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Repensando o Tráfico Atlântico ...

– Araújo & Câmara

REPENSANDO O TRÁFICO ATLÂNTICO DE ESCRAVOS:


POSSIBILIDADES, PERSPECTIVAS E REPRESENTAÇÃO
DIDÁTICA DE UM TEMA HISTORIOGRÁFICO.

Adriana Ribeiro de Araujo1


Bruno Augusto Dornelas Câmara2

Resumo: O tráfico atlântico de escravos e a diáspora africana têm


recebido atenção crescente por parte dos historiadores. Porém, nem
sempre o que é produzido na academia chega com tanta frequência nas
salas de aula. O presente artigo apresenta uma análise das abordagens e
possíveis metodologias de ensino que podem ser empregados ao se
trabalhar com essa temática na Educação Básica, utilizando como fonte
de pesquisa e análise os livros didáticos. Os resultados obtidos refletem
tanto a carência dos materiais didáticos, como também as possibilidades
do trabalho docente em relação a essa temática.
Palavras-chave: Ensino de História; Livro didático; Tráfico atlântico
de escravos.

Abstract:. The Atlantic slave trade and the African diaspora have
received increasing attention from historians. However, what is
produced in the academy does not always come so often in classrooms.
This article presents an analysis of the approaches and possible teaching
methodologies that can be used when working with this subject in Basic
Education, using textbooks as a source of research and analysis. The

1
Graduada em Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE,
Campus Garanhuns.
2
Professor adjunto do Curso de Licenciatura em História da Universidade de
Pernambuco – UPE, Campus Garanhuns, e docente permanente do Programa de
Mestrado Profissional em Culturas Africanas, da Diáspora, e dos Povos Indígenas –
PROCADI.
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results obtained reflect both the lack of didactic materials, as well as the
possibilities of the teaching work in relation to this theme.
Keywords: History teaching; Textbook; Atlantic slave trade

Introdução
Nas últimas décadas, a historiografia vem avançando de forma
significativa para a compreensão de temas difíceis e complexos em sua
própria natureza. Um exemplo disso é a escravidão africana e o tráfico
atlântico de escravos. Conforme afirma Marcus Carvalho, a escravidão
e o tráfico de escravos “são assuntos próximos ao estudo do holocausto
judeu, ou da grande catástrofe demográfica da era dos descobrimentos”.
Isso porque, segundo o autor, são “temas impregnados de problemas
morais e éticos que, sejamos francos, ainda não foram resolvidos pela
humanidade” (CARVALHO, 1998, p. 03).
Na história do Brasil, umas das instituições mais duradouras foi
a escravidão do povo africano e de seus descendentes. Da chegada dos
primeiros colonizadores até o ano de 1888, os escravos se fizeram
presentes em todos os âmbitos sociais e em todas as formas de produção
econômica. O comércio atlântico de escravos, que durou até 1850, foi
um dos ramos mais lucrativos da economia colonial. Fortunas foram
construídas nessa atividade. Era também um comércio extremamente
complexo que envolvia grandes cabedais de investimento, transações
comerciais nos dois lados do atlântico e tecnologia naval de ponta. O
lucro na revenda era certo. Mesmo com a elevação dos preços no
decorrer do século XIX, havia sempre compradores para esse tipo de
mão de obra.
Até 1830, o tráfico de escravos era um comércio legal, sujeito a
impostos e amparado nas leis e nos costumes nacionais. Em meio às
pressões britânicas, foi promulgada a lei de 1830, a chamada “lei para
inglês ver”, que tornou ilegal a entrada de africanos no Brasil. Mesmo
criminalizado, o tráfico continuou por mais duas décadas, só tendo fim

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legalmente com a promulgação de outra lei, em 1850.3 A partir dessa


data houve um aumento significativo no valor dos escravos e, por
conseguinte, uma maior concentração nas mãos dos grandes
proprietários rurais. A historiografia pontua que o tráfico era de fato a
maior fonte de entrada de escravos no mercado. Isso porque o
crescimento vegetativo da população escrava era extremamente baixo.
Da longa história da escravidão no Brasil, o tráfico atlântico de
escravos foi parte importante desse sistema, alimentando as lavouras e
outros nichos de trabalho escravo nas cidades. Por ser um dos principais
motores da economia escravista e por deixar uma marca indelével na
cultura e na formação do povo brasileiro, a entrada de milhares de
africanos forçados merece atenção especial, não devendo ser restrita
apenas ao debate acadêmico nas universidades, longe das salas de aulas
da educação básica. Porém, nem sempre essa temática é abordada no
livro didático com a devida atenção e profundidade, bem como não lhe
é dada a devida relevância. Como o livro didático, na maioria das vezes,
funciona como uma espécie de guia do trabalho docente, o assunto é
rapidamente encerrado, não sobrando espaço para maiores
aprofundamentos.
O presente artigo parte de reflexões sobre o ensino de História e
sobre a produção dos livros didáticos, na intenção de compreender
algumas abordagens metodológicas sobre um determinado conteúdo
específico. O caso escolhido aqui foi tráfico atlântico de escravos. A
partir de estudos realizados em fontes bibliográficas sobre a relação
ensino-aprendizagem na educação básica, o presente texto analisa as
práticas de ensino empregadas, numa relação dialógica com algumas
possíveis metodologias que podem ser utilizadas em sala de aula para a
melhor compreensão dos estudantes. Esse estudo procura enforcar
alguns processos de ensino, seus métodos e resultados. Para tal análise,

3
“Durante a primeira metade do século XIX, quase 400 anos depois de começar, o
tráfico de escravos foi gradualmente ilegalizado. Os esforços para suprimi-lo
desenvolveram-se lentamente com o passar do tempo, e com sucesso limitado. O
tráfico ilegal de escravos continuou a passo acelerado” (HALL, 2017, p.15).
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recorremos a um estudo pontual de quatro livros didáticos de História.


Além de nos fornecer subsídios para a pesquisa, o livro didático permite
ao pesquisador problematizar tanto os seus conteúdos, como também as
representações construídas sobre o passado. Uma vez que a presente
pesquisa buscou uma análise temática (no caso específico, o tráfico
atlântico de escravos), procuramos compreender como o assunto foi
representado na produção didática, sobretudo se estava em consonância
com as produções historiográficas e as pesquisas recentes na área em
foco.

