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Dissertação Leticia
Dissertação Leticia
UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES - CLA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT
MESTRADO EM TEATRO
RIO DE JANEIRO
2008
2
por
RIO DE JANEIRO
2008
3
RESUMO
Esta dissertação teve como objeto de estudo o trabalho corporal proposto por Angel Vianna,
ou seja, a sua prática conhecida como conscientização do movimento. A via principal de
investigação partiu do registro, incorporação e assimilação efetivadas pela autora, uma de
suas discípulas. Está estruturada em quatro capítulos: o primeiro parte da conceituação do
corpo como elemento norteador para a compreensão desta abordagem; o segundo discute os
principais conceitos pertinentes à prática de Angel Vianna, como: imagem corporal,
propriocepção e consciência do corpo; o terceiro apresenta tópicos de caráter didático
formulados através de princípios, modos de aplicação e alguns procedimentos básicos e o
quarto capítulo estabelece uma articulação entre o pensamento formulado nos capítulos
anteriores e aspectos da preparação corporal do ator. Os temas analisados nos quatro capítulos
dessa dissertação contribuem para a projeção do trabalho, na construção de novas didáticas e
pesquisas no campo das artes cênicas, envolvendo a formação do bailarino e do ator.
ABSTRACT
This dissertation was based, as object of the study, on the body work purposed by Angel
Vianna, which means, her body work practice known as movement consciousness. The main
lane of the investigation began from the taken on permanently register, incorporation and
assimilation by the author, who was one of hers pupils. The dissertation is structed in four
chapters. The first one starts from the concept of the body as the element for the
understanding of this bound approach. The second one discusses about the principal concepts
related to Angel Vianna practice, such as: the body image, the proprioception and the
conscious ness of the body itself. The third one presents didactic character topics formulated
through the principles, forms of application and some basic procedures. Finally, the last
chapter determines an articulation between the formulated thought in the previous chapters
and the aspects of the body preparation of the actor. The analyzed subjects in the four chapters
of the dissertation contribute to a further projection of this work, in what concernes to the
constructions of news didactics and researches in the scenic arts field, involving the rise of the
dancer and of the actor.
AGRADECIMENTOS
À minha querida Angel, por acreditar em meu empenho e esforço para a continuidade
do seu trabalho.
À minha orientadora, Profa. Dra. Nara Keiserman, pelo diálogo recíproco, dedicação,
confiança e objetividade.
Thomaz, Tânia Brandão, Iremar Brito, Ana Teresa Jardim, Zeca Ligiério, Eloísa Brantes
À Hélia Borges, Enamar Ramos, Charles Feitosa e Joana Ribeiro (suplentes), que
Aos colegas de turma de 2005, pela troca, apoio e carinho, especialmente Andréa Elias
e Claudia Petrina.
À bibliotecária Nercy Souza Paula, da biblioteca Klauss Vianna, por sua ajuda e
confiança.
pesquisa.
Aos meus próximos (Arnaldo, Luiza e Amanda), pela paciência na ausência necessária
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................1
3.3. O que fazemos é orientar a pessoa para que ela relembre o que está guardado
dentro de si..................................................................................................................50
3.3.1. É se conhecer e saber que pode se tocar, ver, sentir e ouvir......................................54
3.3.2. Uma busca do seu movimento interior, de você mesma............................................55
3.3.3. É um movimento........................................................................................................56
CONCLUSÃO....................................................................................................................69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................74
8
INTRODUÇÃO
1
Angel Vianna, bailarina, coreógrafa, professora, doutora (título notório saber) e fundadora da
Escola e Faculdade Angel Vianna (Rio de Janeiro), cujo espaço é pioneiro na formação em dança
contemporânea e nas linguagens de consciência corporal.
2
Mencionarei eventualmente, a partir de então, simplesmente por Angel e não Vianna, que é uma
forma carinhosa e bastante reconhecida de tratá-la.
9
elementos abordados na prática corporal de Angel Vianna, que são: espaço, peso e
transferência, consciência dos ossos, das dobras (articulações) e do invólucro (pele).
Desenvolvi, ainda, um artigo para a primeira produção acadêmica da
Escola/Faculdade Angel Vianna, onde leciono as disciplinas IMECO I e II
(Improvisação e Expressão Corporal I e II). Nessa produção foi dada ênfase a uma
preocupação particular em desvendar o conceito de consciência, razão de tantas
sondagens na área do meu envolvimento. O livro Dança e Educação em Movimento,
publicado pela Editora Cortez, em 2003, foi organizada por Julieta Calazans, Jacyan
Castilho e Simone Gomes.
As produções teóricas sobre Angel Vianna (AV), tanto pela autora deste
estudo quanto por outros, vem sendo pensadas, conduzidas e acrescidas de novas
perspectivas. Angel é tema de várias teses, dissertações e monografias.
Especificamente sobre esse tema, destaco os seguintes trabalhos:
- BENTO (2004), tese de Doutorado de Maria Enamar Ramos Neherer Bento, para o
Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT) da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO), intitulado Angel Vianna: A pedagoga do corpo. Bento
traça um panorama do percurso da educadora desde sua cidade natal (Belo
Horizonte), passando por Salvador e Rio de Janeiro (onde se localizam a sua Escola e
a Faculdade Angel Vianna), indo até o momento atual, em que se torna mantenedora
da Faculdade homônima e portadora do título de doutora de notório saber, pela
Universidade Federal da Bahia. Bento ressalta a pedagoga através dos cursos
ministrados por ela, desde a década de 1970, destacando a afluência de artistas à
procura de seu trabalho corporal. Grandes atores e diretores do Rio de Janeiro (Amir
Haddad, Sérgio Brito, Eduardo Tolentino e outros) testemunharam experiências sutis,
renovadoras e sensíveis. Bento também analisa e compara as ementas das disciplinas
de Expressão Corporal na Faculdade Angel Vianna (FAV), Universidade do Rio de
Janeiro (UNIRIO) e a Universidade de Campinas (UNICAMP). Por fim, destaca a
importância, para a atuação cênica do ator, da experiência corporal calcada no
trabalho corporal de AV.
- POLO (2005). Pesquisa realizada por Juliana Polo, através do oitavo Programa de
bolsas RioArte, denominado: Angel Vianna através da história – a trajetória da
11
dança da vida. Polo organizou periódicos de acervo pessoal de Angel Vianna, entre
1948 até 2004. Os temas abordados por períodos onde, respectivamente,
encontramos:
Ballet de Minas Gerais (1948 – 1955): período de formação e participação
como bailarina no grupo de dança de Carlos Leite – responsável pela
implantação da dança clássica na cidade de Belo Horizonte;
Ballet Klauss Vianna (1955 – 1962): período em parceira com seu
companheiro de vida Klauss Vianna e incentivadora da primeira escola de
formação – Escola Klauss Vianna;
UFBA (1963 – 1964): período onde lecionou dança e integrou o grupo de
dança da Universidade Federal da Bahia, sob a direção de Rolf Gelewsky;
Ballet Tatiana Leskova (1965 – 1974): período onde lecionou ballet clássico e
implantou a primeira turma de expressão corporal;
Centro de Pesquisa Corporal Arte e Educação (1975 – 1982): período da
fundação de sua segunda escola junto com Klauss Vianna e Teresa de Aquino
e da criação de seu primeiro grupo de dança – Teatro do Movimento.
Escola Angel Vianna (1983 – 2004): período da fundação de sua terceira
escola, junto com seu filho Rainer Vianna, e a oficialização dos cursos
oferecidos: formação técnica de dança contemporânea e recuperação motora
através da dança;
Faculdade Angel Vianna (2001 – 2004): o período inicia com a implantação da
formação em nível de terceiro grau até 2004 e, finalmente;
O teatro (1962 – 2004): período de participação como atriz, coreógrafa,
expressão corporal, preparação corporal, direção de movimento e de corpo.
- FREIRE (2006). Livro de Ana Vitória Freire, intitulado Angel Vianna: uma
biografia da dança contemporânea. Rio de Janeiro: Dublin. Freire analisa a trajetória
de vida de Angel através da dança. A autora salienta a sua participação como
bailarina e coreógrafa em Belo Horizonte, na Bahia e no Rio de Janeiro.
