Você está na página 1de 2

ME NU ASSINE

Ad

3 ª T U R MA

O custo do cuidado é sempre menor


que o custo do reparo
Mulheres negras, em situação de rua,
maternidade e a guerra às drogas.

PO R B E LLE DAMAS CEN O | 04.02. 2020 20 H47

APOIE Siga-nos no

ouça este conteúdo

 _o

Ouvimos por aí diversas versões de uma


maternidade saudável, exemplar, em que
a mulher ao descobrir-se grávida –
mesmo sem ter planejado engravidar –
desenvolve uma dinâmica de cuidado
para si e para a criança que está vindo ao
mundo, caso essa deseje. Mas vamos lá!
Pela perspectiva do que
compreendemos enquanto cuidado,
quais caminhos essa mulher deve seguir
via de regra? Fazer consultas, exames,
boa alimentação, procurar suprir algum
déficit de ferro, descansar, acessar suas
redes familiares, amigos e amigas,
enxoval, chá de bebê e todos os outros
procedimentos necessários, nessa lógica
de cuidado. No entanto, antes de se
pensar na chegada da criança, é a
mulher, este corpo em movimento, que,
composto por memórias e trajetórias,
está em contínuo movimento para que
essa experiência possa ser realizada,
inclusive no processo de formação – os
nove meses de gestação. E quais
possibilidades algumas mulheres têm
para que este movimento aconteça e se
adeque aos princípios de saúde, bem-
estar?

Bom, não custa fazer uma breve


retrospectiva do que na minha
monografia sobre “Experiências
abortivas entre Mulheres Negras de
Salvador/BA” descrevo como Trajetória
Reprodutiva: uma pesquisa pelo qual
pude contar com oito colaboradoras e
através de diálogos compartilharam
comigo suas experiências reprodutivas e
os fatores pelos quais as levaram a
recorrer ao aborto. Óbvio, que nem
todas tiveram as mesmas justificativas,
entretanto, alguns contextos se
repetiram mesmo nas diversidades de
narrativas, inclusive, quando o assunto
em questão era sobre o caminho
percorrido em seus itinerários abortivos.

Nesta pesquisa o que trago enquanto


“trajetória reprodutiva” diz respeito ao
processo desenvolvido e compreendido
por cada mulher a partir de suas
experiências reprodutivas, sobre os
nascimentos e os não nascimentos
devido a fatores que contribuíram para
que estas mulheres não pudessem trazer
novas vidas ao mundo, ainda que
quisessem. Muitas das colaboradoras
estavam desempregadas, outras narram
uma trajetória sexual marcada por
violências e estupros, que tiveram por
consequência a gravidez, abandono do
parceiro, ou a perda do mesmo por ter
sido baleado na porta de casa em ação
da PM em seu bairro.

Como bem afirma Angela Davis em seu


livro “Mulher, Raça e Classe”, capítulo
12, ao tratar sobre os direitos sexuais e
reprodutivos de mulheres negras e
latinas, ao recorrerem aos abortos, elas
não estavam esperando se livrar da
gravidez, mas sim da dor de trazer ao
mundo uma criança em situações
miseráveis e da repetição de ciclos pelos
quais já estavam cientes da possibilidade
de os seus passarem. Situação pela qual
não estava muito distante da trajetória
reprodutiva que as mulheres negras
escravizadas passavam, pensar como os
abortos auto induzidos e infanticídios
eram recorrentes em função do
desespero em que se encontravam as
mulheres negras escravizadas por
gerarem e criarem filhos e filhas nas
condições opressoras e brutais que
viviam.

Trazendo para hoje, para o nosso


cotidiano, as reflexões de Davis, e as
reflexões que apresento sobre fatores
que impedem que novas crianças negras
venham ao mundo, é de suma
importância o questionamento sobre a
situação em que essas mães se
encontravam antes de não terem as
devidas condições de cumprir o plano
desejado pela sociedade e, cobrado na
mãe, a vinda de uma criança e o cuidado
que ela, especificamente ela, tem que ter
para que esta criança nasça e
posteriormente tenha condições de
exercer a maternidade.

