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Liev Semiónovitc h Psicologia,

Vigotski
desenvolvimento
humano e
marxismo
Tradução de Priscila Marques
Organização, introdução e notas de
Gisele Toassa e Priscila Marques

Clássicos da Psicologia hogrefe


Série Clássicos da Psicologia
Coordenador: Saulo de Freitas Araujo
A série Clássicos da Psicologia tem como objetivo principal trazer para o
público lusófono traduções contemporâneas de autores clássicos da tra­
dição psicológica, cujos textos, embora sejam fundarrfentais para o de­
senvolvimento histórico da psicologia científica, encontram-se em grande
parte ainda sem tradução direta para a língua portuguesa. Cada volume é
dedicado a um autor e composto de um ou mais textos de sua autoria, os
quais ilustram a ideia central do projeto psicológico em questão.Todas a s
traduções são feitas a partir do texto original (latim, alemão, inglês, francês,
russo etc.). Dessa forma, discentes, docentes e todos os interessados em
compreender as várias facetas da psicologia contemporânea poderão travar
contato com uma rica tradição de autores que lançaram as bases teóricas e
metodológicas para o pensamento psicológico atual.
L. S.Vigotski

Psicologia,
desenvolvimento
humano e marxismo
Tradução de Priscila M arques
Organização, introdução e notas de Gisele Toassa e
Priscila M arques
Copyright da tradução: © 2023 Editora Hogrefe CETEPP, São Paulo

Editora: Cristiana Negrão


Tradução: Priscila Marques
Capa e diagramação: Claudio Braghini Junior
Preparação: Joana Figueiredo
Revisão: Carlos Villarruel

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

V741p
Vigotsky, L. S. (Lev Semenovich), 1896-1934.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo / L. S. Vigotski; tradução Priscila Marques;
organização Gisele Toassa e Priscila Marques. - 1. ed. - São Paulo: Hogrefe, 2023.
296 p .; 21 cm.
Inclui índice
ISBN 978-65-89092-72-8
1. Vigotsky, L. S. (Lev Semenovich), 1896-1934. 2. Psicologia. 3. Comportamento.
4. Desenvolvimento social. I. Marques, Priscila. II. Toassa, Gisele. III. Título.

CDD: 302
23-82799 CDU: 159.9.019.4

Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.


Todos os direitos desta edição reservados à

Editora Hogrefe CETEPP


Rua Barão do Triunfo, 73, conjunto 74
Brooklin, São Paulo - SP, Brasil
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meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópias e gravação) ou arquivada em qualquer siste­
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ISBN: 978-65-89092-72-8
Impresso no Brasil
Sumário
Introdução.................................................................. 7
B io g r a f ia ..................................................................................9
S o b re o s t e x t o s ....................................................................... 16
S o b re a t r a d u ç ã o ..................................................................... 21

Cronologia................................................................. 23

1. A consciência como problema da psicologia do


comportamento (1925).............................................. 27

2. A ciência psicológica (1928)....................................... 63

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928).............. 99

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a


respeito da pedología das minorias nacionais (1929)....... 145

5. O refazimento socialista do ser humano (1930).............. 161

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)......... .............. 177

7. Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia (1933).... 215

8. O fascismo na psiconeurologia (1934)......................... 223

9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos


científicos na idade escolar: experiência de construção
de uma hipótese de trabalho (1934)............................. 241
10.0 problema do desenvolvimento e da desagregação das
funções psíquicas superiores (1934)....................... 267

índice 291
Introdução
São muitas as iniciativas de aproximação entre psicologia e
marxismo, seja como simples cruzamentos entre ideias advindas, por
exemplo, da psicanálise ou da análise do comportamento e da teoria
social marxista, seja como iniciativas de maior monta, que partem
do próprio marxismo para edificação de uma nova perspectiva em
psicologia.* A tais iniciativas opuseram-se obstáculos que se confun­
dem, em ampla medida, com a própria história do comunismb em
diferentes países. Por seu caráter, via de regra, contra-hegemônico, as
iniciativas marxistas na psicologia foram relegadas a segundo plano
pelas políticas científicas na América do Norte e Europa, ou mesmo
no Sul Global.

Nesse panorama global de fortes tensões sociais, foi na União


Soviética que se proporcionaram as melhores e mais duradouras
condições para a edificação de perspectivas marxistas em psicologia.
Dentre as diversas iniciativas dos anos 1920, floresceram duas das
psicologias marxistas mais populares no Brasil e no mundo: a psico­
logia vigotskiana (também conhecida como psicologia histórico-cul-
tural) e a teoria da atividade - sendo esta, em certo grau, tributária
daquela -, o que acabou tornando Liev Semiónovitch Vigotski o mais
conhecido dos psicólogos marxistas até nossos dias, cuja apropriação
consolidou-se nas disciplinas de Psicologia da Educação e do Desen­
volvimento em licenciaturas e cursos de graduação em Psicologia."
A história da publicação e transmissão do legado de Vigotski,
por si só, valeria um livro (para não dizer uma tragicómica novela

* Ver Pavón-Cuéllar, D. (2015). Las dieciocho psicologías de Karl Marx. Teoría y Crítica
déla Psicología, 5, 105-132.

** Sarmento, D. F. (2006). A teoria histórico-cultural de L. S. Vygotsky: Uma análise da


produção acadêmica e científica no período de 1986-2001. [Tese de doutorado não publi­
cada]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

mexicana). O autor nunca ocupou posições institucionais importantes


que facilitassem a edição de suas obras, e sua morte prematura se deu
no bojo de uma série de transformações políticas conhecida como a
Grande Quebra ou Revolução pelo Alto, de Josef Stalin, que limita­
ria drasticamente a liberdade dos cientistas em sua interpretação do
marxismo. Embora Vigotski estivesse se tornando mais conhecido na
época de sua morte (o maior número de edições de seus textos na
Rússia ocorreu entre 1934-1936),* a obra de Ivan Pávlov permanecia
sendo vista como a referência para construção das psicologias marxis­
tas," o que só se modificou - a despeito de alguns “acidentes” histó­
ricos, tais como a pavlovização da psicologia entre 1950-1953 - com
a ascensão da teoria da atividade, proposta por Serguei Rubinstein
em 1934, da qual ex-alunos de Vigotski logo se tornariam partícipes.
Como muitos outros autores, Vigotski já vinha sendo alvo de críticas
que demandavam maior alinhamento com o marxismo-leninismo (um
codinome para o stalinismo).*** Vigotski tornara-se um dos principais
nomes da pedologia (ciência da criança), quando, em 1936, Stalin
promulgou um decreto banindo essa ciência. Proibiram-se os livros
de Vigotski, e mesmo os prefácios foram arrancados de exemplares
tombados em bibliotecas públicas.*”*
Apenas após a morte de Stalin em 1953, o nome de Vigotski
foi, aos poucos, retomado na União Soviética, sendo o livro Pensa­
mento e linguagem e umas poucas obras publicados após 1956. Suas

* Fraser, & Yasnitsky, A. (2015). Deconstructing Vygotsky’s Victimization narrative:


A re-examination of the Stalinist suppression of Vygotskian theory. History o f the Human
Sciences, 28(2), 128-153. https://doi.org/10.1177/0952695114560200
** Joravsky, D. (1989). Russian psychology: A critical history. Basil Blackwell.

*** Toassa, G. (2016). Nem tudo que reluz é Marx: Críticas stalinistas a Vigotski no ám­
bito da ciência soviética. Psicologia USP, 27(3), 553-563. https://doi.org/10.1590/0103-
656420140138

**** Vygodskaia. (2000). Epilogue. Journal o f Russian and East European Psychology,
37(5), 28-48.
Introdução

Obras escolhidas vieram à luz em russo apenas a partir de 1982.* Vale


ressaltar ainda que editaram-se, de forma descuidada, diversos textos,
e ideias foram censuradas no processo de edição em russo e tam­
bém no Ocidente, desde a publicação da primeira edição com cortes
de Pensamento e linguagem nos Estados Unidos, em 1962. O grande
sucesso editorial de tal obra mutilada a mantém no mercado, pare­
cendo apenas ter contribuído para a perpetuação dos equívocos que
presidiram sua primeira aparição no cenário ocidental. Outrossim, a
despeito de todas essas dificuldades, temos hoje em língua portuguesa
um grande número de obras de Vigotski traduzidas diretamente do
russo, testemunhando a persistência do legado do autor para as mais
diversas áreas (educação, psicologia, artes, filosofia, lingüística etc.).

Biografia

Liev Semiónovitch Vigotski (1896-1934), primeiro filho do


sexo masculino (o segundo em uma família de oito irmãos), nasceu
em Orcha, povoado próximo a Gomei, cidade de médio porte de uma
região do Império Russo que viria se tornar a República Soviética de
Belarus nos anos 1920. A família mudou-se para Gomei em 1897,
onde Vigotski viveu até ingressar na universidade, em 1913. Seu pai
era gerente de banco, o que garantia à família uma vida bastante con­
fortável. Eles eram praticantes de um judaísmo esclarecido, mantendo
apenas as principais tradições de sua religião, embora fossem forte­
mente apegados à cultura erudita, ao mundo das artes, às ciências e
à filosofia. A mãe, muito instruída, foi referência para sua educação
doméstica, que contou com diversos professores particulares."

* Fraser, ]., & Yasnitsky, A. (2015). Deconstructing Vygotsky’s victimization narrative:


A re-examination of the Stalinist suppression of Vygotskian theory. History o f the Human
Sciences, 28(2), 128-153. https://doi.org/10.U77/0952695114560200.

** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Embora o russo tenha sido a principal língua da família, desde


cedo liam-se também poetas alemães nos serões domésticos. Esse
meio social que prezava os estudos lingüísticos e literários auxiliou
Vigotski, na vida adulta, a conhecer pelo menos nove idiomas.* Se
ele foi um jovem prodigioso, já adulto, sua memória e capacidade
de articulação de raciocínio eram consideradas excepcionais. Ainda
adolescente, organizou círculos de debate sobre o judaísmo, cuja pro­
posta era discutir a herança cultural judaica e o sentido da presença
dos judeus no mundo. Nessa época, já se familiarizava com o espe­
ranto, a filosofia da história de Hegel e a ética de Espinosa.** O amigo
Aleksandr Bykhovsky apelidou-o de “Profeta” (Beba Vygodskii),***
marcando, assim, o estilo visionário, algo sonhador, de um rapaz
racializado e inconformista, cujo território era ocasionalmente asso­
lado por pogroms (ataques violentos a bairros judaicos pela população
cristã, com práticas de saque, homicídios, estupros e outros crimes).
Vigotski ingressou no ginásio (equivalente ao nosso ensino mé­
dio) em 1911, tendo finalizado o liceu judaico com uma medalha de
ouro, o que teria lhe garantido vaga na universidade caso vigorassem
as regras previstas até então. Infelizmente, poucas eram as carreiras
superiores franqueadas aos judeus, limitando-os a duas alternativas
atraentes de formação superior: medicina ou direito. Porém, no ano
em que Vigotski deveria prestar os exames de admissão, o governo
mudou as regras e os judeus passaram a ser admitidos por sorteio.
Esse foi um dos poucos momentos nos quais a Fortuna o favoreceu:
conseguindo a vaga, ele ingressou no curso de Direito da Universi­

* O autor sabia ler grego, latim e iídiche. Além disso, sabia escrever e falar russo, hebraico,
alemão, inglês, francês e esperanto. Ver Blanck, G. (2003). Prefácio. In L. S. Vygotsky
(Ed.), Psicologia pedagógica (pp. 15-32). Artmed.

** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.

*** Yasnitsky, A. (2018). Vygotsky: An intellectual biography. Routledge. O sobrenome


de Vigotski era, de fato, Vygodski, mas o autor optou por modificá-lo para “Vigotski” no
inicio dos anos 1920.
Introdução

dade de Moscou, mas nunca se identificou com a área. Paralelamente,


cursou História e Filosofia na Universidade do Povo de Chaniávski,
que contava com muitos professores expulsos das instituições estatais
por razões políticas. Vigotski manteve-se atualizado sobre as novida­
des na lingüística e filologia por meio de seu primo Davi, que exerceu
sobre ele considerável influência. Também foi um assíduo freqüenta­
dor da cena teatral moscovita, o que lhe valeria importantes aprendi­
zagens para seus anos como crítico de arte.*
Após vários rascunhos, Vigotski terminou a monografia A tra­
gédia de Hamlet (1916/1999), em cujo texto predominava a influência
da estética e filosofia simbolista, embora também já se incluíssem
menções a William James e Sigmund Freud."
Nesse período, o decadente Império Russo era sacudido por
sérias turbulências políticas desde a segunda metade do século XIX,
o que viria a acentuar-se no XX. Sua queda concretizou-se com a
Revolução de Fevereiro de 1917, seguida pela Revolução de Outubro.
No entanto, o trajeto de constituição de um regime socialista seria
longo e árduo, sendo marcado por um período de Guerra Civil (1818-
1921) que devastou o país econômica, política e socialmente.*** Nessa
época, Vigotski já voltara para Gomei, onde se empenharia, por vá­
rios meios, em contribuir com o sustento da família até 1924. Ali,
foi deputado no soviete local, fundou a editora Eras e Dias (de vida
curta), lecionou em instituições de formação de professores (em uma
das quais chegou a montar um laboratório de psicologia), organizou
atividades teatrais e, principalmente, escreveu resenhas de crítica de
arte. Foram anos também marcados por epidemias: ele perdeu um
dos seus irmãos para o tifo e outro para a tuberculose, doença esta

* van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.

** Toassa, G. (2011). Emoções e vivências em Vigotski. Papirus.

*** Deutscher, I. (1959/2005). Trotsky: O profeta desarmado, 1879-1921. Civilização Bra­


sileira.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

que também contraiu ao cuidar do garoto, passando por sua primeira


internação em 1920.*
É difícil superestimar o contraste entre a vida de um pesquisador
soviético nesses anos revolucionários e a calma rotina dos cientistas
ocidentais. Até que se constituísse um sistema stalinista de ciência na
segunda metade dos anos 1930, a situação laboral dos pesquisadores
era bastante instável, sendo muito comuns a abertura e o fechamento
de laboratórios, a renomeação e fundação de instituições, bem como
a manutenção de vínculos com diversas instituições, via de regra, bas­
tante mal remunerados, apesar da prioridade que o governo bolchevi­
que atribuía à educação e às ciências. No período de Gomei, Vigotski
avançou muito em seus estudos de psicologia, preparando sua Psicolo­
gia pedagógica (1924) e a Psicologia da arte (1925), sua tese de douto­
ramento. Foi também em 1924 que ele se casou com Roza Smiékhova
e mudou-se para Moscou, após causar sensação com as comunicações
apresentadas no II Congresso de Psiconeurologia de Toda a Rússia em
Leningrado, cenário no qual conheceu A. R. Luria (1902-1977), seu
grande amigo e parceiro intelectual." Sem usar um único pedaço de
papel durante sua apresentação, Vigotski explorou suas ideias sobre os
métodos reflexológicos e psicológicos e sobre como poderia situar-se a
psicologia marxista no contexto dos métodos então existentes.
A afinidade entre os pesquisadores brotou instantaneamente.
Em 1924, Luria convidou-o a compor a equipe do laboratório que
chefiava no Instituto de Psicologia Experimental de Moscou."* Como
a moradia era escassa na cidade, Vigotski viveria no porão do insti­
tuto com sua esposa por algum tempo. Luria dizia que, apesar de

* Ver Vygodskaia, G., & Lifanova, T. (1999). Through a daughter’s eyes. Journal o f Rus­
sian & East European Psychology, 37(5), 3-27; e van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001).
Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.

** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.

*** Luria, A. R. (1988). Vigotski. In L. S. Vigotski, A. R. Luria, & A. N. Leontiev, Lingua­


gem, desenvolvimento e aprendizagem (5a ed., pp. 21-37). ícone, Edusp.
Introdução

raramente fazer uso de anotações, Vigotski era um excelente orador,


e suas conferências convertiam-se em eventos públicos muito concor­
ridos, que se estendiam por três ou quatro horas. Em conseqüên­
cia disso, boa parte de seu legado consiste em conferências, três das
quais são apresentadas neste volume.
A personalidade suave e conciliatória de Vigotski rendeu-lhe a
fama de lançar uma espécie de “feitiço” mesmerizante sobre seus co­
nhecidos, não raramente transformando adversários em aliados.* Essas
características facilitaram a formação de grupos de pesquisadores ao
seu redor nos diversos espaços de pesquisa em que atuou desde sua
entrada na psicologia institucional até sua morte, em 1934.*’' Diver­
sas jovens mulheres integraram a rede informal de pesquisadores que
constituiu o chamado Círculo de Vigotski, que foi, a partir de 1925, co­
nectándole ao de Kurt Lewin - colaboração tragicamente encerrada
pela ascensão do nazismo e partida de Lewin para os Estados Unidos.
Algumas propostas de periodização da obra de Vigotski têm
sido apresentadas ao longo dos anos. Se nos parece inadequado re­
cortar fases lineares em uma trajetória intelectual tão breve, acom­
panhamos outros comentadores na percepção de que há mudanças
importantes ao longo de sua trajetória, mercê da alta temperatura dos
debates e das mudanças institucionais próprias aos anos da Revolução
Cultural subsequentes à Revolução política de Outubro de 1917.*** As­
sim, optamos por classificar a obra do autor em três fases principais:

* Joravsky, D. (1989). Russian psychology: A critical history. Basil Blackwell.

** Yasnitsky, A. (2009). Vygotsky Circle during the decade o f 1931-1941: Toward an integra­
tive science o f mind, brain, and education. [PhD thesis]. University of Toronto.

*** Para essa síntese, recorremos aos seguintes textos: van der Veer, R. (1984). Early
periods in the work o f L. S. Vygotsky: The influence o f Spinoza. [Mimeografado]; Veresov,
N. N. (2010). Marxist and non-Marxist aspects of the cultural-historical psychology of L.
S. Vygotsky. Outlines, 1, 31-49; Veresov, N. N. (2020). Discovering the great royal seal:
New reality of Vygotsky’s legacy. Cultural-Historical Psychology, 16(2), 107-117; Beaton,
G. A. (2005). La persona en el enfoque histórico cultural. Linear B.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

1. Jovem Vigotski (1912-1924): nessa fase, predomina a crítica de


arte, desde o primeiro ensaio conhecido* até as últimas resenhas
produzidas em Gomei. O foco é o teatro, mas também analisa
literatura e dança, marcando-se pelo rigor (até mesmo por certa se­
veridade surpreendente em alguém tão jovem), pela sensibilidade
e pela erudição estéticos. O teatro judaico e a relação entre arte
e sociedade/Revolução são algumas de suas preocupações. Nessa
fase tão rica quanto pouco conhecida, realiza estudos em psicolo­
gia e humanidades, transitando gradativamente para o marxismo.**
2. A segunda fase inicia-se em 1924 e termina em 1927. Nela, Vigot­
ski desenvolve estudos críticos e de sistematização da psicologia.
Entre as múltiplas influências, nota-se no autor uma busca por
interlocução com a ciência das reações de Kornilov (entre ou­
tras fontes), tentando desenvolver uma primeira aproximação a
uma psicologia materialista e marxista.*** Também analisa várias
correntes psicológicas e escolas, o que culmina no esboço de um
novo programa para a psicologia em seu extenso estudo de filo­
sofia das ciências: O significado histórico da crise na psicologia
(1927).**'* Tal livro assinala seu propósito de começar a desenvol­
ver uma nova psicologia marxista com base nos problemas dessa
própria ciência. Nessa fase começa a se formar sua rede de pes­
quisadores situados em diversas instituições, o chamado Círculo
de Vigotski.

* Vigotski, L. S. (1912/13-2021). Os judeus e a questão judaiea nas obras de F. M. Dos-


toiévski. RUS (São Paulo), /2(18), 330-362. https://doi.org/10.11606/issn.2317-4765.
rus.2021.180070

** Vigotski, L. S. (2022). Liev S. Vigotski: Escritos sobre arte. Mireveja.

*** Texto muito importante dessa fase foi “A consciência como um problema da psicologia
do comportamento (1925)”, o primeiro desta antologia.

**** A tradução correta do título desse manuscrito seria “O sentido histórico da crise
na psicologia”. Vale a distinção porque sentido e significado são conceitos diferentes na
psicologia vigotskiana.
Introdução

V Teoria histórico-culturaí (1928-1934): psicologia marxista “verda­


deira” que contaria, para alguns comentadores, com duas subfa-
ses: instrumental e sistêmica. Essa é a fase mais rica e diversifi­
cada, na qual se desenvolveram seus conceitos mais populares, em
parte decorrentes de experimentos realizados com seu Círculo na
fase anterior. Embora alguns comentadores prefiram considerar
o manuscrito sobre a crise na psicologia como certidão de nasci­
mento da psicologia vigotskiana, é consenso afirmar que o artigo
“O problema do desenvolvimento cultural da criança” (1928) traz
as bases da teoria do autor sobre as funções psicológicas supe­
riores e as origens sociais da mente a partir da internalização da
cultura, estabelecendo a mediação de signos e instrumentos ao
longo do desenvolvimento como essencial na formação da conduta
voluntária e humanizada. Para alguns comentadores, o texto “So­
bre os sistemas psicológicos” (1930) marcaria, ainda, um quarto e
último momento na produção teórica do autor, em que ele desen­
volve preocupações mais acentuadas com a consciência como sis­
tema com função semântica, a qual precisaria ser mais bem com­
preendida em relação aos seus aspectos propriamente mecânicos
e instrumentais. Esse é o tom dos seus escritos finais, inclusive
do último capítulo do livro Pensamento e linguagem. Nesse mo­
mento, Vigotski também defende o desenvolvimento de uma nova
teoria materialista das emoções e produz muitas ideias no campo
da pedología e das patologias, em particular da clínica psiconeu-
rológica. Tais ideias, contudo, permanecem inacabadas em ampla
medida, e membros do seu Círculo dão sinais de divergências para
com Vigotski, iniciando-se um processo de especialização e sepa­
ração (tanto intelectual quanto institucional, em parte decorrentes
das políticas soviéticas), entre 1931 e 1934.

Nesse processo de transformação teórico-metodológica do


pensamento vigotskiano, encontramos desde ideias que se modifi-
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

cam e são francamente superadas, até outras que são enunciadas


sem serem retomadas, sendo ainda hoje de grande interesse para
uma psicologia marxista.*

Sobre os textos

Este volume traz dez textos de Vigotski, todos traduzidos do


original russo, cobrindo um arco temporal que se estende ao longo
de praticamente toda sua produção intelectual no terreno da psico­
logia, isto é, de 1925 a 1934. O primeiro texto, “A consciência como
problema da psicologia do comportamento”,** saiu originalmente
como artigo em 1925, na revista Psicologia e Marxismo, editada por
Konstantin Kornilov, o pai da reactologia. De forma sucinta, apre­
senta os principais dilemas de Vigotski em sua primeira aproximação
ao desafio de elaborar uma psicologia marxista em meados dos anos
1920. O autor mostra os limites dos métodos reflexológicos - hege­
mônicos no estudo de uma categoria mais ampla, o comportamento
- para o estudo da consciência em suas manifestações mais com­
plexas. De modo embrionário aqui já se podem enxergar algumas
ideias-chave de Vigotski sobre o tema da consciência, isto é, o enten­
dimento desta como totalidade, um processo não redutível a sistemas
de reflexos, o qual influi significativamente nas respostas passíveis de
identificação experimental.
O segundo texto, intitulado “A ciência psicológica”,*** integra
o volume As ciências sociais na URSS (1917-1927), uma coletânea de

* Podemos citar, no primeiro caso, a defesa da sublimação freudiana no campo da arte


e dos afetos, e no segundo, a ideia de catarse como sendo o objetivo da reação estética.

** Vigotski, L. S, (2005). Soznaníe kak probliéma psikhológuiia povediéniia. In Psikholó-


guiia razvitiia tcheloviéka [Psicologia do desenvolvimento humano]. Smisl-Eksmo.

*** Vigotski, L. S. (1928). Psikhologuítcheskaia naúka. In Obschéstvennie naúki SSSR


1917-1927 [A ciências sociais na URSS 1917-1927] (pp. 25-46). Rabotnik Prosvescheniia.
Introdução

1928 editada por V. P. Vólguin, G. O. Gordon e I. K. Luppol. Muitas


das ideias discutidas nesse texto remontam ao conhecido manuscrito
sobre a crise na psicologia, em que Vigotski faz um abrangente e, ao
mesmo tempo, certeiro arrazoado sobre o estado da psicologia, com
seus impasses e dilemas na definição de um objeto e de um método
próprio. No trabalho de 1928, incluído nesta coletânea, o leitor tem
diante de si um texto mais bem-acabado, sem tantas arestas e opaci­
dades quanto no manuscrito sobre a crise.
Da série de “Aulas de psicologia do desenvolvimento”,* apre­
sentamos neste volume a primeira e a segunda: “As duas linhas do
desenvolvimento psicológico” e “Métodos de pesquisa em psicologia
infantil”, respectivamente. Trata-se de um estenograma de palestras
proferidas pelo autor em 1928 na Academia Comunista de Educação
Krúpskaia. Até recentemente esse material encontrava-se restrito ao
arquivo da família, tendo sido publicado em russo pela primeira vez
apenas em 2021, na revista Cultural-Historical Psychology, com in­
trodução e comentários de V. T. Kudriátsev e A. D. Maidánski. Em
2022, os mesmos comentaristas republicaram o material no livro Pe­
dología da idade escolar: aulas sobre psicologia do desenvolvimento,
com comentários atualizados e corrigidos. Com autorização de Mai­
dánski e Kudriátsev, a tradução que consta deste volume traz as notas
de rodapé dos editores, fundamentais para melhor compreensão de
um material relativamente truncado, dadas as inúmeras abreviaturas
e trechos não discernidos pelo estenógrafo. Esta é a primeira tradu­
ção desse material para qualquer idioma.
Em “Sobre o plano de trabalho de investigação científica a res­
peito da pedología das minorias nacionais”,** publicado na revista

* Vigotski, L. S. (2022). Pedológuiia chkólnogo vózrasta, Lektsii po psikhologuii razvitiia


[Pedología da idade escolar: Aulas sobre psicologia do desenvolvimento]. Kanon-plius.

** Vigotski, L. S. (1929). K vopróssu o plane nautchno-issledovatelskoi raboti po pedolo-


guii natsionalnikh menchistv. Pedologuiia, 3, 367-377.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Pedología (n. 2, 1929), Vigotski recupera o tema dos estudos expedi­


cionários com populações nativas de localidades distantes dos gran­
des centros, colocando em perspectiva a necessidade de investigar tais
grupos étnicos de modo objetivo e científico, mas que não deixasse
escapar a especificidade das formas de organização das funções pí i
cológicas superiores em contextos culturais e sociais distintos.
“O refazimento socialista do ser humano”* foi originalmente
publicado em 1930 no periódico VARNITSO (n. 3, pp. 36-44), da As­
sociação Soviética dos Trabalhadores da Ciência e da Técnica para o
Fomento da Construção Socialista na URSS. A entidade tinha o obje­
tivo de reunir figuras do campo da ciência e da tecnologia para supe­
rar a neutralidade e a tendência apolítica nos meios intelectuais, bem
como para avançar os postulados marxistas. Note-se que no crédito na
publicação se lê “L. Vigodski”, grafia original do sobrenome do autor.
Elaborado a partir de um estenograma, o texto “Sobre os sis­
temas psicológicos”** origina-se de uma palestra proferida pelo autor
na clínica de doenças nervosas da Universidade Estatal de Moscou
em 9 de outubro de 1930. O texto constava do arquivo da família e
foi publicado em russo pela primeira vez em 1982, no volume 1 das
Obras escolhidas.
A brochura Fascismo e psiconeurologia***é um ensaio longo, de
cerca de 30 páginas, publicado em 1934 por especialistas ligados ao
Instituto de Medicina Experimental de Toda a União (filial de Mos­
cou). Os autores listados aparecem nesta ordem: “L. S. Vigotski, V. A.

* Vigotski, L. S. (2016). Sotsialistítcheskaia peredélka tcheloviéka. Tcheloviék [A Pessoa],


4, 122-131.

** Vigotski, L. S. (1982). O psikhologuítcheskikh sistemakh. In A. R. Lúria & M. G. Iaro-


chévski (Eds.), Sobranie Sotchiniénii v 6-ti t. T. 1 Vopróssi teorii i istorii psikhologuii [Obras
escolhidas em seis volumes. Vol. 1, Questões de teoria e história da psicologia]. Pedagoguika.

*** Vigotski, L. S. et al. (1934). Fachizm v psikhonevrologuii [Facismo e psiconeurologia].


Biomedgiz.
Introdução

Guiliaróvski, M. O. Guriévitch, M. B. Krol, A. S. Chmarián e outros”,


lista citação na folha de rosto apresenta a edição:

Na busca por oferecer uma base filosófica para uma ideologia de


classe, o fascismo alemão se baseia em conhecim entos da biologia e
da m edicina, criando uma bestial “teoria do racismo”. Este trabalho
da brigada do Instituto de Medicina Experimental de M oscou apre­
senta uma visão geral e uma avaliação da teoria racista do fascismo,
constituindo-se, assim, com o um material de grande interesse para os
m édicos soviéticos e amplos grupos de leitores preparados.

Esse texto está dividido em quatro seções e apenas na última


delas (IV) há a indicação, em nota de rodapé, da autoria - “Capítulo
escrito pelo professor L. S. Vigotski”. A tradução desse texto foi feita
com base na publicação original de 1934, consultada na Biblioteca Es­
tatal Lênin, em Moscou. É a primeira vez que esse texto é traduzido
na íntegra, já que a versão para o inglês disponível na antologia The
Vygotsky reader (editada por René van der Veer e Jaan Valsiner em
1994) foi feita com base em uma cópia em que faltam duas páginas
do original, conforme nota de rodapé 6 (p. 337).
Nesse texto, Vigotski aborda, talvez de modo mais explícito do
que em qualquer outro momento, as profundas implicações políticas da
psicologia, em seu compromisso (ou não) com a emancipação humana.
Nele, faz um contundente paralelo entre a manifestação mais monstruosa
(a psicologia racista do nazismo) da ciência psicológica e a sua face mais
dócil e aprazível (a “boa e velha” psicologia liberal e burguesa), em opo­
sição a uma psicologia verdadeiramente emancipatória, isto é, a marxista.
Em “Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia”,*Vigot­
ski explora como os casos da clínica psiquiátrica podem servir como

* Vigotski, L. S. (1922). K probleme psikhologuii chizofrenii. In Sovremênnaia probliéma


chizofrénii. Doklád na konferiéntsii po chizofrénii [O problema contemporâneo da esquizo­
frenia. Comunicação na conferência sobre esquizofrenia], (pp. 19-28). Moscou.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

chave para o entendimento da constituição do psiquismo humano a


partir da noção de estrutura sistêmica e semântica da consciência.
O artigo enfatiza o papel da personalidade para o desenvolvimento
dessa condição.
Originalmente um artigo introdutório ao livro de Jozefina Chif
(1904-1978) - O desenvolvimento dos conceitos científicos no escolar
-, o texto “Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos cien­
tíficos na idade escolar: experiência de construção de uma hipótese
de trabalho”,* datado de fevereiro de 1934, apresenta a perspectiva
de Vigotski sobre o tema da formação de conceitos e as possibilida­
des e os limites de se realizarem investigações experimentais nesse
campo. Chamam atenção o costumeiro caráter dialético da reflexão
vigotskiana e seu implacável espírito crítico, que não deixa escapar
as maiores ou menores deficiências do trabalho de Chif. A presente
tradução desse texto é a primeira para qualquer idioma.
Também um estenograma, “O problema do desenvolvimento
e da desagregação das funções psíquicas superiores”** foi uma pa­
lestra proferida por Vigotski em 28 de abril de 1934, no Instituto de
Medicina Experimental de Toda a União. Nele, Vigotski discute a psi­
cologia de base naturalística, que equipara comportamento humano
e comportamento animal, e a psicologia descritiva ou da alma, que
concebe a especificidade do psiquismo humano como algo que não
pode ser explicado, mas apenas descrito. Partindo de uma definição
de funções psíquicas superiores, o autor se volta ao desenvolvimento
psíquico infantil para tratar do fato de que as funções se desenvolvem
de forma sistêmica e não isoladamente. Por fim, Vigotski discute a

* Vigotski, L. S. (1935). K vopróssu o razvitii nautchnikh poniatii v chkolnom vozraste. In


J. Chif (Ed.), Razvitie nautchnikh poniatii u chkkolnika [O desenvolvimento dos conceitos
científicos no escolar], Gossudárstvennoe Utchebno-Pedagoguítcheskoe Izdatelstvo.

** Vigotski, L. S. (2005). Probliéma razvitiia i raspáda vischikh psikhítcheskikh funktsii. In


Psikhotóguiia razvitiia tcheloviéka [Psicologia do desenvolvimento humano]. Smisl-Eksmo.
Introdução

questão da localização das funções psíquicas no cérebro e trata da es­


pecificidade do cérebro humano em relação ao animal a esse respeito.

Sobre a tradução

Para a tradução dos textos apresentados neste volume, foram


tomados alguns cuidados. O primeiro deles foi a escolha das fontes:
Ncnipre que possível buscamos as publicações originais. Esse foi o
i iiso dos textos sobre as minorias e sobre o fascismo, e do prefácio a
1’hif, os quais não haviam sido traduzidos (ao menos não na íntegra)
anteriormente. Em outros casos, tomamos como base as publicações
canônicas em russo, seja das Obras escolhidas ou de outras fontes.
Pura as “Aulas de psicologia do desenvolvimento”, pudemos contar
com o trabalho de arquivo recentíssimo de Krudriátsev e Maidánski,
tios quais agradecemos a oportunidade de apresentarmos nesta tra­
dução as notas dos editores.
Para além da questão das fontes, a tradução buscou manter o
estilo direto e rico do autor, com suas metáforas, por um lado, e argu­
mentação exaustiva de seu ponto de vista, por outro. Atentamos para
alguns termos importantes na história do desenvolvimento das ideias
de Vigotski. É o caso dos termos edínitsa (unidade) e edínstvo (tota­
lidade), que, com frequência, aparecem em português vertidos igual­
mente por “unidade” (no inglês, há unity e unit, respectivamente).
Vocábulos relacionados à educação costumam ser complexos para tra­
balho tradutório. Termos como vospitánie, obrazovánie e obutchênie
pertencem todos a um campo semântico similar, em torno das noções
de ensino, aprendizagem e educação. Nesta tradução, optamos por
verter vospitánie como “educação”, obrazovánie como “formação” e
obutchênie como “processo de ensino-aprendizagem”. Um termo de
destaque nos estudos vigotskianos dos últimos 15 anos, perejivãnie,
foi aqui traduzido como “vivência”. Por fim, a noção de uma verchí-
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

naia psikhológuiia foi vertida para o português como “psicologia do


ápice”, já que o adjetivo se origina do substantivo verchína (ápice,
cume, auge).

Buscamos compor um aparato de notas que esclarecesse, sem­


pre que possível, os autores mencionados por Vigotski. Para tanto, em
particular no caso dos psicólogos alemães, contamos com a inestimá­
vel colaboração do professor e pesquisador Saulo de Freitas Araujo.
Apesar de nossos esforços, nem todos os autores foram identificados.
Cronologia
1896 Nasce L. S. Vigotski em Orcha, povoado próximo a
Gomei, cidade em Belarus, na época parte do Império
Russo.
1911 Ingressa no ginásio, liceu judaico, equivalente ao nosso
ensino médio.
1912-1913 Redige seu primeiro texto conhecido, “Os judeus e a
questão judaica nas obras de F. M. Dostoiévski”.
1913 Finaliza o liceu judaico com uma medalha de ouro. E
inicia o curso de Direito da Universidade de Moscou.

1916 Termina o livro A tragédia de Hamlet, príncipe da Dina­


marca, com inspiração predominantemente simbolista.

1917 Retorna a Gomei, após concluir a graduação em Moscou.


Leciona na Escola Trabalhista Soviética e no Colégio Pe­
dagógico, tornando-se importante figura na cultura local.

1920 Contrai tuberculose.


1922-1927 Inicia a investigação das reações dominantes, seu princi­
pal interesse de pesquisa, em colaboração com seus estu­
dantes L. V. Zankov, I. M. Soloviev, L. S. Sakharov, Ga-
gaeva, e o trabalho defectológico com 1.1. Daniuchevski
e outros.
1924 Vincula-se ao Instituto de Psicologia Experimental de
Moscou, após sua conferência no II Congresso Psiconeu-
rológico de Toda a Rússia. Também se vincula ao Comis­
sariado do Povo para a Educação Pública.
1925 Auxilia na organização do recém-fundado Instituto de De-
fectologia e publica seus primeiros trabalhos sobre o tema.
24 Psicologia, desenvolvimento hum ano e marxismo

Publica “A consciência como um problema de psicologia


do comportamento” e finaliza a obra Psicologia da arte,
proveniente da sua tese de doutorado.

Passa a trabalhar em vários estabelecimentos de ensino


superior, entre os quais Segunda Universidade Estatal de
Moscou, Instituto de Pedología e Defectologia, Academia
de Educação Comunista e Instituto Central de Elevação
e Qualificação dos Quadros da Educação Pública. Nesse
ano, Luria e Vigotski são apresentados a Kurt Lewin e
colaboradores.
1926 Publica o manual Psicologia pedagógica, concluído em
1924.
1927-1931 Escreve “O significado histórico da crise na psicolo­
gia”, publicado apenas em 1982, no tomo I das Obras
escolhidas.

Estabelece suas principais colaborações com os primeiros


estudantes de pós-graduação - L. V. Zankov, I. M. Solo­
viev, L. S. Sakharov, B. E. Varcháva -, e os colaboradores
do Instituto de Psicologia de Moscou - L. S. Artemov, N.
F. Dobrinin, N. A. Bernstein, L. Gellersein e A. R. Luria.
1928 Publica o artigo ‘‘O problema do desenvolvimento cul­
tural da criança” na revista Pedología, fundada após o I
Congresso de Toda a União sobre Pedología, lançando as
bases da teoria histórico-cultural.

Expõe com Leontiev e Sakharov os resultados obtidos


pelo método da estimulação dupla.
1929 XI Congresso Internacional de Psicologia, em Yale, nos
Estados Unidos. Luria apresenta seu trabalho com Vigot­
ski sobre a linguagem egocêntrica. Volta a encontrar-se
Cronologia 25

com Kurt Lewin e outros pesquisadores da Escola de


Berlim, consolidando a parceria que envolveria Vigotski
e seus colaboradores nos anos seguintes.
1930 Publica com Luria os “Estudos sobre a historia do com­
portamento”.

Publica também o artigo “O refazimento socialista do


ser humano”. Apresenta, ainda, a decisiva conferência
“Sobre os sistemas psicológicos”.

1931-1933 Termina os manuscritos de sua “Historia do desenvolvi­


mento das funções psíquicas superiores”.
Torna-se professor de Pedología no Segundo Instituto
Médico de Moscou.

Talankin publica urna breve crítica a Vigotski. No ano


seguinte, são publicados dois artigos de crítica a Vigotski:
um de R. Abelskaia e Ia. S. Neopikhonova e outro de M.
P. Feofanov.
Luria e outros colaboradores de Vigotski viajam ao Uzbe­
quistão e programam nova expedição às suas áreas remo­
tas. Vigotski participa dessa pesquisa que atrairá suspei­
tas e críticas do governo. Cancelam-se novas expedições
e nomeia-se uma comissão para investigar os autores, a
qual apresenta seu parecer crítico em 1934.
É nomeado presidente da Associação Sindical dos Traba­
lhadores da Ciência e Técnica para a Promoção da Edifi­
cação Socialista.
1932 Cessa a publicação do periódico Psikhologuiia, sob
direção de Kornilov, e das principais revistas de
psicologia na URSS: Psicologia, Pedología, Ques­
tões de Estudo e Treinamento da Personalidade.
26 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Seus principais trabalhos são publicados no Soviétskaia


Pedagóguika, no Vopróssi Filossófii e no Pod Znamenem
Marksizma.
1934 Escreve os capítulos finais do livro Pensamento e linguagem.
Morre aos 37 anos de tuberculose, no Sanatório de
Serebriáni Bor.
1. A consciência como problema
da psicologia do comportamento
( 1925)

A aranha realiza operações que lembram as operações de um tece­


lão, e a abelha ao construir suas colmeias faz vergonha a alguns ar­
quitetos. Mas mesmo o pior dos arquitetos se distingue da melhor
abelha desde o princípio, pois, antes de construir urna colmeia, ele já
a construiu em sua cabeça. No final do processo de trabalho tem-se
o resultado que, desde o princípio desse mesmo processo, existía na
compreensão do ser humano, ou seja, idealmente. O ser humano não
apenas altera a forma do que é dado pela natureza; naquilo que é
dado pela natureza ele realiza seu objetivo consciente, o qual, como
urna lei, determina os modos e o caráter de suas ações e ao qual ele
deve subordinar sua vontade.