12
Este estudo pretende explanar o trabalho corporal proposto por Angel, que é
conhecido como “Conscientização do Movimento e Jogos Corporais”, porém passível
de outras terminologias, tais como: expressão corporal, conscientização de jogos
corporais, conscientização corporal, conscientização do movimento 3.
Não me aterei às questões terminológicas. A escrita compõe-se de quatro
capítulos, percorridos em um caminho que se inicia pela concepção teórica (corpo
filosófico e corpo sensível), segue para uma concepção didática (corpo aprendiz) e,
no quarto capítulo (corpo cênico), aponta para uma articulação entre o teatro e temas
abordados nos três primeiros capítulos.
Apresento, primeiramente, a concepção de uma prática, na qual o suporte
teórico é o seu embasamento. Contudo, a base deste estudo encontra-se em um
subtexto, oferecido por um corpo/vivido que se inscreve na vivência da abordagem
que está sendo constituída e demonstrada. O primeiro capítulo se adentra no
conhecimento filosófico para sustentar as idéias de corpo representado, modo de ver
(Maurice Merleau-Ponty) e modo de ser (Gilles Deleuze e Friedrich Nietzsche). O
segundo capítulo abrange conceitos que validam essa abordagem no âmbito do
conhecimento prático, como: imagem do corpo (Paul Schilder), propriocepção
(Oliver Sacks) e consciência do corpo (José Gil). O terceiro capítulo, denominado
corpo aprendiz, aborda o papel do orientador através de princípios a ele relacionado
(transmissão do vivido, orientação para uma auto-condução e aprendizado constante);
os modos de sensibilização (toque, imagem e direção óssea), procedimentos e as
etapas possíveis em sala de aula (tomada de consciência, movimento e
improvisação).
O quarto capítulo volta-se para o corpo cênico (ator/bailarino), priorizado
como condição de exploração para uma efetiva experimentação de si. Dessa forma,
será travado um diálogo com Antonin Artaud, Gilles Deleuze e Félix Guattari para o
3
Nos periódicos organizados por Juliana Polo, encontram-se várias terminologias para o trabalho
corporal de Angel Vianna, a começar pelo título de “Expressão Corporal” Jornal Opinião, 10 de
dezembro de 1976:299; Jornal da Bahia, 1977:307; Jornal Ipanema, de 1977:309. No ano de 1982,
o Jornal O Globo a cita como professora de dança e conscientização de jogos corporais (p. 350).
“Conscientização e jogos corporais” foi título de uma nota do jornal Luta e Prazer, novembro de
1982:351. Em 1987, no Jornal O Estado, em uma entrevista, ela diz: “Meu trabalho, de uns quinze
anos para cá, ficou conhecido como expressão corporal. (...) No momento chamo meu método de
Conscientização Corporal”. (p. 377). Em 1992, para o Diário da Tarde, diz: “Atualmente, não
chamo esse trabalho de Expressão Corporal e sim de Conscientização do Movimento e Jogos
Corporais. É o título que hoje dou e entre parênteses (Expressão Corporal)” (p. 409). Ver: Polo
(2005:299-409). Em sua Escola/Faculdade, Angel leciona curso livre com a denominação de
Conscientização do Movimento.
13
4
Pesquisa referida nos estudos sobre Angel Vianna.
14
5
Alusão ao pensamento dualista de Descartes, em que o conhecimento e a verdade provêm da razão
através de idéias claras e distintas, independente da experiência sensível. Ver: Descartes (1979:6-
22).
6
Novamente a referência cartesiana onde a dúvida também advém da razão, pois é o meio para a
credibilidade da existência humana, assim sendo, se duvido é porque penso, se penso é porque
existo, logo existo na condição de ser pensante Ver: Descartes (1979: 6-22).
7
Ver: Deleuze (1992:59-60). Deleuze, Gilles. Conversações. Editora 34, 1992.
8
Idem.
16
9
Pensamento de Angel Vianna, extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo
(2005:359).
10
Angel freqüentou aulas de anatomia na Escola de Odontologia e Farmácia da UFMG, em Belo
Horizonte, no ano de 1955. Em 1963, em Salvador, voltou a estudar anatomia na Escola de Dança
(UFBA).Ver: Freire (2005:67). No Rio de Janeiro, no final da década de 1970 obteve aulas
particulares de cinesiologia com a fisioterapeuta Solange Lucie. Ver: Polo (2005:285).
11
Professora de Expressão Corporal e Dança da UNIRIO e autora da Tese de Doutorado em Teatro,
com o título Angel Vianna: A pedagoga do corpo, pela UNIRIO, 2004. Sinalizado na Introdução.
17
ambiente das áreas citadas acima que abrangem o conhecimento categorizado para a
compreensão do corpo. A via curiosa que a levou à necessidade de entendê-lo,
apreendê-lo e trazê-lo para seu mundo foi a artística, tanto da dança quanto da
escultura 12. O universo do movimento foi uma das diretrizes que a impulsionou para
a compreensão do mecanismo das ações realizadas na técnica de dança a partir do
balé clássico e, depois, em toda a sua trajetória voltada para a expressão do mover-
se.
A restrição dos termos anatômicos, fisiológicos ou cinesiológicos,
relacionados ao corpo humano, para o conhecimento específico da área da saúde,
mostra o quanto o estudo do corpo é reduzido à sua formatação orgânica. Neste
sentido, o corpo é tratado como um modelo de representação dirigido ao modo de
apresentá-lo, pelo foco da organização porque o classifica, decepa, analisa, e
enquadra-o. Enfim, torna-o representado através de sistemas, tais como: sistema
esquelético, muscular, articular, arterial, respiratório, circulatório, digestivo etc.
Dentro deste parâmetro, o filósofo francês Michel Foucault 13 analisa que “a
partir do século XVII perguntar-se-á como um signo pode estar ligado ao que
significa. A tal pergunta a idade clássica responderá pela análise da representação”.
(1980:67). Cada coisa estará indicada pela sua função e nada mais, assim sendo, “o
olho será destinado a ver e a ver, apenas; o ouvido, apenas a ouvir” (1980:68); a
redução torna o olho coisa/signo e o ver palavra/significado 14 - um estágio em que
ainda estamos impregnados, pois objetivou a cultura da representação na arte da
nomeação e do discurso. “O discurso terá então por objetivo dizer o que é, mas já
não será coisa alguma do que diz” (1980:68), pois ele representa o dito, a idéia da
coisa/objeto de análise.
O pensamento clássico que sistematizou e classificou o corpo trata-o como
idéia 15, ou melhor, como uma representação universal. A representação básica da
12
Angel estudou dança clássica com Carlos Leite (uns dos responsáveis pela implantação desta
técnica em Belo Horizonte, em 1948), gravura (Misabel Pedrosa), desenho (Sansão Castelo Branco),
escultura (Frans Weissman) e pintura (Guignard) na Escola de Belas Artes, no mesmo período. Ver:
Freire (2005:36-37).
13
No livro As Palavras e as Coisas, Michel Foucault tratou de estabelecer a estrutura da linguagem
particular de cada época – episteme – em uma leitura das Histórias das Idéias no Ocidente, ou
melhor, em uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
14
Aqui me refiro ao próprio título do livro de Foucault, As palavras e as coisas; a palavra, no caso
do verbo ver, é o significado e a palavra, no caso do olho, é a coisa, o signo – base da interpretação
semiótica.
15
Em relação a essa questão, no livro da autora: Conscientização do Movimento: uma prática
corporal há um parecer sobre esse pensamento, introduzido por Descartes, que levou o seu res
18
16
Henri-Pierre Jeudy, sociólogo francês do LAIOS (Laboratório de Antropologia das Instituições e
das Organizações Sociais) e Professor de estética na Escola de Arquitetura de Paris-Villemin. Em
seu livro O Corpo como Objeto de Arte, invoca o corpo como elemento de análise. Nesta citação
específica, ele dirige a relação do artista com o modelo, que é diferenciado do modelo ideal. O
modelo que é apreendido singularmente pelo artista serve como inspiração de uma observação que
vai além do olhar de um objeto qualquer, perpassa pela via imaginária, livre e comprometida. Ver:
Jeudy (2002:34-44).
