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BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

O “maior país católico do mundo”


está a tornar-se um bastião
evangélico
REUTERS/RICARDO MORAES

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A construção de um país chamado Brasil teve desde o início um


forte pendor religioso. O encontro entre o catolicismo e as
crenças dos povos subjugados criou um sincretismo muito
próprio, um catolicismo “abrasileirado”. Mas algo está a mudar.
Durante a próxima década, o número de brasileiros evangélicos
vai superar a população católica.
João Ruela Ribeiro
17 de Agosto de 2022, 23:17

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os primeiros Censos organizados no Brasil, em 1872, exactamente 50 anos depois da independência da

N antiga colónia portuguesa, o número de católicos era praticamente de 100%. As dificuldades logísticas
para organizar um esforço de contabilização estatística ao longo do vastíssimo território do Império
tornam compreensível a reduzida fiabilidade das conclusões desses primeiros Censos. Mas a unanimidade
religiosa brasileira era sobretudo o resultado de um processo de assimilação cultural forçada com a qual os
seus alvos primordiais — povos indígenas e escravos provenientes de África — aprenderam a conviver e a
resistir.

Essa resistência aos costumes trazidos pelos brancos era feita com a aceitação nominal do credo cristão, em
simultâneo com a manutenção de práticas das suas religiões originais. Nascia o sincretismo, a convivência de
múltiplas práticas religiosas no mesmo indivíduo, e que se tornou marcante na sociedade brasileira até aos
dias de hoje.

Nas últimas décadas, a hegemonia do catolicismo, com todas as suas nuances individuais, vê-se ameaçada
pelo crescimento acelerado das igrejas pentecostais, que mostram uma flexibilidade organizativa que as
torna mais capazes de se adaptarem à sociedade capitalista do século XXI.

Regressemos aos primeiros Censos brasileiros. “A população escrava, por definição, era católica, porque
quem declarava [a religião] eram os próprios senhores”, conta ao PÚBLICO o demógrafo José Eduardo
Eustáquio, autor de vários estudos sobre a evolução do panorama religioso no Brasil. Já os indígenas
(https://www.publico.pt/2022/08/12/culturaipsilon/noticia/invencao-brasileiros-2015586?ref=bicentenario-
independencia-brasil&cx=stack) foram desde os primeiros tempos da colonização um grupo especialmente
visado pelos esforços de evangelização por parte dos missionários europeus, o mais célebre dos quais talvez
tenha sido o padre jesuíta António Vieira
(https://www.publico.pt/2022/08/08/culturaipsilon/noticia/formacao-brasil-2014491).
m Salvador de Bahia, Brasil ENRIC VIVES RUBIO

A justificação religiosa também serviu o empreendimento colonizador. Perante grupos de indígenas que
apresentassem sinais de rebeldia ou simplesmente resistência face à conquista portuguesa, era possível
declarar uma “guerra justa” com o devido patrocínio da igreja.

“Hegemonia católica”
Quando os missionários portugueses chegaram a este território inexplorado por ocidentais do outro lado do
oceano Atlântico, encontraram um povo que já tinha as suas crenças, mas não partilhava da visão de uma
religião organizada como a que existia na Europa. Os povos indígenas “têm outra concepção de mundo”, diz
ao PÚBLICO a professora de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), Cecília Mariz.

Do ponto de vista dos povos originários, continua, “não é preciso ter um credo; sabe-se que Deus existe, tal
como se sabe que há árvores. E às vezes nem há distinção entre espírito-gente e espírito-bicho.” No processo
de evangelização, tanto de escravos provenientes de África como dos povos indígenas, deu-se um processo
de mistura entre as crenças e tradições que já eram partilhadas à partida e os novos ensinamentos da Igreja
Católica, dos jesuítas e de toda a sorte de ordens religiosas que acorreram ao Brasil recém-descoberto.

