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ARTIGO
ANÁLISE
INTRA-SÍTIO
DO SÍTIO
JUSTINO, BAIXO
SÃO FRANCISCO
– AS FASES
OCUPACIONAIS
Marcelo Fagundes
Coordenador do Laboratório de Arqueologia e Estudo da Paisagem da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)
marcelo.fagundes@ufvjm.edu.br/ fagundes_fgs@yahoo.com.br
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resumo
O presente artigo é fruto da tese de douto-
ramento intitulada Sistema de assentamento e
abstract tecnologia lítica: organização tecnológica e va-
This paper is part of the thesis named riabilidade no registro arqueológico em Xingó,
“Settlement Systems and Lithic Technology: Baixo São Francisco, Brasil, a qual teve como
technological organization and variability in objetivo apresentar os resultados alcançados
archaeological record in Xingó Area, São por meio de pesquisas sistemáticas de campo,
Francisco low valley, Brazil, that aimed to laboratório e gabinete, que, interligadas, coligi-
present the final results of a long-term study ram dados responsáveis por uma compreen-
after systematic research in field, laboratory são mais assertiva sobre o modo de vida e di-
and in office that interconnected unify data nâmica cultural dos grupos pré-históricos que
which gives an assertive understanding of ocuparam a Área Arqueológica de Xingó du-
the life and cultural dynamic of prehistoric rante quase oito milênios. Esse artigo, por sua
societies who occupied the Archaeological vez, tem como objeto a compreensão de como
Zone of Xingó during eight thousand years. as populações pré-históricas que ocuparam a
This paper aims to comprehend how the pre- região estabeleceram seu sistema regional de
historic groups established their regional assentamento em terraço, tendo como hipóte-
settlement system on the fluvial benches. I se norteadora que todos os sítios contemporâ-
used as a guide hypothesis the fact that all neos estariam conectados entre si no chamado
contemporaneous sites were connected complexo situacional de sítios. Para tanto foi
among them in a situational complex of sites. utilizada a análise intra-sítio tendo como mo-
So, I used the intrasite analyze basing my delo gravitacional o sítio Justino, de forma a
data in Justino archaeological site, my gravi- elucidar o sistema de assentamento regional.
tational model, to elucidate the regional set- Em relação ao referencial teórico, foram utili-
tlement system. I used multiples concepts zados múltiplos conceitos e abordagens que
and approaches that worked together to un- convergiram para a compreensão da paisagem
derstand the landscape while a social con- enquanto construção social que, dotada de va-
struction immersed in social means and val- lores e significados, pode ser compreendida
ues which have been understood as a loci of como o loci de ocupação continuada, ou luga-
continuous occupation or persistent places res persistentes.

Key words Intrasite analyses, Settlement palavras-chave Análise intra-sítio, Sis-


Systems, Xingó tema de Assentamento, Xingó

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INTRODUÇÃO A vegetação circundante era a caatinga


O artigo aqui apresentado tem como obje- hiperxerófita, constituída por cantigueiras
tivo apresentar os resultados da análise intra- (caesalpinia bracteosa), juazeiros (Ziziphus
sítio do sítio Justino (Fagundes, 2007), o que joazeiro), pau-ferro (Caesalpinia ferrea), en-
denominamos de Fases de Ocupação, de modo tre outras. Além disso, o terraço foi utilizado
que pudéssemos compreender a variabilidade para plantações de subsistência de feijão (Vi-
tecnológica observada na análise dos conjun- gna unguiculata) e milho (Zea mays). Sendo
tos líticos que foram evidenciados durante as assim, devido à intervenção antrópica em
campanhas de escavação do referido assenta- função das atividades agrícolas, foram evi-
mento (Fagundes, 2010a; 2010b). denciados na superfície deste sítio muitos
O sítio Justino foi o assentamento com fragmentos cerâmicos. Além disso, as bor-
maior intervenção na Área Arqueológica de das do terraço, por questões de ordem natu-
Xingó, já que o terraço onde estava localizado ral, encontravam-se bastante erodidas em
foi completamente escavado em relação ao es- toda sua extensão, fator responsável pela
paço/profundidade, atingindo o embasamento perda de valiosas informações arqueológicas
rochoso, utilizando o método etnográfico de (Vergne, 2004).
superfícies amplas (Leroi-Gourhan, 1950,
1972). Tal procedimento efetivou-se após a evi- REFERENCIAL TEÓRICO
denciação de uma série de esqueletos huma- O interesse de compreendermos a re-
nos geralmente associados a um rico enxoval lação entre os diversos sítios contem-
funerário que, no final da escavação, totalizou porâneos distribuídos em uma paisagem
167 sepultamentos com presença de 185 es- centra-se na assertiva de que estes man-
queletos (Vergne, 2004). têm relações intrínsecas entre si, cada
Este sítio localiza-se na fazenda Cabeça um ocupando um papel no sistema produ-
de Nego, município de Canindé de São Fran- tivo/ de subsistência, na mobilidade e na
cisco, na margem direita do São Francisco, própria organização social e cultural dos
na confluência de um riacho, com coordena- grupos pré-históricos.
das UTM 8.938.881/ 627.561. Sua área total é Neste caso, esses sítios não podem ser com-
de aproximadamente 1.500 m2, com altitude preendidos separadamente “(...) como enti-
média de 37 metros em relação ao nível do dades estáticas e isoladas” (Dias, 2003: 40), já
mar, sendo escavada uma área total de 1.265 que cada um assume uma função fundamen-
m2 (23 x 55 m). tal dentro das estratégias/ escolhas do grupo.
Conforme Dominguez & Britcha (1997), Cada sítio compreende, assim, uma cé-
a formação geológica deste terraço estava lula dentro de um sistema sócio-cultural
associada à descida de sedimentos dos alti- abrangente e de fundamental importância,
planos semi-áridos, sobretudo através do mas que por si só não é capaz de esgotar a
riacho Curituba, formando deposições sed- compreensão da organização tecnológi-
imentares de características deltaicas, com ca1, da mobilidade, das estratégias, capta-
ocorrência de camadas aluvionares que ção de recursos, enfim da dinâmica cul-
apresentavam espessuras variáveis, consti- tural na pré-história.
tuídas por areia fina ou grossa, seixos, siltes Além do mais, partindo do princípio de to-
e argilas. Além disso, deve-se citar o papel talidade em Mauss (1974), a unidade se dá
das cheias do São Francisco para a deposição pela complementaridade entre as partes con-
de sedimentos neste terraço. stitutivas de um domínio cultural (abrangen-

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do tanto o contexto social como natural), que, texto sistêmico (Schiffer, 1972, 1983, 1987).
sob nosso ponto de vista, na Arqueologia se Nesse artigo ao privilegiarmos as
visualiza pela identificação e correlação dos análises intra-sítios – os diferentes tipos
geoindicadores2 (Morais, 2006). de uso de um dado assentamento em lon-
Logo, esse reconhecimento das caracter- ga duração –, estávamos preocupados
ísticas regionais, que nos serviram de mod- (no caso específico do sítio Justino), com
elo locacional de caráter preditivo, acaba a distribuição espacial e relacional, além
por permitir à constituição dos lugares per- da densidade e diversidade dos remanes-
sistentes3, inclusive como meio de estabel- centes culturais bem como suas sequên-
ecer padrões à compreensão dos sistemas cias operacionais de produção (Fagundes,
regionais de assentamento. 2010a, 2010b, 2010c), de modo que pu-
Com base nesses pressupostos só poder- déssemos inferir seus “papéis” dentro da
emos realizar inferências sobre o sistema organização social do grupo (ou grupos)
regional de assentamento quando estabelec- em estudo.
emos correlações e conexões entre os diver- Ou seja, o que pretendemos frisar é que os
sos sítios e lugares persistentes de uma área estudos sistemáticos intra-sítio da distribuição
(Schlanger, 1992), relacionando-os impret- e associação artefatual em termos espaço-tem-
erivelmente à paisagem, utilizando exem- porais têm sido considerados inerentes à pes-
plos advindos da etnologia, da organização quisa arqueológica que pretende compreender
tecnológica, das estruturas evidenciadas, das a dinâmica cultural nas ocupações pré-históri-
possíveis escolhas, por meio do uso intensivo cas, tendo em vista a integração dos processos
das geotecnologias, ou seja, por meio de in- naturais e culturais de formação dos sítios ar-
ferências e dados estatístico-comparativos queológicos (Panja, 2003).
que mapeiem as possibilidades (e restrições) Aliás, para Bamforth et al (2005: 577) a pri-
para as hipóteses levantadas (Fagundes, meira questão que se deve ter em mente antes
2009; Fagundes & Mucida, 2010). de empreendermos a pesquisa arqueológica é
Portanto, a dinâmica cultural resultante estabelecer critérios de compreensão de
dos processos de continuidade e mudança como forças naturais e antrópicas interagi-
deve ser ‘garimpada’ em meio aos remanes- ram para ‘criar’ um sítio arqueológico.
centes culturais nas escavações compreen- Os trabalhos de André Leroi-Gourhan
dendo a estrutura de cada sítio, visto que a durante as décadas de 1950 e 1960 sobre a
Arqueologia aqui é definida como a discip- estrutura de sítios a céu aberto do paleolíti-
lina responsável em obter conhecimento co europeu, sobretudo Pincevent, podem ser
(ou conhecimentos) válido sobre o passado. apontados como precursores de análises
Isto é, buscar no estático representado pelo que pretendem reconstruir (e interpretar)
registro arqueológico o dinamismo dos pro- integralmente os solos de ocupação pré-his-
cessos e das conexões culturais, de modo a tóricos, coligindo técnicas, métodos e refle-
encontrar no contexto arqueológico o con- xões teóricas acerca da reconstrução dos

1 Kelly define organização tecnológica como: “(...) the spatial and temporal juxtaposition of the manufacture of different tools within
a cultural system, their use, reuse and discard, and their relation not only to tool function and raw material type, but also to behavioral
variables which mediate the spatial and temporal relations among activity, manufacture, and raw material loci” (Kelly, 1988: 717).
2 “Elementos do meio físico-biótico dotados de alguma expressão locacional para os sistemas regionais de povoamento,
indicando locais de assentamentos antigos (...). Assim, os geoindicadores arqueológicos sustentam um eficiente modelo
locacional de caráter preditivo, muito útil no reconhecimento e levantamento arqueológico” (MORAIS, 2006).
3 “(...) places that were repeatedly used during long-term occupations of regions. They are neither strictly sites (that
is, concentrations of cultural materials) nor simply features of a landscape. Instead, they represent the conjunction of
particular human behaviors on a particular landscape” (Schlanger, 1992: 97).