Não contente em acompanhar mulheres


negras periféricas em suas trajetórias
reprodutivas, e suas experiências
abortivas, em 2019 expandi minha
pesquisa para “Trajetórias Reprodutivas
de Mulheres em Situação de Rua:
Memórias do Corpo, da Sexualidade e
da Reprodução”, na própria cidade da
pesquisa anterior, em Salvador –
pesquisa em curso. Ao chegar em
campo, ou permanecer em campo, pois
se trata dos locais em que fazem parte
do meu cotidiano, ao acessar mulheres
em situação de rua e ser acessada
também por elas, percebo que para as
mesmas o aborto era apenas a “bica
d’água” como bem cita Luiza Bairros ao
falar das reivindicações das mulheres
negras e pobres. Se de um lado existe
toda uma criminalização das mulheres
que abortam, principalmente as
mulheres negras e pobres que abortam
clandestinamente em portas de açougue
e fundos de quintais e estão mais
propícias a serem condenadas por isso,
por outro lado existe toda uma negação
dos abortos das mulheres em situação de
rua, essas que não necessariamente me
narram sobre abortos planejados, mas
que a situação de vida pela quais estão
submetidas já as colocam em situação de
risco e poucas são as possibilidades que
essa mulher terá para usufruir de uma
gravidez saudável e “exemplar”.

No decorrer da pesquisa, os abortos


entre as mulheres em situação de rua, já
não foi o assunto principal, mas sim o
que antecede a gravidez, o processo de
gestação, quando este ocorre, e a
tentativa de permanecer com a criança
pós nascimento em condição de rua.

Saindo da mulher negra e periférica


para a mulher negra em situação de rua,
a trajetória reprodutiva dessas duas
categorias, mesmo ganhando
perspectivas e vivências diferentes,
ainda que estes caminhos se cruzem em
muitos fatores, a guerra contra estes
corpos tem um suporte que abandona
toda a lógica de cuidado que trago no
início do texto para aqueles e aquelas
que até compreendem a necessidade que
a mulher ao engravidar possui para ter
uma gestação saudável. Essa perspectiva
é totalmente desprezada quando se trata
da mãe, preta, em situação de rua, que
todos os dias possui seus direitos
violados, que é arrastada pelos cabelos
pela PM, mesmo estando grávida. Um
suporte pelo qual é fornecido pelo plano
genocida da “guerra às drogas”. Não
cuidam das mães, mas tomam suas
crianças.

Crianças pelas quais o Estado Brasileiro


não se preocupa se essas têm condições
de vir ao mundo ou não, pois se fosse o
contrário iriam focar nas condições
miseráveis que vivem essas mulheres, já
que é através delas que essas vidas
podem existir.

Re c o m e n d ad a s

Quem são os responsáveis pela


queda dos crimes violentos no
Brasil?

A Medida Provisória 905 e o


Benefício do Auxílio-Acidente

A jornada de trabalho dos


bancários frente à MP 905/2019

A inconstitucionalidade da MP
905/19

O processo de desumanização dessas


mulheres por serem associadas a
“cracudas”, “viciadas”, “drogadas” e
outros processos de estigmatização
associados ao uso de drogas ilícitas só
legitima o abandono dessas mulheres
pelo Estado, que, por outro lado,
incentiva a criação de políticas
defasadas e já compreendidas como não
aplicáveis à realidade. Havendo também
ameaças de cortes em programas de
redução de danos, demissão
Ad Ad
de
profissionais que estão no cotidiano
dessas mulheres e, que, de alguma
forma, contribuem no processo de
cuidado e acolhimento, não só dela, mas
de toda família.

A guerra às drogas no Brasil configura


um cenário que pune ao invés de cuidar.
Hoje, para a grande maioria, ao se falar
de pessoas em situação de rua, seus
corpos estão diretamente associados às
questões das drogas ilícitas e seus usos,
sendo estes corpos mais alvos de
medidas punitivistas do que de medidas
que se pensem em Políticas Públicas
eficazes que correspondam de fato às
demandas dessa população.

A retirada das crianças das mães em


situação de rua já é uma medida
claramente punitivista e proibicionista,
uma vez que despreza todos os fatores
que citei acima, como o cuidado que
antecede até mesmo a possibilidade
dessa mulher ter engravidado e ter
conseguido ter este filho em condições
de total vulnerabilidade social, o que, ao
meu ver, representa, sobretudo, a
resistência dessas mulheres a uma
necropolítica que tenta eliminar pessoas
negras e pobres antes mesmo dessas
virem ao mundo, começando por
propostas de políticas higienistas.