Práticas de ensino
As diversas propostas curriculares do ensino de História,
elaboradas pelos estados e municípios, com base nos Parâmetros
Curriculares Nacional, têm norteado o ensino de História. Essas
mudanças se dão por uma série de fatores. Circe Bittencourt ressalta
que nas últimas décadas surgiu uma variedade de propostas que tinham a
intenção de “proporcionar um ensino de História mais significativo para a
geração do mundo tecnológico, com seus ritmos diversos de apreensão do
presente e seu intenso consumismo”, e que buscasse desenvolver “no público
escolar expectativas utilitárias muito acentuadas” (BITTENCOURT, 2008a, p.
99).
Seguindo nessa perspectiva e na linha de propostas atuais de
ensino e refletindo suas respectivas características que atendem aos
pressupostos educacionais, é necessário destacar a importância de se
pensar o processo de ensino e aprendizagem da disciplina de História ao
longo da trajetória escolar. As possibilidades ou alternativas do ensino
dessa matéria são múltiplas, tendo em vista a série de mudanças e
aperfeiçoamento das práticas pedagógicas de ensino ao longo do tempo,
no sentido de atender aos objetivos empregados com a utilização de
materiais didáticos diversos.
Um ponto importante referente aos materiais didáticos utilizados
é que estes devem ser empregados como mediadores do processo de
ensino-aprendizagem. As possibilidades são diversas, mas para que a
aprendizagem seja consolidada, é preciso que as metodologias de
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ensino sejam coerentes, que os resultados sejam significativos e


satisfatórios. Isso se aplica também na utilização do livro didático, que
dentre tantos outros materiais, se destaca como sendo, um dos recursos
mais utilizados no campo educacional. Em muitas escolas carentes, o
livro didático é quase sempre a única fonte de conhecimento científico.
Isso reforça a sua importância. É acerca dessa relação conjunta
estabelecida entre metodologia, prática de ensino e material didático
(em específico, o livro didático de História), que a problemática sobre
ensino de conteúdos referentes ao tráfico de escravos e da diáspora
africana na Educação Básica deve se concentrar.
É importante levar em consideração que, segundo Selva
Guimarães Fonseca, “discutir o ensino de história, hoje, é pensar os
processos formativos que se desenvolveram nos diversos espaços, é
pensar fontes e formas de educar cidadãos, numa sociedade complexa
marcada por diferenças e desigualdades” (FONSECA, 2003, p. 15). As
propostas de ensino, responsáveis por nortear com base no
estabelecimento das diretrizes básicas as linhas de ensino a serem
seguidas pelas instituições escolares, estão sujeitas a alterações e
adaptações ao longo do tempo frente ao público que se destina e à
comunidade em que se integra. Por este motivo, Circe Bittencourt
destaca que as propostas de ensino atuais
[...] exigem um trabalho intenso do professor, uma
concepção diferenciada desse profissional, como um
trabalhador intelectual que, juntamente com seus
alunos, deve pesquisar, estudar, organizar e
sistematizar materiais didáticos apropriados para as
diversas condições escolares (BITTENCOURT,
2008a, p. 128).

As questões de cunho prático aplicadas na rede de ensino


englobam aspectos metodológicos que vêm sendo constantemente
repensados e renovados, apesar de haver métodos considerados
tradicionais que permanecem até os dias de hoje. A inovação das
práticas de ensino, no geral, faz emergir na comunidade escolar críticas
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e julgamentos. Por esse motivo, renovar em sala de aula é uma tarefa


difícil, um procedimento lento que necessita de constante afinco para
ser alcançado.
É importante destacar o papel do professor que atua mediando e
articulando conteúdos para promover a ampliação de conhecimentos e a
compreensão dos alunos, apresentando formas de estudo, análise e
problematização dos saberes que estão sendo trabalhados em sala de
aula. Diante da complexidade do ensino, cabe aos professores de
história “o papel fundamental de desenvolver um ensino que contribua
para a formação do pensamento crítico e reflexivo, para a construção da
cidadania e para a consolidação da democracia entre nós” (FONSECA,
2003, p. 56).
As várias possibilidades pedagógicas, quando postas à
disposição do educador podem exercer papel eficiente no campo de
ensino. Para Selva Guimarães Fonseca, “o professor, ao diversificar as
fontes e dinamizar a prática de ensino, democratiza o acesso ao saber,
possibilita o confronto e o debate de diferentes visões, estimula a
incorporação e o estudo da complexidade e da experiência histórica”
(FONSECA, 2003, p. 37). A utilização de outros recursos, que vão além
do livro didático, como é o caso do emprego de documentos nas aulas
de História, sejam eles escritos, ou não escritos; o uso de imagens
diversas, tais como as fotografias, mapas geográficos; e também de
filmes, músicas, etc. Essa ideia é interessante e pode ser devidamente
aplicada em sala de aula ao abordar o assunto do tráfico de escravos.
Esses são instrumentos muito eficientes, quando são devidamente
problematizados, com a mediação do professor, podendo até mesmo
“favorecer a introdução do aluno no pensamento histórico, a iniciação
aos próprios métodos de trabalho do historiador (BITTENCOURT,
2008a, p. 327).
Ao se trabalhar conteúdos referentes ao tráfico atlântico de
escravos e a escravidão é interessante pensar em práticas de ensino que
sejam capazes de levar os alunos a se envolverem com o conteúdo,
permitindo a construção da aprendizagem, mesmo que em um primeiro
momento possa até lhes parecer um tanto quanto abstrato e distante.
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Adentrando no contexto de uma história geral, mas que pode ser