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solos paleoetnográficos. Suas pesquisas, do as questões que serão abordadas, o tipo


deste modo, foram de fundamental impor- de material que terá maior enfoque, além do
tância para a compreensão das estruturas nível de detalhes espaciais disponíveis nos
in loco, que seria sob o nosso olhar o passo dados a serem examinados. De forma geral,
inicial para a elaboração de inferências à as pesquisas se direcionam para as respos-
busca da compreensão do modo de vida e tas que são esperadas pelo arqueólogo (Ba-
dinâmica cultural de grupos pré-históricos mforth et al, 2005).
(Leroi-Gourhan, 1950, 1972). Já para Munday as análises intra-sítios
Em suas reflexões Bamforth et al (2005), são extremamente relevantes na medida em
também destacam que as análises intra-sí- que cooperam para a elaboração de hipóte-
tio têm focado a distribuição dos artefatos ses e interpretações que podem ser conclu-
no solo arqueológico, utilizando diversas sivas à compreensão inter sítios, sendo, por-
técnicas para tal intento, de forma a eviden- tanto, “(...) uma ferramenta para testar
ciar o modo que o sítio arqueológico foi uti- suposições implícitas que direcionam mui-
lizado em longa duração, isto é: tas comparações contemporâneas tanto in-
ter sítio quanto inter níveis” (Munday, 1984:
• Compreensão das estruturas internas dos 32).
sítios e suas distribuições espaço-tempo- Trabalhando com sítios musterienses, a
rais; autora enfatiza a importância da análise
• Demarcação meticulosa dos remanescen- intra-sítios para uma compreensão efetiva
tes culturais, de acordo com os locais exatos das dimensões temporais e espaciais de um
em que foram evidenciados durante as es- assentamento como facilitador de uma aná-
cavações, assim como suas associações, lise regional, ou seja, de um sistema de as-
possibilitando a construção de mapas tridi- sentamento.
mensionais para posterior comparação en- Por outro lado, nos pressupostos de Fer-
tre os diferentes períodos de ocupação dos ring (1984), as atividades que são vistas
sítios arqueológicos; como o principal aporte para as análises es-
• Estratificação e análises estatísticas da di- paciais, sendo definidas como tarefas que,
versidade e freqüência vertical (e horizon- após sofrerem as ações do processo deposi-
tal) dos remanescentes culturais; cional, acabam por se transformarem em
• Evidenciação de características que apon- remanescentes culturais alvos das interven-
tem para ocupação, abandono e reocupação ções e diagnósticos arqueológicos. Portan-
dos assentamentos; to, o foco central de uma análise intra-sítio
• Distribuição das estruturas de combustão é a identificação das áreas de atividades em
e materiais associados, sobretudo em ocu- um sítio passando para a estruturação dos
pações de caçadores coletores; grupos e subgrupos que constituem os re-
• Inspeções visuais de mapas de distribui- manescentes destas. Na sua letra:
ção de vestígios (fato que exige o uso de fer-
ramentas apropriadas advindas da ciência A principal função das análises intra-sítio é per-
da informática). mitir uma visão explícita de como as atividades
Os autores destacam que em toda análi- foram conduzidas em um sítio. As atividades
se arqueológica escolhas são realizadas podem ter sido estruturadas pela composição
principalmente em relação aos métodos sócio-econômica/ étnica de uma unidade de as-
analíticos utilizados pela pesquisa, incluin- sentamento; pelas relações de procura/ tarefas

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de processamento que constituem o sistema de • Maior desenvolvimento tecnológico ou


subsistência; a periodicidade/ intensidade da da arte;
ocupação, etc. (Ferring, 1984:117). • Ou mesmo questões sócio-ambientais que
interferem nos processos culturais do grupo
Entretanto, acreditamos que para que (restrições, por exemplo).
haja um real entendimento do passado é
fundamental estabelecermos o caráter A sedentarização, todavia, é responsá-
sistêmico às pesquisas arqueológicas, ou vel por acarretar no aumento do número
como salientado por Panja (2003: 107), da diversidade de sítios componentes de
por meio de modelos diacrônicos empre- um sistema regional de assentamento em
endermos uma visão holística da nature- função das especificidades inerentes às
za, contexto e processos formativos do necessidades do novo sistema de subsis-
registro arqueológico. tência/produtivo no tocante às estratégias
Para tanto, deve-se fazer uso de ferramen- de obtenção de recursos (exploração, pro-
tas teórico-metodológicas que cooperem para dução e apropriação). Com isso surgem
compreensão do contexto regional sob a égide novos sítios mais especializados para de-
de abordagens paleoambientais, organização terminada atividade social (Hitchcock,
tecnológica, organização cultural-produtiva e, 1987; Kelly, 1992).
numa amplitude maior, a interpretação inter Mediante este aparato teórico devemos
sítios ou do sistema de assentamento4. ter em mente uma série de condições que
Além do mais, alguns autores apontam afetam a estrutura de um sítio em relação
que a mudança de um modo de vida nôma- à densidade e freqüência artefatual, varia-
de para um mais sedentário pode estar vin- bilidade espaço-temporal da distribuição
culada a um número infinito de causas, mo- de vestígios e associações, e na própria
dificadas de região para região, de grupo tecnologia; que, de certo modo, permitem
para grupo, visto que isso envolve novas inferências acerca da emergência da com-
relações sociais (e de poder) intra-grupo, plexidade social, padrões de mobilidade e
novas estratégias de mobilidade e apropria- sedentarização para compreensão do sis-
ção de recursos, e mesmo uma maneira de tema regional de assentamento, a saber:
perceber a paisagem que interfere no pa-
drão de assentamento, nos rearranjos espa- • Os processos naturais de formação de um
ciais, em investimentos nas estruturas in- sítio arqueológico;
tra-sítio, etc5. • Que a “função” de um sítio, associada ao
Não há um consenso na literatura so- tempo de permanência do grupo no assen-
bre os motivos reais para a sedentariza- tamento, também são variáveis que alteram
ção, os quais são comumente vinculados a estrutura e a formação do sítio arqueoló-
aos seguintes itens: gico;
• Padrão de utilização e reutilização dos sí-
• Crescimento populacional e pressão de- tios arqueológicos;
mográfica; • Que não há necessariamente uma associa-
• Indícios de complexidade social; ção entre o contexto de uso de um artefato e

4 Discussões sob esses assuntos em Xingó são encontradas em Fagundes (2007:429-499).


5 Segundo análises de Vergne (2004), o sítio Justino é marcado pela permanência cultural, sendo que as mudanças observadas
nas cadeias operatórias ou nas estruturas internas do assentamento são vistas como um “rearranjo” na organização interna do
grupo, em um processo de maior sedentarização nos terraços.

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o seu contexto de descarte (noção de refugo -temporal dos remanescentes culturais e


primário, secundário e refugo de facto. aliadas às associações e estruturas no
Schiffer, 1972); solo ocupacional do referido sítio arque-
• Flutuações climáticas e sazonalidade de ológico. Além disso, pudemos perceber
recursos (ou abundância de recursos obte- que a análise dos processos formativos
níveis na paisagem); vai de encontro com as conjecturas de
• Crescimento populacional e pressão de- Dominguez & Britcha (1997, p. 06), com
mográfica; concentração destes remanescentes em
• Diferenças organizacionais nas estratégias faixas entre 40 e 70/80 cm de espessura.
de mobilidade (residencial e logística); Logo, tendo como suporte os traba-
• Manejo de informações e manutenção de lhos realizados em Xingó sobre paleoam-
território (disputas e competições intra e in- biente, sobretudo de Ab’Saber (2002) e
ter grupos); Dominguez & Britcha (1997); acerca da
• Questões acerca da integração social, rela- ritualidade (Vergne, 2004); da bioantro-
ções familiares/ parentesco, relações de po- pologia (Carvalho, 2006), da análise da
der, gênero e prestígios, assim como dife- cultura material cerâmica (Luna, 2001),
renciação social; dos resultados laboratoriais das cadeias
• A organização e os tipos de atividade que operatórias líticas (Fagundes, 2010a,
são levadas a cabo em um sítio, sejam bases 2010b, 2010c; Mello, 2005; Silva, 2005);
residenciais ou locações de atividades espe- formação e uso de sítios arqueológicos
cíficas, estando vinculados aos preceitos (Schiffer, 1983, 1987), entre outros; traça-
culturais do grupo, além disso, dependendo mos um modelo sobre a ocupação espa-
do tipo de matéria-prima a ser manufatura- ço-temporal (análise intra-sítio) do sítio
da, longevidade da atividade, aspectos sim- Justino e, a partir daí, inferirmos sobre a
bólicos associados ao trabalho, podem alte- variabilidade espacial e relacional (aná-
rar significantemente a cadeia operatória e lise inter sítios), para compreensão do
o processo de descarte; dos sítios em terraço do sistema regional
• Cada grupo apresenta padrões próprios de de assentamento (Fagundes, 2007).
manutenção dos sítios e atividades de des- Logo, os episódios ocupacionais do sí-
carte, isto é, noções de higiene que alteram tio Justino foram pensados (e guiados)
a formação do registro arqueológico; não exclusivamente pelas decapagens 6
• Cada grupo tem percepções particulares realizadas em campo, mas pela somató-
sobre as atividades que desempenha, assim ria de resultados das pesquisas científi-
como noções próprias de como os objetos cas realizadas em Xingó, sobretudo após
são usados e quando e porque devem ser da sistematização dos dados pela equipe
descartados. de geoprocessamento do MAX/UFS.
Entre as Fases 01 a 03 do Justino, sobre-
AS FASES DE OCUPAÇÃO tudo em torno das decapagens 59 até 25 – a
Com base no referencial descrito, nos- análise dos remanescentes culturais permi-
sas análises levaram a compreensão de tiu a inferência de que neste terraço ocorre-
cinco fases distintas de ocupação do sítio, ram flutuações em termos ocupacionais,
obtidas por meio da distribuição espaço- sendo que na Fase 02 (decapagens 42 a 35),

6 O uso desse termo, para se referir às técnicas de escavação em Xingó, foi instituído por Vergne (2004).

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Profundidade
Decapagem (base da Método Laboratório Cronologia
estrutura)
03 40 cm C14 Inst. Radiocarbônico da Univ. de Lyon – França 1280±45 AP
06 60 cm C 14
Inst. Radiocarbônico da Univ. de Lyon – França 1780±60 AP
08 90 cm C14 Instituto de Geociências da UFBA 2530±70 AP
10 1,10 m C14 Instituto de Geociências da UFBA 2650±150 AP
13 1,40 m C 14
Inst. Radiocarbônico da Univ. de Lyon – França 3270±135AP
20 2,10 m C14 Beta Analytic – USA 4790±80 AP
30 3,10 m C 14
Beta Analytic – USA 5570±70 AP
40 4,10 m C 14
Beta Analytic – USA 8950±70 AP
04 0,50 m TL LabDat / UFS 2191±276 AP
08 0,90 m TL Instituto de Geociências da UFS 1800±150 AP
08 0,90 m AD LabDat / UFS 2010±430AP
10 1,10 m AD LabDat / UFS 2700±620 AP
10 1,10 m TL Instituto de Geociências da UFS 2050±140 AP
13 1,40 m PD LabDat / UFS 4310±800 AP
15 1,60 m TL LabDat / UFS 3865 ± 398 AP
20 2,10 m TL Instituto de Geociências da UFS 4496±225 AP
20 2,10 m AD LabDat / UFS 5500±980 AP
Tabela 01. Datações do sítio Justino. Legenda: C14 (Carbono 14); TL (termoluminescência); AD (Dose aditiva); PD
(pré-dose). Fontes: Vergne, 2004; MAX, 2006b; Santos & Munita, 2007

a freqüência artefatual demonstrou que a sociados, além de muitas manchas de dife-


área foi mais procurada que nos demais pe- rentes colorações, algumas das quais com
ríodos de ocupação (Fases 01 e 03), não ha- presença de restos faunísticos, ferramentas
vendo no registro arqueológico, com base líticas e muito pouco carvão. Por meio do
na distribuição e freqüência artefatual, evi- carvão extraído da fogueira 25 (decapagem
dências de abandono por longo período 40) nos forneceu a datação mais antiga da
para a Fase 02. área: 8950 ± 70 A.P. (Tabela 01).
Na Fase 01 observou-se que os solos Como veremos, esta fixação próxima ao
de ocupação estavam abaixo do nível atu- rio adquiriu características peculiares de
al do rio no momento da escavação, ou forma que podemos indicar o papel base
seja, houve alterações em seu curso e/ ou do Justino neste momento, inclusive desta-
volume ao longo do tempo. Tal fato pode cando que é a partir deste período que o
ser a explicação pela quantidade menor sítio passa a ser utilizado como cemitério.
de vestígios e, principalmente, a inexis- Além disso, como apontado nas análi-
tência em algumas camadas de estrutu- ses acerca da ritualidade funerária em
ras de combustão (foram evidenciadas Xingó realizada por Vergne (2004), se tra-
apenas manchas). ta do intervalo onde houve, segundo a
A fase seguinte (Fase 02) é um momen- autora, a menor distinção social entre os
to de presença de estruturas de combustão indivíduos, fato que nos permitiu inferir
com material lítico e restos faunísticos as- que não houve nenhum tipo de diferen-