20
17
Ver: Deleuze (1992:179).
18
Diretor da Escola Francesa de Ortopedia e de Massagem.
21
Esse é o caminho que seguiu Angel ao procurar, desde a década de 1950, aulas
de anatomia, fisiologia e cinesiologia, para um melhor entendimento da condução
motora do movimento.
Sylvie Fortin 19 compartilha da mesma opinião acima citada. Para ela, as
teorias ainda estão defasadas em relação às práticas corporais conhecidas também
como educação somática 20, pois elas não abrangem uma análise devida aos
fenômenos observados nos estudos de casos. A esse respeito, assim se manifesta:
Talvez dada à dificuldade de se realizar as experimentações controladas,
com o que se supõe em termos de medidas de variáveis dependentes e
interdependentes, mas, sobretudo, dado ao questionamento dos educadores
somáticos sobre a pertinência do tipo de pesquisa, constata-se que a
pesquisa realizada até hoje pouco tentou avaliar a eficiência das práticas
no sentido em que se entende o modelo científico do paradigma positivista
dominante. (FORTIN, 1999:50).
19
Professora no departamento de dança da Universidade de Quebec, em Montreal (Canadá).
Diplomada no método Feldenkrais. Doutora pela Universidade Estadual de Ohio (EUA), pesquisa a
contribuição da educação somática para a formação do intérprete, as metodologias de pesquisa em
dança e a educação somática dos jovens para a representação coreográfica.
20
Citarei, na Conclusão, algumas linhas de trabalhos corporais associados à educação somática.
22
21
Pensamento de Angel Vianna, extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo
(2005:384).
23
22
O primeiro empreendimento educacional de AV foi a abertura da Escola Klauss Vianna (1955)
junto com seu parceiro de vida: Klauss. Uma das disciplinas oferecidas neste ambiente era a música,
para que os alunos pudessem desenvolver o sentido rítmico e melódico do movimento. Ver: Freire
(2005:51-54).
24
afirmar que Angel vem se deslocando de vários “pontos de vista”, pois a sua maneira
de relacionar-se com o mundo ultrapassa o paradigma clássico.
Merleau-Ponty reivindicou a consideração do corpo a partir de um pensamento
estabelecido pelo sujeito e seu objeto/corpo, associado-os, interligado-os e
relacionando-os. Assim, ao considerar o corpo, trouxe em evidência o sujeito que
pertence e está no mundo. Exatamente o que o pensamento clássico não permitia,
pois o objeto distancia-se do sujeito e, portanto, não estabelece relação.
Para o filósofo português José Gil, em seu livro Movimento Total:
A fenomenologia teve o mérito de considerar o corpo no mundo. Não se
trata de uma perspectiva terapêutica (embora tenha dado origem a toda
uma escola psiquiátrica), mas do estudo do papel do corpo próprio na
constituição do sentido. A noção de corpo próprio compreende ao mesmo
tempo o corpo percebido e o corpo vivido, em suma o corpo sensível, a
carne de Husserl, de Merleau-Ponty e de Erwin Strauss. (GIL, 2001:68).
A noção de múltiplo afasta o pensamento dual que estipula o que é do que não
é ou não pertence, onde a verdade rege o pensamento, e que não aceita o pensamento
paradoxal. Com relação a essas questões, o pedagogo Thomaz Tadeu Silva pressupõe
que o pensamento doutrinário se impõe, numa posição de superioridade, com seus
valores fixados pela sua identidade. Assim, a noção de identidade é o que “é”, uma
representação da afirmação e a noção de diferença é o que “não é”, uma
26
25
Esse conceito será apresentado no capítulo IV – corpo cênico.
27
26
Ver: Capitulo II – Corpo Sensível: Propriocepção.
28
27
Com relação à psicanálise, existe uma revisão crítica do conceito de imagem em Schilder, apoiado
na teoria da percepção/psicologia (Gibson, Strauss, Samuel Todes) e na Psicanálise (Campbell),
feita por Jurandir Costa Freire, em seu artigo Considerações sobre o corpo na Psicanálise, no livro
O Vestígio e a Aura. Garamond, 2003:60. Para ele, a noção de corpo vivido/intencional de Merleau
Ponty é absorvida por Paul Schilder como corpo físico, levando a entender o esquema corporal como
automático. Segundo a teoria de Gibson, levantado por Freire, isso confunde com a imagem corporal
que é apresentada de forma conjunta ao esquema corporal. A teoria de Gibson transfere esses
conceitos do âmbito do corpo para o campo perceptivo – processos de auto-percepção corporal
(interocepção e exterocepção). A interocepção/propriocepção estrutura a experiência do corpo-
próprio sendo orientada pelo movimento no eixo gravitacional (rotação e translação) na absorção das
partes do corpo no todo. A exterocepção estrutura a experiência dos fenômenos extra-corporais – o
meio através do conjunto dos sentidos para os objetos e eventos do ambiente, como: sons,
luzes/cores, cheiros, degustações e tato. A construção do eu é o ajuste ao ambiente pela sintonia do
processo das duas auto-percepções corporais (interocepção/propriocepção e a exterocepção).
28
No site da internet: http.//www.efdeportes.com/efd71/imagem.htm há um artigo resumido deste
conceito (Leonardo Mataruna), em que o fundamenta, principalmente, com os teóricos da
psicomotricidade (Le Blouch, Piaget, Lapierre). O que se constata, de modo geral, é a elaboração
mais abrangente dos conceitos de imagem (interno/psíquico) e esquema (externo/neurológico).
29
mais alto, um quadril bem saliente, um ombro estreito, um peito franzino etc.;
marcado, de certa forma, no manuseio com a argila ou com o lápis e condizente com
o que ele/aluno percebe em si mesmo. Isto acontece exatamente porque é moldado à
própria imagem que temos de nós mesmos, sem a referência de um modelo ideal
projetado externamente, levando assim ao reconhecimento da imagem do corpo na
modelagem ou no desenho realizado pela experiência.
Na abordagem corporal de AV ocorre uma observação dirigida a cada parte do
corpo, assim como também na Eutonia e em outras práticas similares. A atenção
dirigida ao corpo (em movimento ou não) remete à sinalização dessa parte do corpo
no cérebro. O cérebro, segundo a neurologia, possui um mapa que indica sua conexão
com cada área do corpo. O mapeamento é acionado quando a área correspondente é
ativada; remete ao conceito de imagem corporal apresentado pelo psicanalista e
neurologista Paul Schilder.
No livro A Imagem do Corpo, Schilder afirma que formatamos uma imagem
corporal na mente e a adquirimos através das sensações da pele, dos músculos e das
vísceras. Em suas palavras: “Entende-se por imagem do corpo humano a figuração de
nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta
para nós”. (SCHILDER, 1994:11).
O curioso nesta informação é poder remetê-la à experiência prática da
abordagem corporal de AV, que ativa a parte específica do corpo que é sensibilizado,
com o intuito de interiorizar a dimensão dessa parte e poder, assim, adquirir uma
condução leve e suave do movimento. E uma das formas para que isso aconteça é
propor a sensação/percepção do osso até a pele – áreas de aquisição da imagem
corporal, assim como da propriocepção 32. Os ossos localizam a região estrutural –
nosso alicerce; as articulações orientam as direções como as posições do corpo, e a
pele absorve o volume do corpo.
Para Angel (apud Polo, 2005:378-379):
A pele é um regulador de tensões, portanto, devemos ter mais cuidado com
nosso glacê, quando tocamos nela (...) Pelo contato podemos modificar
todo o funcionamento corporal, tensão nervosa, metabolismo etc. É o meio
de reencontrarmos o tônus normal (...) É igualmente preciso despertar a
sensibilidade inclusive na própria estrutura. Trata-se de adquirir a
sensação de que são os ossos que se movem no espaço. Os músculos não
devem encarcerar os ossos, mas serem seus servidores. O domínio das
articulações dá sempre uma impressão de extremo desafogo.
