptíveis. A mulher trabalha-
dora rural tenta atuar de forma independente:

As mulheres rurais criam um porco, ou um perú,


para comer no inal do ano ou para vender e com-
prar roupas e calçados para as ilhas e ilhos. Po-
rém, é na hora de vendermos que desaparecemos e
os homens icam na frente. Eles negociam e icam,
quase sempre, com todo o dinheiro. Por isso, pare-
ce que a maioria das trabalhadoras rurais depende
dos homens. Posso dizer que nós dependemos por
não pegarmos no dinheiro. Porém, como produ-
toras, nós não dependemos em nada de ninguém
(MMTR/NE. 2008, p.87).

Esta citação aliada às falas das mulheres pesquisadas


nos ajudou a perceber como as relações de gênero estão
engendradas nos cotidianos dessas mulheres e que são re-
lações de poder percebidas em momentos bastantes espe-
cíicos:

Pois é, meu querido. Eles fazem isso quase sem-


pre. Pra mim antes isso era normal (tom de tris-
teza) hoje, (gargalhada) o que é meu, é MEU!!
(Mulher entrevistada 005).

A participação do movimento evidência que essas


práticas cotidianas são, na verdade, práticas sexistas, e
elas descobrem mais uma vez um mundo de possibilida-
des e de direitos. Dentro dessa perspectiva, entendemos
que as experiências das mulheres trabalhadoras rurais se
constituem num conjunto de conhecimentos políticos re-
sultantes dos processos de luta nos diversos domínios so-
ciais em que as mulheres transitam suas vidas cotidianas

274
e que são ensinados/repassados, dentro das famílias pelas
mães trabalharas rurais, para as novas gerações de mulhe-
res, pela vivência e protagonismo na luta por novas rela-
ções de gênero.

Formação política
O cotidiano dos movimentos sociais propicia me-
diante suas vivencias uma estrutura que é responsável pela
formação política dos indivíduos, ampliando assim nossas
visões de processos educativos, visto que para além de no-
ções formais de educação, práticas das mais variadas ca-
racterísticas constituem momentos formativos. Dentro das
estratégias de luta que os movimentos sociais organizam,
a educação se constitui como mecanismo indispensável,
pois se situa no âmbito da emancipação do sujeito, onde as
percepções críticas são aguçadas na luta por transforma-
ções de realidades. Nesta direção, a trajetória de luta das
mulheres pelo seu reconhecimento social procura romper
com múltiplas formas de preconceitos, diiculdades, e, so-
bretudo, subalternizações, o que tem sido uma luta contra
a repressão social da inferioridade. Numa outra perspecti-
va, Caldart (2001) nos fala do processo educativo presente
da experiência do movimento social:

[...] Pensarmos o movimento social também como


uma das matrizes pedagógicas fundamentais na
relexão de um processo educativo que se con-
traponha aos processos de exclusão social, e que
ajude a reconstruir a perspectiva histórica e a uto-
pia coletiva de uma sociedade com justiça social e
trabalho para todos (CALDART, 2011).

275
É através da formação política que as mulheres
participantes atingem seu ponto principal: seu
empoderamento. Sempre aliados ao discurso de suas
identidades, suas subjetivas e suas lutas locais e
globalizantes.

Figura 2 – Oicina de formação do MMTR.

Minha chegada no MMTR/NE foi através da


minha mãe, que foi uma das fundadoras do mo-
vimento. O feminismo conheci através do movi-
mento. E ele (o movimento feminista) tem muda-
do a vida de muita gente, inclusive a minha. Aqui
a gente aprende a se valorizar mais, a lutar pelo
que a gente quer. Participar de outras atividades,
sem medo de represálias, o feminismo é você fa-
zer o que tem vontade. (Mulher 008).

Se confrontada com a teoria o movimento apresenta


mais uma vez coerência e o sucesso em sua empreitada
educativa.

Os esforços do MMTR/NE se dirigem para dar


visibilidade a essa condição de múltipla exclusão,
e para promover as condições de inserção das tra-
balhadoras rurais em todos os espaços da vida em
sociedade. Assim, desde a década de 1980, o Mo-
vimento, além de desenvolver as suas atividades
locais, ainda participa de encontros de mulheres
no Brasil e no exterior (MMTR/NE. 2008, p. 106).

Desta maneira a mulher vai se construindo, desvenci-


lhando-se de identidades impostas, para se posicionar po-
liticamente e adquirir seu lugar no mundo. Combatendo o

276
patriarcado34, e criando novos arranjos sociais, as práticas
educativas feministas (LOURO, 1997) entram nos proces-
sos pedagógicos dos movimentos sociais, com o objetivo
de combater o sexismo, criando politicamente uma educa-
ção não-sexista, pautada nos Direitos Humanos. Ancora-
dos em Louro (1997) trazemos a seguir um quadro síntese
de argumentos feministas para se trabalhar uma pedagogia
libertadora de estereótipos de gênero:

Pedagogia Feminista

• Um conjunto de estratégias, procedimentos e


disposições que devem romper com as relações
hierárquicas presentes nas salas de aula tradicio-
nais (p. 113)

• Pretendem estimular a fala daquelas que tradi-


cionalmente se veem condenadas ao silêncio, por
não acreditarem que seus saberes possam ter algu-
ma importância ou sentido (p. 114)

• A situação ensino/aprendizagem se transforma


numa relação onde todos os personagens podem
alternar, constantemente, suas posições, sem que
nenhum sujeito (ou mais especiicamente, sem
que a/o professor/a) detenha, a priori, uma expe-
riência, um saber ou uma autoridade maior do que
os demais (p. 114)

• Pretendem a “conscientização”, a “libertação”,


ou a “transformação” dos sujeitos e da sociedade
(p. 115)

• Pretendem interferir na dinâmica das escolas e


universidades (transformando-a), elas se instalam
e se exercitam nestes espaços, ou seja, elas são
também, pedagogias institucionais (p. 116).

34 Organização social de gênero autônoma, convivendo, de maneira


subordinada, com as estruturas de classes socais (SAFFIOTI, 1992. p. 194).

277
Consolidar os movimentos feministas, de negros e
negras, campesinos e LGBTs traz para a sociedade a luta
política, as vidas que outrora eram negligenciadas, agora
pautam-se dentro do terreno fértil da educação.

Conclusões
Retomamos a pergunta inicial que provocou este
artigo: como as mulheres feministas rurais do campo lu-
tam pelas suas identidades, exercendo práticas educativas,
uma luta política pela desconstrução das desigualdades de
gênero? Nos propomos a responder essa pergunta situada
neste momento e no tempo em que as informações foram
coletadas observamos que as indicações são de que o pro-
cesso formativo para o empoderamento das mulheres fe-
ministas no MMTR/NE contra as desigualdades de gênero
e airmação de suas identidades rurais/do campo vão mes-
clando em verdadeiras lutas políticas e sociais.
As mulheres tomam para si novas “verdades” antes
silenciadas pelo machismo, reelaboram seu existir mulher
e se apropriam de seus direitos. Lutam incansavelmente
para se libertar das correntes que ainda incam seus pés.
Grande parte do processo de empoderamento surge do
caráter educativo dos movimentos sociais aos quais essas
mulheres fazem parte.
O feminismo contemporâneo encontra suas tendên-
cias e especiicidades no local onde está inserido e de onde
surge sua investigação social sobre a situação das vidas das
mulheres. Diante desse quadro de saberes localizados35, as
epistemologias feministas latino-americanas se encontram
35 Para uma análise mais profunda ver Donna Haraway, 1995.

278
dentro desses processos, como nos orienta Alonso e Díaz
(2012) apontando como revisar e debater as categorias de
subalternização e colonização que outrora foram coloca-
das às mulheres:

Producir colectivamente categorias que nos ayu-


den a compreender y transformar el presente; esto
implica introducirmos en a) debates al interior del
las teorias feministas y del movimento feminista
en América Latina, en torno a qiénes tienen pri-
vilégios epistémicos para anunciar problemas,
caracterizar relaciones sociales, interpretar el pre-
sente y el passado, presentear alternativas al ordem
social imperante; b) debates em torno a las teorias
descoloniales y de los movimientos sociales, cam-
pesinos, indígenas y afrodescendientes em Améri-
ca Latina y las potencialidades para la investiga-
cíon social que producem “desprendimientos” de
las concepciones cualitativas normativas, incluso
las provenientes de las teorías críticas (ALONSO
E DÍAZ, 2012, p. 77).

É dentro desse cenário atual que os feminismos


irão atuar, combatendo as colonizações do corpo, da
linguagem e dos saberes, desnaturalizando a concepção
de um feminismo universal (branco, heterossexual e de
classe média), trazendo para o debate as intersecções
e especiicidades do lugar global e local da mulher. O
feminismo latino-americano será pautado nas experiências
de vida das mulheres e suas identidades luídas e mutáveis.
Como no caso do Feminismo Negro, do Transfeminismo,
que terão semelhanças e distanciamentos dentro da
categoria mulher.
As mulheres do MMTR juntas encontram força
para enfrentar de maneira organizada as barreiras impos-

279
tas pelo poder patriarcal, atuando de forma coletiva numa
perspectiva feminista. Face a isto, o problema é respondi-
do na medida em que percorremos os objetivos almejados
e estudamos as questões postas inicialmente. As práticas
educativas apresentaram-se como elementos imprescindí-
veis e fundamentais no combate às percepções sexistas e
na construção de uma sociedade harmônica que tenha o
respeito e o princípio da alteridade como eixos norteado-
res de sua organização.

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Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Per-
nambuco, CAA, Pós-Graduação em Educação Contempo-
rânea, 2014.

282
OS MARCOS HISTÓRICOS PARA A FORMAÇÃO
DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
Vanessa Azevedo Cabral Da Silva. Licenciatura em Pedagogia (UNOPAR).
Professora do munícipio de Joaquim Nabuco-PE. vanessaazevedocabralsilva@
gmail.com.

Resumo
O presente artigo apresenta o pensamento pedagógico latino-america-
no, na perspectiva histórica da implantação do projeto da educação pú-
blica brasileira, tendo-a como objeto de estudo, com objetivo geral de:
identiicar como o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e a Lei
de Diretrizes e Bases impactaram a escola pública até os dias de hoje? E
como especíicos: I) Reconhecer como os pensadores Florestan Fernan-
des, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira contribuíram para a formação da
educação pública brasileira; II) Abranger as políticas educacionais im-
plantadas no Brasil desde os primórdios do projeto da educação pública
para todos. A discussão teórica foi abarcada pela temática educacional
dos teóricos: Gomes (2010), Oliveira (2010), Souza (2006), Saviani
(1996), Minayo (2010), Silva e Menezes (2001). A metodologia apre-
sentada deine-se como estudo bibliográico. Mostrando os avanços e
retrocessos, mas o quanto ainda precisamos debater temas recorrentes
para melhorarmos a qualidade do ensino público no Brasil.
Palavras-chaves: Educação Pública, Darcy Ribeiro, Florestan Fernan-
des, Anísio Teixeira.

Introdução
O pensamento pedagógico latino-americano é um

283
ponto chave para nós proissionais da educação com-
preendermos o cenário que encontramos em nosso coti-
diano, para isso vimos na disciplina: Tópicos Atuais em
Educação Pensamento Pedagógico Latino-Americano,
ofertada pelo programa de pós-graduação em Educação
Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco
– Campus Acadêmico do Agreste –, através de seminários
e debates, o quanto signiicante é para nossa atualidade
o estudo dos pensadores que ajudaram na construção da
educação pública da nossa nação, objeto de estudo presen-
te nesse artigo.
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, foi
um ponto importantíssimo da história da educação públi-
ca, através desse documento começou a ser desenhada a
história da escola pública para todos e todas, pensamentos
de educadores e intelectuais da área que combatiam a edu-
cação de elite, e queriam garantir, através de políticas pú-
blicas, o acesso e permanência, bem como uma estrutura
de qualidade para os brasileiros, ofertando uma educação
gratuita, inanciada pelo Estado e que emancipasse o povo.
A lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi
um marco também, para a garantia de direitos para a popu-
lação brasileira, claro, vale ressaltar que até os dias atuais
várias das temáticas discutidas, mesmo antes da ditadura,
continuam permeando a escola pública, e é necessário a
continuação da luta iniciada por nomes como Florestan
Fernandes, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, que são o
centro de nossa pesquisa, mas de outros tantos que luta-
ram pela qualidade da educação pública justa e igualitária.
Para discorrer nessa discussão trazemos como Ob-

284
jetivo Geral: identiicar como o Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova e a Lei de Diretrizes e Bases impacta-
ram a escola pública até os dias de hoje? E como especí-
icos: I) Reconhecer como os pensadores Florestan Fer-
nandes, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira contribuíram para
a formação da educação pública brasileira; II) Abranger
as políticas educacionais implantadas no Brasil desde os
primórdios do projeto da educação pública para todos.
A discussão teórica foi abarcada pela temática educa-
cional dos teóricos: Gomes (2010), Oliveira (2010), Souza
(2006), Saviani (1996), Brasil (1996), Minayo (2010), Sil-
va e Menezes (2001). A metodologia apresentada deine-
-se como estudo bibliográico, e apresenta uma pesquisa
qualitativa, que pretende demonstrar o quão importante
foram esses marcos para a educação nacional.
Mostrando os avanços e retrocessos, mas o quanto
ainda precisamos debater temas recorrentes, ao mesmo
tempo pretéritos e atuais para melhorarmos a qualidade
do ensino público no Brasil, e garantir o acesso, perma-
nência, igualdade, e todos os direitos básicos desenhados
desde a metade do século XIX, permeando o século XX,
e infelizmente ainda abarcando o século XXI. Apresenta-
mos a categoria de análise: a Defesa da Educação Pública
Para Todos e Todas na Perspectiva de Darcy Ribeiro, Flo-
restan Fernandes e Anísio Teixeira, e por im apresentando
a conclusão e referências utilizadas.

O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e a luta


pela Escola Pública

285
A qualidade da educação pública tem sido alvo de
discussões em diversos nichos da sociedade, o que antes
era apenas discutido por teóricos, educadores e interessa-
dos no fenômeno da escola pública, hoje tornou-se alvo de
economistas, políticos, empresários, consultores e ains,
muitas vezes desqualiicando o ensino ofertado nas insti-
tuições e desmerecendo os proissionais que atuam nestas.
Há muito tempo o campo da educação pública vem
sendo usado para a formação do trabalhador das indústrias
e mercado em geral, “capacitando” o ser para o trabalho
em favor do capital, nos anos de 1990 a busca por uma
economia neoliberal tornou-se centro de diversos debates
e decisões políticas, inluenciando diretamente na forma-
ção do cenário da escola pública e modelo educacional
vistos até hoje.
É nessa conjuntura que se inscrevem determinados
conceitos e medidas educacionais que airmam a busca de
qualidade na educação pública, no campo das reformas
neoliberais, o conceito de qualidade vem sempre ligado a
métodos quantitativos de avaliação, assegura a meritocracia
como aptidão para competitividade. A empresa é deinida
como modelo organizacional para a escola, onde se
podem aferir resultados quantiicáveis, medir e controlar a
educação como uma espécie de preparação para o mercado
de trabalho, e sem função alguma na formação social.
A implantação da escola pública no Brasil partiu do
princípio de instaurar uma nova ordem, assim como em
diversos países desenvolvidos ou em desenvolvimento
estava acontecendo na segunda metade do século XIX e
início do século XX, uma escola que atendesse a educação

286
em massa, já que no país vivíamos um período de transi-
ção, em que as crianças eram a grande massa que poderia
receber esse projeto, o sistema nacional buscava a partir
daí que a educação pública organizasse na época o chama-
do ensino elementar.
Os moldes da escola pública no Brasil que visavam
a educação das massas, na verdade não entendiam as mas-
sas como toda a sociedade em geral, mas sim a educação
para as classes de elite cafeicultoras ou da cana-de-açúcar,
que via na educação a chave para a evolução e redenção da
nação, inclusive tendo em vista a normatização das ações
populares que eclodiam na época entre a classe trabalha-
dora, por uma instrução pública que atendesse a todos.
Assim, implantaram o primeiro projeto modelo da escola
pública no Brasil em São Paulo.
Falamos aqui primeiro do modelo de escola urbani-
zada, já que as escolas campesinas permaneceram durante
muito tempo ainda isoladas, essa implantação deu origem
aos grupos escolares, que eram compostos de turmas se-
riadas e consistia na seleção dos alunos da elite, já que a
educação para as massas só estará presente nas reinvin-
dicações da reforma paulista, que só iriam acontecer em
1920. O grupo escolar, também icou conhecido como es-
cola graduada, por suas características:

A escola graduada fundamentava-se essencial-


mente na classiicação dos alunos pelo nível de
conhecimento em agrupamentos supostamente
homogêneos, implicando a constituição das clas-
ses. Pressupunha, também, a adoção do ensino si-
multâneo, a racionalização curricular, controle e
distribuição ordenada dos conteúdos e do tempo

287
(graduação dos programas e estabelecimento de
horários), a introdução de um sistema de avaliação,
a divisão do trabalho docente e um edifício escolar
compreendendo várias salas de aula e vários pro-
fessores. O modelo colocava em correspondência
a distribuição do espaço com os elementos da ra-
cionalização pedagógica – em cada sala de aula
uma classe referente a uma série; para cada classe,
um professor. (SOUZA, 2006, p. 114).

Assim, como até nos dias de hoje em muitas institui-


ções, esse modelo tradicional se perpetuaria, uma escola
excludente e de formação das elites, nesse modelo edu-
cacional, que buscava alunos e classe homogêneas, não
havia espaço para a grande massa popular que era com-
posta por trabalhadores da indústria, da construção civil
e zonas campesinas, e muito menos para crianças com
necessidades especiais, indígenas e negros, sendo assim
uma escola de formação apenas acadêmica e que na práti-
ca não atendia aos ideias que eram pregados fora do Brasil
de uma escola formadora da pátria e de cidadãos livres e
conscientes.

[...] Ela reportava a uma clara concepção de en-


sino; educar pressupunha um compromisso com
a formação integral da criança que ia muito além
da simples transmissão de conhecimentos úteis
dados pela instrução e implicava essencialmente a
formação do caráter mediante a aprendizagem da
disciplina social – obediência, asseio, ordem, pon-
tualidade, amor ao trabalho, honestidade, respeito
às autoridades, virtudes morais e valores cívico
patrióticos necessários à formação do espírito de
nacionalidade. (SOUZA, 2006, p. 127).

O que podemos ver é uma escola de formação “so-

288
cial” para uma classe que valoriza as aparências, preza por
um modelo e estilo de vida pautado em valores que lhe
convém, e desqualiica os trabalhos dos proissionais, que
viriam a se formar através de uma educação emancipatória
e que através do saber pudessem transformar a sociedade
em que estavam inseridos. É ainda nesse processo que a
escola primária é reinventada, dando espaço a novos mé-
todos, e repensando a escola unitária, dando espaço a no-
vos professores e professoras (que é justamente agora que
a mulher encontra-se numa proissão, que é o magistério),
e ao mesmo tempo a escola agora visa o ensino simultâneo
para dar espaço a todos esses que passam a ser os prois-
sionais da educação.
Em 1920, passa a ser reivindicado o direito ao ensi-
no público, pelas classes excluídas pelo Estado no primei-
ro momento de sua oferta, eram esses os pobres, os mise-
ráveis e os negros, a partir daí a elite passa a se preocupar
com a organização do sistema capitalista, pois o acesso a
essa educação poderia destituir a ordem pregada por eles
no modelo educacional da época, que dependia dessas
pessoas preparadas como mão de obra para o mercado de
trabalho.
Nesse contexto, surge as reivindicações por uma
Escola Nova brasileira, que tem como documento base o
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932, que
tem por objetivo primordial realizar a reconstrução social
pela reconstrução educacional, que tinha por princípio a
laicidade, gratuidade e obrigatoriedade, coeducação e a
unidade escolar. Partindo em defesa da escola pública, o
Manifesto redigido por Fernando de Azevedo, foi assina-

289
do por 26 educadores, passando a ser o documento divisor
de águas da educação nacional.

[...] atual até os dias de hoje, considerava a educa-


ção um direito e exigia que o Estado inanciasse a
escola para todos, pública, laica, obrigatória, gra-
tuita, sem segregação de gênero (isto é, fazendo a
coeducação de meninos e meninas) adotasse um
programa completo de reconstrução educacional
do Brasil, em lugar de reformas remediativas. Foi
também proposto o ensino primário único como
base para o sistema educacional, além de maior
diversiicação dos outros níveis, inclusive o ensi-
no superior. (GOMES, 2010, p.39).

Dentre os educadores que assinaram o Manifesto en-


contrava-se Anísio Teixeira na busca por seus ideais na es-
cola pública no Brasil, via assim como em diversos outros
países da América Latina, a educação pública como uma
forma emancipatória do povo, onde sua formação ajudaria
diretamente a sociedade de um país emergente a diminuir
a desigualdade social tão presente na época e até os dias
de hoje. Ofertar o ensino elementar de 4 anos para ricos e
pobres seria uma forma de igualar os níveis de formação e
assim dar oportunidades de emancipação social, cultural,
a todos e todas.

Anísio seguia o ideário liberal-democrático e pre-


gava a escola para o povo, uma modesta escola
primária de no mínimo quatro anos para ricos e
para pobres, aim de formar brasileiros e cidadãos.
Num ainda obscuro país emergente, isso equivalia
a um grito revolucionário e subversivo. (GOMES,
2010, p.35).

290
Até os dias atuais, vemos que pensamentos eman-
cipatórios através de uma educação pública de qualidade
são gritos de subversão, pois essa poderia retirar o povo da
condição de oprimido defendida também por Paulo Freire
na educação popular, e Darcy Ribeiro como humanista,
libertário e político que era. Defender a educação públi-
ca de qualidade é lutar constantemente contra um sistema
corrupto, e afrontar este através da luta pelos interesses do
público em detrimento do privado, e nessa época de im-
plantação da escola pública Darcy e Anísio estavam dire-
tamente ligados aos fortes debates a respeito da temática,
defendendo fortemente a escola pública.
Darcy foi de extrema importância para o desenvol-
vimento de políticas educacionais na época, com ajuda de
pessoas que compreendiam as necessidades na área, con-
seguiram implantar o Plano Nacional de Educação e ou-
tros projetos que fariam a escola pública avançar, o que
era muito moderno para aquele século, com pensamentos
futuros e de metas a longo prazo, era um defensor assíduo
dos projetos da esquerda:

A opção de Darcy na luta política não fora a de


permanecer neutro, “em cima do muro” mas de-
cididamente em favor das esquerdas. Impressio-
nava-o um país manchado pela escravatura, pela
máquina de devorar homens, onde o povo esta-
va longe de exercer seus direitos, inclusive o de
dispor de uma educação básica de qualidade. (RI-
BEIRO apud GOMES, 2010, p. 46).

Dentro de uma realidade otimista, os Pioneiros da


Educação Nova conquistaram muitos avanços na área,

291
tendo apoio de educadores, pensadores, políticos e uma
população que carecia da escola pública, vindo abaixo
toda a discussão e conquistas com a ditadura e o golpe
militar de 1964, um capítulo da história de dizimou muitos
direitos e avanços que foram adquiridos para a população
brasileira.
A escola pública e o projeto da educação brasileira
de qualidade para todos só voltariam ao debate assíduo
anos depois, com a volta de muitos educadores responsá-
veis pelos avanços supracitados, do exílio em que se en-
contravam por causa da perseguição militar.

A Escola Pública no Brasil


Os educadores, pioneiros no projeto da escola públi-
ca, depararam-se com diversos problemas, de diferentes
hierarquias, falta de recursos humanos e materiais, Aní-
sio Teixeira ao assumir o cargo de Inspetor de Ensino em
Salvador, por exemplo, encontrou um cenário educacional
caótico, principalmente no interior e bem divergente do
modelo que acreditava como ideal:

As poucas escolas em funcionamento estavam


concentradas em Salvador, localizadas em antigas
residências, muitas em ruínas. Era generalizado o
costume de o professor custear, com seus próprios
recursos, o aluguel da sala ou do prédio em que
instalava as “cadeiras”. O governo não oferecia
mobiliário escolar, nem o professor a adquiria.
Cabia ao aluno fornecer cadeiras e mesas improvi-
sadas com barricas, caixotes, pequenos bancos de
tábua, tripeças estreitas e mal equilibradas, cadei-
ras encouradas ou tecidas a junco. Anísio chegou a
presenciar que era comum os estudantes escreve-

292
rem no chão, estirados de bruços sobre papéis de
jornal ou, então, fazerem seus exercícios de joe-
lhos, ao redor de bancos ou à volta das cadeiras.
Faltava material didático, particularmente livros.
Excepcionalmente, era possível encontrar ainda,
no sertão baiano, o Almanaque do bom homem
Ricardo, de Benjamin Franklin, que, traduzido
para o português, serviu como manual de leitura
da escola primária no interior do país desde a se-
gunda metade do século XIX e instruiu baianos
ilustres como Afrânio Peixoto.

Dentro desse cenário, Anísio Teixeira teve sua con-


tribuição para a educação brasileira, podendo conhecer
diversas realidades e modiicar através de vários atos po-
líticos com os avanços educacionais que se seguiram até
a ditadura. É nesse panorama descrito que se encontrava
as escolas em funcionamento no país, ou piores, ou mes-
mo lugares sem qualquer suporte educacional existente, só
dali algum tempo essa realidade seria abarcada por algu-
mas cidades, e se estenderia às zonas rurais.
As escolas estavam em estado precário, diversos
educadores e estudiosos da educação acenderam os deba-
tes a respeito da escola pública, veremos novamente Dar-
cy Ribeiro, Anísio Teixeira e também Florestan Fernandes
nesse cenário, e como defensores da escola pública. Como
citado acima no texto Anísio e Darcy, apesar das diver-
gências, em comum tinha a defesa pelos objetivos que o
manifesto trouxera para a educação brasileira, Florestan
estudioso da sociologia, via como o sistema escravocra-
ta ainda imperava, mesmo no novo sistema educacional,
agora com uma nova roupagem, mas ainda assim de forma
negativa para o funcionamento da coisa pública.

293
Surge então a Campanha em Defesa da Escola Públi-
ca, surgindo de um dos grupos que lutava para organizar
o sistema e todo o processo educacional brasileiro, nesse
contexto vemos a construção da primeira Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional (LDB), que enfrentou
muitas barreiras devido aos interesses das instituições pri-
vadas. Essa campanha foi de grande impacto, pois partici-
pavam dela:

[...] líderes sindicais, antigos educadores do movi-


mento escolanovista (tais como Fernando de Aze-
vedo e Anísio Teixeira), estudantes e intelectuais
universitários- entre eles Florestan Fernandes, “a
liderança mais expressiva e combativa do movi-
mento em defesa da escola pública naquele perío-
do” (SAVIANI, 1996, P.79).

