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Lia Crespo convive com sequelas de poliomielite desde a infância.

Jornalista, sempre estudou em


escolas comuns e participa do movimento em defesa dos direitos das pessoas com deficiência desde
seu início, em 1980.
Com “Uma nova amiga”, a também autora do livro infantil “Júlia e seus amigos” propõe outra pers-
pectiva capaz de desafiar antigos preconceitos sobre o que achamos que sabemos sobre as pessoas
com deficiência.
Com rara sensibilidade, o ilustrador, roteirista e storyboarder Cisko Diz traduz em desenhos esta
história que reitera a crença da autora na importância do apoio da família e na influência positiva da ami-
Lia Crespo
zade no destino de todos os seres humanos, mas, muito especialmente, na vida das pessoas deficientes.
Neste livro, que fala de amizade, lealdade e coragem, Lia Crespo reforça sua convicção no poder e Cisko Diz
transformador da educação e na relevância dos professores para que as pessoas com deficiência desen-
volvam plenamente seus talentos, conquistem a felicidade e um estilo de vida independente.

Escreva para
lia.crespo@gmail.com

e conte o que você achou desta história.

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Lia Crespo
Ilustrações:
Cisko Diz

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© Lia Crespo, 2017
© Cisko Diz, 2017

CAPA E PROJETO GRÁFICO


Cisko Diz

IMPRESSÃO E ACABAMENTO:
Imprensa Oficial do Estado S/A - Imesp

Este livro segue as novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Mag188 Crespo, Lia.
Uma Nova Amiga / Lia Crespo ; ilustrador: Cisko Diz. —
1. São Paulo Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com
Deficiência
48p. : il. ; 24x21,5.

ISBN 978 - 85 - 64047 - 12 - 9

1. Literatura infantojuvenil brasileira.


I. Título. Uma Nova Amiga
II. Lia Crespo III. Uma Nova Amiga

CDD 8869.8

Bibliotecária Responsável: Amanda Araujo de Souza Carvalho CRB 7/6351

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional


(lei nº 10.994, de 14/12/2004).
Direitos reservados e protegidos pela lei nº 9.610/1998.
Proibida a reprodução total ou parcial
sem a prévia autorização dos editores.
Impresso no Brasil 2017

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Para minha professora Ilza Longhi,
que nunca deixou nenhum aluno para trás.

Em memória do amigo João Ribas,


guerreiro da inclusão.

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Dava para perceber que fazia sol lá fora por-
que a cortina da janela deixava passar um estreito
facho de luz. Na penumbra do quarto, podia-se
ver a cama arrumada, coberta com uma colcha de
cores vibrantes com desenhos do Super-homem.
Na parede, pôsteres de naves espaciais e mons-
tros alienígenas cheios de olhos e braços. Na es-
tante, havia DVDs, gibis, livros de vários tama-
nhos, miniaturas de carros de corrida e uma bola
de basquete. Tudo convivendo numa harmoniosa
bagunça.
Pati, o patinete vermelho-esfolado, olhou em di-
reção à janela e disse meio desconsolado:
— Puxa! Deve estar um lindo dia lá fora...
Cacá, o carrinho de rolimã, concordou:
— Um belo dia para um passeio no parque.
— Ah, tem razão! -- exclamou Esquei, o detonado
skate de fibra de vidro coberto por adesivos coloridos.
Bici, a bicicleta azul, lastimou-se:
— É uma pena a gente ter de ficar aqui dentro,
com um dia ensolarado desses...
— Bici, em vez de reclamar, você deveria tentar
se lembrar do que aconteceu com João. -- ralhou o
carrinho de rolimã.
Bici estreitou os olhos e falou bem irritada.
— Cacá, o que você está querendo dizer com
isso, hein?

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— Não estou querendo dizer nada... pido pelo velho Cicinho:


Bici estava furiosa. — Pessoal, não há nada que possamos fazer. Pre-
— Está querendo dizer que a culpa foi minha? cisamos ter paciência. Só nos resta esperar.
— Se a carapuça serviu... Depois disso, todos ficaram em silêncio, pen-
Sem muita convicção, a bicicleta ensaiou uma sativos, preocupados. Enquanto a noite chegava e
defesa: o quarto ficava cheio de sombras assustadoras, os
— Eu não tive nada a ver... brinquedos perceberam que mais um dia havia se
Mas, o irônico Esquei não deixaria barato: passado sem notícias do João. O que teria aconte-
— Não mesmo? Afinal, você é que estava com cido? Onde estaria? Por que não voltava? Quanto
ele, então, devia... mais o tempo passava, mais a angústia aumentava.
Nesse momento, Cicinho, o velho triciclo, que Aquele menino era a razão de ser da vida deles.
há muito tempo tinha sido amarelo, interrompeu a Sem João, não havia brincadeiras, não havia diver-
briga iminente. são, não havia coisa alguma. Sem João, não passa-
— Parem com isso! — gritou — Em vez de bri- vam de objetos sem vida, sem alma. Com a ausên-
gar, vocês deveriam é se preocupar com o João que cia de notícias, a imaginação corria solta. Cada um
não aparece. tinha uma idéia mais mirabolante para explicar o
— E tem alguém aqui que não esteja pensando sumiço do menino.
no João!? --perguntou Esquei. — Foi viajar!
— Acho que o João não volta mais! — exclamou — Quem sabe se mudou?
num tom desesperado o patinete pessimista — Es- — Vai ver fugiu com o circo!
tamos perdidos! — Caiu num buraco e acabou indo parar no Japão!
— A gente precisava pensar num plano. – propôs — Será que foi sequestrado por homenzinhos
Cacá. verdes do planeta Marte, como naquele gibi?
— Um plano!? Sei! — ironizou Esquei — Então o Enquanto a pergunta essencial “O que aconte-
sabichão do Cacá quer bolar um plano! ceu com João?” continuava sem resposta, os brin-
— Não adianta plano nenhum. — choramingou quedos foram um a um caindo no sono. De repente,
o patinete — João desapareceu para sempre! um berro cortou o silêncio da noite:
— Em vez de desanimar ou fazer ironias, se vo-
cês botassem a cachola pra funcionar... -- começou
a dizer o carrinho de rolimã, quando foi interrom-

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— NÃAAAAOOOO! descontrolado, Bici mais uma vez, foi invadida pela


No quarto escuro, um arrepio gelado percorreu angústia de não lembrar e, ao mesmo tempo, sa-
cada pedaço dos brinquedos. Acordaram sobressal- ber que aquele pesadelo amedrontador deveria ser
tados e ainda tremendo em virtude de seu próprio a chave para desvendar o mistério sobre o que ha-
pesadelo pavoroso. Foi como se Bici tivesse gritado via acontecido com João. Do fundo de seu coração,
por todos eles. uma voz lhe dizia que houvera uma tragédia! E, o
— O que aconteceu!? que é pior: sentia que a culpa tinha sido dela. Oh,
— O que é isso!? desgraça das desgraças! E se fosse verdade, se a cul-
— Ladrões? pa fosse dela, que futuro Bici poderia ter? Nenhum!
— Fantasmas!? Seu destino só poderia ser o ferro-velho, o Inferno
— Extraterrestres!? das Bicicletas. De algum modo, Bici sentia que tinha
— Boitatá!? falhado com João. Por causa de seu fracasso, talvez
— Saci-Pererê!? estivesse ferido ou pior. “Ai, minha Nossa Senhora
— Mula-sem-cabeça!? Padroeira das Bicicletas! Talvez João esteja morto!”
— Bicho-papão!? Não! Ela nem conseguia pensar nisso! Mas o
— Vamos todos morrer! medo crescia como uma gosma pegajosa e corrosiva
— Calma, pessoal! — falou Cacá — É só Bici ten- que estava acabando com ela do mesmo modo que
do outro daqueles seus pesadelos. a ferrugem destruía tudo que era feito de lata e fer-
— Acorda, Bici! -- chamou Esquei. ro. Só que mais rápido! Seria esta sua sina? Apodre-
— Desse jeito, você mata a gente do coração! cer no ferro-velho e ser corroída pela ferrugem da
-- Pati resmungou. culpa? Pobre Bici... Como das outras vezes, depois
— Toda noite é essa gritaria. do pesadelo, ela se espremeu o mais que pôde con-
— reclamou Esquei. tra a parede na qual estava encostada. Nessas horas,
— Temos de tomar uma providência. quase queria ser mesmo desmontada e jogada em
Cacá cochichou para Cicinho: algum ferro-velho. Qualquer coisa era melhor do
— Você sabe se existem psicólogos para bicicletas? que ter esses sonhos horríveis! Qualquer coisa era
— Sei lá! melhor do que não ter notícias do João!
— Mas, pelo visto, nós vamos precisar de um.
— E rapidinho...
Acordada pelo próprio berro, num treme-treme

