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Quebec cidade do Canadá, segunda-feira dia 07 de Março de 2022

05h35min

O dia se iniciou como qualquer outra segunda-feira de Março, com a movimentação


recorrente dos clientes de sempre e alguns rostos novos na cafeteria. O cheiro forte e
calmante do café misturado com o doce aroma de canela feito pelo Mano começava a
impregnar o ar da cozinha até o balcão do qual estava escorada em quanto observava o cintilar
dos sinos da porta de entrada misturando-se aos poucos com o sorriso cordial e caloroso do
senhor Benjamin, um dos clientes mais fieis da cafeteria e um bom freguês. Sorrio para a
minha colega de trabalho em quanto pegava o cardápio junto ao meu bloquinho de anotação,
já tinha uma idéia vaga do que o senhor Benjamin iria pedir naquela segunda-feira assim como
as anteriores e as que viriam a seguir, mas de praxe era o meu trabalho manter o cardápio
sempre ao alcance do cliente. Arrumo de maneira rápida meu uniforme, ajeitando o crachá
com a minha identificação e meu cargo, antes de caminhar alegremente em direção a mesa
um pouco mais afastada das outras, em um canto bom o bastante para escutar a frequência
do toca fitas e em um ponto estratégico para observar a movimentação das pessoas
caminhando pela calcada e ainda assim aproveitar os poucos raios de sol que entrava pela
janela de vidro, uma boa vista para ler em quanto toma um bom café.

— Bom dia senhor Benjamin, o senhor vai querer o de sempre?

— Bom dia. Por favor, minha bela jovem, o de sempre para esse velho cansado e caduco. —
seus belos olhos me faziam pensar em dias calorosos e felizes, aconchegantes e ternos,
embora pudesse jurar que suas feições me fossem familiares — Mais dois pedaços de bolo de
chocolate, se não for incomodo. — concluiu, voltando sua atenção para o caderno de capa
desgastada que sempre o via segurando com tamanha ternura e afeto.

— E sempre um prazer enorme atende-lo, senhor Benjamin. — termino de anotar em meu


bloco apenas por formalidade e controle de pedidos antes de concluir minhas palavras. — Em
breve o pedido do senhor será entregue.

A cafeteria conseguia carregar um estilo próprio entre as suas paredes revestidas de preto e
branco, decorações antigas entre seu ar clássico, temático e místico. Costumávamos receber
muitos pedidos de alugação para festas temáticas e aniversárias infantis, se tratava de um
lugar mágico e acolhedor, familiar. Não e atoa que já estava na família da dona Merlin a
gerações.

A entrada revestida em vários tons de preto com pequenos detalhes que dava um charme a
mais ao ambiente, na parede de entrada duas luminárias localizada em cada canto, a porta
dupla que me lembrava muito a filmes antigos do Charlie Chaplin e as luminárias apenas
acentuava a decoração, as janelas largas e altas que dava acesso a um park central,
normalmente bastante movimentado pela manhã e principalmente pela tarde. A cafeteria
continha dois sinos, um que ficava ao topo da porta de entrada, usado para sinalizar o entre e
sai e o outro no canto um pouco mais afastado, em uma parede ao lado do caixa – apenas
tocado em momentos especiais ou quando estávamos felizes com algo ou com a vida –
costumava ficar imaginando e criando historias na minha cabeça todas as vezes que um cliente
tocava o sino da felicidade, nome dado aos clientes e batizado pela dona Merlin.

— Um expresso longo duplo; duas tortas de maracujá; duas fatias de bolo de chocolate; e uma
garrafa de água para a mesa treze Gigi.

Meu uniforme parecia mais pesado que o normal, a exaustão era presente também, quase
como se fosse uma velha amiga. Não conseguia me lembrar que horas tinha dormido ontem a
noite e muito menos se tinha de fato chegado a dormir em algum momento, até o momento
estava conseguindo conciliar a faculdade, trabalho e o meu mais novo emprego de meio
período de baba. Cecília costumava reclamar de toda atenção que estava recebendo de uns
tempos para ca devido a descoberta da sua gravidez, mais no fundo suspeitava que ela estava
gostando de ser paparicada o tempo todo.

