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NECROPOLI[S]TICS

Em 2 de abril de 2020 o fotógrafo Leonardo Finotti (1977) deparou-se com aos últimos meses do ano anterior. As oito mil valas abertas na Vila Formosa
uma imagem impactante: a abertura de inúmeras covas rasas no Cemitério da em abril de 2020 tornaram-se insuficientes, levando a prefeitura a contratar, em
Vila Formosa, na zona leste de São Paulo, como consequência do avanço da fevereiro, 30 novos sepultadores em um plano de exumação que visa evitar a
pandemia do Covid-19 no Brasil. A partir desse choque, de 3 de abril de 2020 em falta de espaço para enterrarmos os nossos mortos.
diante, Finotti passou a fazer registros fotográficos regulares, que acompanharam
as transformações do espaço ocupado pelo Cemitério da Vila Formosa. As Os sepultadores, por sua vez, ainda que já lidassem com a morte cotidianamente,
fotografias do projeto Necropoli[s]tics, são captadas através de um drone e não encaram a pandemia do coronavírus de modo corriqueiro, e compartilham
retratam o crescimento exponencial da abertura de covas na área e documentam da dor e do espanto diante de tantas perdas - James Alan, 33 anos, diz não “se
o reflexo de políticas públicas devastadoras para a população brasileira. acostumar”, e conta: “A gente viu sepultamentos de três pessoas da mesma
família, quantas famílias não foram destruídas? Isso é muito triste para nós”.[1]
Considerado a maior necrópole da América Latina, o Cemitério da Vila Formosa
é cerca de dez vezes maior que o Cemitério da Consolação, e é para lá que a A falta de humanidade em lidar com as mortes tem história. Sobretudo quando
maioria dos corpos vítimas da Covid-19 na cidade de São Paulo têm sido levados. as vítimas se somam nos estratos mais pobres e vulneráveis da população:
Normalmente enterrados sem funeral ou último contato familiar, as vítimas fatais pesquisa da prefeitura de São Paulo mostra que o coronavírus atinge quatro
da pandemia formam filas de caixões e ocupam contêineres frigoríficos recém- vezes mais a classe D no que a classe A,[2] e que a pressão sobre cemitérios
instalados para dar conta da alta demanda. privados é sensivelmente menor do que sobre os públicos. Dados levantados
pelo Observatório Covid-19 e pela prefeitura mostram que pretos têm 62% mais
Cerca de um ano depois da primeira morte por Covid-19 no Brasil, datada do dia chance de morrer por Covid-19 em São Paulo do que brancos.[3] E o risco de
12 de março de 2020, contabilizamos até o lançamento deste projeto mais de morrer por Covid-19 em Lajeado, na Zona Leste de São Paulo, é 3,9 vezes maior
270 mil mortes registradas, um número que não para de crescer. Desde janeiro de do que no Jardim Paulista, na Zona Sul, como levantado pela jornalista Ana
2021, evidencia-se um aumento expressivo de contaminação e mortes em relação Carolina Moreno.[4]
Se, como pressupõe Achille Mbembe em seu ensaio Necropolítica (2003), O projeto Necropoli[s]tics realizado por Finotti mostra que nossas feridas seguem
“a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e abertas, e não basta ignorá-las para que se fechem.
na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, [5] os dados
mencionados evidenciam o vigor de uma política da morte no Brasil, onde o Estado Como contrapartida fundamental desse projeto, a B&G pretende repassar o lucro
não reconhece a população pobre e negra como composta por pessoas, mas sim proveniente de eventual venda dos trabalhos para projetos destinados a pessoas
por coisas. Às suas vidas não é dispensada nenhuma proteção, e as suas mortes são em situação de vulnerabilidade social na cidade de São Paulo. A Bergamin &
reduzidas a números, sem direito ao rito de passagem nem luto. Gomide se solidariza com todos aqueles que perderam seus entes queridos para
a Covid-19 e com todas as vítimas do descaso de nossas autoridades. Desejamos
Vladimir Safatle em seu ensaio Para além da necropolítica (2020) comenta, ainda, ansiosamente dias melhores.
que no contexto particularmente brasileiro da gestão catastrófica do coronavírus
não observamos simplesmente um regime necropolítico, mas a manifestação de um
estado suicidário, em que o exercício da soberania já não age em prol da proteção
de nenhuma forma de vida, apenas dá vazão a uma destrutividade generalizada, [1] Entrevista publicada em matéria de 03/11/2020 do G1 intitulada: ‘Tinha fila de caixão no

