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Parvo

Parvo Parvo
Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno: Parvo (P.) – personagem-tipo que representa o
povo e os pobres de espírito.
JOANE Hou daquesta!
DIABO Quem é?
JOANE Eu sô. Percurso da personagem:
1
É esta a naviarra nossa?
250 DIABO De quem?
Joane era o nome que se costumava dar, no
JOANE Dos tolos. século XVI, aos pobres de espírito. Os Parvos têm,
DIABO Vossa. no teatro vicentino, uma função cómica,
Entra! ocasionada pelos disparates que proferem.
Assim acontece neste auto, embora, em certos
JOANE De pulo ou de voo?
passos, o Parvo se junte às personagens
Hou! Pesar de meu avô!2 sobrenaturais [Anjo e Diabo] para criticar os que
Soma3: vim adoecer pretendem embarcar e sirva, algumas outras
vezes, de comentador.2
e fui má-hora a morrer,
255 e nela pera mi só.4 v. 248 – cómico de carácter: o P. apresenta-se sem
DIABO De que morreste? artifícios, é ingénuo
v. 249 – cómico de linguagem
JOANE De quê?
v. 250 – O P. assume as suas limitações
Samicas5 de caganeira. v. 251 – imperativo; cómico de situação
DIABO De quê? vv. 256-257 – cómico de situação e de linguagem
v. 256 – “Samicas” – arcaísmo

JOANE De cagamerdeira. vv. 258-259 – cómico de linguagem


Má ravugem que te dê! 6 v. 259 – O P. insulta o D.
vv. 261-262 – cómico de linguagem
260 DIABO Entra! Põe aqui o pé!
7
JOANE Houlá! Num tombe o zambuco !
8 9
DIABO Entra, tolaço enuco ,
que se nos vai a maré!

1. naviarra: navio grande, barca reles. 2. v. 252: Com mil


diabos! 3. Soma: Em suma. 4. v. 255: a hora da morte foi
apenas minha. 5. Samicas: Talvez. 6. Má ravugem: espécie
de sarna (“má ravugem” é uma praga). 7. zambuco:
pequena embarcação indiana de carga. 8. tolaço: doido
varrido. 9. enuco: homem castrado, eunuco.
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Auto da Barca do Inferno à lupa PCH9LLABID-6

JOANE Aguardai, aguardai, houlá!

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v. 264 – imperativo
265 E onde havemos nós d’ir ter?
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DIABO Ao porto de Lucifer . v. 266 – perífrase (Inferno)
JOANE Ha-a-a… v. 267 – cómico de carácter: o P. não compreende
o que lhe disse o D.
DIABO Ó Inferno! Entra cá!
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JOANE Ó Inferno? Eramá! v. 269 – “Eramá” – arcaísmo
Hiu! Hiu! Barca do cornudo12. vv. 268-295 – cómico de linguagem: o P. recusa-se
a entrar na barca do Inferno e, exaltado, profere
270 Pero Vinagre13, beiçudo, um discurso incoerente e incompreensível repleto
rachador d’Alverca14, huhá! de calão e linguagem obscena, mostrando o
quanto repudia a ideia de ir para o Inferno
Sapateiro da Candosa15!
Antrecosto de carrapato16!
Hiu! Hiu! Caga no sapato,
275 filho da grande aleivosa17!
Tua mulher é tinhosa (vide notas que acompanham o texto)

e há de parir um sapo
chentado18 no guardenapo!
Neto de cagarrinhosa19!

280 Furta-cebola! Hiu! Hiu!


Escomungado nas erguejas!
Burrela20, cornudo sejas!
Toma o pão que te caiu!
A mulher que te fugiu
285 per’a Ilha da Madeira!
Cornudo até mangueira21,
toma o pão que te caiu!

10. Lucifer: Satanás. 11. Eramá!: Em má hora! 12. cornudo:


Diabo. 13. Pero Vinagre: personagem popular da época.
14. rachador d’Alverca: Em princípio, o autor referir-se-á à
Alverca do Ribatejo. 15. Candosa: Na época vicentina,
Candosa era uma vila e a sede do concelho de Tábua.
16. carrapato: espécie de piolho. 17. aleivosa: adúltera.
18. chentado: colocado. 19. cagarrinhosa: medricas.
20. Burrela: Burla. 21. mangueira: o pau mais comprido do
mangual (a palavra, neste verso, poderá ter um significado
obsceno).

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Parvo

Hiu! Hiu! Lanço-te ũa pulha22!


Dê-dê! Pica nàquela23!
290 Hump! Hump! Caga na vela!
Hio, cabeça de grulha24!
Perna de cigarra velha,
caganita de coelha,
pelourinho de Pampulha25!
295 Mija n’agulha, mija n’agulha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo, e diz:

JOANE Hou da barca!


ANJO Que me queres? Percurso da personagem:
JOANE Queres-me passar além?
ANJO Quem és tu? v. 298 – Não sou ninguém; o P. mostra-se
JOANE Samica alguém. despretensioso, humilde. Apresenta-se como
um “Zé Ninguém”. Não traz adereços/símbolos
ANJO Tu passarás, se quiseres;
cénicos, já que não pode ser considerado
300 porque em todos teus fazeres26 responsável pelas suas falhas, pecados. Graças à
per malícia nom erraste. sua inconsciência e espírito simples, o P. alcança
a salvação.
Tua simpreza27 t’abaste
vv. 300-303 – versos sentenciosos
pera gozar dos prazeres.

Espera entanto per i; vv. 304-307 – O A. diz ao P. para aguardar no cais


305 veremos se vem alguém por outras pessoas que possam, como ele,
embarcar para o Paraíso. O P., a partir deste
merecedor de tal bem momento, desempenhará um papel de
que deva de entrar aqui. comentador, dado que dialoga com as
personagens que irão chegar, fazendo críticas e,
de forma sarcástica, denunciando os seus vícios e
falhas. Este comportamento e interação resultam
num efeito francamente cómico. Stephen Reckert
afirma que o P. é o “representante alegórico da
salvação adiada”.
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22. pulha: praga. 23. Pica nàquela!: Aguenta-te com ela!


24. grulha: palrador. 25. Pampulha: antigamente, era um lugar
que ficava perto de Lisboa. Atualmente, trata-se de um bairro,
conhecido pela Fábrica de Bolacha. 26. fazeres: trabalhos,
ocupações. 27. simpreza: simplicidade, ingenuidade.

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