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NOS QUADRINHOS, A SENZALA: O USO DE DRAMAS DE AFRICANOS

ESCRAVIZADOS NA FICÇÃO DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS CUMBE PARA


O ENSINO DE HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO E DA DIÁSPORA1

Savio Queiroz Lima2

Resumo: Este artigo pretende-se enquanto sugestão pedagógica no uso de determinada história em
quadrinhos no ensino de História de africanos escravizados em concordância com a lei 10.639. Faz uso
da obra Cumbe, nacional, de autoria de Marcelo D´Salete, e as inúmeras possibilidades de uso das 4
narrativas ficcionais bastante influenciadas pelos vestígios do passado escravista recente do Brasil. O
trabalho seleciona a supracitada história em quadrinhos enquanto instrumento pedagógico e pontua
questões interessantes a serem aplicadas em aulas de história sobre escravidão e diáspora para os ensinos
tanto da educação básica quanto do ensino superior. O trabalho faz parte de reflexões historiográficas
dos usos das histórias em quadrinhos, ainda que elaboradas enquanto narrativas ficcionais, como fontes
e objetos da História e as possibilidades de seus usos pedagógicos em artigos publicados em formatos
acadêmico-científico e suas adequações coloquiais para página de formato blog na internet. A proposta
tem por método a abordagem da narrativa ficcional e o cruzamento de fontes para seu uso no debate de
pontuais questões que envolvem as vivências de africanos escravizados na História do Brasil. Os trechos
específicos das quatro histórias presentes na publicação são abordados a partir de produções
historiográficas sobre a escravidão, suas dinâmicas e resistências, inclusive usadas enquanto referências
por seu próprio autor.
Palavras-chave: Lei 10.639, História da Escravidão, Histórias em Quadrinhos.

Introdução
Com o advento de importantes leis que determinem a ampliação e valorização das
heranças africanas e indígenas, o ensino precisa fazer uso de inúmeros instrumentos para aplicá-
las. A lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, a quase 20 anos em vigor, estabelece o ensino sobre

1
Trabalho comunicado enquanto pesquisa em andamento em 9 de novembro de 2018 durante a V Jornada
Pedagógica Internacional do Departamento de Educação I (DEDC1-UNEB) - Para uma educação libertadora é
preciso transver o mundo, ocorrida no campus 1 da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) em Salvador. Com
novas leituras e atualizações, a versão aqui presente tem acréscimos e novos debates, inclusive com a pesquisa da
graduanda Letícia Gomes Santos em seu trabalho de conclusão de curso de título A Imagem do Negro na História
em Quadrinhos Cumbe, de Marcelo D´Salete: As HQ´s como Ferramenta para uma Educação Decolonial,
defendido em julho de 2022 para grau de Licenciada em História pela própria UNEB, sob orientação do professor
Doutor José Gledson Rocha Pinheiro.
2
Doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira
(UNIVERSO), sob orientação da prof. Dr. Mary Del Priore. Membro do Grupo de Trabalho de Estudos de Gênero
– ANPUH-BA (GT-Gênero-ANPUH-BA). Membro do Laboratório de Estudos sobre a Transmissão e História
Textual na Antiguidade e no Medievo (LETHAM). Membro da Red Internacional Multidisciplinar en Estudios de
Género (RIMEG) das Universidad Nacional de Cuyo (Argentina), Universidade Federal de Bahia (UFBA) e
Universidad de Sevilla (Sevilla, España). Autor do livro Mulher Maravilha para Presidente! – História,
Feminismos e Mitologia nas Histórias em Quadrinhos, lançado em 2019. savio_roz@yahoo.com.br.
a “História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o
negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” (BRASIL, 2005). O caso da lei
11.645/2008 é de alteração da lei 9.394/1996 para adequação da mesma à lei 10.639,
abrangendo suas possibilidades, inserindo a valorização da História e da cultura das populações
indígenas brasileiras.
As histórias em quadrinhos já são corriqueiros instrumentos pedagógicos, tendo sido
discussão nos últimos anos. Para o caso das leis supracitadas, seus usos ainda estão construindo
estradas diante dos inúmeros obstáculos que os docentes enfrentam na objetividade de sua
aplicação. Exercitei experimentos práticos em regimes pedagógicos que frutificaram em relatos
objetivos. Tal situação deu forças para a publicação do artigo Tintin no Congo e a Lei 10.639:
Conflitos e Acordos para a Aplicação em Sala de Aula, ofertando, passo a passo, procedimento
de uso da história em quadrinhos Tintin no Congo (anteriormente Tintin na África) através de
leitura contextualizada e uso a contrapelo dos discursos presentes na obra (LIMA, 2016). A
visibilidade da História da população indígena aconteceu no artigo Um Índio na Imensidão
‘faraônica’: O olhar educacional do quadrinho Tiki sobre a Rodovia Transamazônica, sobre
obra em quadrinhos falando das violências contra os povos indígenas durante a Ditadura Militar
no Brasil (LIMA; PIMENTA, 2015).
Ainda que as dificuldades persistam, diálogos e debates podem fomentar as trocas de
informações e ideias entre os docentes. Este trabalho se vale da pretensão de construir
efetivamente essa troca através de publicação e comunicação dos tratos possíveis do uso da
história em quadrinhos enquanto objeto e fonte de pesquisa e de instrumento de ensino de
História da África e da Diáspora. A proposta foi incentivada pela publicação de mesma autoria
do artigo Dramas de Africanos Escravizados em Quadrinhos – a obra Cumbe, publicada em
blog no dia 10 de novembro de 2017, angariando boa repercussão3. O intento é de adequação
da proposta publicada em debate fortuito em evento de pedagogia local para a contemplação
efetiva da lei e do seguro uso das histórias em quadrinhos no ensino de História.