também mais particular, interligando com a história nacional e até
mesmo regional e local. Nesse segmento, ao se trabalhar o tráfico
atlântico de escravos para o Brasil, pode-se destacar aspectos e
considerações importantes, mais específicas de determinados lugares
como, por exemplo, da conjuntura histórica e social dos portos
escravistas brasileiros.
O Brasil é um país cuja cultura é ricamente diversificada,
resultado do processo histórico-social vivido. É interessante que os
educadores atuantes na área de História deem ênfase em questões
referentes a isso, ao se tratar de temas relacionados a diáspora africana.
Questões desse tipo, podem levar os estudantes a fazer relações e
distinções entre os africanos que foram trazidos para esse território e
para outras localidades também na condição de escravos. Os africanos
escravizados e seus descendentes se fizeram presentes não apenas nas
grandes plantations de cana-de-açúcar, nas lavouras de café, e em todos
os nichos de atividades econômicas. É necessário também pontuar o
protagonismo desses africanos. Eles não foram vítimas passivas de toda
uma conjuntura histórica. Fugas, formações de quilombos e outras
resistências demonstram que o papel de subserviência não foi aceito de
forma pacífica. Assim, estudar a temática da escravidão, do tráfico e da
diáspora africana revela a outra face de uma história do Brasil que
precisa ser conhecida e trabalhada em sala de aula.
Outro ponto importante é que o ensino da História da África
associada e relacionada com a História do Brasil, no currículo da
educação básica, pode ampliar a visão de mundo dos alunos, inclusive
promovendo a construção de uma cidadania mais plena e consciente.
Assuntos que recorrem ao processo de escravidão que aconteceu no
Brasil e, consequentemente, ao tráfico de escravos, merecem ênfase,
pois
[...] se justifica no currículo dos alunos ao contribuir
para a compreensão das bases da sociedade
brasileira, a situação dos negros, a origem de
preconceitos (raciais, contra o trabalho braçal, etc.),
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as relações sociais, com base no entendimento de um


fenômeno que marcou a sociedade brasileira, com
consequências até hoje (PINSKY; PINSKY, 2018,
p. 31).

Também é válido pontuar, nesse contexto, as mudanças que


ocorreram no campo educacional, nos últimos anos, e que refletem as
questões do ensino de conteúdos relacionados a História da África, dos
africanos e afrodescendentes. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN) ratificou a posição da Constituição Federal de 1988,
quando determinou que: “o ensino da História do Brasil levará em conta
as contribuições das diversas etnias para a formação do povo brasileiro,
especialmente das matrizes indígena, africana e europeia” (art. 26,
§4º)4. Desde então, a inserção (ainda) lenta e gradual de temas e
conteúdos relacionados ao processo maior da diáspora africana no
Brasil passaram a fazer parte do cotidiano das salas de aula.
Além do mais, foi aprovada a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de
2003, modificando a Lei n. º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, responsável por
tornar obrigatória a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a
temática História e Cultura Afro-Brasileira. A partir desta lei, tornou-se
obrigatório no currículo escolar da educação básica o seguinte:

[...] o estudo da História da África e dos africanos, a


luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e
o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas

4
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em
<https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2009/04/lei_diretrizes> acessado em
02/12/2018.
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social, econômica e política pertinentes à História do


Brasil (art. 26-A, § 1º)5.

O livro didático e o professor de história


Circe Bittencourt, reforçando a importância do livro didático,
ressalta que, em muitos casos, ele é o único recurso material que os
estudantes mais têm contato. Para a autora, este objeto reflete “uma
complexa teia de relações e de representações” (BITTENCOURT,
2008b, p. 14). Ele pode ser considerado um importante instrumento
para o ensino que “possui limites, vantagens e desvantagens como os
demais materiais dessa natureza e é nesse sentido que precisa ser
avaliado” (BITTENCOURT, 2008b, p. 301). Ele pode funcionar como
um tipo de ferramenta para os professores e alunos que podem utilizá-lo
como um auxiliador do processo de ensino-aprendizagem. Inclusive, o
mesmo é distribuído gratuitamente pelo governo Federal por meio do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) nas escolas públicas do
ensino fundamental ao médio.
Os conteúdos contidos nessas obras devem ser problematizados,
questionados e trabalhados de forma crítica. Para Bárbara Freitag, um
erro comum é valorizar o livro didático ao extremo:
[...] os professores passam a assimilar os conteúdos
dos livros didáticos, mesmo quando esses se chocam
frontalmente com suas convicções mais íntimas. O
livro didático não é visto como um instrumento de
trabalho auxiliar na sala de aula, mas sim como
autoridade, a última instância, o critério absoluto da
verdade, o padrão de excelência a ser adotado na
aula (FREITAG; COSTA; MOTTA, 1989, p. 93)

5
Diário Oficial da União – Seção 1 – 10/01/2003, página 1 (publicação original). Lei
n. º 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2003/lei-10639-9-janeiro-2003-493157-
publicacaooriginal-1-pl.html> acessado em 02/12/2018.
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Desse modo, é importante lançar uma reflexão acerca da prática


de leitura, da construção do saber por parte do leitor em relação a
intencionalidade dos autores, e da diversidade de significações que
podem ser atribuídas caso não haja uma mediação consciente. Os livros
didáticos, assim como todos os impressos possuem historicidade e são
condicionados por fatores externos. Para Roger Chartier, os livros são:

Concebidos como um espaço aberto a múltiplas


leituras, os textos e também todas as categorias de
imagens não podem, então, ser apreendidos nem
como objetos cuja distribuição bastaria identificar
nem como entidades cujo significado se colocaria
em termos universais, mas presos na rede
contraditória das utilizações que os constituíram
historicamente (CHARTIER, 1988, p. 61)

A diversidade e amplidão de leituras historiográficas


reproduzidas nos livros didáticos refletem aspectos das influências em
que seus autores passaram ao longo de sua trajetória. Indo diretamente
de encontro com o foco desse texto, é válido enfatizar que, apesar da
ampliação das abordagens de conteúdos referentes aos africanos e
afrodescendentes, os livros didáticos empregados na rede de ensino da
educação básica apresentam o tráfico de escravos de modo sintetizado e
resumido. Cabe ao professor da disciplina de História o papel de buscar
mecanismos capazes de acrescentar e enriquecer as aulas.
É importante que os professores saibam instigar os alunos, por
meio da criticidade, a fazer uma análise de como o africano é
representado no livro didático estudado, podendo contribuir para que os
alunos analisem como o escravo é concebido no processo de transporte
em navios negreiros, ressaltando até características do sistema
escravocrata, aspectos das condições de vida e trabalho dos próprios
escravos após sua inserção no Brasil, enfatizando também
características específicas do envolvimento e atuação dos principais
portos brasileiros no comércio de cativos.