Karl Marx1

A questão da natureza psicológica da consciência é insistente


e intencionalmente evitada em nossa literatura científica. Tentam não
notá-la, como se para a nova psicologia ela sequer existisse. As con­
seqüências desses sistemas de psicologia científica, que se formam
diante de nossos olhos, trazem consigo, desde o princípio, uma série
de defeitos orgânicos. Citaremos alguns deles, os que são, em nossa
opinião, os mais básicos e principais.
1. Ao ignorar o problema da consciência, a psicologia fecha
para si mesma o acesso à pesquisa de problemas um tanto complexos
do comportamento humano. Ela é obrigada a se limitar à explicação
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

das relações mais elementares entre o ser vivo e o mundo. Será fácil
convencer-se de que esse é o caso se espiarmos o sumário do livro
Fundamentos gerais da reflexologia humana (1923), de V. M. Békhte-
rev: “Princípio de conservação da energia. Princípio de inconstância
permanente. Princípio de ritmo. Princípio de adaptação. Princípio de
reação equivalente à ação. Princípio de relatividade”. Em suma, prin­
cípios universais que compreendem não apenas o comportamento
animal e humano, mas também toda a totalidade universal. Não
obstante, não há uma lei psicológica sequer que formule a relação
encontrada ou a dependência entre fenômenos que caracterizam a
peculiaridade do comportamento humano.
No outro polo do livro, o clássico experimento de formação
do reflexo condicionado, uma pequena experiência, fundamental e
excepcionalmente importante, mas que não preenche o espaço uni­
versal que vai do reflexo condicionado até o princípio da relatividade.
A não correlação entre o telhado e o fundamento, a ausência de um
edifício entre eles, revela facilmente que ainda é cedo para formular
princípios universais com base em materiais reflexológicos e como é
fácil tomar leis de outras áreas do conhecimento e aplicá-las à psico­
logia. Além disso, quanto mais amplo e abrangente for o princípio,
mais facilmente ele será estendido para o fato que nos é necessário.
Só não podemos esquecer que o escopo e o conteúdo do conceito
sempre se encontram em dependência inversamente proporcional. E
assim como o escopo dos princípios universais tende ao infinito, seu
conteúdo psicológico tende com o mesmo ímpeto a se reduzir a zero.
E esse não é um defeito particular da abordagem de Békhte-
rev. De uma forma ou de outra, esse mesmo defeito se revela e se
manifesta em quaisquer tentativas de formular sistematicamente uma
teoria sobre o comportamento humano como reflexologia pura.
2. A negação da consciência e a aspiração de construir um si
tema psicológico sem esse conceito, como uma “psicologia sem cons-
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

ciência”, segundo a expressão de Pável Blónski2 (1921, p. 9), fazem


com que os procedimentos metodológicos fiquem desprovidos dos
meios necessários para a pesquisa de reações que não se revelam, não
so manifestam a olho nu, como é o caso dos movimentos internos, da
íala interior, das reações somáticas etc. O estudo apenas das reações,
vistas a olho nu, é totalmente impotente e inconsistente mesmo diante
dos mais simples problemas do comportamento humano. Entretanto,
o comportamento humano é organizado de tal forma que são justa­
mente os movimentos internos, que não se manifestam totalmente,
que o direcionam e orientam. Quando formamos o reflexo condi­
cionado de salivar no cachorro, de certa forma organizamos previa­
mente, mediante procedimentos exteriores, seu comportamento, do
contrário a experiência não daria certo. Nós o colocamos numa má­
quina, prendemos com uma correia e assim por diante. Exatamente
do mesmo modo, organizamos previamente o comportamento do su­
jeito por meio de certos movimentos internos, por meio da instrução,
da explicação etc., e, se esses movimentos internos ao redor se alte­
ram no decorrer do experimento, todo o quadro do comportamento
se altera drasticamente. Dessa forma, sempre utilizamos reações re­
tardadas; sabemos que elas ocorrem sem cessar no organismo, que
cias têm um influente papel regulador do comportamento desde que
cie seja consciente. Mas não temos quaisquer meios para pesquisar
essas reações internas.
Dizendo de forma mais simples: o ser humano sempre pensa
para si; isso nunca deixa de influenciar seu comportamento; uma mu­
dança súbita de pensamentos durante um experimento sempre ressoa
de modo nítido em todo o comportamento do sujeito (de repente o
pensamento: “Não vou olhar para o aparelho”). Mas nada sabemos
sobre como considerar essa influência.
3. São eliminados quaisquer limites fundamentais entre o
comportamento animal e o humano. A biologia devora a sociologia,
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

a fisiología devora a psicologia. O comportamento humano é estu­


dado na medida em que se trata do comportamento de um mamífero.
Aquilo que é fundamentalmente novo, aquilo que a consciência e o
psiquismo introduzem no comportamento humano é ignorado. Como
exemplo, cito duas leis: a lei da extinção (ou inibição interna) dos re­
flexos condicionados, estabelecida por Ivan Pávlov (1923),3 e a lei da
dominante, formulada por Aleksei Úkhtomski (1923).4
A lei da extinção (ou da inibição interna) dos reflexos con­
dicionados estabelece que, mediante excitação prolongada por um
estímulo condicionado, não reforçado por um não condicionado, o
reflexo condicionado se enfraquece gradualmente e, por fim, é total­
mente extinto. Passemos ao comportamento humano. Estabelece-se
no sujeito uma reação condicionada a certo estímulo: “Quando ouvir
o sinal, pressione o botão”. O experimento é repetido 40, 50, 100
vezes. Ocorre a extinção? Ao contrário, a relação se fortalece a cada
vez, dia a dia. Surge a fadiga, mas ela não tem relação com a lei da
extinção. Evidente que aqui a simples transposição da lei do campo
da zoopsicologia para a psicologia humana é impossível. Faz-se neces­
sária uma ressalva fundamental. Só que nós não apenas não sabemos
qual ela é, como sequer sabemos onde procurá-la.
A lei da dominante estabelece a existência de focos de excitação
no sistema nervoso dos animais, os quais atraem outras excitações,
subdominantes, que se encontram no sistema nervoso naquele mo­
mento. A excitação sexual nos gatos, o ato de deglutição e defecação, o
reflexo do abraço nos sapos, tudo isso, como mostram as pesquisas, é
reforçado à custa de quaisquer estímulos alheios. Ao contrário, quais­
quer estímulos alheios distraem e enfraquecem a atenção. Novamente,
a passagem das leis da dominante, identificadas em gatos e sapos, para
as leis do comportamento humano requer um reparo fundamental.
4. O mais importante, a exclusão da consciência da esfera da
psicologia científica conserva, em grande medida, todo o dualismo
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

o o espiritualismo da antiga psicologia subjetiva. Vladimir Békhterev


( 1923)5 afirma que o sistema da reflexologia não contradiz a hipó­
tese da “alma”.* Fenômenos subjetivos ou conscientes são caracte­
rizados por ele como fenómenos de segunda ordem, como fenóme­
nos internos específicos que acompanham reflexos compostos. O
dualismo se fortalece ao permitir a possibilidade e até reconhecer a
inevitabilidade do surgimento de uma futura ciência à parte, isto é,
a reflexologia subjetiva.
O principal pressuposto da reflexologia - isto é, admitir a pos­
sibilidade de explicar todo o comportamento humano até o fim, sem
se valer de fenómenos subjetivos, de construir uma psicologia sem psi-
quismo - apresenta um dualismo às avessas da psicologia subjetiva,
com sua tentativa de estudar um psiquismo puro, abstrato. Trata-se
da outra metade do mesmo dualismo anterior: lá havia psiquismo sem
comportamento; aqui temos comportamento sem psiquismo; lá e cá
“psiquismo” e “comportamento” são compreendidos como dois fenô­
menos distintos. Nenhum psicólogo, ainda que ele seja espiritualista
e idealista ao extremo, justamente por força desse dualismo, jamais
negou o materialismo fisiológico da reflexologia; ao contrário, todo e
qualquer idealismo necessariamente o pressupõe.
5. Ao expulsarmos a consciência da psicologia, ficamos eterna­
mente restritos a um círculo de absurdos biológicos. Mesmo Békhte­
rev (1923, p. 78) adverte ser um grande erro considerar os

processos subjetivos com o sendo totalm ente supérfluos ou fenôm e­


nos secundários da natureza (epifenóm enos), pois sabem os que os
fenômenos subjetivos atingem o maior desenvolvimento em processos
mais com plexos de atividade correlata.

* Békhterev, V. Obschie osnovi refleksologuii tcheloviéka [Fundamentos gerais da reflexolo­


gia humana]. Moscou, Petrogrado, 1923.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Consequentemente, resta reconhecer um dos dois: ou isso é


realmente assim - nesse caso, é impossível estudar o comportamento
humano, as formas complexas de sua atividade correlata, independen­
temente do seu psiquismo - ou não - nesse caso, o psiquismo é um
epifenômeno, um fenômeno secundário, uma vez que tudo pode ser
explicado sem ele, o que nos leva ao absurdo biológico. Uma terceira
possibilidade não é dada.
6. Mediante tal colocação da questão, resta-nos permanent
mente fechado o acesso à investigação dos mais importantes problemas
(a estrutura do nosso comportamento, a análise de sua composição e
forma). Estamos eternamente condenados a permanecer com falsas
concepções, como se o comportamento fosse uma soma de reflexos.
O reflexo é um conceito abstrato: metodologicamente ele é va­
lioso ao extremo, mas ele não pode se tornar o conceito fundamental
da psicologia como ciência concreta sobre o comportamento humano.
O ser humano não é de forma alguma um saco de pele cheio de refle­
xos, e o cérebro não é um hotel para reflexos condicionados que se
encontram casualmente próximos.
A investigação das reações dominantes em animais, a investi­
gação da integração dos reflexos mostraram de forma indiscutivel­
mente convincente que o trabalho de cada órgão, seu reflexo, não
é algo estático, mas apenas uma função do estado geral do orga­
nismo. O sistema nervoso trabalha como um todo, e essa fórmula
de Charles Sherrington6 deve ser colocada na base da teoria sobre
a estrutura do comportamento.
Na realidade, a palavra “reflexo” no sentido em que é utili­
zada entre nós lembra muito a história de Kannitferstan,7 um nome
que um pobre estrangeiro sempre ouvia na Holanda em resposta à
sua pergunta “Quem estão sepultando? De quem é essa casa? Quem
passou?” etc. Ele pensou ingenuamente que tudo naquele país era
feito por Kannitferstan, porém essa palavra significava apenas que os
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

holandeses não compreendiam suas perguntas. O reflexo de objetivo


ou reflexo da liberdade8 são exemplos de semelhante incompreensão
dos fenômenos estudados. É claro que eles não são reflexos no
sentido comum, no sentido do reflexo salivar, mas um mecanismo de
comportamento distinto em termos de estrutura. E apenas mediante
ii redução geral a um denominador comum é possível dizer a mesma
coisa sobre tudo: trata-se de reflexo, como fez Kannitferstan. Com
isso, a própria palavra “reflexo” deixa de ter sentido.
O que é a sensação? É reflexo. O que é a linguagem, o gesto, a
expressão facial? Também é reflexo. E os instintos, os lapsos, as emo­
ções? São, igualmente, reflexos. Todos os fenômenos desvelados pela
Escola de Würzburg9 nos processos cognitivos superiores, a análise
do devaneio proposta por Freud, tudo isso são reflexos. É claro que
isso é verdadeiro, mas a inutilidade de tais constatações cruas é total­
mente evidente. Com tal método de estudo, a ciência não apenas não
lança luz e clareza sobre as questões estudadas, permitindo desmem­
brar, delimitar os objetos, formas, fenômenos, como, ao contrário,
também obriga a ver tudo sob uma meia-luz opaca, quando tudo se
funde e não há limites claros entre os objetos. Isso é reflexo, aquilo
também é reflexo, mas o que distingue um do outro?
É preciso estudar não o reflexo, mas o comportamento, seu
mecanismo, sua composição e estrutura. Entre nós, no experimento
com animais ou humanos, sempre surge a ilusão de estarmos
investigando a reação ou o reflexo. Em essência, sempre estudamos o
comportamento, pois inevitavelmente organizamos previamente, de
alguma forma, o comportamento do sujeito da pesquisa de modo a
garantir o predomínio da reação ou do reflexo; do contrário não se
obtém nada.
Por acaso nos experimentos de Ivan Pávlov o cachorro reage
com o reflexo salivar, e não com uma multiplicidade das mais variadas
reações motoras, internas e externas; por acaso eles não influenciam
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

o decurso do reflexo observado? Por acaso o estímulo condicionado,


unido nesses experimentos, não suscita por si só essas mesmas rea­
ções (reações orientadoras da orelha, olhos etc.)? Por que as ligações
condicionadas ocorrem entre o reflexo salivar e o sinal sonoro e não o
contrário, ou seja, não é a carne que suscita o movimento orientador
das orelhas? Será que os sujeitos, ao apertarem o botão depois do
sinal sonoro, expressam com isso toda sua reação? E o relaxamento
geral do corpo, o apoiar-se no encosto da cadeira, o movimento da
cabeça, o suspiro etc. não constituem partes fundamentais da reação?
Isso tudo indica a complexidade de qualquer reação, a depen­
dência dela em relação à estrutura do mecanismo do comportamento
no qual ela está inserida, a impossibilidade de estudar a reação em sua
forma abstrata. Não nos esqueçamos de que, antes de tirar conclusões
importantes e decisivas do experimento clássico com o reflexo condi­
cionado, a pesquisa está apenas começando, que ela capturou apenas
um círculo bastante estreito, de que foram estudados apenas um ou
dois tipos de reflexo, o salivar e o motor-defensivo, apenas os reflexos
condicionados de primeira e segunda ordem, e em uma direção biolo­
gicamente não favorável para o animal (para que o animal vai salivar
em resposta a um sinal tão distante, a estímulos condicionados de
ordem elevada?). Por isso, devemos ter cuidado com a transposição
direta das leis reflexológicas para a psicologia. Está correto Vladimir
Vagner10 (1923), ao afirmar que o reflexo é o alicerce, mas com isso
não é possível dizer o que vai ser construído sobre esse alicerce.
Diante de todas essas considerações, pode-se pensar que é ne­
cessário voltar o olhar ao comportamento humano como a um me­
canismo fechado pela chave do reflexo condicionado. Sem hipóteses
de trabalho preliminares sobre a natureza psicológica da consciência,
é impossível examinar criticamente todo o capital científico nesse
campo, selecionar e filtrá-lo, traduzi-lo para outra língua, elaborar
novos conceitos e criar uma nova problemática.
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

A psicologia científica precisa não ignorar os fatos da consciên­


cia, mas materializá-los, traduzi-los para uma linguagem objetiva, que
exista objetivamente; deve desmascarar e enterrar de urna vez por
(odas ficções, fantasmagorías etc. Sem isso não será possível trabalho
algum: nem ensinar, nem criticar, nem pesquisar.
Não é difícil compreender que a consciência não deve ser
analisada biológica, fisiológica e psicologicamente como uma série
secundária de fenômenos. É preciso encontrar um lugar para ela e
interpretá-la em uma mesma série de fenômenos junto de todas as
reações do organismo. Essa é a primeira exigência de nossa hipótese
de trabalho. A consciência é um problema de estrutura do com­
portamento. Outra exigência: a hipótese deve, sem extrapolações,
explicar as principais questões ligadas à consciência, o problema da
conservação de energia, a autoconsciência, a natureza psicológica
do conhecimento da consciência alheia, o caráter consciente das
três esferas principais da psicologia empírica (pensamento, emoção
e vontade), o conceito de inconsciente, a evolução da consciência,
identidade e unidade.
Aqui, nesse esboço curto e ligeiro, estão expressas as ideias
mais preliminares, mais gerais e mais fundamentais, em cuja intersec-
ção acreditamos ser possível surgir a futura hipótese de trabalho da
consciência para a psicologia do comportamento.

Abordemos a questão de fora, não a partir da psicologia.


Todo o comportamento animal em suas principais formas pode
ser organizado em dois grupos de reações: reflexos inatos ou incondi­
cionais e reflexos adquiridos, condicionados.11 Com isso, os reflexos
inatos compõem como que um estrato biológico da experiência co­
letiva herdada da espécie, enquanto os adquiridos surgem com base
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

nessa experiência herdada por meio do estabelecimento de novas rela­


ções, dadas na experiência pessoal do indivíduo. De modo que todo o
comportamento animal pode ser designado convencionalmente como
experiência herdada mais experiência herdada multiplicada pela ex­
periência pessoal. A origem da experiência herdada foi elucidada por
Charles Darwin; o mecanismo de multiplicação pela experiência pes­
soal é o mecanismo do reflexo condicionado, estabelecido por Ivan
Pávlov. De modo geral, essa fórmula esgota o comportamento animal.
A situação do humano é distinta. Nesse caso, para captar de
forma minimamente completa todo o comportamento, é necessário
introduzir novos elementos na fórmula. Faz-se necessário, antes de
tudo, observar a experiência herdada e extraordinariamente ampliada
pelo humano em comparação com o animal. O ser humano faz uso
não apenas da experiência fisicamente herdada. Toda nossa vida, tra­
balho e comportamento são baseados no mais amplo uso da expe­
riência das gerações anteriores, uma experiência que não é passada
no nascimento, de pai para filho. Ela será convencionalmente deno­
minada de experiência histórica.
Ao lado dela pode ser colocada a experiência social, a expe­
riência de outras pessoas, que constitui um componente bastante
significativo do comportamento humano. Refiro-me não apenas às
relações estabelecidas em minha experiência pessoal entre reflexos
não condicionados e certos elementos do meio, mas também a uma
multiplicidade de relações que foram estabelecidas na experiência de
outras pessoas. Se conheço o Saara e Marte, embora nunca tenha
saído do meu país e nunca tenha olhado por um telescópio, é evidente
que aquilo que ocorre por meio dessa experiência está ligado à expe­
riência de outras pessoas que estiveram no Saara e que olharam por
um telescópio. É evidente que os animais não têm tal experiência.
Este será denominado o componente social do nosso comportamento.
Por fim, é fundamentalmente novo para o comportamento hu­
mano o fato de que sua adaptação e o comportamento ligado a ela
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

adquirem formas novas em relação à dos animais. Lá tem-se adap­


tação passiva ao meio; aqui, adaptação ativa ao meio e a si mesmo,
it verdade que também encontramos nos animais formas iniciais de
adaptação ativa à atividade instintiva (construção de ninho, abrigo
etc.), mas no reino animal essa forma, em primeiro lugar, não tem
significado predominante, fundamental; em segundo lugar, elas per­
manecem sendo passivas tanto em essência quanto em termos do
mecanismo de sua realização.
A aranha que tece uma teia e a abelha que constrói uma col-
meia de cera fazem isso por força do instinto, de modo mecânico,
idêntico e não demonstram maior atividade nisso do que nas demais
reações adaptativas. O tecelão e o arquiteto são outra história. Como
diz Marx, eles construíram sua obra antes em suas cabeças; o resul­
tado obtido no processo de trabalho ocorreu idealmente antes do
seu início (ver Marx; Engels, Obras, v. 23, p. 189). Essa explicação
absolutamente indubitável de Marx não quer dizer outra coisa senão
a duplicação da experiência, obrigatória para o trabalho humano. O
trabalho repete aquilo que antes, em movimentos das mãos e em alte­
rações do material, era feito na representação do trabalhador como se
ele operasse um modelo desses mesmos movimentos e desse mesmo
material. Essa duplicação da experiência, que permite ao ser humano
desenvolver formas de adaptação ativa, não existe em animais. Deno­
minaremos convencionalmente esse novo tipo de comportamento de
experiência duplicada.
Agora a nova parte da fórmula do comportamento humano
assume o seguinte aspecto: experiência histórica, experiência social,
experiência duplicada.
Resta a questão: quais sinais ligam esses novos elementos da
fórmula entre si e com as partes anteriores? O sinal de multiplicação
da experiência herdada pela experiência pessoal é claro para nós: ele
designa o mecanismo do reflexo condicionado.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

À busca de sinais faltantes serão dedicadas as seções seguintes


deste artigo.

Na seção anterior foram observados os aspectos biológicos e


sociais do problema. Agora examinaremos ainda que brevemente seu
aspecto fisiológico.
Mesmo as experiências mais elementares com reflexos isola­
dos se defrontam com o problema da coordenação dos reflexos ou
da passagem deles para o comportamento. Antes foi mencionado de
passagem que qualquer experimento de Pávlov já pressupõe que o
comportamento do cachorro foi previamente organizado de modo a
se estabelecer uma única relação necessária no conflito dos reflexos.
Pávlov (1950)* teve ocasião de formular reflexos mais complexos em
cachorros. Mais de uma vez ele indica a ocorrência, no decorrer dos
experimentos, do conflito entre dois reflexos distintos. Com isso, os
resultados nem sempre são idênticos: em um caso, é relatado reforça-
mento do reflexo alimentar por um reflexo de guarda concomitante;
em outro, a vitória do reflexo alimentar sobre o de guarda. Dois re­
flexos são literalmente como dois pesos de uma balança, diz Pávlov a
esse respeito. Ele não fecha os olhos para a extraordinária complexi­
dade do decurso do reflexo e afirma:

Se nos atentarmos ao fato de que um dado reflexo a um estím ulo


exterior se limita e se regula não apenas por outro ato reflexo conco­
mitante exterior, mas também por uma grande quantidade de reflexos
internos, bem com o pela ação de toda sorte de estím ulos internos
- químicos, térmicos etc. - que operam em diferentes partes do sis-

* Pávlov, I. P. XX-letni opit obiektivnogo izutcheniia vischei nervnoi deiatelnosti (povedeniia)


jivotnikh [Vinte anos de experiência com o estudo objetivo da atividade nervosa superior (do
comportamento) de animais]. Moscou, Leningrado, 1950.
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

tema nervoso central ou mesmo diretamente nos elementos do tecido


executivo (motor ou de secreção), então essa noção seria capaz de
captar toda a com plexidade real dos fenôm enos de resposta reflexa
(Pávlov, 1950, p. 190).

O princípio fundamental de cooperação dos reflexos, como ele


foi elucidado nas investigações de Sherrington, consiste na luta entre
diferentes grupos de receptores por um campo motor geral. Ocorre
que a quantidade de neurônios aferentes no sistema nervoso é muito
maior do que a de eferentes e, por isso, cada neurônio motor se en­
contra em relação reflexa não apenas com um receptor, mas também
com muitos, possivelmente com todos. No organismo sempre surge
uma luta pelo campo motor geral, pela posse de um órgão funcional
entre diferentes receptores. O resultado dessa luta depende de razões
muito complexas e variadas. Dessa forma, fica claro que toda reação
realizada, todo reflexo vitorioso surge depois de uma luta, depois de
um conflito em um “ponto de colisão” (Sherrington, 1912).'
O comportamento é um sistema de reações vitoriosas.
Em condições normais, diz Sherrington, se deixarmos de lado
a questão da consciência, todo o comportamento animal é formado
por sucessivas passagens de um campo final seja para um grupo de re­
flexos ou para outro. Em outras palavras, todo comportamento é uma
luta que não cessa por um minuto sequer. Há todo um fundamento
para se supor que uma das mais importantes funções do cérebro con­
siste justamente em estabelecer a coordenação entre os reflexos que
partem de pontos distantes, graças à qual o sistema nervoso se integra
em um indivíduo completo.

* Sherrington, C. Assossiatsia spinomozgovikh refleksov i printsip obschego polia [Asso­


ciação dos reflexos cérebro-espinhais e o princípio geral do campo], In Uspekhi sovremién-
nogo biologuii [Êxitos da biologia contemporânea], Odessa, 1912.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

O mecanismo coordenador do campo motor geral serve, se­


gundo Sherrington, de base para o processo psíquico fundamental
da atenção. Graças a esse princípio, a todo momento cria-se uma
totalidade12 de ação, e ela, por sua vez, serve de base para o con­
ceito de personalidade; dessa forma, a criação da totalidade da
personalidade constitui a tarefa do sistema nervoso, afirma Sherrin­
gton. O reflexo é uma reação integral do organismo. Cada músculo,
cada órgão funcional deve ser analisado como um “cheque ao por­
tador, que pode ser descontado por qualquer grupo de receptores”
(Sherrington, 1912, p. 23).

Uma noção geral sobre o sistema nervoso pode ser perfeita­


mente apresentada pela seguinte comparação:

O sistema de receptores se relaciona com um sistema de caminhos


eferentes, com o a abertura superior de um funil se relaciona com a
inferior. Mas cada receptor está em relação não com um, mas com
muitos, talvez com todas as fibras eferentes; é claro que essa relação
tem distinto grau de estabilidade. Por isso, em continuação à nossa
comparação com o funil, é preciso dizer que qualquer sistem a ner­
voso é um funil, e uma das aberturas é cinco vezes maior do que a
outra; dentro desse funil estão os receptores que também são funis,
cuja abertura maior está virada para a saída do funil geral e o fecha
por completo (Sherrington, 1912, p. 56).

Ivan Pávlov (1950) compara os grandes hemisférios do cére- ]”


bro com uma estação telefônica, na qual são estabelecidas ligações J
novas, temporárias entre elementos do meio e reações isoladas.
Muito mais do que uma estação telefônica, nosso sistema nervoso
lembra uma porta estreita de um prédio para o qual acorrem mi­
lhares de pessoas em pânico; pela porta só podem passar algumas
pessoas; os que conseguem entrar são apenas alguns entre milhares
de outros que ficam para trás ou são mortos. Isso transmite de forma
mais adequada o caráter catastrófico da luta, do processo dinâmico
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

e dialético entre o mundo e a pessoa e o interior da pessoa, que é


denominado comportamento.
Disso decorrem duas posições necessárias para a correta colo­
cação da questão da consciência como mecanismo do comportamento.
1. O mundo é como que despejado pela abertura maior de um
funil com milhares de estímulos, inclinações, apelos; dentro do fu­
nil ocorre uma luta incessante, um embate; todas as excitações es­
correm pela abertura menor sob a forma de reações de resposta do
organismo em uma quantidade drasticamente reduzida. O comporta­
mento realizado é uma parte ínfima do possível. O ser humano a todo
momento é pleno de possibilidades não realizadas. Tais possiblidades
não realizadas do nosso comportamento, essa diferença entre as aber­
turas maior e menor do funil, são a mais perfeita realidade, assim
como as reações triunfantes, pois todos os três aspectos da reação
estão presentes.
Em uma estrutura um tanto complexa do campo geral final ou
em reflexos complexos, esse comportamento não realizado pode ter
formas extraordinariamente variadas: “Nos reflexos complexos, os ar­
cos reflexos às vezes se aliam com uma parte do campo geral e lutam
entre si com a outra parte” (Sherrington, 1912, p. 26). Dessa forma,
a reação pode permanecer em parte não realizada ou realizada em
uma certa parte, sempre indeterminada.
2. Por causa do equilíbrio extraordinariamente complexo es­
tabelecido no sistema nervoso pela complexa luta dos reflexos, com
frequência basta um estímulo de uma força totalmente insignificante
para decidir o resultado da luta. Assim, em um sistema complexo
de forças em combate, uma força nova e ínfima pode determinar o
resultado e a direção das forças resultantes; em uma grande guerra,
mesmo um Estado pequeno que se alie a um dos lados pode decidir a
vitória e a derrota. Isso significa que é fácil imaginar como as reações
em si mesmas insignificantes, imperceptíveis até, podem acabar sendo
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

dominantes a depender da conjuntura no “ponto de colisão” no qual


elas aparecem.

A lei universal mais* elementar e fundamental da relação dos


reflexos pode ser assim formulada: os reflexos estão ligados entre si
segundo as leis dos reflexos condicionados; além disso, a parte da
resposta de um reflexo (motor, secretor) pode, em circunstâncias ade­
quadas, tornar-se um estímulo condicionado (ou um inibidor) para
outro reflexo, conectando por um caminho sensorio os estímulos pe­
riféricos ligados a ele no arco reflexo com o novo reflexo. É possível
que toda uma série de tais ligações seja dada hereditariamente e se
relacione com reflexos não condicionados. A outra parte é criada no
processo da experiência e não pode deixar de ser criada de forma
constante no organismo.
Ivan Pávlov denomina esse mecanismo de reflexo em cadeia e
o associa à explicação do instinto. Gueórgui Zelióni13 (1923)* revela
o mesmo mecanismo na investigação dos movimentos musculares
ritmados que também são reflexos em cadeia. Dessa forma, tal me­
canismo é o que melhor explica a união de reflexos inconscientes,
automáticos. Contudo, se nos atentarmos não para o mesmo sistema
de reflexos, mas para outros e para a possibilidade de transmissão, de
um sistema a outro, tem-se basicamente o mesmo mecanismo da cons­
ciência em seu significado objetivo. A capacidade de o nosso corpo
ser um estímulo (por meio de seus atos) para si mesmo (para novos
atos): essa é a base da consciência.

* Zelióni, G. P. O ritmítcheskikh mischetchnikh dvijêniakh [Sobre os movimentos muscula­


res rítmicos], Russkifiziologuítcheski jornal [Revista Russa de Fisiología], v. 6, n. 1-3, 1923.
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

Agora já é possível falar sobre a indubitável cooperação de


sistemas de reflexo separados, sobre o reflexo de um sistema em ou­
tro. O cachorro reage ao ácido clorídrico com a secreção de saliva
(reflexo), mas a própria saliva é um novo estímulo para o reflexo
de deglutição ou expulsão. Por meio de associação livre, pronuncio
"narciso” para a palavra-estímulo “rosa”. Isso é um reflexo, mas ele
não funciona como estímulo para outra palavra, “matíola”.14 É tudo
dentro de um sistema ou de sistemas próximos, que colaboram entre
si. O uivo do lobo suscita em mim, como estímulo, reflexos somáticos
e expressões faciais de medo; respiração alterada, batimento cardíaco
acelerado, tremor, garganta seca (reflexos) me levam a dizer ou pen­
sar: “Estou com medo”. Aqui há transmissão de um sistema a outro.
O próprio caráter consciente ou a capacidade de tomar cons­
ciência de nossos próprios atos e estados deve ser compreendido,
antes de tudo, como um sistema de mecanismos de transmissão de
um reflexo a outro que se encontra em correto funcionamento em
cada momento consciente. Quanto mais corretamente cada reflexo
interno, na qualidade de estímulo, for capaz de suscitar uma série de
outros reflexos de outros sistemas e ser transmitido para outros siste­
mas, mais seremos capazes de nos dar conta para nós mesmos e para
o outro daquilo que é vivenciado e mais conscientemente se vivencia
(sente, fixa em palavras etc.).
Dar-se conta de algo significa justamente traduzir um reflexo
para outro. São designados inconscientes psíquicos os reflexos que
não se transferem para outros sistemas. São possíveis graus infinita­
mente variados de consciência, ou seja, de interação entre os sistemas
incluídos no mecanismo do reflexo em ação. A consciência de suas vi­
vências não quer dizer outra coisa senão tê-las como objeto (estímulo)
para outras vivências. A consciência é a vivência das vivências, justa­
mente da mesma forma que as vivências são simplesmente a essência
da vivência dos objetos. Mas é exatamente a possibilidade de o reflexo
(a vivência do objeto) ser estímulo (objeto da vivência) para um novo
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

reflexo que constitui o mecanismo da consciência e é o mecanismo de


transmissão dos reflexos de um sistema a outro. Isso é mais ou menos
o que Békhterev chama de reflexos reportado e não reportado.
O problema da consciência deve ser colocado e resolvido pela
psicologia no sentido de que a consciência é a interação, o reflexo,
a mútua excitação de diferentes sistemas de reflexos. É consciente
aquilo que é transmitido como estímulo para um outro sistema e sus­
cita uma resposta dele. A consciência é sempre um eco, um aparelho
de resposta. Citarei três referências da literatura.
1. Aqui convém lembrar que a literatura psicológica indicou
mais de uma vez a reação circular como um mecanismo que devolve
ao organismo seu próprio reflexo com ajuda de correntes centrípe­
tas que surgem nesse momento e que estão na base da consciência
(N. N. Lange, 1914).*15 Com isso, com frequência se promoveu o
significado biológico da reação circular: um novo estímulo, emitido
pelo reflexo, suscita uma nova reação, secundária, que ou fortalece e
repete ou enfraquece e contém a primeira reação, a depender do es­
tado geral do organismo, como se o organismo fizesse uma avaliação
de seu próprio reflexo. Dessa forma, a reação circular não é apenas
uma simples junção de dois reflexos, mas também um tipo de junção
na qual uma reação dirige e regula a outra. Com isso, esboça-se ou­
tro aspecto do mecanismo da consciência: seu papel regulatório em
relação ao comportamento.
2. Sherrington distingue os campos exteroceptivo e interocep-
tivo como polos da superfície exterior do corpo e da superfície inte­
rior de alguns órgãos, nos quais é introduzida uma parte do meio
exterior. Ele fala de forma separada sobre o campo proprioceptivo,
excitado pelos mesmos organismos, cujas alterações ocorrem nos
músculos, nos tendões, nas articulações, nos vasos sanguíneos etc.

* Lange, N. N. Psikhologuiia [Psicologia]. Moscou, 1914.


1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

Diferentem ente dos receptores extero- e interoceptivos, os recepto­


res proprioceptivos são excitados apenas por influências secundárias,
que partem do m eio exterior. Seus estím ulos são o estado ativo de
certos órgãos; por exem plo, a contração de um m úsculo, que, por
sua vez, foi uma reação primária a um estímulo de um receptor de
superfície por fatores do meio exterior. Geralmente os reflexos que
surgem por causa do estím ulo de órgãos proprioceptivos se combi­
nam com reflexos suscitados por estímulos dos órgãos exteroceptivos
(Sherrington, 1912, p. 42).

A combinação de reflexos secundários com reações primárias,


essa “ligação secundária”, pode unir, como mostra a pesquisa, refle­
xos tanto aliados quanto antagônicos. Em outras palavras, a reação
secundária pode fortalecer ou cessar a primária. Nisso consiste o me­
canismo da consciência.
3. Por fim, Ivan Pávlov diz, em uma ocasião, que a reprodução
dos fenômenos nervosos no mundo subjetivo é muito peculiar e, por
assim dizer, reiteradamente refratada, de forma que, como um todo, a
compreensão psicológica da atividade nervosa é condicionada e apro­
ximada em alto grau.
Aqui Ivan Pávlov não intentou fazer nada mais do que uma
simples comparação, mas podemos compreender suas palavras no
sentido literal e exato e afirmar que a consciência é uma “refração
múltipla” dos reflexos.

Assim é resolvido o problema do psiquismo sem perda de ener­


gia. A consciência como um todo e sem nenhum resíduo é reduzida a
um mecanismo transmissor de reflexos que funciona por leis gerais,
ou seja, é possível admitir que não há nenhum outro processo no
organismo além das reações.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Abre-se a possibilidade também para a resolução do problema


da autoconsciência e auto-observação. A percepção interior, a intros-
pecção é possível apenas graças à existência do campo proprioceptivo
e dos reflexos secundários a ele ligados. Isso é sempre uma espécie
de eco da reação.
Isso esgota totalmente a autoconsciência como percepção da­
quilo que, segundo expressão de John Locke,16 advém da própria
alma humana. Torna-se claro, aqui, que essa experiência é acessível
apenas para a pessoa que a vivencia. Apenas eu mesmo, e somente
eu posso observar e perceber minhas reações secundárias, pois só
para mim os meus reflexos servem como novos estímulos do campo
proprioceptivo. Com isso explica-se facilmente também a cisão básica
da experiência: ela é psíquica justamente porque não se parece com
nada, está relacionada a estímulos sui generis, que não são encon­
trados em parte alguma a não ser em meu corpo. O movimento das
minhas mãos percebido pelo olho pode ser igualmente um estímulo
para os meus olhos e para os de outro, mas a consciência desse mo­
vimento, as excitações proprioceptivas que emergem e suscitam rea­
ções secundárias existem apenas para mim. Elas não têm nada em
comum com o primeiro estímulo do olho. Aqui os caminhos neurais
são inteiramente outros, outros mecanismos, outros estímulos.
Intimamente ligada a isso está uma questão bastante complexa
da metódica psicológica: acerca do valor da auto-observação. A psi­
cologia antiga a considera como uma fonte básica e principal de co­
nhecimento psicológico. A reflexologia a reòhaça absolutamente ou
a coloca sob controle de dados objetivos com fonte de informações
complementares (Békhterev, 1923).
A elaboração do entendimento dessa questão permite com­
preender em seus traços mais gerais e aproximados o significado
(objetivo) que o relato verbal do sujeito pode ter para a investigação
científica. Os reflexos encobertos (linguagem tácita), os reflexos in-
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

lomos, inacessíveis à percepção direta do observador podem com


frequência ser revelados de modo indireto, mediados por reflexos
observáveis acessíveis, em relação aos quais eles funcionam como
estímulos. Mediante a presença de um reflexo completo (palavra), é
possível julgar a presença de um estímulo correspondente que, nesse
caso, desempenha um papel duplo: estímulo em relação ao reflexo
completo e reflexo em relação ao estímulo anterior.
Considerando o papel enorme e primordial que o psiquismo,
ou seja, o grupo não explicitado de reflexos, desempenha no sis­
tema do comportamento, seria suicídio para a ciência recusar-se a
revelá-lo por um caminho indireto, isto é, por meio de seu reflexo
cm outros sistemas de reflexos. De fato, estamos considerando jus­
tamente os reflexos a estímulos internos, ocultos para nós. A lógica
aqui é a mesma, bem como as ideias e evidências. Segundo tal
compreensão, o relato do sujeito de forma alguma pode ser consi­
derado um ato de auto-observação, que mete a colher na pesquisa
científica objetiva. Não tem nada de auto-observação. O sujeito
não se coloca em absoluto fia posição de observador, não ajuda
o experimentador a observar os reflexos que lhe estão ocultos. O
sujeito permanece, até o fim, inclusive em seu relato, sendo objeto
da experiência, mas por meio de um questionamento subsequente
introduz na própria experiência algumas alterações e transforma­
ções; é introduzido um novo estímulo (um novo questionamento),
um novo reflexo, que permite julgar as partes não esclarecidas do
anterior. Com efeito, é como se toda a experiência, dessa forma,
passasse por uma lente dupla.
É necessário introduzir nos procedimentos metodológicos da
pesquisa psicológica essa passagem da experiência por reações se­
cundárias da consciência. O comportamento humano e o estabeleci­
mento de novas reações condicionadas são determinados não apenas
por reações explicitadas, plenas, reveladas até o fim, mas também
por aquelas que não estão reveladas em seu aspecto exterior, que
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

não são visíveis a olho nu. Por que é possível estudar reflexos verbais
completos, mas não se podem considerar reflexos-pensamentos inter­
rompidos em dois terços, embora essas sejam reações indubitáveis,
realmente existentes?
Se digo em voz alta, de tal forma que o experimentador possa
ouvir, a palavra “noite”, que me ocorrera por associação livre, isso
é considerado uma reação verbal, um reflexo condicionado. Já se
pronuncio de forma inaudível, para mim mesmo, se penso, será
que, por esse motivo, isso deixa de ser um reflexo e sua natureza
se altera? Onde está a fronteira entre a palavra dita e a não dita?
E se eu mexer os lábios, se sussurrar algo que não é audível para
experimentador, como fica a situação? Será que ele pode me pedir
para repetir a palavra em voz alta ou isso seria um método subje­
tivo, acessível apenas para si mesmo? Se ele pode (e provavelmente
todos irão concordar com isso), por que ele não pode pedir para
dizer em voz alta a palavra dita em pensamento, ou seja, sem movi­
mentar os lábios, com sussurro? De fato, ela era e permanece sendo
uma reação motora verbal, um reflexo condicionado, sem a qual
não haveria pensamento. Mas isso já é um questionamento, uma
manifestação do sujeito, seu relato verbal acerca de reações não
manifestas, não captadas pelo ouvido do experimentador (eis toda
a diferença entre pensamento e linguagem), mas que sem dúvida
existem objetivamente. Podemos nos convencer de muitas maneiras
sobre o fato de que elas existem, efetivamente com sinais de uma
existência material. É precisamente a elaboração desses modos que
constitui uma das mais importantes tarefas do método psicológico.
A psicanálise é um desse modos.
O mais importante, contudo, é que eles [os reflexos não ma­
nifestos] mesmos tratam de nos convencer sobre sua existência. Eles
se manifestam com tamanha força e vivacidade na corrente ulterior
das reações, que o experimentador é obrigado a considerá-los ou sim­
plesmente recusar-se a estudar tal corrente de reações na qual eles
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

irrompem. Mas serão muitos os exemplos de comportamento, nos


quais os reflexos retidos não irrompem? Assim, ou nos recusamos ao
estudo do comportamento humano em suas formas existentes ou le­
vamos esses movimentos internos obrigatoriamente em consideração
na nossa experiência.
Dois exemplos explicitam essa necessidade. Se memorizo al­
gum novo reflexo verbal estabelecido, será que é indiferente o que
vou pensar neste momento - repetir para mim mesmo determinada
palavra ou estabelecer uma relação lógica entre essa palavra e oulras?
Será que não está claro que os resultados em ambos os casos serão
fundamentalmente distintos?

Em associação livre à palavra-estímulo “trovão”, digo “cobra”,


mas antes ainda surge no pensamento a palavra “relâmpago”. Não
está claro que, sem levar em consideração tal pensamento, chego a
uma noção patentemente falsa de que a reação à palavra “trovão” foi
“cobra” e não “relâmpago”?
É claro que se trata, aqui, não de uma simples transposição da
auto-observação experimental oriunda da psicologia tradicional. Tra­
ta-se, antes, da necessidade urgente de elaborar um novo conjunto de
procedimentos para a investigação dos reflexos retardados. Estamos
defendendo aqui apenas a necessidade fundamental e a possibilidade
de fazê-lo.
Para finalizar as questões de método, iremos nos deter breve­
mente na instrutiva metamorfose pela qual o atual conjunto de proce­
dimentos de investigação reflexológica está passando quando aplicada
a humanos e da qual tratou V. P. Protopópov17em um de seus artigos.

Inicialmente os reflexólogos aplicaram estimulação eletrocutâ-


nea na planta do pé; mostrou-se mais proveitoso tomar como critério
uma reação de resposta de um aparato mais completo, mais adaptado
a reações orientadoras; os pés foram substituídos pelas mãos (V. P.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Protopópov, 1923, p. 22).* Mas uma coisa leva a outra. O ser humano
tem um aparato incomparavelmente mais completo, com ajuda do
qual se estabelece uma ligação ainda mais ampla com o mundo, isto
é, o aparato da fala: resta-nos passar às reações verbais.
No entanto, o mais curioso são esses “alguns fatos” com os
quais o pesquisador se depara em seu processo de trabalho. Ocorre
que a diferenciação do reflexo no ser humano foi atingida de forma
extremamente lenta e difícil; verifica-se que, ao impactar o objeto
com uma linguagem correspondente, é possível fomentar tanto rea­
ções retardadas como fazer emergir reações condicionadas (Proto­
pópov, 1923, p. 16). Em outras palavras, tòda essa descoberta leva à
possibilidade de se convencionar verbalmente com uma pessoa para
que ela mova a mão mediante um sinal conhecido e, mediante o
outro sinal, não a mova! O autor precisa fazer duas afirmações que
nos são importantes aqui:
1. Sem dúvida, as investigações reflexológicas com humanos no
futuro devem ser realizadas fundamentalmente com ajuda de
reflexos condicionados secundários (Protopópov, 1923, p. 22).
Isso não quer dizer outra coisa senão que a consciência irrompe
mesmo em experiências de reflexólogos e altera substancialmente
o quadro do comportamento. Ao expulsar a consciência pela
porta, ela entra pela janela.
2. A inclusão desses procedimentos de pesquisa no conjunto de
procedimentos reflexológicos funde-a inteiramente com os pro­
cedimentos de investigação das reações etc. há muito estabele­
cida pela psicologia experimental. Isso também é observado por
Protopópov, mas ele considera essa coincidência casual e apenas
exterior. Para nós, contudo, é claro que aqui se trata de uma to-

* Protopópov, V. P. Metodi refleksologuítcheskogo issledovanie tcheloveka [Métodos de


investigação reflexológica do ser humano], Jurnal psikhologuii, nevrologuii i psikhiatrii
[Revista de Psicologia, Neurologia e Psiquiatria], v. 3, n. 1-2, 1923.
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

tal capitulação da metodologia puramente reflexológica, aplicada


com êxito em cachorros, diante dos problemas do comporta­
mento humano.
É absolutamente fundamental mostrar, ainda que em poucas
palavras, que essas três esferas do psiquismo, nas quais a psicologia
empírica a dividiu (consciência, sentimento e vontade), se forem ob­
servadas do ponto de vista das hipóteses aqui elaboradas, também
são dotadas da natureza do caráter consciente, que lhe são inerentes,
e são facilmente conciliadas tanto com essa hipótese quanto com a
metódica dela decorrente.
1. A teoria de William James18 (1905)* abre totalmente a possi­
bilidade de tal interpretação do caráter consciente dos sentimentos.
Dos três elementos habituais - A: causa do sentimento, B: o senti­
mento em si, C: manifestação corporal -, James faz a seguinte reela-
boração: A - C - B. Não irei recuperar toda sua conhecida argumen­
tação. Direi apenas que isso oculta totalmente: a) o caráter reflexo
do sentimento, o sentimento como sistema de reflexos - A e B; b) o
caráter secundário da consciência do sentimento, quando sua própria
reação serve de estímulo para uma nova reação interna - B e C. Tor­
na-se também claro o significado biológico do sentimento como uma
reação de avaliação rápida de todo o organismo ao seu próprio com­
portamento, como ato de interesse de todo o organismo na reação,
como um organizador interno de todo comportamento presente em
determinado momento. Observo ainda que a tridimensionalidade do
sentimento de Wundt,19 em essência, também trata de tal caráter ava-
liativo da emoção, como uma espécie de eco de todo o organismo à
sua própria reação. Daí a irrepetibilidade, singularidade das emoções
em cada uma de suas ocorrências.