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ciação social e que a maior “fixação” nes- capagem 19 (entre 1,90 e 2,00 m de pro-
te período não esteja vinculada ao cresci- fundidade) em diante.
mento populacional ou questões acerca A cerâmica surge no registro arqueo-
de prestígio, poder, cooperação ou mes- lógico a partir da decapagem 32 (01 frag-
mo competição. mento de bojo evidenciado a 3,29 m de
Nossa hipótese diz respeito às flutua- profundidade), entretanto só se torna re-
ções paleoclimáticas que podem ter ocor- presentativa entre as decapagens 21 e 19
rido (Ab’Saber, 2002; Cavalcanti, 2005), e (um intervalo entre 2,20 m e 2,00 m de
que tiveram como conseqüência uma va- profundidade) 8 , com significativo au-
riabilidade significativa nos padrões eco- mento de elementos a partir da decapa-
nômicos/ produtivos e de subsistência do gem 17 (137 fragmentos evidenciados a
grupo (grupos), obrigando-o a permane- 1,80 m de profundidade).
cer mais tempo no canyon e próximo ao A Fase 04 é o período de mais intensa
rio, local com maiores possibilidades e ocupação do Justino, visto que se observa
com menor propensão às flutuações pa- maior quantidade e diversidade de rema-
leoambientais do período, ou seja, com nescentes culturais. Todo o arranjo das
probabilidade menor de ocorrência de sa- estruturas, distribuição espacial, concen-
zonalidade de recursos (Ab’Saber, 2002). trações e associações demonstram que o
A Fase 03 (equivalente ao cemitério C grupo tenha mudado sua morfologia so-
entre as decapagens 34 e 16, em um in- cial, tornando-se, pelo menos hipotetica-
tervalo de 2,10 m)7, foi datada entre 5570 mente, mais complexo. Em relação à tec-
e 3270 AP. Esta foi subdividida em três nologia lítica, não há mudanças extremas,
ocupações distintas: a primeira entre as exceto que o quartzo passa a ser mais uti-
decapagens 34 e 29 (um intervalo de 0,50 lizado para a confecção de instrumentos
m), a segunda entre a 28 e 22 (um inter- expeditos (ou de ocasião). Assim, há uma
valo de 0,60 m) e a terceira entre a 21 e 16 grande freqüência e diversidade dos con-
(um intervalo de 0,50 m). juntos líticos e cerâmicos evidenciados
No início são claras as evidências de (tanto no solo de ocupação quanto em as-
ocupação e re-ocupação do sítio, que pas- sociação com os sepultamentos consti-
sa por processos contínuos de abandono tuindo o mobiliário funerário9.
somados às curtas permanências dos gru- A Fase 05, último período de ocupação do
pos na área, fator verificável pela baixa sítio entre as decapagens 08 e 01 (um interva-
densidade e diversidade de remanescen- lo de 0,70 m), é datada em torno de 1300 A.P.
tes culturais, evidenciando o uso do local É o momento que apresentou maior diferença
enquanto acampamento temporário (en- tecnológica quando comparado aos demais,
tre as decapagens 34 e 24, um intervalo de com a presença de artefatos líticos mais expe-
1,00 m aproximadamente). ditos e vestígios cerâmicos pouco requintados
A partir da decapagem 21 (entre 2,15 e no tocante à decoração plástica.
2,20 m de profundidade) há uma maior De modo geral, uma das características
permanência no terraço, com incidência mais interessantes deste sítio diz respeito à
da explosão dos vestígios cerâmicos da de- diversidade e quantidade de cultura material,

7 Lembrando que os sepultamentos ocorrem entre as decapagens 28 e 15.


8 Decapagem 21 = 28 fragmentos; decapagem 20 = 41 fragmentos; decapagem 19 = 69 fragmentos.
9 Para tecnologia cerâmica vide Luna (2001).

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tanto associada aos sepultamentos (enquanto 22 manchas vermelhas e 10 cinzas.


‘bens funerários’), quanto associada às estru- Feitas as primeiras indicações, cabe des-
turas com contextos domésticos. A cerâmica, crições pormenorizadas das Fases e possí-
por exemplo, conta com 14743 fragmentos veis ocupações para o Justino.
distribuídos a partir da decapagem 32 (3,29 m
de profundidade), datada de 5570 ± 70 anos SOLOS PALEOETNOGRÁFICOS DA
AP (datação para a decapagem 3010. O mate- FASE 01 DO JUSTINO
rial lítico ocorre em todas as decapagens, sen- Na Fase 01 o sítio tem características cla-
do que o polimento da pedra já é evidenciado ras de acampamento temporário com dois
na decapagem 40 datada de 8950 anos AP. a momentos distintos de ocupação: o primeiro
4,10 m de profundidade. entre as decapagens 59 a 51 (6,00 e 5,20 m de
Referente às estruturas de combustão, fo- profundidade), onde a freqüência artefatual
ram evidenciadas trinta fogueiras, todas com é baixa, denotando que os grupos permane-
carvão e outros remanescentes associados (ce- ceram pouco tempo no sítio. Os remanescen-
râmica, lítico, restos faunísticos, etc.), sendo tes estão representados por sete manchas no
que algumas relacionadas aos sepultamentos. solo e dezoito peças líticas. Foram evidencia-
Destas estruturas, um total de oito forneceu as dos dois sepultamentos: sepultamento 159,
datações absolutas em C14 (Tabelas 01 e 02). decapagem 52; sepultamento 161, decapa-
Além das fogueiras estruturadas foram eviden- gem 51 (Vergne, 2004).
ciadas 355 manchas escuras, muitas das quais O segundo momento ocorre entre as deca-
com pequenos fragmentos de carvão associa- pagens de número 50 e 43 (5,20 e 4,40 m). Na
dos (além de restos faunísticos e cultura mate- Fase 01 não foram evidenciadas fogueiras,
rial), indicando que eram antigas estruturas de apenas manchas no solo, sendo que do total de
combustão, e outras que por prováveis ações manchas desta fase 75,0% concentra-se neste
naturais, permaneceram exclusivamente as segundo momento ocupacional, indicando
manchas no solo. Ainda foram localizadas e que o sítio (por algum motivo), passa a ser
demarcadas 11 manchas de tonalidade clara, mais “visitado” ou que, perante as condições

número das
fases decapagens profundidades datações
ocupações

02 03–01 Intervalo de 0,20m entre 0,50 e 0,20 m 1280 ± 45 AP (decapagem 03)


cem a Fase 05
01 08–04 Intervalo de 0,40 m entre 1,00 e 0,50 m 1780 ± 60 AP (decapagem 06)
3270 ± 135AP (decapagem 13)
cem b Fase 04 01 15–09 2650 ± 150 AP (decapagem 10)
Intervalo de 0,60 m entre 1,70 e 1,00 m
2530 ± 70 AP (decapagem 08)
03 21–16 Intervalo de 0,50m entre 2,30 e 1,70 m 4790 ± 80 AP (decapagem 20)
cem c Fase 03 02 28–22 Intervalo de 0,60m entre 3,00 e 2,30 m Sem datação
01 34–29 Intervalo de 0,50m entre 3,60 e 3,00 m 5570 ± 70 AP (decapagem 30)
Fase 02 01 42–35 Intervalo de 0,70m entre 4,40 e 3,60 m 8950 ± 70 AP (decapagem 40)
cem d 02 50–43 Intervalo de 0,70m entre 5,20 e 4,40 m Sem datação
Fase 01
01 64–51 Intervalo de 0,80m entre 6,00 e 5,20 m Sem datação
Tabela 02. Fases de ocupação do sítio Justino

10 Cabe destacar que, entretanto, acreditamos que a tecnologia cerâmica deve ter ocorrido a partir da decapagens 21/20,
em torno de 4790±80 AP. Vide Fagundes (2007), em especial capítulo 06.

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naturais, parte dos remanescentes da ocupa- Entre as decapagens de número 59 e 54


ção anterior se perdeu com o tempo (?). pudemos observar a escassez dos vestígios
Sobre os vestígios líticos, que permitiu a arqueológicos irregularmente distribuídos
identificação desta Fase de ocupação, o con- pela área escavada do sítio, com maior con-
junto artefatual é marcado pela presença es- centração nas quadrículas FL 37/39, sobre-
paçada de material, ou seja, distribuído irre- tudo no intervalo da decapagem 55 (aproxi-
gularmente ao longo dos solos de ocupação. madamente 5,60 m e profundidade). Na AM
Percebe-se que grande parte está consti- 21/25 foi evidenciada uma mancha escura
tuída por instrumentos (37,25%) representa- de 0,78 m2 de área com material lítico e res-
dos, sobretudo, por raspadores unifaciais tos faunísticos associados, seguindo entre
sobre seixos e lascas corticais, obtidas por as 58 e 57. Tudo indica que se tratava de
meio da técnica de redução unipolar, tendo uma fogueira, sendo a ausência de carvão
como núcleo seixos de diversas morfologias, causada pela ação de agentes naturais. Na
mas com preferência para aqueles mais FL 20/30, decapagem 58, foi evidenciado
achatados com planos de percussão natural, um percutor, isolado dos demais vestígios.
isto é, seixos que apresentavam determinada Entre as decapagens de número 53 e 51
morfologia (pré-concebida) apta a receber (5,40 a 5,20 m de profundidade), ocorrem os
golpes para a obtenção de suportes sem que primeiros esqueletos do sítio Justino. O en-
necessitasse de transformações prévias em terramento 159 tem sua base na decapagem
suas estruturas (Fagundes, 2010b). 52, quadrículas FL 45/50, com muito mate-
Outro predicado importante é que o ma- rial lítico no entorno o que indica a associa-
terial não foi exclusivamente manufaturado ção como mobiliário funerário.
neste sítio, ou seja, parte das ferramentas Sabendo que os sepultamentos são ‘intru-
deve ter sido debitada em outros locais, sen- sivos’ tivemos o cuidado de analisar o entor-
do levadas ao Justino como parte do estojo no das decapagens superiores (51 a 40) para
pessoal, fato que explicaria, inclusive, a pre- observar indícios de remoção de material
sença de núcleos no registro, totalizando arqueológico dos níveis inferiores para os
15,68% do conjunto. superiores devido ao ato de cavar o terreno
Acreditamos que neste momento o sítio para a execução da cova. Não há indícios
não era utilizado como cemitério, nem mes- desse tipo de remoção (o mesmo foi feito
mo esta ocupação teria caráter simbólico-ritu- com o próximo enterramento).
alístico, sendo que os sepultamentos eviden- Já o enterramento 161 tem sua base na
ciados nestas decapagens diriam respeito à decapagem 51 (5,20 m de profundidade), lo-
Fase 02. De qualquer forma, é possível que os calizado espacialmente nas quadrículas LM
sepultamentos 159 e 161 sejam decorrentes do 44/45, ocorrendo o mesmo comportamento
último momento de ocupação da Fase 01, fato observado no enterramento anterior.
que cooperaria para a explicação do aumento O que podemos extrapolar por meio da
significativo de remanescentes culturais. Con- análise da distribuição espacial dos vestígios
tudo, a análise das plantas baixas do sítio, o são as concentrações e associações com man-
estudo dos conjuntos artefatuais, a freqüência chas escuras que possivelmente eram foguei-
de remanescentes culturais e a própria posi- ras e, desse modo, possibilitando a inferência
ção estratigráfica dos sepultamentos eviden- do uso do sítio como acampamento temporá-
ciados na Fase 01, sugerem que sejam intrusi- rio. Na FL 10/15 foi evidenciada, por exemplo,
vos decorrentes da fase posterior. uma mancha escura com 0,47 m2, com mate-