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Nesses livros, o escravo é colocado mais como uma simples


“mercadoria”, ou seja, é representado como uma peça na engrenagem.
Cabe ao professor o papel de ir além do que é posto nas obras. Ele pode
acrescentar conhecimento além do que é ilustrado e buscar formas de
mostrar esses povos como indivíduos históricos. É frequente que
conteúdos dedicados ao tráfico de escravos e a escravidão não se
aprofundem na apresentação das condições de vida, atendo-se
brevemente sobre a contribuição econômica, social e cultural dos
escravos na formação da sociedade brasileira. O professor de História
deve estar atento a essas questões para analisar os conteúdos com seus
alunos sob uma nova perspectiva, no intuito de dar ênfase ao
reconhecimento dos africanos e seus descendentes escravizados como
sujeitos históricos, resgatando-os como partícipes ativos na história.
Diante do exposto até aqui, é importante caracterizar também o
livro didático enquanto possibilidade de fonte de pesquisa para a
História. Ao se trabalhar com este objeto de estudo, alguns fatores
devem ser devidamente considerados. Dentre eles, destaca-se suas
diversas funções, a dimensão histórica, enquanto produto cultural e o
caráter pedagógico que possui.
O processo de renovação dos objetos estudados na História,
proporcionou a possibilidade de utilizar-se o livro didático como fonte
de pesquisa nessa área. O livro didático pode se enquadrar enquanto
objeto histórico complexo, devido a sua perpetuação no meio
educacional, partindo das relações estabelecidas, por meio das quais,
dispõe de um conjunto de práticas, discursos e representações que
constituem formas e experiências próprias. O livro didático se integra
no campo das relações culturais da sociedade. Seguindo nessa
perspectiva, nos últimos tempos, a utilização do livro didático se tornou
uma importante fonte de pesquisa.
As pesquisas e reflexões sobre o livro didático
permitem apreendê-lo em sua complexidade. Apesar
de ser um objeto bastante familiar e de fácil
identificação, é praticamente impossível defini-lo.
Pode-se constatar que o livro didático assume ou
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pode assumir funções diferentes, dependendo das


condições, do lugar e do momento em que é
produzido e utilizado nas diferentes situações
escolares. Por ser um objeto de ‘múltiplas facetas’, o
livro didático é pesquisado enquanto produto
cultural; como mercadoria ligada ao mundo editorial
e dentro da lógica de mercado capitalista; como
suporte de conhecimentos e de métodos de ensino
das diversas disciplinas e matérias escolares; e,
ainda, como veículo de valores, ideológicos ou
culturais (BITTENCOURT, 2008b, p. 471).

Para pesquisadores da área da educação e também historiadores,


o livro didático se tornou um objeto rico de informações, capaz de
dispor de diversas possibilidades de abordagens para a pesquisa
cientifica. O livro didático passou a ser analisado em suas múltiplas
complexidades, inclusive no que se refere as práticas de leitura que se
faz a partir dele. Além do mais, eles podem ser capazes de revelar
características que transcendem os aspectos pedagógicos, repercutindo
em dimensões de cunho político-econômico, cultural e social.

As representações sobre o tráfico atlântico de escravos nos livros


didáticos: uma breve análise
Como foi dito, essa pesquisa foi desenvolvida com base na
análise dos conteúdos referentes ao tráfico de escravos presentes em
distintos livros didáticos de História. O critério para a escolha dos livros
baseou-se na ideia de que eles tivessem sido destinados para alunos do
Ensino Fundamental (anos finais), mais especificamente para turmas da
sexta série, ou do sétimo ano, como é classificada atualmente essa
modalidade do ensino.
Foram selecionadas quatro obras didáticas, duas da Editora
Moderna, ambas pertencentes ao Projeto Araribá. Uma delas, foi
desenvolvida em 2006, cujo público a que se destina são os estudantes
da sexta série, traz os conteúdos referentes ao tráfico de escravos ao
longo do quarto capítulo denominado Escravidão: captura, resistência
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e luta, presente na unidade sete, chamada de O Nordeste Colonial. A


outra obra dessa mesma editora, foi elaborada em 2010, para o sétimo
ano. Nela, os conteúdos referentes ao tráfico de escravos são
apresentados no decorrer da oitava unidade, com o seguinte tema:
Escravidão, resistência e trocas culturais, no qual apresenta algumas
considerações sobre o tráfico negreiro em um tópico cujo título é A
África e o tráfico.
Os outros dois livros didáticos analisados são de Cláudio
Vicentino, ambos da Editora Scipione, sendo que um deles pertence ao
Projeto Radix, elaborado e desenvolvido no ano de 2012, pela editora
Scipione. Nessa obra, os conteúdos sobre o tráfico de escravos são
apresentados ao longo do sexto capítulo, chamado de África: dos
primeiros humanos ao tráfico de escravos, o tópico utilizado para
análise, cujas abordagens se dedicam ao tráfico de escravos foi
denominado de África: escravidão e tráfico de escravos. O outro livro
investigado é pertencente ao Projeto Mosaico e foi publicado em 2015.
Os conteúdos que aludem o tráfico de escravos se encontram ao longo
do décimo quarto capítulo da obra, denominado Escravidão, tráfico e
práticas de resistência.
Para a análise das abordagens sobre o tráfico atlântico de
escravos nos livros didáticos de História, adotamos, como procedimento
metodológico, a análise de conteúdo (BARDIN, 1977). As categorias
selecionadas para a análise da representação dos africanos em
conteúdos referentes ao tráfico são as seguintes: 1. A escravidão na
África; 2. Captura dos cativos; 3. Desenvolvimento do caráter
comercial do tráfico; 4. Transporte/Travessia dos escravos; 5. Venda
dos escravos; e 6. Considerações sobre os estudos desenvolvidos. A
escolha dessas categorias se justifica pelo fato de que elas se encontram
em evidência quando se trata da apresentação do assunto referente ao
tráfico de escravos nos livros didáticos analisados.
A seguir, trataremos de apresentar as explicações e argumentos
presentes em cada obra didática sobre as categorias citadas.
1. A escravidão na África

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Em cada uma das obras analisadas há uma explicação ou


argumento referente a diversidade de povos que habitavam a África na
Antiguidade e logo em seguida, relacionando com o processo inicial de
introdução a escravidão dos povos africanos.
No século XV, a África era um continente habitado
por povos de diferentes etnias, organizados em
reinos e Estados. Ao norte, viviam povos de origem
arábe. A região logo abaixo do Deserto do Saara era
ocupada por populações que haviam entrado em
contato com o islamismo, como os iorubas e os
achantis. Entre a parte central e o sul do continente
estavam os povos bantus. A escravidão era praticada
em vários reinos africanos (PROJETO ARARIBÁ,
2006, p. 197).