* james, W. Psikhologuiia v besedakh s utdiiteliami [Psicologia em conversas com professores].


Moscou, 1905.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

2. Os atos de conhecimento da psicologia empírica tamb


revelam sua natureza dupla na medida em que eles ocorrem de forma
consciente. A psicologia distingue claramente dois estágios neles: os
atos de conhecimento e a consciência desses atos.
Especialmente interessantes são os resultados da auto-observa-
ção exata da Escola de Würzburg dessa pura “psicologia de psicólo­
gos” na direção indicada. Uma das conclusões de tais pesquisas de­
termina a impossibilidade de observar o próprio ato de pensamento,
o qual escapa à percepção. Aqui a auto-observação se esgota. Esta­
mos no fundo da consciência. A conclusão paradoxal que sugere a si
mesma é que há certo caráter inconsciente nos atos do pensamento.
Observa-se com isso que os elementos que encontramos em nossa
consciência são, antes, sucedâneos do pensamento do que sua essên­
cia: são fragmentos, pedaços, espuma.
A via experimental permitiu demonstrar, segundo O. Külpe20
(1916),* que nosso “eu” não pode ser separado de nós. É impossível
pensar abandonado a si mesmo aos pensamentos, mergulhando neles
e, ao mesmo tempo, observar esses pensamentos. Tal distinção do psi­
quismo é impossível até o fim. Isso quer dizer que a consciência não
pode ser dirigida para si mesma, ela é um aspecto secundário. Não é
possível pensar o próprio pensamento, captar o mecanismo mesmo
da consciência, justamente porque ele não é um reflexo, ou seja, não
pode ser objeto da vivência, um estímulo para outro reflexo, mas é em
um mecanismo de transmissão entre sistemas de reflexos. Entretanto,
uma vez que o pensamento é terminado, ou fceja, o reflexo é formado,
é possível observá-lo conscientemente: “Primeiro uma coisa, depois
outra”, como diz Külpe.

* Külpe, O. Sovremennaia psikhologuiia michleniia [A psicologia contemporânea do pen­


samento]. In Novie idei vfilosofii [Novas idéias na filosofia]. Petrogrado, 1916.
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

A esse respeito, M. B. Krol,21 em um de seus artigos (1922),*


diz que os novos fenómenos revelados pelas pesquisas de Würzburg
sobre os processos superiores da consciência têm uma semelhança
impressionante com os reflexos condicionados de Pávlov. A esponta­
neidade do pensamento, o fato de que ele é descoberto em sua forma
pronta, as complexas sensações da atividade e das buscas etc. estão
evidentemente relacionadas com isso. A impossibilidade de observa­
ção fala em favor dos mecanismos aqui mencionados.
3. Por fim, a vontade revela, de forma melhor e mais simples,
precisamente a essência de seu caráter consciente. A presença preli­
minar de noções motoras na consciência (ou seja, reações secundá­
rias a movimentos dos órgãos) explicita o assunto. Todo movimento
deve ser realizado primeiramente de forma inconsciente. Depois sua
cinestesia (ou seja, reação secundária) torna-se a base de seu caráter
consciente (H. Münsterberg, 1914; H. Ebbinghaus, 1912)."22 É o cará­
ter consciente da vontade que confere a ilusão dos dois momentos: eu
pensei e eu fiz. Aqui, de fato, estão presentes duas reações, só que em
ordem inversa: primeiro a secundária, depois a principal, a primeira.
Às vezes o processo se complexifica, e a teoria sobre o ato volitivo e
seu mecanismo, complexificado pelos motivos, ou seja, o embate de
algumas reações secundárias, também concorda integralmente com
as ideias desenvolvidas antes.
No entanto, provavelmente o mais importante que tais ideias
explicitam é o desenvolvimento da consciência a partir do nasci­
mento, sua origem na experiência, seu caráter secundário e, conse­
quentemente, o condicionamento psicológico pelo meio. A existência

* Krol, M. B. Michlenie i retch [Pensamento e linguagem], Trudi belorusskogo gossudars-


tvennogo universiteta [Trabalhos da Universidade Federal de Belarus]. Minsk, v. 11, n. 1,
1922.

** Münsterberg, H. Psikhologuiia e ekonomitcheskaia jizn [Psicologia e vida econômica].


Moscou, 1914; Ebbinghaus, H. Osnovi psikhologuii [Fundamentos da psicologia], São Pe-
tersburgo, v. 1, n. 2, 1912.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

determina a consciência: pela primeira vez essa lei pode, mediante


certa elaboração, adquirir um sentido psicológico exato e revelar o
próprio mecanismo dessa determinação.

No ser humano se distinguem claramente dois grupos de refle­


xos, que podem ser corretamente denominados reversíveis. São refle­
xos a estímulos que, por sua vez, podem ser criados pela pessoa. Uma
palavra ouvida é um estímulo, uma palavra dita é um reflexo que cria
o mesmo estímulo. Aqui o reflexo é reversível, pois o estímulo pode
tornar-se reação e vice-versa. Esses reflexos reversíveis constituem a
base para o comportamento social, servem de coordenada coletiva do
comportamento. De todo conjunto de estímulos existentes, um grupo
se destaca claramente para mim, isto é, o grupo dos estímulos sociais
que partem das pessoas. Destacam-se, pois posso recriá-los; pois eles
se tornam rapidamente reversíveis para mim e, consequentemente,
determinam meu comportamento de forma distinta de todos os de­
mais. Eles me equiparam aos outros, tornam meus atos idênticos a
eles mesmos. No sentido amplo da palavra, na linguagem encontra-se
a base do comportamento social e da consciência.
É de extrema importância estabelecer aqui, ainda que de pas­
sagem, a ideia de que se isso é assim, quer dizer que o mecanismo
do comportamento social e o mecanismo da consciência são os mes-
t

mos. Por um lado, a linguagem é um sistema de “reflexos de contato


social” (A. B. Zalkind, 1924);*23' por outro, é um sistema de reflexos
da consciência por excelência, ou seja, o aparato de reflexão de
outros sistemas.

* Zalkind, A. B. Otcherki kulturi revoliutsionnogo vremia [Ensaio sobre a cultura do tempo


revolucionário]. Moscou, 1924.
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

Aqui está o cerne da questão sobre o “eu” alheio, sobre o co­


nhecimento do psiquismo alheio. O mecanismo de conhecimento de
si (autoconsciência) e do outro é o mesmo. As teorias comuns sobre
o conhecimento do psiquismo alheio ou reconhecem diretamente sua
¡ncognoscibilidade (A. I. Vvediénski, 1917)*-24 ou tentam construir,
por meio de certas hipóteses, um mecanismo coerente, cuja essência
c a mesma, seja na teoria das sensações ou na teoria das analogias:
conhecemos o outro na medida em que conhecemos a nós mesmos;
ao reconhecer a raiva do outro, reproduzo a minha própria raiva.
Na realidade, seria mais correto dizer exatamente o contrário.
Temos consciência de nós mesmos, pois temos consciência dos outros
c do mesmo modo temos consciência do outro, pois, em relação a
nós mesmos, somos os mesmos que o outro em relação a nós. Tenho
consciência de mim apenas na medida em que eu sou outro para mim,
ou seja, conquanto posso perceber meus próprios reflexos novamente
como novos estímulos. Não há diferença essencial entre o fato de
que posso repetir em voz alta uma palavra dita em silêncio e o fato
de que posso repetir uma palavra dita por outro, assim como não há
diferença fundamental entre os mecanismos: tanto um quanto o outro
são reflexos-estímulos reversíveis.
Por conseguinte, a aceitação da hipótese proposta levará dire-
lámente à sociologização de toda a consciência, à aceitação de que
o aspecto social da consciência tem primazia temporal e factual. O
aspecto individual é construído como um derivativo e secundário,
com base no aspecto social exatamente de acordo com seu modelo.
Disso decorre a duplicidade da consciência: a noção de duplo é a
mais próxima de uma noção real da consciência. É próximo do des­
membramento da personalidade em “ego” e “id”, que Freud desco­
briu analíticamente. Segundo ele, em relação ao id, o ego é como um

* Vvediénski, A. I. Psikhologuiia bez vsiakoi metafiziki [Psicologia sem qualquer metafísica],


1’ctrogrado, 1917.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

cavaleiro que deve conter a força superior do cavalo, com a diferença


de que o cavaleiro tenta realizar isso com suas próprias forças, ao
passo que o ego emprega forças emprestadas. Essa comparação pode
ser continuada. Assim como ao cavaleiro que, não querendo aban­
donar o cavalo, resta apenas levá-lo para onde ele quer, igualmente
o ego costuma realizar a vontade do id como se fosse sua própria
(Freud, 1924).*
Uma excelente confirmação da identidade dos mecanismos da
consciência e do contato social e de que a consciência é uma espécie
de contato social consigo mesmo pode ser encontrada na construção
do caráter consciente da linguagem em surdos-mudos e, em parte, no
desenvolvimento das reações táteis em cegos. Em geral, a fala não
se desenvolve em surdos-mudos e fica estagnada no estágio do grito
reflexo não porque os centros de linguagem estejam comprometidos,
mas porque, em razão da ausência da audição, a possibilidade de
reversibilidade do reflexo Verbal fica paralisada. A fala não retorna
como estímulo para o próprio falante. Por isso ela é inconsciente e
não social. Geralmente os surdos-mudos ficam restritos à língua con­
vencional dos gestos, que os inclui no estreito círculo da experiência
social de outros surdos-mudos, e o caráter consciente se desenvolve
neles graças ao fato de que, por meio da visão, esses reflexos retor­
nam ao próprio sujeito mudo.
Do ponto de vista psicológico, a educação do surdo-mudo
consiste precisamente em reestabelecer ou compensar o mecanismo
prejudicado de reversibilidade dos reflexos.'O mudo aprende a falar
considerando o lábio do falante e seus movimentos articulatorios, e
aprende a falar por conta própria a partir de estímulos cinestésicos
secundários que emergem durante as reações motoras verbais. O
mais notável é que o caráter consciente da fala e a experiência social
surgem simultaneamente e de forma absolutamente paralela. É como

* Freud, S. Ia i ono [O e u e o id], Leningrado, 1924.


1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

se fosse um experimento natural organizado especialmente, que con­


firma a tese fundamental deste artigo. Em outra oportunidade, espero
mostrar isso de modo mais claro e completo. O surdo-mudo aprende
a tomar consciência de si e de seus movimentos na mesma medida
cm que ele aprende a tomar consciência dos outros. A identidade de
¿imbos os mecanismos aqui é incrivelmente clara e quase evidente.
Agora podemos reunir os elementos da fórmula do comporta­
mento humano que foram citados em urna das seções anteriores. É
evidente que a experiência social e a experiência histórica não consti­
tuem coisas distintas do ponto de vista psicológico, uma vez que elas
não podem ser efetivamente separadas e são sempre dadas juntas.
I remos ligá-las por um sinal de adição. Como tentei mostrar, o me­
canismo delas é exatamente o mesmo do mecanismo da consciência,
pois esta também deve ser analisada como um caso particular da
experiência social. Por isso, essas duas partes podem ser facilmente
designadas pelo mesmo índice da experiência duplicada.

Na conclusão deste ensaio, parece-me extremamente impor­


tante e essencial indicar a coincidência das conclusões existente en­
tre as ideias desenvolvidas aqui e a análise da consciência feita por
William James. Ideias que partem de campos totalmente distintos,
que percorreram caminhos absolutamente diferentes, levam a uma
mesma visão, apresentada por James em uma análise especulativa.
Vejo nisso uma confirmação parcial de minhas ideias. Ainda em Psi­
cologia (1911),* ele afirma que a existência de estados de consciên­
cia como tais não é um fato totalmente comprovado, mas antes um
preconceito profundamente enraizado. Foram precisamente os da-

* (ames, W. Psikhologuiia [Psicologia], São Petersburgo, 1911.


Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

dos de sua brilhante auto-observação que o convenceram disso. Ele


diz: “Sempre que tento notar em meu pensamento a atividade como
tal, deparo-me inevitavelmente com um fato puramente físico, uma
impressão que parte da cabeça, da sobrancelha, da garganta e do i
nariz”. No artigo “A consciência existe?” (1913),* ele explica que a
diferença entre a consciência e o mundo (entre o reflexo a um reflexo i
e o reflexo a um estímulo) reside apenas no contexto dos fenômenos.
No contexto dos estímulos é o mundo, no contexto dos meus reflexos
é a consciência. A consciência é apenas o reflexo dos reflexos.
Dessa forma, não há consciência como categoria determinada,
como modo especial de existência. Ela é uma estrutura muito com­
plexa de comportamento, em especial de duplicação do comporta­
mento, como é dito em relação ao trabalho nas palavras citadas nesta
epígrafe de James (1913, p. 126): ¡

quanto a mim, estou convencido de que há um fluxo de pensamentos


em m i m . . . esta é apenas uma denominação leviana para aquilo que,
em uma análise mais detida, é essencialmente o fluxo da respiração. ■
O “eu p en so”, que segundo Kant deve acompanhar todos os m eus •
objetos, não é outra coisa senão “eu respiro” que acompanham esses
objetos na realidade. . . . Os pensam entos . . . são feitos da m esm a ;
matéria que as coisas.

Neste ensaio foram apontadas apenas de passagem e breve­


mente algumas ideias preliminares. Contudo, parece-me que é a partir
delas que deve se iniciar o trabalho do estudo da consciência. Nossa •
ciência encontra-se agora em tal situação que ela ainda está muito I
longe da fórmula final do teorema geométrico que coroa o último :
argumento, como queríamos demonstrar. Por ora, ainda precisamos \
indicar justamente aquilo que precisa ser demonstrado, e depois nos •

* lames, W. Suchestvuet li soznanie? [A consciência existe?]. In Atavie idei vfllosofli [Novas


ideias em filosofia], São Petersburgo, 1913.
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

voltarmos à comprovação; primeiro é preciso'elaborar a tarefa, de­


pois resolvê-la.

O presente ensaio deve justamente servir, na medida de suas


forças, para a formulação dessa tarefa.

Nota: O presente artigo já estava em fase de revisão quando


travei conhecimento com alguns trabalhos de behavioristas a esse res­
peito. O problema da consciência é colocado e resolvido por esses au­
tores por meio de ideias próximas às desenvolvidas aqui, isto é, como
problema da relação entre reações (cf. “comportamento verbal”).

Notas da tradução

1. Citação de O capital, de Karl Marx e Friedrich Engels (volume 1, parte III,


capítulo VII).

2. Pável Petróvitch Blónski (1884-1941), pedagogo russo. Homem de partido,


escritor e militante, tem sido considerado o primeiro autor soviético a defen­
der a criação de uma psicologia marxista. Foi autor de importantes trabalhos
no campo da pedagogia e pedología (ciência da criança e do adolescente).

V Obras escolhidas, tomo I.

4. Aleksei Alekséievitch Úkhtomski (1875-1942), fisiologista soviético. Na


obra O dominante como princípio de trabalho dos centros nervosos (1923),
desenvolveu a noção de que existe certa disposição para que um centro
nervoso, ou grupo de centros, acumule a excitação pertencente aos demais,
o que regula a sua atividade geral e evita a dispersão de energia orgânica.
O “dominante” refere-se, pois, a um princípio geral de ativação do sistema
nervoso, podendo apresentar-se em diferentes contextos e reações ao longo
da escala zoológica.

V Vladimir Mikháilovitch Békhterev (1857-1927), famoso anatomista e fisio­


logista do sistema nervoso, atuou em Kazan e São Petersburgo, cidade esta
na qual fundou diversos institutos. Construiu a reputação de ser “mais
60 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

pavloviano do que Pávlov”, ao defender que os fenômenos mentais e com-


portamentais humanos fossem explicados pela noção de reflexo, ideia-chave
para sua chamada “reflexologia”. Foi um dos principais pesquisadores rus­
sos de sua época, gozando também de reconhecimento internacional.

6. Charles Sherrington (1857-1952), fisiologista inglês. Foi laureado com o


Prêmio Nobel de Fisiología ou Medicina em 1932. Criou a teoria do caráter
integrativo da atividade do sistema nervoso central, com destaque para o
livro A ação integrativa do sistema nervoso (1906). Apesar de ter estudado
os reflexos, considerava essencial situá-los em perspectiva, tendo como base
o processo integral de adaptação do organismo.

7. Referência ao conto “Kanniverstan”, de Johann Peter Hebel, de 1808. A


historia foi retomada no contexto literário russo por Vassfli Jukóvski (1783-
1852), no poema “Houve dois e ainda um”.

8. Os conceitos de reflexo de objetivo e reflexo de liberdade foram introdu­


zidos por Ivan Pávlov (1849-1936). Após experimentos com Reflex, um
cão refratário ao condicionamento no interior de espaços confinados, o
fisiologista agregou esse último subtipo ao campo dos reflexos inatos, entre
os quais já dispusera o reflexo de orientação como impulso para atingir ob­
jetivos. Segundo o autor, esse parecia ser mais desenvolvido entre ingleses
e judeus, e menos desenvolvido entre os russos.

9. A chamada Escola de Würzburg representou um tipo de psicologia feita


na Alemanha. Entre seus principais representantes, estão Oswald Külpe
(1862-1915), Karl Marbe (1869-1953) e Karl Bühler (1879-1963).

10. Vladimir Aleksándrovitch Vagner (1889-1934), fundador da zoopsicolo-


gia na Rússia. Pesquisador próximo a Vigotski, fez críticas à extensão das
ideias sobre os reflexos para explicação de fenômenos mentais e compor-
tamentais complexos. Realizou importantes pesquisas sobre os instintos,
recorrendo a estudos históricos comparativos,

11. A interação entre os conceitos de reflexo, comportamento e reação apre­


sentou-se com frequência nas obras de Vigotski entre 1924 e 1927, quando
o autor realizou estudos mais amplos de psicologia científica. Combinando
pressupostos de diferentes perspectivas científicas, podemos considerar que
Vigotski tomava as reações (reaktsii) como um conceito amplo, referindo-se
à resposta do organismo a qualquer estímulo. Com origem provável na
reactologia de K. N. Kornilov (1879-1957), o termo, por vezes, fica muito
próximo a comportamento (povediénie). Já os reflexos designam processos
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925) 61

estritamente fisiológicos, padronizados na espécie, de relação entre estí­


mulo e resposta.

12. Em russo, edínstvo, aqui fazendo referência ao próprio conjunto de proces­


sos nervosos. Difere de edinitsa, unidade de análise, tal como apresenta-se
no livro A construção do pensamento e da linguagem, de 1934.

13. Gueórgui Pávlovitch Zelióni (1878-1951), fisiologista soviético, aluno de


Ivan Pávlov.

14. Tipo de planta ornamental pertencente à família das cruciferas.

15. Referência a Nikolai Nikoláievitch Lange (1858-1921), psicólogo russo e ex-


aluno de Wundt. Em 1914, publicou o mais influente manual de psicologia
do período pré-revolucionário.

16. John Locke (1632-1704), filósofo, foi um dos principais expoentes do empirismo
britânico. Em sua busca por compreender a natureza da experiência sensorial
e sua relação com o pensamento reflexivo, tornou seu Ensaio sobre o entendi­
mento humano (1689) um clássico da filosofia da natureza. Também é bastante
conhecido pelos seus escritos acerca do liberalismo econômico e político.

17. Viktor Pávlovitch Protopópov (1880-1957) fez carreira na psiquiatra sovié­


tica, na qual a perspectiva organicista pavloviana tornou-se hegemônica em
torno de 1935. Aluno de Békhterev, o ucraniano Protopópov celebrizou-se
por pesquisas acerca das psicoses, embora tenha realizado importantes
trabalhos sobre comportamento animal.

18. Referência ao psicólogo e filósofo norte-americano William James (1842-


1910). A teoria da emoção de James era conhecida na Rússia desde a tradu­
ção, em 1896, do livro Psychology: briefer course (1892). Em 1902, o livro
ganhou nova tradução para o russo.

19. Referência ao médico, filósofo e psicólogo alemão Wilhelm Wundt (1832-


1920). Wundt atribuiu ao sentimento três dimensões básicas: prazer/
agrado e desprazer; excitação/mania e calma/depressão; tensão/autocon­
trole voluntário e relaxamento/ausência de controle. Essa teoria tridimen­
sional foi incluída no último resumo importante de sua psicologia indivi­
dual, o Compêndio de psicologia (1896).

20. Oswald Külpe (1862-1915), filósofo e psicólogo alemão. Líder da Escola


de Würzburg, envolveu-se em polêmica com Edward B. Titchener sobre
62 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

a relação entre pensamento e imagens sensoriais. Külpe defendeu a con- 1


cepção de pensamento como processo não ligado a imagens sensoriais e j
determinado por tendências internas.

21. Referência ao neurologista russo Mikhail B. Troll (1879-1939). j

22. Referência aos psicólogos alemães Hugo Münsterberg (1863-1916) e Her­


mann Ebbinghaus (1850-1909). :

23. Referência ao psicólogo e médico ucraniano Aron Boríssovitch Zalkind


(1888-1936). A princípio com bases epistemológicamente ecléticas, atuou
em diversos campos, inclusive a psicanálise e psicoterapia. Com a ascensão
da pedologia na União Soviética na segunda metade dos anos 1920, tornou-;
-se um dos líderes dessa ciência, sendo reconhecido como um importante ;
metodólogo. Chegou a dirigir o Instituto de Psicologia, Pedologia e Psico-;
técnica em Moscou.

24. Aleksandr Ivánovitch Vvediénski (1856-1925), professor da Universidade \


de Petersburgo. Presidiu a Sociedade de Filosofia de São Petersburgo. Fi- \
lósofo idealista, foi adepto da psicologia descritiva. Para ele, a vida da alma '
era desprovida de quaisquer sinais objetivos, pressuposto que o levou a ;
opor-se a métodos experimentais tais como aqueles empregados no labora- í
tório de Aleksander Netcháiev (1870-1948).
2. A ciência psicológica (1928)
i

Para a consciência ingênua, revolução e história parecem in­


compatíveis. Para ela, o desenvolvimento histórico ocorre apenas
enquanto ele se dá de forma linear. Tão logo comecem reviravoltas,
rupturas do tecido histórico, saltos, a consciência ingênua enxerga
apenas catástrofe, revés, ruptura; para ela a história é interrompida
por um período inteiro até que ela encontre um caminho linear e
plano. A consciência científica, ao contrário, considera a revolução
a locomotiva da história que dispara a todo vapor; para ela a época
da revolução é a encarnação sensível, viva da história. A revolução
resolve apenas as tarefas que foram preparadas e colocadas pela his­
tória. Essa é uma afirmação igualmente verdadeira tanto em relação
íi revolução como um todo quanto em relação a aspectos isolados da
vida social e cultural na época revolucionária.

Assim, o destino da ciência psicológica no país da revolução


lambém só pode ser compreendido em seu aspecto histórico, à luz
do passado e do futuro, em uma grande perspectiva, na dinâmica do
desenvolvimento e de catástrofes. A ciência em geral não é a soma de
verdades encontradas e acabadas. Ela é, antes de tudo, um processo
vivo. Apenas assim se pode compreender e dar sentido a cada etapa
de seu desenvolvimento; apenas assim cada salto pode ser visto como
resultado de um longo desenvolvimento histórico que o antecede e o
prepara, do mesmo modo como o desenvolvimento uterino do feto
prepara o nascimento do bebê.
O desenvolvimento histórico da psicologia nunca seguiu uma
linha reta e única. Em 1874, Brentano1propôs a necessidade de cria­
ção de uma psicologia única, em vez das muitas psicologias que de fato
existiam na época sob o mesmo nome. Ele compreendia que essa era
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

uma necessidade histórica, realizada por outras ciências, cada uma


em seu tempo, como a matemática, a física, a química e a fisiología:
a necessidade de encontrar o núcleo da verdade científica universal­
mente reconhecida. Segundo Brentano (1924, p. 2), tanto na esfera
da política quanto na esfera da ciência, nenhuma unificação é possível
sem guerra. Dessa forma, o caminho para a criação de uma psicologia
cientifica única era um caminho de guerra.
Em 1917, Wilhelm Stern2 (p. 2) repetiu o diagnóstico de Bren­
tano e mostrou que, apesar dos grandes êxitos da investigação psi­
cológica exata, não havia ainda uma psicologia, apenas psicologias.
Entretanto, nesse longo período que separa essas duas visões, a crise
da psicologia conseguiu se desenvolver a tal ponto que revelou de
forma muito mais clara as verdadeiras tarefas históricas de unificação
das muitas psicologias em uma ciência única.
Não existem muitas psicologias, como pode parecer à primeira
vista, que precisam ser unificadas em uma ciência única: na realidade
existem duas psicologias absolutamente distintas e incompatíveis entre
si, que não podem ser unificadas, mas devem ser separadas para que a
ciência psicológica possa ser possível. Foi mais ou menos essa a modifica­
ção sofrida pela tese inicial no processo de desenvolvimento da ciência.
Seria mais correto dizer que existem muitas visões, escolas, orientações
psicológicas distintas em disputa, mas, por trás dessa grande variedade
de sistemas e tendências isoladas, a análise metodológica e histórica re­
vela dois tipos irreconciliáveis de ciência, duas construções e sistemas de
conhecimento fundamentalmente distintos; existem muitas orientações
psicológicas, mas psicologias propriamente existem apenas duas.
Essa ideia de duas psicologias, que hoje praticamente ninguém
contesta* e se tornou patrimônio geral da nossa ciência, foi brilhante­

* É verdade que alguns autores como K. Bühler (Die Krise der Psychologie [A crise da
psicologia], 1927) e outros tentam preservar a unidade da ciência psicológica sob a égide
do princípio teleológico, ou seja, de fato adotam involuntariamente o ponto de vista não
de uma psicologia única, mas de uma das duas psicologias, isto é, da psicologia idealista.
2. A ciência psicológica (1928) 65

mente desenvolvida por Münsterberg (1923, p. VI),3 que intitulou sua


obra de “livro do idealismo militante” e que entendia ser sua princi­
pal tarefa a luta contra o naturalismo psicológico. Em outro livro, o
mesmo autor diz que

a psicologia dos n ossos dias luta contra o preconceito de que existe


apenas um tipo de p sic o lo g ia .. . . O conceito de psicologia encerra
em si duas tarefas totalm ente diferentes, que devem ser distingui­
das e para as quais é m elhor que se usem d esign ações especiais.
N a realidade, existe um a p sicologia de tipo duplo (M ünsterberg,
1923, p. 7).

A mesma ideia foi defendida por Natorp,4 Dilthey (1924)5 e


muitos outros. O próprio Brentano, que contrapôs muitas psicolo­
gias a uma psicologia única, a seguir (1895) rejeitou a ideia de uma
psicologia única em favor da ideia de duas psicologias. Ele diz: “mi­
nha escola distingue entre psicologia e psicologia genética” (Bren­
tano, 1924, p. XVIII).

A distinção entre uma e outra, não importa como as chama­


mos, independentemente de como seus detalhes variem em diferen­
tes autores, reduz-se a um fato principal, isto é, justamente que a vida
psíquica permite duas abordagens fundamentalmente distintas. Por
um lado, podemos examinar os processos psíquicos ao lado dos de­
mais fenômenos, em relação íntima com eles; estudá-los por meio de
métodos científicos gerais; buscar compreender o curso deles como
uma relação de causa e conseqüência objetiva e determinada; buscar
as leis que os regem; e considerar como objetivo final do conheci­
mento científico o prognóstico e o domínio do mecanismo desses
processos. Por outro, podemos abordar o psiquismo por seu aspecto
interno, subjetivo, e estabelecemos um único objetivo: compreendê-
lo, reproduzi-lo em nós mesmos ou penetrar nele; nesse caso, pas­
saríamos a descrever, desmembrar, buscando chegar à vivência do
modo mais próximo e direto possível, transmitir a constituição da
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

vida psíquica; nesse caso, seria aplicado um novo método: análise


direta de estados que não podem ser comparados a nada, os quais
denominamos vivências; com base em dados da experiência direta,
que faz com que os fenômenos psíquicos se destaquem para nós
em relação ao mundo restante, passaríamos a estudar o psiquismo
fora de suas ligações com o mundo físico, como um segundo mundo
independente, fechado em si.

Ambas as ciências psicológicas de que estamos tratando re­


cebem nomes distintos. Dilthey contrapõe psicologia descritiva e
explicativa; muitos autores depois dele distinguem psicologia analí­
tica e indutiva. Münsterberg denomina uma teleológica e intencio­
nal e a outra causal; a primeira também é chamada psicologia do
espírito ou compreensiva, à diferença da fisiológica ou explicativa,
e assim por diante. Contudo, independentemente do nome, o sen­
tido da diferença permanece o mesmo: em um caso, trata-se de
uma psicologia científica natural,* materialista, objetiva; no outro
caso, metafísica, idealista, subjetiva. Por isso, Bergson6 tem toda
razão em dizer que a metafísica é uma noção simpática da cons­
ciência alheia, ou seja, ele a identificou com a psicologia idealista.
Da mesma forma, tem razão Külpe7 (1914, p. 80)ao lembrar Platão
como verdadeiro pai dessa nova psicologia: “Em nosso tempo, en­
contramo-nos novamente no caminho em direção às ideias”. Em
contraposição a isso, James falou sobre a outra psicologia, que ela
segue um caminho materialista.

A etapa histórica que a psicologia contemporânea atravessa


em seu desenvolvimento é caracterizada pelas duas posições mencio­
nadas anteriormente: por um lado, há muitas correntes psicológicas

* Esse termo deve ser compreendido aqui em um sentido amplo: ele designa todas as ciên­
cias reais. Ver V. Ivánovski, Metodologuítcheskoe wediénie v nauku ifllosofiiu [Introdução
metodológica à ciência e à filosofia], 1923, p. 183.
2. A ciência psicológica (1928)

separadas que buscam um caminho comum de modo a fundir-se em


um fluxo único potente; por outro, dois sistemas de conhecimento
científico de naturezas distintas, duas psicologias distintas que ao
longo dos séculos se misturaram e paralisaram uma a outra, atual­
mente amadureceram a tal ponto que tentam romper a ligação histó­
rica que as une, tentam distinguir-se entre si e converter-se em duas
disciplinas independentes.
A psicologia russa, que até muito recentemente se desenvolveu
sob forte influência da psicologia europeia ocidental, não é exceção
a essa lei histórica. Ambas as tendências - em prol da unificação ou
da cisão - também se fazem presentes nela de forma absolutamente
evidente em todo seu percurso histórico, até os nossos dias. Seria a
tarefa de uma análise histórica acompanhar, sob esse ponto de vista,
todo o caminho da psicologia russa de suas origens até os dias de
hoje. Para os nossos objetivos, é suficiente mencionar rapidamente
alguns dos momentos mais importantes desse trajeto.
Na psicologia russa de meados do século XIX, a luta entre
duas tendências - uma que adere à psicologia metafísica alemã, e
outra que trouxe para o solo russo a psicologia associacionista e ex­
perimental inglesa - foi, a despeito da multiplicidade de divergências
secundárias e que confundem a essência da questão, uma expressão,
ainda que incompleta e vaga, da luta geral entre duas psicologias
que atravessa como um fio condutor toda a história da nossa ciência.
Nesse sentido, o livro A psicologia alemã, de M. M. Troitski,8 que
estabeleceu as bases para o empirismo inglês em solo russo, aparece
como um marco histórico. A influência do herbartismo e do volun­
tarismo, presentes nas obras de N. Lósski9 (1903), fez desequilibrar
a balança para a metafísica; já ás obras mais originais de Uchínski,10
Sétchenov11e Vágner lançaram as bases da psicologia científica natural
russa. Foi especialmente grande a influência de Sétchenov (s. d., p. 151),
que examinou o psíquico e o fisiológico no ser humano como fenô­
menos de uma mesma ordem, como fenômenos congêneres, “ambos
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

de origem terrestre, oriundos do mesmo planeta”. O materialismo i


científico recebeu a sua expressão final na fórmula de Sétchenov: ■
“quem deve elaborar a psicologia e como?”, e sua resposta a essa ;
pergunta, na ideia do psicólogo fisiologista e na afirmação de que a
psicologia futura como ciência, está nas mãos não de metafísicos, ;
mas de psicólogos naturalistas. Ele tinha consciência da inadequa- í
ção do método especulativo para a ciência, do caráter metafísico j
da psicologia subjetiva e da teoria da visão psíquica especial; e foi o j
primeiro a formular a ideia de reflexo psíquico. \
j
O forte desenvolvimento de ambas as psicologias foi fomentado |
pela criação de institutos e laboratórios experimentais pelo professor j
Netcháiev,12 em Leningrado, com ênfase em psicologia pedagógica e j
aplicada, e pelo professor Tchelpánov,13 em Moscou, com ênfase num I
campo de investigação puramente teórico. Mas a dissensão interna |
entre essas duas psicologias não cessou por um minuto sequer, e, nos J
anos anteriores à revolução, observa-se o renascimento da psicologia j
metafísica. Nessa época, a psicologia russa, acompanhando a euro-
peia, conseguiu reconhecer que ela reúne dois princípios diversos
e tentou desenvolver a ideia de duas ciências. Segundo N. N. Lange
(1922, p. 63),14 “Existem, dessa forma, duas psicologias, ou, melhor
dizendo, a psicologia revelou ter dois lados, duas faces, como Janus”.
O mesmo foi defendido por Tchelpánov (1917, p. 14) sob o nome de
psicologia analítica, que ele denominou psicologia principal.
Contudo, a expressão mais viva dessa ideia aparece na obra A :
alma do ser humano, de S. L. Frank,15 publicada em julho de 1917,;
que era a representação mais completa de um dos caminhos que a ¡
psicologia russa trilhava às vésperas da revolução. Trata-se de uma
tentativa de restaurar a psicologia “no significado antigo, literal e ;
exato dessa palavra”; seu sentido principal é a luta contra a “psicolo­
gia sem alma”, a luta contra a transferência dos métodos e princípios 1
das ciências naturais para a psicologia. O autor compreende o sentido 1
histórico da luta entre as duas psicologias de forma absolutamente J
2. A ciência psicológica (1928)

exata e a vê “como a suplantação pura e simples de uma ciência por


outra distinta” (Frank, 1917, p. 3). Segundo Frank (1917, p. 5), “os
verdadeiros êxitos da psicologia foram determinados por uma agu­
çada consciência moral e religiosa”.
Um historiador da filosofia russa afirma com toda razão que
esse livro “marca uma profunda reviravolta ocorrida nos modos de
ver a psicologia”; a esse respeito ele diz que “voltamos novamente à
psicologia metafísica” (Radlov, 1921, p. 64) e encerra sua avaliação
com a seguinte conclusão:

Assim, a literatura psicológica russa cumpriu o m esm o circuito que a


ocidental. Ela com eçou com o raciocínio especulativo sobre a alma,
o que levou a que a própria existência da alma passasse a ser negada;
em seguida, a psicologia sem alma e a psicologia fisiológica passaram
a ser experim entais e, pouco a pouco, passaram a assimilar nova­
mente elem entos especulativos (Radlov, 1921, p. 70).

Além da tendência à cisão entre as duas ciências que buscam


suplantar uma a outra, outra tendência histórica (em direção à unifi­
cação das disciplinas e orientações psicologias em uma ciência única)
também foi claramente expressa na psicologia russa. A “manutenção
da unidade interna da psicologia” como tarefa histórica da psicologia
russa foi tema do discurso do professor Tchelpánov por ocasião da
inauguração do Instituto de Psicologia de Moscou. Para ele, a tarefa
do instituto era “tomar medidas para preservar a unidade da psico­
logia”. Em suas palavras, “a psicologia está se decompondo em par­
les não relacionadas entre si. Em conseqüência disso, a psicologia
começa a perder sua unidade. Ela corre o risco de se desintegrar”
(Tchelpánov, 1917, p. 5). Somente com institutos que cumpram a ta­
refa de unificar a psicologia, ela

seguirá na R ússia o cam inho correto para seu desenvolvim ento.


Então, o desenvolvim ento da psicologia alcançará um grau de com-
pletude e p erfeição que nos perm itirá falar com orgulho de uma
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

“p sicologia ru ssa”, assim com o se fala de uma p sicologia alem ã,


inglesa e am ericana (Tchelpánov, 1917, p. 6).

Assim como no Ocidente, essa segunda tendência impediu que


se tomasse consciência com clareza da primeira, encobriu o quadro
histórico e levou a conclusões falsas: a ideia de unidade encobriu a
ideia de cisão; na realidade tal unificação só era possível com base em
uma cisão prévia. Isso pode ser facilmente verificado em um episódio
histórico. Não obstante, a inauguração do Instituto de Psicologia de
Moscou como acontecimento histórico foi saudada pelo acadêmico I.
P. Pávlov,16 o mesmo que em sua pesquisa científica partiu das visões
de Sétchenov e “excluiu de seu trabalho de laboratório com o cérebro
qualquer menção a estados subjetivos”. Em carta, ele afirma que a
tarefa do estudo científico da atividade cerebral é

tão indescritivelmente grande e complexa que são necessários todos


os recursos do pensamento, absoluta liberdade, completa rejeição de
lugares-comuns e a maior variedade possível de pontos de vista e mo­
dos de ação para que se tenha êxito. Todos os trabalhadores do pen­
samento, qualquer que seja sua abordagem ao objeto, todos trazem
alguma contribuição, e as contribuições de cada um, cedo ou tarde,
se combinarão para a resolução das grandes tarefas do pensam ento
humano (Tchelpánov, 1917, p. 36).

No entanto, está ligada à inauguração do instituto a esperança


de que seu trabalho esclarecerá “a diferença radical existente entre a
natureza do ser humano e a das outras criaturas vivas, uma diferença
assinalada por nossa fé e por nossa experiência da vida cotidiana”
(Tchelpánov, 1917, p. 14).'Isso permitiu que o professor G. I. Tchel­
pánov visse nesse fato a união dos psicólogos russos ligados a orien­
tações contrárias. Segundo ele,

pode-se ver nisso o princípio da união dos psicólogos russos em um


trabalho comum. Esperamos que a fórmula “quem deve elaborar a
psicologia?”, que recentemente separava filósofos, psicólogos e psicó­
logos fisiologistas, já seja coisa do passado (Tchelpánov, 1917, p. 47).
2. A ciência psicológica (1928)

Não pode haver nada mais falso historicamente do que tal afir­
mação: o incompatível continuou sendo incompatível, e a luta entre
as duas psicologias logo se tornou clara para todos.

O historiador não terá dificuldade de ver que as ideias psicoló­


gicas dependem da dinâmica geral da vida social, e essa dependência
pode ser facilmente reconstituída com base em pistas numerosas e
absolutamente evidentes. Ele verificará que a vitória e a derrota de
cada uma dessas psicologias são determinadas por movimentos ascen­
dentes e descendentes de ondas sociopolíticas e são alimentadas pelos
estados reacionários e progressistas de cada época. Não por acaso,
o prestígio de Sétchenov se extinguiu na consciência social nos anos
anteriores à guerra de reação à guerra, precisamente no período em
que foi restabelecida a antiga psicologia em seu significado literal e
exato. Apresentaremos apenas alguns traços vivos, que delineiam a
relação entre a psicologia e a vida social.

“A reunião do Primeiro Congresso Russo de Psicologia Peda­


gógica” - como foi observado nesse mesmo congresso em 1906 -
“coincidiu com a reunião do primeiro Parlamento russo” (Trudi I
Vsierossiiskogo, 1906, p. 229). Com efeito, em todos os primeiros pas­
sos da psicologia aplicada russa, verificam-se as marcas da primavera
política. “Mas o que, no final das contas, deve fazer o congresso?”,
perguntou um dos palestrantes, “Ele deve trabalhar da mesma forma
que um partido político” (Trudi I Vsierossiiskogo, 1906, p. 237). A
questão da renovação da escola empurrava a elaboração científica
da psicologia em uma certa direção. Contudo, mesmo em uma cir­
cunstância social absolutamente diversa, em 1914, na inauguração
do Instituto de Psicologia, confrontaram-se os discursos de Pávlov
e do bispo, que falou sobre o estudo da “natureza divina da alma”
(Tchelpánov, 1917, p. 16), o que oferece ao historiador uma indicação
clara de qual marca social havia naquela estranha unificação de duas
psicologias incompatíveis, que pareciam se juntar naquele dia.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Agora não parece estranha nem requer mais explicações a po-i


sição básica à luz da qual deve ser analisada a ciência psicológica
na URSS: a tarefa histórica da psicologia no país da revolução é a;
transformação da psicologia em uma ciência natural, a conclusão das
cisão histórica e a unificação de todo o conhecimento positivo acumu-
t j.
lado pela psicologia, em seu longo percurso histórico, em um sistema
científico único.