3
O blog autoral, www.savioroz.wordpress.com funciona como meio de comunicação de usos de histórias em
quadrinhos para a pesquisa e o ensino em História. Geralmente os trabalhos acadêmicos defendidos serviram de
base discursiva para a produção de textos mais palatáveis e acessíveis para a dinâmica do uso pedagógico. O artigo
pode ser acessado no endereço eletrônico: https://savioroz.wordpress.com/2017/11/10/dramas-de-africanos-
escravizados-em-quadrinhos-a-obra-cumbe/.
O ensino de História em concordância com as leis de visibilidade vem ocorrendo com
as inúmeras publicações de paradidáticos e outros formatos úteis ao professor. Os livros
didáticos em dissonância com a lei, com omissões de informações e invisibilidades, foram
contestados nas produções de novas e justas narrativas (VASCONCELOS, 2014, p. 2). Os
livros pretendidos aliados da lei e sua aplicação foram atenção de diversos pesquisadores,
analisando seus aspectos positivos e negativos para o intuito representativo do arcabouço legal
(XAVIER, 2011; PIMENTEL, 2016). O caso deste trabalho tem por foco não um apanhado
geral das histórias em quadrinhos, mas o uso prático e objetivo de obra escolhida para a
efetivação da prática pedagógica para o ensino de História em concordância com a malha legal
de reparação racial no Brasil.

Cumbe e o Ensino de História


A história em quadrinhos que centraliza a análise e abordagem deste trabalho se chama
Cumbe, sobre vivências e resistências de africanos escravizados e seus descendentes no Brasil.
Elaborada, do roteiro à arte, por Marcelo D´Salete, foi publicada em 2014 pela editora Veneta,
através de incentivo do Governo do Estado de São Paulo e da Secretaria da Cultura através de
editais4. Com formação em Artes Plásticas e mestrado na área de História da Arte, pela
Universidade São Paulo (USP), fundamentou a narrativa de Cumbe em profunda e meticulosa
pesquisa sobre o período escravista brasileiro em obras como Na Senzala uma Flor, do Robert
Slenes e os tratados científicos de Nei Lopes, garantindo à ficção uma base epistemológica
representativa de coesão e assumida proposta de decolonialidade na narrativa5.
Cumbe foi feita com um intuito de ser historicamente plausível enquanto narrativa
reparadora. Desta pretensa natureza surge a justificativa de seu uso eficiente nas abordagens
sobre História dos escravizados no Brasil e seus processos de resistência às agruras geradas
pelo sistema desigual e injusto de servidão. A sua natureza ficcional, entretanto, não
desqualifica seu uso enquanto fonte e objeto da História, já que a historiografia contemporânea