Essa é a argumentação contida para situar acerca da ocorrência


da escravidão na África. Em relação a essa mesma questão, a obra
didática pertencente ao Projeto Araribá (2010), adota a mesma
perspectiva da obra antes citada. Essa outra obra didática também
apresenta detalhes sobre a escravidão. Em linhas gerais, também traz
detalhes da trajetória da escravidão desde a antiguidade, entretanto de
uma forma mais resumida, como pode ser visto no trecho a seguir: “No
século XV a escravidão já era praticada em diversas regiões da África.
(...) Com a chegada dos europeus, a escravidão passou a ocorrer em
escala muito maior” (PROJETO ARARIBÁ, 2010, p. 217).
Ainda sobre essa perspectiva, a obra de Cláudio Vicentino
(2012), apresenta e acrescenta algumas informações complementares
sobre o exposto, em comparação com as obras anteriormente citadas.
Propõe uma reflexão inicial acerca do caráter comercial em que a
escravidão se desenvolveu e que será abordada mais criteriosamente em
uma das categorias tratadas posteriormente, observe:
A escravidão era uma prática muito antiga na África,
existindo desde a Antiguidade. Em muitos reinos e
aldeias africanos, os escravos eram integrados à vida
familiar, e sua posse representava prestígio e poder.
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(...) a antiga escravidão africana não tinha o caráter


comercial que adquiriu mais tarde (VICENTINO,
2012, p. 137).

Sobre isso, a outra obra analisada, que é a mais recente, também


de Vicentino (2015), mostra de modo ainda mais detalhado, ressaltando
aspectos fundamentais.
Como em outros continentes, a escravidão era uma
prática muito antiga e comum na África, existindo
desde a antiguidade. (...) A escravidão variou muito
ao longo do tempo, até mesmo quanto à intensidade.
Era pouco frequente nas aldeias e mais intensa nos
grandes reinos. Como região de fornecimento, a
África foi fonte de escravos para as civilizações da
Antiguidade, para o mundo islâmico a partir do
século VII e, mais tarde, para a América
(VICENTINO, 2015, p. 279).

Dentre os livros utilizados nessa investigação é possível afirmar,


sobre essa primeira categoria analisada, que ambos os autores seguem
uma perspectiva semelhante. Entretanto há uma distinção no que
concerne a explicação mais pormenorizada, que se encontra justamente,
nessas duas últimas obras. As afirmações nos apontam para uma
aproximação dos conhecimentos históricos produzidos mais
recentemente, conforme ressalta Roquinaldo Ferreira.
Desde tempos imemoriais, muitos africanos foram
vitimados por fluxos migratórios compulsórios que
conectaram a África com diversas partes do mundo –
o Oriente Médio, o Mediterrâneo e o oceano Índico.
No entanto, nenhum teve um custo humano tão alto
quanto o tráfico atlântico, que vitimou cerca de 12
milhões de pessoas entre os séculos XVI e XIX, e
disseminou violência e escravização no continente
africano (FERREIRA, 2018, p. 51).

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Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

2. Captura dos cativos


Sobre esse aspecto, as obras não trazem muitos detalhes,
abordam superficialmente, como pode ser notado na seguinte passagem:
“Em geral, os cativos eram prisioneiros de guerra ou pessoas que não
conseguiam pagar suas dívidas. Depois de aprisionados, eles podiam ser
vendidos ou comprados” (PROJETO ARARIBÁ, 2006, p. 197). A outra
obra que também pertence ao Projeto Araribá (2010, p. 217), aborda
sob a mesma perspectiva e não acrescenta informações além do que já
foi mencionado pela obra anterior.
As duas obras de Vicentino também apresentam similitudes
quanto a abordagem dessa categoria. O pondo de vista central em que
esse autor parte sobre as capturas dos escravos, nas suas duas obras,
refere-se, basicamente, ao fato de que “ela decorria dos mais variados
motivos: punição por crimes, pagamentos ou penhora de dívidas,
derrota em guerra, etc” (VICENTINO, 2015, p. 279).
Dois aspectos que nenhuma das obras didáticas analisadas
abordou foi a questão da resistência africana frente ao processo de
escravização e ao número de escravos transportados.
É igualmente importante destacar que, sem a
resistência africana, o número de vítimas teria sido
ainda mais devastador. Desde o início, africanos
escravizados se voltaram contra o tráfico de maneira
sistemática, através da fuga ou de revoltas. Durante a
travessia marítima, as revoltas se davam no
momento em que os navios ainda estavam próximos
da costa, quando havia esperança de retornar às
comunidades de origem (FERREIRA, 2018, pp. 51-
52).

Seguindo nessa perspectiva, enfatizando o número de escravos


transportados, Luiz Felipe de Alencastro argumenta o seguinte
[..] calculo que o total de africanos desembarcados
no Brasil, em cerca de 14910 viagens transcorridas
nos três séculos, atinja 4,8 milhões, pouco menos
que os 4,86 constantes no Database. Globalmente, as
Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 210
Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

importações brasileiras representam 46% do total


dos escravizados desembarcados. Pelos motivos
indicados acima, o número de desembarques nos
portos africanos destinados ao Brasil – 5,5 milhões,
45% do total dos deportados da África – está
provavelmente sobre-estimado no TSTD
(ALENCASTRO, 2018, p. 60).