Para Cecília Mariz, a maleabilidade das religiões africanas e indígenas contrastava com os princípios
estanques que vinham das religiões europeias, mas também estas se alteraram com o processo de
sincretismo brasileiro. “Na tradição cristã, ou se acredita nisto ou naquilo, é o que é ensinado, mas na
tradição dos povos indígenas e dos africanos, não é preciso excluir: se acredita nos orixás, pode acreditar em
Jesus também”, explica a académica especialista em Sociologia das Religiões.

Na verdade, o fenómeno da convivência entre práticas e crenças religiosas diferentes pela mesma
comunidade é a regra em grande parte do mundo não-Ocidental, considera Mariz, dando o exemplo das
religiões africanas e asiáticas. “Essa exclusividade religiosa é uma minoria na História mundial, é uma
tradição judaica, mas não é dominante”, observa.
"A Primeira Missa no Brasil", quadro de Victor Meirelles (1860) WIKICOMMONS

O resultado da experiência específica brasileira acabou por ser uma “hegemonia católica” que se estende
desde o período da colonização, perpassa a época imperial e sobrevive à laicidade do republicanismo. Mas
há matizes nessa predominância católica, nota a professora de Sociologia da Universidade Federal
Fluminense, Christina Vital da Cunha, em entrevista ao PÚBLICO, que redundam na “formação de um
catolicismo popular muito significativo que combinava figuras do imaginário indígena, das religiões de matriz
afro-brasileira”.

Cecília Mariz segue pelo mesmo caminho ao referir-se a um catolicismo que não era o de Roma. “O
catolicismo da maior parte da população era independente da Igreja, portanto dizia-se que o Brasil era o
maior país católico do mundo, mas onde a Igreja não tinha tanta força”, explica a socióloga. Para além do
fenómeno do sincretismo, havia também a incapacidade de a instituição eclesiástica se conseguir organizar
para cobrir um território tão vasto e tão desigual como o Brasil. Os senhores do engenho e as famílias tinham
como se transportar todos os domingos à cidade para assistir à missa; todos os outros, criadas, trabalhadores
do campo, escravos, diziam-se igualmente católicos, mas a igreja estava longe.

Essa característica tornou a Igreja Católica no Brasil mais fraca do que o epíteto de “maior país católico do
mundo” poderia fazer pensar. Mariz recorda, por exemplo, que até aos anos 1970, quase 40% do clero do
país era estrangeiro.

A grande mudança
O panorama da religião está a mudar de forma dramática no Brasil. O demógrafo José Eduardo Eustáquio,
que estuda as dinâmicas da composição social e religiosa da população brasileira há décadas, fala de uma
“transição religiosa”. Em termos simples, o cenário é este: a partir do início dos anos 1990, o número de
brasileiros a identificar-se como católicos caiu todos os anos, enquanto as fileiras dos evangélicos cresceram
aceleradamente.
Hoje, Eustáquio estima que os católicos correspondam a cerca de 50% da população brasileira, enquanto os
evangélicos estejam na ordem dos 32%. A expectativa é que, durante a próxima década, o número de
brasileiros evangélicos supere a população católica. “Os próximos Censos vão ser muito importantes”, diz o
especialista. Inicialmente marcados para 2020, o levantamento estatístico feito a cada década foi adiado nos
últimos dois anos por causa da progressão da pandemia e arrancou este mês. Os primeiros resultados devem
ser conhecidos no final do ano.

“Até aos anos 1970, fazia parte da identidade brasileira ser católico, e isso está a mudar dramaticamente. As
pessoas já não se declaram católicas automaticamente e é por isso que essa transição religiosa está a
acontecer com tanta rapidez”, diz Eustáquio.

A partir do início dos anos 1990, o número de brasileiros a


identificar-se como católicos caiu todos os anos, enquanto as fileiras
dos evangélicos cresceram aceleradamente

Parte da explicação para a “transição religiosa” brasileira – que também inclui um aumento do número de
pessoas que dizem não ter nenhuma religião – está ligada à própria actuação da Igreja Católica no Brasil. O
demógrafo faz coincidir a quebra de fiéis católicos com as mudanças mais abrangentes na sociedade,
sobretudo o crescimento populacional nos grandes centros urbanos do país, como São Paulo, Salvador da
Bahia, Rio de Janeiro, Brasília ou Belo Horizonte.

