Você está na página 1de 5

Entre liberdades e supressões: um estudo sobre como, apesar dos avanços feministas no

Brasil a sexualidade feminina ainda é pautada pelos interesses masculinos.1

Josnayra Fernanda da Costa Pereira

Mateus Henrique Silva Santos2

Apresentação

O presente ensaio visa dialogar acerca de questões de gênero e feminismo, tendo em


vista a questão central de como, apesar dos contínuos avanços no que tange à aquisição de
direitos por parte das mulheres, a sexualidade e o direito a escolha de gerar ou não um filho
ainda é controlada e pautada pela vontade masculina, seja através de imposições no seio
familiar e matrimonial ou por meio de dificuldades legais que impossibilitam ou põem
barreiras em procedimentos como a laqueadura e o aborto.

A ideia de mulher como propriedade e os movimentos feministas no Brasil

De acordo com Elizandra Iop, os papeis e padrões sociais, desde o período pós-
revolução agrícola, em que a mulher possuiria uma importância maior na comunidade, até a
instituição do modelo capitalista de sociedade burguesa até então vigente no mundo posto
como ocidental, vem sendo moldados no sentido de designar à mulher o papel de “dona de
casa” responsável pelos afazeres domésticos bem como pela criação dos filhos e filhas,
enquanto ao homem caberia o dever de prover recursos para manter o lar e sustentar a família
através do suor de seu rosto.

Entretanto, a isso se soma a ideia de que, pelo fato de o homem ser o “provedor” da
casa, “cabeça da família” e responsável por gerir os recursos, o ente masculino teria direito ao
comando dos membros tidos como inferiores na escala social, o que inclui crianças, enfermos
e, sobretudo, mulheres. Essa característica de comando ou chefia, delega as partes subalternas,
aspectos típicos de uma espécie de propriedade, em que o homem, sendo o dono, teria a
liberdade de fazer para com as suas posses tudo aquilo que lhe parecer devido, submetendo-as
assim às suas vontades e desejos, seja forma direta, através de punições, castigos físicos e
1
Ensaio elaborado como atividade avaliativa da disciplina de história do Brasil republicano.
2
Graduandos do curso de licenciatura em história pela universidade estadual do Piauí em setembro de
2021.
represálias ou de forma indireta, por meio de imposições, ameaças e controle da vida
cotidiana, cerceando em última instância a liberdade feminina, na vida pública e íntima.

Nesse contexto, e ainda de acordo com Elizandra, surgiram ao longo dos séculos
mulheres que se rebelaram contra suas condições de subordinação, submissão, exploração e
expropriação pela figura masculina. Contudo, de acordo com Regina Pinto, o movimento
feminista só começa a se organizar de fato no final do séc. XIX, com a ação das sufragistas na
busca do direito à participação política, sobretudo através do voto no estado britânico. No
Brasil, essa luta também se inicia “formalmente” na busca pelo direito ao voto, mais
especificamente no começo do século XX em 1910, sendo liderado por Bertha Lutz, membro-
fundadora da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino em 1922 no estado do Rio de
Janeiro.

A década de 60 foi particular para o movimento feminista no Brasil, haja vista que
durante esse período o mundo expandia em debate sobre causas sociais através do maio de 68
e de outros movimentos que argumentavam sobre questões como liberdade, racismo,
preconceito e etc, enquanto que no território brasileiro, desenvolvia-se o regime militar o que
consequentemente dificultava o debate sobre tais questões. Entretanto, ainda que existissem
limitações e barreiras impostas pelo o estado, os grupos feministas conseguiam, muitas vezes
a duras penas, levantar bandeiras que possibilitassem o diálogo sobre liberdade feminina, o
uso do anticoncepcional, recém comercializado no Brasil, entre outras pautas que tivessem
como foco a causa feminista e suas ambições de liberdade.