II

Devemos considerar como fato básico e determinante para o


crescimento da psicológica científica natural em nosso país a teoria do*
reflexo condicionado criada pelo acadêmico Ivan Pávlov. Com efeito,
essa teoria não apenas foi engendrada como também conseguiu darj
passos importantes e conquistar reconhecimento mundial ainda antes
da revolução. Contudo, embora isso pareça estranho à primeira vista,
em amplos círculos da Rússia, ela permaneceu pouco conhecida e,
antes da revolução, não exercia nenhuma influência sobre o curso d o ;
desenvolvimento da psicologia russa. Nessa época, dava-se a Deus o
que é de Deus e a César o que é de César: os psicólogos estudavam
fenômenos da alma; já os fisiologistas, a atividade nervosa; um e ou-,
tro estavam separados por um abismo.
Somente na época da revolução, a teoria do reflexo condicio­
nado tornou-se um fator determinante para o desenvolvimento da
ciência psicológica. Outro motivo para isso foi o fato de que essa;
teoria avançou significativamente na última década e alcançou certo
grau de completude no livro de Pávlov recentemente lançado, Vinte
anos de experiência com o estudo objetivo da atividade nervosa supe-
rior (do comportamento) de animais (1923).* Mas o principal motivo :

* Em 1927 foi publicado o segundo livro do acadêmico Ivan Pávlov, Aulas sobre o trabalho 1
dos grandes hemisférios do cérebro, que traz uma apresentação completa e sistemática de 1
2. A ciência psicológica (1928)

foi a profunda afinidade interna existente entre as ideias da revolução


e a nova teoria. A revolução adotou imediatamente a nova psicologia
c, nas palavras de Bukhárin (1924),17 a reconheceu como uma “ferra­
menta do inventário de ferro da ideologia materialista”.
Na realidade, a nova teoria foi logo sentida como algo que está
na mesma linha que a teoria de Darwin. Darwin relevou a origem da
experiência herdada e a organização herdada dos animais. Pávlov re­
velou a origem da experiência pessoal, adquirida e individual e de que
forma ela se constrói sobre a experiência herdada, inata. Se Darwin
encontrou a chave para a biologia das espécies, Pávlov encontrou a
chave para a biologia dos indivíduos.
Ele mostra como qualquer elemento da experiência herdada,
isto é, o reflexo, pode ser, sob influência do meio sobre o organismo,
ligado a qualquer elemento do mundo exterior, um excitante ou estí­
mulo, e como disso surge um quadro muito complexo, mas absoluta­
mente regular do comportamento individual de determinado animal.
() mecanismo biológico que Pávlov nomeou como reflexo condicio­
nado é extraordinariamente simples: assim é chamada a reação do
nnimal que é suscitada por um estímulo que, na experiência anterior
do animal, foi associado com algo que suscita essa reação de forma
direta e não condicionada. Se o cachorro saliva ao ver comida, temos
diante de nós um reflexo condicionado.
Os experimentos clássicos de Pávlov são incrivelmente simples,
tie uma simplicidade típica daquilo que é genial. Na realidade, na
base deles está o fato da “salivação psíquica”, que qualquer criança
conhece ao “começar a salivar” quando vê comida; seu método é
determinado pela ideia de associação, que remonta aos tempos de
Aristóteles. Isso fez com que muitos não notassem o que havia de
inédito por trás da simplicidade dessa teoria: “Onde está a ciência?

25 anos de trabalho com os hemisférios do cérebro de cachorros.


Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Qualquer caçador sabe disso quando adestra um cão” (Sbornik pos-


viaschiónni, 1925, p. 18).
Seria preciso lançar um novo olhar, trazido pela revolução,
para enxergar nessa teoria o que ela tinha de novo, aquilo que e r a ,
desconhecido para o caçador que adestra um cão e que sequer fora
sonhado por nossos sábios. O núcleo revolucionário dessa nova teoria
reside em três elementos: sua profunda ligação com a raiz animal do
psiquismo humano, com as formas mais simples de vida; suas amplas
perspectivas no campo das formas propriamente humanas e históri­
cas de atividade nervosa; no fato de ligar a raiz com as perspectivas e
construir uma ponte entre biologia e história, na ideia, isto é, na ideia ¡
fundamental e no método do reflexo condicionado.
Em certo sentido, os trabalhos de Pávlov realizam de forma <
direta a tarefa colocada por Sétchenov, isto é, de mostrar a origem
terrena dos mais elevados processos psíquicos, mostrar que o ser
humano é uma unidade ao lado de outros fenômenos presentes em ;
nosso planeta, e toda sua vida, inclusive a espiritual, na medida em
que ela possa ser objeto de investigação científica, é um fenômeno
terrestre (Sétchenov, n.d., p. 203). É a teoria de Pávlov que mostra a
origem terrestre, animal, das formas superiores de comportamento
a partir das formas inferiores, ela revela o próprio mecanismo dessa
origem, a dinâmica da transformação de não condicionado para con- i
dicionado. Tudo o que é superior no comportamento, tudo o que é
condicionado, é construído sobre o não condicionado; na base de
todo ato ou ação, não importa quão complexto ele seja, está em última
instância o reflexo.
Com isso, extirpa-se definitivamente o dualismo da ciência so-;
bre o ser humano, o qual fora recebido como herança da religião e
que distinguía no ser humano corpo e alma. O caminho em direção ;
a um psiquismo independente, fechado em si e que não pode ser J
comparado a mais nada, está fechado à luz da nova teoria. Depois j
2. A ciência psicológica (1928)

da compreensão materialista da natureza viva e morta, depois da


compreensão materialista da vida social e histórica da humanidade,
chegou o momento de estabelecer uma compreensão materialista
para o elemento mais difícil, complexo e obscuro, isto é, o próprio
ser humano.

Isso permite incluir o ser humano em seu contexto geral de


tudo o que é “terreno” e aplicar a ele e à sua vida espiritual as leis ge­
rais que agem no mundo real e são conhecidas pela ciência. Segundo
Pávlov (1923, p. 157), “o método subjetivo é método de pensamento
infundado, pois o raciocínio psicológico é um raciocínio não determi­
nista, ou seja, reconheço o fenômeno oriundo não se sabe de onde”.
Por isso, a nova teoria busca conhecer o ser humano “segundo as
regras rígidas do pensamento das ciências naturais”.
Contudo, essa ampla perspectiva para trás, para as profundezas
da vida animal, não apenas não nos mantém o tempo todo na esfera
das formas primitivas, inferiores e primevas do comportamento, como
também, ao contrário, é a que pela primeira vez dá à ciência a pos­
sibilidade de elevar-se e, com as ferramentas do conhecimento exato,
chegar aos estágios superiores da atividade nervosa. Daí o otimismo
incomum dos novos pesquisadores. Ao estudarem a relação entre o ser
humano e o mundo, eles estão firmemente convictos de que,

seguindo pelo caminho das investigações objetivas, chegaremos gra­


dualmente a uma análise completa da adaptação ilimitada, em todo
seu escopo, que constitui a vida sobre a Terra. O m ovim ento das
plantas em direção à luz e a busca da verdade por m eio da análise
matemática não são essencialm ente fenôm enos da m esm a ordem?
N ão será esse o último elo de uma corrente praticamente infinita de
adaptações realizadas por todo o mundo vivo? (Pávlov, 1923, p. 23).

O próximo episódio mostra como certos experimentos de Pá­


vlov abriram grandiosas perspectivas. O cachorro recebe comida e,
ao mesmo tempo, tem sua pele cauterizada por uma corrente elétrica.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

A corrente elétrica, não importa sua força, converte-se em sinal, em


substituto da comida, em um estímulo condicionado do centro alimen­
tar. O estímulo elétrico suscita agora não uma reação de defesa, mas
uma reação alimentar: o animal se volta ao experimentador, lambe o
focinho e começa a salivar com o se estivesse diante da comida. Exa-
tamente a mesma coisa ocorre quando se substitui a eletricidade por
cauterização e ferimento da pele (Pávlov, 1923, p. 154).

Aqui temos o passo seguinte no estudo da atividade nervosa su­


perior, o reflexo condicionado a um estímulo destrutivo ou doloroso.
Que experimento poderoso: o cachorro responde à dor com alegria,
você provoca uma queimadura ou ferida nele, e ele se arrasta em sua
direção. Sherrington18 (1911 como citado em Frolov, 1925, p. 155),
o conhecido fisiologista inglês, ao presenciar esses experimentos ex- ]
clamou: “Agora compreendo a alegria com que os mártires seguem !
para a fogueira”. j
Três anos depois disso, na inauguração do Instituto de Psicolo- j

gia Experimental foi dito o seguinte:

N o Antigo e no N ovo Mundo, as pessoas já tentavam, com ajuda de ¡


engenhosos aparatos, mediante influências sobre o corpo, fazer com
que a alma desse respostas necessárias, numa tentativa de estabelecer
com exatidão as leis da vida da al ma. . . . Mas será possível investigar
a essência interior da alma por m eio do experimento, será possível
medir suas manifestações superiores? Quem ousará investigar expe- •
rimentalmente a vida religiosa do espírito? (Tchelpánov, 1914, p. 12). 1

O terceiro aspecto que faz a teoria de Pávlov avançar para i


o primeiro lugar na psicologia russa contemporânea é aquilo q u e ,;
como já foi mencionado, liga a raiz com as perspectivas: o princípio
e o método do condicionamento na ação do reflexo. É possível dizer
sem exagero que na ciência sobre os indivíduos ele desempenha o í
mesmo papel que o princípio e o método da evolução na biologia.
Esse método consiste em tomar algum dado primário, natural e sim-
2. A ciência psicológica (1928)

pies e acompanhar suas alterações conforme as condições nas quais


sua atividade se desenvolve. No sentido mais amplo e filosófico do
termo, todo o mundo da história, da cultura, da língua é o reino da
condicionalidade. Nesse sentido, o método dos reflexos condiciona­
dos ganha um significado muito amplo de método natural e histórico
aplicado ao ser humano, de nó que liga história e evolução.
A teoria dos reflexos condicionados cresceu de forma muito
ampla nos anos da revolução; na escola de Pávlov e no Instituto do
Cérebro, inaugurado em Moscou pela Academia Comunista, e k foi
enriquecida por uma série de descobertas brilhantes; as leis mais im­
portantes da atividade nervosa superior podem agora ser considera­
das esclarecidas: a ciência se aproxima de uma análise mais profunda
o complexa do comportamento.
Na escola do acadêmico V. Békhterev,19 os reflexos condicio­
nados (combinados) são estudados em pessoas; aqui é feita a tenta­
tiva de levar todos os fatos da vida psíquica, produzidos em algum
momento pela psicologia, ao esquema do reflexo, traduzi-los dessa
forma para uma linguagem objetiva e relacionar a nova teoria com
tudo aquilo que tem valor científico que a psicologia ofereceu em
seu desenvolvimento histórico. A tentativa de criar o sistema de uma
nova psicologia, construída sobre a teoria dos reflexos condiciona­
dos, foi feita por Békhterev na obra Fundamentos gerais da reflexo­
logia humana. Essa mesma escola está trabalhando sobre os pro­
blemas da reflexologia genética: acompanha-se em um bebê, desde
o primeiro dia de vida, a formação dos reflexos condicionados, e,
assim, são lançadas as bases da psicologia infantil objetiva (Nóvoe v
refleksologuii, 1925).

Dentre as questões particulares trabalhadas pela reflexologia,


devemos citar a experiência da reflexologia do trabalho, que traz
uma análise fisiológica do trabalho físico e mental sob o ponto de
vista da teoria da dominante, desenvolvida na escola do professor
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Úkhtomski20 (Békhterev, 1926; Úkhtomski, 1923). O princípio da


dominante introduz uma abordagem dinâmica aos fenômenos do
comportamento. Ela analisa a atividade nervosa como um todo dinâ­
mico que se constitui na influência do foco dominante de excitação
que, em determinado momento, desempenha um papel de organiza­
ção em relação aos demais comportamentos, inibe certas reações,
intensifica-se graças a estímulos alheios e confere unidade ao com­
portamento do organismo em cada dado momento. Esse princípio
se mostrou muito fértil para o estudo da natureza das reações de
trabalho do ser humano.
Recentemente, difundiu-se de forma especial a aplicação da re-
flexologia a questões de educação, terapia, organização do trabalho
etc. Mas a esse respeito, isto é, sobre a psicologia aplicada e prática,
falaremos à parte.

III

Se a teoria dos reflexos condicionados, conforme observou cor­


retamente Pávlov, constitui o “fundamento principal do conhecimento
psicológico”, pode-se dizer que a psicologia científica natural foi esta­
belecida sobre um alicerce firme. Entretanto, tornou-se mais aguda a
questão da reforma metodológica da ciência, do reexame das ideias
filosóficas fundamentais que estão na base dessa ciência dupla. Na
história da psicologia, do modo como ela entrou na revolução, havia
tanto de alheio, distante e incompatível com as orientações dadas
pela revolução para toda a vida cultural que uma revisão e crítica da
psicologia tradicional se mostrou absolutamente inevitável.
Essa revisão se deu por forte influência da psicologia norte-ame­
ricana do comportamento, o chamado behaviorismo. Esse foi um fato
absolutamente novo na história da psicologia russa, que até então so­
fria a influência das ciências alemã, inglesa e, em parte, francesa. Mas
2. A ciência psicológica (1928)

o impacto do behaviorismo foi refletido. Ele mesmo surgiu e se formou


como uma orientação científica independente sob influência da escola
objetiva russa. A teoria dos reflexos condicionados estava na base do
sistema norte-americano, e Watson, o pai do behaviorismo, considera
corretamente que os fundadores dessa teoria são Pávlov e Békhterev.
Pela primeira vez, a psicologia russa não apenas se desenvolveu de
forma autônoma, independente de influências estrangeiras, como ela
mesma exerceu forte influência sobre a psicologia estrangeira, em par­
ticular a norte-americana. Dessa forma, a influência norte-americana
era uma influência russa refratada sobre a própria psicologia russa.
Seja como for, seguindo os norte-americanos, os psicólogos
russos proclamaram que a psicologia é uma ciência do comporta­
mento de criaturas vivas. Em 1921, foi lançado o Ensaio de psicologia
científica, de Pável Blónski,21 no qual o autor tentou realizar uma re­
forma da psicologia, criar uma psicologia não apenas sem alma, mas
também sem consciência (ou fenômenos psíquicos), como uma teoria
científica natural sobre o comportamento.

Essa nova ideia estava em consonância com a revolução, e a


psicologia do comportamento passou a ser amplamente difundida em
solo russo e suplantar a tradicional psicologia empírica. Tanto nos
Estados Unidos como na Rússia, a psicologia do comportamento era
uma continuação daquela mesma luta entre duas psicologias, discu­
tida anteriormente.

Na variante russa do behaviorismo norte-americano, três notas


ressoaram com mais força: o ímpeto em direção a um sistema psico­
lógico firme, fundamentado genética e matematicamente, com base
no materialismo científico; o desejo de aproximar a teoria psicoló­
gica da teoria da sociedade, nova para a ciência acadêmica da época,
que exerceu hegemonia espiritual na época da revolução; e, por fim,
um senso dos grandes problemas que se colocavam para a psicologia
nesse novo caminho. Segundo Blónski (1921, p. 21),
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

ainda precisam os descobrir o ser hum ano - e que ignorantes estra­


nhos nós muito provavelmente nos revelaremos diante dessa grande
descoberta futura! Precisamos descobrir o “homem social” e sua re­
lação com o ambiente circundante, e fazê-lo não por m eio de raciocí­
nios gerais, mas de fórmulas matemáticas.

Em 1922, foi lançado o livro Teoria das reações humanas, de


Konstantin Kornilov,22 que chegou à mesma ideia partindo de outro
ponto. A investigação experimental das reações surgiu com base na
teoria tradicional das reações e de seus tipos, do modo como ela
foi formulada pela escola de Wundt. O que Kornilov introduziu de
novo nessa investigação foi o estudo do aspecto dinâmico da mesma
reação, cujo aspecto temporal fora estudado por Wundt e seus alu­
nos. Contudo, a conclusão a que se chega a partir do novo ponto
de vista se mostrou profundamente revolucionária. A investigação
mostrou que

a atividade do pensamento e a manifestação externa dos movimentos


se encontram em relação inversa entre si: quanto mais se complexifica
e se torna tenso o processo do pensamento, m enos intensiva se torna
a manifestação externa do movimento (Kornilov, 1922, p. 122).

Isso levou o autor à formulação do princípio do gasto monopo­


lar de energia, segundo o qual “o intelecto não é outra coisa senão um
processo volitivo refreado, que não se converte em ação” (Kornilov,
1922, p. 128). Com isso, o autor oferece uma nova compreensão da
reação, ou melhor, amplia esse conceito psicológico a uma forma bá­
sica e primária de manifestação vital. Em vez disso, o autor propõe
uma nova compreensão da reação, ou melhor, ele amplia seu conceito
psicológico para chegar a uma forma básica e primária da manifes­
tação vital. Em sua visão, o estudo da psicologia deve partir não de
sensações ou percepções, mas de reações: aquelas são “conceitos abs­
tratos”, estas são dadas na experiência. Na formulação do autor, “A
psicologia deve se tornar o estudo das reações do organismo vivo, que
2. A ciência psicológica (1928)

abrangem todas as formas com que ele se manifesta em relação ao


meio circundante” (Kornilov, 1922, p. 10).

Aqui, como na formulação inicial de Blónski, a tendência bá­


sica segue inteiramente a linha da separação historicamente pautada
da psicologia materialista e a inclusão do seu objeto no contexto das
ciências naturais. Segundo Kornilov (1922, p. 8), “o lugar da psico­
logia é entre as disciplinas de ciências naturais tanto pelo método de
trabalho como por seu objeto de estudo”.
Contudo, essas primeiras tentativas de conferir um novo as­
pecto à psicologia têm uma deficiência básica: em ambos os autores,
perde-se toda a diferença entre essas reações ou movimentos, que
constituem o objeto da psicologia, e aquelas que não apresentam
nenhum interesse para o psicólogo. Se a reação é a forma básica
de manifestação da vida, um processo inflamatorio é, sem dúvida,
também uma reação, bem como o aumento da temperatura corpo­
ral, mas será possível que haja uma psicologia da inflamação ou
da febre? Se a psicologia, segundo Blónski, é a ciência do com­
portamento, ou seja, do conjunto de movimentos, qual sinal, quais
critérios permitem distinguir aqueles movimentos que têm interesse
para o psicólogo daqueles que lhe são indiferentes, por exemplo, os
movimentos peristálticos?

Contudo, a imperfeição dessas primeiras tentativas da nova


psicologia representa justamente a imperfeição dos primeiros passos:
a direção foi indicada corretamente, e ela logo levará a uma nova for­
mulação da ideia de reforma da psicologia. Em 1923, no Congresso
Russo de Psiconeurologia, Kornilov fez uma apresentação intitulada
“A psicologia moderna e o marxismo”, na qual ele tratou da neces­
sidade de aplicar o método do materialismo dialético à psicologia. A
mesma ideia fora defendida por Strumínski,23 Blónski e outros. No
Segundo Congresso Russo de Psiconeurologia, ocorrido em Lenin-
grado em 1924, Kornilov formulou os princípios básicos da psicologia
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

marxista, com base nos quais teve início a elaboração teórica e expe-|
rimental de cada problema psicológico.
Com isso, foi dado um passo decisivo, ocorreu uma reviravolta
histórica para o desenvolvimento da psicologia. A psicologia passouj
a ser tida como disciplina marxista. Ela entrou conscientemente paral
o “inventário de ferro da ideologia marxista”, colocou-se consciente^
mente a serviço da revolução. Com isso, ela tomou o único caminho|
que permite a realização da psicologia como ciência.
O avanço para um campo inteiramente novo se mostrou extre- j
mámente difícil; ele foi perpassado por erros e lapsos tanto em rela­
ção à teoria do materialismo dialético quanto à psicologia. É preciso!
ter em vista que a psicologia marxista é uma tarefa histórica da nossal
época que pode ser realizada apenas mediante esforços conjuntos!
de mais de uma geração de psicólogos, pois a expressão “psicologia!
marxista” não designa um ramo da psicologia ou uma de suas orien- j
tações, ela designa a psicologia científica como um todo, psicologia!
marxista é sinônimo de psicologia científica, e nesse sentido a cria­
ção de uma psicologia marxista é a conclusão de um longo processo
histórico de transformação da psicologia em uma ciência natural.
A tentativa de construir a psicologia com base no materialismo
dialético não é, em essência, algo inteiramente novo. No exterior,
houve mais de uma tentativa, embora não com a seriedade e o im­
pulso que distinguem a tentativa russa. “A ideia de fazer uma descri­
ção e explicação marxista do comportamento de modo a substituir a
psicologia antiga está amadurecendo em muitos lugares ao mesmo
tempo”, diz Blónski (como citado em Jameson, 1925, p. X).
Isso indica que essa é uma tarefa historicamente justificada, que
se trata da conclusão lógica do estado atual da nossa ciência, que esse
movimento se baseia em uma poderosa tendência histórica de desen­
volvimento da nossa ciência. “Somente a psicologia marxista é uma
psicologia que efetivamente esgota seu objeto” (Jameson, 1925, p. IX).
2. A ciência psicológica (1928)

O que a nova psicologia oferece? Por enquanto, pouca coisa. Te­


mos alguns pressupostos metodológicos; segundo Blónski, existe “a pers­
pectiva de construir uma psicologia materialista em toda sua amplitude”,
um “esquema de ciência”, um plano; existem os primeiros passos da
pesquisa teórica e experimental, e o mais importante, a psicologia mar­
xista tem uma vontade historicamente justificada em direção ao futuro.
Há uma circunstância que, à primeira vista, estabelece a fron­
teira entre a tendência histórica de criação de duas psicologias, como
ela era compreendida, e a psicologia marxista: precisamente a relação
entre a psicologia e as ciências humanas (história, sociologia e suas
divisões). Os primeiros autores da teoria sobre as duas psicologias
separavam as esferas da seguinte maneira: uma psicologia fisiológica
voltada para as ciências naturais, que estuda o ser humano como um
ser natural; uma psicologia teleológica voltada para as ciências huma­
nas, que estuda o ser humano como uma criatura histórica.
Foi justamente o medo de penetrar nas ciências sociais das
concepções materialistas da psicologia científica natural que fez com
que Dilthey e outros autores pensassem em separar a psicologia em
duas “ciências separadas”. Ele diz que a “inclusão na ciência natural”
confere à psicologia um

tom de materialismo refinado. Para o jurista ou para o historiador da


literatura, tal psicologia não é um solo firme, mas um perigo. Todo o
desenvolvimento ulterior mostrou o quanto o materialismo oculto da
psicologia explicativa, instituída por Spencer, afetou de forma nociva
a política econôm ica, o código penal e a teoria do Estado (Dilthey,
1924, p. 30).

É nesse ponto que a linha do desenvolvimento da psicologia russa


se afasta decisivamente do caminho indicado pelos primeiros autores
dessa ideia. A psicologia materialista não quer ser, em primeiro lugar,
uma psicologia social. Segundo Kornilov (1924, p. 75), “A psicologia
marxista analisa cada pessoa como variação de uma determinada classe.
Psicologia, desenvolvimento hum ano e marxismo

É por isso que o estudo do comportamento deve partir não da psicologia j


í
individual para a social, mas o caminho contrário”. I
Será que essa psicologia não abrange aquelas mesmas tare­
fas alheias, será que ela não deturpa as bases históricas nas quais se.)
apoia? De modo algum: em primeiro lugar, diferentemente de Dilthey j
e sua escola, ela parte da teoria do materialismo histórico, que analisai
a história como um processo histórico natural; em segundo lugar, ao
aceitar a ideia de duas psicologias, ela leva essa ideia à sua conclusão
lógica e afirma que como ciência é possível apenas a psicologia mate­
rialista; a segunda psicologia não é ciência, mas metafísica.

vr
Resta falar sobre o terceiro aspecto que, junto dos dois anterio­
res, revela o quadro geral da ciência psicológica na URSS. Trata-se
do rico crescimento da psicologia aplicada, a psicologia aplicada à
educação, ao tratamento de saúde, à organização do trabalho etc.
Esse não é um fenômeno casual; ele está legitimamente ligado a
dois outros traços da nossa psicologia e decorre diretamente da prin­
cipal tarefa histórica que ela resolve. Se na teoria dos reflexos con­
dicionados a nossa psicologia encontrou seu fundamento biológico,
na dialética materialista ela encontrou sua formulação filosófica e na
psicotécnica (no sentido mais amplo do termo), sua prática, ou seja,
o domínio efetivo sobre o comportamento humano, a subordinação
dele ao controle da razão.
Por sua própria natureza, a psicotécnica foi convocada a de­
sempenhar o papel de revolucionar a psicologia, e isso foi de fato
assim em toda parte em que a psicotécnica emergiu.

N ão pode haver dificuldades quanto à questão de qual psicologia é


necessária à psicotécnica. A psicotécnica lida exclusivam ente com
2. A ciência psicológica (1928)

a psicologia causal, com a psicologia da objetivação da vida men­


tal. . . . Será possível que a psicologia causal coexista com uma
psicologia de orientação teleológica? O psicotécnico não trata de
responder a tais questões fundamentais, pois ele sabe que, em todo
caso, podemos dominar todos esses processos e funções psíquicos
usando a linguagem da psicologia causal, e que somente a psico­
técnica pode lidar com uma compreensão causal (Münsterberg,
n.d., pp. 10-11).

Pela essência de sua tarefa, a psicotécnica precisa da psicologia


materialista. É notável que Münsterberg (n. d., p. IX), o autor do livro
do idealismo militante, diga o seguinte a esse respeito:

Como ciência teórica sobre a experiência pessoal, a ciência causal


não se mostra satisfatória. E não poderia ser diferente, uma vez que a
psicologia explicativa é a resposta para uma questão não natural, arti­
ficialmente colocada; a vida mental em si mesma não precisa de expli­
cação, mas de compreensão. Mas a psicotécnica, que pode trabalhar
apenas com ajuda da psicologia causai, atesta a necessidade dessa
colocação artificial da questão e, com isso, afirma sua legitimidade.
Assim, somente na psicotécnica se revela o verdadeiro significado da
psicologia explicativa, e dessa forma nela se completa o sistema das
ciências psicológicas.

Impossível dizer com maior clareza que tão logo o ponto de


vista da contemplação é abandonado e o ponto de vista da ação é ado­
tado, somos forçados a recorrer à psicologia materialista, objetiva, ou
seja, realista, por mais não natural que essa visão sobre o psiquismo
possa parecer. O idealista extremo é forçado a ser materialista na
psicotécnica, tamanha é a força coercitiva da natureza objetiva das
coisas. O autor está indubitavelmente certo em um aspecto: somente
na psicotécnica a psicologia encontra sua verdadeira revelação e con­
clusão. O papel de revolucionar desempenhado pela psicotécnica se
manifestou no fato de que ela obriga com necessidade objetiva todo
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

o psicólogo, independentemente de suas visões filosóficas, a elaborar ■


uma psicologia materialista.

Contudo, a psicotécnica adquire um significado especial no \


sistema da psicologia marxista. Ela é a prática pela qual o psicólogo
comprova a verdade de suas ideias. É o objetivo final e o critério da
verdade. Deve desempenhar em relação à psicologia teórica o mesmo i
papel que a técnica cumpre para as ciências fisioquímicas e a medi­
cina para as ciências biológicas.
Não surpreende, portanto, que a psicologia antiga se rela­
cione com a prática com desconfiança e ciúme extremos: ela se ;
sente insegura diante do tribunal da ação. O professor Vvediénski ¡
(1917, p. 349),25 ao tratar das tarefas da psicologia russa no Primeiro *
Instituto de Psicologia, observa “como a psicologia contemporânea i
ainda está distante do estágio em que seja possível se apoiar tranqui­
lamente nela em alguma atividade”; ele considerava oportunas ape­
nas as tarefas metodológicas e teóricas. De fato, a psicotécnica não
havia sido elaborada absolutamente na Rússia antes da revolução.
De toda a esfera da psicologia aplicada, desenvolveu-se a psicologia
pedagógica, e mesmo esta suscitou forte oposição por parte de uma
série de psicólogos.

Segundo Münsterberg (1923, pp. 14-15),

Alguns psicólogos de profissão que consideram ser uma profanação


da investigação científica qualquer contato desta com a vida prática,
ainda agora achariam bom se esse m om entó ocorresse apenas num
futuro distante. Eles ressaltam o fato incontestável de que o sistema
da psicologia ainda não está terminado e, nesse sentido, está muito
longe da física e da química. . . . Contudo, a experiência das ciências
naturais fala claramente não em favor de tal abstenção. A m edicina
não esperou e não poderia ter esperado a anatomia, a fisiología e a
patologia festejarem seus triunfos, e a técnica sempre tirou proveito
até dos mais m odestos êxitos da física.
2. A ciência psicológica (1928)

A psicologia aplicada da URSS desenvolveu-se amplamente nas


mais diversas direções: ela passou a ser aplicada em todas as formas
de vida social.
A psicologia pedagógica e a pedología26 desde a revolução fo­
ram radicalmente transformadas, pois o sistema de educação fora
transformado, suas demandas em relação à psicologia passaram a ser
outras. Se a escola antiga, fundada em grande medida na memoriza­
ção de lições, interessava-se predominantemente por processos de me­
morização, assimilação, reprodução exata, classificação do material
memorizado etc., a nova escola se interessa por questões totalmente
distintas. Entre os primeiros lugares, estão o problema da padroniza­
ção etária e o diagnóstico do desenvolvimento infantil: a nova escola
precisa de modos para avaliar como uma grande massa de crianças
se desenvolve e aprende.

As bases teóricas para essa pedología foram estabelecidas por


Blónski em seu livro Pedología (1925). Uma enorme quantidade de
trabalhos foi produzida nesses anos e continua a ser realizada nessa
direção. Se esses trabalhos ainda não levaram ao estabelecimento de
um sistema único e universalmente aceito de padrões de desenvolvi­
mento etário infantil, isso se deve à enorme complexidade da tarefa,
cuja realização deve levar ainda muitos anos.
Contudo, muitos métodos novos, muitos procedimentos novos de
pesquisa foram proporcionados por esses trabalhos. Mencionaremos o
programa de pesquisa sobre a criança e o coletivo de Stepan Molojávi,27
que, diferentemente dos esquemas pré-revolucionários do mesmo gê­
nero, tenta estudar a criança em sua relação com o meio social e com­
preendê-la sob o pano de fundo desse meio como um organismo íntegro
em crescimento, em suas orientações fundamentais sociais e de vida.
Desde a revolução também se desenvolveu muito a aplicação
da reflexologia à pedagogia. Não por acaso o método principal de
Pávlov é chamado de educação do reflexo condicionado: o problema
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

da educação realmente está no centro dessa teoria. Por isso, sua apli­
cação à teoria e à prática da educação se revela tão fértil e simples.
Com efeito, o educador quase sempre lida com a educação do reflexo
condicionado, de modo que o conhecimento das leis que regem esses
processos permite que ele eleve seu trabalho a um nível científico.
Especialmente produtiva tem sido a aplicação do método dos
reflexos condicionados ao estudo da criança deficiente, o que foi feito
com particular êxito pela escola de Khárkov do professor Viktor Pro-
topópov28 e Ivan Sokoliánski.29 Mas também na escola geral a lei bá­
sica, isto é, a estrutura do meio forma o novo reflexo, as “condições”
criam uma nova reação, corresponde integralmente à posição funda­
mental da pedagogia soviética, segundo a qual a educação, no final
das contas, leva à organização do meio educativo.

As mais importantes questões da psicologia infantil são colo- j


cadas de forma absolutamente nova nos trabalhos do professor Aron
Zalkind.30 Pela primeira vez, a primeira infância e a idade escolar
receberam nesses trabalhos uma interpretação materialista clara. A
teoria da infância neutra, fora do sistema de classes, a abordagem
zoológica à primeira infância, toda a teoria tradicional sobre o psi­
quismo da criança foi aqui submetida a uma crítica avassaladora.
Pela primeira vez, o ativismo, o coletivismo, a organização e o ma­
terialismo aplicados à idade infantil receberam uma fundamentação
teórica. Para a resolução de questões difíceis da psicologia infantil,
como a questão da criança desadaptada socialmente e a questão
sexual na educação, foram indicados pela primeira vez meios cien­
tíficos (Zalkind,1926a). Esses trabalhos lançaram as pedras funda­
mentais da pedología marxista.
Esse autor também lançou sob uma nova luz os problemas da
psicoterapia. Para ele, medicina, sociologia e pedagogia estão indisso-
ciavelmente ligadas. Enfermidades psicogênicas são enfermidades da
disposição social. O tratamento da pessoa requer em grande medida
2. A ciência psicológica (1928)

uma transformação de sua disposição sociorreflexiva, os problemas


da medicina têm cada vez mais se tornado questões de sociologia
prática (Zalkind,1926b).
Por fim, a psicotécnica em seu sentido próprio, como psicologia
prática do trabalho, desenvolveu-se nos últimos anos na URSS como
uma grande e produtiva disciplina científica. A psicotécnica russa não
passou pela crise que no Ocidente foi provocada pelo “entusiasmo
incontido da psicologia aplicada na época da guerra” e pela reação
pós-guerra a esse entusiasmo, como observa corretamente o professor
Isaak Chpilrein (1923),31 um dos primeiros psicotécnicos russos.
Por isso, essa disciplina revolucionária desenvolveu-se em um
ritmo comparativamente uniforme e cresceu de forma orgânica. As
condições especiais da organização soviética do trabalho permitiram
que nossa psicotécnica evitasse os desvios e as dificuldades oriundos
de se estar a serviço de empresas particulares capitalistas.
O problema central da nossa psicotécnica foi a pesquisa das
profissões. Segundo Chpilrein (1924, p. 3),

A base científica para o trabalho com seleção profissional deve natu­


ralmente ser a professiografia. Com ajuda do m étodo de trabalho, a
professiografia é a orientação de trabalho mais característica neste
m omento para nosso laboratório. Ela pode ser considerada um mé­
todo que caracteriza a escola psicotécnica moscovita.

Além disso, foi realizado um grande trabalho teórico de ve­


rificação de métodos, de estudo da treinabilidade etc. No entanto,
a característica mais importante da psicotécnica russa é sua ligação
orgânica com a produção à qual ela se aplica; ela é uma parte orgâ­
nica dela, ela cresce a partir dela; separada da produção, ela perde
uma boa parte de seu significado. Mas internamente ela carrega uma
função de extrema importância e resolve a tarefa de elevar a produti­
vidade do trabalho por meios psicológicos.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Não obstante, a peculiaridade da psicotécnica russa não se re­


sume ao fato de ela ocupar uma posição especial na produção à qual
ela se aplica, mas está ligada ainda ao lugar específico que ocupa den­
tro da própria psicologia. Como já foi dito, ela não está na periferia,;
mas no centro da nova psicologia. Não se trata de deduções ou de
algo secundário, que pode ou não existir e em relação a que a ciência;
é indiferente: ela é o nervo central do novo sistema, sua prática, ou ¡
seja, a psicologia em ação.

***

Seguindo Brentano, podemos dizer que a psicologia é a ciên- i


cia do futuro. É verdade que essa fórmula tem, para nós, um con-
teúdo essencialmente diverso. Brentano atribuía dois sentidos dis­
tintos: primeiro que, de todas as ciências teóricas, é justamente a ;
psicologia que pertence ao futuro; segundo que, à diferença das leis
da gravidade, do som, da luz e da eletricidade, cujo significado se
perde para nós uma vez que nos afastamos desse mundo, as leis
da psicologia têm força “tanto lá quanto aqui” para a alma imortal
(Brentano, 1924, pp. 36-37).

O comentador, de fato, apresenta a seguinte explicação nesse


momento: o autor se referia apenas às leis da psicologia descritiva, e
não da genética, pois estas, dada a sua natureza fisiológica, no outro
mundo (3 + n dimensões) já serão outras (p. 261).* Tal é perspectiva
de futuro de uma psicologia, a descritiva: ela é a ciência do futuro que
se iniciará após a nossa morte.

A outra psicologia também é a ciência do futuro, mas do futuro


terreno, o futuro da humanidade. Sua perspectiva também deve ser

* Nota publicada em 1924, em Leipzig.


2. A ciência psicológica (1928)

indicada, em primeiro lugar, porque as ideias revelam sua verdadeira


essência apenas quando levadas ao extremo, ao final lógico, à conclu­
são final, e, em segundo lugar, pois nada na revolução pode ser com­
preendido sem uma perspectiva de futuro. Essa perspectiva é ditada
pelo curso do desenvolvimento da nossa psicologia.

Kautski32 mostrou perfeitamente que a criação do novo ser hu­


mano não é o pressuposto, mas o resultado do socialismo.

Será que não estam os certos de supor que, em determinadas cpndi-


ções, será criado um novo tipo de ser humano que esteja acima dos
tipos mais elevados criados pela cultura até então? Podemos chamá-lo
de super-homem, só que ele não será exceção, mas a regra, será um
super-homem em relação aos seus antepassados, mas não dos que
estão próximos (Kautski, 1903, p. 167).

A mesma ideia é desenvolvida por Liev Trótski ( 1924)33 quando


ele diz que a abordagem científica do ser humano será possível apenas
sob o socialismo: “O próprio ser humano é o elemento fundamental”.
Para se subordinar a esse elemento, tal qual a humanidade subordina
a si mesma o elemento da natureza e da sociedade, é preciso conhecer
o ser humano em todas as suas dimensões, “conhecer sua anatomia,
sua fisiología e a parte da fisiología que denominamos psicologia”
(Trótski, 1924, p. 84). A psicologia será a ciência fundamental para a
criação do novo tipo de ser humano.
É evidente que essa psicologia do futuro, a teoria e prática do
super-homem, lembrará a psicologia contemporânea apenas pelo
nome ou, nas magníficas palavras de Espinosa (1892, p. 29): non
aliter scilicet quam inter se conveniunt canis, signun coeleste, et canis
animal latrans, ou seja, como a constelação Cão Maior lembra o ca­
chorro, isto é, o animal que late.34 Por isso, o nome da nossa ciência
é caro para nós, um nome sobre o qual a poeira dos séculos se assen­
tou, mas ao qual o futuro pertence.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

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Notas da tradução

1. Franz Brentano (1838-1917) foi um influente filósofo e psicólogo alemão.


Em 1874, publicou o livro A psicologia do ponto de vista empírico, ao qual
Vigotski se refere aqui.

2. Wilhelm Stern (1871-1938) foi um psicólogo alemão, que defendeu uma


psicologia baseada nas características e diferenças individuais, tanto inte­
lectuais como de personalidade. Propôs a teoria da persona como essência
única especial. Criador do conceito de quociente de inteligência (QI).
94 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

3. Sobre Münsterberg, ver nota 22 do texto 1.

4. Referência ao filósofo alemão Paul Natorp (1854-1924), um dos principais


nomes do neokantismo.

5. Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi um filósofo alemão que defendeu a ideia


de uma psicologia descritiva com base nas ciências humanas. Em 1894,
Dilthey publicou seu famoso artigo “Ideias sobre uma psicologia descritiva
e analítica”, ao qual Vigotski se refere aqui.

6. Referência ao filósofo francês Henri Bergson (1859-1941).


7. Sobre Külpe, ver notas 9 e 20 do texto 1.

8. Matvei Mikháilovich Troitski (1835-1899), filósofo russo. Foi um dos fun­


dadores da Sociedade Psicológica de Moscou (1885). No primeiro encontro
dessa entidade, o autor apresentou uma comunicação sobre as tarefas e
métodos da psicologia. Suas reflexões foram muito influenciadas pelo em­
pirismo britânico de Bacon e Locke.

9. Nikolai Lósski (1870-1965), filósofo da religião. Foi autor de uma vasta


obra sobre epistemología, axiologia, ética e outros campos. Os marxistas
consideram-no idealista, adversário do materialismo.

10. Vigotski refere-se, provavelmente, a K. D. Uchínski (1824-1870), pedagogo


e estudioso da psicologia. Adotando um ideário empirista, defendeu a im­
portância da psicologia para a educação.

11. Ivan Mikhailovich Sétchenov (1829-1889), pioneiro da fisiología russa.


Exerceu profunda influência em Pávlov com o livro Reflexos do cérebro
(1866), censurado pelo regime. Simpatizante de ideias radicais e irreligio­
sas, Sétchenov abraçava um ideário darwinista e estritamente determinista,
reduzindo os pensamentos a meras conseqüências de reflexos do cérebro.

12. Aleksander Netcháiev (ver nota 24 do texto 1), filósofo. Após visitar labo­
ratórios na Alemanha (de Wundt, Müller e Kraepelin), fundou o primeiro
laboratório de psicologia educacional experimental em 1901, em São Pe­
tersburgo, enfrentando forte oposição do também filósofo A. Vvediénksi
(ver nota 24 do texto 1), avesso à experimentação psicológica.

13. Geórgui Ivánovitch Tchelpánov (1862-1936), filósofo. Atuou em Kyiv e


Moscou. Com doações privadas, fundou o Instituto de Psicologia Experi­
mental de Moscou em 1912, chegando a ter, em 1914, mais de 70 alunos
2. A ciência psicológica (1928) 95

em seu programa de pós-graduação. Apesar de incentivar os estudantes à


obtenção de uma sólida formação filosófica e de assentar as bases de seu
pensamento na obra de Wundt e Kant, defendendo cautela com aplicações
prematuras da psicologia, mostrava-se favorável à separação entre filosofia
e psicologia. Blónski (ver nota 2 do texto 1) e Kornilov (ver nota 22 deste
texto ) foram seus estudantes, até que este último criticasse publicamente
o ex-professor e substituísse Tchelpánov no comando do Instituto de Psico­
logia de Moscou, criando espaço para uma psicologia marxista e a futura
admissão de Vigotski em 1924.

14. Sobre Lange, ver nota 15 do texto 1.

15. Semion Liudvígovitch Frank (1877-1950), filósofo. De origem judaica, es­


creveu a primeira análise detalhada em russo da teoria do conhecimento
de Espinosa sobre a doutrina dos atributos, difundindo o “monismo epis­
temológico” de Espinosa: para este, o conteúdo da consciência é idéntico
ao da realidade objetiva. Vigotski cita A alma do ser humano no texto “O
significado histórico da crise na psicologia” e em Psicologia pedagógica.

16. Sobre Pávlov, ver nota 8 do texto 1.

17. Nikolai Ivánovitch Bukhárin (1888-1938) foi um dos principais líderes


políticos bolcheviques, sendo, geralmente, lembrado como um teórico do
materialismo histórico e da economia. Graduado em Matemática, mas au­
todidata em muitos temas, escreveu livros hoje clássicos, como A economia
mundial e o imperialismo e o Tratado de materialismo histórico. Bukhárin
concebeu importantes políticas soviéticas. Fazendo oposição a Stalin, foi
preso e executado no contexto dos julgamentos teatrais com que o tirano
eliminou seus opositores da velha guarda bolchevique entre 1936 e 1939.

18. Sobre Sherrington, ver nota 6 do texto 1.

19. Sobre Békhterev, ver nota 5 do texto 1.

20. Sobre Úkhtomski e o princípio do dominante, ver nota 4 do texto 1.

21. Sobre Blónski, ver nota 2 do texto 1.


22. Konstantin Nikoláevitch Kornilov (1879-1957), siberiano, era de origem
humilde. Professor de província, graduou-se tardiamente na Faculdade de
História e Filologia da Faculdade de Moscou em 1910. Obteve um posto
de assistente de Tchelpánov no Instituto de Psicologia Experimental anos
depois e, em 1921, publicou um amplo tratado sobre o estudo das reações
96 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

(a “reactologia”), o qual influenciou Vigotski especialmente entre 1924 e


1927. Saindo publicamente em defesa da criação de uma psicologia mar­
xista, apesar de não ter escritos marxistas prévios nem ter exercido ativida­
des políticas, conseguiu o posto de Tchelpánov em 1923, abrindo caminho
para a formação do Círculo de Vigotski.

23. Vigotski refere-se provavelmente a Vassíli Iákovlevitch Strumínski (1880-


1967), pedagogo com formação teológica e primeiro reitor do Instituto de
Educação Pública de Orenburgo, ao sul dos Urais. Publicou um livro sobre
a psicologia científica na perspectiva do materialismo dialético em 1923,
envolvendo-se em violenta polêmica com Kornilov após publicar o artigo
“Sob a bandeira do marxismo” na principal revista do Partido Bolchevique
em 1926. Nele, tecia críticas à reactologia.

24. N o texto original há um erro na numeração das seções, passa-se da III


para a VI.