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Em momentos assim, Bici gostava de aquietar la embalagem. Finalmente, a liberdade e a luz que
seu coração lembrando os momentos felizes. Den- realçava sua cor e sua beleza! Ela teve a certeza de
tre as boas lembranças que começavam a dançar na que logo, logo seria adotada por uma criança muito
sua cabeça, destacava-se aquela indescritível sensa- legal! Afinal, cada criança deveria ter sua própria
ção de sair da caixa para ser colocada na vitrine da bicicleta! Ou, pensando bem, pelo ponto de vista de
loja. Ah, como era bom, finalmente, ver-se livre da-
quele papelão duro. Livrar-se da escuridão daque-

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Bici, toda bicicleta deveria ter sua criança!
Mas o tempo foi passando e nada de alguém levar
Bici para casa. Ela era a mais linda e reluzente bici-
cleta que já tinha entrado naquela loja! Essa certeza
tornava ainda mais difícil compreender por que fa-
zia tanto tempo que estava naquela vitrine! É ver-
dade que muitos entravam na loja, apontavam para
ela, falavam com o vendedor. Alguns chegavam a
acariciar seu selim! Mas, saíam de mãos vazias. Ah,
Bici não entendia isso, não! A idéia de que algumas
crianças não pudessem ter uma bicicleta era muito
confusa para ela. Com a demora, Bici foi ficando
cada vez mais impaciente. “Seu” garoto ou “sua” ga-
rota estava demorando muito para aparecer!

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Só uma coisa tornava essa espera suportável. A uma bicicleta? Como esquecer o prazer do esforço
cara das crianças que achatavam o nariz do lado de para pedalar cada vez mais rápido e a sensação de
fora da vitrine. Diante de Bici, todos ficavam hipno- estar voando? Impossível! Ah, Bici não podia deixar
tizados por sua beleza. Olhos arregalados e a boca de pensar como o mundo seria muito melhor se to-
aberta. Com dificuldade, as crianças meio que eram das as crianças tivessem a chance de experimentar
arrastadas pelos pais, ainda com os olhos grudados essa sensação inesquecível de equilibrar-se numa
na vitrine. Como era gostoso saber que era dese- magrela!
jada daquele jeito! Cada vez que um menino des- Um belo dia, quando Bici estava achando que
ses aparecia, Bici já podia se imaginar sendo levada seu fim era o desmonte certo, viu através da vitri-
para a casa. Podia prever dias gloriosos, dedicados ne um garoto de cabelo vermelho espetado, com o
a desvendar mistérios e a desenterrar tesouros per- rosto cheio de sardas. Aparentava ter uns 10 ou 11
didos! Quando um menino saía frustrado da loja, anos de idade e puxava pelo braço um homem alto e
Bici ficava arrasada. Tinha medo de que ninguém magro. O menino apontava para ela freneticamente
a levasse. Se isso acontecesse, temia ser desmonta- e dava pequenos pulinhos. Ah, ela sabia como era
da e devolvida para a fábrica. Pior do que isso, só essa paixão... No mesmo minuto em que bateu os
ser vendida para o ferro-velho. Ah, esse sim era o olhos nela, protegida por aquela vitrine, foi amor à
verdadeiro Inferno das Bicicletas! Nessas horas de primeira vista! Foi como se João estivesse enxergan-
angústia, implorava: “Ai, minha Santa Protetora das do através de um tubo. Tudo o mais que estava em
Bicicletas, me livre desse castigo!” volta ficou fora de foco e como que se movimentan-
Para Bici, o Céu das Bicicletas, naturalmente, do em câmera lenta. A única coisa nítida e brilhante
só podia ser um lugar onde sempre houvesse uma era aquela bicicleta azul.
criança que acabou de voltar da escola ou terminou O menino falava alguma coisa que Bici não con-
a lição de casa, prontinha para um passeio. Dizem seguia ouvir porque estava separada deles pelo vi-
que, depois que você aprende, nunca mais esquece dro grosso da vitrine. Ah, mas bem podia imaginar
de como andar de bicicleta. E, para Bici, essa era o que era! O homem também sorria ao olhar para
a coisa mais evidente do mundo! É claro que nin- ela. Bici sentiu o coração aos pulos. Nesse momento,
guém jamais poderia esquecer como andar de bici- soube que o seu desejo estava prestes a se realizar.
cleta! Como não se lembrar do frio na barriga que a
gente sente ao enfrentar e vencer, pela primeira vez,
o desafio de conseguir manter o equilíbrio e pedalar

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Nenhuma emoção poderia ser melhor do que a fes-


ta que havia no seu coração naquele minuto. Nem
a mais excitante das aventuras poderia se igualar
àquele momento único em que fora escolhida por
João. Bici sentia como se estivesse flutuando nas
nuvens. Finalmente, seu grande dia havia chegado!
Bici tinha certeza de que o menino também es-
tava realizando um sonho há muito tempo espera-
do. Sabia que João a queria como nunca quis nada
em sua vida. Bici era exatamente como imaginou
O grande dia era aquele! Pouco depois, o homem que seria sua primeira bicicleta. A perfeição sobre
e o menino entraram na loja. Assim que o vende- duas rodas. Sem tirar, nem pôr. João não pensou
dor chegou perto, pai e filho apontaram para ela e um segundo sequer! Sentou-se em seu selim ma-
disseram ao mesmo tempo: “É aquela!” O vendedor cio, forrado com couro preto, e saiu pedalando pela
prontificou-se imediatamente: loja, desviando-se habilmente de pessoas e pratelei-
— Vou pegar no estoque uma igualzinha. ras, enquanto o vendedor punha as mãos na cabeça
Mas, o homem e o menino apontaram para Bici em desespero. Ao iniciar essa corrida frenética, Bici
e reafirmaram ao mesmo tempo: mal teve tempo de ouvir o homem perguntar:
— Não! É aquela que queremos! — Aonde eu pago?
— Mas aquela é uma amostra. Não é para ser Depois disso, foi uma sucessão de aventuras!
vendida. João era o garoto mais bacana que uma bicicleta
— Queremos aquela! podia ganhar. Inseparáveis, iam juntos para a esco-
O vendedor tentou argumentar: la e, depois do dever de casa, encontravam a tur-
— Mas está toda empoeirada... ma da vizinhança para explorar o bairro. Um dia
— Queremos aquela! -- teimou o menino. nunca era igual ao outro. Sempre havia novos lu-
— Não queremos outra -- insistiu o pai. gares a descobrir e mistérios a desvendar. As tardes
Ao perceber que nada os faria mudar de idéia, o eram todas deliciosas, mesmo quando chovia. Na
vendedor resignado retirou Bici da vitrine e a colo-
cou diante do garoto. Foi mágico! Nenhuma outra
sensação na vida de Bici poderia se igualar àquela.