A maternidade no século XIX e os reflexos da romantização da gravidez

A narrativa de domesticação feminina, embora antiga, teve sua expansão no Brasil


através da implantação do discurso médico-sanitarista, que por sua vez, bebia de reflexões
retiradas de Emílio, obra de Jean Jacques-Rousseau (1762). Conforme apresentado em Do
Cabaré ao Lar, diversas teses de doutorado buscaram, no fim do século XIX, demonstrar o
“papel divino” e a “vocação natural” da mulher para a maternidade (RAGO, 2018).

Segundo a autora:

No discurso médico, dois caminhos conduzirão a mulher ao território da vida


doméstica: o instinto natural e o sentimento de sua responsabilidade na sociedade.
Em quanto ao homem é designado a esfera pública do trabalho, para ela o espaço
privilegiado para a realização de seus talentos será a esfera privada do lar. Tudo que
ela tem que fazer é compreender a importância de sua missão de mãe, aceitar seu
campo profissional: as tarefas domésticas, encarnando a esposa-dona-de-casa-mãe-
de-família.

Além de apelar para a religiosidade — com foco no Cristianismo —, o discurso


médico buscava ainda culpabilizar aquelas que fugiam da norma “científica” por ele
apresentada, atribuindo doenças infantis e outros males a uma possível negligência da mulher
no cumprimento de seu papel de mãe. As consequências desse discurso prevalecem até hoje,
embora de formas bem mais sutis em decorrência das mudanças sociais ocorridas com o
tempo, trabalhando continuamente para afetar e violentar mulheres em sua saúde mental. Às
mães, é reservada a maternidade de culpa, a jornada tripla de trabalho, e a necessidade de dar
conta de tudo, o que sempre culminará em um sentimento de fracasso (HALASI, 2018);
enquanto a aquelas que recusam a maternidade— pelos mais variados motivos no apogeu do
colapso do planeta, do meio ambiente e de recursos naturais — é direcionado o estranhamento
e julgamento de suas personalidades como imaturas, egoístas, infelizes e para sempre
incompletas, para dizer o mínimo.A gravidez, portanto, definida no passado como o epítome
da felicidade e realização maior na vida de uma fêmea humana, esconde sob o romantismo
fantasioso que a cerca os grilhões da opressão feminina e ainda, a chave para a manutenção do
capitalismo.

O direito de não gerar descendentes

Segundo Ali Mokdad, médico e diretor de estratégia e iniciativa do Instituto de


Métricas e Avaliação em Saúde (IHME, na sigla em inglês), quanto mais anos uma mulher
passa na escola, menos vezes ela engravida, reduzindo o número de filhos. O fator da
diminuição da taxa de fecundidade feminina, portanto, se relaciona diretamente com o
aumento da escolarização no que tange ao acesso à educação sexual e conhecimento acerca de
métodos contraceptivos, conforme é observado em países desenvolvidos. Esse mesmo
movimento é observado no Brasil a partir da década de 60, com a inserção das mulheres na
população economicamente ativa, como é mostrado na pesquisa de Fernandes (et.al):

De acordo com os dados dos últimos seis


censos, em relação ao prospecto da taxa de fecundidade e os números absolutos –
PEA feminina - entre 1950-2000, nota-se que a PEA feminina aumentou na média
em que a taxa de fecundidade diminuiu, observa-se, que a taxa de fecundidade
passou de 6,2 para 2,3 enquanto à PEA, aumentou de 3.778.612 para 32.957.738.
Apesar de o alcance dos métodos contraceptivos ter se expandido com o SUS , o acesso
por parte das mulheres a procedimentos de esterilização e Interrompimento da gestação, como
a laqueadura e o aborto, Dificultado pelo Estado de diversas maneiras torna-se praticamente
inviabilizado, uma vez que, para realizar tais procedimentos existem inúmeras barreiras
legais, e por vezes sociais, que limitam a possibilidade de realização desses procedimentos
por parte das mulheres, como evidencia Rios Neto ao apontar para a busca por parte de
determinados grupos políticos em modificar a lei de defesa à vida para que “a vida” fosse
considerada desde a sua concepção, no intuito de tipificar o aborto como um crime hediondo e
que se agravassem as penalidades sob tal crime, ou ainda, por exemplo, o artigo de lei 124 do
código penal brasileiro que incrimina a mulher quando esta realiza ou permite que realizem
um aborto. Entretanto, reitera Neto, tais penalidades vêm sido modificadas através da luta
feminista, no sentido de, enquanto a legalização do aborto não se torna uma realidade no
Brasil, incrementarem-se situações onde o aborto seja cerceado pela lei, como em casos de
risco à vida da gestante e violência sexual por exemplo, o que, de acordo com Neto, não
impossibilita a realização de abortos clandestinos, causa ainda mais malefícios às gestantes
por conta de procedimentos mal realizados.