25. Ver nota 24 do texto 1.

26. Vigotski considera o objeto de tal ciência como as leis de modificação


do comportamento humano e os meios de dominá-las. Cf. Vigotski, L. S.
(2003). Psicologia pedagógica (p. 43). Artmed. Sobre a pedologia, ver notas
2 e 23 do texto 1.

27. Stepan Stepánovitch Molojávi (1879-1937), pedólogo belarusso. Graduou-


-se em Varsóvia, assumindo a direção de um dos três laboratórios pedológi­
cos na Academia Comunista de Educação, instituição em que Vigotski tam­
bém pesquisava. Trabalhou ainda na 2 a Universidade Estatal de Moscou.
Foi um dos principais nomes da pedologia de sua época, sendo forçado a
abandonar a carreira científica após a proibição dessa ciência, em 1936.

28. Ver nota 17 do texto 1.

29. Iván Afanássievitch Sokoliánski (1889-1960), renomado defectólogo russo.


Em diferentes cidades, entre as quais Kharkiv (então capital da Ucrânia),
participou de pesquisas e da elaboração de amplas iniciativas em prol da
educação de sujeitos com deficiência, adolescentes em conflito com a lei
etc. Antes e depois de sua mudança para Kharkiv, em 1923, cooperou com
diversos pesquisadores, entre os quais Protopópov (ver nota 17 do texto 1),
psiquiatra ali alocado. Vigotski e seus colaboradores, como Zaporójets e
Galperin, conheceram Sokoliánski. Entretanto, não está claro se Vigotski
chama de “Escola de Kharkiv” apenas o trabalho defectológico de So-
2. A ciência psicológica (1928) 97

koliánski ou sua aliança com Protopópov (não confundir com a popular


“Escola de Kharkiv” de psicologia, criada por esses dois colaboradores de
Vigotski, entre outros, nos anos 1930).

30. Sobre Zalkind, ver nota 23 do texto 1.

31. Isaak Naftúlevitch Chpilrein (1889 ou 1891-1937), pioneiro e principal


pesquisador da “psicotécnica” (na União Soviética, sinônimo de psicolo­
gia aplicada ao trabalho). Tal disciplina recebeu forte impulso no final dos
anos 1920, perdendo abruptamente apoio do regime no início da década
seguinte. Em defesa dos trabalhadores, Chpilrein teceu críticas à explora­
ção do trabalho pelo regime soviético, sendo, ao que parece, preso e pos­
teriormente “desaparecido” sob acusação de manter conexões no exterior.

32. Karl Kautski (1854-1938), principal líder da II Internacional Comunista.


Foi aclamado como um dos pioneiros do pensamento social-democrata, ora
exaltando a via do sufrágio para alcançar o poder, ora a da revolução operá­
ria. Sofreu acerbas críticas dos bolcheviques - a começar por Lênin - que
o consideravam um operador da conciliação de classe, em detrimento da
revolução proletária. Por sua vez, Kautski criticou tendências autoritárias
que teria identificado na ordem bolchevique. Em reação a Kautski e outras
lideranças dentro e fora da Rússia, os bolcheviques capitanearam a funda­
ção de uma III Internacional Comunista em Moscou, 1919.

33. Liev Davídovitch Trótski (1879-1940), líder comunista. Tendo participado


da Revolução de 1905, foi exilado pelo regime tsarista. Posteriormente,
retornou a São Petersburgo, tornando-se o principal agitador da Revolução
de Outubro de 1917. Figura-chave na condução do processo revolucioná­
rio, tornou-se arqui-inimigo de Stalin, responsável pelo exílio e posterior
assassinato de Trótski. Foi um escritor muito prolífico, tratando de his­
tória, economia, literatura e outros assuntos. Suas ideias sobre o novo
homem socialista influenciaram Vigotski na proposição de uma psicologia
dos cumes, mostrando matiz mais universalista do que a noção staliniana
de “socialismo em um só país”.

34. A referência é à obra Ética, Parte I, Proposição 17, Escolio, de B. de Espinosa.


3. Aulas de psicologia do
desenvolvimento (1928)

Primeira aula
As duas linhas do desenvolvimento psicológico

Permitam-me iniciar a aula de hoje. Na psicologia do desen-


volvimento da criança, no desenvolvimento de seu comportamento,
ó possível distinguir claramente duas linhas básicas. Pode-se dizer
que o processo de desenvolvimento do comportamento na idade
infantil se organiza a partir de um entrelaçamento complexo des­
sas duas linhas básicas e justamente da peculiaridade desse en­
trelaçamento. No desenvolvimento do comportamento infantil em
cada fase etária, define-se antes de tudo o entrelaçamento dessas
duas linhas. Para iniciar, pode-se dizer que uma delas é análoga
ao desenvolvimento do comportamento, que conhecemos a partir
do processo evolutivo, ou seja, ela corresponde na ontogênese ao
desenvolvimento evolutivo na f[ilogênese];* já a outra linha de de­
senvolvimento corresponde [ao desenvolvimento da cultura].** O
desenvolvimento da criança corresponde ao processo histórico de
desenvolvimento do comportamento.
Permitam-me apresentar um exemplo concreto que mostra
uma dessas linhas de desenvolvimento. Tomo esse exemplo do tra­

* No estenograma há a letra “f” e um espaço. Ao que parece, a estenógrafa não ouviu


o termo. [Todas as notas de rodapé são da edição russa, exceto quando diferentemente
indicado.]

** Nesse local foi deixado um espaço em branco. Abaixo fala-se em “linha do desenvolvi­
mento cultural”.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

balho experimental de B.* Ele investigou a memória excepcional de


pessoas que fazem cálculos e de jogadores de xadrez. Nessa pes­
quisa, ele se deparou com o seguinte fato, ao qual ele dedicou um
capítulo especial. O fato consiste no seguinte: ao pesquisar pessoas
com habilidades excepcionais para cálculo, que possuem uma me­
mória altamente desenvolvida, B. se deparou com um hábil calcula­
dor que não tinha essa memória, alguém que, ao contrário, durante
a investigação psicológica demonstrou ter uma memória comum,
mas que podia memorizar mais do que alguém com uma memória
altissimamente desenvolvida. A pesquisa seguinte revelou que B.
se deparou com memória altamente desenvolvida, memória inicial
ou orgânica e memória mnemotécnica ou, como ela é chamada,
artificial. A diferença consistia em que a pessoas habilidosas em
cálculos investigadas por B. antes tinham uma memória excepcio­
nal graças a sinuosidades não estudadas do encéfalo e por isso elas
memorizavam um material enorme. O novo sujeito com habilidade
para cálculos, com o qual B. estava se deparando pela primeira vez,
não possuía tal memória. A memória dele era ordinária, porém ele
empregava um procedimento especial de memorização ou uma téc­
nica mnemónica. A essência desse procedimento era extremamente
simples: ele substituía qualquer número que deveria ser memori­
zado por uma letra correspondente do alfabeto, em seguida compu­
nha palavras, com as palavras ele formava frases, com as frases ele
compunha um romance e memorizava esse romance. Quando era
preciso reproduzir uma seqüência numérica composta de algumas
centenas de números, ele reproduzia o romance, decompunha-o em
frases, depois em palavras e, dessa forma, reproduzia toda seqüên­
cia numérica necessária.

* Beniamin Márkovitch Bliumenfeld, mestre enxadrista, autor de dois livros e da tese de


doutorado Problemas do pensamento visual-ativo com base no material do xadrez (1945).
Juntamente com Bliumenfeld, Vigotski deu uma palestra sobre a psicologia do xadrez na
Casa Moscovita dos Cientistas, em 30 de março de 1932.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Nesse experimento encontramos as duas linhas básicas do de­


senvolvimento. De um lado, temos a memorização, baseada na reten­
ção de traços da impressão externa, de estímulos externos, ou seja,
a memória desenvolvida no sentido próprio dessa palavra. Do outro
lado, a memória, que não se desenvolveu acima da média, funciona
como extraordinária, pois essa pessoa desenvolveu e aperfeiçoou não
a memória, mas a função da memória.

Se partirmos do caso da memória excepcionalmente desenvol­


vida para o caso da memória comum, deparamo-nos, no desenvolvi­
mento de cada criança, com essas duas linhas do desenvolvimento
da memória e não apenas da memória, mas de todas as funções
psicológicas e processos psicológicos da criança em geral. Se disser­
mos que a criança mais velha memoriza mais do que a criança mais
nova, isso se dá por dois motivos: a própria memória orgânica básica
da criança se desenvolve e se aperfeiçoa, pois se fortalece a base or­
gânica que constitui o fundamento de todas as funções da memória.
Mas isso pode ocorrer por outros motivos. A criança pode aprender
a memorizar em alto grau não porque a base orgânica de sua memó­
ria se aperfeiçoou, mas porque o procedimento de memorização da
criança se desenvolveu e se aperfeiçoou.

Quando comparamos a criança normal e a anormal, a criança


normal e mentalmente atrasada, verifica-se que uma criança memo­
riza melhor e a outra pior não apenas porque a base orgânica da
memória é pior ou inferior, mas às vezes isso se deve ao fato de que
os procedimentos da memória ou de memorização existentes estão
insuficientemente desenvolvidos.

Para explicar com mais clareza, ou melhor, com mais nitidez


essas duas linhas de desenvolvimento, devemos pegar cada uma des­
sas linhas separadamente. Já disse que na filogênese essas linhas se
encontram não de forma entrelaçada, mas em separado. Peço licença
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

para me deter na segunda delas, uma vez que a explicação dessa se­
gunda linha de desenvolvimento é mais difícil e complexa.
Quando comparamos a memória do homem primitivo com a
memória do homem da cultura, estabelecemos, seja com base na sim­
ples observação, seja com base na pesquisa experimental, dois fatos
principais, o instinto da matéria básica, em relação ao qual a memó­
ria do homem primitivo se distingue da nossa memória. Se compa­
rarmos o homem que não é da cultura, primitivo, com o homem da
cultura, o peso da memória será maior para o homem que não é da
cultura. Os senhores conhecem histórias de habilidades extraordi­
nárias nesse sentido de homens primitivos, sobre a capacidade do
homem primitivo de reconstruir, a partir dos menores vestígios, um
quadro complexo de acontecimentos, de deduzir pelas pegadas na
neve qual espécie animal esteve ali, quantos eram machos e fêmeas,
como ocorreu a luta, quem a venceu, tudo isso com base em vestí­
gios insignificantes, que não nos diriam nada. Os senhores também ■
conhecem histórias, que foram confirmadas por experimentos, sobre
a enorme memória topográfica do ser humano, histórias sobre como
o homem primitivo precisa passar apenas uma vez por um caminho
complicado e confuso para reter na memória esse trajeto e ser capaz
de reproduzi-lo.
Dito de outro modo, submetido à pesquisa experimental o ho­
mem primitivo não só não tem uma memória menos desenvolvida
em comparação com o homem da cultura, como, ao contrário, sua
memória é mais desenvolvida do que a nossa. Os senhores sabem que
o homem primitivo não deve de modo algum ser analisado como o
homem pré-histórico, e apenas a custo, apenas condicionalmente com
grande dose de relatividade podemos analisar as pessoas primitivas
da atualidade como, digamos, as tribos negras da África Central, eles
podem apenas condicionalmente ser analisados como representantes
do comportamento humano que não compartilha o desenvolvimento
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

histórico ou cultural pelo qual passamos. Ocorre que essas pessoas,


que estão em um degrau abaixo do desenvolvimento em relação a
nós, têm uma memória natural superior à nossa. Em outras palavras,
na comparação ocorre que o desenvolvimento da memória do homem
primitivo ao homem da cultura segue não apenas uma linha cres­
cente, mas também uma decrescente.
Juntamente com esse caso, observamos um segundo aspecto
que distingue o homem primitivo do homem da cultura. Ele con­
siste no seguinte: por um lado, o homem primitivo de fato tem üma
memória muito mais perfeita do que a nossa; por outro, no homem
primitivo a capacidade de memorizar coisas simples se assemelha à
de um escolar. Se pedíssemos a um homem primitivo que dominasse
o material que domina um aluno do primeiro ano do segundo grau,1
esse material estaria além das forças da capacidade de memorização
do homem primitivo. Em outras palavras, além da superioridade
da memória natural do homem primitivo, notamos um grau muito
inferior de funcionamento de uma memória de outro caráter. Essa
combinação peculiar de ambos os aspectos da memória no homem
primitivo - que, por um lado, é superior à nossa e, por outro, é
inferior a ela - aponta para aquilo que define a linha de desenvol­
vimento histórico da memória e do comportamento em geral. Ela
consiste não no aperfeiçoamento e desenvolvimento da memória
orgânica básica, mas na transformação do próprio modo da me­
mória. A pessoa se volta aos signos exteriores para memorizar. Da
memória imediata, a pessoa passa à memorização com ajuda de
signos artificiais.

Peço licença para apresentar um exemplo simples retirado da


vida de um povo primitivo. Trata-se de um exemplo retirado da vida
de um povo que se encontra num nível extremamente baixo de de­
senvolvimento, que vive na África Central. Entre seus líderes existe o
seguinte costume. Eles têm funcionários especiais, cuja função é lem­
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

brar ordens, disposições, certas datas, servem de crônica viva. Tais


funcionários são capazes de ouvir mais de 30 mil ordens e disposi­
ções extensas e são capazes de reproduzi-las palavra por palavra, uma
vez que elas foram gravadas na memória. Em povos que se encontram
em um grau superior de desenvolvimento, essas mesmas funções de
memorização de ordens, de crônica governamental, são realizadas de
modo completamente distinto.
Em seu aspecto mais puro, essa segunda capacidade dos povos
de cultura antiga se reflete no P[eru],* onde havia oficiais ou funcioná­
rios especiais, responsáveis pelos quipos, registros feitos em cordões,
nos quais eram gravados acontecimentos especiais. Esses registros
eram compostos de algumas cordas geralmente de cores diversas.
Cada cor designa um objeto específico: a corda amarela significa
ouro; a azul, prata; a verde, o grão etc. Em seguida, são feitos nós
nessas cordas, e a forma e o tipo de nó indicam algo específico. Um
nó simples significa uma coisa, dois nós um de frente para o outro
significam guerra ou paz, a depender do formato do nó.** Aqui, pela
primeira vez, a pessoa, que se encontra num grau primitivo de desen­
volvimento, cria um procedimento especial de memorização para au­
xiliar sua memória, um procedimento não análogo entre os animais.
A base desses procedimentos consiste em que a pessoa, sem se dar
por satisfeita com sua memória natural ou ao se ver diante de uma
tarefa que supera o resultado de sua memória natural, passa à criação
de uma memória artificial ou de signos externos, com ajuda dos quais
ela memoriza algo.
Os senhores sabem que um dos representantes dessa escrita
em nós, de certo modo, é a nossa escrita, que desempenha o mesmo
papel na vida cultural da humanidade e é atualmente a principal

* No estenograma há apenas a primeira letra e depois um espaço em branco.

** A tradição de fazer um nó para se lembrar de algo existe em diferentes culturas, e á


expressão correspondente existe em diversos idiomas.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

forma de memoria do homem da cultura. Uma vez que todo conhe­


cimento - toda experiência histórica acumulada em uma geração - é
transmitido menos por meio da herança biológica do que pelo desen­
volvimento histórico baseado na escrita, pode-se dizer que a invenção
da escrita é o início da civilização humana. A escrita cria a base para
a transmissão sistemática da experiência histórica de uma geração
a outra. Essa é uma das linhas pela qual ocorre o desenvolvimento.

A outra linha de desenvolvimento é o que temos agora, na


forma de vestígio desses procedimentos, quando atamos um nó para
não nos esquecermos de algo. Essa operação de criar um signo ex­
terno para memorizar algo, quando não se confia na própria me­
mória, mostra-se inconveniente ou menos proveitosa e pode nos
servir como representante da constituição dessas formas de compor­
tamento que emergem no processo de desenvolvimento. Por isso,
chamamos a segunda de linha do desenvolvimento cultural do com­
portamento da criança.
Um fato extremamente interessante, uma observação interes­
sante nesse campo pertence a Kõhler, um conhecido pesquisador
do uso de ferramentas por macacos. Kõhler estabeleceu que os
macacos usam ferramentas no sentido mais simples e primitivo da
palavra. Porém, eles não são capazes de produzir a mais simples
das ferramentas. Kõhler estabeleceu como seu objetivo de pesquisa
descobrir a forma mais simples de memorização em macacos. O
experimento foi feito a partir de um jogo simples. Os macacos usa­
vam de bom grado, no jogo, todos os objetos que se encontravam na
estação em que viviam. Foi levada argila branca para essa estação.
Os macacos começaram a lamber, provar o gosto da argila. Quando
descobriram que não era comestível, eles começaram a limpar a lín­
gua em tábuas, paredes, vigas e logo observaram que esses objetos
ficaram pintados de branco. Os macacos transformaram isso em
uma brincadeira interessantíssima.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Inicialmente, para que pudessem pintar com a língua, eles lam­


biam a argila branca e em seguida faziam manchas e faixas nos obje­
tos que estavam por perto. Logo os macacos mais inteligentes tiveram
a ideia de substituir a língua por um pincel de verdade. Assim surgiu,
entre os macacos a pintura primitiva. Atualmente. . .*
. . . Então começaram a pintar com manchas coloridas tudo, in­
clusive os próprios corpos. Embora o desenho primitivo tenha se de-í
senvolvido entre os macacos por um caminho natural, Kõhler jamais
pôde observar - a despeito do fato de ele ter colocado os macacos em;
certas condições quando necessário - sequer um indício de como elesi
criavam para si signos exteriores. Os macacos que tinham enorme fa­
cilidade de criar tais signos jamais foram capazes de utilizá-los mesmo
quando estavam no local que precisavam recordar.
Com base nessas observações, Kõhler chegou à conclusão d e ;
que, se encontramos uma forma de utilização de ferramentas em
macacos, mesmo em macacos antropoides não encontramos nem in- ‘
dícios casuais que apontem para o desenvolvimento de signos, d e ;
estímulos artificiais como os que o ser humano cria para auxiliar suas
operações psicológicas; por conseguinte, o desenvolvimento desses
meios auxiliares do nosso comportamento é inteiramente um produto \
do desenvolvimento histórico do ser humano.
Na realidade, a história, ou seja, a observação de homens pri­
mitivos, em especial povos que estão em diferentes graus da cultura
primitiva, mostra que o desenvolvimento do degrau mais baixo para
o mais alto depende do aperfeiçoamento desses modos externos de
comportamento. O desenvolvimento consiste não no fato de que, em
povos que se encontram em estágios mais elevados da cultura, o pro­
cesso de comportamento em si mesmo, as funções da memória, da
atenção e do pensamento em si mesmas superam as funções corres-

* Faltam cerca de três linhas.


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

pondentes em povos que estão em estágios mais baixos de desenvol­


vimento. Desenvolvem-se e se aperfeiçoam os meios auxiliares, os
estímulos auxiliares, que prestam assistência ao comportamento.
A conclusão seguinte me parece totalmente clara. Foi dito aqui
que, em vez de duas saídas para essa nova forma de comportamento,
ou seja, a criação de meios auxiliares para o comportamento, ocorre
uma alteração brusca do próprio tipo de desenvolvimento de nosso
comportamento, isto é, ocorre aqui o desenvolvimento por duas li­
nhas, como disse anteriormente. Aqui uma comparação simples com
outras formas de comportamento humano é mostrada de forma muito
clara e nítida.
Qual é a diferença entre essas linhas de comportamento?
O mesmo tipo de alteração do desenvolvimento humano ocorreu
quando a forma fundamental de adaptação à natureza se transfor­
mou, ou seja, quando o ser humano saiu da adaptação direta para
a adaptação pelo trabalho, para a adaptação [com ajuda de] uma
série de ferramentas criadas pelo homem primitivo. Os senhores
sabem que, se formos pesquisar o desenvolvimento do ser humano
do estado primitivo até o atual, verificaremos que o próprio tipo de
ser humano não sofreu alterações significativas. Foi o crescimento
de órgãos artificiais que assumiram formas totalmente distintas. O
desenvolvimento de ferramentas é a base do crescimento das forças
produtivas da humanidade e foi isso que alterou o próprio tipo bio­
lógico do ser humano.
Algo similar ocorre em relação ao desenvolvimento psicológico
no período histórico; algo similar, pois, naquelas operações sobre as
quais tratei, temos certa analogia, algo similar ao desenvolvimento
e à utilização de ferramentas na atividade exterior humana. Na rea­
lidade, a particularidade mais característica da operação de trabalho
que se baseia no uso de ferramentas, sua particularidade mais funda­
mental é o fato de que, entre o ser humano, isto é, o sujeito que age,
108 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

e a coisa ou objeto sobre o qual ele age, insere-se um corpo estranho,


que é a ferramenta, isto é, o transmissor [o impacto] do ser humano
sobre o objeto correspondente.
Algo semelhante existe na operação do comportamento, pois
também nesse caso entre a pessoa e o objeto que é o alvo da ope­
ração psicológica insere-se um elo, um elo intermediário na forma
de estímulo auxiliar ou meio de comportamento. Imaginem a ope­
ração mais simples, sobre a qual falei no início. Imagine que uma
pessoa pela primeira vez teve a ideia de atar um nó para se lembrar
de algo. Nesse caso, entre a pessoa e o objeto de que ela precisa se
lembrar (digamos, um fato numérico) se insere um signo-nó auxiliar,
que, em si mesmo, hão tem nenhuma relação com a operação e cuja
única designação é servir de meio para essa memorização. Para irmos
adiante, é necessário elucidar que tipo de alteração ocorre no desen­
volvimento do comportamento, isto é, quando ele assume uma forma
baseada em um signo ou meio exterior.
Se analisarmos ou destrincharmos as partes componentes de
tais operações psicológicas, das formas de comportamento que se
baseiam em signos exteriores, qualquer que seja a operação anali­
sada, chegaremos justamente à conclusão de que nesse desenvol­
vimento, nessa passagem de uma forma a outra, não são criadas
novas operações psicológicas. Temos aqui os mesmos elementos
do processo básico de comportamento, a partir dos quais se forma
de modo geral nosso comportamento como um todo. Consequente­
mente, ao analisarmos tais operações psicológicas do ponto de vista
dos elementos, não revelaremos nada em sua composição que não
possa ser observado de forma bastante pura em animais. Contudo,
junto disso, verifica-se que a combinação se baseia em formações
inteiramente novas, graças aos meios auxiliares obtidos aqui. Com
ajuda de um esquema simples, tentarei elucidar a relação que se
cria aqui.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

[Figura 1]*
Com frequência é mais proveitoso fazer um desvio, ainda que
mais longo, do que seguir em linha reta, mesmo que seja um percurso
menor, e a vantagem consiste no fato de que o primeiro caminho de­
pende de condições às quais ainda não fomos submetidos. O segundo
caminho, por ter sido criado artificialmente por nós, graças à introdução
de um estímulo artificial, encontra-se totalmente sujeito ao nosso poder.
Gostaria de fazer um segundo esclarecimento a propósito de
algo que foi dito no primeiro esclarecimento: com frequência* em
nosso curso, temos de nos referir à psicologia do homem primitivo,
ao desenvolvimento histórico do comportamento na filogênese, e pre­
cisamos inicialmente chegar a um acordo claro sobre o objetivo, sobre
os objetivos metodológicos com os quais isso será feito.
Um mal-entendido que pode surgir aqui diz respeito ao fato
de que as menções ao desenvolvimento histórico do ser humano, à
psicologia do homem primitivo geralmente servem para [fundamen­
tar] o paralelismo b[iológico],** isto é: aqui está uma criança, o com­
portamento dela é o capital daquilo que outrora a humanidade vi-
venciou no desenvolvimento do comportamento.*" Quando fazemos
referências ou digressões no campo do desenvolvimento do homem
primitivo, fazemos isso por outros motivos, não para isso. Não esta­
mos supondo que o desenvolvimento do ser humano é em alguma

* Por motivos óbvios, a figura está ausente do estenograma.

** Depois da letra “b” há um espaço em branco no estenograma.


*** “Nosso ponto de vista sobre as relações existentes entre as diferentes linhas do de­
senvolvimento do comportamento é, em certo sentido, oposto àquele desenvolvido pelas
teorias do paralelismo biogenético. Sobre a questão das relações existentes entre a onto- e
a filogênese, essas teorias dizem que um processo repete de forma mais ou menos completa
o outro, restabelece-o...” (Vigotski, L. S.; Luria, A. R. Ensaio sobre a história do comporta­
mento: Macaco, primitivo e criança. Moscou, Leningrado: Gossudárstvennoe izdátelstvo,
1930, p. 20). Vigotski é autor do artigo “Lei biogenética” na primeira edição da Grande
enciclopédia soviética. Ver Vigotski, L. S. Lei biogenética. In: Grande enciclopédia soviética,
Moscou: Aksioniérnoe óbschestvo Soviétskaia entsiklopédiia, 1928, volume 6, pp. 275-280.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

medida paralelo à história do desenvolvimento da humanidade. Ao


contrário, quando tratarmos das partes mais importantes do nosso
curso, veremos em que medida não são paralelos o desenvolvimento
da criança e o desenvolvimento da humanidade. Se ainda assim fizer­
mos algumas digressões em nossas considerações metodológicas so­
bre o desenvolvimento do homem primitivo, isso será feito por outros
motivos, isto é: consideramos que, na história do desenvolvimento do
homem primitivo, é possível encontrar de forma mais pura os meios
de desenvolvimento que consistem na realização de procedimentos
de comportamento sem alteração orgânica de sua base. Aqui isso
se expressa com maior clareza. Para compreender como um deter­
minado procedimento de comportamento se desenvolve na criança,
queremos antes compreender mais claramente em que consiste esse
desenvolvimento. E isso que podemos verificar no desenvolvimento
do homem primitivo.
Exemplo: quando, ao interpretarmos o comportamento da
criança, nós nos voltamos à experiência sobre o reflexo condicionado
do cachorro, não estamos supondo que o comportamento da criança
repete e reproduz o comportamento do cachorro ou é paralelo a isso,
[nós o fazemos] pois encontramos no experimento com o cachorro a
expressão mais pura do fenômeno e da lei do comportamento geral
que, em uma forma correspondente nova e em uma situação concreta,
é encontrada depois na criança. Com o mesmo direito metodológico
pelo qual nos referimos ao experimento com reflexo condicionado em
cachorros, iremos nos referir ao experimento e às observações sobre
o homem primitivo para acompanharmos essa linha no desenvolvi­
mento infantil e para passar à terceira tarefa fundamental do nosso
curso, isto é, mostrar o entrelaçamento de ambas as linhas.
Dessa forma, os senhores podem ver que a fonte da nossa
análise serão dois campos distintos de conhecimento, nos quais se
baseia a psicologia. De certa forma, teremos que analisar quaisquer
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

processos superiores de comportamento do modo como é mostrado


nesse triângulo* e estudar sua composição com todos os pontos de
vista dados.

A teoria do reflexo condicionado livre** deve ser mostrada no


recorte do desenvolvimento aritmético da memória, da memória da
criança, no recorte dos mecanismos fundamentais e de suas ações,
que já são conhecidas pela fisiología da atividade nervosa superior.
Essa tarefa não nos limita. É preciso mostrar quais fatores próximos
determinam que esse processo foi adotado justamente em tal combi­
nação, justamente em tal estrutura em determinado estágio do desen­
volvimento; onde e de que forma a criança assimilou esse modo de
comportamento, esse modo de pensar, esses procedimentos, graças a
quais processos de desenvolvimento do córtex cerebral esses proce­
dimentos se tornaram acessíveis naquele estágio do desenvolvimento.
Graças a essas influências externas, forma-se um objetivo complexo e
único de processos variados e diversos.

Dessa forma, diante do pesquisador que estuda o sistema da


psicologia infantil, colocam-se sempre duas tarefas, ou melhor, três ta­
refas fundamentais. Devemos analisar o processo de comportamento
da criança em três planos fundamentais.

Primeiro no plano da análise, ou seja, no plano, como disse­


mos, do reflexo, isto é, no plano do desvelamento desse processo

* O triângulo representa a relação entre processos culturais (“instrumentais”) e naturais


no desenvolvimento do psiquismo. Ver: Vigotski, L. S. O método instrumental na psico­
logia. In Obras escolhidas, volume 1, Moscou, Pedagoguika, 1982, p. 104; A história das
funções psíquicas superiores, volume 3, Moscou, Pedagoguika, 1982, p. 111; O problema
do desenvolvimento cultural da criança (1928), Viéstnik Moskovskogo Universitiéta. Seriia
14, Psikhológuiia, n. 4, 1991.

** Nas obras de Vigotski não aparece a expressão “reflexo livre”, evidentemente trata-se
do “reflexo” que se forma ao longo do desenvolvimento cultural. Para Vigotski, “cultural”
significa “arbitrário” e essa arbitrariedade é uma característica necessária da ação livre.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

complexo, pois o processo mais complexo é composto, no final das


contas, se formos analisá-lo, de processos elementares.
A outra tarefa será a elucidação da estrutura e função desse
comportamento, a exposição dos complexos procedimentos de com­
portamento e de suas partes constituintes. Depois de travar conheci­
mento com os processos elementares dos nervos, que se encontram
em sua base, devemos explicar se há algum tipo de unidade entre
processos equivalentes. Qual é a realização desses procedimentos
complexos de comportamento em relação à adaptação da criação ao
meio circundante? Ter como objetivo esclarecer e revelar a correlação
entre as partes, funções etc., e ligá-las e, portanto, realizar a tarefa e m :
relação ao comportamento como um todo. Nisso consiste a segunda
tarefa de nossa pesquisa.
A terceira diz respeito ao estudo da análise e estrutura desse
processo. O estudo do resultado do entrelaçamento complexo entre a
linha ontogenética e outras, as quais, como disse, formam a base do
desenvolvimento do comportamento na infância. Na pedología, por ’
conta desse tipo de entendimento sobre a questão, chegou-se a um
conceito que alguns autores chamam de conceito de idade cultural
da criança.
Os senhores sabem que distinguimos entre idade [cultural]* da
criança e idade cronológica. Nas diversas fases do desenvolvimento
a que chega a criança, falamos em idade fisiológica, idade óssea, da
mesma forma nesse caso temos o direito de distinguir sua idade cultu-
ral-psicológica. Por idade cultural-psicológica entendemos o seguinte:
como foi estabelecido, a idade óssea da criança refere-se à fase de en-
rijecimento dos ossos que ocorre na criança. Portanto, por meio dos
ossos é possível definir em que estágio se encontra o desenvolvimento
ósseo da criança.

* No estenograma foi deixado espaço para uma palavra.


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Por exemplo, uma criança tem 12 anos, mas sua idade óssea
está atrasada ou adiantada em dois anos em relação à idade crono­
lógica. Aplicando os mesmos modos de investigação, determinamos
a idade cultural-psicológica da criança. Estabelecemos quais fases e
estágios ocorrem nos procedimentos do comportamento, elevando-se
de formas primitivas a formas culturais mais complexas.
Quando estabelecermos essas fases, tentaremos estabelecer
por quais fases do desenvolvimento cultural a criança passou em
cada idade e qual a relação entre a idade cronológica e a fase de
desenvolvimento cultural; tentaremos medir se ela está atrasada ou
adiantada em seu desenvolvimento cultural em comparação com a
idade cronológica.

Em outras palavras, chegamos a um quarto plano da pesquisa,


ou uma quarta tarefa se revela para cada capítulo do nosso curso.
Adaptando-se à escala etária do processo de desenvolvimento cultu­
ral da criança e aos principais procedimentos de delineamento do
esquema básico, devemos determinar ou explicitar a idade cultural e
psicológica da criança.
Para concluir, gostaria de me deter ainda em uma questão, as-
sociando-a às posições gerais aqui desenvolvidas: trata-se da questão
da especificidade do desenvolvimento cultural da criança normal e
anormal. Gostaria de apresentar brevemente um modo comparativo
de desenvolvimento cultural também da criança anormal. A esse res­
peito tomarei a liberdade de dizer algumas palavras.
A primeira questão que se coloca diante de nós é a seguinte:
pode parecer que no desenvolvimento cultural não deve haver di­
ferenças, elas devem existir no desenvolvimento biológico. Imagine
que estejamos tratando de uma criança com atraso mental, na qual
haja um atraso no desenvolvimento no córtex cerebral. Suas fun­
ções naturais irão se desenvolver com atraso. Isso é claro. Mas será
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

possível supor que seu desenvolvimento cultural também sofrerá


atraso? De fato, o desenvolvimento cultural do comportamento se
baseia fundamentalmente nos meios exteriores do comportamento.
Tais meios exteriores, por sua natureza, são sociais e não surgem
dentro do organismo, mas são dados ao sujeito pelo meio social e
cultural circundante.

Partindo da hipótese geral de que o desenvolvimento cultural


do comportamento é uma função da experiência sociocultural da
criança, de fato pode parecer que, se uma criança com atraso mental
vive em um meio social que lhe oferece os mesmos meios de compor­
tamento oferecidos a uma criança normal, o desenvolvimento m ental;
de ambas as crianças não deve ser distinto

Na realidade, de certa forma essa objeção parece convincente.


Sabemos que, de fato, o atraso mental tem um quadro análogo ou,
até certo ponto, mostra-se semelhante ao primitivismo infantil. Se to­
marmos uma criança que viveu em um ambiente não cultural ou que,
em razão de circunstâncias fortuitas, não pôde se desenvolver em
um meio cultural ou normal, ainda que essa criança seja totalmente
normal em termos de sua constituição orgânica, ela, ainda assim, terá
um desenvolvimento cultural atrasado decorrente de causas externas.
Tal criança é chamada primitiva, pois em seu comportamento ela se
encontra em um nível de desenvolvimento cultural baixo. O mais im­
portante é que essa criança primitiva, em seu aspecto exterior, se pa­
recerá com uma criança com atraso mental, ela não terá capacidade
de raciocínio lógico da mesma forma que uma criança com atraso
mental na mesma idade, ao passo que uma criança normal terá essa
capacidade. As manifestações exteriores de uma criança que não se
desenvolveu pelo fato de ter vivido em um meio não cultural serão
externamente semelhantes às de uma criança com atraso mental, e
aqui está o que sabemos de mais complexo e importante acerca do
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

desenvolvimento da criança normal até agora. Isto é, a semelhança


entre a criança primitiva e a criança anormal. Basta que a criança pri­
mitiva seja colocada em um meio cultural para que essa semelhança
desapareça. A criança primitiva realiza o desenvolvimento cultural
que não fora realizado no tempo esperado.
Quanto à criança com atraso mental, se ela for colocada em
um ambiente cultural correspondente, mesmo se ela realizar um
desenvolvimento cultural, ela continuará tendo atraso mental. É de
extrema importância o fato de que o desenvolvimento incompleto de­
vido a condições externas ou a condições internas pode ser verificado
mediante experimentos com o córtex cerebral. Esse fato mostra que
as funções psicológicas superiores - o pensamento lógico, as formas
superiores de atenção e de memorização - se desenvolvem não de
outro modo senão com base no desenvolvimento cultural. E se a ex­
periência sociocultural se mostra inacessível a uma criança cujo de­
senvolvimento é incompleto por motivos externos ou internos, pois o
cérebro não é suficientemente forte para superar esse fato, o processo
de desenvolvimento dos processos superiores de comportamento da
criança também será incompleto.
Os senhores provavelmente sabem que na psicologia infantil,
ainda segundo a hipótese de Stern, foi aceito um princípio básico do
desenvolvimento da criança, o qual se aplica também ao seu desen­
volvimento cultural. Trata-se daquilo que Stern chama de “princípio
de convergência”.* O princípio de cruzamento ou intersecção entre
os processos internos de desenvolvimento e as condições externas em
que esse desenvolvimento ocorre.

* Nesse local há um espaço em branco no estenograma. A seguir foi incorretamente ano­


tado “princípio de abreviação” (em vez de "convergência”). Ver Vigotski, L. S. Obras
escolhidas, volume 3, p. 298.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Os senhores sabem que a teoria do reflexo condicionado sus­


tenta perfeitamente esse princípio [de convergência]* e sua aplicação
à história do desenvolvimento infantil. De fato, no caso do reflexo
condicionado tem-se a intersecção, por um lado, da orientação ins­
tintiva interna das reações e, por outro, das condições em que essas
reações funcionam. Se aplicarmos tal psicologia, veremos que há um
contato entre o desenvolvimento cultural e o desenvolvimento natural
da criança normal, isto é, são dois processos que, graças à prática da
educação humana, se acomodam entre si.

Em determinado grau de desenvolvimento, a criança domina


a linguagem, em outro ela domina o cálculo, em um terceiro, cál­
culos abstratos, e assim por diante. Em contraposição a isso, na
criança anormal há uma ruptura entre o desenvolvimento cultural
e o natural, ou seja, há uma divergência na qual seria esperado que
houvesse semelhança. Por causa de um atraso no desenvolvimento'
do pensamento, em razão de diferentes alterações no córtex cere­
bral, não ocorrem nessa criança as intersecções necessárias entre
influências externas, modos externos, procedimentos de compor­
tamento e dados internos, de modo que há uma perturbação [na
convergência].**

Os senhores podem imaginar quão interessante e instrutivo é o


quadro que se obtém ao comparar o desenvolvimento cultural de uma
criança normal e uma anormal. Seria possível comparar experimen­
talmente as condições de estruturação dessas duas linhas em ambos
os processos. É por isso que o método de comparação entre crianças
normais e anormais irá ocupar tal lugar em nossas aulas.

Eis um exemplo simples: é difícil observar e analisar o processo


de desenvolvimento da linguagem da criança normal justamente por-

* Há um espaço em branco no estenograma.

** Há um espaço em branco no estenograma.


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

que ele se dá de modo natural, imperceptível, a criança se integra à


linguagem das pessoas ao redor. A mudança ocorre de modo imper­
ceptível na menor das estruturas de peculiaridades que emergem na
criança, no crescimento de elementos objetivos às custas de elementos
subjetivos etc. Já a observação do desenvolvimento da linguagem em
surdos-mudos e, especialmente, em cegos-surdos-mudos apresenta
como que num microscópio, ou seja, em escala muito aumentada,
aqueles processos que se realizam de modo imperceptível para nós na
criança normal,* justamente porque nela as duas linhas se entrelaçam,
ao passo que na criança cega [elas divergem].**

A investigação e a prática de educação da criança anormal há


muito elaboraram meios auxiliares artificiais para o desenvolvimento
de tal criança. Enquanto a criança normal domina os meios de com­
portamento que são usados por adultos, a criança com atraso mental
não tem condições de fazê-lo. Ela precisa criar meios auxiliares espe­
ciais, e, na criação de tais meios, podemos observar [a convergência]*"
por via experimental. Para crianças com atraso mental, utiliza-se, em
geral, a operação de atar um nó. Deficientes mentais não distinguem
cores e geralmente o seguinte método é empregado: coloca-se um
objeto entre o nome da cor e a cor propriamente. Eis um exemplo de

* Eis o motivo pelo qual Vigotski expressou o desejo de estudar esse assunto, em res­
posta à solicitação do Narkompros (Comissariado do povo para a educação). Muitos
anos mais tarde, ao discutir os resultados do “Experimento Zagórski”, no qual foram
criadas as condições para a formação do psiquismo de crianças cegas-surdas-mudas
pelo sistema Sokoliánski-Mescheriakov, Iliénkov escreve uma carta a A. V. Suvórov, um
dos participantes desse experimento: “Compreendo que a cegueira-surdez-mudez não
cria nenhum problema, nem o mais microscópico, que não seja um problema geral. A
cegueira-surdez-mudez apenas o aguça, não faz nada além disso” (citado cf. Suvórov,
A. V. O problema da formação da imaginação em crianças cegas-surdas-mudas. Vopróssi
psikhológuii, n. 3, 1983). O que Vigótski comparou a um “microscópio”, Iliénkov cha­
mou de “lupa do tempo” (Iliénkov, E. V. O psiquismo humano sob a “lupa do tempo”.
Priróda, n. 1, 1970.

** Aqui a página do estenograma termina, a frase não é terminada.

*** Aqui há um espaço em branco no estenograma.


Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

como eles aprendem: “amarelo” - abacaxi - matéria amarela. Dessa


forma, quando perguntados o que é isto, eles respondem “abacaxi”.
Entre o nome da cor (amarelo) e a impressão, o estímulo que pro­
duz nele a impressão de amarelo, é colocado um meio auxiliar, que
se mostra desnecessário para a criança normal. Graças a tais meios
auxiliares artificiais, a tais pontes que precisam ser colocadas para a
criança com atraso mental entre ambas as linhas de desenvolvimento,
o processo de entrelaçamento ou conv[ergência]* torna-se mais visível,
mais claro e, portanto, mais conveniente para o estudo.

Com isso, encerro minha aula.

Segunda aula
Métodos de pesquisa em psicologia infantil

Hoje iremos nos deter na questão dos métodos de pesquisa.

A especificidade do processo de desenvolvimento observado


pela pesquisa sobre a idade infantil em relação ao comportamento
exige uma especificidade de métodos e formas de investigação. Já o
conhecimento dessa especificidade de métodos e formas de investi­
gação, o conhecimento de seus fundamentos, é condição fundamen­
tal para a correta compreensão de todos os capítulos da psicologia
infantil. Pois os fatos com os quais iremos nos deparar, as genera­
lizações que iremos fazer, as leis que serão estabelecidas com base
nessas generalizações, isto é, todo esse material efetivo e o conteúdo
real de cada capítulo serão determinados pelo método por meio do
qual esses fatos serão obtidos, com ajuda do qual eles são generali­
zados e deduzidos em determinadas conclusões. Por isso, basear-se
efetivamente em um método, compreender sua relação com outros

* A palavra está incompleta e foi deixado um espaço em branco.