que abarca a sua própria estrutura de poder. Sendo os dois conceitos fundamentais chão’, diz sepultador sobre pico da pandemia; aumento de enterros nos cemitérios públicos chegou

tanto para a análise do colonialismo quanto do fascismo, vê-los transportados para a 45% em SP. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/11/03/tinha-fila-de-caixao-no-chao-

a nossa realidade demonstra o tamanho da barbárie que estamos vivendo. diz-sepultador-sobre-pico-da-pandemia-aumento-de-enterros-nos-cemiterios-publicos-chegou-a-

45percent-em-sp.ghtml

Dito isso, a Bergamin & Gomide entende que a arte, aqui sob a forma dos registros [2] http://www.capital.sp.gov.br/noticia/coronavirus-prefeitura-apresenta-resultados-da-tercei-

fotográficos de Leonardo Finotti, tem um papel fundamental na preservação da ra-etapa-do-inquerito-sorologico-com-moradores-da-capital-1

memória de uma catástrofe, na difusão da estatura de um problema coletivo e [3] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/28/pretos-tem-62percent-mais-chance-

no processo de elaboração de uma experiência traumática. Um ano depois da de-morrer-por-covid-19-em-sao-paulo-do-que-brancos.ghtml

primeira morte registrada por Covid-19 em nosso país, ainda estamos alcançando [4] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/02/25/risco-de-morrer-por-covid-19-em-

uma média de quase duas mil mortes diárias – e isso não deve ser banalizado nem sao-miguel-na-zona-leste-de-sp-e-25-vezes-maior-do-que-no-jardim-paulista-na-zona-sul.ghtml

normalizado, a despeito do modo como as autoridades estão gerindo o problema. [5] Achille Mbembe, Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2020, p. 5.
NECROPOLI[S]TICS