Desse processo árduo e longo, o projeto foi aprova-


do em junho de 1961, e sancionado em dezembro daquele
ano, com a LDB sob o número de 4024. Em entrevista
Florestan deiniu aquele como o “gesto de soberano des-
prezo” do presidente perante à democracia e à educação
popular, ainda teceu mais críticas ao ministro da educação
da época, Oliveira Brito, pois o projeto foi o que ele cha-
mou [...] da “transação inal”, um dia nefasto, em que os
homens incumbidos de velar pela coisa pública decidiram
pôr a República a leilão, ferindo-a diretamente no próprio
cerne vital da vida democrática – o ensino público (FER-
NANDES, 1966, p.525).
Vendo o atual cenário brasileiro, Florestan está total-
mente atual, continuamos numa batalha incessante, mes-
mo após o Manifesto, a LDB de 1996 e suas emendas,

294
para garantia da escola pública de qualidade para todos e
todas, mas a elite brasileira insiste em mecanizar o ensino,
formando a mão de obra nas classes economicamente des-
favorecidas, em detrimento ao ensino cultural das classes
média e rica do país.
Porém, sabemos que o esforço feito por Anísio, Dar-
cy, Florestan e outros, não foi em vão, conseguiram atin-
gir as classes pobres, ofertando educação, mesmo que pre-
cária, mas de qualidade em algumas poucas instituições,
conquistas em que o governo inancie a educação pública,
e que essa seja obrigatória, muitos elementos do Manifes-
to ainda precisam ser postos em prática, e discutidos nos
âmbitos mais diversos das políticas educacionais vigentes
no Brasil.
A Lei que hoje leva o nome de Darcy Ribeiro (LDB
9394/96) foi um marco educacional dos anos 90, pois esta
trouxe de volta, ou buscou trazer, a modernidade esperada
antes da ditadura pelos educadores da época, tendo a infe-
licidade de ter que discutir com pessoas que apenas bus-
cam negligenciar o sistema da educação pública, Darcy,
apesar do câncer, ainda alcançou muitos objetivos dentro
do projeto que seria a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, em relação à escola pública principal-
mente. Vemos descritos os ideais sociais tão defendidos
por Anísio, Darcy e Florestan, assim como tantos outros
educadores conscientes de seu papel social na escola, nos
artigos que seguem (BRASIL, 1996):

Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado,


inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais
de solidariedade humana, tem por inalidade o

295
pleno desenvolvimento do educando, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualiicação
para o trabalho.

Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos


seguintes princípios:

I- igualdade de condições para o acesso e perma-


nência na escola;

II- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e di-


vulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções peda-


gógicas;

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

V - coexistência de instituições públicas e priva-


das de ensino;

VI - gratuidade do ensino público em estabeleci-


mentos oiciais;

VII - valorização do proissional da educação es-


colar;

VIII - gestão democrática do ensino público, na


forma desta Lei e da legislação dos sistemas de
ensino;

IX - garantia de padrão de qualidade;

X - valorização da experiência extraescolar;

XI - vinculação entre a educação escolar, o traba-


lho e as práticas sociais.

Os ideais de sociedade que a escola pode formar a


partir da escola pública de qualidade estão longe do ideal
e do que a lei realmente garante. A realidade de descaso,
e má formação de estudantes, sem pensamento crítico e

296
social, afeta diretamente o funcionamento esperado pelos
educadores e educadoras que pensaram o projeto da edu-
cação pública brasileira.
Nesse período histórico que se seguiu, vimos diver-
sos investimentos em educação, muitas lutas travadas, al-
guns poucos avanços nas políticas educacionais e sociais,
que estão num país como o nosso, diretamente ligadas.
E muitos buscaram impedir esses avanços, porém, nos
anos que se seguiram às eleições presidenciais, elegeram
alguns presidentes e alguns poucos políticos de outros se-
guimentos, que tinham como ideal a luta pelo povo, e a
implantação de uma boa política de assistência social e
educação universalizada, que atendesse as demandas do
povo brasileiro, conseguimos novamente “tocar” o projeto
educacional esperado.
Apesar da estagnação do projeto da escola pública,
o aumento da desigualdade social, e todos os problemas
acumulados, pós-ditadura, golpes, entre outros, terem afe-
tado e hoje vemos o resultado de tais feitos na população
brasileira, por outro lado vemos os avanços dos investi-
mentos feitos nas últimas décadas em educação, o que
acena talvez para um cenário positivo caso permaneçam
assim, ou melhorem, daqui a algumas gerações.

Metodologia
A metodologia do artigo busca explanar o pensamen-
to pedagógico latino-americano de Florestan Fernandes,
Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, para atender ao objeto de
pesquisa que trata da educação pública, do ponto de vis-

297
ta da pesquisa qualitativa, que busca pautar os problemas
e esclarecimentos na área desenvolvida, visando o objeto
real e sua ação na prática.
A pesquisa qualitativa busca a essência do objeto de
estudo, aqui pautado pela escola pública, o método pre-
sente nesse artigo propõe a análise das colaborações feitas
por pensadores importantes do Brasil e da América Latina,
e suas contribuições no cenário educacional atual. Como
Minayo (2007, p. 37) deine:

... é o que se aplica ao estudo da história, das rela-


ções, das representações, das crenças, das percep-
ções e das opiniões, produtos das interpretações
que os humanos fazem a respeito de como vivem,
constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e
pensam. Embora já tenham sido usadas para estu-
dos de aglomerados de grandes dimensões (IBGE,
1976; Parga Nina et.al 1985), as abordagens qua-
litativas se conformam melhor a investigações de
grupos e segmentos delimitados e focalizados, de
histórias sociais sob a ótica dos atores, de relações
e para análises de discursos e de documentos.

Foram analisados documentos históricos, livros, ar-


tigos, referentes aos pensadores apontados na pesquisa,
dentro dessa perspectiva o procedimento técnico abordado
teve como base a pesquisa bibliográica, que:

Por revisão bibliográica, compreende-se a tentati-


va de responder algumas perguntas como: quem já
escreveu e o que já foi publicado sobre o assunto,
que aspectos já foram abordados, quais as lacunas
existentes na literatura. O processo também pode
objetivar determinar o “estado da arte”, ser uma
revisão teórica, ser uma revisão empírica ou ain-

298
da ser uma revisão histórica. (Silva & Menezes,
2001).

Portanto, a pesquisa foi delimitada por livros com


publicações em Língua Portuguesa, bem como artigos e
documentos na mesma língua, enfatizando as obras do
MEC referente ao Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova e seus colaboradores. Buscando analisar a contribui-
ção desses educadores, estudiosos, intelectuais e políticos
na educação pública que temos hoje, e os relexos que se
perpetuam diante da história educacional brasileira.

Análise: a defesa da Educação Pública para todos e


todas na perspectiva de Darcy Ribeiro, Florestan Fer-
nandes e Anísio Teixeira
O pensamento pedagógico latino-americano está in-
terligado nos pensadores Darcy, Anísio e Florestan, no que
trata o tema geral da educação pública, pois os mesmos fo-
ram de suma importância para o desenvolvimento do pro-
jeto da educação pública de qualidade no Brasil, apesar de
não termos a escola esperada por eles, e por tantos outros
estudiosos, todas as melhorias que tivemos no curso da
história educacional no Brasil passaram por esses nomes.
Anísio Teixeira era enfático na defesa da educação
pública para todos, de forma integral e que atendesse as
demandas do povo brasileiro, assim como Darcy Ribeiro,
ambos defendiam a educação do interior, seja Anísio fo-
cado na preparação dos educadores, ou Darcy preocupa-
do com as questões indígenas. É um pensamento comum
também a educação laica, e que proteja os direitos de li-

299
berdade do ser humano. Podemos ver essa preocupação já
na formação desses pensadores:

Durante o mestrado em educação na Columbia


University, a formação jesuítica de Anísio (os
jesuítas queriam-no padre da companhia) fora re-
volucionada pelos novos mestres, ainda mais por
Dewey, cuja obra teve impacto no Ocidente e até
na Rússia Soviética. Assim se tornou admirador
da escola pública e democrática dos Estados Uni-
dos e do entrelaçamento entre teorias e práticas.
Darcy por sua vez como vimos, recebera a forma-
ção de um antropólogo por uma escola que mo-
diicava também a visão brasileira erudita e tra-
dicional. Aprendera a fazer pesquisa e, também,
relacioná-la com as práticas. Ambos, cada a seu
modo, tinha profunda preocupação com o povo
brasileiro. (GOMES, 2010, p. 34).

Florestan Fernandes tinha uma particularidade com


as questões de classe impostas pelo capital, nasceu e cres-
ceu nessa luta pela escola pública para todos, pois teve
marcadas em sua vida muitas adversidades relacionadas à
falta de oportunidades, por ser de origem familiar e social
da classe pobre da década de 1930 em São Paulo. Para
Florestan Fernandes:

Uma sociedade de classes em formação não é tão


aberta quanto muitos pensam e, tão pouco, é aber-
ta em todas as direções. O chão da superfície exi-
gia uma viagem muito difícil e poucos chegavam
até lá, na época. Era normal, portanto, que eu sen-
tisse uma grande alegria de viver e uma esperança
sem limites, como se o mundo me pertencesse e,
a partir daí, tudo dependesse de mim. O orgulho
selvagem, de agressão auto defensiva, transfor-
mava-se numa força psicológica estuante, que me

300
punha em interação com o mundo dos homens –
a “sociedade” – e não fora dele. (FERNANDES
apud OLIVEIRA, 2010, p. 14).

Portanto, essa luta ainda permeia o chão desse mun-


do, principalmente de países como o Brasil, imensos e de
uma desigualdade social imensurável, é árdua a luta da-
queles que nascem pobres, e diferentes do que a “socieda-
de” impõe como padrão, até os dias atuais essa luta perma-
nece, e não sabemos por quanto tempo mais a igualdade
de condições e oportunidades demorará a ser justa para
todos os brasileiros.
Dentro da perspectiva igualitária da educação defen-
dida, e sendo consensual dos três pensadores, vale desta-
car o texto de Florestan a respeito do modelo educacional
que ele tinha como ideal para as escolas brasileiras:

O que se impõem fazer, antes de mais nada, é criar


modelos de organização das escolas que permitam
elevar de modo continuo, rápido e crescente o ren-
dimento das instituições escolares. Ou seja, esco-
las em condições de interagir com o meio social
circundante, de ajudar o homem, em cada circuns-
tância, a aspirar e obter a maior soma de poder
possível sobre as forças naturais, psicossociais e
socioculturais do ambiente, pelo menos daquelas
que já podem ser submetidas a controles delibe-
rados por meio das técnicas sociais integradas a
civilização de que compartilhamos. Escolas assim
organizadas estariam aptas para preencher várias
funções sociais construtivas, que na integração
das instituições escolares a ordem social existen-
te, quer como fatores de inovação psicossocial e
sociocultural (FERNANDES apud OLIVEIRA,
2010, p. 51).

301
Para Florestan, a escola deveria ser um ambiente co-
nectado com a sociedade na qual estava inserida, fazendo
parte do meio, assim sendo, uma instituição inclusiva nos
moldes sociais, e de desenvolvimento psicossocial e cole-
tivo, fazendo da educação ferramenta fundamental de for-
mação. Para Anísio Teixeira, da mesma forma a educação
deveria ser para todos, sem exclusão, para que a socieda-
de crescesse de forma justa e igualitária, tema defendi-
do, também, mesmo que de forma diferente, por Darcy,
quando elucidava sobre o povo brasileiro, os indígenas e
os negros. Enquanto sociólogos, humanistas, e estudiosos,
os três foram de grande importância para a construção da
escola pública brasileira.

Conclusão
Esse artigo teve como objeto de estudo a história da
educação pública, com objetivo geral de: identiicar como
o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e a Lei de
Diretrizes e Bases impactaram a escola pública até os dias
de hoje? E como especíicos: I) Reconhecer como os pen-
sadores Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Anísio Tei-
xeira contribuíram para a formação da educação pública
brasileira; II) Abranger as políticas educacionais implan-
tadas no Brasil desde os primórdios do projeto da educa-
ção pública para todos.
Diante de todo o exposto, vimos que a educação
pública precisa, ainda, de muitos avanços, ainda estamos
tentando implantar temáticas que foram discutidas no sé-
culo passado, especiicamente antes da ditadura militar.
Podemos observar no contexto atual o quanto regredimos

302
nas questões educacionais que os pensadores latino-ame-
ricanos aqui citados debatiam. É necessário trazer ao de-
bate que houve avanços, porém, pelo período de tempo, já
deveríamos ter deixado de ser projeto de escola pública, e
de fato fazer dessa ferramenta de formação e transforma-
ção social.
Respondendo ao questionamento apontado no obje-
tivo geral, sim, o Manifesto e a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, tiveram grande impacto na escola
pública dos dias atuais, garantindo sua obrigatoriedade,
valorizando os proissionais da educação, e trazendo avan-
ços educacionais organizando o ensino brasileiro. Cabe
ressaltar que precisamos ainda trazer ao debate as ques-
tões mal resolvidas, e iscalizar junto aos poderes, como a
educação deve ser encaminhada para que de fato seja útil
à sociedade em geral.

Referências
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cional. 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/Leis/L9394.htm, Acesso em 23 de outubro
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303
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2010. Coleção Educadores.

SAVIANI, Dermeval. O legado educacional do “longo


século XX” brasileiro. In: SAVIANI, Dermeval; ALMEI-
DA, J. S.; SOUZA, R. F. de; VALDEMARIN, V. T. O le-
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Autores Associados.

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SOUZA, Rosa Fátima de. Lições da escola primária. In:


SAVIANI, D.; ALMEIDA, J. S.; SOUZA, R. F. de; VAL-
DEMARIN, V. T. O legado educacional do século XX
no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2006, p.
109-151.

304
SAÚDE DO(A) PROFESSOR(A) E PARASITISMO
SOCIAL: DILEMAS E EXPERIÊNCIAS NA REDE
MUNICIPAL DE ENSINO DE JABOATÃO DOS
GUARARAPES, PERNAMBUCO (2013 – 2016)
Alexandre Evangelista da Silva. Licenciado em História (UFRPE/2007). Es-
pecialista no Ensino de História (2009) e discente na Especialização em Cultu-
ras, da Diáspora e Povos Indígenas/UPE. Professor Efetivo II-B da Prefeitura
Municipal de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, Fundamental II, Séries
Finais (6º. ao 9º. Ano). graiticinza@gmail.com.

Resumo
O objeto saúde dos professores, surge em meio ao esquecimento polí-
tico focalizando metas e índices encomendados por interesses externos
e contextos inexistentes a realidade escolar. É uma pesquisa qualitativa
de análise de conteúdos na condição de observador não-participante no
ambiente escolar, em descrever o espaço físico e como nele se compor-
tavam professores, alunos, agentes escolares (gestores, professores, téc-
nicos) do Ensino Fundamental Séries Finais (6o. ao 9o. Anos) com os
recursos metodológicos baseados em Penin em análise duas escolas de
periferia e bairro de classe média na ótica do cotidiano em construção
nas contradições da infraestrutura e análise de documentos nas matérias
jornalísticas que representam o professor do ensino público na atuali-
dade. O referencial teórico de Bomim, Fanon e Freire para entender a
gênese social da precariedade na Educação. Então, compreenderemos
as condições que resultam nas doenças físicas e mentais, doença do
professor ou Síndrome de Burnout.
Palavras-chave: Docentes. Precarização. Síndrome de Burnout.

305
Introdução
Nossa pesquisa tem por eixo temático a realidade
por trás dos muros das escolas públicas problematizando
os espaços físicos e condições de trabalho que afetam a
saúde na carreira docente, tendo como exemplo a gran-
de Rede Municipal de Ensino de Jaboatão dos Guararapes
(Pernambuco). O problemático trabalho docente, precisa
ser alertado aos jovens de classe média baixa e pobres pre-
tendentes à docência em cursos de graduação nas licencia-
turas por acreditarem que essa é uma opção menos con-
corrida de empregabilidade, não sabem dos sérios desaios
em assumir uma sala de aula, especialmente as redes mu-
nicipais aqui em estudo, estão muito além das propagan-
das de governo, de paradigmas acadêmicos ou dinâmicas
dos colégios particulares e famosos que atendem à lógica
de mercado.
Para ter um bom desempenho em qualquer proissão
são necessários incentivos, condições de trabalho, melho-
res salários e um sistema onde soluções possam ser com-
partilhadas na melhoria dos serviços prestados. É assim
para o médico, advogado, engenheiro, assistente social e
tantas funções das sociedades modernas. A diiculdade do
professor/professora no país em se apropriar do saber e
socializá-lo, enquanto crescem obrigações sociais e bu-
rocráticas (o papel dos ausentes no processo de ensino-
-aprendizagem, psicólogos, assistentes sociais, sobretudo,
ensinar modos de educação doméstica, higiene, o jeito de
comer, vestir, sentar, a disciplina, como se portar diante
dos outros, falta de participação da família na orientação
de vida). E cessam incentivos e direitos, tem remunerações

306
rebaixadas ou estagnadas, pouco estímulo, trabalho exces-
sivo além dos limites humanamente aceitáveis, acumula-
ção de turmas e número exagerado de alunos alojados em
instalações insalubres, sem pessoal de apoio, diversas for-
mas de precarizações. Da escola hostil, tradicional e longe
da interatividade para a construção do saber vista na apatia
dos estudantes que não tem esperança na aprendizagem,
um lugar estranho e repressor.
Será que é possível o indivíduo trabalhar bem com
total dedicação, envolvimento sem condições de trabalho,
sobrecargas e baixos salários, as metas ou a doença nos
proissionais da Educação? Procuramos a origem do nos-
so parasitismo, a sistêmica dominação psicológica e a re-
pressão, em seguida apresentamos a realidade de ensino e
sociedade que levam os proissionais da Educação a con-
traírem a Síndrome de Burnout.

Discussão teórica
Nosso eixo argumentativo é composto por Bomim
(1993), Fanon (2008) e Freire (1987) em pensamentos,
aproximações e diferenças. No geral, ambos se comple-
mentam e ajudam o entendimento, mesmo porquê ambos
têm inluências da linha marxista na compreensão dos
processos genéticos da Educação, conceituando a produ-
ção dos fenômenos, contradições sociais, determinações
socioeconômicas, dialéticas e correlação de forças (MI-
NAYO, 2016, p. 23-24). Esse embasamento nos ajudará
no desenho que conigura o lugar social precário do pro-
fessor doente, os alunos e comunidade, formalmente estão
presentes nos modelos de ensino, porém os mecanismos

307
funcionais são desenhados nos estéreis gabinetes de polí-
ticos.
Manoel Bomim, sergipano e iniciado em estudos
de medicina, chegou a atuar como sanitarista abandonou
a função para se dedicar a Educação e repensar o sistema
político e social vigente. Foi pioneiro na Psicologia e cria-
dor de um modelo de ensino popular. Embora marxista e
de vanguarda, tem uma obra atual por considerar a Educa-
ção e as relações históricas entre os diversos tecidos que
compunham a sociedade colonialista ainda persistente,
como um ciclo perverso e interminável. Ele via o parasi-
tismo à causa do atraso exempliicando um organismo que
tinha vida, braços, reprodução, sendo a elite, outrora, reis,
príncipes, aristocracia colonial, empresários e predadores
estrangeiros ou nacionais, das potências europeias ou lusi-
tana e brasileiras, semelhantes a vermes que se alimentam
da matéria e energia de seus hospedeiros (os colonizados
ou massa de trabalhadores), os escravos ou livres que pro-
duziam as riquezas exploradas, mas continuavam a vida
nas mazelas de forma cruel, sobrepondo os séculos e com
mudanças insuicientes. As mesmas deixaram impressões
políticas, sociais, econômicas e morais, na construção do
país, fabricação de atores forjados aos interesses domi-
nantes, a relação do pobre e subjugado e do colonizador
e opressor, construída pela guerra, Estado violento como
instrumento que protege os ricos e explora quem traba-
lhava para os considerados legítimos donos dos recursos
naturais, a aceitação inconsciente do abuso de poder pela
contínua violência social.
Bomim criticou a cultura da ignorância, sem me-

308
mória, os modelos institucionais e leis sempre importa-
dos, tornavam-se deicientes em nossa realidade, numa
Educação e Ciência profundamente teóricas e letradas, es-
quecidas a experimentação, sem pensar que era “possível
aprender fora dos livros” e a universidade improdutiva,
distante de construir saberes para o crescimento de um
país justo e soberano (1993, p. 170-171, 185). Ele alertava
o interesse perverso dos dirigentes do Estado que inves-
tiam altas quantias no exército e policiamento das cidades
e parcos recursos em manter centros de ensino e pesquisa,
bibliotecas, observatórios astronômicos, museus, quando
conclui ser:

[…] monstruoso que, num tal país, para um or-


çamento de 300 mil contos, reservem-se 73 mil
contos para a força pública, e apenas 3.200 contos
para tudo, tudo que interessa à vida intelectual –
ensino, bibliotecas, museus, escolas especiais, ob-
servatórios etc! Despendem-se 25% dos recursos
do Estado para dotar a nação dos meios de defen-
der-se de um problemático ataque estrangeiro, ou
para garanti-la no interior contra desordens […]
cuja ignorância é indiscutível, e é ao mesmo tem-
po a causa primeira dessas desordens, e de males
certos, fatais, mais graves ainda que esses males
problemáticos […] não se despende um tostão no
intuito de melhorar as sortes destas populações,
que nascem infelizes, vivem sofredoras e morrem
miseráveis (1993, p. 196-197) [Grifos nossos].

Frantz Fanon, natural da Martinica, era um reno-


mado pesquisador social, vindo também da área médi-
ca (Psiquiatria), abordava alguns aspectos da construção
histórica dos complexos psicológicos de colonizador e de
colonizado nas ilhas do Caribe, América Central, África,

309
aos imigrantes negros na França ao relacionar a repetição
das mesmas formas de dominação doentia e sentimento de
compensação satisfeito pela vontade de agredir e dominar
ao serem criados os complexos de inferioridade e de su-
perioridade ou autoridade e dependente. Parecem sistemas
de dominação psicológica, exemplo do racismo, antisse-
mitismo, o horror motivado pelo sentimento de frustração
de setores subalternos na sociedade, do pobre que detesta
outro igual a ele. Esse sentimento seria uma prática coti-
diana até se tornar inconsciente, impedido a solidariedade
entre as diversas camadas sociais, em que a maioria é obri-
gada a servir a minoria, declarada superior, que passam a
menosprezar a própria cultura e História.
Os dirigentes instrumentalizam a conduta do de-
pendente, moral, política, econômica e social. A conquista
colonial dos superiorizados desorganizou a vida dos nati-
vos obrigados a submissão, do pobre inferiorizado e sem
esperança menosprezado como um corpo para o trabalho
pesado, desejava melhorar de vida unicamente se pudesse
ser da elite e reproduzir essas estratégias de dominação,
pois os senhores diziam ao subalternizado(a) que,

[…] sou uma besta fera, que meu povo e eu somos


um esterco ambulante, repugnantemente fornece-
dor de cana macia e de algodão sedoso, que não
tenho nada a fazer no mundo […] em uma socie-
dade cuja consistência depende da manutenção
desse complexo […] Enquanto psicanalista, devo
ajudar meu cliente a conscientizar seu inconscien-
te, a não mais tentar um embranquecimento aluci-
natório, mas sim a agir no sentido de uma mudan-
ça das estruturas sociais (FANON, 2008, p. 94-95)
[Grifos nossos].

310
Paulo Freire, pernambucano, ilósofo e grande reno-
vador no campo da pesquisa e metodologia educacional
que aproximou o homem comum da escola e combateu o
intelectualismo idealizado pelas elites. A obra Pedagogia
do oprimido teve várias inluências dos pensadores acima
citados desenvolvendo categorias proximais, por tratarem
do controle psicológico de quem oprime, como Bomim e
a “consciência hospedeira” e a “consciência opressora”,
e Fanon quando cita os oprimidos como “os condenados
da terra” e a “cultura da dominação” próxima da cultura
da ignorância (1987, passim). Ele defendia o acesso ao
conhecimento como arma popular para a liberdade, a de-
belar a violência social e cultural orquestrada pelas eli-
tes e autoridades públicas, sendo o papel do professor um
mediador do saber, que o orienta na busca pela autono-
mia própria ao educando, construção crítica e subjetiva,
o instrumento para alcançar o lugar dos trabalhadores no
mundo, repudiando o pensamento bancário, clientelis-
ta. Era crítico de conservadores a exemplo do sociólogo
pernambucano Gilberto Freyre que omitiria a violência
“adocicada” pelo paternalismo aristocrático da produção
açucareira, em nada se importava com a melhoria material
dos afrodescendentes e pobres originados do escravismo,
pois defendia a ideologia elitista colonial de um progresso
econômico, permanecendo os precários padrões sociais.
Freire também analisava a busca do pesquisador
educacional pelas circunstâncias de vida, entender como
funciona o cotidiano do pobre. Por isso, trabalhava o dia-
logismo que se põe no lugar do outro (o sujeito) e de sua
consciência histórica para estudá-lo:

311
[…] Não posso investigar o pensar dos outros,
referido ao mundo se não penso. Mas, não penso
autenticamente se os outros também não pensam.
Simplesmente, não posso pensar pelos outros nem
para os outros, nem sem os outros. A investigação
do pensar do povo não pode ser feita sem o povo,
mas com ele, como sujeito de seu pensar. E se seu
pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu
pensar, na ação, que ele mesmo se superará. E a
superação não se faz no ato de consumir ideias,
mas no de produzi-las e de transformá-las na ação
e na comunicação (1987, p. 58).

Parasitar, dominar e oprimir são três categorias iden-


tiicadas a partir da síntese dos pensamentos dos autores,
respectivamente, Bomim (1993), Fanon (2008) e Freire
(1987), sobre os projetos das elites latino-americanas e
brasileiras desde a gênese do país nos tempos coloniais
para se perpetuar e circularizar o poder sem ceder espa-
ços de real representação a massa limitada ao trabalho e
reprodução. Eles se aproximam ao relacionar a dimensão
social, do humano, do pobre, da formação para a consciên-
cia, tenham formas de pensar oriundas das críticas marxis-
tas ao modelo capitalista, não se prendem a uma socializa-
ção limitada a política, embora cada um construa de forma
diferente pelo seu lugar e experiência de vida, pedagógica,
trabalham o controle psicológico como a causa das desi-
gualdades enfrentadas diariamente pelos carentes, assim
entendemos o público com quem o professor convive e
recebe toda a responsabilidade de educar no sentido geral,
pois seu corpo, inteligência e ação tem de se desdobrar e
não dão conta de tantas perversidades, opressões e misé-
rias sociais avolumadas, insolúveis pelo poder público,
que se omite e permanece distanciado.

312
As diferenças entre eles podem ser percebidas ao
compararmos a preferência à atividade teórica e intelectual
ao desenvolvimento da prática pedagógica a partir da ação
e experiência. Bomim (1993) e Fanon (2008) são mais
intelectualizados, o primeiro teve experiencias de ensino
e o segundo atuou mais no discurso político-ilosóico do
que no sentido formativo ou pedagógico. Enquanto Freire
(1987) é o mais prático, polivalente nesses sentidos dos
dois primeiros, não se limitava à Filosoia idealizada e sim
da experiência pedagógica, pois teve a iniciativa de cons-
truir uma metodologia para o ensino dos pobres e sacrii-
cados, estratégias de trabalhar por um ensino democrático,
emancipado, livre de bloqueios psicológicos, baseado no
movimento consciente e transformação do educando, se
aplicado nos ambientes de engajamento geral dessa pers-
pectiva, o proissional da Educação alcançaria o objetivo
do ensinar de forma mais completa e frutífera, com pouca
necessidade de aparatos e práticas de controle viciantes
que fazem da sala de aula palco de distanciamento e não
de aproximação, outra razão que poderia engrossar a pre-
cariedade.

