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ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA: USO DE CONHECIMENTOS

VERNACULARES INDÍGENAS NA ARQUITETURA1

CARNEIRO, A. C., Instituto Federal de São Paulo, e-mail: carolinaaccc@gmail.com; SAFT, J.,
Instituto Federal de São Paulo, e-mail: jsaft@uol.com.br; PIZA, J. IFSP, email: j.piza@ifsp.edu.br

ABSTRACT
"Vernacular architecture" or "popular architecture" is the one that is characteristic of a
country or region, the result of the interaction between climate, materials available and the
culture of a certain society. Inserting itself into the discussion of sustainable development,
vernacular constructions are mainly in harmony with the environment and maintain a healthy
dialogue with the region's climate. Its materials duration over the building life cycle contribute
to decrease the total energy expenditure and provide to the end user the necessary thermal
comfort. The Brazilian vernacular architecture is that produced by indigenous peoples
without contact with techniques brought by the colonizer. Due to the extensive Brazilian
territory, there is a variety of indigenous typologies that were studied from the point of view of
thermal comfort and NBR 15220-3, and served as the basis for project recommendations.
Keywords: Vernacular architecture. Sustainable housing. Indigenous constructions

1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o desenvolvimento sustentável vem sendo cada vez mais
discutido no âmbito da construção civil no Brasil e no mundo. Este setor tem
um papel de destaque na economia brasileira, mas, para tal, consome uma
grande quantidade de recursos naturais e, como consequência, gera,
também, uma grande quantidade de resíduos. Para que se possa almejar
um desenvolvimento mais sustentável, é pertinente pensar novas estratégias.
É nessa discussão que a tradição vernácula está inserida, pois é uma forma
de se olhar para o futuro utilizando-se de tecnologias ancestrais conectadas
a um determinado local e que funcionaram e evoluíram durante gerações,
não para as copiar de forma saudosista, mas para encontrar um caminho
que permita um diálogo harmônico entre a construção civil e o meio
ambiente.
Sendo a arquitetura vernácula brasileira aquela produzida pelos índios, este
trabalho se baseou na mesma para os estudos de adaptabilidade climática,
através da confrontação das tipologias documentadas com a norma de
desempenho.

2 PROCESSOS
A pesquisa de iniciação científica desenvolvida em 2017 no Instituto Federal
de São Paulo, deu sequência a uma pesquisa anterior, desenvolvida em
2016. Neste estudo, estabeleceu-se uma metodologia para determinar se a

1 CARNEIRO, A., SAFT, J., PIZA, J. Entre a teoria e a prática: Uso de conhecimentos vernaculares
indígenas na arquitetura. In: ENCONTRO NACIONAL DE TECNOLOGIA DO AMBIENTE CONSTRUÍDO, 17.,
2018, Foz do Iguaçu. Anais... Porto Alegre: ANTAC, 2018.

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arquitetura vernácula de populações indígenas brasileiras respondia
satisfatoriamente ao clima em que estava inserida. Através da confrontação
das diferentes tipologias com a NBR15220-3: Desempenho térmico de
edificações (ABNT, 2003) verificou-se que a arquitetura vernacular indígena
em estudo atende ao cenário climático de maneira satisfatória.

2.1 ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA

adaptados ao meio, eficientes energeticamente e que respondem


satisfatoriamente às especificações normativas.
Segundo Penteado (2001), é possível identificar três tipos de intervenções
sustentáveis: primeiro, as aplicadas no desenvolvimento de comunidades

tecnológicas e mercadológicas; terceiro, as relacionadas ao estudo de


materiais e procedimentos construtivos. Esta pesquisa busca unir os três tipos
de intervenções, pensando o desenho de uma edificação que esteja em
acordo com as demandas da população brasileira, que considere
elementos da arquitetura vernácula (materiais, técnicas, implantação, etc.)
e, ainda assim, seja passível de inserção no mercado imobiliário de
edificações sustentáveis, buscando uma nova maneira de construir que seja
capaz de aliar o respeito ao meio ambiente e as necessidades humanas.
Atitude esta que, por séculos, foi mantida pelas comunidades tradicionais
que desenvolveram suas arquiteturas empiricamente através de gerações.
Dessa forma, o objetivo principal desta pesquisa era aplicar o conhecimento
disponível sobre arquitetura vernácula à contemporaneidade, tentando
responder, em forma de desenho, à pergunta: quais são as qualidades
adaptativas das construções indígenas que podem ser aplicadas a uma
construção contemporânea brasileira?