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verdade, era melhor ainda quando chovia! Ah, as havia angústia e medo. Pati, o patinete choramingou:
poças d’água... Quando você é um menino ou uma — Eles mudaram de casa e nos largaram aqui!
bicicleta, existe alguma coisa mais legal do que uma — Deixa de ser bobo! -- ralhou Cicinho, o velho
poça d’água? E os fins de semana, então? Aos sá- triciclo. — Não vê que não levaram nada? Nem os
bados, João dedicava-se a cuidadosamente limpar, móveis, nem as roupas?
polir e engraxar a bicicleta. Aos domingos, de ma- — Mas levaram a televisão! -- observou, em tom
nhãzinha, o pai amarrava Bici bem firme sobre o desesperado, o carrinho de rolimã Cacá.
teto do carro e iam para o parque. Nessa hora, havia — Isso é verdade. Levaram a televisão! -- confir-
poucas pessoas e os pássaros faziam uma barulhei- mou a chorosa bicicleta.
ra danada. Não existia nada mais gostoso do que — Olha, em vez de chorar, você devia puxar pela
sentir aquele cheiro acre de grama e terra molhada! memória para tentar se lembrar do que aconteceu.
Para João e Bici, as gotas de orvalho brilhando ao -- sugeriu Cicinho.
sol bem que podiam ser as pedras preciosas de um Cacá concordou:
tesouro pirata perdido. Enquanto os pais de João se -- Se você se lembrar, talvez a gente entenda o
entretinham sob a sombra de uma árvore, João e que aconteceu.
Bici se embrenhavam por aventuras. Num dia, era — E, pode ser que a gente saiba o que nos espera.
uma expedição às pirâmides do Egito. No outro, -- disse Esquei.
uma viagem ao centro da Terra. Depois, uma mis- — Isso mesmo! -- assentiu Pati.
são a Marte. Em seguida... Bem, quem poderia sa- — Faça um esforço, por favor. -- pediu o skate.
ber? Ah... o universo era cheio de lugares exóticos... — Vocês sabem que eu não me lembro!
Embalada por essas lembranças, Bici quase pegou — Mas precisa tentar! -- insistiu Pati.
no sono. Mas, o dia amanhecia e, assim que aquela — Não posso! Não consigo me lembrar!
pequena fresta de sol invadiu o quarto, a turma se Cacá teve uma ideia:
agitou de novo. Certamente, logo mais, alguém vi- — E se a gente fosse ajudando você?
ria com notícias do João. Alguém teria de vir! Fazia — De que jeito? -- quis saber a bicicleta.
quanto tempo que estavam ali, naquele quarto, sozi- — Vamos começar do começo. -- propôs o carri-
nhos? Uns três dias? Quatro? Semanas? Meses? Para nho de rolimã.
eles, os dias e as noites só tinham significado por cau-
sa de João. Sem João, todos os dias, semanas e me-
ses se misturavam e perdiam o sentido. Sem João, só

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— Como assim, do começo, se não me lembro de — Isso mesmo: qual o cheiro daquela manhã? —
nada? – exasperou-se a confusa bicicleta. reforçou o carrinho de rolimã.
— Por exemplo, neste momento — sugeriu Cacá Depois de refletir por alguns minutos, Bici anun-
— qual é a primeira coisa que vem na sua cabeça? ciou como se falasse consigo mesma. Como se, fi-
— Essa é boa! Então, o “Doutor Cacá” vai dar nalmente, se lembrasse de algo que já soubesse o
uma de psicólogo! --provocou Esquei, caindo na tempo todo:
gargalhada. — Gasolina e borracha queimada.
Mas, o velho e experiente triciclo acabou com o — Gasolina e borracha queimada? — perguntou Cacá.
risinho da turma: — Isso mesmo. Tudo ficou cheirando a gasolina
— Pois eu acho que a idéia do Cacá faz sentido! e borracha queimada. — confirmou a bicicleta.
— Como? Se não me lembro de nada! — E esse cheiro faz você se lembrar do quê? —
— Sei lá. Tente lembrar o cheiro, por exemplo... perguntou Cacá.
— propôs Cacá. --Tente se lembrar do cheiro da-
quela última vez em que saiu com o João.
— Do cheiro? -- Bici perguntou sem entender.

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— Esse cheiro me faz lembrar... Começou a dizer, mas, parou em seguida, per-
— O quê? O quê? — perguntou ansioso Pati, o dendo-se em seus próprios pensamentos. Podia
patinete. sentir aquele cheiro de gasolina e borracha quei-
— Diga logo! — implorou Esquei. mada que revirava o estômago. Em sua cabeça,
— Calma, gente. — pediu Cicinho. Bici reviveu a cena pavorosa. A mesma aflição. Era
— Do que você está se lembrando? — quis saber
Cacá.
— Eu me lembro de que...

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como se tudo estivesse acontecendo de novo. Ou- — Professor Theo disse que essa expedição ao
viu novamente aqueles sons terríveis. Um carro em Parque Ecológico vai ser mais bacana do que a ida
disparada. A freada cantando os pneus. Ela via a si ao Horto Florestal! — garantiu Diego.
mesma caída no chão, inerte como um monte de — Nossa! Então, vai ser demais! — exclamou
lata retorcida. Sozinha e apavorada. E o João? O que João.
tinha acontecido com o João? Bici sabia que a molecada esperava ansiosamente
Aos poucos, foi se lembrando daquela segunda- por esse passeio programado, há semanas, pelo pro-
feira, em que tudo mudou. Como todas as manhãs, fessor de Educação Física. Falavam como se estives-
João e Bici se preparavam para ir à escola juntos. Ele sem se preparando para um safári na África! Quais
tomava seu café com leite, quando ouviu os ami- animais eles veriam? Que perigos enfrentariam?
gos Alexandre, Fernando, Beto e Diego gritando Depois de vinte minutos de pedaladas, aos poucos,
seu nome lá da calçada. João saiu porta afora em a conversa animada e as risadas tinham sido subs-
disparada, engolindo o último pedaço de pão com tituídas pela respiração mais forte. Quando o gru-
manteiga: po de amigos chegou quase em frente à escola, de
— Tchau, mãe! Tchau, pai! repente, como que vindo do nada, aquele carro foi
— Termine seu café, querido! — a mãe disse, crescendo e crescendo na frente deles. Ouviu-se o
como fazia todos os dias. guincho estridente dos freios do automóvel. Numa
— Cuidado com... — começou a dizer o pai, sem fração de segundo, tudo girou vertiginosamente!
terminar a frase porque o menino já estava longe, Em seguida, tudo ficou parado e estranhamente
como sempre acontecia. Ao mesmo tempo em que silencioso como dizem que acontece no centro de
passava pelo portão, já pedalando Bici, João desafiou um furacão. Num átimo, a quietude e a escuridão se
alegremente os amigos como era de seu costume: transformaram num caos de gritos, choro, buzinas,
— Força nessas magrelas, pessoal! sirenes...
Os amigos o alcançaram imediatamente. Ale- No centro dessa barbúrdia, estirado na ciclovia,
xandre perguntou: estava João desacordado. Seus cabelos vermelhos fa-
— E, aí? Como vai a pesquisa sobre o Parque ziam um contraste terrível com o branco assustador
Ecológico? de seu rosto. Em volta dele, todos os colegas e profes-
— A minha já está pronta! — garantiu Fernando.
— Mal posso esperar até a semana que vem! —
confessou Beto.