Metodologia
A pesquisa deste artigo se baseia nos anos de 2013
a 2016, época de miragens tecnológicas esconderem o ex-
cesso de trabalho e corrosão nas relações humanas, quan-
do ganham força os problemas de precariedade, aliados as
pressões por alcance de índices e metas fazem com que
os professores adoeçam o que concorda com o escopo da
pesquisa social qualitativa e pesquisas de campo explo-
ratórias desenvolvidas por Penin nos anos 1970 e 1980,

313
construtora de uma metodologia no contexto socioespacial
de desigualdade, precarização e estigmatização da escola
de pobre, onde ninguém “queria” estudar, sem qualidade,
insegura e ausente de identidade com o bairro e a comuni-
dade. Penin voltou-se para a “análise crítica do cotidiano
escolar” (2011, p. 20) em resposta ao fracasso da escola
pública, como um fenômeno social, representativo, a se
perceber as rotinas, reuso de velhas estratégias sob a óti-
ca do novo, com atenção aos fatores homogeneizantes, de
fragmentação e hierarquização (2011, p. 50-51).
Utilizamos a categoria metodológica que Penin
(2011, p. 28) encontrou na cotidianidade de Lefebvre de-
nominada de “antropologia dialética”. Dela estão os con-
ceitos, de nosso principal instrumento, nos dados empíri-
cos ou concretos da “análise estrutural e formal” e, devido
as contingências de tempo insuicientes, trabalhamos me-
nos as análises qualitativas de subjetividades nas “repre-
sentações dos sujeitos coletivos envolvidos (professoras,
diretores e pais de alunos [e os próprios alunos])” [Grifos
nossos]. Ambas são formas de análise para o cotidiano es-
colar, se complementam e relacionam espaço e indivíduo
para compreensão diária, de uma obra em construção.
Não limitamos a pesquisa a ser puramente bibliográ-
ica, buscamos elementos que enriqueçam e sensibilizem
a análise das relações sociais com vista nosso objeto de
estudo da saúde docente nas práticas laborais ser pertinen-
te ao cotidiano e a realidade, na tipologia de visão ma-
crossocial ou institucional e não conseguimos, em razão
de tempo, esmiuçar as subjetividades. Realizamos um
estudo de caso com o método comparativo como obser-

314
vador não-participante em relacionar a estrutura física de
duas escolas, Escolhemos duas unidades de ensino regular
do Ensino Fundamental Séries Finais (6º. ao 9º. Ano), a
primeira de bairro pobre, a segunda numa área de classe
média, a serem comparadas na Rede Municipal de Jaboa-
tão dos Guararapes, aqui chamadas de Escola A e Escola
B. Coletamos informações com a comunidade escolar em
entrevistas informais com professores(as) contratados(as)
e efetivos(as), gestores(as), alunos(as), pais e mães dos
mesmos, seguida da análise e interpretação dos diálogos,
informação dos espaços e extrair possíveis semelhanças e
diferenças. Para ampliar o conhecimento sobre o assun-
to, também pesquisamos dados qualitativos em matérias
dos jornais de classe vinculados ao Sindicato dos Profes-
sores de Jaboatão dos Guararapes (SINPROJA), revista
de circulação nacional, a Revista Veja, e Internet no site
do Ministério da Educação discutem a visão ideológica e
dominante nas políticas educacionais brasileiras a partir
do governo que subiu ao poder em 2016 e o que dizem
entidades representativas aos direitos dos docentes nas re-
lações de precarização e massiicação no trabalho.
Procedemos a análise de material colhido diretamen-
te nas escolas quanto a interpretação de matérias elucida-
tivas sobre o assunto permeia organizar a problematização
do objeto da saúde docente em situações precárias em dois
espaços de contextos geográicos e econômicos distintos
entre si a serem percebidas diferenças e semelhanças, se
havia repetição dos mesmos males aos docentes submeti-
dos a situações semelhantes, em contextos diferentes, as
implicações que o espaço onde a prática pedagógica é rea-
lizada.

315
Análise e resultados
Na primeira parte dessa sessão, trazemos as con-
dições no espaço pesquisado e no segundo momento os
documentos sobre o tema gerador que está diicultando o
trabalho do professor. A Escola A já funcionou em dois
prédios diferentes, sem memória de fundação, talvez en-
tre algum ponto nas décadas de 1990 e de 2000 (a última
gestora não sabia precisar nenhuma data), está localizada
na periferia, num local próximo dos limites da cidade e da
zona rural, de paisagem muito arborizada, casas populares
simples, um logradouro de aparência recente, sob uma la-
deira, a maioria dos alunos mora por perto e uma minoria
precisa se deslocar em longas caminhadas. Filhos de pais
trabalhadores ou desempregados, mães solteiras, é uma co-
munidade bastante pobre. Funcionava em 2 turnos, manhã
e tarde. A Escola A é um anexo que se tornou escola, pois
é pequena, improvisada, aspecto naturalizado dos bairros
pobres a laje de primeiro andar parte sem reboco como
obra incompleta, provavelmente era residência, funciona
em um prédio alugado, mostra uma forma encontrada pelo
município para solucionar rapidamente a reclamação dos
pais que recorrem aos meios de comunicação pelo direito
de ter os ilhos estudando, porém espaços inapropriados
e improdutivos nas inalidades pedagógicas no que Penin
chama de “democratização quantitativa” (2011, p. 70).
Um cômodo maior é dividido em duas ou três salas, mais
outra que servisse como sala de direção, secretaria e para
guardar materiais escolares e de limpeza. O espaço para
as atividades pedagógicas é adaptado sob a forma de salas
de aula contidas em cubículos, de uma acústica sofrível,
várias pessoas ao mesmo tempo falando e o professor/pro-

316
fessora repetir o uso da voz para prosseguir as situações
didáticas, em meio a turmas superlotadas (média de 20
alunos), a antropometria é inversamente proporcional ao
espaço físico, gera o amontoamento e tumulto, onde os
alunos se encaixavam entre as cadeiras. No entanto, as sa-
las de turmas reduzidas na Escola B, o que alivia o profes-
sor/professora no tempo de preparar e avaliar atividades,
força tarefas em grupo, prejudica às individuais.
Nesta Escola A vimos crianças alojadas sem movi-
mento, desconsidera o crescimento corporal, tem ratos e
insetos, sem material de limpeza, em um tipo de conina-
mento temporário, lembra Bomim (1993) numa essência
de parasitismo no sentido de estar parado e alimentar toda
uma cadeia do sistema social, o que suga ainda mais a
energia do docente. Nela vimos problemas indisciplina-
res, alunos dentro das pequenas salas, sem aula, jogando
materiais das obras inacabadas (pedra e areia), numa gran-
de gritaria. Nenhum dos professores mora na comunidade
ou arredores, deslocam-se de bastante longe, em geral de
outras escolas o que acarreta atrasos e faltas no início de
turno, ainda acumulam turmas em outras escolas ou tem
vínculo com outras redes públicas. Não há o menor espa-
ço para atividade esportiva, recreação, merenda, além das
pequenas concentram a vida pedagógica. Rotatividade de
gestores que entregam o cargo por não suportar ou mu-
dança de prefeito e política municipal. Quadro de profes-
sores em aberto, poucos funcionários, nem proissionais
de orientação educacional como psicólogos e assistentes
sociais, aliás, soubemos inexistir a atuação deles na rede.
Não existe espaço esportivo, refeição ou outras vivências
de conhecimento.

317
A Escola B situada próxima à área de praia está há
poucos quilômetros do limite com outro importante mu-
nicípio. Inaugurada em maio de 2013, está num bairro de
classe média baixa, numa rua calçada, saneada e valoriza-
da pela especulação imobiliária. Em uma área populosa, é
fruto de denúncias dos pais à prefeitura pela construção de
uma escola maior e planejada para a prática pedagógica,
tem arquitetura de corredores vazados, um pátio central,
refeitório grande com capacidade para até oitenta alunos,
banheiros espaçosos, tem um círculo de areia que serve
de quadra esportiva, salas de 35 a 45 alunos, a serem im-
plantadas a biblioteca e sala de informática. Tem as salas
bem maiores, com capacidade para mais de cinquenta alu-
nos, nesses termos bem mais estruturada que a Escola A.
Funciona em três horários. Nela estudam poucos ilhos da
classe média, a maioria são trabalhadores e seus ilhos,
num contexto de estudantes pobres.
A Escola B atende a moradores vizinhos e a quem
anda quase uma hora para chegar ou voltar para casa. Os
docentes moram em outras cidades o que leva bastante
tempo de deslocamento, exceto esses juntamente com fun-
cionários administrativos e a gestora vizinhos da escola.
Alías, nesse período, houve rotatividade de três equipes
gestoras em quatro anos e muitos docentes por contratos
temporários encerrados, dos poucos efetivos alguns pedi-
ram remoção para outra unidade de ensino. Essa escola
é muito procurada pela maior oferta de vagas e estrutu-
ra, chegou a mais de 55 alunos/alunas matriculados(as)
numa turma de 8 Ano em 2015, no segundo ano de fun-
cionamento, constituía a prática de superlotação. Enquan-
to espaços não-formais não tem atividade, caso das salas

318
de informática e biblioteca usadas para depositar diversos
materiais, aulas de reforço ou o consentido pela Secretaria
de Educação a ser mais uma sala de aula, complementan-
do a oferta de vagas. Há diversos problemas observados
quanto a indisciplina e insegurança, pois era comum ver-
mos alunos fora da sala, presenciamos relatos de brigas e
até invasão no horário de aula, represália do tráico de dro-
gas a policiais fazer rondas no local, ou confrontos entre
os marginalizados, outras formas de violência diária em
ofensas e boatos contra professores/professoras.
Na Escola B os muros baixos e sem grades a tornaria
mais humanizada é um ponto de vulnerabilidade nesse ar-
ranjo social, constantes pichações enormes, vandalismos e
destruição à noite ou dias de feriado, pessoas marginaliza-
das com ajuda de alguns alunos(as) ou ex-alunos(as) de-
predavam banheiros, cozinha e as salas de aula, sem vigi-
lância, ou melhor, projetos de conscientização para tornar
essas pessoas cuidadores e não destruidores do ambiente
escolar, viciados em drogas roubavam aparelhos mídias
eletrônicas e outros prejudicando as atividades educacio-
nais. Além de não se trabalhar temas fundamentais, como
racismo, gênero e sexualidade, de tanto se praticar o ato
sexual no banheiro gravado em imagens de celular que
desmoralizavam a escola, foi preciso lacrá-los. Ao refeitó-
rio, onde havia muito tumulto no encontro de turmas dife-
rentes, jogarem comida nos colegas, foi reutilizado como
grande auditório e sala de dança ou projetos. No inverno,
os pisos acumulam muita poeira na lama ou areia trazidos
pelos calçados dos alunos (moradores de ruas sem sanea-
mento básico) causa problemas respiratórios a todos(as).
As pressões de iscais da Secretária de Educação, na época

319
se responsabilizava ao professor a culpa pelos problemas
da escola. A estrutura relativamente boa e ser prédio novo
fez as cobranças sobre os docentes serem muito maiores
que na Escola A. Percebemos várias formas de opressão
como em Freire (1987) nossas elites e grupos políticos di-
icultam o acesso aos humildes do estudo ou internalizar a
violência e complexos de inferioridade em Fanon (2008).
Tanto a Escola A (numa forte precariedade nas di-
minutas estruturas e em organização) quanto na Escola B
(de arquitetura planejada, salas espaçosas e muito carente
em pessoal de apoio pedagógico, conservação e seguran-
ça) existem problemas semelhantes à saúde do professor/
professora, o que remete não só a estrutura também a or-
ganização escolar, valorização e existência de pessoal de
apoio, como meios de combater esse mal, o professor acu-
mular funções de outros proissionais e papeis pseudofa-
miliares, pressões psicológicas por resultados nos índices
educacionais, aumentar as turmas até limites desumaniza-
dores em turnos e horários que não os deixam descansar
ou se afeiçoarem os conhecimentos das suas áreas, os atos
repetitivos e enfadonhos caso de permanecer muito tempo
em pé, o hábito de falar alto em turmas muito cheias, agi-
tadas e com alunos energéticos, brigas, rebeldias, as agres-
sões verbais e até físicas contra funcionários e docentes, o
cansaço das cordas vocais em lugares insalubres, quentes,
há presença de alérgenos (poeira, umidade, mofo) dentro
das salas, falta de acústica, ventilação, água nem sempre
disponível aos proissionais, ocasiona a perda parcial ou
total da voz e aumentam as chances de contrair danos irre-
versíveis a voz ou câncer de garganta, as dores musculares
e a tendinite ao escrever muito no quadro, assinar diários

320
de classe, correções de cadernos e trabalhos, avaliações,
em dois ou três turnos, ter atenção frequentemente que-
brada durante a aula num problema com algum aluno ou
solicitação de parentes, vendedores e outros funcionários
da escola, a ansiedade de entrar em turmas complicadas,
pressão alta, em não se atrasar de uma escola para outra,
usar vários transportes públicos superlotados ou escolas
distantes.
O professor não deve esquecer a sua missão cons-
cientizadora e persistir nas adversidades e trabalhar pela
construção do diálogo como Freire (1987), o papel trans-
formador que acarreta. A criança muito carente, contanto
que não seja semiabandonada, e se tiver um adulto como
referencial que não foi massacrado pelo parasitismo esco-
lar, também desvaloriza o estudo. Palavras e gestos obsce-
nos, a sexualidade alorada, as roupas desnudas, cultura de
massa absurdamente alienante e machista de músicas que
misturam a apologia à sexualidade, drogas e violência,
uma sinfonia aliciadora aos frutos de famílias desestrutu-
radas viver de programas assistenciais caso do Bolsa Fa-
mília do Governo Federal estimulam a frequência na esco-
la e deveriam ser mais motivadores a partir de estratégias
de acompanhamento, só existentes, infelizmente, quando
se trata de aluno especial. Eles surgem no seio da socieda-
de na questão do saber-fazer conlitante entre a escola e o
aluno, como Ferraço crítica os clichês ou estereótipos que
os próprios professores trazem exemplo dos ritmos funk e
danças sensualizadas, o choque de gerações e ideais for-
mativos entre o certo e o errado, tratadas com sombrinhas
que protegem de tudo o que não se quer, mesmo que se
anule o outro. O aluno e o professor/professora, a necessi-

321
dade de ensino e Educação falam hoje nas escolas públi-
cas línguas e regras absurdamente diferentes:

“Eu ico observando os alunos dançando funk e


agora o tal do kuduro. Os gestos são muito obs-
cenos, sei lá eu [...]”. “Mas isso não é coisa de
menina [...] Você precisa tomar jeito de menina,
ser mais meiga, delicada, obediente, falei para
uma aluna que estava dançando funk daquele
jeito, fazendo movimentos do ato sexual.” “ E o
Diego, que ica dançando kuduro o tempo todo?”
“Não sei não, você já reparou no jeito dele? Meio
afeminado. Não tem jeito de homem. A família
faz de conta que não vê. Ou será que vê e não faz
nada?” “Hoje em dia a sexualidade está alorada.
Repare na maneira como eles dançam. No modo
de se vestir. Tudo transpira sexualidade.” “É por
isso que as meninas estão icando grávidas cada
vez mais cedo. Falta de orientação sexual e sobra
sexualidade.” (FERRAÇO, 2015, p. 70-71) [Gri-
fos do autor, Grifos nossos].

A cobrança por resultados do IDEB (Índice de De-


senvolvimento da Educação Básica) para medir a atuação
dos professores não colabora na melhoria dessas condi-
ções, pois é necessário ter incentivos que tornem o trabalho
salutar e transformador. Na prática a burocracia policies-
ca, costumeiramente chamados de inspetores, ameaçam os
professores que não concluírem prazos exíguos de buro-
cracias inúteis de responder a processo administrativo ou
ser entregue ao Ministério Público. Os diários de classe
no modo geral são enviados à escola com meses de atraso,
atrapalhando ainda mais o já conturbado trabalho, numa
iscalização que nada ajuda na vida do professor, se fez a
chamada, se preencheu os procedimentos didáticos e me-
todológicos, descreveu os conteúdos ministrados em sala

322
de aula, quantas faltas o/a teve no mês, nos livros ata se há
atestados médicos (a única forma legal do professor se au-
sentar da escola) ou se assumiu a ausência (sem justiicati-
va). As notiicações são comuns e um medo para aqueles
que têm expectativa de receber algum aumento propor-
cionado pelo alcance de metas da escola, aos contratados
por ameaçar seu desligamento e em estágio probatório
as pressões psicológicas são exercidas em detrimento da
conscientização popular, transformadora e de liberdade de
trabalho.
O Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Mu-
nicípio de Jaboatão discordou das más condições de traba-
lho, mal estar contínuo no corpo que afeta a qualidade de
vida dos proissionais da Educação, tornando-se comum
as faltas corriqueiras, licenças médicas, esforço repetiti-
vo, desgaste físico e mental, casos das mortes repentinas,
enquanto a Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes recom-
pensa meritocraticamente os considerados ótimos, através
dos bônus, colocando as comunidades escolares contra
os professores que não alcançam os resultados almejados
ou exigirem seus direitos pelas greves, acusados de faltar
ação, planejamento e trabalho modelo, uma forma de per-
versão parasitária entre as perseguições burocráticas e a
raiva momentânea de pais que se pudessem os demitiriam
da função. Não lembram como reivindica o sindicato por
melhoras na rotina de:

[…] estresse, adoecimento, injustiça e precarieda-


de […] Não há garantia de valorização proissional
[…] não se abre espaço para o debate, estimula-se
a rivalidade, a concorrência […] num contexto de
oportunidades educacionais desiguais […] jogan-

323
do para a escola a tarefa de superar indicadores
apesar da jornada excessiva […] falta de material
pedagógico e de uma formação continuada espe-
cializada, ou seja, exige acura [sic] de uma doença
crônica sem apresentar o remédio (Bônus: prêmio
ou castigo, Jornal A classe, Jaboatão dos Guarara-
pes, nov/dez. 2016, p. 4) [Grifos nossos].

Discutimos as condições de trabalho docente na so-


ciedade, partindo do pensamento conservador de volta ao
governo do país, prometeram reformas neoliberais exem-
plo de solução na ótica mercadológica aos males educa-
cionais. Simonini (p. 70, 2015) analisa o devir na lógica
fordista e taylorista do mercado, meritocracia e progres-
siva limitação à autonomia da sala de aula do professor/
professora para prendê-lo a executar as políticas públicas
excludentes. Teve ponto de partida nos Estados Unidos, no
início do século XX, os grandes empresários e industriais
do quilate de Rockefeller e Carnegie donos de fortunas en-
comendavam pesquisas para construir resultados que lhes
interessasse e usar os meios de comunicação de massa que
solidiicassem o respaldo popular manipulado e obedien-
te na disseminação desse pensamento que lhes permitia
alterar os currículos escolares e políticas educacionais.
Os magnatas interferiam na forma do governo americano
pensar a Educação, o ensino de conteúdos culturais era
sinônimo de perder dinheiro e a solução era ensinar ques-
tões práticas e geradoras de lucros, se valeria a pena ou
não investir no estudo de línguas estrangeiras, construir
escolas em comunidades distantes, projetos educacionais
em detrimento do ensino superior, provavelmente o cer-
to seria de viés técnico, o que era ou não desperdício de
dinheiro público, etc, essa é a lógica dos defensores do

324
neoliberalismo na Educação. Bem diz Simonini, a propos-
ta norte-americana em redeinir o papel do ser humano,
individualista, concorrente astuto, determinado apenas a
se realizar economicamente, da mesma forma que os pró-
prios incentivadores dessa forma de pensar, viver e não
reagir contra as forças divinas do mercado era o padrão do
bem sucedido, o “conceito de “sucesso” [...] acúmulo de
bens materiais, a educação deveria se comprometer com
a capacitação dos jovens para que pudessem atingir o seu
próprio sucesso em uma sociedade cada vez mais compe-
titiva (2015, p. 70-71).
Com essa crítica ao conhecimento prático feita por
Simonini (2015), procuramos mostrar quanto os governos
se aproximam mais à lógica do mercado entendida por nós
em duas matérias da Revista Veja, atribuídas a economis-
tas, desvinculados ao contexto que ensejavam prognosti-
car, sem formação e atuação comprovadamente no ensino
básico ou superior, não visitaram escolas, nem ouviram
as comunidades, docentes, outros pesquisadores, izeram
pesquisas empíricas e quantitativas, sem veriicar à con-
juntura do local, apresentaram evidências incompletas, su-
bestimando capacidades e, sendo parciais, ao culpar um só
grupo responsável pelos maus indicadores de ensino, uma
suposição que aponta para o milagre. Na primeira matéria
Castro (27 jul. 2016) fez críticas aos professores usando as
médias de faltas por licenças médicas acentuadas, o tempo
dito como curto para a aposentadoria de 25 anos de tra-
balho se comparado a outras categorias de trabalhadores
assalariados. Os com bons resultados receberiam boniica-
ções, os considerados sucessivamente ruins seriam demi-
tidos e a grande maioria não mereceria salários melhores,

325
não relaciona os dilemas no campo educacional e saúde,
como se esse fosse um problema do professor e não social.
Em outra reportagem, Gustavo Ioschpe idealizou um
sistema de ensino para alunos individualistas, despolitiza-
dos e inconscientes, onde o professor era um administra-
dor de aulas, controlador atrás de resultados inspirado nos
chefes das linhas de produção das fábricas, caso contrário
não seria um bom tutor e todos deveriam policiá-lo. O bom
proissional seria o tradicional, tecnicista e meritocrata, o
que manteria o domínio de turma. Se o índice educacional
for fraco, os proissionais de ensino seriam os culpados.
Falou-se apenas que o professor faz mal o trabalho, mas
não se pensa se o trabalho faz mal ao professor, por isso o
ensino perde signiicado, pois nem se ensina ou se aprende
bem, apresenta dados empíricos onde a falácia ocupa o
lugar da realidade, a parcialização constrói a verdade:

Não há, na literatura empírica nacional e interna-


cional, provas de que salários mais altos inluen-
ciam a melhora na qualidade de ensino. Uma prova
disso é que os sucessivos aumentos no piso sala-
rial dos docentes brasileiros até hoje não tiveram
relexos nos índices educacionais e também não
solucionaram os problemas das greves, que con-
tinuam a acontecer todos os anos […] salas [de
aula] com menos de 20 alunos, a turma apren-
de o mesmo que em uma sala mais cheia. O úni-
co fator que faz a diferença real é o professor
e sua capacidade de gerir uma sala de aula e
transmitir conhecimentos para um grupo [ao]
cérebro de um bom professor (IOSCHPE apud
BIBIANO, 2014) [Grifos nossos].

Procuramos periódicos do Ministério da Educação

326
para entender esse mal, popularmente chamado de doença
do professor ou diagnosticado clinicamente como Síndro-
me de Burnout. A causa da enfermidade está associada às
frequentes e altas doses de agentes estressores, caso das
longas jornadas de trabalho excessivo (vários turnos e es-
colas), convivência com alunos problemáticos, hiperativos
ou com histórico de violência que desencadeiam em sala
de aula, na carência de condições, materiais de trabalho,
de livros, exaure o professor, força o raciocínio e atenção
constantemente, a escrever no quadro repetidas vezes, na
insalubridade de espaços mal climatizados e empoeirados,
com baixa circulação de ar, falar continuamente alto onde
não há acústica, tudo o que possa resumir uma vida de
trabalho que supera os limites do corpo, além dos aumen-
tos de serviço considerados obrigatório, como atividades
burocráticas desnecessárias, sem incentivos para produ-
zir e com salários baixos, sem esperança, humilhados e
explorados, até a pessoa icar completamente esgotada. A
palavra de origem inglesa Burnout signiica queima até o
im (Born) e sair (out). Os sintomas são descontrole emo-
cional e do organismo, permanente sentimento de fraque-
za, alteração da pressão arterial, a perda da capacidade de
falar, de ter sentimento, ao desprezo pelo próprio corpo
e desfeita a higiene pessoal, sentir-se vencido, depressão,
casos de mortes repentinas durante a carreira ou logo após
a aposentadoria. Um quadro que afetava 1 em cada 10 pro-
fessores no ano de 2008, em:

Exaustão emocional, baixa realização proissional,


sensação de perda de energia, de fracasso prois-
sional e de esgotamento. […] Burnout é um estado
de sofrimento que acomete o trabalhador quando

327
este sente que já não consegue fazer frente aos es-
tressores presentes no seu cotidiano de trabalho.
Diferentemente do estresse, que se caracteriza
pela luta do organismo no sentido de recobrar o
equilíbrio físico e mental, a síndrome de Burnout
compreende a desistência dessa luta. Por isso [sic]
se diz que Burnout é a síndrome da desistência
simbólica, pois embora não se ausente isicamente
do seu trabalho, o proissional não consegue se en-
volver emocionalmente com o que faz. […] sen-
timento de injustiça, de não reconhecimento […]
(SOUZA, 2008, p. 4-5) [Grifos nossos].

O resultado da Síndrome de Burnout são os pro-


fessores que trabalham perigosamente cansados e estres-
sados, até serem licenciados por esgotamento, depois
seguem na rede e podem surgir novamente os sintomas,
pois esses agentes estressores não são abrandados, podem
diminuir em algumas escolas mais organizadas, apoio de
gestão escolar solidária aos colegas na ativa, alunos e co-
munidade escolar mais pacíica e resolvida nos problemas
sociais. Pelos relatos de sindicalistas e alguns professores
envolvidos em atos de reivindicação as escolas integrais
simbolizam lugares de elevados níveis de adoecimento
da categoria, acelera-se velozmente o problema de saúde,
com uma rotina de trabalho absurdamente maior e a re-
pressão ao professor doente é grande, muitos em vez de se
tratarem, não vão ao médico, para não faltar aula e escon-
dem algum sintoma com medo de perder o salário 100%
maior. Em outras situações mais extremas, o fruto desse
esgotamento é uma incapacidade parcial ou permanente
quando o professor, após uma licença, caso se veriique a
persistência do problema, é retirado de sala de aula para
funções administrativas, de secretaria da escola, então, se-

328
ria readaptado.
O preconceito diiculta o tratamento da doença,
primeiro os professores sequer tenham tempo para se
cuidar, sejam maltratados pelos próprios colegas que os
consideram desocupados e a atitude institucional na Rede
Municipal de Jaboatão dos Guararapes não tem um pro-
grama especíico para tratar a doença. No lugar de ajudar
os doentes, os persegue e são taxados como preguiçosos
ou de um estresse momentâneo, ameaçados de terem os
salários cortados ou são utilizados em alguma função es-
quecida no serviço público. A Síndrome de Burnout não se
manifesta em termos físicos que seria possível perceber,
porém, a pessoa sofre de um mal interno e invisível adqui-
rido em exercício social e instrumental de trabalho pelo
esgotamento, perda da capacidade de serviço e mesmo de
conviver com os outros.
Em algumas redes de ensino municipais e estaduais
do centro-sul e sudeste do país, existe a terapêutica da
doença para que os professores reencontrem a concentra-
ção, paciência, interação, criatividade, estímulo, em ati-
vidades físicas e culturais, como exercícios fonoaudioló-
gicos contra a disfonia (perda de capacidade de falar por
esforço excessivo, para não evoluir em calos vocais e tu-
mores), ludicidade encontrada na hidroginástica, ginástica
laboral, dança, música, relaxamento corporal, produção de
arte visual, pintura, desenhos. Os fatores são sistêmicos
e inevitáveis, quanto mais socializado o indivíduo estiver
mais rápido será seu retorno ao meio social e trabalho,
sem icar refém de remédios ou se afasta permanentemen-
te.