32
Ver o próximo tópico.
32
33
Estes elementos foram mencionados no artigo Angel Vianna: a construção de um corpo, em Lições
de Dança 2, 2000:247-264, da autora do presente estudo.
34
Ver: o próximo tópico.
35
Ver: Teixeira (2000:257).
33
envolto pela sensação tátil da pele. Quando a pele é despertada para o movimento,
ela é acionada para acompanhar o ar que envolve o espaço – o corpo se moverá como
dentro de um receptáculo aéreo.
As articulações móveis, imóveis ou semimóveis são elementos que também
possibilitam uma percepção internalizada do corpo, trabalhadas como dobras que
ligam cada segmento do corpo ao outro. Esse elemento estimula principalmente a
pesquisa do movimento através de uma ou mais articulações, provocando a atenção
exclusiva para as possíveis dinâmicas, mobilidades e alterações na condução do
movimento.
As articulações podem ser orientadas pelos ossos. No caso das pontas ou
processos ósseos (cotovelo, joelho, acrômio, ápice da cabeça etc.), que se pontua em
várias direções no espaço, favorecendo, em conseqüência, o deslocamento de outras
partes do corpo. O mover livre entre dois ossos é canalizado minuciosamente para o
espaço articular, trazendo a percepção das cápsulas, ligamentos e tendões.
Entre as articulações existem aquelas que exigem mais atenção e mobilidade
isolada. Por exemplo, para cada vértebra da coluna ou para as articulações imóveis,
as articulações sacro-ilíacas, que quando sensibilizadas, causam um espaçamento ou
alargamento de sua área.
Voltemos à sinalização do osso na abordagem pedagógica do trabalho corporal
de AV: primeiro apresenta-se o osso, não pela figura (às vezes se faz uso do
figurativo, mas não é tão eficiente) e sim pela presença (um osso de cadáver) ou uma
reprodução similar. Depois, introduz o conhecimento anatômico do segmento ou
parte do corpo referida, para que possa ser reconhecida no próprio corpo dos alunos.
O objetivo é oferecer a percepção do que está sendo mostrado reconhecendo, assim, a
forma, o tamanho e a mobilidade possível do segmento dentro de cada aluno, em si
mesmo, para que a referência visual no Atlas ou no cadáver seja inferida juntamente
com o referido.
Dessa forma, ao tocarmos um osso, a sensação tátil é ressaltada através do
registro de sua forma, de sua textura, de seu volume e de sua consistência. Esta
experiência pode ser realizada com um osso de cadáver e com o seu próprio osso (em
áreas fáceis de serem tocadas) e provocará o que Schilder afirma: um dos processos
de construção da imagem do corpo é pelo toque. E, ainda, que: “Todo toque provoca
34
uma imagem mental do ponto tocado. Tais imagens visuais certamente são de grande
importância para a localização”. (SCHILDER, 1994:19).
Existe a constatação da estrutura em si mesmo, como foi colocado, mas
também a tentativa de descoberta da mobilidade com algumas das peças dos
esqueletos em mãos, através do reconhecimento de suas formas, absorvido tanto no
contato tátil (dos ossos) quanto na visualização no Atlas (representação figurativa).
A percepção do interior do corpo é incógnita e estranha à imaginação que
fazemos do corpo. As sensações são vagas, assim como a pele que exige uma atenção
especial. Desta maneira, a estimulação do entorno do corpo – nosso envelope/pele
precisa ser destacada, seja em qualquer situação: tocando um objeto, uma superfície,
o ar, as roupas etc. Segundo Schilder:
É de grande interesse o estudo das mudanças que ocorrem na sensação da
pele e da superfície tátil do corpo quando um objeto toca a pele ou
tocamos um objeto com as mãos ou com uma outra parte do corpo. Neste
exato momento, a superfície se torna leve, clara e distinta. As fronteiras
visuais e táteis tornam-se idênticas. É um fato psicológico notável que
sintamos distintamente o objeto, nosso próprio corpo e sua superfície,
ainda que eles não se toquem completamente. (SCHILDER, 1994:77-78).
Angel não negligencia o campo das sensações e percepções, pelo contrário, ela
os enfatiza pela experiência do “contato” 36. Utiliza vários contatos corporais, em
duplas, em trios, em grupos através da relação; sem falas, sem representações,
somente pelos sentidos que fazem aflorar sensações, prazeres, surpresas e
inquietações.
O meio circundante permite a entrada no interno, ajudando a processar uma
melhor relação com o “outro”, cuja interação independente de ser consigo (uma parte
do corpo tocando outra parte do mesmo corpo – mão tocando o pé), com outra pessoa
(qualquer parte de um corpo tocando outro corpo – costas com costas) e com objetos
(qualquer objeto ou superfície tocando qualquer parte do corpo – bambu na lateral da
perna ou todas as superfícies que tocamos, não estamos flutuando, portanto, tocamos
“algo” o tempo todo).
Este aprendizado de si mesmo ocorre através da sensibilização do nosso
envelope – a pele, que é responsável pela relação, pelo “entre” estabelecido pelo
mundo interno e pelo mundo externo; assim como para alcançar a harmonia tônica,
isto é, o equilíbrio das tensões do corpo.
36
A noção de “contato” é apresentada por Gerda Alexander, para diferenciá-la do tato (relação
afetiva) e que se assemelha a essa descrição de Schilder.
35
37
Na topologia (ciência dos espaços e suas propriedades) há uma figura em que não é possível
distinguir o seu lado direito do seu avesso. Chamada de Banda ou Anel de Möebius foi descoberta
por Möebius, em 1861. Lembra uma fita ou banda plana que, ao ser torcida e ligada em suas
extremidades, possui a propriedade unilateral de ser visto com os dois lados, simultaneamente.
36
38
Ver: Schilder (1994:49-51).
37
39
Ver: Schilder (1994:179).
40
Pensamento de Angel Vianna, extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo
(2005:379).
41
Sacks, Oliver. Rio de Janeiro, Imago, 1988.
38
O caso da dama sem corpo 42 trata de uma mulher que perde sua propriocepção,
isto é, a capacidade de perceber a postura, o tônus e o movimento do corpo no
espaço. Sacks o reconhece como um sentido que pode ser estudado tanto pelos
aspectos fisiológicos quanto psicológicos. Para ele, é mais um sentido – o sexto
sentido perdido, guardado ou mantido escondido.
Aquele fluxo sensorial contínuo, mas inconsciente, das partes móveis de
nosso corpo (músculos, tendões, articulações) pelo qual sua posição, tono
e movimento são continuamente monitorados e ajustados, porém de um
modo oculto para nós por ser automático e inconsciente. (SACKS,
1988:51).
Este sentido aparece diferenciado dos outros sentidos que estão despertos e
ativos no dia-a-dia. De qualquer forma, podem estar automatizados ou sem uma
aguda sensibilidade, mas quando degustamos algo o seu sabor aparece
imediatamente; odores fortes são evidentes quando passamos por eles ou quando eles
passam por nós; guiamo-nos pela visão, senão esbarraríamos constantemente em
algo; escutamos barulhos, ruídos, alguns, nem todos, mesmos que não estejamos
atentos; tocamos, pegamos, apertamos coisas, objetos, seres. Enfim, os cinco
sentidos estão, em princípio, despertos e em uso diário, externamente chegando a
nós.
Já o sexto sentido aqui referenciado como o sentido da propriocepção, nunca é
acionado ou nem mesmo estimulado pelos prazeres cotidianos. Ou seja, será que nos
damos conta da nossa postura ou da movimentação do corpo no espaço ou de nosso
tônus ao apreciarmos a gastronomia, a música, o perfume, os eventos artísticos?
Porém, a apreciação no movimento/dança não será uma necessidade do sexto
sentido? Será que ele está tão automático e óbvio – no que se remete às posições do
corpo – que jamais atentamos para ele? É como se não precisássemos conectá-lo, já
que o sentido é inconsciente, porém é automático? Então, toda ação automática é
inconsciente?