4
Através de edital do Programa de Ação Cultural (ProAC), legislação de incentivo à cultura do Estado de São
Paulo, do ano de 2013, segundo o próprio autor. O ProAC, inclusive, recebeu premiações do Troféu HQ Mix na
categoria Grande Contribuição em suas edições de número 22 (2010) e 27 (2015), pela sua importância enquanto
fomentador de produções em quadrinhos engajadas na disseminação da história e da cultura, como visto no site
Universo HQ, disponível em: http://www.universohq.com/noticias/os-vencedores-do-27o-trofeu-hq-mix/.
5
Como referenda o autor, Marcelo D´Salete, na página 175 na bibliografia assumidamente utilizada (D´SALETE,
2014, p. 175). Os dois autores supracitados aparecem também nos verbetes do glossário da edição, igualmente útil
para o exercício pedagógico de uso da história em quadrinhos como material paradidático.
já garantiu sua legitimidade através de sensíveis análises da relação entre Literatura (enquanto
pretensiosamente ficcional) e História (enquanto pretensiosamente realista), “entendendo-as
como diferentes formas de dizer o mundo, que guardam distintas aproximações com o real”
(PESAVENTO, 2004, p.80).
A análise aprofundada da história em quadrinhos Cumbe, produção nacional que
valoriza narrativas influenciadas pelos saberes sobre a História da escravidão, faz-se em busca
de serventia pedagógica. O objetivo principal de sua feitura é funcionar como opção de uso
pedagógico de uma história em quadrinhos para o ensino sensível sobre as vivências e
resistências de africanos escravizados e seus descendentes negros na contemplação da lei
10.639 e na prática consciente de representatividade e humanização dos saberes do nosso
passado recente e como entender as inúmeras circunstâncias de injustiças que persistem em
nossa realidade social.
Através desses debates e dos diálogos possíveis, as aplicabilidades das leis sobre
representatividades de minorias podem encontrar escoamentos. As histórias em quadrinhos são
mais um suporte possível de narrativa útil para a aplicação da lei em sala de aula e para o
repertório de saberes. Não são mais ou menos eficientes, não há aqui nenhuma pretensão de
idealização de um suporte, senão pela qualidade narrativa a que a obra escolhida tem por
oferecer para o ensino de História da escravidão no Brasil.
O suporte ideal da prática aqui sugerida parte da razão de interdisciplinaridade e
cruzamento consciente de fontes. Desta forma, “o tripé de segurança é feito pela bibliografia
sobre África, a reflexão sobre o uso de quadrinhos em sala de aula no ensino de história da
África e o uso crítico” (LIMA, 2017, p. 2130), no caso, adequado à ampliação além dos limites
continentais, entendendo as vivências dos africanos escravizados ou mesmo as permanências
culturais mantidas pelos seus descendentes em solo brasileiro. A leitura da obra em quadrinhos
deve ser feita previamente pela pessoa educadora, buscando anteceder os saberes e os possíveis
questionamentos sobre as representações históricas nela presentes.
A própria história em quadrinhos, Cumbe, traz em posição de anexo, um curto dicionário
das palavras usadas na narrativa, como já comentado. Esse glossário dinamiza os falares
presentes em dicionários como o de Nei LOPES (2006) e pode ser cruzado com o compêndio
de Yeda Pessoa DE CASTRO (2001). Em Cumbe, também, há uma página de texto escrita por
Allan da Rosa, descrito como angoleiro e pedagogo, sobre o tráfico do povo banto, escravizado,
para o Brasil e o quanto que as reminiscências dessa cultura e suas devidas transformações são,
também, atos de resistências no duradouro período de escravidão no país. Enriquecem a leitura
da obra pela pessoa educadora tanto a leitura da bibliografia sugerida (usada na construção das
narrativas pelo autor) como a leitura de outros tratos, como Paul Lovejoy, no livro A Escravidão
na África: Uma História e suas Transformações (2002), Emília Viotti da Costa, Da Senzala à
Colônia (1966), entre outros.
A história em quadrinhos Cumbe tem quatro narrativas independentes com o mesmo
tema de vivências de escravizados. Calunga, a primeira das histórias, narra sobre uma relação
amorosa entre dois cativos que vivencia o drama criado pelo sistema escravista de separação
dos amantes pela transformação dos indivíduos em mercadorias, como aparecem nos discursos
de relatos de Robert SLENES (1999, p. 56). Abre-se com um ideograma, mecanismos
linguísticos de inúmeras culturas como a do povo sona e do povo quioco. Já nesta primeira
narrativa, visualmente, já aparecem os cativos, a casa grande, a senzala, o trabalho árduo no
eito da monocultura açucareira, dentro inúmeros sinais de crenças e valores subjetivos. Mesmo
pequenas falas, como a da página 22, onde o protagonista, Valu, diz comer farinha para
trabalhar mais, precariedade defendida por contemporâneos como o padre Antonil, com os três
“P”: Pão, Pano e Pau (CARVALHO, 1998, p. 41)6.
Sumidouro, segunda narrativa na ordem de leitura da história em quadrinhos Cumbe,
trata das crianças ilegítimas, nascidas dos abusos dos senhores sobre as escravas. Tais filhos
bastardos, “resultado do poder sexual do senhor sobre suas escravas e mancebas” (VAINFAS,
2002, p. 216), descrevem os problemas que envolvem relações de poder entre senhores e
escravos, formação de famílias e hereditariedade em sistema que produz objetificação dos seres
humanos. A inveja da senhora contra a amasia escrava de seu marido chega ao seu clímax com
a gravidez indesejada da concubina e os ressentimentos e mágoas não foram ficção na história
íntima da escravidão no Brasil (DEL PRIORE, 2006, p. 189). A narrativa de violência e dor
humaniza a interpretação de um passado, mais próximo que a distante distinção de história
material e econômica.