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sores falavam ao mesmo tempo. No meio da confu- O coração de Bici foi com ele.
são frenética e das vozes que não conhecia e que di- Tendo por companhia apenas o medo, Bici não
ziam palavras que não entendia, Bici podia distinguir sabia dizer quanto tempo ficou naquele chão duro
a voz pausada e reconfortante do professor Theo: e frio. Uma hora? Duas? Quatro? Um dia inteiro?
— João, você sofreu um acidente. Não se mexa, Para ela, pareceu uma eternidade. Tentou acreditar
não tenha medo. O socorro já vem. Tudo vai dar no professor Theo de que tudo ia acabar bem. Mas,
certo. Não vou te deixar sozinho. Vou ficar com era difícil ter esperanças, ali sozinha no asfalto...
você o tempo todo. Os brinquedos absortos, cada um perdido em
Bici o ouviu dizer essas mesmas palavras várias seus próprios pensamentos, ficaram um pouco sur-
vezes, enquanto passava levemente os dedos entre presos quando, afinal, Bici disse bem baixinho, de
os cabelos espetados de João. Ficou com a impres- modo desconsolado:
são de que, mais do que acalmar João, o professor — Um carro atropelou a gente.
Theo tentava convencer a si mesmo de tudo ficaria Demorou uns minutos, até que alguém dissesse
bem. Não demorou e Bici ouviu o som angustiado alguma coisa. Precisaram de um tempo para assi-
da ambulância. Observou quando os médicos pren- milar essa informação.
deram João com cintos de segurança a uma maca e — E o João? — quis saber o triciclo.
o levaram embora rapidamente. — Foi levado numa ambulância.
— Ele se machucou muito? — perguntou o pa-
tinete.
— Não sei.
— O que ele disse para você? — quis saber o skate.
— Nada. Estava desmaiado.
O silêncio tomou conta do quarto. Sabiam de

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histórias parecidas sobre meninos que jamais vol- la. O quarto foi imediatamente inundado pelo sol e
tavam para casa e brinquedos que eram repartidos por uma lufada de ar fresco. Depois de tanto tempo
e nunca mais se encontravam. Seria esse o destino na penumbra, aquela luz ofuscava os olhos. Logo,
deles? Nunca mais teriam notícias do João e se- apareceu o pai carregando João no colo. Colocou o
riam separados para sempre? Enquanto tentavam menino na cama. A mãe ajeitou os travesseiros para
compreender o significado do que Bici acabara de que João ficasse quase sentado. Em seguida, o pai
lhes dizer, a mãe de João apareceu. Ela entrou mui-
to decidida no quarto e foi direto tirando a colcha
da cama, abrindo a cortina e escancarando a jane-

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trouxe a televisão, colocando-a no seu antigo lugar Mas, o pior é que esse João que estava ali naquela
na estante. Ligou na tomada e ajustou a antena. cama não tinha o mesmo brilho no olhar. Definiti-
— O que você quer assistir? — perguntou o pai, vamente, não parecia o João que conheciam. Quan-
tentando parecer animado. do a noite veio e a TV foi desligada, os brinquedos
— Sei lá. Qualquer coisa. — disse João em voz se entreolharam para ver quem falaria primeiro. Le-
baixa. vou algum tempo até que alguém tivesse a coragem
— Querido, vou trazer um sanduíche e um copo necessária. Cicinho, o velho triciclo, arriscou-se a
de suco. Laranja ou uva? — quis saber a mãe. dizer:
— Sei lá. Qualquer coisa... — respondeu João de- — Bom, pelo menos ele voltou.
sanimado. — Mas por que está desse jeito? — desesperou-se
Quando os pais saíram do quarto, João obser- o patinete.
vou Bici, Esquei, Pati, Cacá e seu eterno favorito, o — Talvez tenha quebrado a perna e não possa
velho triciclo Cicinho. Lembrou-se dos momentos andar. — arriscou o carrinho de rolimã.
memoráveis vividos com sua turma. Como aquele — Amanhã ele vai estar melhor. — afirmou con-
domingo de primavera, quando o professor Theo li- fiante o skate.
derou seus alunos e suas bicicletas numa expedição Até então, os brinquedos não tinham notado,
ao Horto Florestal. Lembrou-se da ansiedade da ga- mas Bici parecia estar chorando.
rotada toda reunida em frente da escola. João qua- — O que foi, Bici? — perguntou Pati.
se sorriu ao lembrar-se de como o professor Theo — Não chora, não. — pediu Cacá. — Ele vai ficar
penou para pôr um pouco de ordem naquela alga- bem.
zarra formada por meninos e bicicletas. Mas aquele Entre soluços, a bicicleta disse baixinho:
meio sorriso se apagou com a dúvida: haveria para — A culpa foi minha.
ele outras expedições como aquela? — Não foi, não, Bici. — assegurou o velho triciclo.
Para os brinquedos, era magnífico João estar de — Como você pode saber? — ela perguntou.
volta! Mas não gostaram nadinha do jeito dele. Li- — Eu sei! Tenho mais experiência do que vocês.
mitou-se a comer sem nenhum prazer o seu sanduí- — afirmou com convicção. — Coisas ruins aconte-
che. Passou o resto do dia largado sobre a cama, sem cem e, às vezes, não é culpa de ninguém.
se mexer. A não ser pela mão que acionava inces-
santemente o controle remoto zapeando a TV. Não
assistiu a coisa alguma por mais de dois segundos.

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— Você acha mesmo isso? — Bici perguntou. mana que vem. — informou Juliana. — Você bem
— Acho mesmo. De verdade — garantiu Cici- que podia vir com a gente.
nho. — Não foi sua culpa. Nem do João. — Os novos computadores já chegaram na esco-
— Obrigada, Cicinho. Isso significa muito para la. — contou Adriana. — Você precisa experimen-
mim. Mas, mas... — e caiu novamente num choro tar!
soluçante. A todas essas notícias e convites, João apenas
Os dias que se seguiram não foram muito dife- sorria um pouquinho e dizia desanimado:
rentes. João comia o que lhe traziam. Ficava mu- — Não sei, quem sabe, pode ser...
dando a TV de canal até se cansar e dormir. Os pais Numa tarde, Denise e Claudia foram visitá-lo.
e os amigos tentavam animá-lo de todos os jeitos. Denise era sua melhor amiga, pois se conheciam
Em vão. Trouxeram muitos livros e vários tipos de desde o Jardim da Infância. E Cláudia... Bem, na
jogos de tabuleiro. João agradecia os presentes com opinião de João, Claudia era a garota mais bonita
um sorriso amarelo. Por insistência dos amigos, até do mundo. Ficou surpreso com a visita dela por-
aprendeu a jogar alguns deles. Mas não demonstra- que estudavam em salas diferentes e quase não se
va nenhum entusiasmo, mesmo quando ganhava. falavam. Ele se sentia esquisito perto dela. Era en-
Os livros foram sendo empilhados na mesinha de graçado. João, o cara mais falante da escola, nunca
cabeceira e dava para perceber que João não tinha sabia direito o que dizer, quando Cláudia estava por
sequer aberto nenhum deles. Os amigos também perto. Mas não ficou surpreso só com a visita de
traziam notícias que, antes, ele acharia sensacio- Cláudia. A notícia que ela trouxe também era bem
nais, mas que, agora, não lhe causavam nenhum inesperada.
interesse: — Decidimos adiar a expedição ao Parque Eco-
—- O campeonato de basquete da escola está lógico até você poder ir com a gente.
quase acabando. Você quer vir comigo assistir à — Como assim? Pensei que vocês já tivessem
partida final? — convidou Renato. ido!
— A dona Clara, você sabe, a bibliotecária, está — Não. Nós votamos e decidimos esperar por
nos ensinando a jogar xadrez. — anunciou Beto. — você.
É muito legal. — Foi mal. -- desculpou-se João.
— Você não quer aprender também? — pergun-
tou Rafael.
— A professora Ilza vai nos levar ao museu, se-