O que aconteceu com a moça que perdeu a propriocepção? Pelo que conta
Sacks, veio sem aviso prévio, antes de uma cirurgia, levando a associarem a uma
histeria de ansiedade que provocou uma desconexão com os circuitos de controle do
tônus e do movimento. Seu relato remetia à falta total do corpo – “sem corpo” como
ela diria. Foi detectado que “os lobos parietais estavam funcionando, mas não tinham
42
Idem, Terceiro relato do livro, p. 51-61.
39
com que funcionar” (1988:53). Somente depois de testes elétricos da função dos
nervos e dos músculos é que foi detectada a perda total da propriocepção, da cabeça
aos pés. E que sensação mais esdrúxula revelada de sentir-se sem corpo? A que ponto
o seu cérebro apagou de si sua carne?
Para Sacks, foi a falta do sentido dos músculos, dos tendões e das articulações,
portanto de quase tudo que engloba o corpo, que a levou a sentir um corpo cego.
Quer dizer, o sentido proprioceptivo faz o corpo ver-se em movimento, em postura e
sustentado e, portanto, perdê-lo é deixar de ver o corpo? Pelo que parece, na
perspectiva de Sacks, a propriocepção é um sentido do corpo interligado à visão e
aos órgãos do equilíbrio (sistema vestibular), pois trabalham juntos; a falta ou
deficiência de um deles é compensada pelos outros em conjunto 43. A paciente passou
a adquirir uma vida normal com auxílio da visão em uma intensa vigilância da
atenção exacerbada pela falta. Não tendo a propriocepção não podemos nos apropriar
do corpo associado, pois segundo Sacks:
(...) às amarras orgânicas fundamentais da identidade – pelo menos
aquelas da identidade corpórea, ou ‘ego corporal’, que Freud considera a
base da identidade (...) algumas destas despersonalizações ou
despercepções ocorrem sempre que há profundas perturbações da
percepção corporal ou imagem corporal. (SACKS, 1988:58).
43
Ibidem.
44
Ver: tópico anterior sobre os elementos trabalhados em Angel.
45
Idem.
40
46
Correspondem às sensopercepções: exteroceptivas (cinco sentidos), a propriocepção e as
interoceptivas (vinculadas aos órgãos internos) Ver: Luria (1991:8-15).
47
Ver: Capítulo I – Tópico 1.3 – Os elementos.
42
48
Pensamento de Angel Vianna, extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo
(2005:377).
49
Para António Damásio (neurologista português), existem vários aspectos do processo da
consciência que podem ser testados por meio dos seguintes fatores: primeiro, como foi exposto
acima, atualmente é possível traçar uma anatomia da consciência – agrupar os territórios cerebrais
segundo suas funções. Em segundo lugar, reconhecer a distinção entre a consciência e a atenção
básica (estado de vigília). Terceiro, a emoção pode ser ligada à consciência, isto é, uma suposição
verificada em situações neurológicas em que a emoção se apaga assim que a consciência se ausenta;
o que parece, mesmo sendo fenômenos distintos, a existência de algum mecanismo de estruturação
que os mantêm ligados. Quarto fator, a consciência pode ser distinguida entre o tipo simples e o tipo
complexa, ou seja, consciência simples ou central, cujo sentido de self é concernente a um momento
aqui (espaço, em algum lugar) e agora (tempo), e a consciência ampliada, cujo sentido de self é mais
complexo, possui muitos níveis e graus, tendo o passado e o futuro revistos correntemente na
condição do aqui e agora. No entanto, ela só se sustenta na existência da consciência central e não o
contrário. E, por fim, pode circunstanciar na teoria da consciência outras funções cognitivas para
uma melhor compreensão, tais como: a memória, o raciocínio e a linguagem, que colaboram com a
interpretação do que se passa no cérebro e na mente. Ver: Damásio (2000:30-36).
50
Ver: Gil (2001:173-175).
43
51
Este conceito, retirado de Leibniz, invoca a compreensão de que, no máximo de nossa capacidade de
assimilação das percepções, algumas são imperceptíveis ou insignificantes ou confusas ou não despertam
atenção. Desta forma, precisamos ser afetados por elas para serem captadas. Ver: Leibniz (1980:11-15)
52
Ver: Gil (2001:134).
53
Idem (2001:172-175).
54
Sabe-se que os movimentos da coluna acontecem em blocos: extensão, flexão, flexão lateral e
torção, e não pelas vértebras separadamente. Esta vivência permite a aquisição isolada do
movimento de cada vértebra.
55
Experiência já vivida por mim, exatamente como foi descrita por Gil. Os procedimentos e os
meios são semelhantes aos de Angel Vianna. Ver: Capítulo III – Corpo Aprendiz.
44
De acordo com Angel: “quando um bailarino conhece melhor como seu corpo
funciona, dança melhor, por isso vale saber dos ossos e músculos e não só dos passos
de dança”. (POLO, 2005:489). Simplesmente repetir conduz à padronização e ao
enrijecimento dos músculos, fechando o canal sensório e prazeroso com o corpo. Nos
relatos de Klauss Vianna: “a dança é um ato de prazer, de vida, e só deixa de ser
prazerosa e viva no momento em que passa a ser ginástica, exercício, competição de
força e de ego”. (2005:80).
O que Gil abrange nesta exemplificação é a noção da troca energética e da
abertura do espaço interno (zona) pela consciência do corpo. E deixa claro que não
houve atividade meramente física de execução de proezas musculares.
A consciência do corpo de Gil é um estado de impregnação (consciência) –
algo que nos auxilia na ligação e no reconhecimento de que pertencemos ao nosso
corpo e não ao outro corpo –, em que o inconsciente (corpo) é capaz de dar sentido
ao mundo. É uma concepção diferenciada da percepção de si, isto é, da consciência
fenomenológica (consciência de si) que dirige-se ao mundo/para fora, para a
percepção de algo como um objeto ou uma intencionalidade, a fim de recebê-lo ou
captá-lo.
Para o autor, a consciência do corpo dirige se “para dentro” do corpo, pelo
lado obscuro do mundo ou “para trás”, em contraposição ao colocar-se de “frente”
para o fato/fenômeno/mundo, em Ponty.
Abrir-se ao corpo não faz deste um objeto. (...) Como dissemos, abrir-se
ao corpo significa deixarmo-nos impregnar pelos movimentos do corpo. O
45
56
Tratado o segundo tópico deste capítulo – propriocepção.
46
57
Tratado no primeiro tópico do capítulo.
58
Denota o efeito indicado por Gil, de sensação de continuidade, isto é, de que o movimento está
sempre continuando, apresentado no inicio desde tópico.
47
59
Pergunta feita pela Revista Aplauso, em Julho de 1995, em um artigo intitulado: Angel Vianna –
Vida nova para os movimentos, de Denise Rockenbach.
48
60
Gerda Alexander, Mathias Alexander, Moshe Feldenkrais, de um lado e, Jersy Grotowski, Eugenio
Barba, Viola Spolin, Peter Brook, entre outros.
61
Depoimento extraído de entrevista com a autora, em 30/09/2006.
49
62
Jornal O Globo, 11 de dezembro de 1994, no artigo: O corpo já nasce sabendo, de Maristela Fittipaldi. Ver:
Polo (2005:422)
63
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005:422).
64
Não pretendo me ater ao tema dos dispositivos de poder institucional, sinalizado pelo filósofo
francês Michel Foucault, nos livros: Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1977 e Microfísica do Poder,
Rio de Janeiro: Graal, 1979 e já pontuado no livro da autora. Ver: Teixeira (1998: 31-33).
50
65
Na Conclusão do livro Conscientização do Movimento: Uma prática corporal, a autora da
dissertação apresenta algumas diretrizes relacionadas à conduta do orientador, tais como: o
orientador não tem função de analista, deve evitar comentários que relaciona postura corporal com
postura emocional; o orientador conduz a aula de forma tranqüila; ele proporciona ao aluno o
despertar da percepção e da sensibilidade corporal; ele deve ficar atento para não agredir o aluno
com exigências de relaxamento, enfim, deverá estar totalmente disponível para si e para o outro.