6
Produzi um debate sobre os discursos produzidos no próprio período escravagista sobre os cativos, produzindo e
retroalimentando malhas discursivas que foram eficientes no delongamento do sistema de exploração no Brasil,
com o título Razões de Uns ao Inferno dos Outros: Discursos sobre a Escravidão, Negros e África no Imaginário
Social do Brasil Escravista (LIMA, 2020), na Revista Pesquisa e Educação à Distância número 6 do
Departamento de Ensino à Distância da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Disponível em:
http://revista.universo.edu.br/index.php?journal=2013EAD1&page=article&op=view&path%5B%5D=8460&pat
h%5B%5D=4120.
A revolta escrava é o enredo central da quarta história presente e, também, tem por título
a palavra Cumbe. Uma constante resistência radical na História da escravidão no Brasil, os
levantes de escravos são compreendidos pelos novos estudos historiográficos como ações
efetivas ao processo de abolição (CARVALHO, 1998, p. 69). Inúmeras revoltas reais tomaram
proporções notáveis, como a revolta de carrancas, revolta de Manoel Congo, revolta dos Malês,
dentre outras tantas, alimentando o temor que ficou conhecido como Haitianismo, pelos
violentos efeitos ocorridos na ilha de São Domingo, na América Central (MARQUESE, 2004,
p. 295). A narrativa visual prestigia o leitor com signos e elementos possíveis de serem lidos
separadamente, como a tartaruga cabinda, a estatueta de Chibinda Ilunga, as escarificações
étnicas e marcações de propriedade nos corpos, o pelourinho e seu poder simbólico, tudo
funciona para descrever a realidade escravista que maculou a História do Brasil.
A quarta e última história, de título Malungo, remete aos ataques que quilombos, então
chamados na narrativa de mocambos, faziam às ameaças constantes de reintegração ao sistema
escravista. A alegoria do Quibungo, entidade sobrenatural vinculada aos perigos das matas,
comentada pelo médico e antropólogo Nina Rodrigues no seu livro Os Africanos no Brasil,
(RODRIGUES, 2010, p. 227-230), representando todo o medo e a dor que estão vinculados às
violências físicas, psíquicas e sexuais produzidas por um feitor. Na arte, a arquitetura do
mocambo e do engenho se contrastam. Na narrativa, a rotina, do cantar do calo da manhã, na
contagem dos escravos, define a lógica temporal da exploração. No fim poético, ao som mudo
dos atabaques desenhados, na dança ritualística em contas, na roda de gente, nos traços
similares aos de Carybé em suas Sete Portas da Bahia, D´Salete dá beleza à jornada sofrida de
seus personagens.
As sugestões de abordagens aqui não pretendem esgotar as amplas possibilidades de
leituras e usos da história em quadrinhos Cumbe para o ensino de História da escravidão7. Faz-
se aqui, apenas, uma série de pontuações pertinentes de diálogos entre a ficção e a realidade
histórica no provimento de uma dinâmica pedagógica eficiente ofertada à pessoa educadora que
se interesse no seu uso pedagógico ao ensino de História em comunhão com as conquistas legais
antirracistas e decoloniais. A continuidade dos trabalhos e dos exames sobre histórias em
quadrinhos no ensino de História fortalece a inserção do objeto-fonte nos campos da
historiografia e enriquece os procedimentos e saberes nos campos da pedagogia, propondo