2.2 A PESQUISA
Considerando que os modos de construir de povos antigos advêm de
evidências materiais e que, no caso das populações autóctones brasileiras, o
estudo é dificultado pelo emprego corrente de materiais de construção
orgânicos, grande parte da pesquisa foi baseada em relatos de viajantes
europeus que tiveram contato com esses povos, seja no primeiro momento
da colonização ou mesmo ao longo dela. Segundo Pasquale Petrone (1995),
também não se pode desconsiderar que os conquistadores, ao chegarem a
um novo mundo, do qual desconheciam os modos de sobrevivência, se
utilizaram de conhecimentos indígenas até estarem adaptados e,
posteriormente, introduziram seus próprios conhecimentos sobre como
construir. Portanto, durante a pesquisa, optou-se por analisar os modos
construtivos de determinados grupos da maneira mais tradicional em que
foram encontrados, a partir das poucas pesquisas arqueológicas que se
voltam para o estudo da arquitetura indígena.
Devido ao extenso número de tipologias construtivas que podem ser

3700
encontradas no Brasil, foram estudadas aquelas que possuíam uma
bibliografia prévia significativa que poderia oferecer dados suficientes para o
cruzamento de informações entre a norma NBR 15220-3, os dados climáticos
disponibilizados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e as
informações culturais de cada tronco indígena, encontradas principalmente
no site do PIB (Populações Indígenas no Brasil).
Para aplicação do método proposto foi escolhida uma tribo indígena os
Kaingangs que se distribuem ao longo de quatro Estados São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul - e possuem três tipologias
construtivas completamente diferentes entre si: a palhoça, a casa
subterrânea e o acampamento, que podem ser vistas nas Figuras 1, 2 e 3,
respectivamente.

Figura 1 Palhoça Kaingang

Fonte: Amparo (2016)

Figura 2 Habitação Subterrânea Kaingang

Fonte: Sandoval (2016)

Figura 3 Habitação Temporária Kaingang

3701
Fonte: Juracilda (2003)

Foi feito o levantamento da localização dessas tipologias construtivas, como


pode ser visto no mapa da Figura 4, e organizou-se as informações coletadas
acerca de cada módulo habitacional no Quadro 1 para que fosse possível
comparar cada uma entre si. O Quadro 2 apresenta, para cada localização
dos Kaingangs, as soluções de conforto que a norma NBR15.220-3 pede para
a zona bioclimática correspondente.

Quadro 1- Informações sobre os módulos habitacionais

O módulo habitacional

Subterrânea Palhoça Temporária

Localização PR, SC, RS SP, PR, SC, RS SP, PR, SC, RS

Descrição Arqueologia Relatos Relatos

Tamanho 2 - 18m ~20m² variável

Materiais Madeira, Palha, Folhas

Profundidade 1 - 5m - -

Abrigo Temporário para


Permanente Permanente
caça

Sítio estrutura semi-


subterrânea ou A céu aberto
subterrânea

Planta Circular Retangular

(Continua)

3702
(Conclusão)

Implantação Não há fontes que indiquem com


precisão a implantação desse tipo
de habitação. Há um conto
tradicional que explica que,
Próximo aos topos devido ao medo de inundações, Contra o vento
de morros constroem sempre longe dos dominante
grandes cursos de rios. Logo,
supõe-se que esse tipo de
habitação se localizava próxima
das habitações subterrâneas

Água Afastado dos


cursos principais, Afastado dos cursos principais,
-
mas próximo à mas próximo à uma fonte.
uma fonte.

Estrutura e Telhados apoiado


Cobertura sobre 3 esteios
(Casas Grandes).
Telhado apoiado
sobre um esteio Armações de madeira cobertas
Armação de
Central (Casas com palha ou folhas fincadas no
madeira coberta
Médias). As casas chão e se entrecruzando na
com palha ou
pequenas podem cumeeira, de modo que telhado
folhas apoiadas
não ter o esteio e parede possuem uma
em uma escora
central e contiuidade
formarem uma
cúpula. Possuem
armação em
madeira

Nota: todos os módulos habitacionais possuem ocupação sazonal, segundo a


arqueologia, sendo preferida a habitação subterrânea no inverno, a palhoça para as
outras estações e o módulo temporário para a época de caça

Fonte: Os autores

Para as três tipologias, analisou-se o modo como a edificação foi construída,


os materiais utilizados e a interação com o ambiente circundante. Também
se gerou as cartas psicrométricas correspondentes à localização de cada
uma com o auxílio do software Climate Consultant (UCLA). Por fim, cruzou-se
todos os dados coletados com o zoneamento climático proposto pela
norma para cada um dos Estados brasileiros (Quadro 2).