329
Observamos a Síndrome de Burnout como ação do
trabalho massiicado e precário correlacionados aos fato-
res de homogeneidade, fragmentação e hierarquização. A
homogeneidade de uma rede de ensino onde as práticas
pedagógicas são semelhantes em estratégia, lugar unifor-
me e pré-determinado, forma tradicional de ensinar, frag-
mentação das práticas e descontinuidades quando tudo é
temporário, a rotina é quebrada, mesmo as memórias de
atividades e gestões são interrompidas e na questão mi-
crossocial da sala de aula são relações disruptivas ou im-
pedidas por problemas infraestruturais e de organização
espacial e hierarquização quando embora os professores
possam reagir, o lugar do cansaço e desrespeito é gran-
de, os poderes foram retirados dos docentes e precisam
articular outras maneiras de ação que nem os prejudique
institucionalmente ao mesmo tempo que consigam tratar
melhorar o relacionamento com os alunos/alunas. Em to-
dos esses fatores os proissionais foram desfavorecidos, a
quem se submete por necessidade de sobrevivência a en-
carar essas diiculdades, trabalhar em ambientes tão con-
turbados e cheios de contradição entre os discursos e a
prática possível, atuam numa correlação de forças onde
esperar é o mesmo que não fazer nada. Deve-se construir
alternativas e rotinas de convivências para amenizar os
conlitos, uma relação de aproximação permanente a di-
minuir bloqueios e estabelecer parcerias harmônicas entre
todos os membros da comunidade escolar e sociedade en-
volvente.

Considerações inais
Pelo que abordamos, a Educação pública está doen-

330
te pelos males sociais, econômicos, políticos, burocráti-
cos e repetitivamente psicológicos, percebendo professo-
res cada vez mais acometidos, por conta do acúmulo de
funções, a instituição que aumenta a sobrecarga diária e
ações repressoras, as várias escolas, o trabalho exaustivo,
baixos salários, a violência, indisciplina e desmotivação
dos alunos com a escola, a profunda desvalorização e falta
de incentivos e de condições para exercer a proissão. A
culpabilização do professor pelos fracassos educacionais
no ensino básico e fragilização instituída, numa atividade
insalubre e desgastante. É um problema de saúde social e
funcional adquirida no trabalho, a Síndrome de Burnout.
Já que as políticas públicas não existem para esses casos,
a própria escola deve procurar mecanismos alternativos ao
fracassado modelo disciplinar, para que o professor/pro-
fessora faça a mediação de saberes, também das práticas
políticas dinâmicas de se relacionar com o alunado e as
pessoas ao redor.
Décadas após Bomim, Fanon e Freire criticarem a
manipulação alienante que imperava nos países coloniza-
dos latino-americanos foi projetada a reproduzir o sistema
psicológico enraizado e fez com que o trabalho de cons-
trução do conhecimento aos persistentes no magistério na
rede básica desestimulasse os novos proissionais de ensi-
no, afasta muitos dos que estão na proissão e fazem heróis
a quem alcançar a aposentadoria por tempo de serviço,
cumprir a missão de compartilhar o saber com os caren-
tes, ensinar-lhes outros caminhos, nessa tarefa brilhante,
mas ofuscada por tantos meios de perversidade parasitá-
ria, complexos de inferiorização e demagogia opressora.

331
Referências
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ponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/conteu-
doJornal.html?idConteudo=38> Acesso em: 11 de nov., às
21:00 horas.

333
A EDUCAÇÃO POPULAR E AS CONTRIBUIÇÕES
DE PAULO FREIRE E ORLANDO FALS BORDA
PARA O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DA AMÉ-
RICA LATINA
Izaquiel Arruda Siqueira36

Resumo
Este trabalho objetiva reletir sobre a educação popular, assim como
as contribuições teóricas no pensamento social e pedagógico de Paulo
Freire e Orlando Fals Borda, partindo do seguinte problema de inves-
tigação: quais as contribuições destes autores para a constituição da
educação popular como expressão de um pedagogia latino-americana?
A pesquisa realizada é classiicada como bibliográica. Isto porque visi-
tamos, revisamos e buscamos nos aprofundar na literatura concernente
com o objeto a ser pesquisado. Através de uma leitura analítica no dete-
mos sobre algumas obras de Paulo Freire e Orlando Fals Borda e Danilo
R. Streck, dentre outras fontes secundárias. Os resultados do estudo
convergiram para a conirmação da inquietação primeira a respeito da
aproximação do pensamento dos teóricos com a educação popular e
suas contribuições para uma práxis dialógica, intercultural, conscienti-
zadora e transgressora da ordem vigente.
Palavras-chaves: Educação Popular, América Latina, Paulo Freire, Or-
lando Fals Borda.

36 Graduado em Filosoia (FAFICA); Especialista em Filosoia da


Educação (UEPB/CEDUC/PPGFILE); Mestrando em Educação (UFPE/CE/
PPGE); Tutor presencial nas Licenciaturas de Pedagogia e História da UNO-
PAR e professor de Filosoia da rede privada de ensino. E-mail: izarsiq@
gmail.com.

334
Introdução

É pensando criticamente a prática de hoje ou de


ontem que se pode melhorar a próxima prática.
O próprio discurso teórico, necessário a relexão
crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase
se confunda com a prática.

Paulo Freire

A educação, desde as civilizações antigas, sempre


foi objeto de atenção por parte dos sujeitos. Podemos per-
ceber isso observando a história da Grécia Antiga, onde já
encontramos, nos primeiros ilósofos, um projeto de for-
mação humana, denominado de paideia, como também,
nas civilizações mais próximas a nós, pelo menos espa-
cialmente, como por exemplo: civilizações maias, incas,
indígenas, etc. Assim, formar o ser humano se coloca,
também, como uma ação capaz de modiicar e transfor-
mar o lugar deste mesmo humano, pois, na medida em que
somos educados, educamos. Pensar a educação é tarefa ur-
gente não só para os/as educadores/as, mas, para todos/as
aqueles/as que fazem parte da sociedade, já que, ao pensar
a educação, pensamos, também, em um projeto de mundo
que queremos construir.
Contudo, pensar a educação, além de estar na ordem
da urgência, também se coloca como uma prerrogativa ca-
paz de nos dar autonomia em discuti-la a partir do nosso
lócus de enunciação. Pois, o que aconteceu e ainda acon-
tece – talvez, com maior intensidade – foi o fato de nos
ser tirada a autoridade para enxergarmos as condições de
ditarmos o nosso próprio modo de agir pedagogicamente.
E falamos isso enquanto sujeitos latino-americanos. O que

335
quer dizer que, desde as invasões dos povos europeus ao
nosso continente, nos foi negada a capacidade criativa de
continuar educando o nosso povo e, em contrapartida, re-
cebemos uma educação que não era nossa. E o pior disso
foi o modo como esta educação foi imposta: a partir da
negação do ser, do saber, do poder, dentre outros silencia-
mentos.
Assim sendo, durante a história desta colonização
europeia, surgiram várias formas de resistências: políti-
ca, religiosa, pedagógica, etc. Esta última, podemos dizer,
se expressa, sobretudo, na educação popular que, ligeira-
mente, descrevemos como uma tentativa pedagógica de
solucionar dilemas entre a cultura elitizada e a consciência
pobre, entre a autenticidade cultural e inautenticidade da
consciência dominada (BRAYNER, 2013), rompendo e,
ao mesmo tempo, renovando paradigmas a partir de uma
prática social e política.
Essa educação se tornou possível graças a educado-
res/as que foram capazes de pensar a ação política e so-
cial como um caminho de libertação da dominação do/a
outro/a enquanto sujeito. Pensadores como Paulo Freire,
Orlando Fals Borda, Luiz António Bigott, dentre tantos/as
outros/as, reletiram sobre uma prática pedagógica capaz
de emancipar aqueles/as que foram silenciados/as e com
isso, izeram de sua relexão, não só uma retórica capaz
de incitar a rebeldia frente a um sistema excludente, mas,
foram à luta e efetivaram uma autêntica mudança social.
Deste modo, queremos neste artigo, primeiramente,
estabelecer um diálogo sobre a ideia de educação popular
e, consequentemente, a contribuição destes dois educado-

336
res citados acima. Assim, após pensar a educação popular,
discorreremos sobre a vida de Paulo Freire e suas contri-
buições enquanto educador brasileiro, depois, trataremos
de pensar a vida e os feitos de Orlando Fals Borda, soció-
logo colombiano. Com isso, poderemos desenvolver uma
visão sobre a inluência desses pensadores no tempo e no
espaço em que viveram, e, sobretudo, os caminhos que
abriram para uma pedagogia autenticamente latino-ameri-
cana. A pesquisa realizada pode ser classiicada como bi-
bliográica. Isto porque visitamos, revisamos e buscamos
nos aprofundar na literatura concernente com o objeto a
ser pesquisado, através de uma leitura analítica. Assim,
por meio das fontes construímos, sistematicamente, apon-
tamentos e ichas, comentários, citações, resumos e obser-
vações pessoais úteis para o desenvolvimento da pesquisa.
Portanto, para reletirmos sobre o que é a educação
popular, foram utilizadas as obras: Educação Popular: lu-
gar de construção social coletiva (2013) e Fontes da pe-
dagogia latino-americana: uma antologia (2010), ambas
organizadas por Danilo Streck. Em seguida, para conhe-
cermos o pensamento de Paulo Freire e sua vida, usamos
duas obras do próprio Freire: Educação como prática da
liberdade (1970) e Pedagogia da Autonomia (2013), e a
obra de Moacir Gadotti: Paulo Freire: uma bibliograia
(1996). Por conseguinte, para reletirmos sobre a vida e
obra de Orlando Fals Borda, estudamos sua obra Investi-
gación Acción Participativa: aportes y desaios (1998) e a
obra de doutoramento de Mota Neto: Educação Popular e
Pensamento Decolonial Latino-Americano em Paulo Frei-
re e Orlando Fals Borda (2015). Além destas referências
primárias, outras fontes secundárias foram usadas.

337
Educação Popular: uma relexão

Potenciar o caráter emancipador da educação


popular a partir das práticas pedagógicas não
consiste em divulgar conteúdos críticos, mas em
incorporar estratégias e critérios para a forma-
ção de pensamentos e subjetividades críticas e
emancipadoras.

Alfonso Torres Carrillo

Sabemos que a discussão em torno da educação po-


pular não é nova. Diversos/as autores/as reletiram sobre
esse modo de fazer educação e as consequências dessa
prática pedagógica para a construção de um modelo de so-
ciedade. Ao longo da história da América Latina surgiram
vários modelos de educação popular e, inclusive, antago-
nismos referentes a eles. Muitos desses modos de ver a
educação popular antecederam os educadores Paulo Freire
e Fals Borda. Segundo Mota Neto (2015), é a educação
popular libertadora o movimento do qual eles fazem parte.
Porém, mesmo sabendo disso, falaremos de uma ideia ge-
ral de educação popular, partindo da história da educação
ocidental, que pode nos dar condições de ver o fenômeno
de forma mais alargada e não isolada na América Latina.
No mundo grego antigo a formação educacional dos
cidadãos foi reletida por parte dos ilósofos. Sócrates, por
exemplo, conduzia os jovens a um processo denominado
maiêutica. Platão, em A República (1999), além de esbo-
çar uma teoria política, pensou, também, o processo peda-
gógico grego (SIQUEIRA, 2016). Era preciso, portanto,
educar aqueles homens para a pólis, para a convivência
comum, para o debate. Sem se precipitar na ordem defen-

338
siva, mas, reconhecendo o legado pedagógico ocidental,
podemos airmar que já havia uma preocupação inicial em
retirar o homem das sombras da ignorância. Inclusive, o
próprio Platão vai chamar esse fenômeno de “saída da ca-
verna”.
Este mito fala sobre a existência de prisioneiros
(desde o nascimento), que vivem acorrentados no interior
de uma caverna e que passam o tempo todo olhando para
a parede do fundo, que é iluminada pela luz gerada de uma
fogueira, na entrada da caverna. Essas sombras que são
vistas pelos prisioneiros são imagens de pessoas, objetos,
animais, plantas, etc., que mostram situações do dia a dia,
e estes prisioneiros dão nomes às imagens (sombras), ana-
lisando e julgando tudo o que veem.
Assim, imaginemos que um desses prisioneiros se li-
berta e vê que a realidade não é tal qual eles pensavam que
era. Ele passa a ver o mundo externo e com isso, a bele-
za fora da caverna. Contudo, não quer icar sozinho nesse
processo de libertação, mas, quer anunciar aos seus pares,
ainda no interior da caverna, para que, como ele, possam
perceber que a realidade é sempre ulterior e maior do que
pensamos. Porém, seus colegas não acreditam e passam a
chamá-lo de louco, chegando, inclusive, a ameaçá-lo de
morte caso não pare de narrar aquelas ideias consideradas
subversivas e absurdas. É preciso continuar enxergando o
fundo da caverna, pensam seus colegas.
Diante dessa alegoria, podemos nos questionar qual
sentido faz trazer Platão para pensar a educação popular,
ele que nasceu em outra época, com outras exigências e
espacialmente, em outro lugar, de realidade diferente da

339
nossa. Trazer o mito da caverna para pensarmos a educa-
ção popular é traçar uma linha e perceber que, desde tem-
pos mais remotos, a educação se coloca como esse mundo
exterior que é capaz de transformar a vida dos sujeitos,
esta que é marcada por uma visão distorcida da realidade
que é criada pela cultura dominante, conceitos e informa-
ções que recebemos durante a vida. Assim, só é possível
ver a realidade tal como se apresenta quando nos liberta-
mos destas inluências culturais e sociais, o que quer dizer,
quando saímos da caverna.
Entretanto, esta mesma educação que é capaz de
libertar, também é capaz de alienar, segregar e, por am-
bições de ordem política, silenciar outras educações. A
América Latina é um continente que conheceu de perto as
consequências de uma elevação de um modo de ser, saber
e poder que não partiu de suas tradições, mas de outros lo-
cus, o da dominação. Com o período de colonização em
nosso continente, surgiu, também, um processo de letra-
mento de nossos povos – no Brasil, a partir de 1529, com
a chegada dos padres da Companhia de Jesus (SAVIANI,
2013) – que estremeceu o arcabouço de sapiência de po-
vos que viviam nas terras de Abya Yala37.
Contudo, sabemos que toda prática pedagógica é
37 Abya Yala é o nome dado à América pelo povo Kuna do Panamá
e da Colômbia antes da chegada de Cristóvão Colombo e dos europeus. Em
sua literalidade, signiica Terra madura, Terra viva ou Terra em lorescimento.
Atualmente, várias organizações, comunidades e instituições indígenas e seus
representantes de grande parte do continente, preferem esta denominação à
denominação “América”, pois, esta expressão, como também, “Novo Mundo”,
são expressões herdadas dos povos colonizadores e não dos povos nativos.
Assim sendo, usar a expressão Abya Yala se coloca, sobretudo, como uma
posição ideológica frente à luta contra toda ordem de colonização (PORTO-
-GONÇALVES, 2009).

340
baseada em paradigmas, de diversas ordens. A educação
colonial segue o paradigma da dominação, já a educação
popular inaugurou no continente o debate em torno dos
paradigmas emancipadores e fundamentada nos mesmos.
Essa preocupação partiu do reconhecimento, em sua tra-
jetória histórica, do seu caráter crítico, alternativo e trans-
formador, como também, da necessidade de sempre re-
visitar e atualizar seus alicerces e perspectivas diante da
constante mudança do mundo, que tem uma característica
em não ser uma época de mudança, mas uma mudança de
época, onde a hegemonia total do neoliberalismo se airma
como pensamento único (Torres, 2008; 2010). Segundo
Carrillo (2013, p.16):

(...) quando, no âmbito da educação popular, fa-


lamos de paradigmas emancipadores, estamos si-
multaneamente fazendo menção a uma dimensão
gnosiológica (interpretação crítica da realidade), a
uma dimensão política (posicionamento e opção
alternativos frente a essa realidade), e a uma di-
mensão prática (que orienta as ações individuais e
coletivas voltadas à transformação da realidade).
Na educação popular, como prática social e po-
lítica, a renovação de paradigmas envolve o am-
plo universo subjetivo de seus autores e implica
fortalecer subjetividades rebeldes (Santos, 2006;
Berlanga, 2009) e imaginários radicais instituintes
(Castoriadis, 1989).

Efetivando esta relexão acerca dos paradigmas


emancipadores, este autor elenca três consensos que dão
suporte aos mesmos e fundamentam a educação popular.
O primeiro consenso consiste em assumir a categoria de
paradigma não apenas a partir de uma lógica epistemoló-
gica, como Thomas Kuhn (1962) utiliza na história das

341
ciências, mas, a partir de um sentido gnosiológico, assu-
mindo-se como matriz de intepretação a partir da qual os
coletivos sociais leem e se relacionam com a realidade e
na qual as subjetividades são primordiais. O que quer di-
zer que falamos de um paradigma emancipador presen-
te na educação popular não de forma apenas teórica, mas
que comporte as subjetividades dos sujeitos envolvidos no
processo educacional.
O segundo consenso vem nos alertar para que não se
busque a dimensão emancipatória fora do campo políti-
co-pedagógico no qual a educação popular está inserida e
vem atuando, evidentemente, a partir das últimas décadas.
Contudo, é importante lembrar que a dimensão emancipa-
tória não é exclusivamente patrimônio da educação popu-
lar (Torres, 2010), mas, está situada num campo amplo de
teorias críticas e transformadoras como a ilosoia, a teo-
logia, a ética e a psicologia da libertação, a comunicação
popular, o direito alternativo e a pesquisa-ação participa-
tiva. A educação popular se instala no campo da crítica e,
como airma Pérez (2000, p.43), é “herdeira de uma velha
tradição: a de transformar o conjunto social, privilegiando
a educação como ferramenta fundamental”.
Ainda sobre esse segundo consenso, a educação po-
pular possui um acúmulo próprio do pensamento a partir
de Simón Rodriguez, José Martí, Paulo Freire até che-
gar em outros/as autores/as e educadores/as atuais e com
isso, deve dialogar com frentes de pensamento crítico tais
como: o marxismo, o pós-modernismo progressista, a so-
ciologia das emergências, a teoria descolonial, etc. (Tor-
res, 2010). Entretanto, a educação popular ao adotar pa-

342
radigmas emancipadores não deve fazer isso apenas para
estudar tais autores, citando suas críticas, mas, suscitar
e fortalecer sujeitos na luta por transgressão ao sistema
opressor e dominador de toda ordem.
Por im, o terceiro consenso, segundo Carrillo (2013)
é reconhecer o potencial emancipatório das práticas e dos
saberes gerados sobre elas próprias e a partir delas deri-
vadas das experiências educativas populares e das atuais
lutas e movimentos sociais em todo o continente:

De fato, na educação popular existe não só um


acúmulo teórico como corrente pedagógica, mas
também um acúmulo de pensamento e sabedoria
como movimento que anima processos formativos
com populações subalternas, com suas organiza-
ções, redes e movimentos. Estas práticas não são
tanto a aplicação de uma concepção educacional,
mas sua recriação e reinvenção, por conta da plu-
ralidade de contextos, temáticas e atores com os
quais interage; em consequência vêm se gerando
práticas e saberes emergentes, que devem ser do-
cumentados e torna-se objetos de relexão, na bus-
ca da reconstrução da educação popular como pe-
dagogia emancipadora (CARRILLO, 2013, p.26).

Partindo, portanto, desta relexão dos consensos nos


paradigmas da educação popular, podemos perceber, de
forma latente, o que vem acontecendo com diversos mo-
vimentos sociais atuais em nossa região e no mundo como
um todo. Assistimos, diariamente, novas lutas, pautas, pro-
cessos associativos, etc., que, numa efervescência desco-
munal, estão ressigniicando seus protestos, argumentos,
sentidos e buscando se orientar a partir de uma mudan-
ça de projeto de sociedade. Deste modo, estes consensos

343
buscam, em caráter de urgência, reposicionar a educação
popular no campo que sempre foi dela, o crítico-emanci-
pador. E é nesse campo que ela própria se constitui en-
quanto ethos.
Tendo pensado sobre esses paradigmas emancipa-
dores presentes na educação popular, é importante, ain-
da, reletirmos um pouco mais sobre o que ela é. A partir
da concepção elaborada por Carlos Rodrigues Brandão
(2006), podemos dizer que ela é um processo dos saberes
construídos nas comunidades populares, ou seja, uma dis-
tribuição social do conhecimento e do capital cultural, que
equivale à uma sabedoria popular ou cultura popular e que
se torna visivelmente expressa na educação dos sujeitos,
como educação popular. Sendo, ainda – e isso faz parte do
seu caráter emancipatório – uma democratização do saber
escolar na medida em que camadas sociais de classe baixa
têm acesso ao conhecimento e esse mesmo conhecimen-
to, através da dialogicidade própria da educação popular,
airmam os sujeitos perante o mundo, tornando-os autôno-
mos. Isso, especialmente, emerge como um movimento de
trabalho político.
Neste último sentido, a educação popular não é uma
variante ou extensão da democratização da escola, mas
sim, uma concepção emancipadora que visa transformar
a ordem social e, inclusive, a própria escola. E foi nes-
se neste sentido que ela se expressou no início da década
de sessenta com o Movimento de Cultura Popular com
Paulo Freire em parceria com outros/as educadores/as da
Universidade Federal de Pernambuco e que foi estendida
na produção teórica de Freire até o término de sua vida,

344
como também em diferentes práticas que surgiram em ou-
tros locais da América Latina, e que, consequentemente,
inluenciou e inspirou a criação do Conselho de Educação
de Adultos da América Latina (CEAAL).
Deste modo, ela pode ser vista como uma concepção
educativa, um movimento de educação e uma corrente pe-
dagógica. Sobre a primeira proposição, diz Carrillo, efeti-
vando uma relexão de Marco Raúl Mejía e Maria Emma
Awad sobre a defesa da ideia de educação popular como
concepção educativa:

(...) a educação popular é uma concepção educa-


cional, com suas próprias práticas, suas concei-
tuações, suas pedagogias, sua metodologia e uma
opção ética de transformação (Mejía, 2009, p. 42;
2010, p.26). Nesta perspectiva, a educação po-
pular faz parte da tradição do pensamento crítico
ocidental e latino-americano, com a singularidade
de possuir seu próprio campo de ação (múltiplos
espaços educativos em resistência, escolares e não
escolares) a partir de uma opção política alterna-
tiva que dialoga com outros paradigmas críticos
e entende a dimensão pedagógica como um cam-
po de dispositivos de saber e poder (CARRILLO,
2013, p.18).

Diante de tal relexão, é importante reconhecer a


educação popular não somente como concepção ou um
enfoque pedagógico, mas, como movimento mesmo e
prática educativa. Reconhecendo a partir dessa lógica,
perceberemos que ela não está orientada exclusivamen-
te por concepções, pensamentos, teorias elaboradas, mas,
sobretudo, por ideologias, imaginários culturais, represen-
tações, crenças compartilhadas e reelaboradas por educa-

345
dores populares.
A educação popular, mesmo com alguns dissensos
conceituais, se coloca como prática educativa e corren-
te pedagógica que se faz presente em múltiplos lugares
e qualquer conceituação dela sempre icará fadada e ul-
trapassada, pois, ela se apresenta como muito maior que
a realidade, exigindo uma identiicação e caracterização
da multiplicidade de espaços, atores e práticas, assumi-
das como tal. Essa é a proposta de dois educadores que,
a seguir, discorreremos: a educação popular é uma via de
transformação social que, através de um movimento dialé-
tico, reinventa-se a si própria, como também aqueles/as
envolvidos/as no processo de emancipação, inaugurando
sujeitos autônomos.

Paulo Freire: por uma educação libertadora

É na diretividade da educação, esta vocação que


ela tem, como ação especiicamente humana, de
“endereçar-se até sonhos, ideais, utopias e obje-
tivos, que se acha o que venho chamando politi-
cidade da educação. A qualidade de ser política,
inerente à sua natureza. É impossível, na verdade,
a neutralidade da educação.

Paulo Freire

Os educadores/as, mais que nunca, precisam conhe-


cer Paulo Freire profundamente. Seu legado consegue
ultrapassar o tempo e, sem anacronismos, nos dá condi-
ções para repensar a situação atual da educação popular
na América Latina. Seu pensamento foi fundamental para
o surgimento de um novo modo de ver a educação, como

346
também, de efetivá-la a partir de práticas pedagógicas que
buscassem a emancipação dos sujeitos envolvidos no pro-
cesso educacional. Assim, nos atreveremos a descrever al-
guns dados biográicos e sua relevante contribuição para
o movimento que podemos chamar de educação popular.
Segundo Streck (2010), o século XX observou, ao
redor do mundo, o surgimento de práticas educativas que
estão na origem dos movimentos de transformação social
e que tiveram grande repercussão. Nos Estados Unidos da
América, Myles Horton, no Centro Highlander, constituiu
lideranças para o movimento de direitos civis; no Canadá,
James Coady articulou educação e economia, lançando as
bases para um movimento de educação de adultos atrelado
à formação para o trabalho de cooperação; Ivan Illich, ou-
sadamente, propôs um projeto de acabar com a escola que
conhecemos, por enxergar nela um fator constituinte de
problemas das sociedades modernas; já Lorenzo Milani,
criou uma escola a partir de ilhos de trabalhadores assu-
mindo seu caráter de classe, isso, em um pequeno vilarejo
italiano chamado Barbiana.
Deste modo, observando esse contexto internacio-
nal, podemos perceber que havia várias ideias precursoras
de um novo modo de fazer educação que fosse um de-
sestabilizador social e, no mesmo movimento, partisse de
uma ideia crítica frente ao modelo vigente de dominação.
É nesse contexto que a igura de Paulo Freire está inserida.
Este nasceu em Recife, em 1921, ilho de um capitão da
Polícia Militar e uma dona de casa, teve uma irmã e dois
irmãos. Sendo de classe média, sua família sofreu os ma-
les econômicos da grande depressão de 1929 e foi nessa

347
época que teve seu primeiro contato com a pobreza e a
fome. E esta experiência foi o suiciente para, no futuro,
através de sua produção intelectual e prática pedagógica
ter uma especial atenção para aquelas pessoas que estão à
margem da sociedade, marginalizadas.
Por carregar em sua prática o empenho para ensinar
os mais pobres, na busca de uma “desalienação” para estes,
Freire tornou-se muito conhecido e inspiração para várias
gerações de professores e professoras, como também, de
pedagogos/as, ilósofos/as, teólogos/as, cientistas sociais,
militantes políticos, grupos estes, geralmente, ligados a
partidos de esquerda, principalmente, os da América La-
tina e África. Talvez, sua experiência mais famosa como
educador foi a que se deu em Angicos, no Rio Grande do
Norte, onde, em 45 dias conseguiu alfabetizar 300 adul-
tos, através daquilo que, futuramente, os estudiosos do seu
pensamento iriam chamar de Método Paulo Freire38.

Segundo Gadotti (1999), o método de Paulo Freire


representa, na América Latina (e em outras partes
do mundo também), um dos mais importantes pa-
radigmas da educação. Quando ele surgiu signii-
cou uma alternativa emancipatória e progressista
face aos programas extraescolares predominantes
na época, patrocinados por agências norte-ameri-
canas e de outros países, com programas de exten-
são rural, desenvolvimento de comunidade, etc.
38 Falar de “método” na obra de Paulo Freire é uma prerrogativa
um tanto polêmica, já que o mesmo, numa entrevista concedida em João Pes-
soa-PB admitiu que não existia nenhum método. Contudo, diversos pesqui-
sadores/as que seguem e se debruçam sobre a teoria freireana utilizam essa
expressão e a localiza no apêndice do livro A educação como prática da li-
berdade (Freire, 1979, 9. ed.). Contudo, não vamos nos deter nessa polêmica
e seguiremos usando o termo “método” para designar as propostas de Freire
frente à educação.

348
Esses programas estavam sendo desenvolvidos
na América Latina desde o término da II Guerra
Mundial. A obra de Paulo Freire e sua abordagem
da realidade têm um caráter multidisciplinar e
contemplam diversas dimensões, destacando-se a
do educador-político (GOHN, 2013, p. 34).