“Os católicos foram muito fortes enquanto o Brasil tinha uma estrutura agrária e rural. Quando o Brasil
começou a urbanizar e a industrializar, a avançar com a educação e com os meios de comunicação, apareceu
uma série de novas informações e estruturas que a Igreja Católica não conseguiu acompanhar”, nota
Eustáquio.

Um exemplo que o demógrafo costuma dar é o da ausência de igrejas católicas nos bairros periféricos das
cidades, em oposição aos centros históricos, onde existem em grande quantidade. O problema é que o
grosso da população urbana mora nestes arredores periféricos e os centros urbanos estão cada vez mais
longe da sua vida quotidiana. “Se for às periferias, vê que a Igreja Católica não conseguiu acompanhar esse
movimento populacional e ficou distante dessa massa de pessoas que ficou um pouco excluída do Estado e
das políticas públicas”, explica.
"Marcha para Jesus", da Igreja Evangélica, este mês REUTERS/RICARDO MORAES

Brasil evangélico
As necessidades espirituais do ser humano não toleram o vácuo e as igrejas evangélicas, sobretudo as
pentecostais de tradição norte-americana, foram rápidas e eficazes a suprir as ausências da Igreja Católica.
Há, desde logo, uma vantagem organizacional que as igrejas mais antigas não conseguem superar. O
processo de abertura e filiação de um pequeno templo – que tanto pode ser uma garagem ou uma pequena
sala no rés-do-chão de um prédio – é muito rápido. Os pastores ficam habilitados a organizar cultos em pouco
tempo e a hierarquia é infinitamente mais flexível do que nas igrejas romanas, dependentes de uma linha de
comando que, em última instância, chega ao Vaticano.

Num artigo recente publicado no site Colabora, Eustáquio resume as vantagens dos evangélicos: “Possuem
grande descentralização e autonomia, rápida formação de pastores, cultos dinâmicos, musicais e alegres e a
combinação de mega templos em grandes avenidas, com a abertura de minitemplos perto das
comunidades”.

A mensagem veiculada por grande parte destas igrejas é apelativa, numa sociedade desigual em que a cultura
da meritocracia está a ganhar raízes. Muitos destes pastores seguem a chamada Teologia da Prosperidade,
uma doutrina nascida nos EUA que faz a apologia da livre iniciativa e põe a prossecução do lucro e do
sucesso económico como objectivos que Deus deseja que os seus seguidores cumpram.

Algumas igrejas evangélicas tornaram-se autênticos grupos


empresariais, de que o exemplo mais célebre é o da Igreja Universal
do Reino de Deus, fundada em 1977 no Rio de Janeiro. Hoje, tem
mais de 1,8 milhões de fiéis no Brasil

“Os evangélicos estão mais adaptados a uma sociedade capitalista urbanizada e industrializada, e oferecem
um incentivo para que as pessoas actuem nesse tipo de sociedade”, observa Eustáquio. A linguagem dos
pastores é igualmente muito mais próxima daquela que os seus crentes utilizam entre si e certos cultos
aproximam-se mais de sessões de auto-ajuda do que de um ritual religioso.

Cecília Mariz também chama a atenção para a maior autonomia do crente dentro do universo evangélico. É
comum alguém deixar de frequentar uma igreja e passar a ir a outra, seja porque não gosta de dado pastor
ou por outras razões mais prosaicas. A unicidade da Igreja Católica obriga a uma exclusividade que muitos
brasileiros parecem já não suportar. “Deixar de ser católico é uma coisa traumática, já nos evangélicos pode-
se circular mais”, diz a socióloga.
Edir Macedo: nas últimas décadas, nenhum Presidente da República foi eleito sem o seu apoio expresso e do seu poderoso grupo de
comunicação, a Rede Record MARCOS TRISTAO/REUTERS

Neste contexto, algumas igrejas evangélicas tornaram-se autênticos grupos empresariais, de que o exemplo
mais célebre é o da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada em 1977 no Rio de Janeiro. Hoje, tem
mais de 1,8 milhões de fiéis no Brasil e mais de oito mil templos espalhados pelo país, a que se juntam outros
milhares no estrangeiro, incluindo em Portugal.