On April 2nd, 2020 the photographer Leonardo Finotti (1977) came across a striking a significant increase in contamination and deaths compared to the last months of
image: the opening of countless shallow graves at Vila Formosa Cemetery, in the the previous year. The 8.000 new graves opened in Vila Formosa in April 2020 have
East Zone of São Paulo, as a consequence of the spread of the Covid-19 pandemic become insufficient, making the City Hall hire, on February, 30 new gravediggers in
in Brazil. From this shocking image, Finotti started to make regular photographic an exhumation plan aiming to avoid a lack of space to bury our dead.
records from April 3rd on to follow the transformation of the space occupied by Vila
Formosa Cemetery. The photographs in the Necropoli[s]tics project are captured The burial workers, on the other hand, while they have been dealing with death on
through a drone and portray the exponential growth of the opening of graves in the a daily basis, do not face the pandemic crisis nonchalantly, and share their pain and
area, and document the repercussion of devastating public policies for the Brazilian astonishment when faced with so many losses – James Alan, 33 years old, says he
population. is not “getting used to it,” and tells us: “We’ve seen the burial of three people from
the same family, how many families have been destroyed? This is very sad for us.”[1]
Considered the largest necropolis of Latin America, Vila Formosa Cemetery is
about ten times larger than Consolação Cemetery, and where most of the Covid-19 The lack of humanity in dealing with deaths is historic. Particularly when the victims
victim’s bodies in the city of São Paulo have been taken to. Usually buried without are among the poorest and most vulnerable strata of the population: research from
a funeral or a last contact with their families, the fatal victims of the pandemic form the São Paulo City Hall shows that the coronavirus affects the class D population
queues of coffins and occupy refrigerated containers recently installed to handle four times more than the class A,[2] and that the pressure on private cemeteries is
the high demand. considerably lower than on public ones. Data collected by the Covid-19 Observatory
and the City Hall shows that black people are 62% more likely to die from Covid-19
About a year after the first death of Covid-19 in Brazil, dated on March than white people.[3] The risk of dying from Covid-19 in Lajeado, in the East Zone of
12th, 2020, we have counted over 270,000 recorded deaths until the release of this São Paulo, is 3.9 times higher than in Jardim Paulista, in the South Zone, as raised
project, a number that does not stop growing. Since January 2021, there has been by the journalist Ana Carolina Moreno.[4]
If, as Achille Mbembe presupposes in his essay Necropolitics [Necropolítica] (2003), deaths – and this should not be trivialized nor normalized, despite the way in which
“the highest expression of sovereignty resides, to a great extent, in the power and the authorities are managing the problem. The Necropoli[s]tics project carried out
capacity to dictate who may live and who must die,”[5] the data mentioned above by Finotti shows that our wounds are still open and ignoring them is not enough to
shows the vigor of a policy of death in Brazil, where the State does not recognize close them.
the poor and black population as being composed by people, but rather, by things.
Their lives are not granted any protection, and their deaths are reduced to numbers, As a fundamental counterpoint to this project, B&G intends to pass on the profits
without the right to a rite of passage or mourning. from the eventual sale of the works to projects aimed at people in socially vulnerable
situations in the city of São Paulo. Bergamin & Gomide is in solidarity with all those
Vladimir Safatle in his essay Beyond Necropolitics [Para além da necropolítica] (2020) who have lost their loved ones to Covid-19 and with all the victims of the negligence
comments, furthermore, that in the particularly Brazilian context of the catastrophic of our authorities. We look forward to better days.
management of the coronavirus we do not simply observe a necropolitical regime,
but the manifestation of a suicidal state, in which the exercise of sovereignty
[1] Interview published in an article at G1 from 11/03/2020 titled: ‘There was a queue of coffins
no longer acts in favor of protecting any form of life, but only to make way to a
on the ground’ says gravedigger regarding the peak of the pandemic; increase of funerals at public
generalized destructiveness, which encompasses its own power structure. As both
cemeteries reach 45% in SP. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/11/03/tinha-fila-de-
concepts are fundamental to the analysis of colonialism as well as fascism, seeing
caixao-no-chao-diz-sepultador-sobre-pico-da-pandemia-aumento-de-enterros-nos-cemiterios-publi-
them transported to our reality demonstrates the extent of the barbarism we are
cos-chegou-a-45percent-em-sp.ghtml
experiencing.
[2] http://www.capital.sp.gov.br/noticia/coronavirus-prefeitura-apresenta-resultados-da-tercei-

ra-etapa-do-inquerito-sorologico-com-moradores-da-capital-1
That said, Bergamin & Gomide understands that art, here in the form of Leonardo [3] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/28/pretos-tem-62percent-mais-chance-
Finotti’s photographic records, has a fundamental role in preserving the memory de-morrer-por-covid-19-em-sao-paulo-do-que-brancos.ghtml
of a catastrophe, in diffusing the stature of a collective problem and in the process [4] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/02/25/risco-de-morrer-por-covid-19-em-

of elaborating a traumatic experience. One year after the first recorded death by sao-miguel-na-zona-leste-de-sp-e-25-vezes-maior-do-que-no-jardim-paulista-na-zona-sul.ghtml

Covid-19 in our country, we are still on an average of almost two thousand daily [5] Achille Mbembe, Necropolítica. São Paulo: N-1 Editions, 2020, pg. 5.
Leonardo Finotti (1977)
Nasceu em Uberlândia, Minas Gerais. Vive e trabalha em São Paulo.
[Born in Uberlândia, Minas Gerais. Lives and works in São Paulo.]