Freire propõe um modelo de educação que traz em


seu bojo o artiicio libertador e conscientizador, que sabe-
-se, é isto que podemos airmar como educação popular,
pois orienta para a transformação dos sujeitos próprios e
do meio social onde vivem. Com o início da ação de al-
fabetização no Rio Grande do Norte e em Pernambuco,
outras experiências em vários lugares do país se deram,
sendo interrompidas pela tomada de poder pelos militares,
em 1964. Contudo, durante a década de 70 o método foi
aplicado em vários lugares do mundo com e na participa-
ção efetiva de comunidades de base, podemos dizer que
eram “trabalhos de base”.
O método de Paulo Freire consistia em três momen-
tos diferentes, mas, interligados. Explicaremos de forma
básica: no primeiro momento, fazia-se uma investigação
temática, ou seja, era uma busca de palavras e temas-cha-
ves do ambiente vocabular do educando/a, como também,
da sociedade onde ele/a estava inserido/a; já, no segundo
momento, havia a tematização, que era a codiicação/de-
codiicação daquelas palavras e temas-chaves elencados
no primeiro momento, buscando seu signiicado social; e,
por im, no terceiro momento, acontecia a problematiza-
ção, através da busca de superação das primeiras impres-
sões por uma visão crítica. Toda essa emancipação visada
pelo seu método se dava a partir de uma base que tinha

349
como apoio o diálogo através de processos comunicativos.
Quando nos deparamos sobre as obras de Freire per-
cebemos que elas trazem uma elevada preocupação com
as forças dominantes que vinham surgindo no Brasil e no
mundo, sobretudo, o neoliberalismo. Esta inquietação se
dava sobre essa corrente capitalista porque ela contraria-
va aquilo que ele tanto defendia, que era uma vida me-
lhor e igualitária para todos e todas, uma sociedade in-
clusiva, plural. Como também, porque o neoliberalismo
descontruía o núcleo central de seu pensamento: a utopia
(GADOTTI, 1996). Freire bateu de frente com o mercado,
pois, este buscava – e busca, ainda! – reger as relações
humanas a partir de uma ótica de capital, mas, não só as
relações interpessoais, como também, as instituições, a re-
ligião, a educação, etc. Esta última, durante as últimas dé-
cadas vem sendo regida pelo paradigma empresarial, que
traz como características a eiciência, a eicácia, a otimiza-
ção do tempo de aprendizagem, etc.

Toda a sua obra é voltada para uma teoria do co-


nhecimento aplicada à educação, sustentada por
uma concepção dialética em que educador e edu-
cando aprendem juntos numa relação dinâmica na
qual a prática, orientada pela teoria, reorienta essa
teoria, num processo de constante aperfeiçoamen-
to (GADOTTI, 2004, p.253).

Além da efervescência do seu pensamento a respeito


da educação, temas outros também izeram parte do seu
arcabouço teórico, dando suporte à discussão em torno da
educação popular, como por exemplo, suas ideias sobre
ecopedagogia que foram a fonte de inspiração para um

350
programa do Instituto Paulo Freire, em São Paulo, o Carta
da Terra.
Tendo sido exilado pela ditadura brasileira, Freire
retornou ao Brasil em 1980, após a Anistia de 1979, i-
liando-se ao Partido dos Trabalhadores na cidade de São
Paulo, e atuando como supervisor para o programa do par-
tido para alfabetização de adultos de 1980 até 1986. Foi,
ainda, secretário de educação do estado de São Paulo, na
gestão de Luísa Erundina (1989-1993), exercendo o car-
go até 1991, deixando marcas consideráveis na educação
daquele estado e, neste mesmo ano foi fundado o Instituto
Paulo Freire, com o intuito de estender e elaborar suas teo-
rias sobre educação. Sua morte se deu em 1997 por com-
plicações de um procedimento cirúrgico.
Freire traz o título de ser o brasileiro mais homena-
geado da história, ganhando vinte e nove títulos de Doutor
Honoris Causa de universidades tanto da Europa como
das Américas. Além disso, foi digno de receber vários
galardões, como o prêmio da UNESCO de Educação para
a Paz em 1986. Podemos destacar, ainda, que em 13 de
abril de 2012 foi sancionada a Lei 12.612 que declarou
Paulo Freire como o Patrono da Educação Brasileira.
Assim sendo, podemos perceber – e esse reconheci-
mento mundial atesta – que Freire deixou um vasto arca-
bouço sobre a educação popular como prática libertado-
ra e que deve ser conhecida por todos/as aqueles/as que
estão envolvidos/as no processo educacional, sobretudo,
em nossas terras latino-americanas, marcadas por tantas
desigualdades e dominações de toda ordem. Paulo Freire,
hoje, é o símbolo de que a educação popular pode trans-

351
formar a sociedade, emancipando os sujeitos.

Orlando Fals Borda: a Investigação-Ação Participati-


va para a Educação Popular

Las sociedades dominantes han confesado su pro-


pio fracaso en relación con la modernidad capi-
talista. La idea de progreso humano, la del viejo
Iluminismo, resultó demasiado ambigua. Acá no
nos han servido mucho. La razón instrumental
de este tipo no nos ha satisfecho. Debemos tener
la valentía de saber independizarnos y volar con
nuestras propias alas.

Fals Borda

Orlando Fals Borda foi um sociólogo que teve sua


vida ligada, estreitamente, à história da Colômbia a partir
do pensamento crítico que deu suporte à uma pedagogia
que buscou a transformação social da América Latina.
Mesmo sendo um autor de ideias claras, tendo sua obra
escrita de forma objetiva e rigorosa, assim como tratar de
Paulo Freire, não é tarefa fácil analisar sua produção inte-
lectual, sempre coerente com sua vivência. Sua vasta pro-
dução tem início na década de 1950, e se estende até 2008,
com o seu falecimento.
Seus inúmeros escritos tratam de várias temáticas,
como: sociologia rural, processos de mudança social,
epistemologia das ciências sociais, investigação-ação par-
ticipativa, educação popular, ordenamento territorial, so-
cialismo autóctone, etc. Além disso, seu pensamento se
dirige por várias perspectivas teóricas, por exemplo: es-
trutural-funcionalismo presente em seus trabalhos iniciais,

352
passando pelo marxismo de vertente não dogmática, e, ao
longo de seu amadurecimento, se aproximando de corren-
tes do pensamento ligadas à pós-modernidade, ao pós-co-
lonialismo e ao holismo.
Fals Borda nasceu em Barranquilla, uma cidade da
Costa colombiana, no dia 11 de julho de 1925. Cresceu no
seio de uma família presbiteriana e liberal de classe mé-
dia, estimulado desde cedo pelos pais aos valores morais
cristãos que marcaram seu pensamento e atitudes. Fals
Borda foi um homem do povo, sempre comovido com as
situações de desigualdade e, desse modo, participante da
vida daqueles que sofriam. Além de uma sólida formação
religiosa, recebeu uma excelente formação intelectual,
estudando música e literatura inglesa na Universidade de
Dubuque, nos Estados Unidos da América, regressando
em 1948, onde, um levante popular causado pela morte do
dirigente político e candidato à Presidência da República,
Jorge Eliécer Gaitán, impactou seu pensamento.
Suas preocupações com a questão social, propria-
mente dita, chegaram-lhe, sobretudo, através de sua ami-
zade com o presbítero católico, sociólogo e colega de
trabalho na Universidad Nacional, o padre Camilo Tor-
res Restrepo, com quem criou a Faculdade de Sociologia,
dentre tantas outras atividades, mantendo sempre uma
frutuosa experiência ecumênica. Assim, no auge de lutas
sociais e radicalização da oposição política, o avanço do
processo de urbanização e industrialização, violência ru-
ral, etc., foram suicientes para questionar a personalida-
de sensível de Camilo Torres e Fals Borda. O primeiro
morreu em 1966, vinculado à guerrilha, enquanto o outro

353
comprometeu-se com o movimento camponês, deixando a
universidade em 1969 e tornando-se um pesquisador mili-
tante, vindo a falecer em 2008 (CARRILLO, 2010).
Em sua produção, há um aspecto que diz respeito,
estritamente, à educação popular, que é a sua proposta de
Investigação-Ação Participativa (IAP). A IAP busca um
diálogo dos saberes populares com os saberes acadêmi-
cos. Estes, por muito setores da sociedade e, inclusive, da
própria universidade se colocam acima de todos os outros,
produzindo aquilo que podemos chamar de colonização
do saber. A crítica que Fals Borda vai fazer ao conheci-
mento passa por esse viés: o do reconhecimento de outros
saberes que devem ser colocados vis-à-vis com os do meio
acadêmico.
É neste sentido que vai elaborar uma crítica às
epistemologias eurocêntricas, airmando sua falência,
pois, elas próprias são incapazes de se sustentar, já que
todo conhecimento positivo nasce do senso comum. Assim
sendo, a IAP é, acima de tudo, o diálogo entre saberes
que ganha sentido a partir de um compromisso e uma
práxis de transformação social, implicando opções éticas,
políticas e pedagógicas coerentes. E foi essa opção de
diálogo intelectual e político que o fez se vincular a outros
pensadores comprometidos, através da educação popular,
com a práxis, inclusive, com Paulo Freire, de quem já
falamos (CARRILLO, 2010). Dizia Fals Borda (1999)
que seguia o rumo assinalado por Freire e Stenhouse
sobre a necessidade de combinar o ensino e a pesquisa e
de transcender a rotina pedagógica mirando a obtenção da
clareza comunicativa, da justiça social e do avivamento

354
cultural.
Deste modo, é notório que a principal contribuição
deste sociólogo para o campo teórico-prático da educa-
ção popular foi dar ênfase ao seu aspecto de investigação-
-participação. Portanto, não é somente investigar, educar e
atuar, é, sobretudo, uma ilosoia de vida capaz de recons-
truir a sociedade com um novo vigor. Portanto, a IAP se
coloca como uma metodologia dentro de um processo vi-
vencial da educação popular. Ele mesmo deiniu-a como:

un método de estudio y acción que va al paso con


una ilosofía altruista de la vida para obtener re-
sultados útiles y coniables en el mejoramiento de
situaciones colectivas, sobre todo para las clases
populares. Reclama que el investigador o investi-
gadora base sus observaciones en la convivencia
con las comunidades, de las que también obtiene
conocimientos válidos. Es inter o multidisciplina-
ria y aplicable en continuos que van de lo micro
a lo macro de universos estudiados (de grupos a
comunidades y sociedades grandes), pero siempre
sin perder el compromiso existencial con la ilo-
sofía vital del cambio que la caracteriza (FALS
BORDA, 1998, p. 182).

Podemos descrever, consequentemente, que a IAP


se coloca como uma experiência político-pedagógica, no
preciso sentido da educação popular, pois, traz em sua es-
sência a busca por uma tomada de consciência ideológica
e intelectual das classes mais baixas da sociedade, estas
que são as exploradas. De tal modo, armadas através da
IAP devem assumir, conscientemente, o papel de atores da
própria história, já que é este o im teleológico do conhe-
cimento, que se encontra com a práxis e se orienta através

355
do compromisso revolucionário e transformador (FALS
BORDA, 1978).

Considerações inais
Surgida como movimento de ruptura frente à uma
educação de conservação de modelos vigentes e práticas
tradicionais, a educação popular veio estremecer as bases
de uma prática pedagógica que não formava os sujeitos
para a tomada de consciência e atuação no processo his-
tórico da sociedade da qual ele pertencia. Ela se colocou
além dos paradigmas tradicionais, sustentando-se em cima
de paradigmas emancipatórios, inaugurando uma nova
etapa na história de luta da América Latina e dando início
e suporte, também, aos movimentos sociais que, dentre
inúmeros fenômenos ao longo das últimas décadas, têm se
reinventado, efetivando uma luta mais próxima dos ideais
libertários.
Assim, percebemos que Paulo Freire, como também
Orlando Fals Borda trouxeram uma signiicativa contri-
buição para fundamentar e apoiar a discussão e prática
da educação popular em nosso continente, terra marcada
pela dominação de várias ordens. É nítida a diferença da
formação conceitual de suas ideias a respeito da educa-
ção popular, mas, é nítido também, que são ideias que
dialogam e se encontram, aumentando o leque das teorias
emancipatórias: Freire com seu método de conscientiza-
ção do sujeito enquanto agente da transformação e Fals
Borda com sua pedagogia da práxis que une o conheci-
mento popular com o conhecimento acadêmico, trazendo
libertação e conscientização ao povo.

356
Cabe-nos, ainda, nos perguntamos: a partir de Frei-
re e Fals Borda, como entender e abrir espaço para edu-
cação popular no próprio locus que vivemos? Diante da
realidade atual latino-americana, ainda marcada por tanta
desigualdade que, mesmo com a chegada ao poder de
governos de esquerda, não se libertou integralmente, qual
o lugar da educação popular para continuar emancipando
o povo, sem esmorecer, frente a tantas ameaças de
liberdade com a volta de governos de direita? Quem são
os novos sujeitos envolvidos no movimento de educação
popular? Diante de tais questionamentos, é importante
que continuemos ativos no caminho da educação popular,
buscando nestes teóricos, o caminho da ressigniicação
desse movimento que, mesmo com tantas investidas por
parte do sistema neoliberal, não sucumbe e cada vez mais,
surge como uma frondosa árvore de raízes profundas.

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360
EDUCAÇÃO POPULAR: UM DIÁLOGO ENTRE
LATINOS/AS-AMERICANOS/AS
Amanda do Nascimento Rosa. Licenciada em Matemática (UFPE/2015).
Mestranda em Educação Contemporânea (PPGEduC/UFPE-CAA). amanda-
donascimentorosa@gmail.com.

Andrielle Maria Pereira. Licenciada em Matemática. (UFPE/2014). Mes-


tranda em Educação Contemporânea (PPGEduC/UFPE-CAA). andrielleperei-
ra30@gmail.com.

Resumo
Uma educação que atenda às demandas educacionais, sociais e cultu-
rais do povo levando em consideração suas identidades, suas línguas e a
diversidade cultural ainda parece ser uma utopia. Temos muitos proble-
mas educacionais e sociais que atravessam décadas a décadas e sequer
são discutidos, pensados, avaliados ou reletidos. Não se tem interesse
político na educação do povo (ou popular) e muitos menos interesse pe-
las demandas sociais dele. O que se há é interesse pela manutenção da
educação posta, uma educação que não lhes permite ir além do que foi
dado, mas apenas reproduzir. Nesse sentido, o presente texto tem como
objetivo geral reletir sobre as contribuições do pensamento pedagógico
latino-americano de José Vasconcelos, Gabriela Mistral e Paulo Freire
em favor de uma educação que visa a transformação social e individual
dos sujeitos. Autores/as estes/as que pensam uma educação favorável à
instrução educacional, social e cultural do seu povo – educação popular.
Palavras-chaves: Educação Popular. Transformação social. Pensamen-
to Pedagógico Latino-americano.

Notas introdutórias

361
No contexto histórico educacional podemos perceber
a preocupação e contribuição de muitos pensadores ao que
concerne às demandas de sua época e do povo – sociais,
culturais, econômicas, educacionais, etc. No entanto, nos-
sa sociedade continua sendo discriminatória – não reco-
nhecendo as diferentes identidades e culturas do seu povo,
classista –, instituindo níveis hierárquicos e excluindo os/
as marginalizados/as, e sexista – posicionamentos vertica-
lizados e normativos com relação aos corpos e ações das
pessoas. Temos uma sociedade que “violenta” o povo em
todos os sentidos!
A educação, nesse contexto, continua instituindo e
reproduzindo normas, valores e ideias que desrespeitam
as diferentes identidades, culturas e saberes populares,
aportando-se no saber hegemônico como único, legítimo
e possível para educação de todos (do povo). Dessa forma,
buscando subverter a ordem, inspiradas nos/as pensado-
res/as latinos/as-americanos/as, faz-se necessário pensar
uma prática pedagógica popular que atenda às demandas
sociais, educacionais e culturais de um povo. Nesse senti-
do, traremos inicialmente algumas notas introdutórias so-
bre educação popular e povo.
Brandão (2014) evidencia que existem três for-
mas de ver e deinir o que é povo. O primeiro sentido de
“povo” é entendido como “somos todos nós” – sociedade
civil, espaço de cidadania, povo –, “os situados fora da
esfera restrita do “poder político oicial”, e os excluídos,
serviçais ou colonizados pelo polo hegemônico do merca-
do” (BRANDÃO, 2014, p. 25-26). Para ele, o Estado e o
mercado empresarial devem servir ao povo e em nome da

362
produção e circulação de bens comuns. Um segundo sen-
tido, refere-se às “camadas mais pobres da população” –
pobres, trabalhadores/as, excluídos/as, ou seja, as pessoas
e comunidades situadas às margens da sociedade –, classi-
icadas de classe D e E pela mídia e pelo governo.
Já o terceiro sentido de povo é entendido como clas-
se social que é constantemente desqualiicada e evitada
pelo poder público e setores empresariais. Nas palavras de
Brandão:

“O “povo” é agora uma classe multifacetada que


se recusa a ser apenas uma posição em uma escala
e se representa a si mesma em termos políticos e
em termos de uma crítica política de sua condição
e do sistema social que o faz ser como é e viver
pessoal e coletivamente como vive (2014, p. 28).

Assim, pode-se dizer que o novo sentido de “povo” é


constituído por diferentes coletivos de luta e movimentos
populares que se articulam em prol de ações sociais, cul-
turais, educacionais e políticas – compondo o sujeito da
educação popular. Nesse sentido, perguntamos: que edu-
cação é dada ao povo? Não temos a pretensão de trazer
respostas para essa pergunta, mas observando o contex-
to educacional podemos perceber que a educação públi-
ca brasileira está em crise e não abarca as necessidades
básicas da população visto que apresenta recursos insu-
icientes; espaços escolares deteriorados e em condições
precárias; proissionais da educação mal qualiicados e
desvalorizados; currículos centralizados, hegemônicos e
verticalizados que não atendem as especiicidades das di-
ferentes comunidades. Enim, estes entre outros elementos

363
constituem o sistema educacional brasileiro, ou podemos
dizer, fazem parte da educação popular. Então, o que seria
educação popular?
Brandão (2014) anuncia que a expressão educação
popular foi usada pela primeira vez pelos “pioneiros da
educação” – em nome da primeira concepção de povo.
As ações realizadas por eles visavam uma educação que
atendesse a todas as pessoas, que fosse concebida como
direito social inalienável estendido a todos – a todo o
“povo” brasileiro. Trata-se da oferta de uma educação
universal, gratuita e de boa qualidade para todas as pessoas
– ou seja, uma educação pública, um direito da sociedade
civil e um dever a ser cumprido pelo Estado.
O referido autor evidencia que o conceito de “edu-
cação popular” foi sofrendo mudanças ao longo do tempo
em decorrência das transformações sociais, educacionais,
culturais e políticas. Assim, em coerência com a segunda
concepção de povo, os movimentos e as lutas giravam em
prol de uma educação não somente pública – para toda
população –, mas, também, por uma “educação igualitária
e diferencialmente inclusiva”. Ou seja, consistia na busca
por uma escola que além de ser pública (no sentido que é
um direito de todo cidadão), “seja capaz de incluir de fato
as pessoas da sociedade tradicionalmente excluídas, dei-
xadas à margem ou dirigidas a espaços limitados e quase
desqualiicados” (BRANDÃO, 2014, p. 29).
Nestes termos, apesar da abertura do campo educa-
cional, cultural e social para acolhida do “povo”, podemos
perceber discrepâncias ao que concerne essa “inclusão es-
colar”. Como exemplos podemos citar: a quantidade de

364
jovens não-brancos nos “cursos renomados” das universi-
dades que ainda é mínima; as demandas da educação in-
dígena e campesina que sofrem com as imposições de um
conhecimento hegemônico e verticalizado, etc.
Brandão (2014) airma que nos últimos anos têm-
-se emergido frentes populares que lutam por demandas e
direitos sociais, culturais e educacionais das minorias in-
visibilizadas, mas que ainda não podemos considerar que
essas novas frentes político-pedagógicas se constituam
como “educação popular”, embora estas novas frentes
apresentem caminhos direcionados à educação do povo.
“Para a educação popular de antes e de agora, não se trata
apenas de educar para se “fazer justiça ao povo”, mas lu-
tar para que seja gerado povo capaz de transformar toda a
sociedade em que vive e estabelecer, ainal, todo um novo
mundo de justiça” (BRANDÃO, 2014, p. 32).
Diante dessas pontuações, indagamos: como o pen-
samento pedagógico latino-americano de José Vascon-
celos, Gabriela Mistral e Paulo Freire podem contribuir
para pensarmos uma educação popular (no 3º sentido de
povo)? Temos como objetivo geral: reletir sobre as con-
tribuições do pensamento pedagógico latino-americano
de José Vasconcelos, Gabriela Mistral e Paulo Freire em
favor de uma educação popular (no 3º sentido de povo). E
como objetivos especíicos: identiicar e mapear as contri-
buições do pensamento pedagógico latino-americano des-
tes/desta autores/autora.
Metodologicamente tomamos como base a pesquisa
qualitativa no sentido que nos apresenta Chizotti (1998),
buscando compreender a existência de “uma relação dinâ-

365
mica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência
viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável
entre mundo objetivo e a subjetividade do sujeito” (p.
79). Nesse sentido, trata-se de uma pesquisa bibliográica,
onde foram consultados os textos da disciplina “Tópicos
Educacionais I: Pensamento Pedagógico Latino-Ameri-
cano” e outros textos, matérias, documentários, etc. que
embasam a construção da discussão sobre o pensamento
pedagógico na América Latina e a educação como favorá-
vel à instrução da população e à justiça social.

Situando os/as autores/as latino-americanos/as


Os/as autores/as apresentados/as nesse trabalho, as-
sim como outros/as elencados/as para as discussões da
referida disciplina, constituem um arcabouço teórico-me-
todológico existente na América Latina (que, de certa for-
ma, ainda é desconhecido por muitas pessoas) de grande
contribuição para formação pessoal, proissional e crítica.
Especialmente por pensarem uma educação revolucioná-
ria, emancipatória e justa que atenda às demandas educa-
cionais, sociais e culturais daqueles/as que historicamente
foram (e ainda são) excluídos/as.

a) José Vasconcelos: Apóstolo da Educação


José María Albino Vasconcelos Calderón viveu entre
1882 e 1959. Durante sua vida realizou atividades variadas
como: advogado, político, escritor, educador, missionário
revolucionário, funcionário público e ilósofo mexicano.
Se consagrando como apóstolo da educação por suas con-
tribuições ao campo educacional, social e cultural do Mé-

366
xico e de outros países. Seu desaio foi educar um país
com altíssimos índices de analfabetismo. Na sua infância
viveu na fronteira norte do México, convivendo com uma
variedade cultural e religiosa. Durante a adolescência teve
acesso a diversos livros e bibliotecas que lhes despertaram
uma visão e posicionamento crítico frente às realidades
sociais. José Vasconcelos39 viveu no calor da ditadura e
da Revolução Mexicana, enxergando referentes para uma
nova proposta política e educativa.
José Vasconcelos buscou uma proposta política que
permitisse ao México sair do subdesenvolvimento, pro-
movendo uma ordem social mais justa e democrática. Ele
se opõe a um sistema que estabelece e promove uma visão
unilateral e verticalizada – determinística – de pensamen-
to ilosóico. Seu pensamento pedagógico é marcado por
uma “concepção de espiritualidade que se contrapõe à vi-
são pragmática dos norte-americanos, onde o objetivo de
educar não é só adquirir competência técnicas, “[...] mas
também transcender o mundo empírico e chegar a uma vi-
são mais integral do mundo” (LICEA, 2010, p. 186). Este
autor ainda evidencia que sua ilosoia educacional é com-
posta por cinco pontos:

1. Impulsionar a cultura mestiça como base da


mexicanidade; 2. reconhecer o elemento mexica-
no através de seus produtos culturais e seu meio
natural; 3. projetar a América Latina como o novo
crisol da humanidade; 4. apoiar os desprotegidos
a partir do espírito de serviço e da solidariedade; e
5. desenvolver a indústria para o progresso mate-

39 Mais informações sobre o contexto histórico de sua vida e ações


desenvolvidas consultar o documentário “José Vasconcelos: Serie Maestros de
América Latina”.

367
rial do país (Idem).

Nesse sentido, apresentaremos uma síntese de suas


ideias e projetos. Enquanto reitor da Universidade do Mé-
xico (1920-1921) lança uma campanha contra o analfa-
betismo; propõe o lema e o escudo da Universidade do
México (os quais continuam até os dias atuais); elabora
um projeto para criar uma Secretaria de Educação Públi-
ca – SEP; e se dispõe para elaborar um projeto educativo
para todo país. Durante seu discurso de posse ele evidencia
que “no vengo a trabajar por la Universidad, sino a pidir
a la universidade que trabaje por el pueblo” (MIRANDA,
2009, p.12). Podemos perceber que ele busca um diálogo
entre a universidade e povo, de modo que os mexicanos
pudessem adquirir conhecimentos e se desenvolver. Pro-
põe como pressupostos político-educacionais: a laicidade,
a obrigatoriedade e a gratuidade, ou seja, oferecer uma
educação pública e integral a todos os mexicanos – crian-
ças e adultos.
Quando ocupou o cargo de Secretário de Educação
Pública (1921-1924), vendo seu país com mais de 70% de
analfabetos, carente de desenvolvimento social, cultural e
tecnológico e as condições marginais de seu povo indíge-
na e camponês, Vasconcelos propôs um plano de organiza-
ção da SEP, dividido em cinco departamentos:

• el escolar: instrução primária, normal, media su-


perior e superior;

• el de Bibliotecas comunitárias: serve de apoio


ao anterior, com um projeto editorial de alcance de
publicação de obras clássicas de literatura e iloso-

368
ia nacional e mundial;

• el de Bellas artes: encarregado de difundir a arte


e a cultura no país;

• el de educação indígena: encarregado a profes-


sores que realizariam tarefa similar aos missionei-
ros católicos;

• el de desanalfabetização: deveria atuar no luga-


res de população densa;

Seu objetivo com a criação e organização da SEP


era “[...] transformar a las masas maginadas em grupos de
indivíduos productivos y creadores, (así) la populación se
integraria em uma unidad nacional libre y democratica”
(MIRANDA, 2009, p. 12). Seu projeto de educação bus-
cava atender a toda população mexicana, ele não concebia
diferenças entre o índio ignorante ou o campesino francês
ignorante ou o campesino inglês ignorante, mas defendia
que todos deveriam ter acesso à educação, colaborando
com o desenvolvimento de seu país e contribuindo para o
melhoramento do mundo – cada um de sua forma. É com a
intenção de levar educação ao povo e atender às particula-
ridades de cada comunidade que Vasconcelos propõe um
conjunto de programas educativos. Vejamos:

La alfabetización e creación de muchas escue-


las: combater ao analfabetismo e criar escolas
industriais, técnicas e agrícolas para formação
prática dos mexicanos; Los maestros misione-
ros: alcançar as populações indígenas, estudar o
estado cultural dos habitantes e necessidades das
comunidades; Depois, funda uma escola que tinha
uma organização e funcionamento de acordo com
as necessidades e aspirações do lugar.Las Escue-
las Normales Rurales: organização da educação

369
rural e a formação de maestros rurais com as no-
vas tendências agrícolas do mundo; Essa educa-
ção deveria ser proveitosa e eicaz na realidade da
vida dos futuros agricultores;La alfabetización
e creación de muchas escuelas: combater ao
analfabetismo e criar escolas industriais, técnicas
e agrícolas para formação prática dos mexica-
nos; Los maestros misioneros: alcançar as po-
pulações indígenas, estudar o estado cultural dos
habitantes e necessidades das comunidades; De-
pois, funda uma escola que tinha uma organização
e funcionamento de acordo com as necessidades e
aspirações do lugar.Las Escuelas Normales Ru-
rales: organização da educação rural e a formação
de maestros rurais com as novas tendências agrí-
colas do mundo; Essa educação deveria ser pro-
veitosa e eicaz na realidade da vida dos futuros
agricultores; (LÓPEZ, 2005, p.151-154).