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— Por quê? — Eu gostaria de poder correr lá pra fora e pas-
— Porque, desse jeito, vocês nunca irão nesse sear com a minha bici, meu carrinho de rolimã,
parque. meu skate, meu patinete...
Assim como todos os amigos que iam visitá-lo, Era difícil ouvir João dizer isso porque os pais
Cláudia e Denise também foram embora com a e os amigos sabiam que, durante o acidente, João
sensação de que aquele não era o João cheio de en- quebrara a coluna e sofrera uma lesão na medula
tusiasmo que conheciam. Ninguém sabia o que di-
zer para animá-lo. Quando lhe perguntavam o que
gostaria de fazer, invariavelmente, João respondia:

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espinhal. Nunca mais voltaria a andar nem a pé, para outra, não conseguia mais andar? Isso só podia
nem de bicicleta. No entanto, sabiam também que, ser um engano. Logo, logo, esse engano seria resol-
na sala ao lado, havia uma cadeira de rodas novi- vido e tudo voltaria ao normal”, imaginava ele.
nha em folha, com a qual João poderia fazer muitas Mas o tempo foi passando e continuava sem po-
coisas. O problema é que o menino não queria nem der mexer as pernas. Olhava pelo quarto e via todas
olhar para ela. Havia se recusado a experimentá-la aquelas coisas que amava. A bicicleta, o skate, o pa-
e até proibiu os pais de trazê-la para o quarto. Por tinete, o carrinho de rolimã e até o velho triciclo, do
diversas vezes, o médico, o fisioterapeuta e os pais qual nunca teve coragem de se separar. Olhava com
de João tentaram conversar a respeito da sua nova carinho a bola de basquete novinha, presente dos
condição, mas ele se recusava a acreditar no que
lhe acontecera e se negava a falar ou ouvir qualquer
coisa a respeito. “Como é possível que, de uma hora

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pais por seu aniversário. Seu sonho era ganhar uma que não se interessara por nenhuma das mudanças
medalha de ouro numa Olimpíada! Ele podia se feitas na escola, só para chatear o professor Theo,
ver no lugar mais alto do pódio, com a bandeira do respondeu em tom sarcástico:
Brasil, ouvindo o Hino Nacional. Mas, e agora? Isso — Sabe do que eu gostaria, professor? Gostaria
não seria mais possível? Tudo estava perdido? Nada de fazer uma expedição pelo Parque Ecológico.
daquilo fazia sentido para ele. De vez em quando, Ao contrário do que João esperava, o professor
perguntava em voz alta para si mesmo: não se abalou.
— Por que eu? O que vai acontecer agora? — E o que mais?
Para João, aquela cadeira de rodas lá na sala re- — Gostaria de apostar uma corrida.
presentava o fim de seus sonhos. Se ele a aceitasse, — Mais alguma coisa?
seria o mesmo que admitir que nunca mais have- — Claro! Quero também jogar uma partida de
ria aventuras pelo bairro e passeios pelo parque. basquete!
Nunca mais haveria caravanas pelo Horto Florestal, Para surpresa de João, nada disso chateou o pro-
nem pelo Parque Ecológico. Nunca mais haveria fessor. Pelo contrário, parecia ainda mais entusias-
diversão, jogos com os amigos e medalhas de ouro. mado.
Nunca mais... Não queria desistir de todas aquelas — Pois, então, vamos fazer tudo isso agora mes-
coisas bacanas que imaginou para seu futuro. Era mo! — desafiou Theo.
muito difícil aceitar aquela cadeira de rodas e dizer — Como assim?! — perguntou João.
adeus àquele João que sonhou que seria um dia. — Você pode fazer tudo isso. Basta você querer!
Numa manhã, o professor Theo apareceu para — Ora, professor, resolveu gozar com a minha cara?
visitá-lo. Estava muito animado e cheio de novida- — Nada disso!
des. A escola estava sendo reformada para recebê — Mas, você sabe que não posso mais fazer essas
-lo. Agora havia sanitários acessíveis para cadeiras coisas.
de rodas e rampas por toda parte. Ele também esta- — Pois, garanto que você pode!
va pesquisando sobre como João poderia participar — Acho que você pirou de vez.
das aulas de Educação Física. Estava investigando — Trouxe comigo um amigo que vai fazer você
também todos os passeios interessantes que tinham mudar de idéia.
acessibilidade para cadeira de rodas. Mas, a surpresa
Theo deixou para o fim. Ele perguntou de repente:
“O que você gostaria de fazer agora mesmo?” João,

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— Um mágico? — E depois?
— Não. Posso mandá-lo entrar? — Depois, percebi que era justamente com a ca-
— Se você insiste... deira de rodas que poderia voltar a fazer todas essas
Theo saiu do quarto por alguns instantes e voltou coisas.
acompanhado de um garoto. Ele estava usando ca- — Todas?
deira de rodas. — Bem, todas, talvez não, mas, quase todas, cer-
— João, este é o Ricardo. Ele tem 14 anos e mora tamente!
aqui perto. Vou deixar vocês dois conversando. Até — Por exemplo?
mais tarde, meninos! — Jogar basquete.
Essa, sim, foi uma surpresa e tanto! João nunca — Jogar basquete?!
tinha visto esse garoto usando cadeira de rodas e — Isso mesmo. Faço parte de um time de bas-
ficou meio desconfiado. quete em cadeira de rodas.
— Você precisa mesmo usar esse negócio ou está — Você está brincando!
curtindo com a minha cara? — É sério! E também pratico tênis de mesa, arco
— Eu preciso mesmo. E prefiro chamar “este ne- -e-flecha e faço natação.
gócio” de cadeira de rodas. — respondeu Ricardo, — Puxa vida!
com uma risada. — E, algum dia, ainda vou pular de paraquedas!
— O que aconteceu com você? — quis saber João. — Pular de paraquedas!?
— Mergulhei num lago muito raso e quebrei a — Isso mesmo. É possível. Já soube de pessoas
espinha. com deficiência que fizeram isso.
— Faz quanto tempo? — E o que mais?
— Cinco anos. — Tem gente que veleja, faz mergulho, arboris-
— Como é usar essa cadeira de rodas? mo e um monte de outras coisas.
— No início, foi difícil. — Está me gozando! — João duvidou.
— E agora? — De jeito nenhum! — garantiu Ricardo.
— Agora, é como se ela fizesse parte de mim. Depois de uns minutos, João acrescentou:
— Como assim? — Eu jogava basquete muito bem. Professor
— No começo, achava que, se aceitasse usar a
cadeira de rodas, estaria dizendo adeus a todas as
coisas que mais gostava.

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Theo sempre dizia que eu ainda ia ganhar uma me- — Não. No nosso grupo de escoteiros, a Júlia e
dalha de ouro nas Olimpíadas... eu usamos cadeira de rodas. O Dudu e o Rodrigo
— E você ainda pode conseguir isso! são cegos. O Lohan é surdo. Os demais não têm de-
— Como assim? ficiência.
— Nunca ouviu falar dos Jogos Paralímpicos? — E vocês sempre fazem coisas juntos?
— Jogos para o quê? — A gente se diverte muito! Quando é preciso, um
— Paralímpicos. ajuda o outro. Afinal, somos todos amigos, não é?
— O que é isso? — Deve ser bacana...
— É a Olimpíada para pessoas com deficiência. — E é mesmo. Este ano, o professor Theo vai le-
E o basquete em cadeira de rodas é uma das mo- var os alunos dele ao acampamento. Estamos con-
dalidades mais antigas. — garantiu Ricardo, com tando com você!
entusiasmo. — Ah, não sei, eu...
— Puxa vida! — Vi que tem uma cadeira de rodas bem bacana
— João, na semana que vem, meus amigos esco- lá na sala. Por que você não pensa nisso?
teiros e eu vamos fazer um acampamento. Gostaria — Vou pensar.
muito que você viesse com a gente. — Agora, preciso ir, senão, chego atrasado à es-
— Acampamento? cola. Tchau.
— Isso mesmo. — Tchau — despediu-se João pensativo.
— Passar frio no meio do mato, comer comida Será mesmo que era possível fazer todas aquelas
horrorosa, dormir em barracas desconfortáveis e coisas usando cadeira de rodas? Será que o Ricardo
ser picado pelos insetos? — perguntou João, fingin- estava dizendo a verdade ou inventando para que
do uma careta. ele se sentisse melhor? O engraçado é que o profes-
— Isso mesmo! — respondeu Ricardo, com uma sor havia dito que Ricardo morava na vizinhança,
gargalhada. mas João nunca o tinha visto antes. Será que Ricar-
— Eu sempre quis participar de um acampamen- do sempre esteve por perto, mas João nunca tinha
to! — disse João que, sem nem mesmo perceber, es- reparado nele? É claro que sabia que existiam pes-
tava rindo também. soas com deficiência, mas nunca antes tinha parado
— Tenho certeza de que você vai adorar!
— Todos os seus amigos usam cadeiras de rodas?
— quis saber João.