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

métodos, estabelecer seus pontos fortes e fracos, compreender sua


fundamentação básica e travar uma determinada relação com ele:
isso significa, em certa medida, elaborar uma abordagem científica e
correta para todo curso ulterior da psicologia infantil, da forma como
aqui apresentamos.
Dessa forma, em linhas muito gerais, podemos retornar ao que
foi dito na última vez, com o seguinte: consideramos que a particu­
laridade do comportamento na idade infantil está, antes de tudo, no
fato de que seu desenvolvimento segue duas linhas distintas. Assim,
o desenvolvimento segue pela linha do crescimento e do amadureci­
mento orgânicos e pela linha do desenvolvimento histórico. Essa par­
ticularidade exige a capacidade de estabelecer a relação entre ambas
as linhas em cada idade e determinar o entrelaçamento específico
entre elas, que é característico para uma certa idade. Um tipo de
entrelaçamento será característico para a idade pré-escolar, e há até
uma divisão mais detalhada dentro de cada uma dessas idades. Em
termos gerais, devemos falar em dois grupos de métodos empregados
pela psicologia infantil.
Será necessário que nos detenhamos no primeiro grupo. Isso é
necessário, uma vez que ele é comum a todos os métodos utilizados
pela psicologia em geral. Trata-se do grupo de métodos, ou seja, de
modos de pesquisa de fenômenos e fatos psicológicos que investigam o
comportamento em seu aspecto mais simples e natural. O objeto dessa
pesquisa do comportamento, como se sabe, são as funções orgânicas.
Todos esses métodos, os quais têm antes especificações mais
técnicas do que de princípios, também são empregados na psicologia
infantil. Dessa forma, esse grupo de métodos não oferece nada espe­
cífico, nada de particular para a psicologia infantil.
Resta o grupo de métodos que também precisa ser caracteri­
zado no sentido próprio da palavra e, mais importante, cuja relação
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

deve ser explicitada e estabelecida em comparação com o primeiro ,


grupo. O segundo grupo de métodos é dirigido para a pesquisa, para
a introdução da segunda linha na idade infantil e para o estabeleci- /
mento de sua maior especificidade possível. Em termos muito gerais, j
pode-se dizer que esse segundo grupo se caracteriza como um grupo :
de métodos históricos, diferentemente dos métodos orgânicos volta- f
dos à investigação da primeira linha de desenvolvimento do compor­
tamento, na explicitação de seu conteúdo.
Para que eles sejam mais bem compreendidos, permitam-me
apresentar uma descrição concreta do sistema de prática de modos
de pesquisa que está na base desse grupo. A particularidade desse
conjunto de métodos psicológicos pode ser mais bem caracterizada j
se a compararmos, se explicitarmos sua relação com métodos psico-1
lógicos tradicionais. Os senhores sabem que o conjunto de métodos |
da psicologia tradicional tem sido trabalhado com extremo cuidado ,
em seu esquema básico. Ele reduz um grupo de métodos distintos,'
empregados pelo método dos procedimentos, a um esquema básico.
Esse esquema, essa organização do comportamento do sujeito ou
J
J
esse ponto de vista sobre seu comportamento, digamos, em um pe-J
ríodo prolongado de tempo, é o esquema que se baseia no conceito 1
básico de “estímulo-resposta”. ‘
Se tomarmos o experimento psicológico em diferentes escolas i
e tendências, o experimento psicológico do nosso tempo, verifica-se J
que em toda parte, entre os mais diversos metodólogos, a depender |
da escola, do problema, esse esquema será o fundamento desse ex- J
perimento psicológico. Quando se apresenta uma série de estímulos |
sempre se distingue uma determinada série de reações dos sujeitos. 4
Às vezes, essa questão se complexifica pelo fato de que essa primeira |
série de estímulos exige por parte do sujeito não uma simples rea­
ção, mas uma ação complexa, uma união complexa de reações, que
sugiro denominar “operações”. Dessa forma, muito frequentemente
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

temos no experimento psicológico exatamente o mesmo esquema, só


que mais complexificado: apresenta-se não um estímulo, mas certa
quantidade de estímulos em determinado grupo, em determinada es­
trutura. Da parte do sujeito, exige-se não apenas uma reação simples,
mas também uma série de reações, que podemos chamar de “ope­
rações”. Mas o princípio fundamental desse conjunto de métodos,
ou seja, da investigação da relação entre estímulo e resposta, esse
princípio fundamental permanece inabalável em todos os métodos
da psicologia, e não há dúvidas de que ele seja uma conquista sólida
da psicologia material, científica-natural, experimental, uma base tão
sólida que tem todo direito de ser considerada o mais elementar
método objetivo.

Esse é fundamento básico do conhecimento para esse conjunto


de métodos de pesquisa. Resulta totalmente claro que esse novo
grupo de métodos que é específico e característico da psicologia in­
fantil não pode negar esse esquema fundamental, mas deve se apoiar
nesse esquema, na medida em que ele tem um significado geral e,
consequentemente, devemos, antes, encontrar lugar para esse novo
grupo de métodos dentro desse esquema.

De fato, sobre esse novo grupo de métodos de que dispõe a


psicologia infantil, vemos que, por mais que se distinga da particula­
ridade do problema, ele se baseia, de uma forma ou de outra, nesse
esquema básico de “estímulo-resposta”. Contudo, dentro desse es­
quema ele produz uma nova delimitação essencial, uma nova divisão
dos conceitos, que denominamos excitação' desse esquema em uma
direção particular. Esse conjunto de métodos, resultante da delimita­
ção dentro do esquema, pode perfeitamente ser chamado de método
funcional de dupla estimulação.

* Está assim no texto.


Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Sua primeira distinção será que, em lugar de uma série de


estímulos, com auxílio dos quais organizamos o comportamento da
criança que participa do experimento ou é observada, em vez de ex­
plicar o comportamento da pessoa ou da criança a partir da relação
de uma série de estímulos, organizamos (ou esse método organiza) o
comportamento da criança com ajuda de uma série de estímulos que
se alteram. Dito de outro modo, eles querem colocar imediatamente
no campo de visão de sua pesquisa uma dependência mais complexa,’
uma diminuição* entre estímulo e reação. Em vez de uma série de
estímulos e de reações correspondentes, eles tomam uma segunda
série de estímulos que não se encontram alinhados mecanicamente
entre si, e essa segunda série, em que cada grupo funciona de forma
particular em relação ao comportamento, desempenha funções distin­
tas em relação ao comportamento como um todo.

O que isso significa? Penso que para os senhores está total­


mente claro que nem todos os estímulos são iguais, nem todos os
estímulos determinam nosso comportamento do mesmo modo, da
mesma forma. De modo geral, eles determinam igualmente no sentido
de que todos têm um caminho neural, um arco reflexo condicionado,
mas, ao mesmo tempo, podem determinar nosso comportamento de
formas diferentes.
Na esfera das operações exteriores, na esfera do comporta­
mento por dentro, um exemplo é típico: dois estímulos podem ser
funcionalmente o mesmo. Kõhler transferiu para a criança o pro­
blema da investigação do uso de ferramentas. Os senhores sabem
em que consiste esse conjunto de métodos: para além do estímulo
que deve suscitar a reação, há a presença de uma série de objetos
de tal estímulo que não tem relação direta com a situação dada. E o
modo de pesquisa empregado por Kõhler em macacos e em crianças

* Está assim no texto. Talvez seja “correlação”,


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

consiste em explicitar em que medida, em determinadas condições


(isto é, em condições nas quais a reação direta é impossível, em que
o estímulo que deve suscitar a reação correspondente está inacessível
para o animal), chega-se à reação, mas por um desvio. Dessa forma,
o animal ou a criança se valem dessa segunda série de estímulos;
recrutam modos auxiliares do instrumento para que a função funda­
mental possa ser executada.

Os senhores conhecem a prática do esquema de Kõhler. O ani­


mal é colocado em uma cela. Na frente da grade há uma bananà ou
abacaxi. A reação comum, condicionada, é que o animal estenda a
mão e pegue a banana ou o abacaxi. Se o animal achar que a fruta
está longe demais para ser alcançada com a mão, a reação direta
da mão, o reflexo condicionado deixa de servir, não desempenha a
função de adaptação. Então o animal, o animal humanoide superior,
faz uso de uma série de estímulos isolados, que podem ser utilizados
nessa situação, digamos, um bastão na qualidade de instrumento, es­
tendendo essa ferramenta entre si e o objetivo. Esse estímulo adquire
um significado funcional em certa situação, em outras palavras, co­
meça a desempenhar funções complexas e a tarefa de adaptação se
resolve por um rodeio, por um desvio mediante ajuda da segunda
série de estímulos.
Tem-se algo semelhante no método ora discutido. A diferença
é que essa tarefa de adaptação exige, nesse caso, não a alteração das
circunstâncias externas, resolvida pelo próprio animal, mas a altera­
ção de seu próprio comportamento.

Vejamos o exemplo que usei da última vez, dos macacos de


Kõhler que pintaram com a língua e com um pincel diferentes co­
res.* Kõhler os colocou numa situação tal, em uma posição tal em
que, para dar conta das exigências apresentadas pela situação, para

* Ver aula anterior.


Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

realizar a adaptação, o animal deveria desenvolver suas próprias pin­


celadas, suas cores, em um estímulo condicionado, e essa operação
parecia [impossível]* para o animal. Com a criança a situação é di­
ferente. Mesmo nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, ela se
mostra capaz de [realizar essa operação]."
O comportamento da criança participante do experimento ou
observada se organiza com ajuda da segunda série de estímulos, e a
uma série de estímulos desempenha o papel de objeto ao qual é di­
recionada certa reação. A outra série desempenha o papel de meio,
com auxílio do qual essa operação se realiza. Dessa forma, cada
uma dessas duas séries de estímulos determina o comportamento de
forma diferente, desempenhando um papel funcional em relação ao
comportamento ou, pode-se dizer ainda, leva a uma relação dupla
mais complexa do nosso comportamento em relação aos estímulos
internos. Distinguimos entre estímulo do objeto e o estímulo do
meio. Esse é o conteúdo fundamental do método funcional [de du­
pla estimulação].
Alguns dos senhores conhecem este exemplo simples. Como
se realiza um experimento ou pesquisa sobre memorização no mé­
todo psicológico tradicional? Apresenta-se uma série de palavras ou
imagens, uma série de estímulos, em seguida pede-se à criança que
realize uma operação complexa: ler, repetir, reproduzir, reagir a uma
sílaba com outra, explicitar como fez para memorizar. A essência do
método adotado por esse experimento tradicional no campo da me­
mória consiste em que a série de estímulos oferecida suscitará uma
série de reações dependentes desse estímulo. Encontra-se à disposi­
ção do experimentador, como meio de análise, uma série de estímulos
objetivos que ele introduz e substitui segundo seu arbítrio por uma

* Aqui há um espaço em branco no original.

** O parágrafo está incompleto.


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

série de reações que ele obtém. A primeira série se encontra à dispo­


sição do experimentador, a segunda é produzida pelo participante
do experimento. Ao compará-las, o experimentador obtém uma certa
resposta à questão colocada.

[Ao realizar] o mesmo experimento com a memorização, pre­


tendo investigar seu desenvolvimento histórico, ou seja, o desenvolvi­
mento complexo de procedimentos de memorização.

Oferecemos ao participante uma série de estímulos que são


objetos dessa operação de memorização, uma série de palavras, de
sílabas que ele deve memorizar, e uma série de meios, por exemplo,
figuras, com ajuda dos quais ele deve memorizar. São investigadas
as mesmas reações do sujeito, só que em uma formação, em uma
operação mais complexa e em uma dependência mais complexa. Para
os senhores deve estar claro agora que a pesquisa da própria opera­
ção de uma ordem mais complexa, em essência, leva a uma série de
noções ou à conversão delas em uma operação simples, construída
por meio de “estímulo-reação”. Dessa forma, a primeira coisa que
salta aos olhos é a comparação da dupla estimulação com os métodos
habituais . . . de estímulo.* Aqui temos em vista não a destruição do
esquema, não a recusa do esquema “estímulo-reação”, mas o estudo
de uma dependência mais complexa dentro desse esquema. Essa é a
característica da dupla estimulação. O papel funcional de cada série
de estímulos consiste em que a série de estímulo determina nosso
comportamento como meios de execução dessa operação. É isso que
corresponde fundamentalmente ao nosso entendimento sobre o tipo
de desenvolvimento histórico e o que nos parece haver em cada pro­
cedimento concreto de pesquisa por nós empregado ao longo de todo
nosso curso.

* Aqui há um pequeno espaço branco no estenograma.


Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Peço licença agora para me deter na explicitação do conteúdo


científico, no fundamento principal de tal conjunto de procedimentos.
A primeira e mais básica consideração, presente em todos os capítulos
do nosso estudo quando começamos a pensar sobre a fundamentação
desse método, é a seguinte: todo método, todo modo de investigação
pressupõe antes de tudo as peculiaridades correspondentes do fenô­
meno que está sendo estudado.
Se é correto o que procurei expor da última vez sobre a pesquisa
em psicologia, isto é, sobre a pesquisa acerca de como se desenvolve
o comportamento no período histórico da humanidade, se é correto
que a essência do desenvolvimento histórico do comportamento reside
na passagem da reação direta de tipo biológico, ou seja, aquela reação
cujos meios de realização são criados por uma correlação cultural, será
fácil observar que o método construído conforme este. . . tipo histórico.
Dito de modo mais simples, o desenvolvimento da segunda
linha, como dissemos condicionalmente, consiste em que a reação
direta passa a ser mediada, então o método também deve se desen­
volver do meio que aqui se apresenta [entre o estímulo do objeto e a
reação]. De modo correspondente, essa consideração é a mais sim­
ples e decorre da definição que utilizamos. Permitam-me passar uma
investigação mais complexa do próprio método.
A primeira coisa que nos interessa agora em psicologia é a ob­
jetividade de qualquer método. Essa questão na metodologia expe­
rimental, especialmente . . . na metodologia da criança, mostra-se
excepcionalmente aguda e complexa. Peço licença para simplificar um
pouco a forma, mas algumas considerações auxiliares são necessárias
para que o nosso ponto de vista sobre essa questão seja esclarecido.
Pesquisadores alemães, pertencentes às mais diversas escolas psico­
lógicas, propõem distinguir o experimento psicológico com crianças
no âmbito da psicologia infantil em dois grupos principais, os quais
recebem nomes diferentes.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928) 127

Assim, Binet propõe distinguir entre experimento funcional e


diagnóstico,' ou experimento demonstrativo e representativo. Ambas
as formas foram realmente desenvolvidas por ele como experimento
prático, ele propôs duas leis de desenvolvimento de tipos profunda­
mente distintos de experimento psicológico. No experimento funcio­
nal, como em qualquer experimento em ciências naturais, propõem-se
a investigação e a observação de fenômenos, o que leva ao conheci­
mento funcional, e desse conhecimento . . . depende a condicionali-
dade de tais fenômenos.

Uma tarefa totalmente distinta se coloca para nós. Trata-se de


um experimento que revela a seguinte tarefa: tomar um estado conhe­
cido com maior clareza e nitidez, em seguida esse estado com maior
clareza, do modo como ocorre na realidade, com igual clareza,. . .
da introspecção ou nos termos do comportamento interno, caso ele
esteja ligado a um comportamento interno.

Lewin pertence ao grupo de psicólogos que realiza o se­


gundo tipo de psicologia experimental, a chamada fenomenología.
Trata-se de um experimento que é voltado à explicação de fenô­
menos conhecidos, sem entrar na análise gen[ético]-con[dicional],"
cuja tarefa é a concepção, ou seja, a condição na qual a prática de
determinada ação e a origem de certas condições em certos fenô­
menos, e, por fim, L[ewin],"* outro representante dessa psicologia,

* Muito provavelmente foi omitida a palavra “diagnóstico” (em particular, o teste Binet-Si-
mon para avaliação do desenvolvimento do intelecto, Vigotski escreveu sobre ele algumas
vezes). Abaixo, a palavra “diagnóstico” foi novamente omitida em outro contexto. Ao que
parece, a estenógrafa não sabia como escrevê-la.

** A estenógrafa distinguiu duas silabas (“con” e “gen”), deixando um espaço em branco


nas partes faltantes da palavra. “Genético-condicional” é uma expressão de Kurt Lewin
(ver Vigotski, L. S. Obras escolhidas. Volume 3, p. 97).

*** Depois da inicial há um pequeno espaço em branco. Considerando o que é dito a


seguir, é evidente que se trata de Kurt Lewin e não de algum outro representante.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

propõe que em cada experimento sejam distintos dois aspectos.


A estrutura fenomenológica do comportamento é explicada dire­
tamente por aquilo que ocorre no experimento funcional ou na
estrutura funcional, que decorre de uma série de causas com as
quais dado fenômeno se encontra em relações complexas. Por fim,
Lewin compara os procedimentos, ao dizer que se trata da gênese
de um experimento em ciência natural.
Os principais são os métodos mencionados anteriormente;
agora eles são marcados, antes de tudo, por seu caráter objetivo,
especialmente pelo fato de representarem um desenvolvimento
duradouro da aplicação ulterior de métodos objetivos de pesquisa
à psicologia infantil, ou seja, de procedimentos g[enéticos]-c[on-
dicionais]* do experimento. Aqui fica claro o próprio nome, pois
ele anuncia seu objetivo de descrever diretam ente a ocorrência
de processos internos vivenciados pela criança em toda sua pecu­
liaridade; a tarefa deles não é tanto penetrar o mundo interior da
criança por esse caminho, mas dar conta das condições em que
surgem certos comportamentos.
Com isso L[ewin] aponta para uma consideração que tam­
bém me parece de grande importância. Tais considerações foram
há muito assimiladas pelas ciências naturais e outras, e foi com base
nelas que uma série de ciências naturais há tempos abandonaram
por completo o experimento fenomenológico de sua prática e limi­
taram seu papel.
Duas pessoas que podem ser f[enotipicamente] idênticas po­
dem ser g[enotipicamente], ou seja, por sua origem e diferentes condi­
cionamentos, totalmente diferentes, e, de modo geral, dois processos
g[enotipicamente] idênticos podem ser totalmente diferentes f[enoti-
picamente], a depender de uma série de condições admitidas.

* Foram anotadas apenas as letras “c” e “g”.


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

L[ewin] apresenta um exemplo: a botânica antiga e a nova bo­


tânica, baseada na teoria da evolução. A botânica antiga dizia e pos­
tulava ffenomenologicamente].* Se plantas tinham folhas de mesmo
formato, mais ou menos a mesma cor, todas essas plantas ou flores
eram reunidas em um mesmo grupo. F[enotipicamente] os botânicos
estavam totalmente corretos, mas g[enotipicamente] não, pois uma
série de fenômenos por eles estudados em plantas de desenvolvimen­
tos distintos tem traços f[enotípicos] idênticos porque toda planta,
até certo ponto, carrega a marca do meio concreto no qual ela cresce.
Todas as plantas que crescem na montanha têm traços característicos.
Com base nisso, os botânicos reúnem as plantas g[enotipicamente],
ou seja, reúnem em um mesmo grupo plantas que g[enotipicamente],
ou seja, em termos de condicionamento e origem, pertencem a um
mesmo grupo, e, considerando suas diferenças f[enotípicas], eles pe­
gam um mesmo tipo de planta e mostram que a distinção f[enotípica]
entre elas decorre das condições concretas nas quais determinada
planta vive.
Os senhores conhecem um exemplo concreto e utilizam com
frequência no método concreto. Trata-se do experimento com a
baleia: f[enotipicamente] a baleia é um peixe, ela vive na água,
a forma do corpo é semelhante à de um peixe, e para a pesquisa
f[enomenológica] não haveria quaisquer dúvidas de que se trata
de um peixe enorme, com algumas peculiaridades, mas que, no ge­
ral, está mais próximo de um peixe do que de um veado, um tigre
ou outro animal. Contudo, a pesquisa g[enotípica] mostra que, a
despeito do fato de que a diferença ffenotípica] entre a baleia e o
veado tenha, de fato, chegado a proporções enormes, apesar disso,

* Em Kurt Lewin a posição aparece da seguinte forma: “A botânica antiga . . . organizava


as plantas em determinados grupos segundo a forma das folhas, a cor etc., segundo a se­
melhança fenotípica entre elas”. (Citado em Vigotski, L. S. Fundamentos da defectologia.
São Petersburgo, Lan, 2003, p. 106).
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

a baleia está mais distante gfenotipicamente] do tubarão do que


do veado.

Em outras palavras, há muito tempo as ciências naturais re­


jeitaram a pesquisa f[enomenológica] direta e passaram à pesquisa
d[inâmico]-c[ausal].*
Por que tal modo se mantém há tanto tempo na psicologia?
Ao concentrarmos a atenção na particularidade da vivência, nos
dados imediatos dos processos subjetivos, tentamos analisar esses
processos psíquicos como fenômenos espirituais, totalmente sepa­
rados dos fenômenos orgânicos e internos. Essa é propriamente a
raiz que remonta profundamente ao nível idealista da filosofia, que
condiciona o desenvolvimento ulterior dos modos f[enomenológicos]
da psicologia.

Dessa forma, tudo o que temos hoje de realmente científico na


psicologia infantil está baseado nesse segundo tipo, isto é, o experi­
mento d[inâmico]-c[ausal], ou, se quisermos, g[enético]-c[ondicional],
ou ainda objetivo.

Além disso, os senhores sabem que houve uma mudança subs­


tancial nas perspectivas acerca da aplicação de experimentos em
crianças em geral. A psicologia antiga cada vez mais tem afirmado
que o modo experimental é pouco aplicável à criança, e não tem ab­
solutamente aplicação no caso de crianças de pouca idade, pois ela
tem pouca capacidade de introspecção. Esse é um aspecto que será de
extrema importância para a explicação de um ponto. É muito difícil
para a criança, em especial a de pouca idade, dar-se conta das opera­
ções internas que ela executa.

* Duas palavras foram omitidas, a estenógrafa anotou apenas as primeiras letras “c” e "d”.
A diferença entre a análise fenomenológica e a dinâmico-causal, ou fenotípica e genético-
-condicional foi feita por Lewin, a quem Vigotski cita. Ver Vigotski, L. S. Obras escolhidas.
Volume 3, p. 97.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Um processo simples é solicitado f[enomenologicamente] à


criança. Em seguida, são feitas perguntas. A criança responde, mas,
quando perguntada sobre como ela chega àquela resposta, cerca de
90% das crianças não conseguem dar uma explicação correta para o
processo pelo qual ela chegou a determinado resultado. F[enomeno-
logicamente] pede-se a uma criança com um pouco de atraso que mul­
tiplique 5 por 12. A criança diz: “60”, ou seja, dá a resposta correta.
Pergunta-se: “Como você sabe que é 60?”. A criança não sabe. “Eu
peguei 10, depois mais 10, mais 10, mais 10, mais 10, mais 10, e deu
60”. Às vezes, elas apresentam evidências arbitrárias: “Peguei 50 e
acrescentei 10”. Às vezes, apesar de ser capaz de executar a operação,
a criança não consegue acompanhar seu processo interno.
No experimento f[enomenológico], a criança oferece um mate­
rial altamente improdutivo, pois o que temos diante de nós é apenas
aquilo que podemos observar exteriormente, já o acesso ao mundo
interior se mostra obstaculizado. A única forma de penetrar o mundo
interior nesse tipo de experimento é a concepção proposta, isto é,
proposta com base nos dados que temos referente às vivências do
adulto etc. Apenas na psicologia o experimento se converteu em um
dos principais modos de investigação científica objetiva do compor­
tamento da criança. A dedução da condicionalidade e da gênese do
fenômeno pode ser revelada apenas na criança, já que nela a distinção
f[enotípica], que tem um desenvolvimento elevado da individualidade,
não se consolidou, pois nela o complexo imediato pode ser muito
facilmente captado no próprio experimento. Aqui é importante [com­
preender] onde mais ainda não se constituíram e não percorreram
sua longa história aquelas formações complexas, que se constituíram
como resultado de uma longa série de pesquisas que se alteraram
profundamente na psicologia.
Em que consiste exatamente o caráter objetivo desse con­
junto de procedimentos de pesquisa, sobre o qual estamos falando
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

agora e que iremos utilizar todo tempo? Pesquisa-se principalmente


aquilo que é trazido para fora, determinadas operações internas ou
operações complexas. Esses experimentos, em que são investiga­
das operações externas por meio de certas ações externas, são cha­
mados pelos pesquisadores alemães de experimentos de ligações,
experimentos sobre operações. O traço mais característico desse
tipo de procedimento consiste em que todas as operações internas
desse experimento são construídas por ligações com determinadas
operações externas.
Um exemplo de pesquisa: investigamos a formação de conceitos
em crianças. Para que o conceito se forme, como se sabe a partir da prá­
tica de análise, são necessárias duas condições. É preciso que haja uma
série de objetos aos quais esses conceitos se relacionam, e que haja pala­
vras ou meios na língua por meio dos quais as experiências desse conceito
sejam elaboradas e se reúnam em um determinado significado de palavra.
Os pesquisadores desse processo sempre se deparam com a se­
guinte dificuldade: o objeto que age sobre a criança, com base no qual
ela elabora o conceito, é claro; o resultado, isto é, se os conceitos são
ou não formados na criança, também é claro, pois perguntamos para
a criança a esse respeito. Mas o processo pelo qual isso ocorreu não
é claro. Conhecemos o começo e o fim, mas o meio não. Oferecemos
algo à criança e recebemos algo dela, mas não sabemos de que modo
isso se formou, pois essa série de processos e operações complexas
está ligada fundamentalmente a uma produção interna, que não pode
ser reproduzida diretamente nem pela criança nem pelo adulto.
Em seguida, quando falamos do desenvolvimento da lingua­
gem, devemos dizer que internamente ocorrem certas abreviações,. . .
operações; com frequência saltamos algumas cadeias das quais não
podemos tomar consciência e as quais não podemos revelar com au­
xílio da linguagem. Que é difícil manifestar nossa linguagem interna,
nosso pensamento, manifestar diretamente em forma verbal.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928) 133

Dessa forma, o que fizeram os antigos pesquisadores no


campo da investigação do comportamento? Eles investigaram uma
disciplina pronta de conceitos, mas como eles se formam era incom­
preensível para eles. Como age o novo conjunto de procedimentos?
Ele age de outro modo, isto é, oferece à criança uma série de es­
tímulos, uma série de palavras convencionais, uma outra série de
estímulos etc. Surgem duas séries de estímulos externos que determi­
nam o comportamento da criança. Diante da criança surgem tarefas
determinadas, que exigem que ela aplique a palavra como meio para
a formação de conceitos; além disso, essa tarefa se liga às operações
externas da criança.
Assim é formulada a tarefa: seleciona-se um certo grupo de
objetos, a criança resolve essas operações movendo esses objetos,
selecionando um entre outros, muda-os de lugar, mas comete er­
ros. Dessa forma, dizemos que as operações externas estão ligadas
às internas.
Se com isso fosse possível dizer que os processos internos de
formação de conceito coincidem com o processo externo de uso de
objetos, os quais fazem a criança mover diferentes figuras e objetos,
isso seria ingênuo. Seria ingênuo pensar que o comportamento ex­
terno da criança e seus erros de precisão reproduzem os processos
internos que ocorrem na criança quando ela elabora o conceito. Veja­
mos o que ocorre aqui. Aqui temos algo que pode ser mostrado pela
seguinte comparação metafórica: imagine que precisamos acompa­
nhar o movimento de um peixe no fundo d’água.* Imaginem que o
peixe foi mergulhado em um determinado ponto. Em seguida, ele é
elevado em outro ponto, mas queremos formular uma ideia aproxi­

* O exemplo está no artigo: Vigotski, L. S. Probliéma kulturnogo razvitiia rebionka (1928)


[O problema do desenvolvimento cultural da criança]. Viéstnik Moskóvskogo Universitiéta.
Seriia 14, Psikhológuiia [Boletim da Universidade de Moscou. Série 14, Psicologia], n. 4,
1991, p. 58-77.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

mada do caminho percorrido pelo peixe. Que caminho foi este: reto
ou em zigue-zague, no fundo ou na superfície? Jogamos uma corda
com um nó no peixe e seguramos a outra ponta da corda. Ela se movi­
menta, pois está ligada ao peixe. Seria ingênuo pensar que pela ponta
da corda seja possível ter uma noção do caminho seguido pelo peixe,
mas uma série de alterações nessa ponta que estamos segurando cor­
responde ao movimento do peixe que está ligado à corda. Isso quer
dizer que, além do ponto em que o peixe afunda e do ponto em que
ele emerge, temos ainda as alterações sofridas pela ponta da corda
que, é claro, não reproduz tudo, mas corresponde funcionalmente
aos movimentos realizados pelo peixe. Com base nessas alterações
não conseguimos reproduzir a totalidade do processo interior, isto é,
do percurso do peixe debaixo d’água, mas por meio delas é possível
dizer ao certo a que profundidade o peixe estava. Da mesma forma,
a julgar pela corda, podemos dizer quanto o peixe navegou debaixo
d’água. Evidentemente muita coisa permanece obscura, será interpre­
tada de modo equivocado, mas em termos básicos será de extrema
importância, antes de tudo para o método da pesquisa infantil. Aqui
é de extrema importância a passagem para a investigação objetiva
dos processos internos que não se submetem à pesquisa ffenome-
nológica] imediata e são impossíveis de ser verificados por meio do
experimento comum sobre o reflexo condicionado.

O seguinte aspecto que é de extrema importância para a carac­


terização de todas as pesquisas contemporâneas mais significativas
no campo da psicologia infantil é o que pode ser chamado de caráter
histórico desse método. Esse é um grupo de métodos histórico-g[e-
néticos] no sentido próprio do termo, um grupo de métodos cujo
principal tipo é o seguinte: eles buscam investigar todos os processos
de comportamento como resultado de uma certa história, como um
determinado processo histórico iniciado em um determinado lugar e
que segue por certo caminho. O comportamento do adulto é repleto
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

de tais formas que são formações históricas, ou seja, que não poderão
ser compreendidas se não forem abordadas historicamente.
Apresentarei um exemplo simples, com o qual os psicólogos se
depararam na investigação de operações aritméticas em adultos. Até
certo ponto, tais operações são automatizadas, que .. .*

Como resultado de investigações posteriores, já do ponto de


vista da psicologia, quando contamos, ocorre em nós a operação pu­
ramente mecânica, automatizada de determinadas ordens numéricas
e, consequentemente, obtém-se um complexo . . . Nas palavras de
T[horndike], uma formação complexa que pode ser compreendida
apenas se considerarmos sua história." É por isso que a posição prin­
cipal desse tipo de pesquisador pode se expressar pela seguinte ideia
de Blónski: a história do comportamento pode ser compreendida ape­
nas como comportamento histórico. Isso não é apenas uma metáfora,
mas também uma profunda alteração do método, a depender do que
a abordagem histórica ao fenômeno estudado introduz no próprio
conjunto de procedimentos.
Permitam-me explicar-me. Os senhores certamente sabem que
o historicismo, o aspecto histórico que analisa certo processo em seu
aspecto historicamente desenvolvido, é uma das principais exigências
do método dialético. Esse historicismo não é apenas uma marca da
pesquisa em ciências sociais, no qual ele é um aspecto-chave sem o
qual não se pode agir, mas também serve à ciência sobre a natureza.
Os senhores conhecem a ideia desenvolvida em muitos momentos
por Engels, de que a teoria das ciências naturais, no processo de
seu desenvolvimento posterior, deve ser guiada pela história em seu

* A frase está incompleta. Pode-se supor que se trate de um assunto abordado outras vezes
por Vigotski: a operação aritmética em adultos aparece como caso particular da operação
algébrica. A relação genética entre operações inferiores e superiores estão invertidas aqui.

** Ver Vigotski, L. S. Obras escolhidas, volume 3, p. 311.


Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

crescimento. Em outras palavras, se as leis que aceitamos como leis


da natureza, ou seja, como leis que não se alteram historicamente
diante de nossos olhos, se tais leis foram tomadas em um período de
tempo mais prolongado, elas devem ser compreendidas não como
leis da natureza existentes em toda parte e por todos os lados, mas
como leis históricas, ou seja, que se aplicam a determinado nível do
desenvolvimento da matéria, ainda que seja matéria morta, e ainda
que esse nível seja significativamente maior do que em qualquer ou­
tra formação durante a qual certas leis gerais operam.
Essa posição de Engels, que me orienta agora, pode ser perfeita­
mente tomada de modo literal para a pesquisa em psicologia infantil.
Engels diz que o funcionamento das leis da natureza se transforma
cada vez mais em uma lei histórica. O que isso significa? Ele nos mos­
tra que toda lei da natureza, toda lei física, exige a existência de certas
condições de trabalho que, do ponto de vista de um sistema compara­
tivo, são historicamente formadas, como a conexão gradual. .. .*
Segundo Engels, se aplicada de forma consistente a todos os
fenômenos em representação histórica que ocorrem em determinado
sistema, do nascimento à morte, essa teoria de transformação em
história vê, em cada estágio no qual predominam outras leis, outras
formas de manifestação dos mesmos movimentos. Dessa forma, ape­
nas um movimento tem um significado absoluto geral, universal.
Na aplicação à psicologia infantil, àquela linha da psicologia
infantil que nos interessa, isso pode significar o seguinte: há certas
leis da natureza, leis das ciências naturais que orientam o desenvol­
vimento do comportamento da criança. Tais leis são constantes para
um certo tipo biológico humano, essas leis biológicas assumem uma
forma particular de ação. Assim, em cada estágio do desenvolvimento
histórico, operam formas distintas das mesmas leis gerais que exis­
tiam desde o princípio.

* Aqui há um espaço em branco de cerca de uma linha e meia.


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Por exemplo, a atividade da memória humana não se alterou


absolutamente no sentido de suas leis naturais desde o tempo da pré-
história da humanidade. Esse é um fato mais ou menos conhecido
por todos. Em todo caso, a pesquisa experimental com o primitivo
não revelou desvios essenciais nas principais leis de funcionamento
da memória em relação ao trabalho do ser humano da cultura. Mas
as formas de memorização na pessoa que faz uso . . .,* da pessoa,
seja um chinês antigo ou um selvagem, sobre os quais falamos na
última aula, que utilizavam os registros em cordas ou que memori­
zavam com ajuda de uma série de meios auxiliares, as formas de
manifestação dessa memória são distintas a depender do grau de de­
senvolvimento. Essa é a base da psicologia social contemporânea. Os
meios de comportamento se desenvolvem historicamente, e a tarefa
histórica do método é estudar as transformações do comportamento
de acordo com tais meios.
A criança que aprende a nossa escrita e a criança que nasce em
um meio em que ela não pode aprender absolutamente nada podem
facilmente aprender a língua chinesa. Para tanto, basta a mesma lei
da memória, que se manifesta nas mesmas formas, ou há uma série
de leis específicas que determinam a atividade de tais leis gerais a
depender dos meios que a criança domina em determinado ambiente.
Essa é a posição central que coloca a representação histórica como
base da interpretação teórica. Por isso, se perguntarmos a um pesqui­
sador contemporâneo que assume esse ponto de vista o que significa
elaborar uma teoria sobre a memória infantil, ele dirá: partindo de
uma determinada posição biológica .. . dos métodos de reflexo con­
dicionado, a lei que estabelece uma conexão no cérebro, partindo
disso significa mostrar como, em tais circunstâncias, ocorre o desen­
volvimento, dependendo de leis históricas; em que estágio do desen­

* Na aula anterior, Vigotski deu o exemplo dos quipos, registros feitos com cordões do
povo maia.
138 Psicologia, desenvolvimento hum ano e marxismo

volvimento infantil se alteram e são percebidas as formas específicas


das diversas funções da memória infantil, dependendo dos meios de
caráter social, dos meios do comportamento que a criança domina.
Afinal, a lei de domínio é a mesma.
Penso que, de todo módo, está claro que essa é uma pesquisa
do comportamento antes de tudo do ponto de vista de seu condicio­
namento social. Com efeito, os meios de comportamento são carac­
terizados, como ferramentas de trabalho, pelo fato de serem resul­
tado da experiência social, e não individual, e por serem elaborados
historicamente pela humanidade no processo de desenvolvimento
gradual da cultura e da técnica humanas com base no tipo de certas
relações sociais.

Poderíamos dizer que, a depender das transformações nos


modos de comportamento, o nosso pensamento se transforma? Sem
dúvida alguma. Há muito tempo a psicologia apresentou a seguinte
posição: o intelecto se complexifica de acordo com as condições ma­
teriais, ou seja, de acordo com os meios de que dispõe a criança.
Por exemplo, imaginem que a criança cresça, digamos, em
um meio primitivo e não domine a língua russa ou qualquer outro
idioma europeu, mas algum idioma de uma tribo africana. Será que
em função disso o caráter do pensamento se alteraria em cada um
de seus estágios e, portanto, sua visão de mundo se desenvolveria
de modo distinto do nosso? É claro que sim. Por conseguinte, nessa
pesquisa em toda parte se distingue o desenvolvimento do compor­
tamento, antes de tudo e na medida em que ele é condicionado pelos
meios de comportamento, ou seja, por formações que são sociais
por seu caráter.

Disso decorre o terceiro e último aspecto característico. Jus­


tamente na medida em que vivenciamos o desenvolvimento de for­
mas superiores de comportamento, a depender dos meios de com­
portamento, expomos a linha material que explica esses processos
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

superiores. Em outras palavras, a psicologia infantil experimental


busca acompanhar a dependência das formas superiores de compor­
tamento, dos processos superiores de comportamento desses dois
dados principais: primeiramente como eles se formam a partir das
funções inferiores, fisiológicas. Isso é apenas um dos aspectos da pes­
quisa material em psicologia. O outro aspecto é a busca por acom­
panhar como essa transformação de inferior em superior se forma
ou ocorre sob a pressão constante dos meios de comportamento que
a determinada criança, determinada individualidade domina. Essa
tentativa de colocar ou mostrar que o processo superior de pensa­
mento, o processo superior de atenção ou de memória, encontra-se
em dependência direta dessas duas séries fundamentais, mostrar isso
é a tarefa da pesquisa experimental em psicologia infantil. Isso é o
que L[ewin] chama de . . .* investigar como essas duas linhas funda­
mentais, que não trazem em si cada forma de comportamento em
cada estágio do desenvolvimento.
Por fim, o último são as relações que caracterizam esse mé­
todo, que o determinam em comparação com os métodos da psicolo­
gia científica natural, sobre a qual falei anteriormente. Aqui a questão
é absolutamente clara a simples. A simplicidade consiste no Seguinte:
como tentei demonstrar, esse grupo de métodos que é e[specífico]
para a psicologia infantil não nega e não rejeita o esquema básico,
mas é favorável à sua complexificação ulterior, distinguindo dentro
desse sistema básico uma outra parte de relações mais complexas
entre estímulo e reação, separando o estímulo em estímulo objetivo
e estímulo-meio.
Daí mostra-se perfeitamente claro o que diz o experimento
dialético. Ao complexificarem a forma do comportamento, os reflexos
condicionados não são eliminados e as operações externas, cuja base
eles constituem, [não] são anuladas, mas se transformam. Ou seja,

* Falta cerca de meia linha.


Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

o que isso significa? Eles não deixam de existir, mas assumem um


forma nova e complexa, que possui novas características; revelar tais,
características é justamente a tarefa da ciência.
Um exemplo simples: sabemos que o reflexo não condicionado
ou o instinto passa, no processo de desenvolvimento, a ser reflexo
condicionado. Pergunta-se: ao passar para essa nova forma, o reflexo,
não condicionado deixa de existir? Não, ele se altera. Ele age no re-'
flexo condicionado interno, ou seja, age em uma nova forma . . . uma
função específica, uma relação específica com o comportamento do
organismo como um todo. Ou os reflexos condicionados, ao se trans­
formarem em operações intelectuais, digamos, o pensamento, são
eliminados? Claro que não. Como disse, com base na pesquisa sobre
o pensamento aritmético, o pensamento não é outra coisa senão, se­
gundo a expressão de T[horndike].. .*
Imagine o que é mais característico para o pensamento na arit­
mética. É a resolução de tarefas. Se tomarmos a operação da multipli­
cação ou da divisão, teremos uma reação superior, já a resolução da
tarefa é pensamento no sentido próprio da palavra. Se a criança não
sabe com resolver dada tarefa, ela aplica as habilidades que possui às
novas condições.

Apresento ao auditório a tarefa de dividir 64 por 4. Será que


todos a resolverão da mesma forma? Não, não será da mesma forma.
Analisaremos como cada um resolveu essa tarefa. Será que alguns
usaram modos que outros não dominam? Não, todos dominam essas
séries de divisão e multiplicação. Consequentemente, a composição
de operações na resolução de uma tarefa se distingue da divisão e da
multiplicação simples. A composição em um todo leva a uma certa

* A seguir foram omitidas duas linhas.

** A seguir foram omitidas três linhas.


3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

habilidade. Exatamente assim o instinto ou o reflexo não condicio­


nado se transforma ou assume uma forma mais complexa, passando
a reflexo condicionado. Ele não se é aniquilado, mas se transforma,
assumindo uma nova forma. A resolução da tarefa ou, dizendo de
modo mais geral, o pensamento exatamente como no comportamento
objetivo, que é estruturado pelo modelo estímulo-reação, não é des­
truído, mas se transforma, ou seja, transfigura-se em nova forma.
Nisso consiste a operação cultural.
Em outras palavras, duas tarefas surgem para a ciência, assim
como em toda parte, para qualquer pesquisa científica: por um lado,
mostrar a composição de certas operações superiores, mostrar como
a resolução de tarefas surge a partir de habilidades simples; por ou­
tro, como tais habilidades são combinadas de acordo com determi­
nado tipo. Depois disso está o modo de comportamento. Por isso,
um mesmo fenômeno a ser estudado, digamos, a memorização com
auxilio de imagens, recebe duas representações a depender do ponto
de vista pelo qual ele será analisado.
Na memorização com auxílio de imagens, se formos analisar
sob o ponto de vista da psicologia científica natural rfeactológica?],
teremos não uma reação, mas uma série de reações.* Oferece-se à
criança uma palavra, à qual ela deve reagir escolhendo uma imagem,
estabelecendo uma relação entre imagem e palavra. A criança separa
a imagem: temos todo um sistema de reações. Do ponto de vista das
reações, essa operação será complexa, será todo um sistema com­
plexo de reações. Do ponto de vista do desenvolvimento histórico,
esse será o tipo mais simples de passagem de uma reação simples
a uma complexa. Em outras palavras, aquilo que é uma formação
complexa segue por um caminho, o que é ponto de partida segue por
outro caminho.

* Trata-se, possivelmente, da concepção de K. N. Kornilov.


Psicologia, desenvolvimento hum ano e marxismo

Ao analisarmos a tal operação da criança, teremos duas tare­


fas: por um lado, revelar sua raiz científica natural, seu conteúdo;
por outro, descrevê-la historicamente, acompanhar e submeter na
medida do possível essas formas superiores a uma lei geral. Dessa
forma, se formularmos isso, será possível dizer que esse grupo de
métodos da psicologia infantil não apenas não nega os métodos das
ciências naturais, em especial os métodos do reflexo condicionado,
como também se apoia neles. Ele se torna possível apenas com base
nesses métodos, na medida em que busca acompanhar como os . . . ,
que são estabelecidas por esse método transformam-se geneticamente
no desenvolvimento da criança a depender de como ela domina certos
meios de comportamento.

Assim, esse é o fundamento ou o apoio de tal conjunto de pro-!


cedimentos, que se encontra sob ele. De modo muito geral, seria pos­
sível apresentar a seguinte definição preliminar: é possível dizer que
esse conjunto de procedimentos da psicologia infantil é um modo
de pesquisa do comportamento e do desenvolvimento do compor­
tamento, utilizado dependendo dos meios de comportamento ou a
partir da descoberta do aspecto funcional desses meios de comporta­
mento, ou seja, a partir da descoberta de como o comportamento se
estrutura com base nesses meios.