— É pra já! Um expresso longo duplo; duas tortas de maracujá; duas fatias de bolo de
chocolate; e uma garrafa de água saindo no capricho, para o senhor bonitão.

Volto a inclinar meu corpo sobre o balcão bem decorado em granito preto em quanto
observava Gigi preparando os cafés em quanto jogava os ingredientes de um lado para o outro
em um desempenho bonito de se ver aos olhos, gostaria de ter o mesmo equilíbrio que minha
colega de trabalho tinha em outros aspectos da vida. Sou acordada dos meus devaneios com o
estar de dedo de Gigi e seu sorriso cálido e singelo de sempre, tinha sorte de ter uma patroa
gentil e doce e ainda mais sorte de trabalhar junto a uma equipe, embora tenha presenciado
atitudes desagradáveis e desumanas algumas vezes. Resmungo alguma coisa incoerente
envergonhada demais com a minha distração para me importar com as palavras desconexas e
isso pareceu servir como um gás a mais para o olhar malicioso e ainda assim preocupado de
Gigi em minha direção. Quis enfiar a cabeça no primeiro buraco na minha frente, assim como o
avestruz que costuma esconder a cabeça em situações que considerava perigosa. Reparei
apenas naquele momento na bandeja feita diante dos meus olhos, o trabalho me chamava e
os clientes na maior parte do tempo tinham presa. Respiro fundo por alguns segundos em
quanto me preparava para dar o meu melhor sorriso, isso pareceu ser o suficiente para
convencer Gigi que estava bem e adiar um pouco mais a conversa que eu sabia que em algum
momento aconteceria.

Com a bandeja em mãos e a masca sorridente nos lábios, me daria um gás a mais por algumas
horas ate o fim do meu experiente chegar. Já tinha planos traçados na minha mente, me jogar
na cama e dormir até o dia seguinte e com sorte acordar no meio da noite e comer a pizza
gelada no fundo da geladeira, junto a um chá que costumava ter para emergências. Embora
boa parte de mim sabia que as coisas não seriam dessa maneira.

Expectativas versos a realidade de uma mulher adulta, responsável e com contas para pagar.

O que me confortava era a musica que tocava ao fundo, calma e serena. Joel dançava de
maneira desengonçada mais contente por entre as mesas em quanto limpava e recolhia os
talheres sujos, poderia não ser um dos melhores dançarinos do mundo, mas em contra partida
estava contagiando os clientes. Balanço minha cabeça ao ritmo da musica, começando a entrar
no embalo, enquanto esquecia um pouco o cansaço, embora mantivesse meus movimentos
contidos e reservados.

Até mesmo Gigi que não era muito fã de Joel naquele momento se permitiu retransformar
suas manobras para se adaptar adequadamente a musica e ao ritmo. Poderia contar nos dedos
a quantidade de pessoas que realmente sabia a tradução da musica e de fato estava curtindo
tanto a musica como a melodia dela, seria uma dessas pessoas se não tivesse escutado Cecília
colocado para tocar por tanto tempo em quanto costumávamos fazer a nossa rotina matinal
de sempre.

Poderia jurar que Cecília tinha escutado a musica de primeira apenas pela sua pequena
obsessão, estranha, maluca e fora do normal por borboletas. Na primeira vez que escutei a
mais nova obsessão de Cecília pude sentir a melodia grudar na minha cabeça e mais tarde
entender melhor a letra e a partir daquele momento tinha se tornado a nossa musica.
Aproveito a pequena oportunidade e distração dos clientes para mandar um breve áudio a
Cecília com a nossa musica tocando ao fundo, poderia não ser muita coisa, mas sabia que ela
dentre toda a população do mundo entenderia as minhas palavras não ditas em voz alta.

14h31min

— Não estou escondendo nada — eu disse a Gigi como se as minhas palavras pudessem
refutar as paranóias da cabeça da loira agora rosada.