Uma das mudanças no Estatuto da


Criança e do Adolescente, introduzida
pela Lei nº 13.257/2016, prevê que
“Toda criança ou adolescente tem
direito a ser criado e educado no seio da
sua família …assegurada a convivência
familiar e comunitária, em ambiente
livre da presença de pessoas
dependentes de substâncias
entorpecentes”, o que elimina a
possibilidade de se criar casas de
acolhimento familiar, políticas que se
pensem nos traumas que geraria para
essa mãe ainda em puerpério a retirada
de seus filhos ainda na maternidade e
seus encaminhamentos para o
acolhimento institucional. O que é por si
contraditório, pois o Estado também
deveria se preocupar em como uma
criança deve crescer em um ambiente
livre de violências cometidas pela
próprio braço armado do Estado, livre
da fome, livre da não assistência e
programas de redução de danos, sem
nenhum projeto de moradia e com
políticas pelas quais não facilitam o
acesso destas ao acompanhamento
médico ou até mesmo a possibilidade de
ser cuidada para poder cuidar.

Sobre as crianças e não romantização


dos cuidados que a estas devem ser
considerados, de acordo com a Lei da
Primeira Infância (Lei nº 13.257, de 8
de março de 2016) é prioridade absoluta
assegurar os direitos da criança, do
adolescente e do jovem, o que implica
no dever do Estado de estabelecer
políticas, planos, programas e serviços
para a primeira infância que atendam às
especificidades dessa faixa etária,
visando a garantir seu desenvolvimento
integral. Fornecendo apoio às famílias,
buscando a articulação das áreas de
saúde, nutrição, educação, assistência
social, cultura, trabalho, habitação, meio
ambiente e direitos humanos, entre
outras, com vistas ao desenvolvimento
integral da criança. Segundo essa mesma
lei “A manutenção ou a reintegração de
criança ou adolescente à sua família terá
preferência em relação a qualquer outra
providência…”, ou seja, a retirada da
guarda é caso de última medida, no
mais, é plausível manter essas crianças
com seus genitores dentro das condições
possíveis e assistidos pelos programas, e
políticas públicas que lhes são de direito.

Dos abortos cometidos por mulheres


negras periféricas, mesmo sem ter a
opção de exercer a maternidade, pela
falta de direitos que não as alcançam, e
são penalizadas por recorrerem a
métodos e substâncias ilícitas – mesmo
muitas já sendo punidas ao perder a
vida – até a mulher negra em situação de
rua que é totalmente invisibilizada no
processo de existência na rua e gestação,
e ganha visibilidade a partir de seu uso
de drogas, configura uma política de não
cuidado: uma política de guerra a essas
mulheres, seus territórios e comunidade,
disfarçado de guerra às drogas, pois é a
partir dessa justificativa que se
desmantelam lares, tomam suas
crianças, matam seus pais, punem suas
mães usuárias, encarceram e, por final,
não cuidam. Sabiam que as drogas eram
apenas uma desculpa? Claro que
sabiam! Nessa lógica, o custo do reparo,
será sempre maior, em relação ao custo
do cuidado!

Belle Damasceno Cientista Social, Antropóloga


- Pesquisa sobre Direitos Sexuais e
Reprodutivos de Mulheres Negras e Assessora
de Advocacy da Iniciativa Negra

TAGS: ABORTO, ENCARCERAMENTO FEMININO , ESTATUTO DA

CRIANÇA E DO ADOLESCENTE , FEMINISMO, GUERRA ÀS

DROGAS, RACISMO

Junte se ao grupo de
CartaCapital no WhatsApp.

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das


urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e


arrasado, é preciso centrar esforços em
uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais


fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo,


ajude CartaCapital a seguir lutando por
um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.


Assine a CartaCapital

Faça uma doação

Ma i s L i d a s

Moraes nega acesso de Bolsonaro e


Michelle a depoimento de Mauro Cid

Bolsonaro estava envolvido até os


dentes com tentativa de golpe, diz
Lula ao comentar delação de Mauro
Cid

Advogado de réu do 8 de Janeiro


ataca ministros durante julgamento
no STF: 'São as pessoas mais odiadas
do País'

Para proteger e incentivar discussões


produtivas, os comentários são
exclusivos para assinantes de
CartaCapital.
Já é assinante? Faça login

AS SI N E C A RTAC A P I TA L

Seja assinante! Aproveite conteúdos exclusivos e


tenha acesso total ao site.

Os comentários não representam a opinião da revista.


A responsabilidade é do autor da mensagem.

0 comentário

ASSINE A CARTA

SOBR E N ÓS A N UN CIE ASSINANTE

Pri nc í p i o s Me d i a K i t Acesso app


Android
Ma n i fe s t o
Acesso app iOS
Ex p e d i e nt e
Central de Aju da
Di á lo g o s C a p i t a is

REDES SOCIAIS

Editora Basset Copyri ght ©


2023. All Rights Reserved

Políticas e Termos de Uso

Desenvolvido pela OKN Group

Você também pode gostar