Por fim, a última coisa que gostaria de dizer é que esse grupo
de métodos que busquei caracterizar aqui não é apenas um grupo
histórico objetivo, mas também comparativo. Por sua essência, nosso
modo fundamental de análise será sempre o método comparativo.
Em outras palavras, uma vez que a tarefa de acompanhamento dessas
duas linhas consiste em analisar como se transformam, em diferentes
estágios etários, as leis básicas e constantes do comportamento da
criança, devemos destacar essa constante e, consequentemente, todas
essas.leis. O método e o modo de pesquisa fundamentais passam a ser
o modo comparativo, o método comparativo.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Novamente gostaria de dizer: diante de nós haverá sempre


três planos básicos pelos quais esse conjunto de procedimentos se
move, nos quais ele pode ser aplicado. O primeiro é a psicologia his­
tórica, a psicologia social, a história do desenvolvimento do compor­
tamento da humanidade. O segundo é a história do desenvolvimento
da criança. O terceiro é a psicologia contemporânea, resultado da
cultura humana, em suas operações superiores, com a comparação de
operações aqui e ali. Ainda, por último: dentro da psicologia infantil,
utilizaremos a comparação entre a criança normal e a anormal. .

Nota da tradução

í. Equivalente ao início do ensino fundamental.


4. Sobre o plano de trabalho de
investigação científica a respeito da
pedologia das minorias nacionais

O plano económico quinquenal prevé o fomento económico e


cultural das minorias nacionais, as quais se encontram em um grau
baixo de desenvolvimento econômico e cultural.1 Nesse sentido, mui­
tas nacionalidades terão de realizar, no próximo qüinqüênio, um salto
grandioso na escadaria de seu desenvolvimento cultural, pulando toda
uma série de degraus históricos. A complexidade da estrutura econô­
mica da União, expressa na existência de cinco formas de economia
distintas, da economia natural à socialista, condiciona, por sua vez, a
complexidade da estrutura das formas culturais de desenvolvimento.
Os graus de desenvolvimento cultural, assim como as formas básicas
de economia, se estendem dos mais primitivos até os mais elevados.
A introdução de povos atrasados no círculo geral da construção eco­
nômica e cultural deve ser acompanhada de uma necessária alteração
de todo o sistema cultural de suas vidas.
Por isso, o próximo qüinqüênio e os anos posteriores a ele
deverão ser uma experiência sem precedentes na história do desen­
volvimento cultural acelerado de uma grande quantidade de povos
variados, um desenvolvimento que se realizará em circunstâncias total­
mente peculiares e igualmente sem precedentes. Em vez da abordagem
colonizada ao problema do desenvolvimento cultural dos povos atrasa­
dos, a qual determina fundamentalmente as condições desse desenvol­
vimento no mundo capitalista, são propostas condições absolutamente
novas para o desenvolvimento de uma cultura socialista unificada em
diferentes formas nacionais. Esse desenvolvimento cultural acelerado,
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

esse grandioso salto pela escadaria dos sistemas econômicos, deverá


ser realizado, em grande medida, pelas gerações de crianças. O rápido
crescimento dos povos deverá ser realizado não apenas mediante a
transformação da população adulta, mas também, principalmente, por
meio do vigoroso avanço das gerações de crianças pelo caminho do
desenvolvimento cultural.
Em tais condições, o papel da pedología e da ciência sobre as
leis e os caminhos do desenvolvimento infantil é enorme. Não seria
nada econômico tentar realizar essa grandiosa tarefa de avanço das
gerações de crianças pela escadaria do desenvolvimento cultural sem
a ajuda da pedología, sem o conhecimento científico das particula­
ridades e propriedades do material que será trabalhado. Em outros
aspectos, esse trabalho torna-se absolutamente impossível sem a in­
vestigação e o estudo pedológicos; em todo caso, contudo, ele deve se
deparar com sérios obstáculos no futuro próximo e deve pagar pelo
seu arriscado experimento com muitos erros de difícil correção.
Se compararmos o enorme papel que a pedología deverá de­
sempenhar no avanço dos povos atrasados com aquilo de que dispo­
mos neste momento no campo da pedología das minorias nacionais,
é preciso dizer que pouquíssimo foi feito a esse respeito. Se, por um
lado, tanto tem sido feito nas demais esferas da vida econômica e cul­
tural para elevar o nível econômico e cultural desses povos, por outro,
até o momento, o estudo pedológico de crianças nativas de minorias
nacionais foi alvo do interesse e da iniciativa apenas de pesquisado­
res e laboratórios isolados e, por vezes, de tentativas esporádicas de
determinados institutos.

É bem verdade que nas localidades, especialmente nas demais


Repúblicas da União, institutos, escritórios e departamentos locais
realizaram, em um prazo relativamente curto, um grande trabalho.
Ocorre, contudo, que ele não é, em sua maioria, um trabalho coor­
denado. Falta um centro metodológico, com frequência não são ex­
4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a
respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

plicitadas as orientações básicas e fundamentais de produção e de


pesquisa. Muitas vezes esse trabalho é conduzido por considerações
aleatórias, por uma seleção aleatória de trabalhadores, por tarefas
que emergem aleatoriamente. Com frequência, ele se limita a simples
transferência daquilo que é feito nos centros da União no campo do
estudo das particularidades da criança nacional.
Não obstante, há uma série de povos - penso eu, a maioria
deles -, cujas crianças jamais foram submetidas a uma investigação
pedológica; as crianças desses povos são, portanto, uma grandeza ab­
solutamente desconhecida para a ciência. Todo o trabalho pedagógico
com elas é realizado em parte com base em métodos tradicionais,
elaborados previamente, de educação e aprendizagem; em parte se
baseia no falso pressuposto de que não deve haver nenhuma diferença
fundamental entre essa criança e a criança russa.
Dessa forma, vemos que o papel da investigação pedológica
nos próximos anos no campo do desenvolvimento cultural das mino­
rias nacionais deve ser enorme, uma vez que até o momento muito
pouco foi feito nessa área e que, por conseguinte, nosso plano deve
não tanto organizar e dirigir o trabalho que já está sendo realizado,
quanto criar totalmente o campo - que efetivamente inexiste e é de
extrema importância - da pedologia soviética.
É preciso dizer que esse capítulo da pedologia apresenta tare­
fas profundamente peculiares aos pesquisadores. As teses gerais do
professor A. B. Zalkind2 sobre o plano do trabalho pedológico inves-
tigativo indicam dois aspectos que se apresentam em primeiro lugar
diante de nós nesse campo. O primeiro deles é a inadequação da
aplicação de testes e padrões habituais em crianças de minorias na­
cionais. O segundo, ligado ao anterior, é o fato de que a tarefa de in­
vestigação e estudo das peculiaridades culturais e cotidianas do meio
nacional exige a elaboração de métodos e abordagens especiais e para
crianças de diferentes nacionalidades. A pedologia das minorias na­
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

cionais, segundo essas teses, é um dos capítulos mais importantes do


próximo qüinqüênio de pesquisa e exige uma energia especial das
bases pedológico-científicas locais, bem como métodos de expedição
de trabalho científico.3
Vamos nos deter brevemente nos dois aspectos fundamentais
que acabamos de mencionar, os quais determinam as características
das tarefas da pedología nesse campo. O primeiro deles é a inade­
quação dos testes e padrões habituais. Uma série de pesquisas foi
realizada com o pensamento ingênuo de que basta pegar os testes
e padrões pedológicos gerais e utilizá-los para fazer pesquisas com
crianças de minorias nacionais de modo a capturar toda sua singula­
ridade, toda sua particularidade em comparação com a criança russa,
a que conhecemos melhor. Tais pesquisas quase sempre são malsuce-
didas, uma vez que, em geral, elas revelam retardo mental em quase
todas as crianças de povos de desenvolvimento cultural atrasado ou
com um tipo peculiar de cultura e cotidiano.
Os pesquisadores identificaram, com total fundamento, a razão
para isso no próprio caráter dos testes aplicados e, então, passaram
a empregar métodos mais aperfeiçoados. A essência desses métodos
aperfeiçoados reside no fato de que o teste aplicado em pesquisas
comuns, ao ser traduzido para idiomas locais, altera-se na direção da
fixação dos aspectos cotidianos que caracterizam a vida da popula­
ção local. Desenhos que contenham objetos e conceitos estranhos à
criança de dada nacionalidade passam a ser substituídos por outros
desenhos e paisagens de caráter cotidiano específico. Mediante tais
alterações, os autores dessas pesquisas tornam seus testes mais próxi­
mos e compreensíveis para a criança de minorias nacionais.
Mesmo assim, como mostra uma série de pesquisas, a situação
não se alterou de forma decisiva. Por exemplo, a investigação psico­
lógica de crianças nativas de uma das Repúblicas da União realizada
segundo tais alterações e aproximações à compreensão infantil dos tes­
4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a
respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

tes revelou o seguinte quadro da capacidade mental em porcentagem:


normal = 16,8%; atraso leve = 63,4%; atraso profundo = 19,8%. Dessa
forma, verificou-se que apenas um sexto de toda população infantil
foi avaliado como normal e que a capacidade das crianças daquela
determinada nacionalidade, em comparação com uma criança russa,
é algumas vezes menor (de duas a cinco vezes menor).
Os autores de tais pesquisas têm razão ao apontarem que a
baixa capacidade mental revelada é resultado de negligência pedagó­
gica e do efeito inibidor do meio com todas as suas particularidades
cotidianas e culturais. Eles consideram que a saída para essa situação
dificultosa seja a redução no grau de exigência e a introdução de pa­
drões e normas etárias de desenvolvimento mental mais baixos para
as crianças de nacionalidades atrasadas.
Contudo, é evidente que tais resultados expressam de forma
eloqüente a inadequação dos próprios métodos de pesquisa. Os defei­
tos desses métodos residem não apenas no fato de que o material de
construção dos testes foi retirado de um contexto cultural e cotidiano
estranho àquela criança. De fato, esse problema poderia ser superado
com a mudança do material cotidiano na construção do teste a partir
da troca de certos desenhos por outros etc. A questão, evidentemente,
é mais profunda. Trataremos dela a seguir, com a explicitação das
posições básicas do nosso plano nessa área.
O segundo aspecto reside na tarefa de estudar as peculiarida­
des culturais e cotidianas de determinado meio, bem como sua in­
fluência no desenvolvimento da criança e na constituição de sua per­
sonalidade. A dificuldade consiste em que o desenvolvimento cultural
se realiza em formas nacionais variadas e extremamente complexas.
A criança cresce e se desenvolve em um meio cultural e cotidiano par­
ticular, que reflete o complexo caminho do desenvolvimento daquele
povo e o complexo sistema de condições econômicas e culturais da
sua existência no tempo presente.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Disso decorre que a tarefa primordial da pedologia é o estudo


das crianças de minorias nacionais de forma não isolada, não separada
dessas formas culturais e cotidianas específicas, mas, antes de tudo,
sob o pano de fundo de tais peculiaridades, em relação a elas, na inte-
ração viva com elas. Dito de modo mais simples, a tarefa da pedologia
é compreender a criança como parte inseparável e um produto natural
daquele meio particular no qual ela cresce e se desenvolve.
Poderíamos unificar esses dois aspectos e dizer que para a pe­
dologia nessa área se coloca a seguinte tarefa: passar de uma caracte­
rização negativa a uma caracterização positiva da criança de minorias
nacionais. A essência dessa virada radical de 180 graus do ponto de
vista metodológico pode ser facilmente compreendida se atentarmos
para o fato de que a grande maioria das pesquisas nessa área estabe­
leceu, até o momento, objetivos puramente negativos. Elas tentaram
estabelecer o que falta a determinada criança em comparação com
uma criança mais desenvolvida, quais aspectos da personalidade dela
estão suprimidos, enfraquecidos, inibidos, quais falhas seu psiquismo
e seu comportamento revelam em comparação com o psiquismo de
uma criança de um povo mais culto. Não se pode deixar de dizer
que essa posição negativa da pesquisa é uma herança da abordagem
psicológica tradicional ao “selvagem” e ao ser humano pouco culti­
vado. As pesquisas tradicionais buscam, antes de tudo, estabelecer os
sinais distintivos mais grosseiros, principais, massivos, que saltam aos
olhos. Elas fixam, primeiramente os “lugares ausentes”, as lacunas do
desenvolvimento cultural.

À diferença disso, a tarefa de estudar positivamente a criança


de minorias nacionais consiste em revelar todas as peculiaridades po­
sitivas do psiquismo e do comportamento de tal criança e mostrar
como as leis gerais do desenvolvimento infantil assumem uma expres­
são específica, concreta, em determinado meio cultural e cotidiano,
como elas se refratam através de uma determinada forma nacional e
histórica concreta de existência de todo um povo.
4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a
respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

Esse último aspecto é especialmente importante, pois ele esta­


belece uma ponte direta entre a pesquisa pedológica e a pedagógica.
Com total fundamento nas teses básicas para o plano pedológico do
professor A. B. Zalkind, são colocadas lado a lado a exigência de ela­
boração de métodos especiais para o estudo pedológico e a exigência
de métodos especiais para a abordagem pedagógica da criança de
minorias nacionais; ademais, ambas as exigências são motivadas pelas
particularidades culturais e cotidianas do meio em que essa criança
cresce e se desenvolve.
No que diz respeito à peculiaridade dessa área dos estudos pe­
dológicos, planejamos também uma forma complexa de organização
da investigação pedológica. Em seu aspecto mais geral, essa organi­
zação é composta de três aspectos. Em um dos centros da União,
preferencialmente em Moscou, em estreita relação com as principais
instituições pedológicas e sob supervisão direta da Comissão de
Planejamento, deve ser criado um centro metodológico e investiga-
tivo em pedología das minorias nacionais. As tarefas desse centro
incluirão a realização de pesquisas fundamentais sobre os principais
problemas do desenvolvimento cultural, na elaboração de problemas
metodológicos e de procedimento, no planejamento, na organização,
no treinamento e na coordenação de todo trabalho de pesquisa nessa
área, o qual será realizado em diferentes centros da União. Dito de
outro modo, as funções desse centro são de direção, fundamentação
e unificação de todo o trabalho nessa área.
A necessidade de criação de tal centro nos parece totalmente
clara se considerarmos o que foi exposto anteriormente. Atualmente
é impossível obrigar cada região, cada nacionalidade a resolver por
conta própria todas as complexas questões da pesquisa pedológica.
Faz-se necessário retirar das margens os problemas gerais do desen­
volvimento cultural, os problemas gerais do estudo das particulari­
dades do meio nacional e da criança nacional, a elaboração de um
conjunto de procedimentos etc. Faz-se necessário que se continue a
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

promover uma ligação estreita desse capítulo da pesquisa pedológica


com todo o restante do plano quinquenal de trabalho nessa área.
Ambas as coisas podem ser realizadas apenas por uma instituição
central de pesquisa.
Dentre os centros de pesquisa existentes, qual poderia assu­
mir essa tarefa? Quais podem ser as formas de organização desse
trabalho? Essas questões, até o momento, infelizmente permanecem
em aberto, em virtude do fato de que nessa área, diferentemente de
outras partes do nosso plano, com frequência há a necessidade de
se criar do zero aparatos de pesquisa que estão totalmente ausentes.
Contudo, pensamos que os recursos ideológicos e de pesquisa neces­
sários para a organização do centro de investigação em pedología
das culturas nacionais já estão, em grande medida, garantidos nos
grandes centros da União.

Por enquanto a Comissão de Planejamento se limitou a criar


uma seção especial de pedología das minorias nacionais, que foi en­
carregada de elaborar mais detalhadamente toda essa parte do plano,
bem como de explicitar as possibilidades de criação de tal centro.
Consideramos que, mesmo depois de sua criação junto à Comissão de
Planejamento, seria necessário manter a seção por causa da extraordi­
nária complexidade organizacional do trabalho nessa área.
Ao lado de um centro de pesquisa que irá dirigir e coordenar
todo o trabalho, as tarefas de produção e de pesquisa deverão ser es­
tabelecidas principalmente nos institutos, escritórios e departamentos
locais de pedología. Todas essas bases metodológicas locais deverão
conduzir seu trabalho em ligação direta com o centro. O caráter desse
trabalho de pesquisa deverá ser sobretudo de massa e prático. São
essas bases que deverão verificar as posições básicas do instituto de
pesquisa central, aplicá-las na prática e recolher materiais concretos
que caracterizam a peculiaridade do desenvolvimento de um número
massivo de crianças de uma dada nacionalidade. Os problemas gerais
4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a
respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

do desenvolvimento cultural, retirados das margens e resolvidos no


centro, devem reaparecer em sua variedade concreta de formas no
trabalho das instituições locais.
Por fim, o último aspecto do plano de organização consiste
na organização de métodos e formas de trabalho de expedição. A
organização de expedições pedológicas deve se tornar um meio tão
constante e necessário de pesquisa científica quanto o “método de
campo” na etnografía e etnologia contemporâneas. A direção e con­
dução dessas pesquisas de expedição devem estar nas mãos tanto dos
institutos de pesquisa centrais quanto dos locais.
Consideramos que apenas a unificação desses três aspectos
será capaz de garantir a realização efetiva das tarefas que se colocam
para a pedologia soviética nesse campo.
A explicitação e fundamentação do plano de trabalho de pes­
quisa pedológico nessa área estariam absolutamente incompletas se
nós não nos detivéssemos ao menos brevemente no problema dos
métodos de estudo da criança nacional e do conteúdo do plano de
investigação. Na esfera dos métodos de pesquisa, existem em nossa
prática três pontos de vista distintos e suficientemente formulados,
cuja inadequação na prática nos parece ter sido comprovada, uma
vez que eles partem de uma colocação errônea de todo o problema.
Um desses pontos de vista, o mais difundido no centro, adverte
contra o entusiasmo pela elaboração independente de métodos. Esse
ponto de vista foi refutado no primeiro número da nossa revista.4
Ele adverte contra a criação de um conjunto de procedimentos nas
localidades e recomenda a aplicação de métodos gerais para que se
chegue a resultados comparáveis. Como já foi mostrado por nós, esse
ponto de vista é quase que inaplicável na prática, uma vez que leva a
conclusões absurdas, bem comó à impossibilidade efetiva de investi­
gar, mas ele se mostra especialmente inadequado e errôneo bem no
início de tais pesquisas. De fato, se concordarmos que o conjunto de
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

procedimentos se define pelas propriedades do objeto a ser estudado,


é necessário esperar antecipadamente que os métodos criados para o
estudo de crianças de uma determinada cultura se mostrarão inade­
quados para o estudo de crianças de outra cultura.
Estamos de acordo com a opinião autorizada de Thumwald,5
que fez mais do que qualquer outro no campo da elaboração de um
método de pesquisa etnopsicológica. Ele diz sem rodeios que a apli­
cação de testes gerais na investigação de crianças de povos mais pri­
mitivos em geral leva a que, com base em dois ou três experimentos
rápidos, todo um povo seja colocado em um nível de desenvolvimento
equivalente ao de uma criança de 5 ou 7 anos de idade. Ao mesmo
tempo que tal avaliação tem seu valor relativo no contexto da psicolo­
gia da criança europeia, a aplicação dessa escala ontogenética em um
recorte filogenético revela-se absolutamente inaceitável.
O outro ponto de vista mantém os mesmos testes e métodos de
pesquisa em sua base, apenas editando-os no sentido de substituir o
material estranho por um mais próximo do cotidiano da criança em
questão. Essa reforma nos procedimentos, sem dúvida, representa um
grande passo adiante. Gostaríamos de apontar apenas que, mesmo
com a transferência da escala internacional de Binet,6 quase todo país
europeu foi obrigado, em maior ou menor medida, a fazer mudanças
na redação desses testes por conta das particularidades específicas da
cultura e do cotidiano. Essas alterações na redação e no material dos
testes são ainda mais necessárias quando eles são aplicados a crianças
de uma nacionalidade e cultura totalmente distintas. Portanto, tudo
o que os pedólogos fizeram nessa área nos parece ter grande mérito
para o avanço do estudo pedológico. Contudo, mesmo essa reforma
não resolve a situação. A pesquisa mencionada anteriormente, que
mostrou apenas 16% das crianças na faixa normal dentro de todo um
povo, recorreu justamente a uma redação melhorada e mais próxima
das condições locais, ainda assim nem isso a salvou de um erro gi­
gante. Ocorre, evidentemente, que uma simples alteração do material
4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a
respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

do teste, desacompanhada da capacidade de organizar e orientar a


pesquisa corretamente, ainda se revela insuficiente.
Por fim, o terceiro ponto de vista, isto é, o mais desenvolvido
nos institutos de pesquisa locais, reconhece a particularidade pro­
funda de todos os processos de desenvolvimento da criança de mino­
rias nacionais e a total inadequação de todos os métodos de pesquisa
criados para o estudo da criança europeia. Esse ponto de vista pressu­
põe que toda pesquisa pedológica deve ser criada do zero e elaborada
para cada nacionalidade separadamente. Esse ponto de vista também
nos parece inconsistente.
Acreditamos que a saída para esse impasse esteja ligada à possi­
bilidade de passar do entusiasmo com o procedimento de testes, cujo
significado e valor relativo são obtidos apenas depois de estar fundamen­
tado em profundas pesquisas experimentais, para um estudo efetiva­
mente profundo de todos os problemas do desenvolvimento da criança
de minorias nacionais. Com a ajuda de testes tradicionais, como diz
corretamente Thorndike,7 nunca saberemos ao certo o que estamos in­
vestigando. Não sabemos sequer com quais unidades estamos operando
e o que nossas conclusões quantitativas querem dizer. Além disso, sa­
bemos que o método de testes se baseia em uma série de suposições
convencionais, mais ou menos iguais em certo meio cultural e cotidiano,
mas ele perde sua força e seu significado, estabelecidos por uma via pu­
ramente empírica, tão logo seja transposto para outro meio cultural, em
que essas suposições convencionais devem ser substituídas por outras.
Consideramos que apenas a combinação de uma pesquisa fun­
damental e profunda com uma pesquisa efetivamente massiva, que
produzam os padrões empíricos necessários, poderá resolver esse
problema metodológico. Mostraremos adiante que isso corresponde
exatamente à estrutura organizacional mencionada anteriormente.
Resta-nos ainda falar sobre o conteúdo do plano quinquenal de pes­
quisa nessa área.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

É preciso dizer que o problema em foco ocupa um lugar singu­


lar em todo o plano. Ele não é uma mera subdivisão do plano, uma
parte dele, assim como outros capítulos do plano quinquenal pedoló­
gico, como é o caso da primeira e da segunda idade escolar, da idade
pré-escolar, da creche, da infância difícil etc. Nosso problema abarca
todas essas partes do plano, por isso ele não está destacado como um
capítulo independente que pudesse ser trabalhado por uma comissão
especial e ser apresentado por meio de urna lista de temas especiais.
Nosso problema se encontra em uma relação estrutural mais com­
plexa com o plano quinquenal como um todo, não é apenas uma
parte dele, mas um de seus aspectos, uma de suas facetas, um recorte
específico de sua aplicação.
Por isso, como já foi dito, ele abarca todas as principais subdivi­
sões do plano e se decompõe nos mesmos aspectos que caracterizam
o plano como um todo: estudo do meio, estudo dos complexos de
sintomas etários, o estudo do coletivo infantil e a fundamentação do
trabalho prático. Por isso, nossa tarefa agora consiste menos em apre­
sentar o conteúdo desse plano ou enumerar os problemas principais
a serem trabalhados, e mais em esboçar os pontos mais importantes
que determinam os limites, o recorte de nosso plano, os quais corres­
pondem ao nosso problema.
O aspecto primeiro e predominante, que determina o recorte
que nos interessa no plano, consiste no fato de que o centro de pes­
quisa realiza o estudo do meio. O fator central e básico que deter­
mina as peculiaridades específicas do desenvolvimento multilateral da
criança é a estrutura específica do meio. Por isso, o estudo pedológico
do meio nacional, de sua estrutura, dinâmica e conteúdo é a tarefa
primordial, sem cuja resolução não poderemos sequer nos aproximar
da resolução das demais tarefas de nosso plano. Não são as diferen­
ças biológicas da espécie humana ou as particularidades da raça que
serão colocadas em primeiro plano, mas justamente a influência for­
madora do meio social.
4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a
respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

Esse meio, com todo seu modo específico, apresenta tarefas


singulares de adaptação para a criança. Ele determina os recursos
do pensamento e do comportamento com os quais a criança precisa
se instrumentalizar em seu processo de desenvolvimento. Ele deter­
mina sobretudo as oportunidades de exercício e de desenvolvimento
com que se deparam suas disposições hereditárias. Se tomarmos o
exemplo da nacionalidade muçulmana, que se viu ao longo de séculos
sob o interdito da atividade figurativa, de qualquer representação em
desenho, torna-se absolutamente claro que não se deve esperar de
crianças dessa nacionalidade qualquer desenvolvimento pleno da fun­
ção representativa (desenho), tão característico da criança em idade
pré-escolar em todos os países europeus. Povos que nunca viram um
lápis, obviamente, se mostrarão atrasados no campo do desenvolvi­
mento da linguagem escrita.

Todas as exigências metodológicas apresentadas aos nossos


testes significam uma exigência para que se investiguem as disposi­
ções independentemente das formas especiais de exercício na forma
mais geral e difundida em determinado meio e grau de exercício. Logo
de partida, devemos dizer que o grau específico de desenvolvimento
cultural de todo um povo e a forma nacional específica desse desen­
volvimento condicionam uma estrutura totalmente distinta de todo
o campo de exercício das disposições herdadas, desenvolvendo algu­
mas, reprimindo outras e formando um tipo social e psicológico de
criança que é singular.

O segundo aspecto, que está intimamente ligado ao primeiro,


consiste em explicitar o novo plano de pesquisa psicológica, isto é,
precisamente o plano de desenvolvimento cultural das funções psi­
cológicas. Se partirmos do ponto de vista que acabamos de mencio­
nar, o qual pressupõe que a especificidade das crianças de minorias
nacionais é condicionada primeiramente não pela especificidade das
disposições, mas do meio, a única conclusão natural possível será a
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

exigência de que seja introduzido em nossa pesquisa psicológica um


plano completamente novo de investigação; o estudo do desenvolvi
mento cultural ou histórico do psiquismo e do comportamento do ser
humano. Não iremos nos deter agora na questão de quais aspectos
caracterizam esse processQ de desenvolvimento; diremos apenas que
é justamente a incapacidade de diferenciar entre desenvolvimento
cultural e desenvolvimento incompleto em várias formas de primiti­
vismo que acaba levando, na prática, a pesquisas elaboradas de modo
equivocado com todo um povo a concluir que apenas um sexto da
população se encontra na faixa normal.
Primitivismo e atraso são equiparados, desenvolvimento
cultural e biológico também. Uma investigação fundam ental e
profunda dos processos de desenvolvimento cultural e a expli­
citação de suas leis e caminhos fundamentais devem constituir
a principal tarefa do instituto central de pesquisa. Essa pesquisa
deve m ostrar que o meio não é apenas um fator que favorece
mais ou menos o desenvolvimento dos mecanismos básicos do
com portamento, mas também que ele mesmo forma e organiza
todas as formas superiores de comportamento, tudo aquilo que,
no desenvolvimento da personalidade, é edificado sobre as fun­
ções elementares.
Por fim, o terceiro aspecto consiste na explicitação das particu­
laridades biológicas de raça que indubitavelmente existem e exercem
influência em todo tipo de desenvolvimento da criança. Essas parti
cularidades devem ser levadas em conta, colocadas em seu lugar e
consideradas no resultado geral de toda a pesquisa.
É por meio desses três pontos, e apenas por meio deles, que
se pode e se deve organizar um círculo de pedologia das minorias
nacionais. Nesse círculo, devem estar presentes os mesmos problemas
que constituem o conteúdo do plano como um todo, bem como os
mesmos aspectos estruturais em que ele se subdivide.
4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a
respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

Notas da tradução

1. O autor refere-se ao Io Plano Quinquenal (1928-1932), principal política de


gestão nacional soviética. Esse momento também é denominado de Grande
Quebra (velíkii perelóm) ou “revolução pelo alto”. Simboliza a vitória de
Stalin sobre Trótski, Zinóvieve Kámenev no 15° Congresso do Partido Co­
munista. Esse período deu início a uma série de mudanças drásticas, que
incluíram a construção de um novo sistema soviético de ciência.

2. Sobre Zalkind, ver nota 23 do texto 1.


3. Vigotski parece fazer referência às expedições realizadas com etnias mi­
noritárias, distantes dos grandes centros soviéticos. Cabe destacar que a
psicologia étnica, descendente direta da psicologia dos povos de Wundt,
estava presente na Rússia desde os anos 1920. No início do 1° Plano
Quinquenal, houve forte incentivo para que os pesquisadores (entre os
quais os pedólogos) estudassem tais etnias, visando integrá-las ao projeto
societário comunista.

4. Provável referência ao Pedologuitcheskii fum ai (1), 1923.

5. Referência ao antropólogo austríaco Richard Thurnwald (1869-1954).

6. Alfred Binet (1857-1911), a pedido do Ministério da Educação francês, em


1904-1905, desenvolveu a primeira forma científica de testagem das capa­
cidades mentais de uma população escolar, aplicando a noção de quociente
de inteligência (QI) de W. Stern. Desenvolveu a escala de mensuração da
inteligência que foi traduzida e utilizada em diferentes países, atraindo
muitas críticas de educadores pelo seu potencial gerador de exclusão das
camadas populares.

7. Edward Lee Thorndike (1874-1949), pesquisador da psicologia, iniciou


seus estudos com W. James, sendo associado ao funcionalismo norte-ame­
ricano. Realizou importantes experimentos, defendendo a noção de que a
inteligência é meramente um conjunto de associações. Suas obras sobre
psicologia educacional foram bastante influentes no início do século XX.
5. O refazimento socialista do ser
humano (1930)
A psicologia científica estabelece como posição fundamental
o fato de que o tipo psicológico contemporâneo é produto de duas
linhas evolutivas. O tipo contemporáneo é formado no longo processo
de evolução biológica, graças ao qual se forma a espécie biológica
homo sapiens, com todas suas características peculiares da estrutura
do corpo, das funções de cada órgão e de formas de atividade re­
flexiva e instintiva consolidadas hereditariamente e transmitidas de
geração em geração.

Contudo, em vez do início da vida social e histórica do ser


humano, em vez de uma alteração radical das condições de adapta­
ção, alterou-se radicalmente o próprio caráter da evolução humana
ulterior. Tanto quanto se pode julgar com base no material factual
disponível, obtido principalmente pela comparação do tipo biológico
dos povos primitivos, que se encontram em níveis primários do seu
desenvolvimento cultural, com representantes de raças humanas mais
cultas, e na medida em que a teoria psicológica contemporânea per­
mite resolver essa questão, temos todo fundamento para supor que
o tipo biológico humano se alterou muito pouco em seu processo de
desenvolvimento histórico.

Não se trata de que a evolução biológica foi interrompida e


que a espécie “humana” seja uma grandeza invariável, permanente,
constante, mas que as leis e os fatores básicos que dirigem o pro­
cesso de evolução biológica recuaram para o segundo plano, em parte
desapareceram, em parte aparecem como regularidades reduzidas,
subordinadas, em regularidades mais complexas, as quais dirigem o
desenvolvimento social do ser humano.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Na realidade, a luta pela existência e a seleção natural - esses


dois motores da evolução biológica na ordem animal - perdem seu
significado determinante tão logo passamos para o desenvolvimento
histórico do ser humano. No lugar deles surgem novas leis que condu
zem o curso da história humana e captam todo o processo de desen­
volvimento material e espiritual da sociedade humana.

Da mesma forma como cada ser humano existe apenas como


ser social, como membro de determinado grupo social, junto do qual
ele percorre o caminho de seu desenvolvimento histórico, a consti­
tuição de sua personalidade e a estrutura de seu comportamento são
uma grandeza dependente da evolução social, que é determinada
por esta última em seus aspectos mais importantes. Já em socieda­
des primitivas, que deram apenas os primeiros passos no caminho
do desenvolvimento histórico, verifica-se uma dependência direta da
constituição psicológica da personalidade em relação ao desenvolvi­
mento da técnica, ao grau de desenvolvimento das forças produtivas
e da estrutura do grupo social ao qual o indivíduo pertence. A investi­
gação em psicologia étnica mostrou com indubitável clareza que esses
dois aspectos, cuja dependência interna foi estabelecida pela teoria do
materialismo histórico, são fatores determinantes de toda a psicologia
do ser humano primitivo.

Como observou Plekhánov,1 em nenhuma parte a dependência


da consciência em relação à existência aparece com clareza tão direta
e evidente do que precisamente na vida do ser humano primitivo.
Essa clareza se deve ao fato de que os aspectos mediadores entre o
desenvolvimento da técnica e o desenvolvimento do psiquismo são
extremamente pobres, primitivos, e, portanto, essa dependência está
como que desnudada. Uma correlação muito mais complexa entre es­
ses dois aspectos é observada em sociedades mais desenvolvidas, que
têm uma estrutura de classe complexa. Aqui a influência da base so­
bre a superestrutura psicológica não é direta, mas mediada por uma
5. O refazimento socialista do ser hum ano (1930)

série de aspectos muito complexos de caráter material e espiritual.


Mas mesmo aqui permanece válida a lei básica do desenvolvimento
histórico do ser humano, segundo a qual a vida social forma o ser hu­
mano e determina os aspectos mais importantes de toda constituição
de sua personalidade.
Assim como a vida social não é um todo único e homogéneo
e a sociedade é dividida em classes, a constituição da personalidade
humana não é, em cada época histórica, algo homogéneo, uniforme,
e a psicologia deve considerar o fato básico de que a conseqüência
direta da posição geral recém-formulada é o reconhecimento de que a
formulação do tipo humano tem um caráter de classe, uma natureza
de classe e distinções de classe. A contradição interna desse tipo de
estrutura também se expressa na constituição da personalidade, na
estrutura do psiquismo humano de dada época.
Nas descrições clássicas do estágio inicial do capitalismo, Marx
reiteradamente se detém na questão da deformação da natureza hu­
mana que a emergência da indústria capitalista acarreta. A separação
entre trabalho intelectual e físico, a separação entre cidade e campo,
a exploração implacável do trabalho infantil e feminino; em um polo
da sociedade, miséria e impossibilidade de desenvolver livre e plena­
mente todas as forças humanas; no outro polo, ócio e luxo: tudo isso
leva não apenas à diferenciação de um tipo único de ser humano, que
se desintegra em uma série de tipos de classes sociais que se distin­
guem drasticamente entre si, mas também ao fato de que, em todas
essas variantes do tipo humano, a personalidade humana se deforma,
se desfigura, se desenvolve de forma incorreta e unilateral.
Para Engels,2 “com a divisão do trabalho, o próprio ser hu­
mano foi dividido”. Cada forma de produção material determina
certa divisão social do trabalho, como diz D. Riazanov, e esta última
está na base da distinção espiritual do trabalho. Com a desagregação
da sociedade primitiva, “constata-se a separação de toda uma série
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

de funções espirituais e de organização em certos tipos e subtipos de


divisão social do trabalho”.
Adiante, Engels diz:

Já a primeira grande divisão do trabalho, a divisão entre cam po e


cidade, condenou a população rural a séculos de em brutecim ento,
e a população da cidade à escravização de seu próprio trabalho. Ela
aniquilou a base do desenvolvimento espiritual daqueles e do desen­
volvim ento físico destes. Se o cam ponês domina a terra, o artesão
domina seu ofício, a terra se impõe, não em menor medida, sobre o
camponês, assim com o o ofício sobre o artesão. Com a divisão do tra­
balho, o próprio ser humano foi dividido. O desenvolvimento de uma
atividade se fez às custas de outras capacidades físicas e espirituais.
Essa mutilação do ser hum ano chega ao m esm o nível da divisão do
trabalho, que alcança seu maior grau na manufatura. Ela decom põe o
ofício em funções parciais isoladas, cada qual desempenhada por um
operário específico com o se fosse sua vocação vital, e dessa forma o
prende por toda a vida a uma função parcial determinada, a uma fer­
ramenta de trabalho específica.. . . N ão apenas os trabalhadores, mas ;
também as classes que os exploram direta ou indiretamente, graças à J
divisão do trabalho, são escravizadas pelas ferramentas de sua ativi- I
dade: o burguês vulgar por seu próprio capital e sua sede de lucro; o
advogado por suas noções jurídicas fossilizadas que o dominam com o
se fossem uma força independente; as “classes educadas” em geral
por suas limitações variadas e unilateralidade, por sua miopia física e
espiritual, por sua atrofia decorrente de uma educação especializada
à qual são acorrentadas por toda vida, ainda que essa especialidade
consista em não fazer nada. '

Isso é o que Engels diz em Anti-Dühring. Devemos partir da po­


sição básica de que a produção intelectual é determinada pela forma
de produção material.

Assim, por exemplo, corresponde ao capitalismo uma forma de pro­


dução espiritual distinta do m odo de produção medieval. Cada forma
5. O refazimento socialista do ser humano (1930)

histórica determinada de produção material corresponde a uma


forma de produção espiritual, e isso, por sua vez, quer dizer que a
psicologia do ser humano, por ser um aparato direto dessa produção
intelectual, adquire uma forma específica em cada estágio determi­
nado do desenvolvimento.

A mutilação do ser humano, o desenvolvimento unilateral e


disforme de suas capacidades isoladas, de que fala Engels, e que teve
início com a divisão entre campo e cidade, tem se fortalecido enorme­
mente por causa da influência da divisão técnica do trabalho.

Engels diz:

Todo conhecimento, entendimento e vontade que camponeses ou ar­


tesãos desenvolvem em si mesmos de forma independente, ainda que
em pequena escala, como o selvagem que personifica toda arte da
guerra em dispositivos de astúcia pessoal, tudo isso na manufatura
é exigido apenas da oficina como um todo. As forças de produção
espirituais ampliam sua escala em certo sentido justamente porque
em muitos outros elas desaparecem por completo. O que os operá­
rios parciais perdem se concentra no capital como contrapeso a eles.
A divisão do trabalho feita pela manufatura faz com que as forças
espirituais do processo de produção sejam contrapostas pelos ope­
rários como uma propriedade alheia e uma força que os escraviza.
Esse processo de separação começa com a simples cooperação, na
qual o capitalista aparece para o operário como uma totalidade e a
vontade do corpo de trabalho social. Ele continua se desenvolvendo
na manufatura, na qual o operário é reduzido ao nível de operário
parcial. Ele se completa na grande indústria, que separa o operário
da ciência, como uma força de produção independente, e o obriga a
servir ao capital.

Como resultado do progresso do capitalismo, o florescimento


da produção material significou ao mesmo tempo uma divisão ainda
maior do trabalho e um desenvolvimento disforme ainda mais for­
talecido das capacidades humanas. Se no ofício “de manufatura” o
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

operário faz com que a ferramenta sirva a ele, na fábrica ele serve
à máquina. Lá o movimento da ferramenta de trabalho parte dele,
aqui ele deve seguir seu movimento, segundo Marx. Os operários sao
convertidos em “apêndices vivos da máquina”, surge a “desalentada
monotonia do sofrimento sem fim do trabalho”, de que fala Marx,
como sendo uma característica distintiva do período do capitalismo
por ele descrito. Nas palavras de Marx, a ligação do operário a uma
determinada função converte “o operário em um monstro, cultivando
apenas uma capacidade especial e esmagando o mundo restante de
inclinações e talentos produtivos”.

Um quadro ainda mais lúgubre da deformação do desenvolvi­


mento psicológico do ser humano é apresentado pelo trabalho infantil
nessa época. Uma simplificação extraordinária das funções isoladas
desempenhadas pelos operários permite, na corrida por trabalho ba­
rato, atrair massas de crianças para a produção, o que leva a um
atraso e um desenvolvimento unilateral e deformado em uma idade
decisiva, quando a personalidade da pessoa se forma. A obra clássica
de Marx é repleta de exemplos de “asselvajamento intelectual”, “de­
gradação física e intelectual”, “transformação do sujeito imaturo” em
uma máquina para fabricação de mais-valia, e apresenta um quadro
vivo de todo o processo que leva “o operário a existir para o processo
de produção, e não o processo de produção para o operário”.
Contudo, nenhum desses aspectos negativos determina intei­
ramente os impactos sobre o desenvolvimento humano que estão
contidos no progresso acelerado da produção. Todas essas influên­
cias negativas não são inerentes à indústria de larga escala em si
mesma, mas à organização capitalista desta, que é construída com
base na exploração de enormes massas populacionais, o que faz
com que cada novo passo em direção à vitória do ser humano sobre
a natureza, cada novo degrau do desenvolvimento das forças pro­
dutivas da sociedade seja galgado não pela humanidade como um
5. O refazimento socialista do ser humano (1930)

todo e por pessoas individualmente, mas conduz a uma degradação


cada vez maior da personalidade humana e de suas possibilidades
de desenvolvimento.

Filosofias como as de Rousseau e Tolstói, ao observarem a muti­


lação do ser humano no processo progressivo de civilização, não viram
outra saída para essa situação a não ser o retorno a uma natureza
humana mais íntegra e pura. Como disse Tolstói, nosso ideal não está
adiante, mas atrás. Nesse sentido, as épocas primitivas do desenvolvi­
mento da sociedade humana constituíam, do ponto de vista do rorhan-
tismo reacionário, o ideal ao qual a humanidade deveria aspirar. Na
realidade, um estudo profundo das tendências econômicas e históricas
que guiam o desenvolvimento do capitalismo mostra que a mutilação
na natureza humana, da qual tratamos antes, está atrelada não apenas
ao crescimento da produção em larga escala por si só, mas também à
forma capitalista específica de organização da sociedade.
A maior e mais fundamental contradição de toda essa estru­
tura social consiste em que em seu interior, com necessidade de
ferro, amadurecem forças que criam as condições para sua destrui­
ção e substituição por uma nova estrutura, baseada na ausência da
exploração do homem pelo homem. Marx mostra reiteradamente
como em si mesmo o trabalho, a produção em larga escala, não ape­
nas não tem capacidade de mutilar a natureza humana, como pode­
ria supor um seguidor de Rousseau ou de Tolstói, mas também, ao
contrário, traz em si possibilidades infinitas para o desenvolvimento
da personalidade humana.

Ele diz:

D o sistema fabril, com o se pode acompanhar com detalhes em Robert


Owen, surge o embrião da educação do futuro, que reunirá trabalho
produtivo com o aprendizado e a ginástica para todas as crianças a
partir de certa idade; além disso esse será não apenas um m étodo
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

para elevar a produção social, mas será o único m étodo de criação


de pessoas desenvolvidas em todos os sentidos.