Genevivi ou como gostava de ser chamada Gigi, poderia muito bem ter uma das típicas garotas
padrões de Quebec no Canadá. Poderia mais não era e isso a tornava a sua beleza única. Gigi
não se encaixava nos padrões de “corpo perfeito” o que particularmente nunca entendi como
esse padrão era criado, todos os corpos não deveriam ser perfeitos, por serem diferentes?

Gigi poderia não ter um corpo padrão, mas em compensação tinha curvas acentuadas e
formosas que daria inveja a qualquer mulher, um belo rosto redondo e gordinho que
combinava muito bem com as covinhas rasas em cada canto da bochecha, boca carnuda e
cheia e os olhos, olhos cheios e redondos — pretos como dois pedaços de carvões — sua pele
sempre leitosa e bem cuidada. Genevivi poderia não estar dentro dos padrões de beleza, mas
ainda era uma das mulheres mais bonitas, engraçadas, fortes que tive o privilégio de conhecer.

Estico meu corpo para trás, sentindo minhas costas estralarem de alivio. Não saberia dizer que
parte do meu corpo agradecia mais pela pequena pausa, minhas pernas por caminhar de um
lado para o outro em quanto carregava bandejas pesadas de comida em um braço só, os pés
pelo sapato apertado demais e que fazia calo ou a coluna pelas noites que dormi de mau jeito
em cima de algum projeto para a faculdade. Fecho os olhos, aproveitando para descansar as
pálpebras. O chão já estava limpo, brilhando de tão limpo.

Abro os olhos no mesmo estante que começo a escutar a gritaria de sempre, Gigi como os
punhos da mão direita fechados em quanto apontava furiosamente a mão esquerda para o
peito largo de Joel em tom acusatório, já estava tão acostumada com essas coisas que nem
chegava a me preocupar mais, Joel poderia ser facilmente um dos homens mais assustador e
alto, mas em compensação morria de medo de Gigi com a sua famosa colher de madeira o que
chegava a ser cômico. Dava para notar o medo nos olhos castanho-esverdeados de Joel em
quanto tentava se afastar cada vez mais, em um ato inútil, mas que poderia prolongar um
pouco mais sua vida.

— Lizzie, diga a essa maluca que eu não fiz nada — Joel praticamente cuspiu as palavras de sua
boca, engolindo em seco, segundos depois — Não lembro de ter feito nada errado, dessa vez
para ela estar tão brava comigo.

Suspirei.

— Joel? Você sabe que a Gigi não e nenhuma maluca.

Naquela altura até mesmo Anthony estava observando da cozinha em quanto segurava seu
típico livro de receita feita por ele mesmo, algumas criadas outras aprimoradas. Rindo da
situação, em quanto cochichava alguma coisa com sua esposa, caixa e gerente da cafeteria
Mei. Reviro os olhos, prevendo que a discussão não acabaria tão cedo, minha sorte era que
não estava com dor de cabeça, mas poderia estar ate o fim do meu experiente. Gigi não
precisou de convites antes de começar a explicar o real motivo da sua raiva, pelo seu colega de
trabalho.

— Esse idiota derrubou e misturou os produtos semanais para entrega, sua anta. Esses
produtos e para entregar amanha, logo cedo.

Não tinha como ajudar Joel, todos da cafeteria sabiam que Gigi levava muito a serio seu
trabalho de repositória no estoque de café, cargo que ela mesma pediu para ser colocado na
sua carga horária e que foi bem vista pela dona Merlin. Bufando de raiva a ponto de quase
começar a chorar, Gigi orgulhosa como sempre deu meia volta, voltando para o estoque de
produtos pequenos — um quarto especial onde guardávamos nossos cafés para entrega ou
qualquer outro produto que não seja perecível e que pudesse ficar dois dias fora da geladeira
— pus a mão no ombro de Joel para confortá-lo.

— Tudo bem, Lizzie. Eu entendo, acho que fiz mancada dessa vez.