3. Desenvolvimento do caráter comercial do tráfico


Nesta categoria, procuramos analisar nessas obras didáticas os
aspectos que remetem ao caráter comercial do tráfico de escravos.
Sobre essa questão, é corriqueiro entre os autores, a exibição da
mudança do modo de vida das sociedades africanas com a chegada dos
europeus no século XV, assim como aspectos da chegada dos
portugueses.
A vida das sociedades africanas alterou-se com a
chegada dos europeus no século XV. Os primeiros a
desembarcar foram os portugueses, que construíram
feitorias ao longo do litoral e procuraram
monopolizar a rede comercial africana. Em troca de
ouro, marfim e escravos, os portugueses ofereciam
tecidos, metais, ferramentas aguardente, cavalos e
armas. No início eram os mercadores portugueses
que capturavam os africanos. Mais tarde, os próprios
chefes africanos passaram a organizar violentas
incursões ao interior. Ora atacando as aldeias, ora
criando emboscadas, capturavam um elevado
número de homens, mulheres e crianças.
Acorrentados, os cativos chegavam às feitorias no
litoral à espera do embarque (PROJETO ARARIBÁ,
2006, p. 197).

Praticamente desse mesmo modo, uma das outras obras aborda


essa questão. É válido considerar, que apesar de ser mais recente, em
relação a isso, ela se apresenta um pouco mais resumida, apenas
destacando, como na obra citada acima, que eram os mercadores
Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 211
Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

portugueses que capturavam os africanos e que mais tarde, em troca de


armas e cavalos, principalmente, os próprios chefes africanos passaram
a invadir as aldeias, capturar os moradores e levá-los, acorrentados, até
as feitorias portuguesas (PROJETO ARARIBÁ, 2010).
As obras de Vicentino, contextualizam de modo mais
abrangente, adiciona, no decorrer do texto, informações relevantes
quanto as principais rotas do tráfico negreiro, assim como também
levanta dados referentes aos números dos africanos que foram
submetidos a escravidão em determinado período. Confira
Com a conquista do Norte da África pelos islâmicos,
a partir do século XII, foram criadas as rotas
transaarianas de comércio de escravos. Africanos
escravizados também eram comercializados nas
rotas do mar Vermelho e na África oriental. Entre os
séculos VII e XVI, acredita-se que mais de sete
milhões de africanos, entre homens, mulheres e
crianças, foram capturados, aprisionados e levados
para ouras regiões da África e para o Oriente médio
na condição de escravos. [...]. Com a chegada dos
europeus à África, a partir do século XV, o tráfico de
escravos passou a ser feito pelo oceano Atlântico,
primeiro em direção a Europa e depois às Américas.
O tráfico atlântico fez a escravidão ganhar um
aspecto fortemente comercial, provocando
confrontos entre etnias, aldeias e estados africanos e
intensificando o aprisionamento de cativos.
(VICENTINO, 2012, pp. 137-138).

Em seu outro livro didático, Vicentino cita aspectos da formação


do caráter comercial que a escravidão foi adquirindo ao longo do
tempo, juntamente com os reflexos da exploração econômica e a
formação das articulações para o fornecimento de cativos por meio do
tráfico.
Até a chegada dos europeus, no século XV, a
escravização contava com cativos obtidos nas

Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 212


Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

guerras internas entre reinos e etnias. Aos poucos foi


adquirindo caráter comercial, em que os escravos
tornaram-se “peças”, mercadorias, alvos de um
sistema de exploração econômica, perdendo sua
identidade humana. Formaram-se reinos e elites
articulados com o tráfico para o fornecimento de
cativos como um grupo social sem nenhum direito
(VICENTINO, 2015, p. 279).

Depois, ele aborda a questão das nações e rotas comerciais do


tráfico que impulsionaram a escravidão e proporcionaram a instalação
do comércio negreiro de africanos. Vejamos, o que o autor aponta nesse
sentido:
Com a conquista ao norte da África pelos islâmicos,
a partir do século XII, foram criadas as rotas
transaarianas (pelo deserto do Saara) do comércio de
escravos. Africanos escravizados também eram
comercializados na rota oriental (pelo oceano indico
e pelo mar vermelho). Pelo Saara, as cáfilas, grandes
caravanas que percorriam o deserto, contavam com
os berberes, povos islamizados logo ganharam
seguidores na região sudanesa e em outras áreas
africanas. Apesar das imensas dificuldades diante
das condições do Saara, como as grandes distâncias
e a falta de agua e poços, o comércio transaariano de
vários produtos e de cativos serviu de impulso a
escravização. Deu o sentido comercial e serviu para
a instalação organizada do tráfico negreiro de
africano (VICENTINO, 2015, p. 279).

[...] com o início da exploração por parte dos


portugueses, a partir do século XV, os africanos
escravizados passaram a ser transportados pelo
oceano Atlântico, primeiro em direção à Europa e
depois às Américas. Com o fortalecimento do tráfico
transatlântico europeu, a escravidão passou a ter um

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Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

aspecto mais intensamente comercial, provocando


ainda mais confrontos entre etnias, aldeias e Estados
africanos e intensificando o aprisionamento de
cativos (VICENTINO, 2015, p. 281).

Como pode ser percebido, a obra de Vicentino (2015) busca


caracterizar esse processo analisado por essa categoria de um modo
mais amplo, por meio de uma discussão mais extensa acerca da
dimensão do comércio escravista. Roquinaldo Ferreira, enfatiza que:
No início, os europeus desempenharam o papel de
fornecedores de mão de obra escrava dentro da
própria África, sobretudo por regiões (gana) onde
havia produção aurífera em larga escala, bem como
para Portugal e Espanha, locais em que a escravidão
tinha caráter urbano e vicejava na produção de
açúcar. Por conta disso, tanto Lisboa quanto Sevilha
tinham populações substanciais de origem africana,
já no século XVI. Nas redes comerciais desse
incipiente tráfico, os pioneiros foram os portugueses,
se valendo de contatos estabelecidos na África desde
o século XVI. Tal proeminência só seria ameaçada
na segunda metade do XVII, com a colonização do
Caribe pela Inglaterra, Holanda e França. Assim
como Portugal, essas nações dependiam da
escravização de africanos para produção de
matérias-primas agrícolas para o mercado europeu.
Para obter mão de obra escrava, primeiro obteriam
cativos através de negociantes portugueses e depois
se lançariam no tráfico atlântico em regiões até então
sob influência lusitana (FERREIRA, 2018, pp. 52-
53).