Ver: Teixeira (1998:90).
66
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005:379).
51
profissional, esta pessoa tenha um conhecimento grande de si e do que vai fazer com
o outro ” . (POLO, 2005:422).
A didática favorecida no trabalho corporal de AV compromete o
professor/orientador. A atitude, a conduta de disposição para si e para com o outro
surge através do aprendizado com o corpo. O corpo é o grande mestre. O veículo de
comunicação direta com o mundo 67 com base na sua fisicalidade, através dos
registros de textura, densidade, peso, volume, apoio, tato, gravidade, força, vetor,
espaço e tempo.
O corpo se manifesta no trabalho corporal de AV exatamente pela via dos
registros acima mencionados. Tomemos como exemplo a noção de espaço: todo
corpo preenche um espaço, todo corpo tem um volume, uma estatura, uma largura,
um contorno (pele) que o delimita no espaço. Esta é uma colocação básica. No
entanto, permitir que o corpo esteja aberto ao mundo, com estas peculiaridades
possíveis, não é condição absorvida de imediato. É necessária a vivência que irá
colocar o corpo e o espaço em evidência; a prática para entendermos que
preenchemos um espaço e neste espaço podemos circular sem desequilibrar, sem
esbarrar, sem atropelar o outro; a experiência para percebermos o espaço ao redor e
como nos encontramos nele.
Tudo isso funciona como uma revisão: de si, de seus hábitos, de seus modos
de se relacionar com o mundo, do modo como se caminha, aguarda, espera, escuta e
partilha o espaço com o outro. Isso poderá levar à observação da complexidade
humana, que envolve o social e suas influências, rotinas e costumes.
O orientador, para poder transmitir o trabalho corporal proposto por AV,
precisa compreender um saber provindo do corpo, isto é, reconhecer as evidências
dos dados físicos (peso, volume, tato, tempo, espaço, gravidade e tantos outros) no
comportamento corporal, tornando-se apto a orientar-se, respeitando os seus próprios
limites de habilidades, fraquezas, memórias, hábitos, condicionamentos vindos e
percorridos pelo corpo.
É a partir desta permissão, em deixar-se revelar, que o orientador do trabalho
corporal de AV será capaz de relembrar a sua espontaneidade ao transmitir a outros,
como uma rede de saber-próprio, o valor da educação a partir do corpo, obviamente
cada um com suas necessidades, inspirações, gostos e circunstâncias.
67
Ver: Capítulo I – Corpo Filosófico.
52
68
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005:309).
69
Ver: próximo tópico.
70
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005:385).
53
Uma mesma vivência realizada nesta abordagem corporal, pela segunda vez,
revela nuanças até então despercebidas, porque não se processa no âmbito do
mecânico, da ação repetida exteriormente. É o entendimento do interior do corpo que
abre possíveis camadas, que vão sendo expostas de forma gradativa em um outro
canal de captação do movimento. Assim nos revela Ester Weitzman 71, no depoimento
feito para o livro Conscientização do Movimento: uma prática corporal, da autora da
dissertação:
Até hoje, depois de dez anos fazendo os mesmos exercícios, vejo como
eles vão ficando diferentes. A gente precisa saber que precisa voltar para o
básico para perceber o quanto a própria escuta vai ficando diferente, para
saber em que pode se desenvolver, e não achar que as coisas ficam velhas,
que não fazem mais efeito, muito pelo contrário, saber que o mais simples
é sempre o essencial e é isso que tem de estar sempre vivo. (TEIXEIRA,
1998:99-100).
71
Ester Weitzman é formada pela Escola Angel Vianna (turma de 1985). Foi aluna da autora do
estudo, substituindo-a no curso técnico de bailarino, pelo qual foi formada, a partir de 1990.
Ministrou aulas de Expressão Corporal neste curso até 2000. Diretora e fundadora do Studio de
Pedra. Atualmente é professora de dança na UniverCidade, na PUC e coreógrafa e bailarina da
Companhia de Dança Ester Weitzman.
72
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005: 422).
73
Mosche Feldenkrais, criador de uma prática/método corporal conhecido como Consciência pelo
Movimento.
54
empenho? Como fazer para que o movimento ocorra sem esforço, seja leve e
prazeroso? Como fazer para que a espontaneidade corporal prevaleça, em detrimento
da submissão imposta pelo sucesso da demanda de que, quanto mais exercícios,
melhor para o corpo?
Neste trabalho não existe a preocupação de se chegar a um resultado
determinado, seja de movimento ou de postura. Sua validade está no percurso, no
entre, o que se passa quando se realiza o movimento. Assim nos revelam Paulo
Trajano 74, no depoimento feito para o livro Conscientização do Movimento: uma
prática corporal, da autora desta dissertação:
Já tinha feito esporte, ginástica olímpica. (...) tem uma forma pronta para
chegar, um ponto para chegar, é sempre uma coisa pronta para chegar a
algum lugar (...). A escuta do próprio corpo, dos mecanismos que levam a
chegar lá, a forma de uso, isso, na ginástica a gente não observava. O
percurso é observado na conscientização corporal. (TEIXEIRA, 1998:95-
96).
74
Ator e professor de Conscientização do Movimento no curso de Recuperação Motora através da
dança, na Escola Angel Vianna e na CAL.
75
As diretrizes apontadas neste estudo não são exclusivas do trabalho corporal de Angel Vianna. As
práticas corporais que estimulam o corpo-mente (Feldenkrais, Eutonia, Método Alexander e muitos
outros) utilizam também o toque, a imagem como a direção óssea.
76
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005:362).
55
77
Ibidem.
56
78
Esta imagem é conhecida, em Feldenkrais, como relógio pélvico.
79
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005:362).
57
3.3. “O que fazemos é orientar a pessoa para que ela relembre o que está
guardado dentro de si” 80
O início de uma aula proposta por Angel costuma ser rica em detalhes e
informações. Ela os utiliza no decorrer da aula e os alunos a escutam atentamente. A
orientação para o movimento provém de um tema (quadril, eixo, coluna, apoios etc.)
ou da observação dos movimentos dos próprios alunos.
Na necessidade de aproximação com e entre os alunos, a professora Angel
explicita o movimento através do corpo de um aluno/aprendiz. Esta tática favorece
um aprendizado corporal para todos. Por exemplo, ela convida um aluno para deitar
de costas (decúbito dorsal), com as pernas flexionadas e os pés apoiados no chão,
para trabalhar com o movimento de esticar (extensão) e dobrar (flexão) com as
pernas alternadamente.
O procedimento começa quando ela pede para o aluno deslizar o pé no chão
até estender a perna. Nesse momento, o movimento pedido é conduzido pela mão
(toque 81), que relaxa onde está tenso ou acorda a musculatura que deveria estar
desperta naquele movimento específico. Caso o aluno demonstre excesso de força,
ela, além de fazer uso do toque, utiliza a fala para que ele solte a planta do pé através
da pele, para que possa deslizar suavemente, sem trepidar. Orienta-o nas direções:
pé, joelho e quadril (direção óssea 82). Na ação contrária, de flexão da perna, solicita-
o para imaginar um fio (imagem 83) puxando o joelho para que ele possa usar as
articulações, evitando o uso de força muscular excessiva. Não somente a perna que
está em ação será acionada e atentada, mas todo o corpo o será, especificamente para
aquele que ali está como demonstrador.
Enquanto o aluno realiza o movimento, o orientador, desta maneira, sinaliza e
informa para todos (o demonstrador e os alunos) como o corpo reage à ação, como
80
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005:422).
81
Ver: tópico anterior.
82
Ibidem.
83
Ibidem.
59
compensa fazendo uso excessivo de tensão ou até de falta de tensão, como abandona
o corpo na ação e, assim por diante.
Estabelecido esse primeiro procedimento, o orientador continua indicando e
pontuando referências, para que o movimento mostrado seja realizado por todos de
forma consciente e não mecânica. A noção de movimento consciente, como estamos
aqui denominando, refere-se a uma ação realizada individualmente, de acordo com
padrões singulares no uso do tempo e do espaço, desvinculado de qualquer
necessidade de seguir um professor ou um modelo determinado.