Leonardo Finotti é artista visual e tem sua trajetória na X Bienal de Arte do Mercosul e foi premiado na XV diverse architects and publications, while at the same time
estruturada sobre dois pilares complementares, Bienal Internacional de Arquitetura de Buenos Aires. Em accomplishing a number of personal projects (exhibitions,
empreendendo, pela fotografia, tanto uma exploração 2008, Finotti foi convidado por Barry Bergdoll, curador- books) in which architecture and the city shape the main
rigorosa da Arquitetura Moderna quanto uma investigação chefe do MoMA-NY, a fazer parte da exposição Latin axis of his visual investigation: Pelada (2014), Latinitudes
dos espaços urbanos anônimos ou informais. Após se America in Construction: Architecture 1955-1980. O (2015), Rio Enquadrado (2016), Sacred Groves & Secret
graduar em Arquitetura e concluir uma pós-graduação projeto, desenvolvido ao longo de sete anos, re-interpreta Parks (2019), to name just a few. Leonardo’s work has
na Bauhaus Foundation, (Dessau, Alemanha) começa sua visualmente o legado da arquitetura moderna da América been shown in a number of solo and group exhibitions
carreira como fotógrafo em Portugal, onde viveu por seis Latina. O trabalho além de integrar a exposição, teve 15 and is also included in the collections of some of the
anos, colaborando com os mais importantes arquitetos obras adquiridas para sua coleção permanente e recebeu most important public and private institutions worldwide,
portugueses. Inicia então um projeto sistemático de um capítulo no catálogo, sob a forma de portfólio. such as the Bauhaus Dessau Foundation (Germany),
releitura do Modernismo em diferentes continentes, que Fundação EDP (Portugal), AzW (Austria), Buendner
prossegue quando do seu retorno ao Brasil. Contribui EN Kunstmuseum (Switzerland), MAR (Brazil), among others.
internacionalmente com diferentes arquitetos e publicações, — He has represented Brazil at two Venice Architecture
ao mesmo tempo em que desenvolve diversos projetos Finotti is a visual artist whose trajectory has structured Biennales, at the 10th Mercosul Art Biennial and was also a
pessoais (exposições e publicações) tendo a arquitetura e a around two complementary themes: through his prizewinner at the 15th Buenos Aires International Biennial
cidade como eixo principal de sua pesquisa visual: Pelada photography he rigorously explores Modern Architecture of Architecture. In 2008 Leonardo was invited by Barry
(2014), Latinitudes (2015), Rio enquadrado (2016), Brutiful and also investigates anonymous or informal urban spaces. Bergdoll, chief curator at MoMA, New York, to take part in
(2017), para citar apenas alguns. Já realizou diversas After graduating in Architecture and completing a post- the Latin America in Construction: Architecture 1955-1980
exposições individuais e coletivas e seu trabalho faz parte graduate program at the Bauhaus Foundation (Dessau, exhibition (2015). The project, which spanned a period of
de coleções de algumas das mais importantes instituições Germany), Leonardo began his career as a photographer seven years, is a visual reinterpretation of the legacy of
públicas e privadas, tais como Bauhaus Dessau Foundation in Portugal, where he lived for six years, working with modern architecture in Latin America. In addition to his
(Alemanha), Fundação EDP (Portugal), AzW (Áustria), MOT some of the leading Portuguese architects. He then contribution to the exhibition, 15 images by Leonardo
(Japão), Cité de L’Architecture & du Patrimoine (França), set out on a systematic project aimed at a rereading of were acquired for the museum’s permanent collection and
MAR (Brasil), entre outras. Representou o Brasil em duas Modernism around the world, which he continued upon a chapter in the exhibition catalogue was dedicated to his
Bienais de Arquitetura de Veneza, na Bienal de Shenzhen, his return to Brazil. He has collaborated internationally with work, taking the form of a portfolio.

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