4. Transporte/travessia dos escravos


É interessante notar que alguns autores se detêm mais na questão
dos números estimados, enquanto outros tendem a explanar sobre

Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 214


Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

características precárias da travessia. A primeira obra investigada,


ressalta alguns portos brasileiros, o que é muito relevante, veja
A duração da travessia variava de acordo com o
porto de chegada: cerca de 35 para o Recife e de 60
dias para o Rio de Janeiro. As embarcações
transportavam um número muito superior à sua
capacidade. Nas caravelas eram levados, em média,
600 cativos. Em razão das péssimas condições da
viagem, o índice de mortalidade era elevado. Isso
explica por que, no século XIX, os navios negreiros
foram chamados de tumbeiros – uma alusão às
tumbas, sepulturas (PROJETO ARARIBÁ, 2006, p.
198).

Sobre a duração do processo de travessia, uma das obras não


traz nenhum tipo de informação acerca dos números estimados de
embarcados (PROJETO ARARIBÁ, 2010), nesse livro, relata-se que
No litoral, os africanos escravizados eram
embarcados em navios negreiros. Em razão das
péssimas condições da viagem, o índice de
mortalidade era bastante elevado. Isso explica, por
que, no século XIX, os navios negreiros foram
chamados de tumbeiros (PROJETO ARARIBÁ,
2010, p. 217).

Em contrapartida, Vicentino (2012), por sua vez, aponta o


seguinte sobre o comércio de escravos: é importante que ele caracteriza
o Brasil nesse contexto, e da própria escravidão, ele discorre que o
Brasil foi um dos principais destinos dos navios negreiros que
realizavam o tráfico atlântico. Ressalta ainda que este recebeu um
grande número de escravos africanos e foi o último país a abolir a
escravidão, em 1888. Enfatiza também, que foram quase 400 anos em
que os africanos e seus descendentes serviram como mão de obra
escrava, “vivendo em seu cotidiano diversas formas de violência.
Mesmo depois de abolida, a escravidão deixou marcas que ainda estão
Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 215
Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

sendo reparadas pela sociedade brasileira” (VICENTINO, 2012, p.


138).
Diante da inexatidão dos números do tráfico, nessa obra mais
recente aqui analisada, o autor ressalta que “não sabemos o número
preciso de homens, mulheres e crianças africanas que foram trazidas
para a América” (VICENTINO, 2015, p. 282).
Entre os séculos VII e XVI, acredita-se que mais de
7 milhões de africanos, entre homens, mulheres e
crianças, foram capturados, aprisionados,
escravizados e levados para outras regiões da África
e para o Oriente Médio, China, Índia, etc
(VICENTINO, 2015, p. 279).

Alguns aspectos fundamentais para a construção de


conhecimento sobre o tráfico de escravos são destacados em Vicentino
(2015). É fundamental a abordagem das peculiaridades da questão do
tráfico de africanos escravizados para a América portuguesa,
destacando desde as embarcações empregadas, as condições de higiene
em que eram submetidos, e os principais pontos em que os cativos eram
vendidos. Observe:
O transporte dos africanos escravizados até a
América portuguesa era feito em embarcações
chamadas de tumbeiros ou navios negreiros, numa
viagem que chegava a durar dois meses.
Amontoadas nos porões, cerca de um terço das
pessoas morria por causa das péssimas condições de
higiene e de alimentação, além dos maus tratos
recebidos. A quantidade de africanos escravizados
nos navios variava de 200 a 500 pessoas, de acordo
com o tamanho das embarcações. (VICENTINO,
2015, p. 283).

Vicentino (2015), cita a existência de efeitos e reflexos que


foram deixados pelo sistema escravocrata que pairam até os dias de hoje
na sociedade brasileira. Aborda os africanos escravizados na América
Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 216
Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

portuguesa, tratando de aspectos das negociações entre os envolvidos


nesse tipo de comércio, o trabalho que exerciam, os castigos que
sofriam e os instrumentos de tortura que eram empregados para tal
feito.
Integrados a esse amplo comércio, formaram-se
poderosas casas comerciais e inúmeros médios e
pequenos comerciantes na distribuição dos cativos.
Durante quase 400 anos, africanos e seus
descendentes serviram de mão de obra nas lavouras
de cana e café, na exploração de ouro, nas atividades
urbanas, como construção de edifícios, e muitas
outras atividades, vivendo em seu cotidiano diversas
formas de violência (VICENTINO, 2015, p. 283).

Os conteúdos apresentados são mais específicos ao longo dessa


última obra. Entre os livros didáticos pesquisados, são as duas obras de
Cláudio Vicentino, as quais foram desenvolvidas pela Editora Scipione,
que mostram mais as características do tráfico transatlântico de
escravos, enfatizando o transporte africano para o Brasil. Mesmo
consistindo de uma breve e sintetizada explanação, essas obras propõem
aos alunos uma noção maior do comércio de escravos ao Brasil. Apesar
de algumas questões não serem enfatizadas nas obras didáticas, vale
ressaltar que têm fundamental importância como é o caso da
participação do Brasil enquanto receptor de grande número de cativos.
Como destaca Luiz Felipe de Alencastro:

O tráfico transatlântico de escravos africanos tomou


no Brasil uma dimensão inédita no Novo Mundo. Do
século XVI até 1850, no período colonial e no
imperial, o país foi o maior importador de escravos
africanos das Américas. Foi ainda a única nação
independente que praticou maciçamente o tráfico
negreiro, transformando o território nacional no
maior agregado político escravista americano (2018,
p. 57)

Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 217


Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

5. Venda dos escravos


Nessa categoria, a análise dos conteúdos se concentra nos
argumentos e explicações contidos nos livros didáticos que remetem à
venda dos escravos. Em duas das obras utilizadas para a análise, são
levantadas algumas considerações persistentes a respeito dos estudos
voltados para o negócio do tráfico, as suas respectivas demandas, os
preços, os navios utilizados para o transporte dos escravos
A primeira obra investigada, mostra ligeiramente que
Nos mercados, próximos aos portos de desembarque,
a população negra era exposta para ser
comercializada. Os preços variavam de acordo com
o sexo, a idade e as condições físicas, atributos
cuidadosamente avaliados pelos compradores. Dos
mercados, os africanos escravizados eram levados
para os engenhos, para as minas e para as cidades.
(PROJETO ARARIBÁ, 2006, p. 198)

A outra obra que traz informações sobre as vendas é a de


Vicentino (2015), na qual relata especificidades diferentes que também
são relevantes
Os prisioneiros que chegavam vivos na costa
brasileira eram desembarcados e vendidos nos
principais portos da colônia, como Salvador, Recife,
Rio de Janeiro, Fortaleza, Belém e São Luís, onde
estavam sediados os comerciantes que controlavam
o tráfico (VICENTINO, 2015, p. 283).