7
Como pode ser visto no já citado em nota e independente trabalho de Letícia Gomes Santos sobre o mesmo
objeto-fonte, em sua defensa de Trabalho de Conclusão de Curso na UNEB neste ano de 2022.
pontes possíveis entre as zonas científicas em prol da exigente e necessária aplicação da lei
10.639.
De imediato, pode-se expor a leitura crítica e a produção dessa criticidade através deste
trato científico sobre o uso dos quadrinhos enquanto objeto-fonte de análise e instrumento
pedagógico. Assegurar as bases metodológicas dessa proposta faz parte de seus objetivos, sendo
peça de um esquema mais amplo já proposto (LIMA, 2015; LIMA, 2016; LIMA, 2017). A
apreciação desse contínuo trabalho e o parecer possível ainda tem recente construção. É um
convite ao debate, um chamamento explícito de fazer o uso de histórias em quadrinhos na sala
de aula para o ensino de História.
Apesar de longa a presença das histórias em quadrinhos na academia, parte dessa
persistente comparência se dá pela busca de legitimidade. Muitos trabalhos gastam linhas
discursivas para convencer o meio científico através do enaltecimento de seus valores, perdendo
a oportunidade de aprofundamento nas questões mais urgentes na transformação de nossa
sociedade. Com a abolição tardia e a insistência social do racismo, propostas de valorização
racial não são apenas importantes para o alívio de uma população prejudicada pelas vicissitudes
da História, são justiças sociais imprescindíveis. Ainda que a escravidão tenha encontrado seu
fim, as consequências sociais dessa disparidade baseada na raça e nos traços fenotípicos criou
uma sociedade racista em território brasileiro, sendo um problema grave para a nação
(CARVALHO, 1998, p. 78).
Cumbe tem o formato ideal para o uso pedagógico no ensino de História da escravidão
por conta de sua atualização no campo do conhecimento histórico e sua dinâmica narrativa.
Muitas outras propostas caem no engano de que basta o uso do suporte para compor um material
pedagógico útil, mas a simples transposição narrativa não garante essa acessibilidade, correndo
o corriqueiro risco de se produzir uma narrativa cansativa apenas com desenhos em quadrinhos
como pano de fundo. Histórias em quadrinhos são narrativas por excelência, sua feitura precisa
ter consciência disso enquanto suporte. Não cabe aqui listar publicações com mesma temática
ou temática similar malsucedidas, não convém e não produziria o efeito crítico desejado.
A análise proveitosa aqui, comunicada e compartilhada entre pares, tem por objetivo
servir de ponto de partida para o uso oportuno da história em quadrinhos para o ensino de
História da escravidão. Contempla-se nesta proposta e, por sua vigente concepção não apresenta
seguras conclusões ou pareceres de sucesso, críticas de melhoramentos ou acusações de
equívocos por parte dos colegas educadores, o que esperançosamente venha a existir a partir
deste ponto padrão.