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para pensar em como era a vida delas. Nas poucas cadeira, mas não era uma cadeira comum. Passa-
vezes em que pensou no assunto, porque viu algu- ram um tempo analisando cada detalhe da cadeira
ma pessoa com deficiência na televisão, João con- de rodas, enquanto decidiam se falariam com ela
cluiu que usar cadeira de rodas deveria ser uma ou não. Observaram que os pneus e o encosto eram
coisa muito complicada. Nessas ocasiões, sempre muito pretos. Sobre o assento, uma almofada fofi-
imaginava que essas pessoas deveriam ser muito nha. As partes metálicas eram pintadas de um verde
infelizes porque não podiam fazer nada. Mas, esse escuro iridescente. Quando a luz incidia sobre ela,
Ricardo dava outra impressão, era muito diferente. algumas partes brilhavam como as asas de um be-
Ele não era infeliz, muito pelo contrário! Parecia ser souro. Afinal, o velho Cicinho tomou coragem e
um cara muito alegre, cheio de atividades e amigos. resolveu quebrar o gelo:
A cadeira de rodas não o impedia de fazer as coisas — Você é diferente, mas é bonita.
que mais gostava. Será que, algum dia, ele também — Obrigada! E você é muito simpático! — agra-
poderia ser assim? deceu a cadeira de rodas.
João passou algum tempo matutando. Não era — De onde você vem? — quis saber o patinete.
fácil repensar e imaginar um novo futuro para si — De uma loja.
mesmo. Era como se sua cabeça estivesse num re- — Loja? Na loja de onde eu vim, nunca vi alguém
demoinho. Muitas perguntas estavam girando e gi- como você? — retrucou Esquei, meio que duvidan-
rando vertiginosamente. Será mesmo que poderia do dela.
voltar a jogar basquete? Será que ainda poderia ser — Vim de uma loja onde vendem cadeiras de rodas
engenheiro como sempre quis? Será que algum dia e outros equipamentos para pessoas com deficiência.
poderia dirigir um carro? Será que meninos que — Como assim, outros equipamentos? — per-
usam cadeira de rodas têm namoradas? Quando guntou Pati.
a mãe veio trazer-lhe o lanche, naquela tarde, João — Um monte de coisas, tipo almofadas, benga-
pediu que trouxesse a cadeira de rodas para o quar- las, cadeiras de banho, luvas...
to. Ainda não podia vê-la como a resposta para — Cadeiras de banho? Essa é boa! — gargalhou
suas perguntas, mas, não custava nada, pelo menos, Cacá. — Nunca na vida ouvi falar disso antes!
olhar para ela, não é mesmo? — Para que serve uma cadeira de banho? — per-
Naquela noite, os brinquedos se viram às voltas guntou sarcástico o skate.
com aquela coisa esquisita que tinha rodas de bici-
cleta, mas não era uma bicicleta, que parecia uma

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— Está na cara que é para a pessoa tomar banho — De jeito nenhum! — falou Esquei
sentada, seu bobão! — ralhou Cicinho. — Nem pensar! — garantiu Cacá.
— Isso mesmo! — confirmou a cadeira. — Duvido muito! — afirmou Cicinho.
— Pelo jeito, João vai precisar de uma também. — Bem, nós, as cadeiras de rodas, temos permis-
— concluiu Pati. são para entrar em todos os lugares.
— É bem possível — disse a cadeira de rodas. — — Dê um exemplo. — desafiou Esquei.
E vocês? De onde vêm? — Podemos entrar nas salas de aula e bibliotecas,
— Viemos de uma loja de brinquedos. — disse e também nos cinemas, museus, teatros, restauran-
Pati tes, planetários, ônibus...
— Menos eu. Fui montado pelo pai do João! -- — Oras, bolas, grande coisa! Nós também... —
disse orgulhosamente Cacá, o carrinho de rolimã. começou a dizer Cacá, mas interrompeu-se quando
— Como é seu nome? percebeu que, de fato, carrinhos de rolimã, patine-
— Meu nome é Libe. tes, skates, triciclos e bicicletas não costumavam en-
— É um nome engraçado. -- falou Esquei. trar nesses locais.
— Na verdade, esse é meu apelido. O nome mes- — Puxa vida! — exclamou Pati.
mo é Liberdade. — informou orgulhosa a cadeira. — E você vai levar o João a todos esses lugares?
— Então, você tem um nome muito bonito mes- — perguntou Bici.
mo! — elogiou Cicinho. — Se ele quiser, vou sim! Posso ser a melhor ami-
— Eu também acho! — concordou Libe. ga dele.
— Como é a vida de uma cadeira de rodas? — Ah, isso deixou Bici muito irritada:
quis saber Bici. — A melhor amiga dele uma ova! Nada disso! Fi-
— Eu acho que é uma vida muito divertida e que você sabendo que a melhor amiga dele sou eu!
cheia de aventuras. — Calma, Bici. — pediu Cicinho. — Vocês não
— Divertida e cheia de aventuras?! — surpreen- sabem, mas, quando João ficou grande demais para
deu-se Cacá. brincar comigo, fiquei muito triste porque achei
— Isso mesmo. Fazemos muitas coisas diver- que ele não gostava mais de mim.
tidas. Vamos à escola, participamos de passeios e — Verdade? — surpreendeu-se Pati.
aposto que vamos a lugares aos quais vocês não po-
dem ir! — desafiou.
— Isso é que não! — disse Pati.