A imagem (imaginar um fio de marionete no joelho), o toque (tocar com a mão
a área que o aluno movimenta) e a direção óssea (ajustar com as mãos ou com a fala
a distância da espinha ilíaca anterior/crista ilíaca, joelho e segundo dedo do pé) são
meios empregados pelo orientador para a condução de um movimento interno a ser
realizado por todos os alunos.
Portanto, os fundamentos para a realização do movimento são: detalhamento
exposto antes de sua execução pelo aluno – procedimento entre orientador e aluno
demonstrador, e sempre esclarecido durante o movimento, utilizando as diretrizes
que já foram sinalizadas (toque, imagem, direção óssea) 84.
No trabalho corporal de AV a conscientização através do uso do toque, da
imagem e da direção óssea permite trazer à tona o volume do corpo (adquirido pela
pele), a forma do corpo (adquirido pelos ossos) e a liberdade, flexibilidade e
maleabilidade corporal (adquiridos pelas articulações). Essa aplicação orienta e
integra a imagem do corpo, o sentido proprioceptivo e a consciência do corpo 85.
O professor utiliza a fala para a orientação do movimento propriamente dito,
além disto, corrige, sinaliza, pontua os segmentos do corpo que precisam de ajustes.
Isso possibilita o aprendizado do aluno escolhido, que recebe uma aula vivida e a
incorpora; ele é, no momento, um demonstrador, mas não representa um modelo
ideal, como se fosse substituir a figura do professor e, portanto, não será imitado
pelos outros alunos.
O modelo idealizado se dá quando o professor se enquadra em um modelo
formalizado ou projetado pelos alunos. Esta atitude vem de um modelo hierárquico
em que o professor se coloca superior ao aluno, esperando que todos o imitem. O
84
Ibidem.
85
Ver: Capítulo II – Corpo Sensível.
60
O orientador pode solicitar ao aluno que verbalize suas sensações. Isso pode
acontecer em qualquer momento da aula, não havendo a necessidade de os alunos
estarem sentados, uns de frente para os outros. O fato dos alunos continuarem em
estado de observação e de olhos fechados facilita a apreensão e exposição de suas
sensações de uma maneira menos exposta. Fica a critério de cada um comentar ou
não suas percepções/sensações. De imediato, aquele que foi surpreendido pelo
inusitado ou inesperado exclama frases, tais como: “Nossa! Parece que um lado
caiu!”; “Estou sentido a metade do meu corpo mais em contato com o chão”; “Sinto o
lado trabalhado mais forte”; ou ao contrário, pode comentar: “Estou sentindo o meu
lado trabalhado mais leve”; “Sinto um buraco no meu corpo”; ou ainda: “Eu não senti
diferença nenhuma”; “Não aconteceu nada comigo”; “Está tudo igual como
começou”. Para cada pessoa haverá um registro.
A escuta relatada das sensações leva o aluno a experimentar o si (porque
escuta a si mesmo) e o outro (porque escuta o outro). O mais importante de tudo isso
não é relatar uma resposta certa e sim permitir o contato com o corpo que fala através
de sensações. O corpo é sentido e suas sensações diferenciadas, subjetivas,
importando tanto àquele que o relata e o escuta quanto aos outros, que poderão
relacionar ou comparar com suas percepções.
O que importa na experiência do relato no trabalho corporal de AV são os
registros reais, físicos e momentâneos da vivência corporal.
Essas referências não estão na ordem do estabelecido. O que se propõe é
experimentar momentos corporais que oscilam entre: estar inerte/estar em
movimento; estar em postura (sustentação tônica)/estar em relaxamento, estar para
fora (exterior)/estar para dentro (interior).
Enfim, os procedimentos descritos permitem aprofundar na direção em que se
processa a consciência, e não a fixação em um padrão sensório-motor, como diria
Gil. O trabalho é feito com consciência através de três itens: envolvimento sugerido
pela repetição, porém não mecânica, mas aprimorada pelo aumento aprofundado das
percepções do movimento; pelo tempo propício e não acelerado e ansioso em
completar o movimento, mas sim, para vivê-lo intensamente no percurso e, por fim,
pela abertura de comentários que reafirmem as sensações que, por mais estranhas que
sejam, vivemo-las. Tudo isso conduzido em etapas, de modo a disponibilizar o corpo
para o movimento guiado pelo interior que se abre para o mundo.
62
86
Pensamento de Angel Vianna, extraído dos periódicos de Juliana Polo. Ver: Polo (2005:309).
63
3.3.3. “É um movimento” 89
87
Tema (Consciência do Corpo) tratado no capítulo II – Corpo Sensível.
88
Pensamento de Angel Vianna, extraído dos periódicos de Juliana Polo. Ver: Polo (2005:309).
89
Pensamento de Angel Vianna, extraído dos periódicos de Juliana Polo. Ver: Polo (2005:309).
64
90
Rodolf Von Laban, alemão, foi um grande teórico do movimento, elaborou um sistema em que
analisa a intensidade, a força e o fluxo do movimento.
65
91
A referência específica dada a Laban corresponde à influência de Angel, no período em que esteve
em Salvador (dois anos) em contato com Rolf Gelewski, como bailarina e professora. Gelewski foi
diretor da escola de dança da Universidade Federal da Bahia na década de 60, e transmitiu seu
conhecimento sobre Laban e Mary Wigman. Ver: Tavares (2002), em anexo – entrevista com Angel
Vianna.
66
teatro, segundo Jean-Jacques Roubine 92, ou teatro dos novecentos, como diria
Eugênio Barba 93, que são, notadamente: Artaud, Stanislavski, Meyerhold, Decroux,
Craig, Grotowski, Brook, o próprio Barba.
Segundo Márcia Strazzacappa, no artigo: As Técnicas corporais e a cena:
No teatro, as técnicas corporais foram desenvolvidas por diretores que
buscavam, assim como os coreógrafos, o domínio do ator para a perfeita
adequação à estética por eles idealizada: a biomecânica de Meyerhold, as
ações físicas de Grotowski, as técnicas extra-cotidianas do ator de
Eugenio Barba, a mímica de Etienne Dcroux, e, no Brasil, a mímesis
corpórea de Luis Otávio Burnier, entre outros. (GREINER e BIÃO,
1998:167).
92
Roubine, Jean-Jacques. Introdução às Grandes Teorias do Teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003. Neste livro, Roubine traça um panorama da complexidade teórica do teatro ocidental e os
percussores da renovação e da ruptura, com modelos superados ou estagnados.
93
Barba, Eugenio, no livro A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo:
HUCITEC, 1994. Neste livro, Barba analisa o desenvolvimento das técnicas de corpo destes grandes
renovadores do teatro.
94
Pensamento extraído dos periódicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo (2005:432).
68
são “CsOs” e buscam-no por intermédio da dor 95. Não que exista um tipo melhor ou
pior, é a escolha de cada um – a intensa busca pelas sensações. Esta intensa procura
está fora da ordem, do organizado, do estipulado, do esperado, do conduzido, do
informado.
O paradoxo do corpo nos artifícios para desfigurar, isto é, para modificar
como necessidade de experimentação é o de desfazer qualquer cristalização 96. A
construção e a destruição são tendências humanas básicas: umas cristalizam
unidades, asseguram pontos de descanso e ausência de mudança e outras obtêm um
fluxo contínuo, uma mudança permanente. Porém, a aceitação e o julgamento moral
das tendências humanas (que são formuladas num modo de pensar o mundo), não
sabem lidar com o “CsO”.
A experimentação ou um conjunto de práticas, segundo Deleuze e Guattari,
fazem do “CsO” desejos e impulsos que precisam de prudência, não que seja
controlado, mas permitido, possível. É paradoxal. É a consciência do corpo de Gil. É
o Teatro da Crueldade de Artaud – experimentação ou um conjunto de práticas.