Frente a isso, “deve-se sublinhar que o impacto do tráfico sobre


as sociedades africanas foi desigual. Nem todas as regiões da África
atlântica se viram forçadas a vender africanos escravizados para
negociantes europeus’ (FERREIRA, 2018, p.).

6. Considerações sobre os estudos desenvolvidos

Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 218


Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

Nessa última categoria, destaca-se aspectos que foram


levantados em ambas as obras de Vicentino, na qual ele mostra o
avanço referente às produções, em relação a algumas questões e
perspectivas que vem sendo abordadas pela historiografia nos últimos
tempos.
Durante muito tempo, os historiadores estudaram a
escravidão apenas do ponto de vista econômico:
quantos escravos vieram para o Brasil, quanto
custavam, o que produziam. Atualmente, tem-se
procurado entender o que era ser e sentir-se escravo,
resgatando-se aspectos da vida cotidiana dessa
parcela explorada da população (VICENTINO,
2012, p. 138)

Em contrapartida, em relação a isso, sua outra obra abrange um


pouco mais, observe:
São muitos os estudos sobre a quantidade de
africanos escravizados que vieram para o Brasil,
quanto custavam, o que produziam, a quantidade de
navios que exerciam o tráfico e as empresas voltadas
para o comércio de cativos. Também existiam
cálculos de quantos morriam nas viagens. Além
desse lado mais voltado para o negócio da
escravidão, muitos estudos também têm procurado
entender as práticas sociais e culturais da escravidão;
tais como: relações familiares, formas e resistência,
heranças e transformações de aspectos dos seus
locais de origem, resgatando traços da vida cotidiana
dessa parcela explorada da população
(VICENTINO, 2015, p. 283).

Essa perspectiva de abordagem é pertinente, pois possibilita ao


leitor, no caso especifico os estudantes, a terem uma breve noção de
como está sendo desenvolvido o conhecimento historiográfico sobre o

Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 219


Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

tráfico de escravos. Sobre os estudos e pesquisas que vêm sendo


desenvolvidos, Roquinaldo Ferreira pontua que
Do ponto de vista acadêmico, os estudos do tráfico
ocupam menos espaço do que a produção
historiográfica sobre a escravidão nas Américas. No
caso da escravidão, várias gerações de historiadores
se debruçaram sobre os mais diversos aspectos dessa
instituição, com obras e debates variados explorando
desde as bases econômicas e sociais do sistema até o
protagonismo dos escravizados nos diferentes
regimes escravistas nas Américas. Do caso do tráfico
o quadro é diferente. Além de relativamente recente,
o enfoquem maior reside no lado quantitativo – uma
preocupação mais que justificada dadas as
imprecisões das estimativas iniciais sobre o número
de vítimas africanas. Por trás dos números do tráfico,
no entanto, estão seres humanos cujas histórias de
vida e trajetórias precisam ser resgatadas para que
haja uma compreensão adequada da devastação
causada pelo tráfico atlântico de cativos
(FERREIRA, 2018, p. 52).

Dentre as quatro obras analisadas a de Vicentino (2015) seria a


mais consistente e completa, incorporando e assimilando novos
conteúdos produzidos pela historiografia mais recente. É perceptível
também que o livro didático tem apresentado mudanças ao longo do
tempo, e há distinções quanto a apresentação dos conteúdos entre as
obras.

Conclusão
O livro didático tem uma importância fundamental no processo
de ensino e aprendizagem, indo muito além do simples aspecto de ser,
em muitos casos, a única fonte de pesquisa mais próxima no cotidiano
dos alunos. Nesse artigo, é possível perceber que essas produções têm
procurado se adequar às abordagens historiográficas sobre o tema,

Revista Diálogos – N.° 21 – Mar. / Abr. – 2019 220


Repensando o Tráfico Atlântico ... – Araújo & Câmara

explorando e detalhando os conteúdos referentes à escravidão e ao


tráfico de escravos. Apesar de conterem abordagens resumidas e
sintetizadas, é possível perceber um esforço de tornar os assuntos mais
complexos, significativos e humanizados.
O livro didático de história produzido mais recentemente tem
apresentado mudanças significativas à assimilação de novos
conhecimentos historiográficos, proporcionando assim, uma melhoria
do conteúdo ao qual o estudante mais tem acesso. Esse material deve
ser utilizado, levando em consideração a extensão de possibilidades e
abordagens dos conteúdos, sempre aprofundando nos detalhes que são
determinantes para a compreensão dos assuntos. Desse modo, é
interessante que os professores considerem a importância de ir além das
abordagens presentes nessas obras, discorrendo inclusive sobre as
especificidades mais locais sobre o tema.
O ensino, os sujeitos envolvidos no campo educacional, as
práticas, as experiências, e as utilizações coerentes das produções
didáticas têm importância crucial para a vida social e cidadã dos
indivíduos. Processos educativos que levem em conta temáticas difíceis
e complexas como o tráfico atlântico de escravos nos permitem adentrar
em outras questões da atualidade como, por exemplo, a exploração de
trabalhadores imigrantes em países capitalistas e mesmo o tráfico
internacional de mulheres para fins sexuais. O uso desse tipo de mão de
obra para esses fins pode ser considerado uma forma análoga ao
trabalho escravo. Os atos educativos direcionados a abordagens dessa
dimensão podem contribuir para a construção de novas maneiras de ler,
compreender e sentir a história.

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Livros didáticos:
PROJETO ARARIBÁ. História/obra coletiva. São Paulo: Moderna, 2006.
PROJETO ARARIBÁ. História/organizadora Editora Moderna. 3ª. Ed. São
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