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—- É, sim. Mas, depois, percebi que ele tinha — Talvez, agora, nessa fase da vida dele, Libe seja
crescido e precisava de outros brinquedos. a amiga de que ele precisa. — Cicinho falou muito
— Como assim? — perguntou Bici. compenetrado.
— Brinquedos mais de acordo com a nova fase Todos ficaram muito calados e pensativos. Todos
da vida dele. — explicou Cicinho. amavam João e tudo o que queriam é que ele fosse
— E, talvez, agora, não possa mais brincar com feliz. Cacá quebrou o silêncio:
nenhum de nós. — disse Cacá. — Talvez, não seja bom para o João ficarmos
— Mas agora é diferente! — disse Esquei aqui, lembrando-o de algumas coisas que não pode
— Ele continua da mesma idade! — falou Pati. fazer mais, quando precisa descobrir todas as ou-
— Não ficou mais velho de repente! — comple- tras que ainda pode fazer.
tou Bici. — Talvez você tenha razão, Cicinho. — concluiu Pati.
— Nem cresceu de uma hora para outra! — gri- — Mas vou sentir muitas saudades do João. —
tou Esquei. disse Bici.
— Mas, agora ele também está numa nova fase — Todos nós vamos sentir saudades dele. — ga-
da vida dele. — disse Cicinho. — E vocês vão ter de rantiu cabisbaixo o triciclo.
entender isso. — Você promete tomar bem conta dele, Libe?
— Não temos de entender nada, não! — rebelou- — Prometo, sim, Bici. — garantiu a cadeira de
se Esquei. rodas. — Seremos inseparáveis.
— Eu acompanhei a chegada de todos vocês. No No dia seguinte, para alegria dos pais, João anun-
início, fiquei com um pouco de ciúmes — confes- ciou que queria tomar o café da manhã na cozinha.
sou o velho triciclo. — Mas, depois percebi que vo- Quando o pai o ajudou a sentar-se na cadeira de ro-
cês o amavam tanto quanto eu. Então, fiquei feliz. A das, João ficou surpreso por dois motivos. Em pri-
única coisa que me chateia é que... meiro lugar, porque, de início, percebeu que sua vi-
— O quê? — quis saber Cacá. são foi ficando escura e o som foi sumindo, como se
— É que sinto falta de brincar. viesse de muito longe. João sentiu como se o quarto
— Mas se o João está muito grande para brincar estivesse girando, girando, girando. O pai entendeu
com você, como resolver esse problema? — pergun- o que estava acontecendo e disse:
tou Pati
— Ele podia me dar para outra criança. Talvez...
— O quê?! — exclamou revoltado o Esquei.

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— Não se preocupe. Você só está um pouco ton- — Boa idéia, pai.


to. É normal. É porque faz muito tempo que você só — Venha ver o que mais fiz para você. — disse o
fica meio deitado. pai, dirigindo-se para a porta da frente da casa.
— Logo a tontura vai passar. — prometeu a mãe. — Experimente a rampa. E tem outra igual, na
Em segundo lugar, João se surpreendeu porque, porta dos fundos. Você pode ir aonde quiser.
quando o quarto parou de rodar, pôde perceber João, no início, ficou um pouco em dúvida. Mas,
como a cadeira de rodas era aconchegante. Como examinado a rampa com o olhar, concluiu que era
se amoldava direitinho em seu corpo. Era como se bem suave. Analisou a situação e achou que, afinal
ela o abraçasse carinhosamente. Ao sair do quarto, de contas, não deveria ser muito diferente do que
tocando, pela primeira vez, ele mesmo, a cadeira de descer uma rampa usando uma bicicleta ou um
rodas, João notou como Libe era macia, como des- carrinho de rolimã, não é mesmo? Decidiu expe-
lizava sem esforço sobre o assoalho. Era uma sen- rimentar. Ao deslizar pela rampa, João sentiu um
sação muito boa essa de poder se movimentar por friozinho gostoso na barriga.
si mesmo. Depois de tanto tempo deitado na cama, — Ficou ótima, papai!
era muito bom estar em movimento outra vez. Nes- Que delícia! Ele se sentiu do mesmo modo como
se momento, de algum modo, João sentiu que podia quando fazia aquelas manobras radicais no seu ska-
assumir o controle de seu corpo e — por que não te! Sem perceber, alguma coisa estava mudando. E o
dizer? — da sua vida novamente. rosto do pai iluminou-se porque era a primeira vez
— Venha ver, João, as modificações que papai que via João sorrir, depois do acidente. O pai sabia
fez. — convidou a mãe. que, daí em diante, nem tudo seria tão fácil, nem
— Modificações? tão prazeroso, mas, sentir-se confiante para descer
— Algumas reformas para facilitar as coisas para aquela rampa era um excelente começo.
você. — explicou o pai. — Sabe, pai, amanhã, quero ir pra escola.
João viu que o banheiro tinha novas barras de No dia seguinte, os amigos — alguns em suas
apoio ao lado do vaso sanitário que, agora, estava bicicletas — fizeram questão de passar na casa de
alguns centímetros mais alto. Quando olhou para o João para percorrer com ele o trajeto até a escola.
pai de modo interrogativo, este lhe explicou: Não sabiam direito o que ia acontecer. Como eles e
— Logo, você vai aprender como se virar sozinho
e vai facilitar se o vaso for da mesma altura da sua
cadeira.

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João se sentiriam com essa nova experiência? Mas, cínio e não desistir facilmente. Ele percebeu que
de uma coisa tinham certeza: João era amigo deles algumas das coisas que antes fazia sem pensar, ago-
e nada mudaria isso. Quando o viram tocando com ra não aconteceriam tão facilmente. Não foi muito
desenvoltura a cadeira de rodas, os garotos ficaram agradável perceber que, por causa do balcão muito
admirados e orgulhosos do amigo: alto da lanchonete, não podia escolher e pagar seu
— Ei, João, legal essa sua máquina, hein?! — elo- lanche sem pedir ajuda para um colega. João teria
giou Pedro. de aprender a lidar com esse mundo novo. Algumas
— Demais essa sua “quadricleta”! — falou Lucas. coisas ele poderia mudar, outras, não. O importante
— Depois você me deixa dar uma volta nela? — era não perder o bom humor. Quando o professor o
pediu Alexandre. chamou para ir à lousa resolver um problema, João
Durante o caminho, embora João estivesse muito ficou duplamente satisfeito: conseguiu encontrar
animado, os amigos logo perceberam que ele estava a resposta certa e soube que não seria tratado de
um pouco cansado. Isso não era surpresa, afinal esta- modo diferente pelos professores e colegas. Nem
va meio fora de forma. No entanto, isso não era nada podia ser de outro modo, afinal, ainda era o mesmo
que um pouco de exercício não resolvesse. Enquanto João! A única diferença é que, agora, usava uma ca-
isso, os amigos estavam lá para apoiá-lo. Os que es- deira de rodas, não é mesmo?
tavam de bicicleta pedalaram mais devagar e os que À espera de João, os brinquedos passaram toda
estavam a pé se ofereceram para empurrar um pou- a manhã doidos para saber como tinha se saído em
co a cadeira de rodas. João estava meio inseguro em seu primeiro dia na escola com Libe. Estavam com
relação a esse seu retorno à escola. Como os demais um pouquinho de ciúmes dela porque, apesar de
colegas se sentiriam em relação a ele? Como ele pró- morrerem de vontade, nunca tinham entrado numa
prio se sentiria? Será que ficariam olhando? Será que sala de aula.
fariam perguntas? Se isso acontecesse, como deveria — Puxa, a Libe é muito sortuda mesmo. -- dis-
reagir? E como os professores iriam tratá-lo? Fosse se Esquei. — Ela pode ficar o tempo todo junto do
como fosse, sabia que nada poderia estragar o prazer João.
de estar novamente com os amigos. — Nunca passei do bicicletário. — queixou-se
João estava decidido a enfrentar os novos desa- Bici.
fios da sua vida do mesmo jeito como fazia para
resolver um problema de matemática, sua matéria
favorita: prestar atenção aos detalhes, usar o racio-

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Quando um João todo falante voltou para casa,
naquele dia, os brinquedos souberam que a rotina
familiar seria retomada. Todavia, para eles, a vida
nunca mais seria a mesma.
— Soube que no sábado um caminhão vem bus-
car a gente, anunciou Cicinho.
— Caminhão?! Ai, minha Santa Padroeira das
Bicicletas! Vamos para o ferro-velho! — desespe-
rou-se Bici.
— Ferro-velho?! — berrou Esquei.
— Me acuda, meu Santo Protetor dos Carrinhos
de Rolimã! — implorou Cacá.
— Não quero virar sucata! — chorou Pati,
— O que vai ser da gente!? — perguntou Esquei.
Cicinho tentou tranquilizar a turma:
— Calma, pessoal.
— Calma?! Como ter calma numa hora dessas?!
– exclamou o dramático Cacá.
— Eu acho que não vamos para o ferro-velho. —
disse Cicinho.
— Tem certeza? — desconfiou o carrinho de ro-
limã.
— Não tenho certeza, mas é o que acho. — disse
o velho triciclo.
— Pois acho que periga a gente ser reduzida a
um monte de lata retorcida, logo, logo. — disse o
patinete desconsolado.