Corri os olhos pelo cômodo, observando cada uma das mesas numeradas, se não tinha deixado
passar alguma sujeira despercebida e nada, para o meu alivio.

— Só para registrar, ela também me deixava com medo — confessei. Ouvi alguns risos de
Anthony e Mei em concordância as minhas palavras. — Mas você sabe que ela leva muito a
serio seu trabalho com a seleção dos grãos de café dos clientes.

19h58min

Anthony limpou a garganta para anunciar alguma coisa, já que estávamos na reta final para
fechar a loja, costumávamos fechar mais cedo na segunda-feira e abrir mais cedo.

— Estou testando algumas receitas novas para incluir no cardápio do próximo mês, gostaria
que vocês provassem para saber... — ele gesticulou sem jeito, em quanto tentava esconder o
fato de que estava com vergonha — Se está tão bom ao ponto de serem colocadas no cardápio
e na vitrine.

— Tony, meu amor. Sua comida e sempre espetacular.

Balanço minha cabeça em concordância, ocupada demais com a para começar a bajulá-lo da
maneira que Anthony merecia.

— A senhora dona Mei falou pouco, mas falou bonito.

Joel na maioria das vezes poderia ser considerado um completo galinha, canalha e o ultimo
homem de quem poderia nutrir algo além de colega de trabalho, fora que não duvidava nada
que ele já tinha dormido com metade das nossas clientes mais regulares, mas nos melhores
momentos em quanto não estava no centro dos holofotes dava para observar uma segunda
camada e isso me fazia não odia-lo por completo, esses breves e raros momentos de gentileza.

21h23min

— Par Dieu, Elizabeth!

Cecília reclamava enquanto cuspia para fora o pedaço do Cupcake que tinha feito, uma das
receitas maravilhosas que tinha pegado emprestado da cafeteria. A ingrata ao invés de
agradecer pelos meus esforços na cozinha usava seu tom francês chique para menosprezar
minha nova iguaria feita especialmente para ela, que imediatamente sem pensar duas vezes
fez sua típica cara de nojo, examente quando algo a desagradava. Cecília costumava fechar os
olhos em quando colocava sua língua para fora de lado, uma mania que ela tinha adquirido do
seu pai com o tempo e que eu particularmente achava muito fofo, mas que ainda assim
expressava seu descontentamento com algo, principalmente quando fingia gostar de alguma
coisa que eu fazia, apenas para me agradar ou de vez em quando para caçoar de mim e dos
meus dotes culinários que não era um dos melhores.

— Credo Cecília, ingrata... Nem deve estar tão ruim assim!

Foi a minha vez de experimentar. Tendo em mente todos os ingredientes que tinha colocado
na massa, era impossível estar ruim daquela forma.

Pelo menos era o que tinha em mente, segundos antes de colocar na boca. Assim que
experimento o bolinho, o sabor amargo da massa se expandiu como uma avalanche sem
freios, dançando de um jeito atrapalhado pela boca, não cogitei fazer o mesmo que Cecília, e
segundos depois nossas caretas não eram tão indiferentes assim.

Com certeza tinha esquecido de colocar o açúcar.

— Ok, isso está pior do que imaginei, desisto!

— Não é para tanto my Darling. Só um pouco mais de prática e atenção... E quem sabe talvez...
Um pouco de açúcar, também?
A risada doce e cativante de Cecília sempre foi uma das coisas que mais me fascinava. Ela não
ria apenas com a boca, os olhos dela também brilhavam junto. E isso me fazia querer sorrir
também, mesmo sabendo que talvez fosse motivo de chacota. Em um momento de distração
acabo por pega-la acariciando sua barriga saliente por cima do vestido colorido, que a mesma
tinha optado por usar dentro de casa. Cecília tinha me dito que se tratava de um presente da
mãe de Nicholas e que a mesma usou na sua gestação do seu primeiro e único filho.

— Viu Catarina, sua titia quis te envenenar com uma das gororobas que ela aprendeu no You
Tube, uma das maneiras erradas de usar a internet.