Os impulsos e os desejos do “CsO” se manifestam através da entidade psíquica
ou força inteligente, segundo Artaud, que aparece através de uma devastadora
afetação, que necessariamente não precisa ser contagiosa como a peste 97, mas é
contagiante, por isso assemelha-se à peste.
Essa força começa sua trajetória no sensível/corpóreo e compõe a fisionomia
espiritual do mal/peste de Artaud. “Como uma dor que, à medida que cresce em
intensidade e se aprofunda, multiplica seus acessos e suas riquezas em todos os
círculos da sensibilidade” (1999:18). É a desorganização física, que é a imagem da
peste, que é o “CsO”.
O que leva Artaud perseguir no ator – a sensibilidade que inventa personagens
intempestivamente e entrega-as ao público, igualmente inerte ou delirante. O que nos
levam a crer na experimentação ou conjunto de práticas como canal de possibilidade
para a preparação do ator, bailarino, que inclui o corpo em sua mais autêntica
atuação.
95
No terceiro volume de Mil Platôs, Deleuze e Guattari desenvolvem, no platô 28 de Novembro de
1947 – como criar para si um corpo sem órgãos, o conceito de CsO. Ver: Deleuze e Guattari
(1996:10-14).
96
Isto já foi sinalizado pelo conceito de Imagem do corpo, em Schilder – Ver: Capitulo II – Corpo
Sensível.
97
Ver: Artaud (1999:12-16).
71
98
Pensamento extraído da revista Nós da Escola. Ver: Petrocelli (2007:6).
99
Ver: Introdução, onde a autora do estudo cita os documentos (estudos sobre Angel Vianna) que
serviram de suporte para o estudo: A tese: Angel Vianna – A pedagoga do corpo, para o Mestrado
em Teatro (Unirio, em 2004), autoria de Maria Enamar Neherer Bento, que trata exatamente de
inserir Angel Vianna neste contexto; e a pesquisa pela oitava bolsa RioArte dos periódicos do
acervo de Angel Vianna, organizada por Juliana Polo, onde é mencionada a participação de Angel
como coreógrafa, preparadora corporal ou direção do movimento, em um total de 20 peças, um filme
e um show. Tratado no oitavo tema: Teatro.
100
Ver: Capítulo III – Corpo Aprendiz.
72
que leva à superação, pois viver é perigoso; corremos riscos, sentimos dor e lidamos
com desafios.
Há uma colocação em Grotowski que reforça essa afirmativa: “com o corpo,
com a carne não estão (os atores) à vontade, estão antes em perigo” (2007:175).
Acreditar em si é confiar no corpo, segundo Grotowski, pois o corpo é a via que
favorece a confiança necessária para atuar, ou melhor, estar na vida. “Há uma falta
de confiança no corpo que é, na realidade, uma falta de confiança em si mesmo. É
isso que divide o ser”. (2007:175). O corpo, para Grotowski, é dúbio, pois o
aceitamos e o rejeitamos ao mesmo tempo. Há uma certa insuficiência no corpo que
gera insatisfação, o que faz torná-lo inimigo. Insatisfação e estranheza em lidar com
o corpo e aproximar-se literalmente com a carne, o osso e a pele 101. Esta estranheza
se relaciona à não familiaridade com o próprio corpo e o intricado contato interior
com suas contradições: prazer e dor, restrição e liberdade, clareza e confusão. O
corpo é paradoxal e a maneira de lidar com suas inquietações se dá pela comunhão
consigo mesmo. Angel indica apropriar-se dele sem massacrá-lo; solicita pensá-lo e
senti-lo.
Para Grotowski, o ator tem mais bloqueios no plano de sua atitude em relação
à aceitação de seu próprio corpo do que no plano meramente físico, de execução de
habilidades. Sua intenção, na preparação do ator, corresponde à liberação dos
impulsos vivos do corpo. “(...) Impulsos quase invisíveis, que tornam o ator
irradiante, que fazem com que mesmo sem falar, fale continuamente, não porque quer
falar, mas porque é sempre vivo”. (GROTOWSKI: 2007:169).
Por isso sua técnica corporal “não se baseia em uma coleção de habilidades”
(1992:32). Exige amadurecimento, total despojamento e disposição, isto é, uma
doação de si mesmo.
Habilidades se adquirem, treina-se, domestica-se o corpo, sendo assim, é
necessário inserir no trabalho corporal a ação consciente e não mecânica. A atividade
física de condicionamento dos músculos, articulações e tendões 102 não pertence à
abordagem de um corpo sensível tratado por Grotowski, assim como,
veementemente, em Angel.
101
Conforme tratado no tópico anterior.
102
Ver: Capítulo III – Corpo Aprendiz.
73
103
Visto pelo conceito de José Gil, no Capítulo II – Corpo Sensível.
74
104
Ver: Capítulo III – Corpo Aprendiz, 1º princípio.
75
Angel aliou a vida e a arte de forma artesanal e não tinha a intenção, neste
ambiente, de produzir corpos em série. Segundo Grotowski, no livro Em Busca de um
Teatro Pobre pesquisa:
(...) significa que abordamos nossa profissão mais ou menos como o
entalhador medieval, que procurava recriar no seu pedaço de madeira uma
forma já existente. Não trabalhamos como quem procurava recriar no seu
pedaço de madeira uma forma já existente. Não trabalhamos como o
artista e o cientista, mas antes como o sapateiro, que procura o lugar exato
no sapato para bater o prego. (GROTOWSKI, 1992:24).
105
Ver: Petrocelli (2007:10).
77
CONCLUSÃO
106
Ibidem.
107
Encontrei no artigo As técnicas corporais e a cena, de Márcia Strazzacappa, práticas pertencentes
à educação Somática (Alexander, Feldenkrais, os Fundamentos de Bartenieff, a ideokinesis de
Mabel Tood, Lulu Sweigard e Irene Dowd, a Eutonia de Gerda Alexander). Ver: Greiner e Bião
(1998:167). Havia já tratado de algumas delas como práticas corporais (Feldenkrais, Alexander e a
Eutonia de Gerda Alexander), situando-as lado a lado com Angel Vianna, para a concepção de
trabalho corporal com consciência. Ver: Teixeira (1998:41-56).
108
A terminologia de educação somática vêm sendo apontada para referenciar alguns métodos corporais. No
entanto, ela ainda precisaria ser discutida. A abrangência do trabalho corporal de Angel Vianna que inclui o
campo artístico assim como a do seu companheiro de vida (Klauss Vianna), por exemplo, indica uma outra
elaboração que não se resume ao termo somático.
78
109
Conforme analisado no Capítulo II – Corpo Sensível.
79
110
Capítulo II – Corpo Sensível.
80
111
Uso esse termo em referência à paciente do neurologista Oliver Sacks, que perdeu o sentido da
propriocepção, e se sentia desencarnada, isto é, sem corpo. Comentado no Capítulo II – Corpo
Sensível.
81
112
Ver: Polo (2005: 379).
82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FILOSOFIA:
DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972 – 1990. Rio de Janeiro: Editora. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora
34, 2 o ed, 1992. (Coleção TRANS)
GIL, José. Movimento Total – O Corpo e a Dança. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.
PRÁTICAS CORPORAIS:
EDUCAÇÃO:
TEATRO:
ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: WILLER Claúdio
(sel. e notas) Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983.
BROOK, Peter. A Porta Aberta. Rio de Janeiro, 2 o ed: Civilização Brasileira, 2000.
85
OUTROS:
SACKS, Oliver. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. Rio de
Janeiro: Imago, 1988.
DISSERTAÇÕES E TESES:
SILVA, Narciso L. Telles. Teatro de Rua: dos grupos à sala de aula. Tese de
Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do
Rio de Janeiro UNIRIO, Programa de Pós-Graduação em Teatro, 2007.
PESQUISA:
REVISTAS:
BONDIA LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista
Brasileira de educação, n. 19, 2002.
PETROCELLI, Renata. Histórias que o corpo conta. Revista Nós da Escola. Rio de
Janeiro: Ano. v. 4, n. 46, 2007.
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COLEÇÕES:
INTERNET:
http://www.Efdeportes.com/efd71/imagem.htm