O seu líder e fundador, o pastor Edir Macedo, é uma das personalidades mais influentes, e controversas, do
Brasil, e o seu apoio político é considerado fundamental por qualquer candidato com ambições. Será
suficiente dizer que, nas últimas décadas, nenhum Presidente da República foi eleito sem o apoio expresso
de Macedo e do seu poderoso grupo de comunicação, a Rede Record.

Religião e política
A ligação entre a religião e a política no Brasil não é um fenómeno novo e, uma vez mais, remete para a
época colonial. A exploração do território pela Coroa portuguesa andou sempre acompanhada de perto pela
ideia da expansão do cristianismo pelo mundo. A Igreja Católica exerceu uma forte influência em todos os
regimes que se seguiram, embora durante a Ditadura Militar (1964-1985) um importante sector progressista
tenha emergido como contraponto à repressão e aos abusos contra a população.

Porém, poucas denominações religiosas aprenderam a jogar o jogo democrático com tanta maestria como os
evangélicos pentecostais no Brasil. Após o fim da Ditadura Militar, as igrejas pentecostais iniciaram “um
activismo muito mais forte do que o católico, no sentido de se organizarem para entrarem nos vários
partidos e depois actuarem no Congresso através de uma frente parlamentar”, diz Eustáquio.

A chamada “bancada da Bíblia”, que congrega deputados federais de diferentes partidos unidos pelos
valores e interesses das igrejas evangélicas, é um caso paradigmático de sucesso deste “projecto de ocupação
dos espaços parlamentares”, como define o demógrafo. Se em 1986, havia 33 deputados na Câmara dos
Deputados, hoje são contabilizados 202 parlamentares, cerca de 40% do hemiciclo.

Para além da intensa presença no Congresso, as diferentes igrejas pentecostais já mostraram ser capazes de
fazer eleger aliados para outros cargos importantes, como foi o caso do ex-“prefeito” do Rio de Janeiro, o
bispo Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, e um dos líderes da IURD.
De forma idêntica, é extremamente forte o laço estabelecido entre os sectores evangélicos e o actual
Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que costuma repetir com frequência um versículo bíblico – “E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” –, e escolheu como lema de campanha uma frase com forte
ressonância neste eleitorado: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

o estabelecido entre os sectores evangélicos e o actual Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro REUTERS/RICARDO MORAES

Um passo importante dado durante a presidência de Bolsonaro, do ponto de vista das igrejas, foi a
nomeação, em 2021, de André Mendonça para juiz do Supremo Tribunal Federal, cumprindo a promessa de
escolher um juiz “terrivelmente evangélico” para o principal tribunal do país. Pela primeira vez, o STF conta
com um juiz declaradamente evangélico na sua composição.

Os especialistas avisam, no entanto, que é precipitado caracterizar de forma absoluta a população evangélica
num quadro fixo: conservadores, opositores ao aborto ou às uniões não heteronormativas.

“Existe mais diversidade entre os evangélicos do que entre os católicos”, observa Eustáquio, lembrando a
existência de grupos progressistas de crentes evangélicos, embora minoritários no contexto geral.

A socióloga Christina Vital da Cunha sublinha que o conservadorismo e a valorização da tradição são traços
característicos de todas as religiões, e não apenas das evangélicas. “Há uma predominância do
conservadorismo moral entre os evangélicos”, explica, “mas que não se reflecte necessariamente em
vinculações à direita ou à extrema-direita”.

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