Meus dedos foram rapidamente em direção ao braço exposto de Cecília, puxando sua pele
num doloroso beliscão, antes que a mesma regozijasse da minha cara. Cecília me repreendeu
rapidamente com um tapa certeiro na mão direita, reclamando logo em seguida, com uma
falsa expressão de dor no rosto, ela poderia muito bem ser atriz de alguma filme/serie. As
emissoras de TV estavam perdendo uma ótima garota propaganda.

— Não acredite nela Kali, sua mãe que não tem paladar refinado para as minhas iguarias —
acabo por mostrar a língua, em um gesto um tanto quanto infantil da minha parte, exibido-a
como uma criança birrenta.

Cecília começou a rir novamente, enquanto se voltava para a mesinha de centro onde habitava
um bom chá de camomila, creio que para limpar o gosto horrível que havia ficado na boca.
Segundo a mesma quem tinha preparado fora o próprio Nicholas, antes de sair para trabalhar,
talvez? Pelo menos era isso eu imaginava que ele fosse fazer. Cecília não chegava a comentar,
e como eu e o noivo da minha melhor amiga nunca fomos de fato muito próximos. Não tive
interesse em saber sobre o seu real paradeiro.

— Agora, falando sério.

Cecília tinha a pele meio amorenada, junto a um corpo de dar inveja a muitas mulheres e ao
ponto de ser desejada por muitos homens. Desde que me lembro por gente, em todas as
nossas memórias de infância. Cecília sempre manteve sua franja, poderia ser considerado uma
de suas marcar registradas, mas o que realmente chamava atenção eram os seus olhos. Seus
olhos eram de um azul tão matutino, me lembrava os céus logo pela manhã, cristalinos e
sinceros.

Não demorou muito para Cecília me dizer o que realmente estava lhe afligindo naquela noite,
ate por que não costumava existir segredos na nossa relação.

— Pelo que os médicos me disseram Kalin vai nascer no próximo mês, e ainda tem essa
viagem que Nick preparou para convidar as pessoas formalmente para o nosso casamento.

O suspiro pesado à fez perceber meu incomodo. Nicholas roubou o coração da minha
companheira de vida, minha melhor e talvez única amiga que tive o privilégio de cultivar por
tantos anos. Nicholas e eu não éramos muito amistosos um com o outro, brigávamos algumas
vezes às escondidas, por um milhão de motivos diferentes. Mas tentávamos manter a paz por
amar a mesma menina/mulher. Ainda mais quando Cecília recebeu a informação da sua
medica de que sua gravidez era de alto risco. Naquele momento ambos levantamos bandeira
branca. Tínhamos maneiras diferentes de amar Cecília, mas ainda assim era amor. Cecília
continuou a falar.

— E ele gostaria que fizéssemos o casamento em sua cidade natal, perto de sua mãe e de seu
pai... — sua voz soou mais baixinha que o normal.

Que filho de uma boa mãe.

Por dentro, o queimor da angústia subia pelas paredes do meu ser. Com meu mísero salário de
garçonete não conseguiria pagar sequer a passagem ou a hospedagem de um hotel na Itália,
era isso ou ser jogada para fora do minúsculo apartamento que vivia por mais um atraso de
aluguel.

O famoso, devendo e luxando.

Mantive a calma e mostrei meu entusiasmo para Cecília que pareceu tão surpresa quanto eu.
Não deixaria minha situação precária estragar um dos melhores dias da vida dela, até por que
seria a primeira vez que Cecília iria de fato conhecer a mãe de seu futuro marido e não pela
tela de um notebook ou em uma chamada pelo celular.

—Isso será fantástico, Cecília. Já estou até imagino você chegando de vestido de noiva e...

— Eu disse que não!

Ela me cortou antes que mesmo que eu pudesse terminar minha frase. Meus olhos
praticamente saltaram das órbitas que o seguravam.

— Ficou louca? Cecília, você ficou louca? –indaguei.

— Lizzie. Estou sabendo de tudo, sua mãe me contou... Ela me contou tudo.