A ideia central de Vasconcelos é “Hacer de la escue-


la una casa del Pueblo y del maestro un líder de la comu-
nidade” (LÓPEZ, 2005, p. 139).

b) Gabriela Mistral: La maestra de la escuela


Lucila María del Perpetuo Socorro Godoy Alcaya-
ga viveu entre 1889-1957. Durante sua vida atuou como
educadora, poeta, feminista, missionária e diplomata.
Desde os quinze anos de idade exerceu o cargo de profes-
sora em escolas rurais. O pseudônimo “Gabriela Mistral”
é uma homenagem aos seus poetas preferidos Gabriele
D’Annunzio e Federico Mistral. Além deles seu pensa-
mento pedagógico e poético têm inluência de José Maria
Vargas Vila, Rubén Darío e Pablo Neruda (ADAMS, 2010,
p.211). Gabriela40 viveu em uma época de grandes crises e
40 Mais informações sobre o contexto histórico de sua vida e ações

370
guerras que assolaram vários países latino-americanos. Ela
aprendeu a ler e escrever no convívio familiar, tornando-
se autodidata.
Seu pensamento tem um traço humanista e apresenta
relexões sobre os valores próprios e autênticos da cultura
latino-americana. O reconhecimento como poeta veio em
1914, quando ganhou medalha de ouro nos Jogos Florais
em Santiago do Chile. E, enquanto educadora, em 1915
recebe a nomeação de professora e diretora de Castella-
no de Líceo del punta Arenas. A partir de 1922 iniciou
sua jornada missionária a chamado do governo do Méxi-
co para colaborar na alfabetização do povo mexicano. Em
1924 fez sua primeira viagem para a Europa, onde teve
contato com grandes intelectuais literários e mais tarde
teve contato com as ideias e conceitos da Escola Nova e
os métodos de ensino ativo.
No ano seguinte, começou uma jornada por países
da América Latina, conhecendo suas realidades socioeco-
nômicas e educativas. Nos anos de 1926 a 1930 trabalhou
como representante chilena na Liga das Nações Unidas,
representando os interesses latino-americanos. Nos anos
posteriores dedicou-se a dar cursos, proferir conferências
e realizar atividades como professora de literatura chilena.
Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1945 por suas
belas poesias e numerosos escritos em prosa e verso. Nos
temas dos seus poemas observa-se o amor de mãe, amor,
memórias pessoais dolorosas, solidão, questões sociais e
preocupações em relação às condições das mulheres, etc.
Foi sem dúvida uma grande mulher da sua época.
desenvolvidas consultar o documentário “Gabriela Mistral: Serie Maestros de
América Latina”.

371
Defensora do povo de identidade latino-americana,
sua vida é marcada por duas grandes lutas: educação pú-
blica e obrigatória para seu país e, igualdade de direitos
para as mulheres. Para Gabriela, a educação das novas
gerações deve ter como base uma trilogia educativa que
engloba a sociedade, os/as educandos/as e os/as profes-
sores/as. Servindo para formar toda população, “desde
as pessoas mais pobres, para construir um povo instruído
que conheça todos os bens da natureza, os que se pode
conservar e que ofereça todo o necessário para alcançar o
bem estar coletivo” (LÓPEZ, s/d, p.11). Seu pensamento
pedagógico tem inluência do Movimento Escola Nova,
destacando que:

“es um vacio intolerable el de la instrucción que


antes de dar conocimientos, no enseña métodos
para estudiar...” [por isso]“...es importante que los
nuevos métodos de enseñanza tengam como base
los interesses, necessidade y problemas de los
niños, así como los objetos que formam parte de
su ambiente natural y social” (idem, p.12).

Gabriela Mistral participou da Reforma Educacional


do México e foi lá que encontrou espaço para desenvol-
ver seu potencial como educadora. Seu desaio era alfa-
betizar a enorme massa campesina e indígena mexicana.
Participou da instituição e organização das bibliotecas po-
pulares, considerando-as um barômetro da cultura; e das
missões rurais – projeto de desenvolvimento da educação
das áreas rurais do México. Nesse tempo publicou livros
para crianças e mulheres, airmando que sua luta era por
uma pedagogia que pensasse os direitos das crianças e das
mulheres.

372
Nesse sentido, apresentamos uma síntese do seu
pensamento pedagógico que foi publicado na Revista
de Educación nº 1, em março de 1923 (ADAMS, 2010,
p.219-221):

1) Ensinar sempre: no pátio e na rua, como na


sala de aula. Ensinar a atitude, o gesto a pala-
vra; 2) Mais pode ensinar um analfabeto do que
um ser sem honradez, sem equidade; 3) Tão peri-
goso é que a professora supericial tagarele com a
aluna quanto é belo que esteja sempre a seu lado
a professora que têm algo a ensinar fora da sala
de aula; 4) Como não é possível rever tudo, é ne-
cessário fazer com que a aluna selecione e saiba
distinguir entre a medula de algo e o detalhe útil,
mas não indispensável; 5) Se não realizamos a
igualdade com e a cultura dentro da escola, onde
se poderão exigir essas coisa? 6) Para corrigir
não se deve temer. O pior professor é o professor
com medo. 7) As parábolas de Jesus são o eterno
modelo de ensino: Usar a imagem, ser simples e
dar sob a aparência simples o pensamento mais
profundo. 8) É preciso não considerar a escola
como a casa de uma, mas de todas. 9) A pro-
fessora que não lê têm de ser má professora: re-
baixou sua proissão ao mecanismo de ofício, ao
não se renovar espiritualmente. 10) Pode-se dizer
tudo, mas é necessário encontrar a forma. A mais
dura reprimenda pode ser feita sem humilhar ou
envenenar uma alma. 11) É intolerável o vazio da
instrução que, antes de dar conhecimentos, não
ensina métodos para estudar. 12) Todo esforço
que não é persistente se perde.

O lema central do pensamento de Gabriela Mistral é


“ensinar sempre, no pátio e na rua, como na sala de aula”
(ADAMS, 2010, p. 211).

373
c) Paulo Freire: Patrono da Educação Brasileira
Paulo Reglus Neves Freire viveu entre 1921-1997.
Nordestino, Brasileiro, educador, militante, revolucioná-
rio, ilósofo e escritor. Com o aprofundamento da crise
mundial em 1929, teve seu primeiro contato com a fome
e a pobreza. Trabalhou como professor de Língua Por-
tuguesa do Colégio Oswaldo Cruz e diretor do setor de
Educação e Cultura do SESI (Serviço Social da Indústria)
de 1947-1954 e superintendente do mesmo de 1954-1957.
Em Angicos (RN) no ano de 1963, liderou, junto com sua
equipe, as primeiras experiências de alfabetização popular
que levariam à constituição do Método Paulo Freire. Seu
grupo foi responsável pela alfabetização de 300 cortado-
res de cana em apenas 45 dias.
Freire desenvolvia o Plano Nacional de Alfabeti-
zação do presidente João Goulart quando o golpe militar
foi instituído em 1964. Devido à ampla utilização de seu
método de alfabetização, ele foi acusado de subverter a
ordem e icou preso por 72 dias, antes de se exilar. Exilado
no Chile, desenvolveu programas de educação de adultos
no Instituto Chileno para a Reforma Agrária (ICIRA) e,
em 1968, escreveu seu livro mais conhecido, Pedagogia
do Oprimido. Lecionou nos Estados Unidos e na Suíça,
e organizou planos de alfabetização em países africanos.
Volta ao Brasil em 1980, integrando-se à vida universi-
tária, lecionou na Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUCSP). E, entre 1989 e 1991, foi Secretário
Municipal de Educação de São Paulo, onde desenvolveu
atividades voltadas para implementação de movimentos

374
de alfabetização e de revisão curricular. Foi reconhecido
mundialmente por sua práxis educativa.
Freire sempre fez críticas à sociedade neoliberal,
airmando ser “[...] contra a ordem capitalista vigente que
inventou esta aberração: a miséria na fartura” (FREIRE,
2002, p. 116). Seu objetivo era elaborar uma pedagogia
libertadora que capacitasse as camadas populares com
instrumentos que lhes permitissem lutar contra as amarras
capitalistas. Ou seja, a saída seria uma educação conscien-
tizadora. Ele defendia uma pedagogia que estabelecesse
relações diretas com as classes populares e que primasse
pela emancipação social. A preocupação de Freire consis-
tia no

processo de aquisição de conhecimento que fos-


se propício para que os indivíduos excluídos ad-
quirissem a capacidade de compreender o fun-
cionamento da sociedade na qual se encontram,
compreender sua localização nesta e promover
uma postura criticamente consciente a partir do
reconhecimento e da conscientização. (MACIEL,
2011, p. 338).

A educação do povo é pautada numa relação de diálo-


go, de contradições com a realidade capitalista vivenciada
pelos educandos, de construção e reconstrução dos conhe-
cimentos a partir do processo de construção, conscienti-
zação e desvelamento das condições de sujeitos históricos
e inacabados que somos, estando em constantes relações
com o meio que nos cerca. Uma educação que permita
ao povo contestar o sistema político, as condições econô-
micas, sociais, culturas e educacionais vigentes. Brandão

375
(2014) destaca alguns elementos que se constituem como
“ideias geradoras” da educação popular Freiriana:

1. A educação não é neutra; 2. Todo acontecer


pedagógico é um ato político; 3. A educação [...]
almeja transformar pessoas que transformem
o mundo em que vivem, as suas vidas e os seus
destinos; 4. A educação não transforma culturas,
não muda sociedade e não altera sistemas políti-
cos. Mas sem a educação não é possível transfor-
mar (de dentro para fora) pessoas que transfor-
mem (de baixo para cima) as suas sociedades e
os seus mundos; 5. Como educadores/as sabemos
que ninguém educa ninguém, mas que ninguém
se educa sozinho e por conta própria; 6. Solidá-
ria e dialogicamente nós nos “ensinamos-apren-
demos” uns com as outras, umas com os outros;
7. Vivemos hoje, como herança de um passado
próximo, uma sociedade submetida à hegemonia
do capital. [...] Esse mundo do mercado tornou-se,
nos dias de agora, multifacetado; 8. Esse “mundo
do mercado” é obra de sujeitos humanos e sociais
e, como tal, pode ser transformado por outros su-
jeitos sociais e humanos; 9. [...] Podemos adaptar-
-nos criticamente a esse mundo, buscando alterna-
tivas para torná-lo melhor e mais humanizado; e
podemos acreditar que não existem no horizonte
alternativas verdadeiras para uma efetiva huma-
nização do “mundo do mercado” e ele deve ser
estruturalmente transformado em um “outro mun-
do possível”; 10. No caminho de transformação
desse mundo em um “outro mundo possível”, o
sujeito social “povo” deve ter um lugar relevante
ou, mesmo, central e hegemônico. E a educação
dialógica de pessoas, comunidade e classes popu-
lares é a vocação fundadora da educação popular
(BRANDÃO, 2014, p.25-26).

Um dos princípios sempre mencionado é que “a lei-


tura do mundo precede a leitura das palavras” (STRECK,

376
2010 p. 329).

Diálogo entre educadores e educadora do povo


Vasconcelos, Mistral e Freire, introdutoriamente dis-
cutidos neste ensaio, têm suas diferenças em decorrência
do período histórico em que viveram, porém, apresentam
grandes semelhanças ao que concerne o pensamento pe-
dagógico e as ideias/conceitos sobre a educação do povo
– educação popular.
Ambos os autores e a autora viveram em períodos
históricos marcados por crises econômicas, guerras, siste-
mas ditadores e reformas educacionais – tanto Vasconce-
los como Paulo Freire presenciaram e vivenciaram direta-
mente esses processos nos seus países, sendo até exilados.
Também, todos tiveram uma infância com recursos i-
nanceiros limitados e vieram a ter contato com livros e
leituras mais densas já no início da vida adulta. Gabriela
Mistral, por ser mulher, não teve acesso à educação como
os outros.
Outra semelhança bem pertinente aos três pensado-
res é que valorizam e incentivam o uso dos livros e da
leitura como meio de possibilitar a transformação social e
de conscientizar “o povo” de seu lugar e posição que ocu-
pam na sociedade. Destacando aqui, o conceito de escola
que não se restringe a um espaço com carteiras e quadro,
mas um conceito de escola ampliado, como Mistral coloca
“ensinar sempre, no pátio e na rua, como na sala de aula”.
Nesse sentido, o conceito de “currículo” ou ideias
“curriculares” destes autores e desta autora não se restrin-

377
gem a um conceito hegemônico, verticalizado e universal,
mas a uma concepção de “currículo” descentralizado que
leva em consideração os saberes/conhecimentos necessá-
rios de cada comunidade e suas particularidades – como,
por exemplo, a educação campesina e indígena com Vas-
concelos e Mistral; a educação da mulher com Mistral,
destacando os direitos à educação e ao voto; e a educação
dos oprimidos – cortadores de cana, agricultores, trabalha-
dores das fábricas, etc. – em Freire.
Vasconcelos e Mistral lutam por uma educação para
todos (povo no 1º sentido), mas não apenas uma educação
para todos visto que pensam uma educação para as par-
ticularidades diferencialmente (povo no 2º sentido), mas
uma educação que atende às particularidades do povo me-
xicano e do povo chileno, oferecendo-lhes conhecimentos
que os levem para efetivação de uma transformação social
e para o reconhecimento de suas identidades latino-ame-
ricanas.
A luta de Freire é por uma educação que conscienti-
ze o “povo” (no 3º sentido). Uma pedagogia para aqueles
que foram postos à margem da sociedade para que se tor-
nem revolucionários de si e do meio social em que vivem,
questionando e contestando as condições sociais, cultu-
rais, educacionais, políticas e econômicas vigentes em que
foram postos.
Podemos perceber também que Vasconcelos e Mis-
tral enfatizam a necessidade de desenvolver no povo o re-
conhecimento e valorização da identidade latino-america-
na, porém, os fazem de modos diferenciados. Vasconcelos
aborda a temática por meio de sua teoria sobre a “raça

378
cósmica” e da valorização da cultura mexicana – propon-
do as missões culturais, onde havia o incentivo à músi-
ca, à dança, à pintura, etc. Mistral também participou das
missões culturais com Vasconcelos, mas ela incentiva o
reconhecimento da identidade latina através de suas poe-
sias, das aulas sobre literatura latino-americana e chilena e
através de sua posição de mulher, que na época provocou
algumas discussões.
Em Freire, não podemos perceber isso tão claramen-
te quanto nos anteriores. Ele luta por uma prática pedagó-
gica que liberte o “povo” e o coloque numa posição polí-
tica. Nesse processo, ele vai enfatizando os saberes locais
de cada comunidade, os conhecimentos cotidianos e, des-
sa forma, vai abordando elementos pertencentes à cultura
popular, à identidade popular e aos saberes populares.
Em síntese, podemos perceber que ambos os autores
e a autora, apesar de suas diferenças particulares, de certa
forma, se encaminham para pensar uma educação popular
no 3º sentido de povo – uma educação pública, inclusiva
e que possibilita a transformação social e individual do
povo visando a justiça social para todos. Com isso não
estamos dizendo que estes autores e esta autora nos apre-
sentam a concepção de “educação popular” no 3º sentido,
mas que ambos trazem elementos convidativos e provoca-
ções para pensarmos e reletirmos o contexto educacional
atual, suas demandas, suas discrepâncias e os sujeitos que
queremos formar.

Notas conclusivas

379
Os pensadores latino-americanos e a pensadora la-
tino-americana apresentados/a neste texto, apesar de suas
diferenças em termos do período histórico em que vive-
ram, das concepções pessoais em decorrência das vivên-
cias, do conceito de mundo, de educação, de sujeito e
tantas outras coisas que se diferenciam, contribuem para
pensar a educação do povo nos dias atuais.
Os elementos propostos pelos/pela autores/autora
são atuais e urgentes no nosso contexto contemporâneo.
Nesse sentido, destacamos como eles podem contribuir
para pensarmos uma educação popular ou uma educação
de qualidade para o “povo” (no 3º sentido), visto que eles
enfrentaram guerras, exílios e ditaduras, mas não desisti-
ram da educação do povo, de melhorar as condições so-
ciais, culturais e político-econômicas, mesmo dispondo
de poucos recursos não desistiram de lutar, pelo contrário,
uniram-se ao povo ensinando-o conhecimentos, saberes e
fazendo-o reletir sobre as condições que estavam postos
– dando-lhe poder.
Diante do momento tenebroso que vivemos – pós
golpe midiático-parlamentar –, ter os exemplos de luta de
Vasconcelos, Mistral e Freire – que não se renderam dian-
te das imposições governamentais – nos enche de espe-
rança para que consigamos superar esse momento e lutar
por uma educação para o povo (no 3º sentido) que atenda
às demandas particulares de forma diferenciada, pois as
demandas da educação indígena não são as mesmas da
educação campesina, assim como, não são as mesmas da
educação de surdos/as, da educação de cegos/as, da edu-
cação étnica-racial, etc.

380
Para além disso, precisamos continuar lutando por
uma educação pública de qualidade para todos (o povo),
que atenda às particularidades “diferencialmente” de to-
dos e que proporcione transformações sociais e indivi-
duais através da conscientização política e posicionamen-
to crítico frente às realidades postas.
Os autores e a autora contribuem no sentido de que
nos apresentam uma educação voltada para o povo, levan-
do em consideração as especiicidades de cada região, a
cultura popular e a necessidade de cada indivíduo, sem
deixar que ou impor-lhes uma educação verticalizada e
comum a todos que não respeita sua identidade, sua lín-
gua e sua cultura.
As provocações trazidas nos momentos de discussão
e leituras dos textos nos impulsionam a sermos revolu-
cionárias de nós mesmos e do meio que nos rodeia, nos
fazendo reletir e voltar nossos olhares para a contempo-
raneidade. A educação, nesse sentido, não deve privilegiar
poucos e marginalizar muitos. Precisamos de uma forma-
ção educacional que proporcione engajamento de discus-
sões políticas, sociais e culturais para a constituição de
uma educação popular (uma educação para o povo no 3º
sentido).

Referências
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383
PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS DE ELIZARDO
PEREZ EM FAVOR DE UMA EDUCAÇÃO INDI-
GENISTA A PARTIR DAS ESTRUTURAS-BASE
NUM DIÁLOGO COM FANON ONDE DISCORRE
SOBRE “A PELE NEGRA E MÁSCARAS BRAN-
CAS” UTILIZANDO A PEDAGOGIA DA PRÁXIS,
EM ORLANDO FALS BORDA
Benedito Leite de Souza Júnior. Mestrando/CNPq em Educação Contempo-
rânea (UFPE - CAA). Licenciado em Letras: Português e Inglês e respectivas
Literaturas pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP - 2012). benedito.sou-
zajunior@ufpe.br.

Resumo
Este artigo emerge de discussões em sala de aula, ministradas pela
Professora Doutora Allene Lage, quando nos ministrou um componen-
te curricular, dentro do luxograma de componentes do PPGEduc, no
CAA da UFPE e apresenta uma tentativa de relacionar o espírito revo-
lucionário do Pensamento decolonial latino-americano, em especial é
uma tentativa de entrelaçar as contribuições no campo de uma educação
para a libertação de moldes eurocêntricos, que geravam estruturas de
escravização, subserviência do povo latino-americano aos seus coloni-
zadores, que à guisa de antropofagia cultural, para além da dominação
física, estabelecia relação de poder sócio e cultural sobre populações
nativas. Por im, como realizo pesquisa no campo de tensões produzi-
das no espaço escolar, mediante discursos religiosos fundamentalistas,
que não favorecem à subjetivação de tantas quantas não se virem in-
sertas nos referidos moldes (eurocentristas), pior ainda se estendermos
essa análise a questões étnico-raciais, gênero e sexualidades que dis-
tõem das heteronormatizadas.

384
Palavras-chaves: Pensamento Crítico latino-americano. Antropofagia
cultural. Revolução. Pesquisa Militante.

Introdução
No atual contexto político mundial, e estreitando esse
horizonte no intuito de perceber o retrocesso que atravessa
o nosso país, nessa era de TEMER que forças conserva-
doras que ora se aglutinam e tramam a ruínas de inúmeros
projetos que visibilizem sujeitos e atores nas mais diversas
relações sociais, olhar para as contribuições de pensadores
latino-americanos, só reforça a necessidade de a partir de
nossas relexões, debates, aulas e encontros acadêmicos,
procurarmos mediante saídas concretas e revolucioná-
rias, meios de quebra de paradigmas, aqueles naturaliza-
dos dentro de um contexto de colonização, de importa-
ção de modus vivendi europeu e imposto pela dominação
do capital hegemônico, como o izeram tantos outros que
nos precederam. Nesse sentido nos apropriaremos das
contribuições de Orlando Fals Borda, Elizardo Pérez e
Frantz Fanon.
Elizardo Pérez nasceu em 6 de novembro de 1892,
em Ayata, província Muñecas do Departamento de La Paz,
e faleceu em 15 de setembro de 1980 aos 88 anos. No ano
de 1909, ingressou à Escola Normal de Sucre, logo se co-
locou entre os primeiros Mestres, lecionando nas escolas
urbanas e vindo a ocupar o cargo de inspetor de Escolas
Provinciais.
No início dos anos 30 é designado Diretor da Esco-
la Rural de Miralores em La Paz, porém, apenas 15 dias
passados de sua nomeação ao cargo, renuncia ao mesmo

385
por perceber incompatibilidade com seus pensamentos pe-
dagógicos que já se dirigiam à Escola do “Índio” e à defe-
sa de que essa escola deveria se estabelecer no coração das
comunidades e não em solo “branco” com as exigências e
mutilações culturais em geral que a escola oicial impunha
aos camponeses e inicia uma militância por uma escola de
dentro da comunidade para fora de suas estruturas físico-
-culturais. Uma escola onde os componentes curriculares
não servissem a nenhum tipo de alienação nem engessa-
mento nas formas de interação social e que não favore-
cessem a socialização de saberes empíricos, hauridos da
prática cotidiana e que se reverberassem nas conquistas
pessoais e coletivas.
Certamente as ideias de Pérez foram um marco na
História da Educação Boliviana, quando o mesmo sai da
zona urbana e se propõe a realizar investigações em popu-
lações indígenas e camponesas com a intenção de construir
um processo educativo cujos protagonistas fossem os pró-
prios sujeitos e as ideias fossem geradas numa perspectiva
de busca de resigniicação do cotidiano, empoderamento
e autoestima. Nessas idas a campo, Pérez se dirige a algu-
mas populações circunvizinhas ao Titicaca e se interessa
por Warisata e é com essa população que vê seu projeto de
uma escola indigenista, como a incubadora de um projeto
revolucionário e ao mesmo tempo grandioso em ousadia e
em ganhos sociais.
Quando falamos experiência revolucionária identi-
icamos o fato do pensamento de Pérez compreender que
uma educação que fosse satisfatória aos indígenas seria
não simplesmente uma escola onde se estudasse as disci-

386
plinas de um currículo descontextualizado de suas vidas,
nem apenas ler e escrever, não aquela escola que avalia os
alunos sob esses critérios positivistas e seguindo as lógi-
cas capitalista e neoliberal, mas que fosse uma escola ativa
conectada com a vida e que servisse de suporte à vida,
uma escola cuja inalidade em suma seria um favorecer
com que todos tivessem o seu processo de libertação.
Não é de se espantar que o Presidente Germán Bush
decretou que em homenagem à data de inauguração da Es-
cola de Warisata (2/08), se comemorasse o Dia do Índio,
“ad aeternam”. A força do Pensamento Pedagógico de Pé-
rez logo se expandiu pelo país inteiro e inluenciou outros
países como Peru, Guatemala, Equador e outras escolas
noutros países da América.
Um fato notório é percebermos que a Escola de Wa-
risata, como pretendia ser um modelo revolucionário, o
governo e as outras frentes de incentivo educacional, meio
que deixaram de mão a responsabilidade com os provi-
mentos e angariação de fundos que servissem à manuten-
ção das atividades e o funcionamento mesmo dessa esco-
la, porém, graças a um grande espírito de colaboração e
comprometimento, que eram características daquele siste-
ma, mediante esforços coletivos de todos, vendas de pro-
dutos manufaturados, pôde-se conseguir fundos que eles
destinaram a construções, melhoramento das estruturas,
aquisição de materiais didáticos, etc.
Se de uma lado o pensamento pedagógico de Pé-
rez trouxe novas perspectivas às populações indígenas e
camponesas, do outro podemos deduzir das perseguições
e tentativas de aniquilamento dessas ideias, bem como

387
uma torcida para o fracasso e infecundidade das mesmas,
pois é mister que notemos que se trata de uma luta pela
não-subserviência à coroa espanhola e também ao regime
republicano que se constituía numa lógica idêntica ou qui-
çá mais desumana, de agressão, subjugamento e supres-
são identitária dos povos latino-americanos, que in gene-
re sempre conservavam uma natureza ingênua frente às
atrocidades do movimento antropofágico, sua cosmovisão
distinta do “homem branco”, sem perpetrar as tormentas
do ceticismo e racionalidade, mas uma experiência feno-
melogógica e uma relação de fé numa(s) divindade(s) que
tudo lhes providenciará, a relação natural com a mãe terra
e o irmamento que representava a instabilidade divina,
bem diferente da compreensão do europeu que objetivava
a terra como âmbito de exploração e Deus como algo dei-
nido, dogmatizado, sem o devido detalhamento das nobres
visões panteístas que os índios tinham da natureza que
os levavam a estabelecer vínculos altruístas, embasados
numa postura de humildade diante da diversidade natu-
ral, livres de materialismos tão próprios dos pressupostos
implementados pela cultura de dominação. Daí podemos
inferir toda a violência que uma educação arranjada sob os
moldes positivistas e que desconsiderasse esses aspectos
relacionais poderia trazer ao nativos do continente latino.
Pérez, com sua escola, obteve que esse espírito in-
dígena se perpetuasse, que esse ethos se munisse de novo
vigor, trouxe graças ao incremento de seus estudos junto
àquelas populações indígenas, ao ouvir delas, sentir de-
las, um novo enlace entre as tradições e as possibilidades
ofertadas pelo devir das ciências e avanços nos estudos no
campo da educação, cumprindo assim com uma função de

388
sustentação histórica, visibilizando, empoderando perso-
nagens da historicidade nacional, sem as hierarquizações
oriundas de critérios sócio-econômico-étnico-raciais.
Um outro pensador que norteia nosso artigo é o Frantz
Fanon (Fort-de-France, Martinica, França 20/07/1925
a 6/12/1961 em Bethesda, Maryland, EUA), um revolu-
cionário, estudou psiquiatria, ilosoia, sua obra inluen-
ciou muito os pensadores revolucionários dos anos 60 e
70. Após o contato com os estudos de Edward Said, seu
pensamento assume uma postura cada vez mais voltada à
teoria crítica e marxismo, bem como enceta pelo caminho
de relexões e estudos pós-coloniais, pensador humanis-
ta que foi radical na elaboração e explanação de concei-
tos que versavam sobre a psicopatologia da colonização.
Homem de luta, que se pôs a apoiar o combate argelino
por independência e toda sua vida e obra incitaram mo-
vimentos de libertação anticolonialistas, por pelo menos
40 anos. Vivenciou na “carne” o preconceito racial, por
ter nascido na Martinica à época, colônia francesa e pos-
suía miscigenação com os antepassados negros africanos e
que mesmo por ter ascendência “branca” era inferiorizado
pela questão de sua cor de pele e ancestralidade, o que lhe
punha num “status” social subalternizado em relação aos
demais íncolas. Que mesmo tendo sido ‘criado’ ouvindo
que era francês, quando deixa a Ilha e segue para o con-
tinente europeu, experimenta a xenofobia, já que para os
franceses, ‘brancos’ europeus, ele não era visto como tão
francês quanto tinha crescido ouvindo. Esse impacto gera
nele uma problematização e uma crise de identidade que
o leva a buscar responder a si mesmo e depois a muitos
daqueles que sofriam a mesma forma de tratamento pelo