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rial lítico associado, além de outra pequena 0,80 – 1,10 m acima do sepultamento 159
concentração de líticos nas quadrículas FL (base na decapagem 52). A disposição e con-
15/20, indicando a associação com a mancha. centração de vestígios associados às man-
Entre as decapagens de números 50 e 43 chas sugerem algum tipo de ritual que pode
(5,20 a 4,40 m de profundidade), ou seja, na ter sido executado no ato do enterramento.
segunda ocupação da Fase 01, foi possível ob- Em relação às demais manchas escuras
servar a maior concentração de enterramentos evidenciadas nessa fase, podemos observar
representados pelos de número 160, 163 e 161. claramente que há prosseguimento de algu-
Realizando-se o exercício de sobreposi- mas entre as distintas decapagens, sugerin-
ção dos planos de plotação dos vestígios do que eram fogueiras que, devido aos pro-
das oito decapagens, observaram-se as se- cessos naturais, não foi evidenciado carvão.
guintes realidades: Na decapagem 49 foi evidenciar três man-
chas entre as quadrículas FL 11/16, a primei-
• Muita concentração de vestígios no entorno ra com 0,23 m2, a segunda com 0,36 m2 e a
dos enterramentos, o que sugere: (a) Mobili- terceira com 0,42 m2.
ário funerário associado aos sepultamentos, Na decapagem 48 foram evidenciadas qua-
supondo possível deslocamento vertical de tro pequenas manchas (todas inferiores a 0,20
alguns vestígios; (b) Mistura entre enterra- m2), três escuras e uma avermelhada (FM
mentos e vestígios arqueológicos de ocupa- 15/20), com material lítico associado. Perante
ções anteriores. as dimensões pode-se inferir que seriam pe-
• Concentração de vestígios arqueológi- quenas estruturas de combustão para fins bem
cos associados às manchas no solo (de específicos. Nas decapagem 47/46 outra peque-
diferentes colorações), fora do contexto na mancha avermelhada, quadrículas FM
dos enterramentos. 25/30 (sem associações).
Na decapagem 45 ocorre uma mancha de
Os dados apontam para a hipótese de que 1,30 m2 nas quadrículas FL 50/55, com ma-
realmente os sepultamentos pertençam a Fase terial lítico associado e outras duas na FL
02, destacando o fato de que eles ocorrem na 45/50, porém sem associações; a primeira
face norte do terraço (exceto o de número com 0,27 m2 e a segunda com 0,93 m2. Na
160), ambos concentrados entre as quadrícu- decapagem 44 foi evidenciada uma mancha
las AM 40/55, sendo que os indícios inequívo- vermelha alongada com 0,42 m2, porém sem
cos do uso do assentamento como acampa- vestígios associados.
mento, referem-se aos vestígios e associações Enfim, o conjunto das decapagens, a dis-
evidenciados nas faces leste/ nordeste. A ob- posição dos remanescentes culturais aliados
servação das planimetrias indica que os vestí- à cadeia de produção dos conjuntos artefatu-
gios materiais associados às manchas estão ais líticos sugerem o uso temporário do sítio
dispostos ao redor e em semicírculo, caracte- como acampamento nesse período.
rística que permite a inferência de que real- A ausência de estruturas de combustão e
mente se tratavam de fogueiras. de restos faunísticos em quantidade pode ser
Fato a ser destacado é a existência de explicada pela ação de agentes naturais nos
manchas escuras com vestígios líticos de di- processos formativos do sítio, entretanto a
ferentes morfologias associados, localizadas seqüência dessas manchas, somada a dispo-
nas quadrículas FL 45/50, a partir da deca- sição dos vestígios líticos colaboram com
pagem 44 com ápice na decapagem 41, entre nossas hipóteses.

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SOLOS PALEOETNOGRÁFICOS DA sua utilização em longa duração, passou a


FASE 02 DO JUSTINO integrar os sistemas de significação do grupo
Na Fase 02 há mudanças significativas (Hitchcock & Bartram, 1998).
sobre o uso, orientação e permanência dos A base empírica para tais afirmações par-
grupos no sítio, incidindo na própria tecno- te da assertiva que é neste momento que no
logias (lítica em específico. Fagundes, Justino passa a ocorrer os rituais funerários,
2010b). Foi datado pelo método C14 em e por acreditarmos que nenhum grupo en-
8950 ± 70 A.P. (Fogueira 25, decapagens terra seus mortos em um local aleatório, so-
40/41. Beta Analytic), equivalente a um es- bretudo quando este local serviu de “cemité-
paço de 0,70 cm entre as decapagens 42 e rio” em um período que segue de 8950 A.P.
35 (entre aproximadamente 4,30 a 3,60 m até aproximadamente 1200 A.P.
de profundidade). Em suma, como todo enterramento é intru-
Há indícios que cooperam para a hipó- sivo nos pacotes sedimentares, ou seja, se en-
tese de que as ferramentas líticas passam a terra o indivíduo em covas rasas ou profundas;
ser produzidas no Justino, visto que nas acreditamos que os sepultamentos evidencia-
análises das seqüências operacionais e dos dos no cemitério D (entre as decapagens 44 e
produtos gerados do processo de manufa- 52) são provenientes dessa ocupação, onde foi
tura, 75,0% do conjunto está constituído possível observar uma concentração maior de
por resíduos de lascamento, além da pre- estruturas e associações. Assim, o terraço do
sença significativa de núcleos (27 peças) e Justino neste período passa a ser reconhecido
percutores (16 peças). Os instrumentos pelos grupos como um signo.
ainda aparecem em número elevado Com base nos apontamentos de Schlan-
(17,51% do total), além disso, grande parte ger (1992), acreditamos que a área onde foi
dos implementos foi manufaturada em evidenciado o sítio Justino, bem como todo o
arenito silicificado que ocorre em 30,43% seu entorno, passa a constituir um lugar per-
das peças desta fase, índice significativo sistente, inicialmente relacionado às suas
quando comparado com as demais fases ou características funcionais, mas que, ao longo
sítios da Área 03. do tempo, seu uso foi redirecionado até ser
Há cinco estruturas de combustão organi- incorporado aos sistemas cognitivo e de sig-
zadas, com presença de carvão, além de qua- nificação do grupo (ou grupos), assumindo
renta manchas escuras, todas com quantidade um caráter ora residencial ora ritualístico,
significativa de restos faunísticos. Outra carac- ou ambos; sobretudo relacionado ao apego
terística de suma importância é que não há sentimental como local dos ancestrais (Hi-
sepultamentos nestes solos ocupacionais. tchcock & Bartram, 1998).
Nossa hipótese é que a partir deste perío- Assim sendo, neste período o local
do o sítio Justino passa a ser concebido pelo perpassa de entidade física e assume um
grupo como um lugar persistente (Schlan- caráter duplo. Um enquanto sua inerente
ger, 1992; Fagundes, 2009), dadas as caracte- materialidade e outro enquanto constitu-
rísticas de ambientação do local; sua impor- ído por aspectos cognitivos e comporta-
tância regional em termos de disponibilidade mentais, visto que como lugar persistente
de recursos; acesso ao pediplano sertanejo pode ser concebido como um sistema de
pelo riacho Curituba, um dos maiores da re- signos e símbolos apropriados e transmi-
gião; estabilidade micro-climática oferecida tidos por sociedades humanas (Mauss,
pelo canyon (Ab’Saber, 2002); e, quiçá, dada 1974; Fagundes, 2009).

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Na análise da distribuição espaço-tempo- de mancha com 2,15 m2 de extensão; e a


ral dos remanescentes culturais (687 no to- última na AE 50/55 de pequena dimensão
tal), percebe-se que a maior concentração de 0,64 m2, mas com muito lítico associado.
vestígios situa-se na face leste do sítio, espa- Entre as decapagens 39 e 35 percebe-se
ço marcado pela existência de muitas man- que o comportamento da distribuição espa-
chas no solo, com associação de cultura ma- cial continua o mesmo. Entre as decapa-
terial lítica e restos faunísticos. gens 39/38 foram evidenciadas cinco man-
A estrutura de combustão 25, localizada chas escuras e três concentrações de
entre as decapagens 41/40 e medindo 1,22 material lítico (duas isoladas e uma asso-
m2, apresentou material lítico associado e ciada à área de sepultamento).
restos faunísticos. Fato a ser destacado en- Nas decapagens 36/37 a porção do sítio
quanto recorrência é que tanto nessa foguei- com maior concentração de vestígios está
ra quanto em duas manchas escuras com entre as quadrículas AM 10/25 (não relacio-
material lítico associado, destaca-se a pre- nadas aos sepultamentos) e AM 30/45, rela-
sença de um percutor e de resíduos. cionadas aos sepultamentos do cemitério D,
Ainda nas mesmas decapagens, na man- mas é notório o uso mais freqüente do eixo
cha evidenciada entre as quadrículas AL AS 01/35, ou seja, área sem sepultamentos.
21/25 (mancha A), medindo 0,90 m2, há Foi possível identificar as seguintes estrutu-
muito material lítico concentrado, constitu- ras e concentrações:
ído por resíduos com presença de uma las-
ca bruta, em sua maior parte; além de restos • Entre a decapagem 37/36, quadrículas FL
alimentares. Já a evidenciada entre as qua- 35/40, concentração circular de vestígios
drículas FM 10/15 (mancha B) trata-se de (líticos, vértebras de peixes e conchas calci-
uma grande mancha medindo 2,15 m2, com nadas), porém sem estarem associados às
blocos e vestígios líticos associados (resídu- fogueiras ou manchas.
os e um percutor). Conjectura principal diz • Duas manchas escuras na área de sepulta-
respeito ao processo de reparo de instru- mento, entre as quadrículas AE 40/45, a pri-
mentos durante o preparo de alimentos nas meira (M01), associada a vestígios líticos,
fogueiras (?), uma vez que não há indícios medindo 0,93 m2; a segunda sem associa-
de lascamento ‘stricto-sensu’ ou de lasca- ções, medindo 0,48 m2.
mento térmico que justificasse a presença • Duas estruturas de combustão localizadas
de resíduos e percutores associados às fo- na face leste do sítio, com material lítico e
gueiras. restos faunísticos circundando ambas.
A primeira associação ocorre próximo a) Fogueira 22, localizada na quadrícula
ao local do sepultamento 158 associada a AE21/25, medindo 0,36 m2.
uma mancha escura de 1,80 m2, com pre- b) Fogueira 21, também localizada na
sença de muito material lítico (inclusive ar- quadrícula AE 21/25, medindo 0,25 m2.
tefatos) e restos alimentares carbonizados. • Logo atrás dessas fogueiras observa-se a
A segunda concentração está localizada na presença de quatro manchas escuras, todas
FM 40/45, próxima de uma mancha 1,33 com material lítico e restos faunísticos asso-
m2, com muito material lítico e restos fau- ciados, a saber:
nísticos associados; a terceira na FM 50/55 a) Mancha escura 01, localizada na FL
outra mancha esta com 0,70 m2, com lítico 25/20, medindo 0,61 m2, com muito líti-
associado; a quarta na FM 45/50, uma gran- co associado.