Obrigada, Raquel. Muito obrigada por abrir essa sua enorme boca e estragar mais um pouco a
minha vida, que já não e muito favorável.

— Ela me contou que você está por um fio de perder o seu apartamento, não vou deixar você
arcar com despesas tão caras... Então.

Ela se levanta rapidamente, cortando a nossa conversa ali mesmo. Conduzindo suas pernas
longas em direção a cozinha, voltando logo depois com uma grande caixa aveludada, sendo
enfeitada por um laço azul escuro no topo.

— Cecília...

Minha cara de esgotada e envergonhada a fez me cortar novamente.

— Sem reclamações, abra logo! Já vou avisando que não aceito devolução.

Depositando o objeto em minhas pernas. Cecília ansiosamente pediu em silencio para que eu
abrisse. E assim o fiz, puxando a fita acetinada e vendo que dentro da caixa estava um lindo e
longo vestido rose claro, com detalhes em renda e mangas longas, logo ao lado do embrulho
havia um envelope que continha letras grandes e objetivas, dava para ver que tinha sido feita a
mão, embora a caligrafia fosse encorpada e delicada.

23h23min

— POR QUÊ? — a pergunta tinha simplesmente saltado da minha boca, sem os famigerados
filtros para impedi-la de soar rude e grotesca.

Estendi as mãos em alerta para sinalizar a mim mesmo que seria melhor continuar mantendo a
conversa em tom baixo e amistoso, Cecília estava no andar de cima da casa, provavelmente
dormindo e isso não mudava o fato de que estava conversando/ discutindo com seu quase
noivo em quanto segurava uma colher de pau ensopada de sabão. Entretanto, ameaçá-lo
também não diminuía a preocupação que começava a percorrer por entre minhas entranhas.
A culpa talvez não seja apenas dele, não totalmente, eu entre todas as pessoas do mundo
deveria mais do que saber da capacidade sobrenatural e do poder gigantesco de persuasão de
Cecília.

— Por quê? — perguntei novamente, indignada pelo completo silêncio de Nicholas — Por qual
motivo esconder algo tão importante como o bem estar da minha melhor amiga e da minha
afilhada?

Os olhos expressivos, cansados e abatidos de Nicholas me fez questionar se ele já não tinha
feito o mesmo questionamento em sua mente diversas vezes, por motivos diferentes, talvez
fosse uma pergunta ampla demais para se obter uma única resposta. O estado catatônico,
mórbido e as manchas de noites sem dormir. Talvez ele não estivesse muito diferente de mim.

Talvez ele também precise de Cecilia na mesma proporção que seu pulmão precisava do ar
para respirar.

Ter esse tipo de pensamento me fez de certa forma compadecer com a dor que abusava o
coração perturbado de Nicholas Giuseppe Lombardi, em outras palavras não muito formais, o
meu pior inimigo. Isso me fez querer rir, embora estivesse longe de ser uma piada engraçada.
Por tantos anos estive tão ocupada, tendo o moreno em minha frente como inimigo mortal,
que nem me importei com qualquer coisa boa que ele pudesse ser associado. Cecília sorria de
maneira terna e brilhante quando estava ao lado dele, embora seu futuro marido não fosse
uma das pessoas mais animadas e alegres do mundo.

Lembro-me da primeira impressão que tive quando conheci o namorado da minha melhor
amiga. No começo cheguei a pensar que ele poderia ser de certa forma a personificação da
morte – com sua aura distorcida e fechada – com o decorrer da noite isso tinha começado a
fazer menos sentido do que a possibilidade dele ser um vampiro ou um fantasma típico de
seriado americano. A segunda impressão que tive e que talvez ele fosse mudo e surdo ou
tivesse algum tipo de problema – vergonha em relação a sua voz – ter esse tipo de
pensamento me fez sentir a pior pessoa do mundo, já tinha sentido na pele o peso de ser
diferente e sabia como isso machucava. O que me confortou naquele nosso primeiro contato
foi saber que na verdade Nicholas era apenas um cara reservado e de poucas palavras.

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