389
fato de terem nascido na Martinica, que foi o fato de ele
querer compreender o conceito de universalidade, o que
signiicava ser francês do ponto de vista da França, ser
francês seria universal? O que seria ser universal? Qual
o(s) critério(s) para ser francês? Ao que a essas indagações
ele argumenta que o critério seria ser ‘branco’. Daí a fusão
de seus estudos com a psiquiatria, com o existencialismo
e o marxismo.
Fanon tinha uma máxima interessante que se aplica
perfeitamente aos dias atuais que não basta mudar nossa
visão de mundo, mas deve-se mudar o mundo, o que vai
de encontro ao pensamento de Pérez quando concebe que
a luta, a revolução não é apenas num campo ilosóico e
abstracional, mas no campo da práxis, das interações so-
ciais, portanto, se relaciona com a moral, com questões
ontológicas, mas que têm fortes marcas no cotidiano so-
cial.
Sua luta enfatiza questões sobre racismo étnico-ra-
cial, que em diversas ocasiões de sua vida teve de se render
alienadamente às práticas racistas das tropas do exército
alemão, no rendimento da França no ano de 1940, quando
essas tropas abertamente institucionalizavam o racismo, a
cultura do estupro e toda sorte de amoralidades. Toda essa
situação o leva a ocultar sua alienação e pesar pelo trata-
mento colonial francês. O branqueamento que o mesmo
vivenciou quando se alista nas forças armadas francesas
e toda subserviência por causa de sua origem, fazem de
Fanon um apaixonado questionador dessas condutas colo-
niais e abrem os horizontes à crítica e à insatisfação.
De seu pensamento pedagógico, podemos situar al-

390
gumas ideias basilares que se organizariam em 3 postu-
lados que ele os deine e expõe na sua obra, a princípio
rejeitada pela academia e depois considerada a sua mais
inluente obra e contribuição no sentido de fazer essa de-
núncia ao racismo, “Pele Negra, Máscaras Brancas”. Nes-
se texto Fanon conclui que a absorção de culturas ou ideo-
logias dominantes por parte dos povos submetidos produz
resultados patológicos, não só a nível social, mas também
individual, ainda que a substituição de formas discrimi-
natórias que se observa nas relações sociais, são o produ-
to da expressão de novas formas culturais e políticas que
emergem nos/dos grupos subalternizados e ainda chama
atenção para o poder de catarse dessa violência revolucio-
nária, que somente a violência poderá libertar totalmen-
te do legado da sugjugação, excluíndo os sentimentos de
inferioridade e gerando consciência de controle sobre o
próprio destino. Uma contribuição importante que se per-
cebe após a obra de Fanon, foi o surgimento de movimen-
tos militares e dentro da comunidade cristã, onde se viu
grupos que se diziam paciistas, como um que surge em
Iona (Escócia) de cunho cristão, que se deinia entre como
frente de oposição cultural e política e que tinham como
pano de fundo a luta pelo racismo. Outras inovações des-
ses estudos abertos por Fanon foi estabecer pressupostos e
fundamentos que se desenvolveram de forma cientíico-a-
cadêmica, como os referidos estudos de psicologia crítica,
pós-colonialismo ainda questões sociais, como movimen-
tos que lutavam pela igualdade de gênero (feminismo), os
movimentos de/por libertação, pela reinvenção do homem
reforçada a posteriori por Che Guevara, quando concebia
a ideia de que para atingir o status do homem novo, se-

391
ria necessário abstrair conceitos da obra de Fanon quando
apresentava o signiicado de nova consciência derivada do
socialismo e que o papel da violência seria o de instrumen-
talizar a própria violência como um mecanismo terapêu-
tico cuja inalidade última seria gerar a mudança cultural.
Fanon se debruça nos estudos no campo da Reli-
gião também no sentido de trabalhar questões de poder e
destruição das identidades culturais, por concepções que
iam desde a um desprestígio de algumas culturas a uma
superexaltação de outra(s) que levava consequentemente
a um processo desigual de valoramento por questões de
avanços na ciência e tecnologias, e que em maioria advi-
nham do continente europeu. Ele se detém a estudar o Islã
e a relação dos crentes com Alah e suas interrelações. A
partir dessas conclusões, ele abstrai que a violência é mais
que uma expressão cultural, mas se transformava quase
que em um fervor religioso, que essa violência era im-
posta não aos poderes coloniais, mas contra todos aqueles
que não assimilavam, mesmo que às vezes fosse impossí-
vel essa assimilação, os contratos sociais e se opunham às
manifestações culturais dominantes e estabeleciam novas
maneiras de uso no vestuário, gêneros artísticos. Propon-
do que qualquer tentativa de visão/ões para além daque-
la(s) que a religião dominante oferecesse seria alheia aos
valores islâmicos e, portanto, considerados anormais e
deslocados.
Fanon examina e denuncia a negação do racismo
contra o negro na França, faz um acompanhamento de toda
a diáspora africana e comprova que uma fala naturalizada
nas décadas de 60 e 70 que dizia que a aquela ideologia

392
que ignora a cor da pele pode apoiar o racismo que nega a
existência dessa cor.
E, por im, queremos ainda relacionar com os dois
pensadores anteriores o grande contributo de Orlando Fals
Borda, Barranquilla 11/07/1925 a 12/08/2008. Foi um in-
vestigador e sociólogo colombiano, colabora com a fun-
dação de uma das primeiras Faculdades de Sociologia da
América latina, dentro da Universidade Nacional da Co-
lômbia, foi seu primeiro reitor, criou um método de in-
vestigação qualiicativa que pretende não apenas conhecer
as necessidades sociais de uma comunidade como tam-
bém favorecer mediantes esforços concretos e coletivos a
transformação da realidade, esse método foi denominado
de (IAP), Investigação-Ação Participativa.

Justiicativa
O grande salto essencial dado pelos estudos quali-
tativos desenvolvidos por Borda foi justamente ao enlace
feito das questões sociológicas com o compromisso po-
lítico que priorizem as classes subalternizadas em ques-
tões econômicas ou pela falta de acesso às políticas públi-
cas, por exemplo, camponeses, e especialmente os mais
pobres, e sua importância se dá justamente no campo da
práxis, quando conigura o desarranjo social como uma
incoerência no campo prático de implementação de bene-
fícios que vai de encontro às resoluções ou nivelamento
de problemas sociais, considerando que quem mais sofre
sempre é o mais desfavorecido, e, graças à investigação
tem-se acesso a toda uma cascata de motivos ao longo do
processo de colonização que deinem um status social,

393
como raça, cor, religião, condição sócio-econômica, etc.
Ele propõe um impacto com uma nova realidade que ex-
trapolou a compreensão pelo viés hermético e pela ótica
colonialista. Homem de revoluções e iniciativas políticas
de esquerda, fundador de partido, homem de diálogo com
o catolicismo sob a égide da hermenêutica da Teologia da
Libertação.
Assim como os outros pesquisadores vistos nesse ati-
go, a saber: Pérez, Fanon, Borda também vão corroborar o
sentimento de alienação do indivíduo e vão trabalhar com
a concepção de que mesmo que haja consciência de toda
a trama social e deina inimigos à constituição identitária,
mas se não há os meios de possibilidade de constituição de
sujeito de sua própria história, o indivíduo vive enredado a
um processo de alienação social e que só a descolonização
se apresentará como saída dessa manipulação discursiva e
operará no indivíduo essa subjetivação como dono de seu
destino, sem amarras e algemas do pensamento colonia-
dor.
Como contribuições dessa corrente pesquisadora
que se baseia no método de Borda de Investigação-Ação
Participativa, e formula uma crítica à razão moderna co-
lonial encontramos as análises de conteúdos pedagógicos
no sentido de intuir o cunho participativo das Pesquisas e
nos mostra duas importantes noções sobre a necessidade
das Pesquisas, compartilhar e estudar com mais eicácia a
partir da realidade, frustrar o cientiicismo eurocêntrico,
nos revela a pertinência da educação contemporânea.
Todas essas pesquisas e estudos encontram sua per-
tinência no diálogo com vários outros estudos. Já que es-

394
pecialmente no contexto sócio-político que vivemos atual-
mente no Brasil, nesse estado de golpe de estado, tomada
de poder por frentes repressoras e conservadoras que só
levam em consideração ricos e substituem novamente os
mecanismos dos colonizadores, padronizando modelos,
em geral provenientes de classes dominantes e, execran-
do aqueles que não se enquadram no jogo eurocêntrico.
Seria importante fazer a relação dessa forma de educação
popular, camponesa, indigenista, asexista, laica com de-
colonização justamente para gerar em nós novas formas
de resistências, novas burlas aos sistemas totalitaristas,
unilateralistas, monótipo que ameaçam a todo instante fa-
zer eclodirem aqueles processos de violência institucio-
nalizada pelas colonizações e põem em risco toda uma
plêiade de estudos e avanços nesses campos de relexão
de identidades e subjetividades e que só trarão prejuízo às
nossas Pesquisas, uma vez que correm o risco de serem
deslegitimadas por deliberações políticas patrocinadas por
grupos que sempre se mostraram relutantes ao diálogo, ao
respeito à população de forma equânime e universal.
Poderíamos nos perguntar qual o estilo de educação
se quer atingir? E ainda, quais serão efetivamente as con-
tribuições desses estudos feitos por Pérez, Fanon e Borda
e tantos outros para o campo teórico da educação e para o
surgimento de posturas e pensamentos pedagógicos pós-
-colonialistas?
Certamente que aí se funda uma razão epistêmico-
-política de ser desses estudos uma vez que os mesmos
abrem caminhos investigativos quando se trata de analisar
à luz desses estudos que questionam o lugar de determina-

395
dos sujeitos os grupos na sociedade em geral ou em algum
outro grupo especíico, facilitando a imersão em regiões
do discurso, regiões dantes jamais imaginadas por ques-
tões de proteção, de estuturas discursivas hegemônicas,
plasmadas a divinis e naturalizadas no ethos.
Tendo tentado relacionar essas contribuições revo-
lucionárias do pensamento pedagógico latino-americano
com a pesquisa que venho desenvolvendo e sensibilizado
na minha pós-graduação, aqui no Ppgeduc, na UFPE/Caa,
que versa sobre questões de (im)possibilidade de constitui-
ção de identidade de gênero/cultural/religiosa de algumas/
uns indivíduos no espaço escolar por questões de norma-
tização e naturalização de concepções herdadas pelas tra-
dições judaico-cristãs e que por causa de um proselitismo
hegemônico institucionalizado das religiões de viés cris-
tão tornam inviável a constituição dessas identidades tidas
como patológicas, como anormais, como reprováveis no
quesito moral cristão, quando na verdade essa forma de
tratamento só distancia a educação de seu objetivo que é o
de libertar e pleniicar o indivíduo.
As releituras incessantes feitas na modernidade por
estudiosos, análises de práticas cotidianas, bem como são
encaradas as minorias identitárias ao longo de toda a His-
tória Social provocaram pertinentes debates sobre temas-
-tabus, inluênciados por alguns discursos que regulam,
controlam a moral social, a práxis social, sob inluência,
velada ou latente, de uma postura castratória da Igreja ou
de frentes que exercem poder, tem possibilitado um fei-
to positivo e mobilizado setores dos mais variados na so-
ciedade, cada vez mais aberta aos diálogos; mais inquie-

396
ta diante de algumas proposições e teorias plasmadas ao
longo de todo um processo histórico. Leituras que deram
lugar a relexões e revisões de posturas institucionais pe-
rante determinados sujeitos, que desde sempre foram in-
visibilizados e, graças a isso, legitimaram suas reivindica-
ções por equidade e reconhecimento.
O fato de esses sujeitos terem obtido dado reconhe-
cimento de sua diferença, de sua posição especíica em
meio a um formato ideológico e a um aparelhamento
político regulador, forçosamente conduziu a Educação à
necessidade de gerir um plano pedagógico no qual essas
subjetividades fossem consideradas e quiçá, estimuladas,
mesmo num ambiente cuja tendência é a tentativa de uni-
formização dos sujeitos, onde o padrão eurocêntrico de ser
e agir é o hegemônico, isto é, o ser hétero, branco, cristão,
e cristão-católico romano, e, que de preferência resida nos
centros europeus.
Toda essa abertura da sociedade em relação às de-
mandas desses sujeitos representaram um clamor de um
setor que sempre se viu à margem de um peril ideal à
religião, ao comércio e às mais simples situações sociais,
visto serem postos como minorias identitárias, os exóti-
cos, os estranhos, os de fora. Estes grupos sociais deman-
daram, historicamente, visibilidade e reconhecimento de
suas identidades.

As muitas formas de fazer-se mulher ou homem,


as várias possibilidades de viver prazeres e dese-
jos corporais são sempre sugeridas, anunciadas,
promovidas socialmente (e hoje possivelmente
de formas mais explícitas do que antes). Elas são
também, renovadamente, reguladas, condenadas

397
ou negadas. Na verdade, desde os anos sessenta,
o debate sobre as identidades e as práticas sexuais
e de gênero vem se tornando cada vez mais aca-
lorado, especialmente provocado pelo movimento
feminista, pelos movimentos de gays e de lésbicas
e sustentado, também, por todos aqueles e aquelas
que se sentem ameaçados por essas manifestações.
Novas identidades sociais tornaram-se visíveis,
provocando, em seu processo de airmação e dife-
renciação, novas divisões sociais e o nascimento
do que passou a ser conhecido como “política de
identidades” (LOURO, 2000, p.4).

Graças a movimentos sociais e lutas empreendidas


por liberacionistas feministas e gays e ao da Revolução
Sexual, surge às margens do movimento feminista bran-
co e de classe média, assim também como às margens do
movimento gay branco e de classe média, um outro mo-
vimento que reclama notoriedade, o movimento ‘queer’,
dando conta do substrato feminista-gay ainda sob rechaço,
sujeitos como os portadores de HIV+, negros, imigrantes
latinos e de outras nacionalidades, proissionais do sexo e
pessoas de ideologias políticas de esquerda.
A própia retirada da homossexualidade, da lista de
enfermidades da Sociedade Psiquiátrica Estadunidense
em 1973, e estudos sobre sexualidades começam a emer-
gir, Michel Foucault na sua história da sexualidade, em
sua vontade de saber (1998, 1999), trabalha um ponto bas-
tante pertinente a essa pesquisa, que é a compreensão de
uma nuance consideravelmente importante da genealogia
do sujeito: sua sexualidade.
Os aspectos políticos-sociológicos desse novo reor-
denamento das identidades sexuais numa perspectiva de

398
subjetivação, atingiram de cheio a Educação e suas Ins-
tituições ains, provocando debates, suscitando desloca-
mentos e subversões de paradigmas.
No Brasil, essas pesquisas decolonialistas trazem à
tona relexões sobre hermetismos, sobre hegemonias, e,
consequentemente, de opressão e negação dos sujeitos do
lado oposto ao dominante-dominador, das margens.
Pesquisas realizadas sobre a evasão de sujeitos do
coletivo LGBTQ, numa perspectiva de aplicação de prá-
ticas educativas suscitadas pelo Programa de Desenvol-
vimento Educacional (PDE, 2006), apontam essa evasão
como um produto decorrente de situações de preconceito
e discriminação de gênero.
Em seu artigo Corpo, Escola e Identidade, Guacira
Louro (2000) argumenta em favor de um reposicionamento
no qual esse corpo esteja em harmonia com as concepções
culturais, que partam desde o ponto de vista da biologia ao
construcionismo social. E reitera como consequência da
invisibilidade de algumas identidades, algumas gozarem
de privilégios, legitimidade, autoridade; outras serem re-
presentadas como desviantes, ilegítimas, alternativas.
Há entre o conjunto dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), os chamados Cadernos de Temas Trans-
versais, publicados pelo MEC em 1998, e que até o mo-
mento ainda são a única referência oicial sobre questões
de gênero em âmbito educacional. Isto só aponta para uma
necessidade cada vez premente de nós, educadores, consi-
derarmos o grande número de estudantes que traz consigo
a comunidade escolar, seus sonhos, suas frustrações e in-

399
compreensões socioafetivas e que esperam que na escola
possam eles ser acolhidos com a devida atenção e que se-
rão sujeitos de direitos e deveres como todos.
Grande relevância às relexões sobre as constituições
de gêneros, os processos educativos, práticas pedagógicas
realizadas por Louro; Butler; Scott; De Lauretis e muitos
outros e outras izeram emergir debates sobre a necessi-
dade de se elaborar práticas não sexistas e que pudessem
combater o ciclo de desigualdades e sublevação de gênero.
Todavia, isso ainda está em status de andamento e muito
precisa ser feito e reletido, sopesado e aplicado com pro-
cedimentos razoáveis e teórico-metodológicos que ope-
rem numa perspectiva de respeito e equilíbrio (LOURO,
2004a, p.110-127).

Já se disse, muitas vezes, que sem a sexualidade


não haveria curiosidade e sem curiosidade o ser
humano não seria capaz de aprender. Tudo isso me
leva a apostar que teorias e políticas voltadas, ini-
cialmente, para a multiplicidade da sexualidade,
dos gêneros e dos corpos possam contribuir para
transformar nossos modos de pensar e de apren-
der, de conhecer e de estar no mundo em proces-
sos mais prazerosos, mais efetivos e mais inten-
sos. (LOURO, 2004b, p. 72; 2004c, p. 28).

Metodologia
Mediante o que foi exposto, a preocupação que se
nos atravessa enquanto educadores para além de uma edu-
cação sexista é saber como estão sendo preparados esses
educadores para recepção dos alunos integrantes do co-
letivo LGBTQ. E ainda compreender como esses alunos,

400
identiicados com essa temática por questões ontológicas
se sentem enquanto sujeitos do devir e, nós, educadores,
simplesmente como poderemos nos posicionar, no sentido
de mostrar uma prática educativa que seja capaz de trans-
por os dogmas religiosos, os pontos especíicos de deter-
minado doutrinamento, e/ou os regimentos hegemônicos
e culturais em detrimento desses sujeitos que reclamam
para si, visibilidade, reconhecimento e valorização.
Daí surge o anseio de querer conhecer como se dá a
constituição das identidades de gênero no âmbito escolar
frente a questões dos doutrinamentos religiosos, e/ou os
regimentos hegemônicos e culturais.
Como professor da rede estadual e municipal de en-
sino na cidade de Caruaru, estado de Pernambuco, tenho
conhecimento de que o único documento oicial direcio-
nado a essa temática em nosso estado é o de “Orientações
Curriculares em Educação em Direitos Humanos” que
designa um eixo temático com “Promoção da igualdade
entre gêneros e diversidade sexual”, apresentando apenas
sete páginas destinadas a tais orientações.
Nesse sentido, será capital uma mais acurada análise
a im de que se identiiquem quais discursos atravessam
essa constituição de identidades. Qual discurso predomi-
na? Há inluência de um discurso religioso? Se há, de que
forma ele contribui para essa constituição? Ele opera no
sentido a favorecer uma acolhida numa perspectiva de va-
loração dessas subjetividades ou se manifesta através de
uma prática pedagógica punitiva?
Para essas análises serem expressivas, os pesquisa-

401
dores, geralmente dispõem de vasto instrumental que lhes
possibilite um estudo de seus objetos com mais enfoques,
sob distintas nuances e perspectivas. Esse artigo mediante
o uso de uma pesquisa qualitativa, tenciona contemplar
a uma relexão séria com o coletivo de alunos LGBTQ,
considerando as relações entre estes e seu entorno, bem
como as implicações comportamentais e psicológicas, fa-
zendo esse elo perfeitamente pertinente, “isto é, um víncu-
lo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade
do sujeito que não pode ser traduzido em números” MI-
NAYO, 2007).
Esse artigo pretende nos oferecer uma lente a nos
fazer perpetrar com mais acuidade as interpretações dos
fenômenos sociais, dando-nos assim meios de atribuir sig-
niicados a esses fenômenos e reconhecê-los como par-
te muitas vezes integrante, outras como fundamentais às
constituições de um sujeito, de uma identidade, de identi-
dades lutuantes, de identidades de um devir. O processo
traçado pela(o) pesquisadora/or à coleta deve atentar à di-
namicidade e adaptabilidade que lhe são próprias, visto ser
um assunto delicado, muitas vezes silenciado por questões
de tabus, preconceitos, visões religiosas e morais. Sem se
prender a quantiicar os sujeitos, apenas sendo interessan-
te traçar uma análise global, sem debandar para estatísti-
cas e tecniicismos, visando compreender a qualidade de
vida e permanência na escola de indivíduos que integram
o coletivo LGBTQ, numa perspectiva de valorização des-
sas identidades e empoderamento delas mesmas.

Análise e resultados

402
Sendo o ambiente natural, a escola, a fonte direta
para coleta de dados e a(o) pesquisadora/or é o instrumen-
to-chave, faz-se necessário uma descrição da realidade, le-
vando em conta todo um mapa da angústia e complicações
experienciadas nos processos de adaptação aos grupos so-
ciais, pelos quais passam esses alunos. O processo e seu
signiicado são os focos principais de abordagem (LAKA-
TOS et al, 1986).
Este artigo segue a linha teórica dos estudos pós-
-estruturalistas do discurso (LACLAU; MOUFFE), dos
estudos sobre gênero e sexualidade ou pedagogia queer
(LOURO; BRIZTMAN; BUTLER) e dos estudos cultu-
rais (OLIVEIRA, Anna; SILVA, Tomaz Tadeu;).
Assim sendo, é interessante que se analise à luz da
teoria do discurso, de Laclau e Moufe, as implicações de
um dado discurso, no campo da Educação. As pesquisas
realizadas nesse campo, no Brasil, em meados de 1990,
graças a inluências de autores que abertamente rompiam
com certas visões tradicionais e formatadas sobre os dis-
cursos que atravessam a Educação, especialmente, gerou
um pensamento que recebeu o nome de pós-moderno, pós-
-estruturalista ou ainda pós-crítico (Backes; Pavan 2011;
Paraíso, 2004; Silva, 1999).
A teoria pós-estruturalista do discurso, contribuirá
no tocante a nos fazer entender que uma dada realidade
passível de análise, mesmo sendo uma realidade inves-
tigada pela ciência se produz discursivamente, sofre in-
luência considerável dos vários discursos que atravessam
essa dada realidade, bem como de seus “condicionantes
e mecanismos próprios do campo simbólico e político da

403
linguagem”.Daí termos em Laclau, um discurso que se
plasma e apresenta signiicados alternantes, de acordo com
sua constituição metalinguística e legado sociocultural.
A teoria supõe uma pesquisa mais rígida, divida em
fases bem delimitadas e se preocupa em levantar em que
condições e situações os discursos emergem, o que lhes
facilita dada manutenção.
Na Educação, os estudos de gênero/Pedagogia
“queer”, bem como a noção de escola cidadã que no dizer
de Paulo Freire é aquela escola que se assume como um
centro de direitos e deveres, espaços esses que oferecem
igualmente contribuições e provoca debates e mais deslo-
camentos, a escola como um lugar de fabricação de prática
cidadã, coerente com o discurso formador e libertador.
Indo de encontro aos estudos pós-estruturalistas e
à teoria do discurso de Laclau e Moufe, a teoria queer
emerge com a necessidade de airmar que a sexualidade
dos sujeitos sociais se constitui em processo dentro de rea-
lidades distintas e que os papéis sexuais não há em essên-
cia, nem de forma biológica, mas são variáveis, podendo
um indivíduo desempenhar um ou vários deles. A teoria
queer, possibilita abertura para análise de todos as formas
de atividades sexuais e problematiza bem como contesta
identidades tidas por “normais” e as “desviadas”. E os es-
tudos pós-coloniais dão novo escopo teórico-metodológi-
co e nos apresentam ferramentas que nos fazem rever todo
esse processo, não como objetos, mas sujeitos de nossa
própria história.

404
Considerações inais
Como vimos ao longo de todo o corpo do artigo, a
presença de um caráter revolucionário e inovador no bojo
do Pensamento latino-americano, indispensável a essa pos-
tura dominadora e violenta que acompanha a colonização,
a antropofagia cultural, a negação do direito à subjetiva-
ção, a alienação sistêmica pela qual passa os pertencentes
às classes menos favorecidas, e que o viés étnico-racial, as
questões de gênero e sexualidade, a ailiação ideológica e/
ou religiosa, contraem ao indivíduo marcas em sua sub-
jetividade e que essas marcas lhes indicarão caminhos de
escravização ou libertação, depende muito de um processo
educacional decolonial, que faça frente ante a vazão dos
discursos fundamentalistas, naturalizados e sustentados
por estruturas de poder, resquício do poder colonialista
que ainda retém nas estruturas de poder modernas, suas
iniltrações e por vezes dá o ordenamento às práticas edu-
cativas e sociais, que se impregnam no ethos.

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406
CHADO, D.W., Elizardo Pérez: Warisata – a escola
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407
A PEDAGOGIA DE ENSINO BRASILEIRO DEN-
TRO DE UMA PERSPECTIVA ATUAL: COM ANÁ-
LISES PRECEDENTES NOS ESTUDOS DE ANÍSIO
TEIXEIRA, PEDRO VARELLA E FLORESTAN
FERNANDES.
Hélida Suelen Cordeiro de Souza. Licenciatura em Letras (AEB-FABE-
JA/2009). Especialista em Língua Portuguesa (AEB-FABEJA/2011). Pedago-
ga (FAERPI/2015). helidasbu2@hotmail.com.

Resumo
O presente estudo desse artigo ajuíza-se com os olhares da atualidade
em perspectiva do momento social no qual a sociedade está inserida na
conjuntura vigente ao trabalho docente político e pedagógico suposto
que deveras tem um papel fundamental na construção das formações in-
telectuais dos discentes em tal momento no Brasil. Orientar toda as re-
lações de diálogo entre as políticas públicas e o cotidiano em sociedade
é permitir a real substância de formação sociopolítica de uma geração
inteira no princípio de respeito, empoderamento e construção do novo
de forma igualitária.
Palavras-chaves: Diálogo, conhecimento, desconstrução, empodera-
mento e história.