Vale ressaltar, porém, que todos esses avanços são inquestionavelmente importantes,
muito embora não concedam por completo liberdade à mulher de fazer aquilo que desejar
com o próprio corpo, no sentido de ser senhora de si. É o caso, por exemplo, da lei 9.263/96
que concede o direito a mulher de esterilizar-se cirurgicamente por meio da laqueadura, mas
que para isso faz exigências de ela tenha no mínimo 2 filhos vivos do mesmo pai ou que tenha
25 ou mais. Em outras palavras, por mais que muito tenha sido conquistado no que tange à
mulher ter o direito de decidir sobre o próprio corpo, esse direito não se mostra como
completo, haja vista as limitações impostas tanto pelo estado como pelo sistema patriarcal
ainda vigente na contemporaneidade.

Conclusão

Pode-se concluir, portanto, que a liberdade conquistada pelos movimentos feministas


surtiu efeito no controle de natalidade no Brasil através da popularização da pilula
anticoncepcional e da distribuição gratuita de métodos preventivos. Essa liberdade, porém,
não é completa: apoiada na lei, a sociedade encontra meios de controlar a sexualidade
feminina e perpetrar suas mentes através de métodos facilitados pela cultura machista
emaranhada na sociedade, plantando a semente do que pode culminar apenas na maternidade
compulsória ou em uma frustração eterna. Sua plenitude, então, jamais podendo ser alcançada
fora da maternidade e da vida familiar tradicional, não leva em conta pessoas que não se
encaixam no padrão, seja por sua orientação sexual ou pelo mero desejo de não seguir um
modelo pré-determinado. Dessa forma, a discussão sobre liberdade e poder se torna essencial
no que tange aos direitos de mulheres sobre os próprios corpos, trazendo à tona a
superficialidade do livre-arbítrio civil. O "sim" só é legítimo quando o "não" é uma opção
plena, e liberdade pela metade — há de se convir — não é realmente liberdade

Referências

CÉSAR, R.C.B; LOURES, A.F.; ANDRADE, B.B.S. A romantização da maternidade e a


culpabilizaçãoda mulher. Revista Mosaico 2019 Jul./Dez.; 10 (2): SUPLEMENTO 68-75.

FERNANDES, Mônica Pereira; PEDROSA, Leila Aparecida Kauchakje; GONÇALVES,


Rejane Maria Dias de Abreu (et.al). Trabalho feminino e diminuição da taxa de
fecundidade no Brasil nos últimos 50 anos. Saúde Coletiva, 2011.

HALASI, F. S.A mulher brasileira contemporânea e a maternidade da culpa. Pontifícia


Universidade Católica De São Paulo, Mestrado em Psicologia Clínica, 2018.

IOP, Elizandra. Condição da mulher como propriedade em sociedades patriarcais. Visão


global, Joaçaba, 2009

NETO, Eduardo Rios; MARTINE, George; ALVES, José Eustáquio Diniz. Fecundidade,
gênero e direitos reprodutivos: transformações sociais e uma agenda de direitos
humanos. Abep, 2015.

PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Revista de sociologia e política,
Curitiba, 2010.

RAGO, L. M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1985.

Você também pode gostar