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— Vamos esperar pra ver. — aconselhou Cici- de guias rebaixadas que tornavam o caminho para a
nho. escola quase tão emocionante quanto um rali radi-
— E torcer! — falou Cacá. cal. Mas João tinha certeza de que não haveria nada
— E rezar! — disse Esquei. que não pudesse enfrentar e vencer com a ajuda dos
— Uma coisa é certa: vamos sentir muita sauda- pais, dos amigos e dos professores. Sem se esquecer
de do João... — suspirou Bici. de sua nova amiga Libe, que estava provando ser
Só mesmo um fim de semana muito especial, uma companheira à altura da empreitada! A prova
para encerrar de modo adequado aquela que tinha de fogo seria aquele acampamento. Quando abriu
sido uma semana repleta de novidades. João estava a porta para Theo e Ricardo, João teve a certeza de
bem ansioso naquele sábado. Já fazia uns bons dez que aquele seria um dos momentos decisivos da sua
minutos que olhava pela janela, quando o carro do vida. E sentia-se pronto para vivê-lo intensamente.
professor Theo estacionou em frente de sua casa. Mas, antes, havia uma coisa que precisava fazer.
João ficou admirado com a montanha engenhosa- — Bom dia, João! — disseram os recém-chega-
mente arrumada no teto do carro do professor. Ha- dos.
via barracas, colchões, pás, mochilas, panelas, can- — Bom dia, pra vocês também! — respondeu
tis, enfim, toda aquela tralha que não podia faltar João.
num acampamento. Sabia que aquele carro também — Preparado para a grande aventura? — pergun-
transportava algumas coisas que são invisíveis e tou um animado Ricardo.
que, por isso mesmo, são muito importantes: com- — Preparadíssimo! Só queria esperar um pessoal
panheirismo, amizade, espírito de aventura. João que vem buscar essa turma aqui. — João disse, indi-
observou o professor sair do carro, pegar a cadeira cando a bicicleta, o skate, o patinete, o carrinho de
de rodas no porta-malas e levá-la até Ricardo, que rolimã e o velho triciclo.
estava sentado no banco do carona. Ambos conver- — Sem problemas! — garantiu o professor.
savam e sorriam, enquanto se dirigiam para o por- — Estão para chegar. Só quero me despedir de
tão da casa de João. meus velhos companheiros. — justificou-se João.
Ao som da campainha, ele estremeceu de leve, Foi o tempo de a mãe de João oferecer um ca-
porque estava imerso em seus pensamentos. Agora, fezinho para os visitantes e, em seguida, uma ca-
teria novos desafios a enfrentar. Claro que sabia que
nem tudo seria fácil. Haveria dificuldades, como,
por exemplo, aqueles buracos nas calçadas e a falta

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minhonete estacionou do outro lado da rua. Tinha tas crianças de várias idades diferentes. — explicou
chegado o momento mais difícil. A hora da despe- Cicinho.
dida. Era doloroso dizer adeus para tão bons, velhos — É mesmo? — perguntou Esquei.
e leais amigos. O único consolo era saber que as ale- — E o que mais? — quis saber o patinete.
gres lembranças seriam para sempre. Como um úl- — Nessa casa, muitas das crianças nunca tiveram
timo gesto de carinho, o menino passou a mão de a chance de brincar com bicicleta, triciclo, patinete,
leve em cada um dos brinquedos. Um nó se formou skate, ou, até mesmo, carrinho de rolimã.
em sua garganta e João fez um esforço enorme para — Então, para essas crianças — disse Cacá —
não chorar. nós seremos uma novidade fantástica?!
— OK, podem levar — João falou baixinho. — Isso mesmo! — confirmou Cicinho.
O menino acompanhou atentamente o embar- — E, para nós, elas vão ser uma vida de brinca-
que dos brinquedos na caçamba. Queria estar certo deiras até cansar?! — quis saber Pati.
de que todos viajariam em segurança. Conforme — Acertou na mosca! — confirmou o velho tri-
a caminhonete se afastava, os brinquedos ficaram ciclo.
observando João e Libe ficarem cada vez mais pe- — Parece igual ao Céu das Bicicletas! — arriscou
queninos. Só quando não podiam mais ver os dois, Bici.
Esquei quebrou o silêncio: — Parece mesmo! — confirmou Cicinho.
— Vocês acham que vamos ver o João de novo, — No céu ou não, vou morrer de saudades do
algum dia? João. — Bici confessou quase chorando.
— Aposto que ele vai visitar a gente. — respon- — Nós também! — choramingaram todos ao
deu o velho triciclo, com um sorriso matreiro. mesmo tempo.
— Bom, Cicinho, alguma coisa me diz que você — Chega dessa choradeira, pessoal! — Cicinho
sabe para onde vamos. — provocou Cacá. pediu. — O João vai ficar ótimo!
— Vai ou não vai contar? — perguntou Pati. — Tem certeza? — perguntou Bici.
— Fala logo! — exigiu Bici. — É claro que tenho! Libe vai tomar conta dele
— Se vocês me deixarem, eu conto — disse o ve- por nós. De agora em diante, o bem-estar de João vai
lho triciclo, divertindo-se um pouco com a ansieda- estar intimamente ligado ao bem-estar dela e vice-
de da turma.
— Desembucha! — intimou Esquei.
— Nós vamos para uma casa onde moram mui-

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versa. Um fazendo parte do outro. Companheiros
inseparáveis. — Cicinho afirmou com convicção.
— É verdade. Ela prometeu. — lembrou-se a bi-
cicleta.
— Enquanto João precisar, Libe vai esta lá para
apoiá-lo! — disse Esquei.
— Vão se divertir um bocado! — concordou Pati.
— E viver um monte de experiências inesquecí-
veis. — disse Cacá
— E, quando chegar a hora, Libe vai dar seu lu-
gar para uma nova amiga. — falou Bici.

Ao se despedirem dele alegremente, naquela lu-


minosa manhã de outono, os pais de João sabiam
que um ciclo se encerrava e outro tinha início. A ca-
minho do acampamento, João não era mais apenas
o menino alegre e o filho único muito querido. Era
também um rapazinho confiante que, em breve, se
tornaria um jovem independente.

FIM

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Este livro foi impresso em
fevereiro de 2017, em papel couché fosco,
com as fontes Alexander e Minion Pro,
Anarko e Helveetica Neue
“Nada sobre nós sem nós”

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Lia Crespo convive com sequelas de poliomielite desde a infância. Jornalista, sempre estudou em
escolas comuns e participa do movimento em defesa dos direitos das pessoas com deficiência desde
seu início, em 1980.
Com “Uma nova amiga”, a também autora do livro infantil “Júlia e seus amigos” propõe outra pers-
pectiva capaz de desafiar antigos preconceitos sobre o que achamos que sabemos sobre as pessoas
com deficiência.
Com rara sensibilidade, o ilustrador, roteirista e storyboarder Cisko Diz traduz em desenhos esta
história que reitera a crença da autora na importância do apoio da família e na influência positiva da ami-
Lia Crespo
zade no destino de todos os seres humanos, mas, muito especialmente, na vida das pessoas deficientes.
Neste livro, que fala de amizade, lealdade e coragem, Lia Crespo reforça sua convicção no poder e Cisko Diz
transformador da educação e na relevância dos professores para que as pessoas com deficiência desen-
volvam plenamente seus talentos, conquistem a felicidade e um estilo de vida independente.

Escreva para
lia.crespo@gmail.com

e conte o que você achou desta história.

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