Quadro 2 - Estratégias bioclimáticas para cada zona, conforme NBR 15.220-3

Confrontação com a norma NBR 15.220-3

Subterrânea Palhoça Temporária

(Continua)

3703
(Conclusão)

Zona Bioclimática Z1, Z2, Z3 Z1, Z2, Z3, Z5 Z1, Z2, Z3, Z5

Inverno - Aquecimento Solar da


Não se aplica
Edificação; vedações internas Atende
pesadas (inércia térmica)

Verão - Ventilação cruzada Não se aplica Atende

Aberturas - sombreamento das Não se


Atende Atende
aberturas aplica

Médias - Permitir sol durante o Não se


Não atende Não atende
inverno aplica

Parede - Leve (1 e 2); Leve Refletora Não se


Atende Atende
(3 e 5) aplica

Cobertura - Leve Isolada Atende Atende Atende

Fonte: Os autores

3 CONCLUSÕES
Através dos estudos realizados, foi possível perceber como se dava a
combinação entre forma, aberturas e materiais para cada grupo indígena,
de modo a encontrar o melhor equilíbrio entre conforto, facilidade de
construção, adequação ao território e identidade cultural. Percebeu-se
também que, para as características climáticas particulares a uma
determinada posição geográfica (as quais podiam ser alterada apenas em
parte pelo impacto do ser humano no uso e ocupação do território) era
muito vantajoso energeticamente se utilizar estratégias adaptadas ao meio
e materiais locais. Estas características permanecem relevantes para os
tempos atuais de mudanças climáticas e consumo energético excessivo.
Quanto à análise direcionada à um grupo indígena os Kaingangs
constatou-se como as influências do homem branco no modo de viver
Kaingang acarretaram em mudanças substanciais no modo de construir
desse povo. Até o período em que esta interação se intensifica, há o uso das
três tipologias construtivas concomitantemente, respeitando a localização, o
clima e a população a ser atendida. Verifica-se uma grande mobilidade
dentro do território, assim como a escolha de sítios específicos que respeitam
a cultura desse povo. Com o contato com o homem branco, a tipologia
subterrânea foi perdida em detrimento daquelas acima do solo que, com o
tempo, também foram modificadas para se adequar ao modelo europeu, a
partir de políticas indigenistas implantadas no final do século XIX e início do
século XX. Para esta pesquisa apenas interessou as técnicas construtivas
originais, sem a influência do europeu. Quando confrontadas com a Norma

3704
15220-3: Desempenho Térmico de edificações, parte 3: Zoneamento
Bioclimático Brasileiro e Diretrizes Construtivas para Habitações Unifamiliares
de Interesse Social, percebe-se que modo de construir Kaingang é
adequado e responde de maneira satisfatória às diretrizes dadas, visto que:
A ventilação cruzada ocorre através da porta e de aberturas nas paredes
de palha, feitas pelos índios na medida da necessidade;
Sombreamento de aberturas não é necessário devido à ausência de
aberturas (para além das portas);
Paredes externas e coberturas em palha permitem uma elevada taxa de
renovação do ar;
Inércia térmica garantida pelo solo nas habitações subterrâneas utilizadas
na estação fria.

REFERÊNCIAS
ABNT ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 15220: Desempenho
Térmico De Edificações Parte 3: Zoneamento Bioclimático Brasileiro e Diretrizes
Construtivas para Habitações Unifamiliares de Interesse Social. Rio de Janeiro, 2003.

AMPARO, S. Sobre a organização espacial dos Kaingang, uma sociedade indígena


Jê Meridional. Dissertação de Mestrado, Programa de Pesquisa e Pós-graduação
em Arquitetura e Urbanismo. Universidade de Brasília, Brasília, 2010.

Habitação e Acampamentos Kaingang hoje e no passado.


Cadernos do CEOM, n.18, p. 213-242, Chapecó, 2003.

FERNANDES, J. O contributo da arquitectura vernacular portuguesa para a


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Universidade do Minho, Portugal, 2012.

INSTITUTO NACIONAL DE METEOROLOGIA. Estações Automáticas. Disponível em: <


http://www.inmet.gov.br/portal/index.php?r=estacoes/estacoesautomaticas>
Acesso em: 8 ago. 2017.

PENTEADO, H. Sustentabilidade na obra de Renzo Piano: Elementos para uma


prática contemporânea de projeto. In: 2.; Encontro Nacional e 1.; Encontro Latino
Americano sobre Edificações e Comunidades Sustentáveis. Associação nacional de
tecnologia do ambiente construído. Rio Grande do Sul, 2001.

PETRONE, P. Aldeamentos Paulistas. Editora da Universidade de São Paulo, São


Paulo, 1995.

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<https://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/quem-sao/povos-indigenas.>
Acesso em: 24 jun. 2017.

TEIXEIRA, C. Considerações sobre a arquitetura vernácula. Cadernos de Arquitetura


e Urbanismo, v.15, n. 17, 2008.

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