Conclusão
As produções em quadrinhos sobre a África e sobre as populações que dela foram
retiradas arbitrariamente crescem com vigor. O próprio mercado percebeu que as críticas
favoráveis a essas produções justificam a aposta das editoras em narrativas nacionais que
valorizam a História atualizada e em corroboração às leis de reparações raciais, étnicas e
culturais (LIMA, 2016, p. 14). Obviamente isso permite uma quantidade numerosa de análises
possíveis e abordagens críticas de profissionais do ensino.
Essa produtividade artística, de onde a ficção faz uso de suportes historiográficos,
encontra em sala de aula um local de existência funcional. Ainda que existam as produções
pejorativas, mesmo a estas podem ser feitas leituras e usos de suas falas para debater
importantes questões do passado que ainda interferem, e muito, na realidade social em que
vivemos, com constantes ataques contra as conquistas políticas e educativas de movimentos
negros, significativamente com o Estado sob tutela de uma gerência conservadora e reacionária
em questões étnico-raciais. Numa leitura a contrapelo, “as histórias em quadrinhos, que por
muito tempo fizeram um desserviço na manutenção de tantos discursos perniciosos, podem ser
instrumentos de restauração desse passado africano” (LIMA, 2017, p. 2133). No caso das
produções reparativas, como Cumbe, o exercício segue o fluxo de seus dizeres em acordo com
a lei 10.639 e com a agenda decolonial8.
A importância da História e da cultura africana e da cultura brasileiras de raízes africanas
é a seiva mantenedora da lei 10.639, da pretendida justiça social e da abordagem aqui sugerida.
Justamente através da história em quadrinhos Cumbe se faz uso fecundo da ficção de
entretenimento para contemplar reflexões e diálogos entre saberes para a compreensão de tão
sensível passado e as mazelas sociais que deste passado se perpetuam ainda atualmente. O
racismo é um problema estrutural nocivo para toda a sociedade, por isso “O resgate da memória
coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência
negra”, pontua o antropólogo e professor Kabengele Munanga, “interessa também aos alunos
de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação

8
A isso convém o aprofundamento sobre o movimento e ideário decolonial e seus respectivos autores
(BALLESTRIN, 2017, p. 510) e suas relações com a historiografia (PRADO, 2021).
envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas”
(MUNANGA, 2005, p. 16).
O prazer da leitura de uma obra em quadrinhos fornece, também, uma quebra
hierárquica nos padrões estabelecidos entre leitura formal e leitura subalterna. Apreciando
diversos suportes, sem que eles se confrontem de forma negativa, educadores e educandos
ressignificam seus lugares e os lugares de suas leituras, permitindo que as inúmeras vias e
possibilidades de construir saberes não se limitam às doutrinas valorativas do letramento
enquanto superioridade e os suportes de narrativas gráficas ou audiovisuais são relegados às
categorias inferiorizadas. O uso de histórias em quadrinhos em harmonia com a literatura
convencional e outros tantos suportes, por sim, já se trata de um exercício de descolonização.

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