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b) Mancha escura 02, ao lado da mancha lascamento e núcleos), aparecendo geral-


01, localizada na quadrícula FL 16/20 mente associados às fogueiras ou manchas
medindo aproximadamente 2,00 m2, no solo, indicativo de que pelo menos parte
sem material associado. do processo de debitagem estava ocorren-
c) Mancha escura 03 na mesma quadrí- do no local, tanto relacionado à produção
cula da mancha 02, porém bem peque- de artefatos mais expeditos, sobretudo de
na, aproximadamente 0,10 m2, sem ma- quartzo, como também no processo de ma-
terial associado. nutenção/ reparo, este último processo in-
d) Mancha escura 04, na FL 11/15, me- dicado pela quantidade de estilhas de sílex.
dindo 2,80 m2, com material lítico e fau-
nístico associado. SOLOS PALEOETNOGRÁFICOS DA
FASE 03 DO JUSTINO
O que se percebe é que este espaço do A Fase 03 (entre as decapagens de nú-
sítio foi utilizado constantemente. A título mero 34 e 16 – 3,50 a 1,70 m de profundida-
de especulação podemos considerar: (1º) de), coincidente com o cemitério C, é mar-
Área habitacional; (2º) Área onde ocupa- cada por períodos de curtas ocupações, que
ções seqüenciais ocorreram em um curto podem estar associadas ao uso do sítio
espaço de tempo, dada a quantidade de es- como acampamento temporário ou de in-
truturas de combustão e manchas que, es- cursões para visitação aos mortos, ou am-
tariam associadas às antigas fogueiras. bas as situações.
De qualquer forma podemos inferir que Entretanto, a questão é: por que nesse pe-
nesse espaço entre as quadrículas AM (S) ríodo de quase 800 anos o terraço é suposta-
1/35, foi uma área com indícios de acampa- mente ‘abandonado’ pelos grupos (entre 5570
mento com o registro arqueológico apon- A.P. a aproximadamente 4790 A.P. com base
tando para o desenvolvimento de ativida- nas datações das decapagens 30 e 20)?
des relacionadas ao preparo de alimento, A Fase 03 foi dividida em três períodos de
proteção e lascamento. ocupação distintos, sobretudo relacionados às
No tocante a tecnologia lítica, foi possí- indicações de Dominguez & Britcha (1997). To-
vel perceber uma quantidade significativa davia, antes de iniciarmos a descrição dos so-
de peças líticas (principalmente resíduos de los evidenciados pelas escavações, acredita-

lascas liticos total


Decap. residuos nucleos perutores artefatos ec me ra c
brutas total vestigios

42 61 06 01 03 02 73 – 06 02 03 84
41 58 04 05 02 – 69 – 06 04 03 82
40 45 07 04 01 05 62 01 – 07 – 70
39 43 05 05 – 01 54 – 05 – – 59
38 52 05 03 02 01 63 01 07 – 05 76
37 66 12 02 03 03 86 02 06 – – 94
36 56 15 03 01 08 83 – 03 – – 86
35 85 26 04 05 08 128 01 07 – – 136
Tabela 03. Remanescentes culturais da Fase 02 do Justino. Legenda: EC= estruturas de combustão; ME=Mancha
escura; RA=restos faunísticos; C=conchas.

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mos ser interessante à realização de um terraço do Justino (além dos demais sítios
exercício especulativo comparando a Fase 03 surgirem após esse período), pode-se inferir
com as demais, em função da série de hipóte- sobre as causas desta quebra de estabilidade
ses que têm sido formuladas, pensadas e re- ocupacional entre a Fase 02 e Fases 04 e 05,
pensadas sobre esse sítio. representada pelas curtas permanências na
A equipe de escavação privilegiou datar o primeira e segunda ocupações da Fase 03.
sítio em intervalos de 1,00 m de profundidade De qualquer forma, todos os dados apre-
entre as decapagens 10 e 40, exceto que dadas sentados são pouco conclusivos e, por isso,
às particularidades dos cemitérios B e A outras o caráter especulativo.
decapagens foram datadas. Com base exclusi- Mesmo com as indicações de Domin-
vamente nesses resultados das datações abso- guez & Britcha (1997) sobre as cheias do
lutas em C14, observou-se que durante a Fase São Francisco e a intensidade das mesmas,
03, entre as decapagens 30 e 20, o processo de não podemos afirmar com certeza até que
formação do terraço foi mais rápido que nos ponto elas influenciaram na organização
demais períodos, ou seja, em aproximadamen- social desses grupos, sobretudo a partir da
te 800 anos fora acrescido mais um metro de decapagem 20 onde a quantidade de rema-
sedimento, conforme tabela 02. nescentes culturais, concentrações e asso-
Os dados de paleoambiente que temos ciações são imensas, não havendo espaços
para a área de pesquisa (Ab’Saber, 1989, sem presença de cultura material, enterra-
2002, 2003; Cavalcanti, 2005), apontam para mentos intactos (exceto na Fase 05, onde há
uma estabilidade climática no Nordeste a muitas concentrações de ossos que podem
partir da passagem do pleistoceno para o ter sido enterramentos bioturbados, porém
holoceno, com a presença do clima semi- em função de diferentes causas), etc.
-árido e da caatinga, sendo que, inclusive, a Logo é extremamente importante des-
região passou por um período ainda mais tacar que se trata de um exercício repleto
árido do que atualmente, com estações se- de limitações, sobretudo do ponto de vista
cas mais prolongadas. Entretanto, é notório geomorfológico, uma vez que não está in-
que o regime de cheias do São Francisco in- cluso em uma teoria interpretativa dos so-
depende, até hoje, do clima semi-árido. los, com dados acerca de índices erosivos
Assim, supondo que no período entre 5500 e de sedimentação aliados à situação to-
e 4500 A.P. as cheias e vazão do rio fossem poambiental da área de estudo, destacando
mais intensas (e por isso que o processo depo- as qualidades de vazão e dinâmica alu-
sicional foi mais rápido que nos demais – le- viais nos terraços.
vando em conta os processos deposicionais Neste caso as informações aqui apresen-
coluviares e os erosivos), seria uma entre as tadas não podem ser consideradas como
possíveis explicações da causa do terraço ter conceitos chaves/interpretativos para ava-
sido ‘abandonado’? Seria em função desta liação da Fase 03, mas indicam a necessida-
condição que os demais sítios arqueológicos de de estudos da relação deposição/erosão e
da Área 03, com base nas datações de alguns formação do pacote arqueológico e sedi-
deles por termoluminescência, passam a sur- mentar no holoceno médio em Xingó.
gir apenas após esse período? Em meio a estas extrapolações pode-se
Dessa forma, somando-se essas hipóteses indicar que entre as causas da inexistência
com a nossa realidade empírica de que os de remanescentes culturais em densidade
grupos não permaneceram muito tempo no no Justino decorre das suposições, a saber:

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as primeiras ocupações da Fase 03 diz res-


• Que o processo de cheias (e vazão) do São peito ao uso do sítio enquanto acampamen-
Francisco impediu a ocorrência de ocupa- to temporário, podendo estar relacionado
ções mais fixas ou prolongadas no terraço ao desempenho das atividades cotidianas
do Justino no período indicado. do grupo (grupos), bem como aquelas de
• Que em função desse provável período de ins- caráter mais ‘ritualístico’ (visita aos ances-
tabilidade ambiental, associado a uma maior e trais). Não acreditamos que se trata de solos
presumível vazão do São Francisco, transforma- de ocupação intactos, principalmente em
do o terraço do Justino em um patamar antigo função da complexidade que envolve a estrati-
ficação desse sítio.
Decapa- Profundi- Intervalo Formação Se pensarmos o
Datação Método
gem dade (M) (M) (Anos)
sítio em sua totali-
40 8950 ± 70 AP C14 4,10 1,00 –
dade esse período
30 5570 ± 70 AP C14 3,10 1,00 3400
não registra a pre-
20 4790 ± 80 AP C14 2,10 1,00 780
sença de estruturas
13 3270 ± 35AP C14 1,40 0,70 1520 de combustão or-
10 2650 ± 150 AP C14 1,10 0,30 620 ganizadas, apenas
08 2530 ± 70 AP C14 0,90 0,20 120 manchas (entre as
06 1780 ± 60 AP C14 0,70 0,60 490 decapagens de nú-
03 1280 ± 45 AP C14
0,40 0,30 1280 mero 34 e 21 – de
3,50 a aproximada-
Tabela 04. Dados comparativos de formação do terraço Justino
(partindo da sedimentação – sem índices erosivos) mente 2,20/2,10 m
de profundidade –
de inundação; pode-se imaginar que tal ação foram evidenciadas 62 manchas escuras no
deve ter interferido significantemente na com- solo), e a própria distribuição dos vestígios
posição de estruturas existentes e mesmo des- nos solos de ocupação; pode-se inferir que
truído parte de um pacote cultural preexistente. ocorreram bioturbações significativas, mui-
to embora a maior parte desses vestígios
Ou seja, poderiam ter ocorrido duas esteja associada às manchas de prováveis
situações: antigas fogueiras, nesse caso, pode-se infe-
rir que os materiais mais leves (carvão, es-
• Os grupos estavam ali, porém as ações natu- tilhas, restos faunísticos, etc.), possam ter
rais foram responsáveis em desmantelar o re- sido mais facilmente carreados.
gistro arqueológico; Feito nosso exercício, cabe a descrição
• Os grupos não permaneceram no local, vi- das diferentes ocupações da Fase 03. A pri-
sitando-o com certa freqüência, mas em pe- meira ocupação ocorre em um intervalo de
quenas ocupações. 0,60 m, entre as decapagens 34 e 29. É mar-
cada pela presença de poucos remanescen-
Sob o nosso ponto de vista, sobretudo tes culturais, evidenciando o uso do sítio,
após a avaliação dos mapas de plotação de sobretudo no eixo AS 1/35, fora da área de
vestígios, características da cadeia operató- sepultamentos, dado que corrobora com
ria lítica e a inexistência de pacotes arqueo- nossa hipótese de seu uso como acampa-
lógicos com sepultamentos provindos desse mento temporário, datado de 5570 ± 70 A.P.
período; acreditamos que a realidade para (Decapagem 30. Beta Analytic).

ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes
85

Os vestígios líticos estão representados ção das covas para os sepultamentos e que
por trinta e seis peças e, nesse período, no Justino as camadas de ocupação apre-
ocorrem os primeiros elementos cerâmicos sentavam muito pouca inclinação (Vergne,
representados por seis fragmentos. Além 2004); é justo creditar que os indivíduos
disso, nota-se o número elevado de man- exumados entre as decapagens 28 e 22
chas escuras no solo (32 no total). (aproximadamente), sejam provenientes
Observa-se que na área dos sepultamen- de um novo momento nos terraços em Xin-
tos relacionados ao cemitério D (AS 35/55) gó, representado pelo advento da tecnolo-
quase não há remanescentes culturais, sen- gia cerâmica que deve ter ocorrido em tor-
do que a maior parte dos evidenciados nes- no 4790 ± 80 AP (datação para a decapagem
se solo de ocupação diz respeito à parte 20), sendo que os elementos anteriores a
oposta do sítio. esta decapagem devem ter origem também
Na decapagem 34, quadrículas AE 20/25, intrusiva em função da própria intervenção
foi evidenciada uma grande mancha escura humana, pré-histórica, no solo; fato que de-
de 2,80 m2, com bastante material lítico e ver ser somado às características acerca da
restos alimentares associados, inclusive é a freqüência e morfologia dos elementos evi-
maior concentração de peças líticas dessa denciados.
ocupação, visto que nas decapagens subse- Neste caso, recuamos o advento da ce-
qüentes o número de elementos é bem re- râmica em Xingó aproximadamente 1000
duzido, geralmente sem associações. As de- anos. Todavia, esta conjectura necessita de
mais manchas desse período são uma análise mais bem detalhada. Logo, o
numericamente significativas, porém muito que queremos afirmar é que esses ‘mortos’
pequenas, geralmente não passando de 0,20 são provenientes das ocupações entre as
m2, exceto por uma grande mancha escura decapagens 15 e 20/22, ou seja, do último
evidenciada na decapagem 30, de 1,80 m2, período de ocupação da Fase 03.
localizada na área de sepultamento, quadrí- Nessa segunda ocupação, há um redire-
culas FL 50/55, podendo estar relacionada à cionamento do uso do espaço, uma vez que
ritualidade (?). o eixo de utilização se confirma no corre-
A segunda ocupação ocorre entre as de- dor AS 01/35 (aproximadamente 700 m2),
capagens 28 a 22, em um intervalo de 0,70 como salientado, com o surgimento de se-
m, não havendo datações absolutas para pultamentos (decapagens 28 e 27). Diferen-
esse período entre 5570 e 4790 A.P., aproxi- te dos demais cemitérios estudados por
madamente. Há uma diminuição dos rema- Vergne (2004), não há concentrações espe-
nescentes culturais no sítio, evidenciando o cíficas, estando os enterramentos distribu-
seu uso esporádico (sazonal), estando rela- ídos sob forma de conjuntos em semicírcu-
cionado aos acampamentos temporários, lo tanto nas faces norte como face sul do
como associado à ritualidade funerária, sítio.
muito embora possa se alegar à ação de Para Vergne (2004), esses enterramen-
agentes naturais nos processos formativos tos estariam ‘arrumados’ em semicírculos
do registro arqueológico. acompanhando o que seriam as antigas ha-
Nesse período começam novamente a bitações dos primeiros ceramistas na área.
ocorrer enterramentos. Todavia, lembrando A partir decapagem 26 até a 23/22 ob-
que todo o sepultamento é intrusivo, além servam-se poucos vestígios materiais no
disso, que há padrões regulares na confec- solo de ocupação, contudo os vestígios

REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:68-97 - 2010


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líticos só aparecem associados às man- seja, um novo cenário que obrigou a popula-
chas no solo, salvo raras exceções. Essas ção a traçar estratégias adaptativas ao meio
concentrações estão distribuídas irregu- natural e social; tal fato é observado empirica-
larmente, sobretudo nesse espaço do sítio mente pelos itens, a saber:
supracitado. De qualquer forma cabe uma
pequena descrição dos remanescentes • O aumento significativo dos remanescentes
culturais por decapagem: culturais evidenciados na escavação, sobretu-
do referente aos itens que são descartados na
• Decapagem 28 – Entre as quadrículas FL área habitacional (espaço ‘doméstico’).
45/50 há um número significativo de cultura • Pela mudança na tecnologia lítica e pelo
material lítica, entretanto associada aos se- advento da cultura material cerâmica.
pultamentos. Na quadrícula EF 49/51 foi evi- • Pela diminuição paulatina na diversidade
denciada uma mancha avermelhada no solo do uso de recursos líticos.
de 0,90 m2, com uma lasca bruta associada. • Diminuição dos implementos de curado-
• Decapagem 27 – ocorre a base do esquele- ria nos solos de ocupação do Justino que,
to 168 na quadrícula AE 26/30, com muito inversamente, passam a existir nos sítios de
lítico associado como enxoval funerário. Na atividade específica.
quadrícula FL 50/55 ocorre uma mancha • Surgimento de novos sítios de terraço.
escura de 0,30 m2 sem material arqueológi- • Diminuição na mobilidade residencial e
co associado. aumento na logística.
• Decapagens 26 e 25 – quase não há vestígios
materiais que ocorrem distribuídos pelo espa- A partir da decapagem 21 observa-se o
ço do sítio, são quatro líticos e dois fragmentos aumento de cultura material lítica e cerâ-
cerâmicos. Há uma pequena mancha escura mica, bem como o número de sepultamen-
na área de sepultamentos, FL 45/50. to que, supostamente, sejam decorrentes
• Decapagem 24 – ocorre o mesmo que nas das ocupações anteriores. Há também uma
anteriores, sendo evidenciados apenas dois nova realidade no uso do espaço no tocan-
fragmentos cerâmicos, associados a uma pe- te aos locais onde os sepultamentos estão
quena mancha na quadrícula AF 15/20. Entre sendo levados a cabo, passando a se con-
as quadrículas AM 10/20 há concentração de centrar na FL 10/35 e na PR 35/39. O que
manchas escuras no solo, todas muito peque- se pode observar por meio da disposição
nas e sem vestígios arqueológicos associados. dos sepultamentos tanto vertical como ho-
Na quadrícula FL 49/52 uma mancha cinza de rizontalmente é uma ‘mescla’ entre os pa-
0,73 m2, com um fragmento de resto faunístico. drões do cemitério D e B. Novamente con-
firmando a hipótese de Vergne (2004), de
Entre as decapagens 21 a 16 é o momento um período transitório.
marcado pelo aumento significativo dos rema- A partir da decapagem 18/16, há uma
nescentes culturais, sobretudo a cerâmica, ‘explosão’ de cultura material, associada
sendo datado em 4790 ± 80 A.P. (Decapagem ou não aos sepultamentos. É a partir des-
20. Beta Analytic). Acreditamos que aqui é o se momento, com ápice no cemitério B,
momento de transição indicado por Vergne que acreditamos que o sítio passa a ser
(2004), onde o grupo passa a se fixar por maior mais usado pelo grupo (ou grupos), tanto
tempo no terraço do Justino, por todos os fato- para execução de suas práticas cotidia-
res que temos discutido ao longo deste texto, ou nas (enquanto espaço doméstico), quanto

ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes
87

Gráfico 01. distribuição espaço-temporal dos remanescentes culturais evidenciados na fase 03 do sítio justino.
eixo y – quantidade de vestígios eixo x – decapagens: 01 = decapagem 36 e 19= decapagem 16

para as culturais-simbólicas relaciona- 2004), pode-se observar que não há interva-


das às práticas mortuárias, como discuti- los de abandono do sítio neste período, ca-
remos a frente. racterística observada pela distribuição dos
Em resumo, a Fase 03 é marcada por remanescentes culturais na estratificação,
diferentes níveis e tipos de ocupação do es- marcada pela presença expressiva de estru-
paço do Justino. Não sabemos as causas turas em todas as decapagens.
diretas do abandono do sítio durante a pri- Estes remanescentes estão distribuídos
meira e segunda ocupações, do mesmo por toda a área do sítio, porém estando con-
modo, quais os motivos que levaram o gru- centrados na parte leste, mais próxima à
po (grupos) a utilizá-lo novamente como encosta do canyon (entre as quadras AS
habitação após um longo período. De qual- 35/55); geralmente associados às diferentes
quer forma o estudo dessa Fase foi de suma estruturas, não apenas aos sepultamentos.
importância uma vez que foi possível ma- Cabe ressaltar que neste período é que se
pear características para a compreensão encontra o maior número de enterramentos
do assentamento em sua totalidade. do Justino. Indiscutivelmente é na Fase 04,
cemitério B, que o sítio estava sendo ocupa-
SOLOS PALEOETNOGRÁFICOS DA do como habitação semipermanente.
FASE 04 DO JUSTINO A respeito dos sepultamentos exumados
A Fase 04, entre as decapagens 15 a 09, é nessa Fase, pode-se concentrá-los em três
o momento de explosão no tocante ao uso momentos distintos, a saber:
do espaço no Justino. Há um aumento sig-
nificativo na quantidade, diversidade e con- • Entre as decapagens 14 e 13 (entre 1,50 m
centração dos remanescentes culturais, in- e 1,30 m de profundidade) – em que foram
clusive com presença de diferentes evidenciadas nove sepulturas e três agrupa-
estruturas no solo de ocupação, datado en- mentos de ossos, concentrados entre as
tre 3270 ± 135 AP (decapagem 13) e 2650 ± quadrículas MZ 21/35; período datado em
150 AP (decapagem 10). 3270 ± 135 A.P., com base no carvão da fo-
Com base na distribuição estratigráfica gueira 09 evidenciada na decapagem 13.
dos remanescentes culturais, nos estudos • Entre as decapagens 12 e 11 (entre 1,30 m
sedimentológicos (Dominguez & Britcha, a 1,10 m de profundidade) – em que foram
1997) e da ritualidade funerária (Vergne, evidenciados treze sepultamentos e três

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concentrações de ossos, entre as quadrícu- 21-35, perfazendo 225 m2, também abran-
las FZ 21/32; gendo o setor II do Justino (Vergne, 2004).
• Entre as decapagens 10 e 09 (entre 1,10 m No que se refere aos conjuntos artefa-
a 0,90 m de profundidade) – onde foi exu- tuais líticos, a expediência é notória nes-
mado o maior número de indivíduos, totali- se desse período, mas também encontra-
zando trinta e nove sepultamentos e cinco mos artefatos mais bem manufaturados,
concentrações de ossos, datados em 2650 ± sobretudo em sílex. Aqui o uso do quartzo
160 A.P., com base no carvão da fogueira 19; torna-se realmente majoritário entre os
ambos localizados entre as quadrículas FZ conjuntos líticos (cerca de 73,00%). Nos-
21/35. sa hipótese, como anteriormente se dis-
cutira, vincula-se à maior sedentarização
Ainda segundo Vergne (2004) a distri- do grupo (grupos) nesse período, instau-
buição dos enterramentos nesse momen- rando decididamente o uso do assenta-
to segue uma ordem lógica, estando divi- mento como base (habitação).
didos em diferentes conjuntos: um Segundo nossas inferências, obtidas
principal e quatro secundários, além do em meios aos dados estatístico-comparati-
sepultamento n°165 que se encontrava vos (Fagundes, 2007; 2010b), os núcleos es-
completamente isolado dos demais. gotados encontram-se nas decapagens fi-
É importante frisar que os conjuntos nais desta Fase (11 a 09), período que
secundários trazem especificidades tais também ocorre a maior quantidade de resí-
como vasilhames completos sobre o indi- duos de lascamento (52,28% do total) e
víduo sepultado (conjunto 03, constituído maior freqüência de percutores (52,38% do
pelos sepultamentos de número 118, 116 total). Tais recorrências indicam que em
e 10), ou dentro de vasilhames cerâmicos torno de 2500 A. P. a atividades redutivas
(conjunto 04, sepultamento 167 e 166). para a produção de ferramentas líticas eram
Além disso, a distribuição espacial das mais freqüentes, sobretudo para a manufa-
sepulturas do cemitério B (em forma cir- tura de ferramentas expeditas para uso mo-
cular e extremamente agrupados) sugere mentâneo, com pouca preocupação com a
que os enterramentos tenham sido reali- morfologia ou questões relativas à durabili-
zados seguindo o contorno da habitação dade ou ‘estética’, ou seja, a ferramenta de-
(conforme Vergne, 2004). veria ser útil para uma atividade imediata e
Ou seja, com base nos dados empíricos certamente pouco especializada.
da autora, percebe-se que os enterramen- Na decapagem 11, por exemplo, a maior
tos distinguem-se até mesmo no espaço do parte dos artefatos stricto-sensu estava
sítio arqueológico, além disso, foi notória a constituída por ferramentas sobre seixo ou
hierarquia social entre os indivíduos, ob- bloco, que receberam poucos golpes para a
servada em sua pesquisa por meio da aná- criação de um bordo ativo. São pouco espe-
lise dos remanescentes culturais associa- cializados e pela análise macroscópica per-
dos aos sepultamentos como mobiliário cebeu-se que foram peças utilizadas e des-
funerário (Vergne, 2004). cartadas.
Assim, diferente que se observou no Ce- O conjunto artefatual depositado como
mitério C, os sepultamentos aqui estão mobiliário funerário, entretanto, há modifi-
concentrados (salvo raras exceções) na cações sensíveis. São peças mais bem elabo-
face sul do terraço, entre as quadrículas FZ radas, com marcas claras de manutenção/

ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes
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reparos em muitas, sendo que as ações • Na decapagem 10, quadrícula AE 35/40, foi
transformativas pós-debitagem ocorrem evidenciada uma imensa mancha escura de
com maior freqüência, denotando uma aproximadamente 6,00 m2, retangular, com
maior preocupação com a durabilidade do uma significativa quantidade de fragmentos
instrumento, características que afastam a cerâmicos e restos faunísticos associados.
possibilidade desse material ter sido manu- Na quadrícula ao lado, AE 40/45, foram evi-
faturado exclusivamente para fazer parte do denciadas seis manchas escuras, todas de
mobiliário funerário. pequenas dimensões, porém também com
Em relação à tecnologia cerâmica obser- muito material faunístico e fragmentos ce-
vamos uma maior diversidade de tipos de- râmicos associados (mancha 01 = 0,42 m2;
corativos em relação à Fase posterior (Luna, mancha 02 = 0,40 m2; mancha 03 = 0,37
2001; Vergne, 2004). m2; mancha 04 = 0,17 m2; mancha 05 =
No tocante ao estudo dos solos de ocupa- 0,55 m2 e mancha 06 = 0,43 m2). Na qua-
ção dada a quantidade imensa de material é drícula FL 51/55 foi evidenciada a fogueira
quase impossível indicar concentrações e 19 (0,60 m2), com muitos remanescentes
associações. São 61 manchas escuras, todas associados na face norte dessa estrutura, so-
com remanescentes associados; 08 man- bretudo cerâmica, peças líticas e restos fau-
chas claras, 03 manchas vermelhas e 01 nísticos.
mancha cinza. No que diz respeito às estru- • Na decapagem 12 o maior destaque diz
turas de combustão pode-se evidenciar 05 respeito à fogueira 15 (quadrícula AE 36/40
nessa fase do Justino, sendo que 02 que es- com 0,71 m2 de dimensão), onde havia
tavam associadas aos conjuntos de estrutu- grande concentração de remanescentes cul-
ras funerárias foram datadas: as fogueiras turais, dispostos ao redor da estrutura (em
09 e 19. círculo).
Para essa fase, dada a quantidade de re-
manescentes culturais nos solos de ocupa- SOLOS PALEOETNOGRÁFICOS DA
ção, tornou-se difícil a visualização de con- FASE 05 DO JUSTINO
centrações ou associações dos A última fase de ocupação do sítio está lo-
remanescentes culturais, exceto em casos calizada entre as decapagens 08 e 01 (um in-
específicos. Assim, julgamos não ser neces- tervalo de 80 cm, entre 0,10 e 0,90 m de pro-
sária a descrição minuciosa de cada uma fundidade), ocorrendo duas datações para o
das decapagens, exceto para algumas parti- período: para a primeira ocupação 1780 ± 60
cularidades, a saber: AP (decapagem 06); e 1280 ± 45 AP (decapa-
gem 03), para a segunda ocupação.
• Na decapagem 09 a maior concentração de A Fase 05 (equivalente ao cemitério A) foi
remanescentes culturais está na área de se- subdividida por nós em duas ocupações, uti-
pultamentos. Na fogueira 09 (AF 15/20 com lizando como critério a presença de sepulta-
0,18 m2 de dimensão) havia uma concen- mento (que ocorrem entre as decapagens 08
tração de vestígios materiais, sobretudo ce- e 04) ou ausência deles (entre 03 e 01). Entre-
râmica, na face sul dessa estrutura, em for- tanto, o estudo das cadeias operatórias líticas
ma de semicírculo. Na fogueira 08 (AE demonstrou uma similaridade extrema entre
16/20 com 0,80 m2), apesar de maior que a os conjuntos provenientes dessa divisão, no-
anterior não houve nenhum tipo de vestígio toriamente arbitrária.
material associado. Como dito anteriormente, esse pode ser

REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:68-97 - 2010


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VESTÍGIOS LÍTICOS OUTROS REMANESCENTES


Decap. Total
res lb n per art total cer ec me mc mv mcz ra
15 49 15 02 03 07 76 721 – 10 – – – 151 958
14 118 06 03 02 07 136 504 – 08 01 01 – 91 741
13 106 08 04 05 04 127 525 – 03 03 – 01 146 805
12 124 07 02 03 04 140 668 03 15 – 01 – 183 1010
11 151 10 04 02 08 175 545 01 08 02 01 – 211 943
10 111 12 03 06 07 139 546 01 12 02 – – 213 913
09 173 14 03 – 08 198 1054 – 05 – – – 302 1558
Total 832 72 21 21 45 991 4563 05 61 08 03 01 1297 6929
Tabela 05. Remanescentes culturais da Fase 04, Justino. Legenda: RES = resíduo; LB = lasca bruta; N = núcleo;
PER = percutor; ART = artefato; CER = fragmentos cerâmicos; EC = estruturas de combustão; ME = mancha
escura; MC = mancha clara; MV = mancha vermelha; MCZ = mancha cinza; RA = resto alimentar.

considerado o período com maior diferença tério, percebemos um novo direcionamento


entre os demais em relação à tecnologia lítica, dos enterramentos. Segundo análises de Verg-
com a presença de artefatos mais expeditos e ne (2004), há dois subconjuntos principais
vestígios cerâmicos apenas alisados (diferente nesse cemitério, ambos situados no quadran-
das outras fases). Logo, a característica mais te leste, entre as quadrículas AE /FL /R –
marcante desta fase é a expediência dos dife- 06/30. São sepulturas mais dispersas se com-
rentes conjuntos artefatuais. paradas ao cemitério anterior, além de
Também é o período com maior número estarem distribuídas de forma alongada e não
de remanescentes culturais evidenciados em circular. Entretanto, percebe-se que os sepul-
solo de ocupação. São tantas as estruturas e tamentos tanto o cemitério A quanto o B, não
concentrações que em nossos exercícios de so- ocorrem na face sudeste/ sul do sítio, onde há
breposição de camadas o que conseguíamos muitas estruturas em meio a espaços vazios
ver era literalmente uma imensa mancha es- que podem indicar o local das habitações.
cura em toda a área (!). Nesse caso, nos atere- A indústria lítica é marcada pelo caráter
mos a citar a quantidade de remanescentes expedito, com instrumentos sobre lascas de
que, certamente, é assombrosa; as principais quartzo muito mal retocadas, mas na maioria
características tecnológicas dos conjuntos ar- sendo manufaturados sobre pequenos blocos
tefatuais; e a disposição do cemitério e sua re- de quartzo (11 peças), onde eram executadas
lação com os solos ocupacionais. pequenas retiradas para criação de bordo ati-
Assim foram evidenciados entre as decapa- vo, do mesmo modo ocorrendo em raspado-
gens 08 e 01 (apenas solo de ocupação, excetu- res sobre seixo todos unifaciais (12 exempla-
ando mobiliário funerário), 12821 remanes- res). O restante dos artefatos está representado
centes culturais, a saber: 8667 fragmentos por quatro raspadores sobre lasca quadran-
cerâmicos; 2513 elementos líticos; 17 estrutu- gular e vinte e duas lascas retocadas. Desse
ras de combustão; 122 manchas escuras, com total, vinte e nove são de quartzo, dez de sílex,
carvão associado; 01 mancha clara; 18 man- dez de arenito silicificado e três de quartzito.
chas vermelhas; 05 manchas cinzas; 1972 res- Foi nessa Fase de ocupação do sítio que te-
tos fragmentos de restos faunísticos; 10 con- mos os dados sobre zooarqueologia mais bem
chas carbonizadas (Fagundes, 2007). trabalhados sobre o Justino, análises executa-
Em relação ao uso do espaço como cemi- das por Silva (1994) e Palmeira (1997).

ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes
91

CONSIDERAÇÕES FINAIS sujeita à dinâmica de um grande rio, o São


A redação da tese que deu origem a esse Francisco – que tem cooperado efetivamen-
artigo foi um desafio em todas suas etapas, te para as mudanças na paisagem ao longo
principalmente se pensarmos na complexi- dos anos; esperava-se encontrar um assen-
dade que envolve todas as questões arqueo- tamento com estratificação no mínimo
lógicas para a Área Arqueológica de Xingó, complicada, além de desarranjos estrutu-
dentre as quais: rais que, a priori, não possibilitariam (ou
• Seus conjuntos artefatuais não apresen- permitiriam) uma sistematização coerente
tam similaridades com as áreas circunvizi- dos dados empíricos em função dos prová-
nhas, sobretudo as ferramentas líticas e a veis movimentos verticais das peças, mistu-
tecnologia cerâmica; ras entre camadas arqueológicas, impossi-
• O sítio Justino, nosso modelo gravitacional, bilitando uma compreensão dos solos

VESTÍGIOS LÍTICOS OUTROS REMANESCENTES


Decap. Total
res lb n per art total cer ec me mc mv mcz ra
08 568 14 05 05 07 599 942 02 08 01 01 01 238 958
07 462 11 07 06 08 494 716 01 16 – – – 293 741
06 190 12 02 03 07 214 752 – 12 – 03 03 197 805
05 225 15 – 06 06 252 834 03 23 – – – 218 1010
04 222 13 02 04 05 246 772 02 04 – 01 01 64 943
03 218 12 01 02 09 242 792 05 28 – 11 11 366 913
02 200 13 05 03 – 221 1944 03 18 – 02 02 314 1558
01 202 20 12 05 06 245 1915 01 13 – – – 282 6929
Total 2287 110 34 34 48 2513 8667 17 122 01 18 05 1972 12821
Tabela 06. Remanescentes culturais da Fase 05

apresentou datações antigas em torno de 9000 paleoetnográficos de ocupação (Leroi-Gou-


anos A.P.; surgimento da tecnologia cerâmica rhan, 1950, 1972).
no holoceno médio, por volta de 4500 anos Precisávamos entender o rio, a caatinga, os
A.P.; além dos 185 esqueletos evidenciados. diferentes compartimentos componentes da
paisagem e, sobretudo, elucidar o contexto sis-
Em função dessas e outras tantas caracte- têmico em um exercício reflexivo de como se-
rísticas, discussões arqueográficas, metodoló- ria o modo de vida e dinâmica cultural em
gicas e conceituais surgiram (e surgem) rela- nossa área de pesquisa, buscando possibilida-
cionadas ao Justino. Obviamente o modelo des e limitações para questões acerca da mobi-
aqui apresentado para o Justino poderá não vir lidade, da realização das atividades cotidianas,
a ser consenso entre os pesquisadores que efe- das seqüências operacionais e, conseqüente,
tuaram trabalhos em Xingó, uma vez que as organização tecnológica, da função de sítios e
diversas interpretações que têm sido dadas ao do sistema regional de assentamento.
sítio Justino, principalmente porque grande Foi nesse momento que passamos a nos
parte desses estudos teve como foco as análises interessar pela paisagem (‘arqueológica’) e
intra-sítio deste assentamento. que descobrimos o conceito de persistent pla-
Por ser um sítio em terraço fluvial, área ces (Schlanger, 1992). Derivado/ extraído da