Introdução
O presente artigo visa dialogar com as fortes marcas
contemporâneas nos atuais contextos sócio educacionais
do Brasil. Com as contribuições de Anísio Teixeira, José

408
Pedro Varella e Florestan Fernandes visualizando as pro-
blemáticas existentes na modernizada conjuntura social
e educacional. Anísio Teixeira, Pedro Varella e Florestan
Fernandes são imagens encarnadas para o dialogar, com-
preender e discutir concretamente a perspectiva do conví-
vio de todos os brasileiros em âmbitos sociais e intelec-
tuais. No deslumbramento de uma equiparação de direitos
e igualdade de airmações apropriadas a toda a população
do país, sem convencionalismos preconcebidos por pa-
drões eurocentristas. Ter como suporte iguras que defen-
deram toda a luta por igualdade, qualidade e a equiparação
do ensino público de forma gratuita, obrigatória e laica. O
que os três autores aqui mencionados são catedráticos em
sua representatividade social de vida e atuação educacio-
nal e proissional. A situação do ensino público no Brasil
se revela de tal forma que não conhece os limites para a
imposição da subalternização dos indivíduos. Em tempos
de opressão disfarçada, forçando docentes a escolas sem
partido. Revela-se uma constante investigação na verda-
deira força e conhecimento do que é sistema de ensino
público hoje. O que desde que a instituição do ministério
educacional brasileiro fora criada tem-se a preocupação
com as relações de ascensão social por meio da educa-
ção. Por quem tem propriedade e plena ciência do assunto.
Para fortalecer as bases nacionais da educação. Houve-se
um trabalho inicial com iniciativas fortemente estabeleci-
das pela procura de solidiicar tais ideias, no ano 2006 fora
estruturado pela Ministério da Educação para propósitos
vindouros:

Para concretizar esse propósito, o Ministério da


Educação instituiu Comissão Técnica em 2006,

409
composta por representantes do MEC, de institui-
ções educacionais, de universidades e da Unesco
que, após longas reuniões, chegou a uma lista de
trinta brasileiros trinta estrangeiros, cuja escolha
teve por critérios o reconhecimento histórico e o
alcance de suas relexões e contribuições para o
avanço da educação. No plano internacional, op-
tou-se por aproveitar a coleção Penseurs de l´é-
ducation, organizada pelo Inter national Bureau
of Education da Unesco em Genebra, que reúne
alguns dos maiores pensadores da educação de to-
dos os tempos e culturas. (IBGE).

Podendo tomar posse do comprometimento, de quem


dedicou suas vidas em tão alto grau para a nobreza do sis-
tema, que pudesse elevar uma nação de forma igualitária
ao verdadeiro encontro com sua identidade, sem amarras
colonialistas. Sabe-se que todos os autores aqui citados
comprovam toda a vontade de reconhecimento ao proces-
so educacional como a verdadeira evolução da sociedade
como um todo.

Discussão teórica: bases da história do ensino no Brasil


Erguendo-se a dialógica com vista em alicerces so-
lidiicados na história é reconhecer-se dentro da luta. E a
busca pela valorização latino-americana no sistema de en-
sino público nacional e em conglomeração ao continente.
A sociedade e sistema educacional estão em construção
profundamente paralelas.
O Brasil dentro de toda a dimensão latino-america-
no é, entretanto, um país com bases coloniais densamente
marcantes na formação do contexto social educacional do
óculo contemporâneo. Tendo a visão de educação pauta-

410
da nas realizações de uma verdadeira construção do novo
que circula por mais de 500 anos. Nunca fora reconhecido,
tem um papel decisivo na convivência dos processos de
solidiicação da verdadeira identidade latino-americana.
O estado federativo tem como meta estabelecida desde a
colonização efetivar tal subalternização das massas, não
restando saída opcional para os verdadeiros direitos cons-
tituídos. O que vem reforçar essa ideia de imposição Flo-
restan:

A estabilidade e a evolução do regime democrá-


tico estão exigindo a extensão das inluências so-
cializadoras da escola às camadas populares e a
transformação rápida do estilo imperante de tra-
balho didático, pouco propício à formação de per-
sonalidades democráticas. (FERNANDES, Apud
SAVIANI, 2006).

Com esse pensamento de desenvolver as teorias de


busca pela qualidade e juntamente à efetividade do ensino
público igualitário, Florestan Fernandes iniciou as ativida-
des de realizar as práticas para tal contextualização educa-
cional no Brasil. Sem mencionar os contrapontos das polí-
ticas educacionais existentes, totalmente conservadoras e
elitizadas. Defrontar-se com essa realidade é compreender
que barreiras deverão ser quebradas e estereótipos deve-
rão ser vencidos, com maneiras igualitárias e emancipado-
ras dos indivíduos. Com desígnio de determinação sobre
a perspectiva da escola pública, Florestan empenha-se na
solidiicação da lei de diretrizes e bases da educação na-
cional por volta de 1959, ação que revela a alma de reco-
nhecimento de causa e apropriação dos demais indivíduos
de poucas oportunidades sociais:

411
O meu estado de espírito fez com que o professor
universitário falasse em nome do ilho da antiga
criada e lavadeira portuguesa, o qual teve de ga-
nhar a sua vida antes mesmo de completar sete
anos, engraxando sapatos ou dedicando-se a ou-
tras ocupações igualmente degradadas de maneira
severa, naquela época. (FERNANDES, 1996, p.
84).

Com supremos vínculos volvidos neste contexto de


linha histórica, retornar a outro ideário de vocação deter-
minada a estabelecer mediações concretas com igualdade
de direitos por um ensino público, igualitário e laico.
Percebe-se toda a fecundidade e extrema necessida-
de de Fernandes em suas pesquisas amparadas em implan-
tar um sistema de ensino público, para a população. E com
este formato, favorecendo todas as classes sociais. Fer-
nandes trata de maneira enérgica que toda essa visão era
crucial para o entendimento de todos dentro de um cunho
primordial em suas pesquisas:

Pela primeira vez em minha vida era provocado a


deinir a consciência burguesa em termos de uma
equação concreta, que me ensinava que o contro-
le burguês da sociedade civil estava bloqueando
e continuaria a bloquear de modo crescente, no
Brasil, a revolução nacional e a revolução de-
mocrática de recorte especiicamente capitalista.
(FERNANDES,1966. p. 84).

Dentro das perspectivas que avançaram toda a eco-


nomia social do Brasil durante os últimos 15 anos, foi pos-
sível perceber a crescente autonomia inanceira dos cida-
dãos, o que reforça as ideias no livro de Meirelles:

412
Censo Empresarial de 2010, a Rocinha tinha 130
mil habitantes e aproximadamente 6 mil, em-
preendimentos, a maior parte deles atuando na
informalidade. Considerados os moradores que
trabalham, a Rocinha é a favela campeã em em-
preendedores,10,1% contra 8,5% no Alemão.
(IBGE, 2015).

Fernandes em toda sua vida acadêmica de pesquisa-


dor sempre desenvolveu a ideia de que a presença intelec-
tual na vida dos cidadãos seria a única e exclusiva coni-
guração de conceber a absoluta fórmula de fazer crescer as
inúmeras esferas da sociedade brasileira. Com isso, anali-
sou as políticas públicas atreladas às ciências sociais como
respaldo ideológico:

A ciência e a tecnologia cientíica revoluciona-


ram, por sua vez, as bases materiais e morais da
existência humana. Elevaram, simultaneamen-
te, o padrão de conforto e o nível de aspiração
do homem, ixando alvos completamente novos
para o processo educacional. [...] (FERNANDES,
1966:102).

O enfoque de todo trabalho cientíico era voltado a


sua curta vida estudantil que aos 9 anos teve que parar de
estudar para dedicar-se aos afazeres domésticos, contudo,
considerava que os professores haviam cumprido o seu
ofício, enquanto educadores. O mais especial desse papel
docente seria o amor pela leitura

porque no desespero de romper a castração cultu-


ral invisível foi por aí que eu próprio abri o meu
caminho, formando uma curiosa cultura letrada,
que ia do Tico-Tico à literatura de cordel, aos

413
livros de piada, e a uma variadíssima literatura
“erudita”, na qual prevaleciam os livros didáticos
e de história, vendidos nos sebos, e os romances.
Se a cidade continha alguma civilização, eu me
tornei seu adepto e seu ailhado pelo autodidatis-
mo (Fernandes, 1977, p. 146).

Uma visão bastante atenta sobre a importância, por


mais que curta, dos professores por Fernandes faz ver o
quanto é entendedor dessa função na sociedade. A de-
monstração de amor pela a educação por parte dele era a
paixão despertada pela literatura. O enfrentando de dian-
teira a todas as diiculdades que de quem poderia estar re-
presentando toda a população nacional.

Incluir que não é fácil, ser vocacionado a educação em


si
Dentro de observação cabal do trabalho de Anísio o
que falta para o ensino contemporâneo é a efetiva e acio-
nária vocação dentro da conjuntura sócioeducacional. As-
semelha-se Anísio Teixeira ao ser também representante
mártir, desse painel de pensamento de igualdade e na qua-
lidade do ensino público no Brasil. O reconhecimento e
adequação de que os investimentos devem e podem ser re-
vertidos em fundos de representação para educação inin-
terruptamente fora ideário de Anísio, onde ele airmava
que não existe estado democrático sem educação demo-
crática. Airmou Anísio ao dizer:

Os nossos deveres para o povo brasileiro estão,


assim, a exigir que demos primeiro à educação
adequada às classes populares, a im de lhes au-
mentar a produtividade e com ela o seu nível de

414
vida. (TEIXEIRA, 1957:28).

O sistema educacional igualitário para a nação brasi-


leira pela ótica de Anísio seria maravilhosamente perfeito
se tivéssemos uma interrupta forma de viver as diferenças
e assim dar condições com propícias de cada circunstân-
cia aos indivíduos, independentemente de suas situações e
classes sociais. Nessa ótica almejada por Anísio a escola
seria tradicional com alguns víeis de transformação pelo
conceito de formulação da Escola Nova. Sabe-se que Aní-
sio teve grande inluência por parte de John Dewey rigida-
mente pelas concepções do pragmatismo que tanto eram
fontes de ideários como fontes de percepções educacio-
nais. A principal ótica seria de intermédio sob o trabalho
produtivo, neste contexto fora de suma importância toda a
ótica de Dewey para Anísio.
Então percebe-se que fazer é uma forma de concre-
tizar o aprendizado desses alunos, que assim constituirão
porventura um cidadão completo de opiniões sublimina-
res. O que tem de paralelo em linhas de raciocínios entre
algumas das suas considerações prevendo até políticas pú-
blicas futuras existentes agora.

Depois de darmos estas oportunidades educativas


básicas-que a todos devem ser obrigatoriamente
dadas, poderemos passar à educação da classe
média e da superior, pedindo-lhes, então, que so-
corram o Estado, assumindo, parte do custo dessa
educação em retribuição à manutenção do status
social que lhes é, muito justamente, tão precioso
(TEIXEIRA, 1957, p.28).

415
O que pensar nesta contemporaneidade os nortes de
Anísio e Florestan
O reconhecimento e pertencimento ao que nos forma
é sobretudo essencial na desconstrução, para a partir daí
reconhecer-se então. A reconstrução dar-se-á pela apro-
priação de suas origens como reconhecimento de identi-
dade latino-americana.
Apesar das ideias inluentes norte-americanas incluí-
das pelos indícios coletados por Anísio em Dewey, aden-
trando a estas ideias eurocentralizadas em toda a história
de nossa gênese à colonialidade na história, principalmen-
te no Brasil, forma-se conceitos não próprios aos anseios
esperados para tais acontecimentos. Sem analogias efê-
meras aos conceitos ainda não concebidos pela estrutura
educacional contemporânea ao nosso painel atualizado.
É preciso estabelecer fortes laços com as concepções de
educação integral sem aprimoramento das ideias e estru-
turas pedagógicas. Como citou Teixeira:

A didática dessa escola obedeceria ao princípio


de que as atividades infantis, predominantemen-
te lúdicas, evoluem naturalmente para o trabalho,
que é um jogo mais responsável e com maior aten-
ção nos resultados, e do trabalho evoluem para o
estudo, que é a preocupação mais intelectual de
conduzir o trabalho sob forma racional, sabendo-
-se pode aperfeiçoar ou reconstruir esse modo de
fazer. (TEIXIERA, 1957, p. 08).

Na situação em que o próprio ministro de educação


federal vem a público estabelecer diretrizes baseadas em
achismos de umas visões altamente identitárias, para um

416
cosmo visão de mudança de algo que poderia ser cultural-
mente dialogado com os princípios tão fortes de Florestan,
Anísio e Varella, o que vem se airmando atualmente nas
políticas públicas educacionais no Brasil nos últimos 12
anos, por empreendimentos de inclusão e equiparação de
direitos e da abertura de novos acessos à educação pública
de qualidade, assim como de equiparação dos direitos as-
segurados pela Constituição.
O que dá suporte aos ensinamentos de Anísio, Va-
rella e Florestan como os direitos que devem ser primor-
dialmente seguidos e estabelecidos, por parte da lei que
rege todo o trabalho educacional brasileiro, a política edu-
cacional da Europa trazida pelas concepções da religiosi-
dade foram conduzidas pelos jesuítas. O que sustentou por
décadas todo o ranço estabelecido até hoje nas sistema-
tizações de ideias centrais de educação nacional, tem-se
fortalecido nas dialógicas de Dewey com conceitos norte-
-americanos de ensino procedimental.
Sem remeter-se a anacronismos, as décadas de 20
e 30 foram marcadas por acentuadas mudanças em todos
os setores da vida brasileira. Revelou-se desde sempre no
Brasil a ideia de subalternização das classes menos favo-
recidas com grande respaldo da política de cabresto para
a não emancipação das massas. A vontade ou pelo menos
a preterível relexão mesmo que para muitos seja ela uma
disfarçada abertura para o diálogo entre os docentes, que
formavam a ideologia do projeto de emancipação educati-
va. É o que deixa claro Teixeira:

Ali dormitando até que, em 1952, a comissão

417
de educação da Câmara dos Deputados resolveu
abrir debate oral para ouvir educadores brasileiros
sobre o sentido e a importância do projeto. Con-
vidado a participar do debate, transcrevo aqui o
registro, publicado pela Comissão, da sessão em
que tive a honra de ser ouvido pelos senhores le-
gisladores. (TEIXEIRA, 1999, p. 197).

Entretanto, essa airmação cabe tão somente outra


perspectiva no que tange à toda a luta de emancipar as
ideias dos docentes envolvidos nestas transformações de
orientações nas políticas de ensino. Os anos de 20 até a
década de 50 foram mais que uma guerra travada entre os
interesses dos que pensavam e sentiam educação contra
os ideais forjados das políticas de república, o que noto-
riamente é observado no contexto em que o Brasil fora
declinado em todos os âmbitos sociais e drasticamente
educacionais. As manifestações que porventura são ins-
tauradas desde o im de 2014, revelam a forçada oposição
de ideias que não favorecem uma ponte com a emanci-
pação das classes minoritárias. Já citava Teixeira em sua
visão do social:

A experiência brasileira - e possivelmente latino-


-americana - de escola primária foi, até agora, uma
experiência de escola primária para uma parcela
e não para tôda a população escolar. Mesmo que
acalentasse a aspiração de tal estatística reforça a
ideia de que tendo suporte educacional igualitário
conduz-se as melhorias de vidas. Nas mais diver-
sas concepções de equivalências na autonomia so-
cial das classes. (TEIXEIRA, 1962).

Concebendo a todos os cidadãos oportunidades


iguais de avanços e progressões econômicas atrelados ao

418
bem-estar pessoal como um todo, as dimensões políticas,
econômicas e sociais sempre estabeleceram grandes em-
bates dentre as inovações introduzidas nos parâmetros de
mudança educacional na história do país. O que as déca-
das de 20 e 30 não deixam dúvidas, acarretar-se numero-
sos processos de discussão entre os obtidos pela história
das manifestações no Brasil.

A partir das décadas de 1920 – 1930, o Brasil pas-


sa por momentos de mudanças importantes em
várias esferas da sociedade: econômica, política,
cultural e educacional. Estas décadas assistem a
diversas manifestações que são organizadas na
tentativa de marcar o pensamento de rompimen-
to com estruturas velhas e arcaicas da sociedade.
Estruturas estas que já haviam sido rompidas no
cenário internacional. No campo educacional é o
período onde lorescem as ideias de educação de
importantes nomes como o de Fernando de Aze-
vedo, Lourenço Filho, Afrânio Peixoto, Carneiro
leão, Anísio Teixeira, entre tantos outros. Esses in-
telectuais foram representantes de uma forma de
pensar a educação e, a partir de suas ideias, traba-
lharam na implantação de projetos políticos edu-
cacionais em várias regiões do país. Trouxeram o
tema da escola pública para foco de discussão para
além do campo político governamental. (Aleir
Ferraz Tenório Analete Regina Schelbauer, 1920-
1930).

Então toda proposta airmada nos anos decorrentes,


as modiicações dessas décadas de 20 e 30 tiveram gran-
des inluências e nomes de estudiosos, pesquisadores e
militantes das políticas de sistematização educacional do
país. É insuperavelmente o diálogo promovido por tantos
agentes de propostas educativas de enriquecimento social.

419
[...] referi-me ao movimento de emancipação edu-
cativa e não o iz sem intenção. Não me parece
que estejamos aqui para discutir como discipli-
nar a educação nacional, mas como promovê-la,
como desencadear as forças necessárias para levar
o efeito um movimento, a mobilização geral de
ser uma educação para todos, não logrou atingir
senão uma parcela maior ou menor das crianças
em idade escolar. Êste fato determina que a es-
cola primária, a despeito das proclamações de ser
escola para todos, adaptada, portanto, no seu con-
teúdo, métodos e processos, ao aluno - e não êste à
escola - seja uma escola para os poucos, ainda que
cresçam e tenham crescido êstes poucos. (TEI-
XEIRA, 1962. p.21-33).

Primordialmente com a tomada de poder através da


quebra de governo, o que mais uma vez mostra a retomada
das forças do religioso e do poderio de direita no cenário
das políticas sociais brasileiras, o subversivo ataque às ba-
ses que sustentam a educação nacional é uma clara manei-
ra de desmonte às construções de relexões já estabeleci-
das anteriormente. No que se refere aos anos de 2009 até
2016, um artigo na USP já detectava tais avanços:

O Brasil consolida-se, cada vez mais, como ator


importante na geração de ciência no contexto in-
ternacional. À produção cientíica do Brasil, deve-
-se aliar, agora, a capacidade inovadora, colocan-
do deinitivamente o país num lugar relevante no
mapa da inovação mundial. (Revista USP, 2011).

Perceber-se que o mesmo já vinha acontecendo em


nossa realidade contemporânea aos laços estéticos, obser-
vados na sociedade no período onde a esquerda esteve do-
minantemente na direção dos parâmetros do país. O que

420
fora compreendido como avanço entre as classes menos
favorecidas e nos conceitos de qualidade de vida especii-
camente nos anos de 2012 a 2014.
O que atualmente não favorece as ideias de orien-
tação social e educacional do Brasil é a contraposição ao
que reforçava toda a sustentação de pesquisa acadêmica,
como o trabalho de Fernandes, o que revela tão somente o
despreparo do atual governo interino que orienta as políti-
cas públicas momentâneas, o que já era previsível desde a
década de 60 por Teixeira mesmo:

O próprio plano de Brasília não está funcionando


em condições adequadas. O crescimento da matrí-
cula já começa a pôr em perigo o programa em sua
integridade e a instaurar a escola de tempo parcial
e semi parcial.(TEIXEIRA, 1962. p.21-33).

Fortes resquícios foram embasados no século pas-


sado e que agora assolam retornar. Tais suposições foram
submetidas por conceitos eurocentrados, por injunções
vindas dos Estados europeus. Como salienta bem Simon:

No século XIX, o Brasil era uma sociedade predo-


minantemente rural, sob o domínio de um império
centralizado que tentava adotar a pompa dos Esta-
dos Nacionais europeus, mas sem os recursos para
atingir a população empobrecidas das províncias
distantes, onde os ciclos econômicos do açúcar
e do ouro havia muito tinha-se acabado. (Simon
Schwartzman,2005).

Compreende-se que um tempo longínquo dava as di-


reções de tudo que acontecia aqui, o que não se permite

421
conceber na situação atual, esperando tornar-se mais uma
vez o quintal da Europa ou dos Estados Unidos, caindo em
atraso histórico. Os movimentos voltaram à tona devido à
ameaça aos direitos assegurados pela Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional de 1948. Anísio já buscava
esse ideal, “[...]esforços e recursos para resolver o pro-
blema dos direitos do brasileiro, o de se educar para ser
cidadão” (TEIXEIRA, 1999, p. 205).
Em pleno vislumbramento do século XXI, as insti-
tuições municipais, estaduais e federais se deparam com
ideias de mordaças intelectuais, de castração de desen-
volvimento sociopolítico e as fortes imposições políticas
mais uma vez assolam as ideologias alcançadas. O que
retrata a lei nº 4024/61 das diretrizes:

Art. 1º A educação nacional, inspirada nos prin-


cípios de liberdade e nos ideais de solidariedade
humana, tem por im:

a) a compreensão dos direitos e deveres da pessoa


humana, do cidadão, do

Estado, da família e dos demais grupos que com-


põem a comunidade;

b) o respeito à dignidade e às liberdades funda-


mentais do homem;

c) o fortalecimento da unidade nacional e da soli-


dariedade internacional;

d) o desenvolvimento integral da personalidade


humana e a sua participação na obra do bem co-
mum;

e) o preparo do indivíduo e da sociedade para o


domínio dos recursos cientíicos e tecnológicos

422
que lhes permitam utilizar as possibilidades e ven-
cer as diiculdades do meio; (EXAME. 2010).

Em um mais elevado nível de identiicação aos su-


postos ideários mais aproximados aos dos autores Anísio,
principalmente no que se refere à educação integral air-
mada por ele, como ainda Florestan e Pedro Varella em
suas buscas por equidade.
Não somente pelas propostas de renovação de bases
comuns, como também pela busca por igualdade social.
Como pensava Teixeira um ensino para todos integrado:

A ilosoia da escola visa a oferecer à criança um


retrato da vida em sociedade, com as suas ativi-
dades diversiicadas e o seu ritmo de preparação
e execução, dando-lhes as experiências de estudo
e de ações responsáveis. Se na escola classe pre-
domina o sentido preparatório da escola, na escola
parque predomina o sentido de atividade comple-
ta. [...] (TEIXEIRA, 1962).

Na conjuntura na qual o Brasil foi empurrado, mani-


festa-se a procura por suporte que lhes respalde segurança
de identidade e amor pelo Brasil. Juntamente a coniança
em nossas ambições que avistamos anteriormente a esses
fatos.
O interessante é que mesmo ao observar os momen-
tos e fatos históricos não conseguia-se imaginar tais impo-
sições neste momento. É o que revela algumas pesquisas,
que a questão de igualdade deve ser estabelecida median-
te as relações de formação étnica do país. O que sustenta
usando o termo multirracial para tal abordagem, Simon

423
em seu artigo:

O Brasil também é uma sociedade multirracial,


na qual metade da população é classiicada como
“não branca” e há fortes correlações, entre as ori-
gens étnicas, renda e oportunidades de instrução.
No todo em 2001, a população tinha 5,75 anos de
escolaridade e a não-branca 4,04 a média de renda
das pessoas brancas era duas vezes superior à das
não brancas. (TEIXEIRA, 1962, p. 25).

As totais oportunidades cedidas em nosso país sem-


pre tiveram todo o aparato elitista, deixando à margem
todos aqueles que porventura tiveram a miscigenação afri-
cana, indígena desfavorecidas. Tudo que não poderia ser
concebido devido a todas as concepções étnicas que nos
originaram.

Tudo isto seria utópico se não tivessem já sido


despertadas as expectativas das massas confusa-
mente conscientes de que é possível a sua ascen-
são e a realização de suas aspirações. Os recursos
para esta batalha, que será a batalha da paz, hão
de surgir, como surgiram, no passado, os recursos
para todas as batalhas de sobrevivência com que
se defrontou a espécie. (TEIXEIRA, 1962. p.21-
33).

Dá-se então, a devida importância ao ensino funda-


mental de base, que no trabalho primordial de Anísio fora
bastante elevado nas circunstâncias de prática pedagógica
e de formação docente na Bahia, logo que começou esse
processo de contribuição para o ensino brasileiro, “[...] é
necessário reconhecer a escola primária função bem mais
ampla do que a da escola primária tradicional da socieda-

424
de já desenvolvida” (TEIXEIRA, 1962, p. 25).
Desde outrora a educação fora pensada para a classe
colonial e não para os colonizadores, ou será que devemos
voltar a ter forçadamente esse pensamento para atualidade
após tantas lutas travadas para a emancipação, para o bem
comum? Ou seria ilusão pensar nesta linha de raciocínio,
apostar em novas práticas educativas livres de amarras e
concepções eurocentradas? Faz do professor um dos guar-
diões da busca e desenvolvimento das relexões distintas
que irão seguir para uma constância superior da que te-
mos. Talvez não se dê o devido valor no imediatismo dos
acalorados conceitos, entretanto, já perecemos na mesma
hipótese de vislumbramento as ascensões no âmbito tanto
educativo como no social. Isso o que Anísio fez despertar,
estas menções em nossos corações:

Quando esse interesse intelectual se desenvolve


bastante para se tornar uma atividade em si mes-
ma, teremos o intelectual, o cientista, o pesqui-
sador e o pensador, que irão constituir os corpos
especializados da Nação para o seu desenvolvi-
mento cultural e cientíico (TEIXIERA, 1957:08).

O que de fato conduz Anísio, Florestan a José Pedro


Varella é um só caso
Os homens que porventura e total felicidade latina
deram sua enorme contribuição para formação de novos
olhares ao ensino público, são, de eventualmente povo, a
persistência pela população menos favorecida.
O envolvimento direto com as massas que são assim

425
mais mencionadas. A luta constante sem perder as espe-
ranças no futuro que se avizinha. Quando em sua fala Va-
rella airmou:

Não precisamos de populações excessivas; o que


precisamos é de populações ilustradas. O dia em
que nossos gaúchos souberem ler e escrever, sou-
berem pensar, novas convulsões políticas desapa-
receriam, quiçá. É por meio da educação do povo
que chegaremos à paz, ao progresso e a extinção
dos gaúchos. Então, o habitante da campanha a
quem embrutece hoje e a ociosidade, digniicado
pelo trabalho, converteria seu cavalo, hoje ele-
mento de selvageria, no elemento de progresso, e
traria com ele o sulco que há de fazer produtiva a
terra que permanece até hoje estéril, e as imensas
riquezas nacionais, movidas pelo braço do povo
trabalhador e ilustrado, formariam a imensa pirâ-
mide do progresso material. A ilustração do povo
é a verdadeira locomotiva do progresso. (VA-
RELLA,2014).

Considerações inais
Como tinha-se frisado em toda a sua curta estadia
entre nós, Varella teve como foco todo a jornada de credu-
lidade neste pensamento de progresso com base nas con-
cepções humanísticas.
A verdadeira humanização dos indivíduos que po-
dem ser conferidos é o que mais importa neste contex-
to ao qual pertencia, no qual fazia as diversas apostas na
evolução do desenvolvimento sociocultural e econômico
ao mesmo tempo. A ideia de igualdade social está que no
contexto deste ano que tanto se coloca em pauta não faz

426
diferença se não nos colocarmos no lugar do outro. Em
uma visão de ver na situação do outro, não se pode evoluir
jamais. O que sempre teve em mente Varella, “enquanto
esse estado da coletividade não se transforme, os esforços
para conseguir modiicações importantes serão ineicazes”
(VARELLA, 1989).
Tida a experiência atual com a situação do Brasil
com relação ao painel da educação. Todavia, a ideia do
não diálogo com quem realmente compreende educação,
dos conceitos de aquisição de conhecimentos e formação
de proissionais, das possibilidades de crescimento social
em todos os níveis para uma população, retirar-se toda a
essência dos pensamentos e lutas de todos esses exemplos
de construção de igualdade por meio da educação que fo-
ram Anísio, Florestan e Pedro Varella.
Perceber que tudo está de certo modo deixado à
margem perante tudo que fora contribuído, revela o que
realmente ainda não consiste em educação igualitária,
laica, emancipatória e gratuita para todos. Seria possível
não reconhecer que não se faz educação sem proissionais
de educação que conheçam os prós e contras de todo o
processo educacional. Seria possível fazer educação se ao
menos dialogar diretamente com quem verdadeiramen-
te compreende sobre o contexto mencionado até então.
É lastimável pensar e ter o tanto que nos deixaram estes
amantes e apaixonados pela educação sem o seu merecido
reconhecimento.

Referências

427
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nandes / Marcos Marques de Oliveira. – Recife: Fundação
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430

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