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abordagem de lugar, assim como outros tan- Loci, refletindo sobre as condições que per-
tos ramificados do artigo de Lewis R. Binford mitiram certas escolhas/ estratégias e as in-
(1982 11) em que o autor amplia noção de sítio ter-relações entre sociedade versus meio
arqueológico, sem desmerecê-lo, mas apon- que, ao final de nossa pesquisa, nos apareceu
tando para a necessidade de compreensão dos de maneira distinta do que concebíamos.
não-sítios e, principalmente, da importância Constantemente nos reportamos ao con-
em entender as inter-relações entre sítios con- texto enquanto uma unidade básica inter-
temporâneos de uma área. pretativa. O artefato nos diz pouco (ou nada
Assim, discorrer sobre lugares persistentes quando fora de seu ‘contexto’), as estruturas
é diferente de falar em multicomponencialida- devem estar devidamente mapeadas em
de, isto é, o uso do primeiro pressupõe que suas dimensões horizontal e vertical; sítios
houve (ou há) no local sob intervenção, condi- isolados nos respondem sobre uma realida-
ções tais que permitiram sua ocupação e reo- de fracionada. O contexto pressupõe totali-
cupação em longa duração, diferente de um dade, partindo do estratigráfico (diacrôni-
único sítio (ou conjunto de sítios) com níveis co); da distribuição espacial dos vestígios
líticos e lito-cerâmicos. (sincrônico); do domínio de Mauss (1974)
Vale destacar que um sítio (ou sítios) que supõe a interlocução entre as partes
multicomponencial pode ser integrante de constitutivas de um lugar; ou do complexo
um lugar persistente, mas a abordagem situacional de sítios à moda binfordiana; se-
implica na ampliação da noção de sítio ar- guindo pela distribuição de diferentes sítios
queológico, compreendendo os espaços so- em diferentes compartimentos que consti-
ciais, os não-sítios, as ocorrências arqueo- tuem uma paisagem; além das distintas as-
lógicas, etc. sociações entre trabalho, organização tec-
Tal perspectiva está muito próxima ao nológica e estratégias/ escolhas.
que Mauss definiu como domínio em sua no- Assim, acreditamos que o Justino, nosso
ção de estabelecimento (1974), todavia sendo modelo gravitacional, foi ocupado em longa
aqui compreendida em um sentido mais es- duração em distintos momentos da paisa-
pecífico para o uso em Arqueologia, uma vez gem regional, sendo-lhe atribuídas pelo
que sob a ótica dos lugares persistentes pres- grupo (ou grupos) funções diversas ao lon-
supõe-se a paisagem em sua totalidade. go do tempo, até que, em um período que
Nesse caso, o Locus de ocupação ultra- coincide com o aparecimento da tecnologia
passa o sítio arqueológico, estando consti- cerâmica no registro arqueológico, houve
tuído por elementos bem demarcados no uma maior fixação dos grupos no terraço,
sistema sócio-cultural por meio de frontei- fato que não implica na não-existência de
ras estabelecidas enquanto elemento de outros sítios habitacionais em outros com-
significação (mesmo que fluídas), e forma- partimentos da paisagem12.
dos por todos os locais de uso continuado, O modelo criado teve como base os sítios
tanto em uma perspectiva sincrônica, de terraço e é nesse espaço que é aplicado (e
quanto diacrônica (Silva-Mendes, 2007). aplicável), fato que não nos impediu de es-
A intenção do conceito, dessa forma, é pecular sobre a mobilidade e dispersão es-
mapear a utilização em longa duração dos pacial de sítios e ocorrências, tendo como

11 Ver também os textos de 1992, 2001.


12 Não é insensato destacar que com isso não estamos relacionando cerâmica e sedentarização (ou semi), mesmo porque há
grupos detentores dessa tecnologia aliada à horticultura que são extremamente ‘móveis’. Além disso, se pensarmos em uma
morfologia social baseada na dinâmica do rio, nossas respostas ficam mais claras.

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aporte os geoindicadores para aplicação do mente distantes das áreas de sepultamento


conceito de lugares persistentes. e todo o comportamento observável pelas
Os demais sítios (evidenciados nas cam- plantas do sítio indicam uma setorização de
panhas de salvamento) surgem a partir des- atividades.
se período, enquanto complementares às • No holoceno médio (cerca de 5000 a 4000
prováveis novas necessidades do grupo mil anos A.P. – Fase 03) – o terraço passa a
(grupos), mais complexo em sua organiza- ser pouco freqüentado pelo grupo (ou gru-
ção social, obviamente, com base no estudo pos), que, pelo menos hipoteticamente,
da ritualidade funerária de Vergne (2004). pode ter algum tipo de relação com o regi-
Esse artigo encerra-se com um modelo me de cheias do rio. Os remanescentes con-
de ocupação para Xingó, em suas particula- centram-se em torno de possíveis estrutu-
ridades atestadas no início dessas conside- ras de combustão, ou melhor, manchas
rações, apresentando dados fundamentais indicativas das mesmas. Não há presença
para inserção dos grupos pré-históricos na de materiais leves, tais como estilhas ou
paisagem constituída e remodelada ao lon- carvão. No final desse período surge a tec-
go de quase oito mil anos de ocupação, a nologia cerâmica, sobretudo a partir da de-
saber: capagem 21/20.
• No holoceno tardio (3000 a 1000 anos A.P.
• Na paisagem do pleistoceno para o holoce- – Fases 02 e 01) – marcado pelo surgimento
no inicial (cerca de 12 a 9000 anos A.P. – Fa- dos demais sítios na área arqueológica 03
ses 05 e 04) – bandos de caçadores coletores que, segundo nosso modelo, estariam liga-
percorriam os diferentes compartimentos dos ao sítio base enquanto locais de desen-
da paisagem, dentro dos aportes de mobili- volvimento de atividades especializadas, no
dade apresentados por Binford (1982), per- chamado complexo situacional de sítios. No
mitindo a formação de sítios arqueológicos Justino há uma explosão de remanescentes
dispersos. Tal fato se fundamenta no núme- culturais associados às estruturas ou em
ro baixo de sítios em terraços com ocupa- concentrações. A tecnologia lítica adquire
ções de caçadores coletores (Justino e São um caráter ainda mais expedito, com predo-
José II). A indústria lítica, expedita, apre- minância de lascas corticais ou semicorti-
senta artefatos mais bem elaborados que cais de quarto e raspadores sobre bloco e
nas fases ocupacionais seguintes, sobretudo seixo, ambos com poucas ações transforma-
manufaturados em matérias-primas silico- tivas pós-debitagem.
sas. Em torno de 9000 e 8000 mil anos A.P.,
o terraço onde estava assentado o Justino Quando comparamos os conjuntos arte-
passa a ser mais utilizado pelo grupo. O solo fatuais de sítios contemporâneos compo-
de ocupação registra uma maior densidade nentes de uma mesma área, percebemos
de remanescentes culturais, geralmente as- que são complementares e, portanto, a aná-
sociados às estruturas de combustão. Nesse lise isolada não responderia às diversas in-
momento que acreditamos que o grupo pas- terrogações que surgem ao longo da pesqui-
sa a enterrar seus mortos no terraço. Entre- sa. Tal fato foi observado nas análises dos
tanto, a imensa quantidade desses vestígios conjuntos líticos em Xingó (Fagundes,
materiais estaria além de questões ritualís- 2010a).
ticas, uma vez que há estruturas com ferra- Como já comentado, os pesquisadores
mentas líticas e restos alimentícios relativa- responsáveis pelas análises paleoambien-

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tais em Xingó indicaram que mesmo me- levadas a cabo, aos sítios mais especializa-
diante ao regime de cheias do rio São Fran- dos.
cisco (que existiram), as denominadas Esses dados partiram principalmente da
“excepcionais” não eram tão freqüentes po- análise das cadeias operatórias dos conjun-
dendo ocorrer em intervalos de dezenas ou tos líticos. De modo geral podemos caracte-
centenas de anos. Em suas palavras: rizá-los (Fagundes, 2010b):

O principal risco geológico ao qual estas popu- • Pelo uso de seixos com pré-disposição à
lações primitivas estavam sujeitas era sem dúvi- retirada dos suportes desejados, representa-
da as cheias do rio São Francisco. As cheias ex- dos por lascas quadrangulares e trapezoi-
cepcionais (com tempo de recorrência de dais, unifaciais, sendo que em alguns foram
algumas dezenas ou até mesmo uma centena realizadas ações transformativas pós-debi-
de anos) podiam alcançar cerca de 25 metros tagem, representadas por golpes de adelga-
acima do nível normal do rio. Estas poderiam çamento e retoques (curtos e em escama),
resultar em grande destruição, até mesmo com executados na face interna para atingir a
mortes, uma vez que se tratam de fenômenos re- externa (retoques diretos). O tipo de técnica
lativamente rápidos e de grande capacidade mais freqüente é a unipolar, com uso de
destruidora (Landim Dominguez e Brichta, percutor duro. Em suma, a escolha pelo su-
1997:07) [grifo nosso]. porte pressupõe uma economia nos gestos
técnicos: seixos com certa morfologia para
Além disso, uma visão mais minuciosa obtenção de lascas corticais ou semi para
sobre os espaços topográficos próximos ao produção dos implementos líticos.
terraço demonstra que há condições reais • Pela produção de raspadores sobre seixos,
de formação de acampamento e/ou aldeias, novamente suportes previamente escolhi-
distante cerca de 50 a 200m das margens do dos por sua morfologia, onde foram realiza-
rio 13. dos golpes abruptos e perpendiculares ao
Durante as duas primeiras ocupações da eixo morfológico da peça para a obtenção
Fase 03, atestamos que o sítio Justino passa de gume ativo, sendo este último muito
a ser menos utilizado pelo grupo quando pouco trabalhado e, quando há retoques, é
comparado as estruturas e remanescentes evidente que foram realizados com a inten-
culturais com a Fase 02. ção de ativação do bordo.
Uma das causas poderia ser estas cheias • Uso preferencial do sílex, mas o quartzo é
excepcionais entre 5500 e 4500 A.P., mas, extremamente utilizado, sobretudo para a
novamente, não há dados concretos. No en- obtenção de lascas corticais para uso oca-
tanto, o emaranhado de dados elencados sional.
(Fagundes, 2007; 2010a, 2010b, 2010c) aca- • Utilização de pequenos blocos de quartzo,
bou por nos permitir inferir que os sítios da geralmente quadrangulares, como raspado-
Área 03 em Xingó realmente seriam com- res, onde foram realizadas pouquíssimas
plementares em meio a um amplo sistema transformações para adelgaçamento do
de assentamento regional: do sítio base, bordo à ativação de um gume cortante.
onde as atividades sociais cotidianas eram Enfim, é uma indústria expedita, mas

13 Nesse caso, áreas inundadas pelo lago da UHE-Xingó.


14 Aliada a toda discussão em torno da dinâmica ambiental da área, não havia unidades crono-estratigráficas que orientassem de
maneira inequívoca a escavação.

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que traz consigo traços fundamentais para a ses autores, guiamos nosso olhar para o sí-
compreensão da pré-história de Xingó. tio Justino. Com exceção das Fases 04 e 05,
Uma das grandes discussões sobre o sí- pudemos realizar exercícios com as plantas
tio Justino diz respeito a sua estratigrafia. de plotação de vestígios e pudemos verificar
Acreditamos que é uma estratificação com- que vestígios nessas camadas entre 40 e 70
plexa e de difícil leitura14 . Além havia a pos- cm se relacionavam em diferentes estrutu-
sibilidade real de movimentação vertical ras ou concentrações (apresentado nesse
das peças e mistura dos solos de ocupação. texto).
Justamente por isso preferimos seguir as De qualquer forma, o sítio Justino é um
orientações paleoambientais de Landim importante assentamento no vale do São
Dominguez & Britcha (1997). Francisco e novos estudos são necessários
Assim, não se pode negar que ocorrem para se discutir lacunas existentes, princi-
movimentos verticais ou que processos ero- palmente em sua estratificação. Para tanto,
sivos foram responsáveis por perdas de par- como apresentado em nosso doutoramento
celas significativas dos solos de ocupação, (2007), dados paleoambientais seriam fun-
todavia estamos falando de uma área de damentais para a compreensão do contexto
1265 m2 escavadas. Com a orientação des- arqueológico regional.

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