Dessa forma, a participação de crianças na produção, que ao


ser realizada dentro do sistema capitalista, especialmente em determi­
nado período de desenvolvimento do capitalismo, constitui uma fonte
de degradação física e intelectual, contém em si mesma o embrião da
aprendizagem do futuro e pode ser uma forma elevada de criação de
um novo tipo de ser humano. Por si só, o crescimento da produção
em larga escala cria a necessidade de elaboração de um novo tipo de
trabalho humano e de um novo tipo de humano, capaz de executar
essas novas formas de atividade de trabalho.
Diz Marx:

A natureza da indústria de larga escala condiciona uma transforma­


ção do trabalho, uma constante mudança das funções e uma m o­
bilidade do operário em todos os sentidos. O indivíduo convertido
em fração, um simples portador de uma função social parcial, deve
ser substituído por um indivíduo íntegro e plenamente desenvolvido,
para o qual as diferentes funções sociais se misturam entre si com o
formas de aplicação de sua atividade

Dessa forma, vemos que não apenas a união do trabalho pro­


dutivo com o processo ensino-aprendizagem é uma forma de criação
de pessoas desenvolvidas em todos os sentidos, mas também o tipo de
ser humano que uma produção altamente desenvolvida exige é funda­
mentalmente distinto do tipo de ser humano criado pela produção no
estágio inicial do desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, o fim do
período capitalista representa uma impressionante antítese em rela­
ção ao seu início. Se inicialmente o indivíduo se converteu em fração,
em executor de uma função parcial, um apêndice vivo da máquina,
no final as próprias necessidades da produção exigem um ser humano
ativo, desenvolvido em todos os sentidos, capaz de alterar as formas
de trabalho, organizar o processo produtivo e dirigi-lo.
5. O refazimento socialista do ser hum ano (1930)

Qualquer que seja o traço particular determinante do tipo psi­


cológico do ser humano que se tome, seja em um período inicial ou
posterior do desenvolvimento do capitalismo, veremos em toda parte
o significado duplo, o caráter duplo de todos os momentos decisivos.
Aquilo que para a forma capitalista de produção é fonte de degrada­
ção da personalidade, por si mesmo, contém possibilidades de desen­
volvimento infinito da personalidade.
A título de exemplo, iremos no deter, na conclusão, apenas na
questão relativa ao trabalho combinado de pessoas de sexos distintos
e das mais diversas faixas etárias. Segundo Marx, “Essa composição
do trabalho combinado dos funcionários por pessoas de ambos os
sexos e das mais diversas faixas etárias, em condições corresponden­
tes, deve ser a fonte do desenvolvimento da personalidade humana”.
Assim, vemos que por si só o crescimento da produção em
larga escala esconde em si possibilidades de desenvolvimento da per­
sonalidade humana e apenas a forma capitalista de organização do
processo produtivo faz com que todas essas forças exerçam uma in­
fluência unilateral, disforme, que oprime o desenvolvimento das ten­
dências de desenvolvimento da personalidade.
Em uma de suas obras, Marx diz que, se a psicologia quer
se tornar uma ciência real e efetivamente rica de conteúdo, ela
deve ser capaz de ler o livro da história da indústria material, no
qual estão encarnadas as “forças essenciais objetificadas do ser hu­
mano”, que são elas mesmas uma encarnação concreta da psicolo­
gia humana. Toda tragédia interna do capitalismo consiste em que,
quando essa psicologia objetificada, ou seja, encerrada nas coisas
e que contém em si possibilidades infinitas de domínio sobre a na­
tureza e de desenvolvimento de sua própria natureza, cresceu com
velocidade vertiginosa, sua vida espiritual concreta se degradou e
sofreu o processo que Engels chama metaforicamente de mutilação
do ser humano.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Entretanto, a essência da questão consiste em que essa influên­


cia duplicada de fatores da produção em larga escala sobre o desen­
volvimento da personalidade humana, essa contradição interna do sis­
tema capitalista, não pode ser resolvida sem a aniquilação do próprio
sistema capitalista de organização da produção. Nesse sentido, aquilo
que denominamos contradição parcial entre o crescente poderio hu­
mano e, paralelamente, sua crescente degradação, entre seu crescente
domínio sobre a natureza e sua liberdade, por um lado, e a escravidão
e a crescente dependência em relação às coisas criadas pelos próprios
humanos, por outro. Essa contradição, repito, é apenas uma parte de
uma contradição muito mais geral e abrangente, que está na base de
todo o sistema capitalista. Essa contradição geral entre o crescimento
das forças produtivas e a organização social que não corresponde ao
nível do crescimento das forças produtivas é resolvida pela revolução
socialista, pela passagem para uma nova organização social, para no­
vas formas de organização das relações sociais.
Com isso, necessariamente deve ocorrer a alteração da personali­
dade humana, o refazimento do próprio ser humano.'5 Esse refazimento
tem, essencialmente, três fontes.
A primeira delas consiste no próprio fato do aniquilamento das
formas capitalistas de organização e de produção, das formas sociais
e de vida espiritual do ser humano que emergem em sua base. Com
a extinção do sistema capitalista, caem por terra, desaparecem e são
aniquiladas as forças que pesam sobre o ser humano, que o levam a ser
escravizado pela máquina, que atrapalham seu livre desenvolvimento.
Com a libertação de milhões de seres humanos da opressão, ocorre tam­
bém a libertação da personalidade humana dos caminhos que tolhem o
desenvolvimento. A primeira fonte é a libertação do ser humano.
A segunda fonte, que dá origem ao refazimento do ser humano,
consiste em que, com a destruição dos modos antigos, são libertadas e
entram em ação aquelas enormes possibilidades positivas que são ine-
5. O refazimento socialista do ser hum ano (1930)

rentes à produção em larga escala em todos esses poderes crescentes


do ser humano sobre a natureza. Os aspectos que foram abordados
antes, cujo mais notável exemplo pode ser urna nova forma de edu­
cação do futuro que surge da união entre trabalho físico e mental,
perdem seu caráter duplo e alteram fundamentalmente a direção de
sua influência. Se antes eles agiam contra o ser humano, agora eles
começam a agir em prol dele. De obstáculos, eles passam a ser pode­
rosas forças motrizes de desenvolvimento da personalidade humana.
Por fim, a terceira fonte que dá origem ao refazimento do- ser
humano é a alteração das próprias relações sociais entre as pessoas.
Alteram-se as relações entre as pessoas e, com isso, alteram-se as no­
ções, normas de comportamento, necessidades, gostos. A persona­
lidade do ser humano se forma fundamentalmente, como mostra a
pesquisa em psicologia, sob influência das relações sociais em cujo
sistema ele está inserido desde a mais tenra infância. Segundo Marx,
a minha relação com o meu meio é minha consciência. A alteração
radical de todo sistema de relações no qual se insere o ser humano
necessariamente leva à alteração da consciência, à alteração de todo
o comportamento humano.
Para o refazimento do ser humano, a educação* desempenha
um papel central, ela é o caminho de formação social consciente de
novas gerações, a principal forma de substituição de um tipo histórico
de humano. As novas gerações e as novas formas de educá-las são a
estrada principal pela qual a história passa, criando um novo tipo de
pessoa. Nesse sentido, o papel da educação política e politécnica é
absolutamente excepcional. As ideias fundamentais que se encontram
na base da educação politécnica consistem precisamente em superar a
divisão entre trabalho físico e mental, unificar pensamento e trabalho,
separados no processo de desenvolvimento capitalista.
Segundo a definição de Marx, a educação politécnica con­
siste no conhecimento de princípios científicos gerais de todos os
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

processos produtivos e, ao mesmo tempo, o fomento de habilidades


práticas em crianças e adolescentes para o trato com instrumentos
elementares de todas as produções. Segundo a ideia formulada por
Nadiejda Krúpskaia,5

A escola politécnica se distingue da profissional pois seu centro de


gravidade reside na atribuição de sentido a processos de trabalho, no?
desenvolvimento da habilidade de unificar teoria e prática, na habili­
dade de compreender a interação entre certos fenôm enos, ao passo
que, na escola profissional, o centro de gravidade consiste em equipar
o estudante com habilidades de trabalho.

O caráter coletivista, a união entre trabalho físico e mental,


a transformação das relações entre os sexos, o aniquilamento da
ruptura entre desenvolvimento físico e mental: estes são os aspectos
determinantes do refazimento do ser humano do qual estamos tra-;
tando aqui. O resultado da conclusão, o coroamento desse processo
de reconstrução da natureza humana deve ser a liberdade superior do
ser humano, da qual fala Marx: “Apenas na coletividade o indivíduo
obtém os meios que lhe dão a possibilidade de desenvolver suas apti­
dões em todos os sentidos; por conseguinte, apenas na coletividade a '
liberdade pessoal é possível”.
Assim como a sociedade humana como um todo, a personali­
dade humana deve dar um salto do reino da necessidade para o reino
da liberdade, do qual fala Engels.
Quando se fala sobre o refazimento do ser humano, sobre a
criação de um tipo novo, superior de personalidade e comportamento
humano, são abordadas inevitavelmente as noções sobre o novo tipo
de ser humano ligadas à teoria de Nietzsche sobre o super-homem.
Partindo de um pressuposto absolutamente correto de que o desen­
volvimento humano não para no ser humano, de que o tipo contem­
porâneo de ser humano é apenas uma ponte, apenas uma forma
transitória para um tipo mais elevado, que o desenvolvimento não se
5. O rcfazimento socialista do ser hum ano (1930)

esgota na criação do ser humano, que o tipo contemporâneo de per­


sonalidade não é superior nem a última palavra do desenvolvimento,
Nietzsche conclui que no processo de desenvolvimento surge uma
nova essência, o super-homem, que está para o humano contemporâ­
neo como este está para o macaco.
Contudo, Nietzsche imaginava que, na base do desenvolvi­
mento desse tipo superior de humano, estão as mesmas leis da evo­
lução biológica, a luta pela existência, a seleção pela sobrevivência
dos mais adaptados, que prevalece no reino animal. Por isso, o ideal
de poder, a autoafirmação da personalidade humana em toda com-
pletude de suas forças e aspirações instintivas, o individualismo orgu­
lhoso e uns poucos notáveis são, para Nietzsche, o caminho para a
criação do super-homem.
O equívoco dessa teoria é que ela ignora o fato de que as leis
da evolução histórica humana se distinguem radicalmente das leis da
evolução biológica, que a diferença radical entre um e outro processo
consiste em que o ser humano evolui e se desenvolve como um ser
histórico, social. Apenas elevando toda a humanidade a um grau su­
perior da vida social, apenas a libertação de toda a humanidade é o
caminho para o surgimento de um novo tipo de ser humano.
Contudo, essa transformação do comportamento humano, a
transformação da personalidade humana deve inevitavelmente levar à
sua evolução ulterior e ao refazimento do tipo biológico humano. Ao lu­
tar contra o envelhecimento e o adoecimento, ao dominar os processos
que determinam sua própria natureza, o ser humano indubitavelmente
eleva a um grau superior e reconstrói a própria organização biológica
da criatura humana. Contudo, o maior paradoxo histórico do desenvol­
vimento humano consiste precisamente em que o refazimento biológico
do tipo humano, realizado fundamentalmente com a ajuda da ciência, da
educação social e da racionalização de toda estrutura da vida, constitui
não um pré-requisito, mas o resultado da libertação social do ser humano.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Nesse sentido, acompanhando o processo de desenvolvimento


do macaco ao humano, Engels disse que o trabalho cria o ser hu­
mano. Nessa mesma base, pode-se dizer que as novas formas de tra­
balho criam o humano novo, e este lembrará o humano antigo, o
“velho Adão”, apenas pelo nome, assim como, segundo a magnífica
expressão de Espinosa, o cão, isto é, o animal que late, lembra a cons- ;
telação celeste Cão Maior.6

Notas da tradução

1. Geórgui Valentínovitch Plekhánov (1856-1918), filósofo autodidata. É lem­


brado como o “pai do marxismo russo”. Enquanto exilado na Inglaterra,
tornou-se grande amigo de Friedrich Engels, sua principal fonte teórica.
E reputado como o mentor das ideias de materialismo histórico e mate­
rialismo dialético, tendo exercido grande influência em Vigotski e muitos
outros autores da revolução, a despeito de suas diferenças políticas para
com Lênin e os bolcheviques.

2. Friedrich Engels (1820-1895), polímata e revolucionário alemão. Grande


parceiro de Marx na elaboração do materialismo histórico e do socialismo
científico, era um poliglota e estabeleceu copiosa correspondência com
militantes de todo o mundo, inclusive da Rússia. Marx o considerava mais
versado em temas científicos do que ele próprio. A obra científico-filosófica
de Engels exerceu grande influência na ciência soviética, e Vigotski não
foi exceção.

3. A palavra russa peredélka foi aqui traduzida como “refazimento”. Buscou-


-se uma correspondência etimológica com o termo original, já que esse
agrega o prefixo pere- (que expressa repetição, assim como o prefixo re- em
português) e uma palavra oriunda do verbo diélat, isto é, “fazer”.

4. O termo russo aqui traduzido como “educação” é vospitánie. Trata-se de


um vocábulo que abarca uma ideia mais integral de educação, que vai além
da formação escolar - esta, em geral, é definida pelo termo obrazovánie.
Outro termo muito empregado na psicologia vigotskiana é obutchênie, que,
na presente edição, foi traduzido pela expressão “processo de ensino-apren-
dizagem” ou ainda por “aprendizagem”, a depender do contexto.
5. O refazimento socialista do ser hum ano (1930) 175

5. Nadiéjda Konstantinovna Krúpskaia (1869-1939), pedagoga, militante e


esposa de Lênin. Exerceu enorme influência nas políticas do Narkompros
(o Comissariado do Povo para Educação, equivalente ao Ministério da Edu­
cação) de 1918 a 1933, apesar de não ocupar elevados cargos.

6. Ver nota 34 do texto 2.


6. Sobre os sistemas psicológicos
(1930)
O assunto de que irei tratar aqui surgiu de nosso trabalho expe­
rimental conjunto e constitui uma tentativa ainda inacabada de pen­
sar teoricamente aquilo que foi determinado em uma série de traba­
lhos que abordam fundamentalmente a unificação de duas linhas de
pesquisa, uma genética e uma patológica. Assim, essa tentativa p.ode
ser analisada (não do ponto de vista formal, mas em sua essência)
como uma tentativa de identificar os novos problemas que surgem em
decorrência do fato de que uma série de problemas psicológicos, até
o momento pesquisados no plano do desenvolvimento das funções,
passou a ser comparada com problemas que emergem no plano da
desagregação dessas funções e de selecionar aquilo que pode ter sig­
nificado prático para as pesquisas do nosso laboratório.
Uma vez que aquilo que pretendo comunicar supera em ter­
mos de complexidade o sistema de conceitos com os quais operá­
vamos até então, gostaria de, inicialmente, reiterar uma explicação
que a maioria de nós já conhece. Quando fomos acusados de termos
tornado complexos problemas absolutamente simples, sempre res­
pondíamos que deveríamos ser antes acusados de outra coisa, isto é,
explicamos de forma demasiadamente simplificada um problema de
excepcional complexidade. Mesmo agora, o que os senhores verão
é uma tentativa de abordar uma série de fenômenos que tratamos
como sendo mais ou menos conhecidos ou primitivos, para nos apro­
ximarmos da compreensão de que eles são mais complexos do que
pareciam inicialmente.

Gostaria de lembrar que esse movimento em direção a uma


compreensão cada vez mais complexa dos problemas por nós estuda­
dos não é casual, mas está encerrado em um ponto determinado de
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

nossa pesquisa. Como os senhores sabem, a perspectiva fundamen­


tal sobre as funções superiores consiste em que as coloquemos em
uma relação diferente com a personalidade, quando comparadas às
funções psicológicas primitivas. Quando dizemos que a pessoa do­
mina seu comportamento, orienta-o, nos valemos, para explicar coisas
simples (atenção voluntária ou memória lógica), de fenômenos mais
complexos, como a personalidade. Fomos acusados de negligenciar o '
conceito de personalidade, que está presente em todas as explicações
das funções psicológicas das quais tratamos. Isso é verdade. Assim
são realizadas absolutamente todas as pesquisas científicas que, se­
gundo a bela expressão de Goethe,1 transformam um problema em '
postulado, ou seja, partem de uma hipótese formulada previamente,.
a qual, contudo, deve ser submetida a uma solução e verificação no -
processo de investigação experimental.

Gostaria de lembrar que, por mais que tenhamos interpretado


as funções psicológicas superiores de forma primitiva e simples, re­
corremos a um conceito cada vez mais complexo e integral de perso- -
nalidade; tentamos explicar funções relativamente simples, como a
atenção voluntária ou a memória lógica, a partir da relação com ela.
Por isso fica claro que, à medida que o trabalho avançava, tivemos
que preencher essa lacuna, justificar a hipótese e convertê-la gradual­
mente em um conhecimento verificado experimentalmente, selecionar
de nossas investigações os aspectos que preenchem a lacuna entre a
personalidade geneticamente postulada, que se encontra em uma rela­
ção especial com essas funções, e o mecanismo relativamente simples
previsto em nossa explicação.

lá em nossas pesquisas iniciais, deparamo-nos com o tema so-


bre o qual irei falar. Intitulei essa palestra de “Sobre os sistemas psi­
cológicos”, tendo em vista as relações complexas que se estabelecem
entre as funções no processo de desenvolvimento e as que se desagre
gam ou sofrem alterações patológicas no processo de desagregação.
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

Ao estudarmos o desenvolvimento do pensamento e da lingua­


gem na idade infantil, observamos que o processo de desenvolvimento
dessas funções consiste não do fato de que dentro de cada função
ocorrem mudanças, mas principalmente no fato de que a relação ini­
cial entre essas funções se altera, o que é característico para a filo-
gênese em seu plano zoológico e para o desenvolvimento da criança
nos primeiros anos. Essa ligação e essa relação não permanecem as
mesmas no desenvolvimento ulterior da criança. Por isso, uma das
principais ideias no campo do desenvolvimento do pensamento e da
linguagem é a de que não há fórmulas fixas que determinem a relação
entre pensamento e linguagem e que sirvam para todos os estágios de
desenvolvimento e formas de desagregação, mas, em cada estágio do
desenvolvimento e em cada forma de desagregação, temos relações
específicas que se alteram. A esse tema será dedicada minha fala. A
ideia principal (uma ideia extremamente simples) consiste em que, no
processo de desenvolvimento e, em particular, do desenvolvimento
histórico do comportamento, alteram-se não tanto as funções, como
havíamos estudado antes (esse foi nosso erro), não tanto a estrutura
delas, não tanto seu sistema de movimento; o que se altera e se mo­
difica são as relações, as ligações das funções entre si, surgem novos
agrupamentos, antes desconhecidos no estágio precedente. Portanto,
a diferença essencial na passagem de um estágio a outro é com fre­
quência não uma alteração intrafuncional, mas interfuncional, uma
alteração das relações interfuncionais, da estrutura interfuncional.

A emergência dessas novas relações móveis, nas quais as fun­


ções se colocam uma em relação a outra, será denominada sistema
psicológico, incluindo todo o conteúdo que geralmente é abrangido
por esse que, infelizmente, é um conceito demasiadamente amplo.

Direi duas palavras sobre a forma como organizarei o mate­


rial. Que o curso de uma pesquisa e o curso de uma exposição são,
com frequência, opostos entre si é um fato amplamente conhecido.
180 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Seria mais simples abarcar teoricamente todo o material e não falar


sobre as pesquisas realizadas em laboratório. Mas não posso fazer
isso: ainda não tenho uma perspectiva teórica geral que abarque esse
material, e me pareceria equivocado fazer uma teorização prematura.
Apresentarei de forma meramente sistemática uma espécie de esca
daria de fatos, partindo de baixo para cima. Admito desde já que não
sou capaz de abarcar toda a escadaria com uma compreensão teórica
efetiva nem de dispor os fatos em sua relação lógica e em sua inter-
conexão. Partindo de baixo para cima, gostaria apenas de mostrar a
enorme quantidade de material acumulado, que com frequência en­
contramos em outros autores, e mostrá-lo em relação aos problemas
para cuja solução esse material desempenha um papel primordial,
com destaque especial para o problema da afasia e da esquizofrenia
no campo da patologia e o problema da idade de transição2 na esfera
da psicologia genética. Tomarei a liberdade de intercalar considera­
ções teóricas de passagem; parece-me que, no presente, é apenas isso
que podemos oferecer.

Permitam-me começar pelas funções mais simples, isto é. as


relações entre processos sensorios e motores. O problema dessas
relações na psicologia contemporânea é colocado de forma absoluta­
mente distinta de como ele era apresentado antes. Se para a psicolo­
gia antiga a questão era o tipo de associação que emergia entre eles,
para a psicologia contemporânea o problema é inverso: como surge
a medida3 entre eles. Tanto as considerações teóricas quanto o cami­
nho experimental mostram que o sistema sensório-motor é um todo
psicofisiológico único. Essa visão é defendida especialmente pelos
psicólogos da Gestalt (K. Goldstein,4 do ponto de vista neurológico;
W. Kõhler e K. Koffka5 e outros, do ponto de vista da psicologia).
Não será possível apresentar todas as considerações que servem a
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

essa perspectiva. Digo apenas que, de fato, ao se estudarem aten­


tamente as investigações experimentais dedicadas a essa questão,
observamos até que ponto os processos sensoriais e motores consti­
tuem um todo único. Assim, a resolução motora para uma tarefa em
um macaco não é outra coisa senão uma continuação dinâmica da­
queles processos, da mesma estrutura existente no campo sensorial.
Os senhores conhecem a convincente tentativa de Kõhler (1930) e
outros de mostrar, em oposição à visão de K. Bühler,6 que o macaco
resolve a tarefa não no campo intelectual, mas no campo sensorio,
e isso foi confirmado nos experimentos de E. Jaensch, que mostrou
que, para o defensor do eidetismo,7 o movimento da ferramenta em
direção ao objetivo é realizado no campo sensorio. Por conseguinte,
o campo sensorio não é fixo e a solução completa da tarefa pode
ocorrer no campo sensorio.
Se prestarmos atenção a esse processo, a ideia de unidade sen-
sòrio-motora é integralmente confirmada uma vez que nos restringi­
mos a um material zoológico ou se estivermos tratando de crianças de
pouca idade ou, ainda, de adultos nos quais esses processos estejam
mais próximos dos afetivos. Contudo, se formos adiante, surge uma
modificação surpreendente. A unidade dos processos sensorio-mo­
tores, a ligação que faz com que o processo motor seja uma conti­
nuação dinâmica de uma estrutura estabelecida no campo sensorial,
desfaz-se: o sistema motor adquire um caráter relativamente indepen­
dente em relação aos processos sensoriais, e os processos sensoriais
se separam dos impulsos motores diretos; entre eles surgem relações
mais complexas. À luz dessas considerações, os experimentos de Lu-
ria com sistemas motores combinados (1928) aparecem sob um novo
aspecto. Ainda mais interessante é que, quando o processo retorna à
forma afetiva, a ligação direta entre os impulsos motores e sensoriais
é restabelecida. Quando a pessoa não se dá conta do que faz e age
sob influência de reações afetivas, é possível novamente inferir seu
estado interno, o caráter de sua percepção, pelo seu sistema motor.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Novamente observamos o retorno à estrutura que é característica dos


estágios iniciais do desenvolvimento.
Se o pesquisador que estiver realizando um experimento com;
um macaco virar de costas para a situação e de frente para o macaco,'
de modo a não ver aquilo que o macaco está vendo, ele conseguirá
inferir o que o animal que participa do experimento vê. Isso é o que
Luria chama de sistema motor combinado. Pelo caráter dos movimen­
tos é possível inferir a curva das reações internas. Isso é característico
dos estágios iniciais do desenvolvimento. A ligação direta entre pro­
cessos motores e sensorios com frequência se desagrega na criança.
Por enquanto (sem falar do que está adiante), podemos estabelecer oí
seguinte: os processos motores e sensorios, percebidos no plano psi­
cológico, adquirem relativa independência entre si, relativa no sentido ;
de que a união, a ligação direta que é típica dos primeiros estágios do
desenvolvimento, já não existe. Os resultados da pesquisa das formas;
superiores e inferiores do sistema motor em gêmeos (no plano da se-r
paração entre fatores herdados e fatores do desenvolvimento cultural)
levaram à conclusão de que, também do ponto de vista da psicologia
diferencial, o sistema motor do adulto não é, evidentemente, caracte-:
rizado por sua constituição original, mas pelas novas ligações, pelas
novas relações que o sistema motor estabelece com as demais esferas
da personalidade, com as demais funções.
Continuando essa ideia, gostaria de me deter na percepção.
Na criança, a percepção adquire independência até certo grau. À di­
ferença do animal, a criança pode contemplai* a situação e, mesmo
sabendo o que é preciso fazer, não agir diretamente. Não vamos nos
deter em como isso ocorre, mas vamos acompanhar o que ocorre
com a percepção. Vimos que a percepção se desenvolve assim como
o pensamento e a atenção voluntária.8 O que acontece aqui? Como
dissemos, tem-se um processo de “enraizamento” dos procedimentos,
com a ajuda dos quais a criança que percebe o objeto o compara com
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

outros objetos e assim por diante. Tal pesquisa nos levou a um beco
sem saída, e outras pesquisas mostraram com total clareza: o desen­
volvimento ulterior da percepção consiste em que ela entra em uma
síntese complexa com outras funções, em particular com a linguagem.
Essa síntese é tão complexa que em cada um de nós, exceto em casos
patológicos, é impossível separar todas as regularidades primárias
da percepção. Apresentarei um exemplo bastante simples. Quando
investigamos a percepção de imagens, como fez Stern,9vemos que, ao
relatar o conteúdo da imagem, a criança nomeia objetos separados,
e ao realizar aquilo que está representado no quadro, ela representa
o quadro como um todo, sem tratar de partes isoladas. Nos experi­
mentos de Kos, nos quais a percepção é investigada de forma mais ou
menos pura, a criança, em particular a criança surda-muda, constrói
figuras totalmente de acordo com um tipo estrutural, ela reproduz um
desenho correspondente, uma mancha colorida; mas, tão logo a lin­
guagem interfere na designação desses cubos, obtemos inicialmente
uma união incongruente, sem estrutura: a criança coloca os cubos
próximos entre si, mas sem formar um todo estruturado.
Para suscitar em nós uma percepção pura, é preciso estabe­
lecer certas condições artificiais, e essa é uma tarefa metodológica
ainda mais difícil em experimentos com adultos. Em um experimento
no qual é preciso oferecer ao sujeito uma figura sem sentido, se ofere­
cermos não apenas um objeto, mas uma figura geométrica, a percep­
ção se unirá a um conhecimento (por exemplo, de que isso é um triân­
gulo). E para que se apresente, como diz Kõhler, não uma coisa, mas
um “material para visão”, faz-se necessário exibir uma composição
complexa, confusa e sem sentido ou mostrar com extrema velocidade
um objeto, de modo que dele reste apenas uma impressão visual. Em
outras condições, não é possível voltar à percepção imediata.
Na afasia, em formas profundas de degradação das funções
intelectuais e da percepção em particular (isso foi especialmente
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

observado por Põtzl),10 ocorre uma espécie de retorno à separação


da percepção daquele complexo no qual ela flui. Não posso dizer
isso de forma mais simples e breve, a não ser apontando para o
fato de que a percepção do ser humano contemporâneo se tornou
essencialmente parte do pensamento visual, pois, ao mesmo tempo
que percebo, vejo o objeto percebido. O conhecimento do objeto
se dá ao mesmo tempo que a percepção, e os senhores sabem bem
quantos esforços são necessários no laboratório para separar uma
coisa da outra! Uma vez separada do sistema motor, a percepção
continua a se desenvolver não de modo intrafuncional: o desenvol­
vimento continua principalmente graças ao fato de que a percepção
estabelece novas relações com outras funções, estabelece combina­
ções complexas com novas funções e passa a agir em unidade com
elas como um novo sistema que dificilmente pode ser dividido e cuja
desagregação é encontrada apenas em patologias.

Se seguirmos um pouco adiante, veremos que a ligação inicial


que caracteriza a correlação entre as funções se desfaz e surge uma
nova ligação. Esse é um fenômeno geral, com o qual nos deparamos
sempre sem o notar, pois não prestamos atenção nele. Isso é observado
na prática experimental mais simples. Apresentarei dois exemplos.
O primeiro refere-se a qualquer processo decididamente me­
diado, por exemplo, a memorização de palavras com ajuda de figuras.
Já aí nos deparamos com a transferência de funções. A criança que
memoriza uma série de palavras com ajuda de figuras se apoia não
apenas na memória, mas também na imaginação, na capacidade de
encontrar semelhanças ou diferenças. Dessa forma, o processo de me­
morização depende não de fatores naturais da memória, mas de uma
série de novas funções que atuam em lugar da memorização direta.
Já no trabalho de Leontiev (1931)11 e de Zankov12foi mostrado que o
desenvolvimento de fatores gerais da memorização segue diferentes
curvas. Ocorrem a reconstrução de funções naturais, a substituição
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

delas e o surgimento de uma fusão complexa de pensamento e memó­


ria, que recebeu a denominação empírica de memória lógica.
Os experimentos de Zankov fizeram com que me atentasse a
um fato impressionante. Ocorre que, na memorização mediada, o
pensamento passa ao primeiro plano; em termos genéticos e diferen­
ciais, as pessoas agem não conforme as propriedades da memória,
mas conforme as propriedades da memória lógica. Esse pensamento
se distingue radicalmente do pensamento no sentido estrito da pala­
vra. Quando propomos a um adulto que memorize uma série dè 50
palavras segundo figuras dadas, ele recorre ao estabelecimento de
relações cognitivas entre os signos, isto é, entre as figuras e aquilo
que ele está memorizando. Esse pensamento não corresponde em
absoluto ao pensamento efetivo da pessoa, ele é absurdo, a pessoa
não se interessa se aquilo que ela memoriza está certo, se é verossí­
mil, ou não. Todos nós, ao memorizarmos, às vezes não pensamos
da mesma forma como pensamos ao resolvermos uma tarefa. Todos
os critérios, fatores e ligações fundamentais característicos do pensa­
mento como tal são totalmente distorcidos no pensamento paralelo
à memorização. Teoricamente, deveríamos ter dito de antemão que
todas as funções do pensamento se alteram durante a memorização.
Seria absurdo acompanhar aqui todas as ligações e estruturas do pen­
samento que se fazem necessárias quando ele serve à resolução de
tarefas práticas ou teóricas. Repito: não apenas a memória se altera
quando ela, por assim dizer, contrai matrimônio com o pensamento,
mas o pensamento, ao alterar suas funções, não é mais aquele pensa­
mento que conhecemos quando estudamos as operações lógicas; aqui
se alteram todas as ligações estruturais, todas as relações, e nesse
processo de substituição de funções temos diante de nós a formação
de um novo sistema, sobre o qual falamos anteriormente.
Se subirmos mais um degrau e prestarmos atenção aos resul­
tados de outras investigações, veremos ainda uma outra regularidade
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

na formação de novos sistemas psicológicos: ela nos informa sobre o


tema e lança luz sobre a questão central da minha fala de hoje, isto
é, sobre a relação entre esses novos sistemas e o cérebro, sua relação
com o substrato fisiológico.
Ao estudarmos os processos de funções superiores em crian­
ças, chegamos a uma conclusão que nos impressionou: em seu desen­
volvimento, toda forma de comportamento aparece duas vezes em
cena: primeiramente como uma forma coletiva de comportamento,
como função interpsicológica; em seguida, como função intrapsico-
lógica, como certo modo de comportamento. Não notamos esse fato
apenas porque ele é excessivamente cotidiano e, portanto, somos
cegos em relação a ele. Um exemplo claríssimo é a linguagem. A lin­
guagem é inicialmente um meio de ligação entre a criança e o meio
circundante, mas, quando a criança começa a falar consigo mesma,
isso pode ser analisado como uma transferência de uma forma cole­
tiva de comportamento para a prática de um comportamento pessoal.
Segundo a excelente fórmula de um psicólogo, a linguagem não
é apenas um meio para a compreensão dos outros, mas um meio para
a compreensão de si.
Se nos voltarmos a trabalhos experimentais contemporâneos,
Piaget13foi o primeiro a enunciar e comprovar a posição de que o pen­
samento de crianças em idade pré-escolar não aparece antes do surgi­
mento do debate no coletivo. Antes de a criança aprender a debater e
apresentar argumentos, ela não tem pensamento. Omitindo uma série
de fatores, apresentarei uma conclusão formuláda por esses autores e
que alterarei um pouco a meu modo. O pensamento, especialmente na
idade pré-escolar, aparece como uma transferência de situações de de­
bate para dentro, uma discussão em si mesmo. A investigação da brin­
cadeira infantil realizada por Groos (1906)14 mostrou como a função
do coletivo infantil na condução do comportamento e na subordinação
às regras do jogo influencia também o desenvolvimento da atenção.
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

Eis o que tem extraordinário interesse para nós: por conse­


guinte, inicialmente toda função superior era dividida entre duas
pessoas, era um processo psicológico recíproco. Um processo ocor­
reu no meu cérebro, o outro no cérebro daquele com quem debato:
“Este lugar é meu”, “Não, é meu”, “Eu cheguei antes”. O sistema de
pensamento aqui se divide entre duas crianças. O mesmo ocorre no
diálogo: eu falo e você me compreende. Apenas mais tarde começo
a falar comigo mesmo. A criança de idade pré-escolar gasta horas
inteiras falando consigo mesma. Nela surgem novas ligações, nçvas
relações entre as funções, as quais não estavam dadas nas ligações
originais de suas funções.
Isso tem um significado especial, central, para o domínio do
próprio comportamento. O estudo da gênese desses processos mostra
que todo processo volitivo é inicialmente um processo social, coletivo,
interpsicológico. Isso está ligado ao fato de que a criança domina a
atenção de outros ou, ao contrário, começa a aplicar em si mesma
os meios e as formas de comportamento que originalmente eram
coletivos. A mãe dirige a atenção da criança para algo; a criança,
seguindo a indicação, volta sua atenção para aquilo que ela mostrou;
temos aqui duas funções separadas. Em seguida, a criança começa
ela mesma a direcionar sua atenção, ela mesma passa a desempenhar
o papel da mãe em relação a si, emerge um sistema complexo de fun­
ções que inicialmente eram separadas. Uma pessoa ordena, a outra
executa. Uma mesma pessoa ordena e executa.
Tive ocasião de verificar experimentalmente fenômenos
análogos em uma garota que observo. Todos conhecemos esses
fenômenos a partir de observações cotidianas. A própria criança
começa a dar comandos a si mesma: “Um, dois, três”, da mesma
forma como antes faziam os adultos, a seguir ela mesma executa
seu comando. Por conseguinte, surge no processo de desenvolvi­
mento psicológico uma unificação de funções que inicialmente
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

pertenciam a duas pessoas. A origem social das funções psíquicas


superiores é um fato muito importante.
Também é notável que os signos, que nos parecem ter um sig­
nificado tão grande para a história do desenvolvimento cultural do
ser humano (como mostra a história do desenvolvimento deles), são
inicialmente meios de ligação, meios de influenciar o outro. Todo
signo, se tomarmos sua procedência real, é um meio de ligação e,
poderíamos dizer de forma mais ampla, um meio de ligação entre
certas funções psíquicas de caráter social. Transferido para a pes­
soa, ele passa a ser um meio de unificar funções em si mesmo, e
podemos demonstrar que, sem o signo, o cérebro e as ligações ini­
ciais não podem vir a ser as relações complexas que elas se tornam
graças à linguagem.
Consequentemente, os meios de ligação sociais são os meios
fundamentais para a formação das ligações psicológicas complexas
que surgem quando essas funções se tornam funções individuais, mo­
dos de comportamento da própria pessoa.
Se subirmos mais um degrau, veremos ainda um caso interes­
sante de formação de tais ligações. Geralmente nós as observamos
em crianças, com maior frequência nos processos de brincadeira
(conforme os experimentos de N. G. Morózova),15 quando a criança
altera o significado do objeto. Tentarei explicar isso com um exem­
plo filogenético.
Se pegarmos um livro sobre o homem primitivo, encontrare­
mos exemplos desse tipo. A especificidade do pensamento do homem
primitivo frequentemente consiste em que nele são insuficientemente
desenvolvidas as funções que nós temos, ou certas funções não exis­
tem, ao passo que em nós, segundo o nosso ponto de vista, essas
funções estão dispostas de outra maneira. Um dos exemplos mais
vivos são as observações de Lévy-Bruhl (1930)16 sobre um cafre, a
quem um missionário sugeriu que enviasse o filho a uma escola mis­
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

sionária. A situação era extremamente complexa para o cafre e, por


não desejar rejeitar essa proposta diretamente, ele diz: “Verei isso
em sonho”.17Lévy-Bruhl observa de forma absolutamente correta que
temos diante de nós uma situação em que qualquer um responderia:
“Vou pensar”. Mas o cafre diz: “Verei isso em sonho”. O sonho de­
sempenha para ele a mesma função que o pensamento para nós. Vale
a pena nos determos nesse exemplo, pois as leis do sonho por si sós,
ao que parece, são as mesmas para o cafre e para nós.
Não temos fundamento para supor que o cérebro humano, do
ponto de vista biológico, tenha passado por uma evolução substancial
ao longo da história humana. Não temos fundamento para supor que
o cérebro do homem primitivo fosse diferente do nosso, que fosse
um cérebro incompleto ou tivesse uma estrutura biológica distinta da
nossa. Todas as pesquisas biológicas conduzem à ideia de que o ho­
mem primitivo que conhecemos é, em termos biológicos, plenamente
digno do título de ser humano. A evolução biológica do ser humano
foi concluída antes do início de seu desenvolvimento histórico. Uma
mistura grosseira dos conceitos de evolução biológica e desenvol­
vimento histórico seria uma tentativa de explicar a diferença entre
nosso pensamento e o pensamento do homem primitivo, supondo que
o homem primitivo está em outro nível de desenvolvimento biológico.
As leis do sonho são as mesmas, mas o papel que ele desempenha é
totalmente diferente, e vemos que essa diferença existe não apenas,
digamos, entre o cafre e nós, mas também entre nós e o romano;
ainda que em situações difíceis ele não diga “Verei isso em sonho”,
pois ele se encontrava em outro estágio do desenvolvimento humano
e resolvia as questões, segundo a expressão de Tácito18 “pela arma
e pela razão, e não pelo sonho, como uma mulher”, mas o romano
também acreditava no sonho; o sonho era para ele um signo, um
presságio; o romano não iniciava um negócio se tivesse um sonho
ruim relacionado a ele; para o romano o sonho estabelecia uma outra
relação estrutural com as demais funções.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Se tomarmos o neurótico freudiano, veremos outra vez umaj


nova relação com o sonho. É extraordinariamente interessante a ob-|
servação de um dos críticos de Freud de que a relação descoberta!
por Freud entre sonho e desejos sexuais, que é típica do neurótico, él
típica precisamente do neurótico “aqui e agora”. Para o neurótico, oj
sonho serve a seus desejos sexuais, mas isso não é uma regra geral. |
Trata-se de uma questão que deve ser mais estudada.
Se levarmos isso adiante, veremos que o sonho estabelece re~|
lações completamente novas com as funções próximas. Isso é obser-|
vado também em relação a uma série de outros processos. Vemos quej
inicialmente o pensamento é, segundo expressão de Espinosa, servo J
das paixões, e o ser humano, dotado de razão, é senhor das paixões.:
O exemplo do sonho do cafre tem um significado muito mais j
amplo do que apenas um caso de sonho; ele é aplicável à formação de |
uma série de sistemas psicológicos complexos.
Gostaria de chamar atenção dos senhores para uma conclusão j
fundamental. É notável que, no cafre, o novo sistema de comporta- J
mento surge de certas representações ideológicas, daquilo que Lévy-
-Bruhl e outros sociólogos e psicólogos franceses chamam de repre- j
sentações coletivas ligadas ao sonho. Não foi o cafre por si mesmo|
que, ao dar essa reposta, criou esse sistema; essa representação sobre:
o sonho é parte da ideologia da tribo à qual o cafre pertence. Essa i
relação com o sonho é característica deles, é assim que eles resol-1
vem questões complexas sobre guerra, paz etc. Aqui temos diante \
i

de nós um mecanismo psicológico que emerge diretamente de um ■


determinado sistema ideológico, de um significado ideológico atri- \
buido a certa função. Em uma série de pesquisas norte-americanas i
interessantes dedicadas a povos semiprimitivos, vemos que, à medida |
que eles começam a se familiarizar com a civilização europeia e re­
ceber objetos de uso europeu, eles passam a se interessar por eles e
valorizar as possibilidades que surgem com eles. Essas pesquisas mos-
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

tram que os primitivos inicialmente reagiram negativamente à leitura


de livros. Depois de terem recebido algumas ferramentas agrícolas
bastante simples e terem visto a ligação entre a leitura de livros e a
prática, eles passaram a valorizar as ocupações do homem branco.
A reavaliação do pensamento e do sonho tem como fonte não
o individual, mas o social, mas agora isso nos interessa sob outro
aspecto. Vemos que aqui se manifesta uma nova compreensão sobre
o sonho, extraída pela pessoa a partir do meio social no qual ela vive,
cria-se uma nova forma de comportamento intraindividual naquele
sistema, como o sonho do cafre.
Por um lado, é preciso observar a ligação de certos sistemas
novos não apenas com signos sociais, mas também com a ideologia e
com o significado que certa função psíquica adquire na consciência
das pessoas; por outro lado, o processo de surgimento de novas for­
mas de comportamento a partir de um novo conteúdo que a pessoa
extrai da ideologia do meio circundante. Esses são os dois aspectos
que nos serão necessários para as conclusões posteriores.

Se subirmos ainda mais um degrau no caminho do estudo dos


sistemas complexos e suas relações que são desconhecidas nos está­
gios iniciais do desenvolvimento e cujo surgimento é relativamente
tardio, chegaremos a um sistema bastante complexo de alterações
das ligações e surgimento de novas, as quais se realizam no acesso
ao desenvolvimento e à formação de um novo ser humano na idade
de transição. Até agora, a falha das nossas pesquisas consiste em que
nos limitamos à infância inicial e pouco nos interessamos pelos ado­
lescentes. Quando fui colocado diante da necessidade de estudar a
psicologia da idade de transição do ponto de vista das nossas pes­
quisas, fiquei impressionado com o nível dessa etapa em relação à
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

infância.19A essência do desenvolvimento psicológico consiste não no


crescimento posterior, mas na alteração das ligações.
Uma dificuldade excepcional para a psicologia da idade de
transição foi suscitada pela pesquisa sobre o pensamento do adoles­
cente. Na realidade, o adolescente de 14 a 16 anos pouco altera sua
linguagem no sentido do surgimento de formas fundamentalmente
novas em comparação com aquilo de que dispõe uma criança de 12
anos. Não observamos o que poderia explicar aquilo que ocorre no
pensamento do adolescente. Assim, a memória e a atenção na idade
de transição dificilmente oferecem algo de novo em relação à idade
escolar. Mas, se tomarmos, em particular, o material elaborado por
Leontiev (1931), veremos que é característico do adolescente a passa­
gem dessas funções para dentro. Aquilo que para o escolar é externo
no campo da memória lógica, da atenção voluntária, do pensamento'
torna-se interno no adolescente. As pesquisas confirmam que surge ■
aqui um novo aspecto. Vemos que a passagem para dentro ocorre
porque essas operações externas constituem uma fusão e uma sín-í
tese complexa com uma série de processos internos. Por sua lógica
interna, o processo não pode permanecer externo, sua relação com !
todas as outras funções passa a ser outra, forma-se um novo sistema,
ele se fortalece e se torna interno.
Darei um exemplo bastante simples: a memória e o pensa­
mento na idade de transição. Notamos aqui uma mudança interes­
sante (irei simplificar um pouco). Sabemos o papel colossal que a
memória tem no pensamento da criança antes d^ idade de transição.
Para ela, pensar significa, em grande medida, apoiar-se na memória.
A pesquisadora alemã C. Bühler20 estudou especificamente o pensa­
mento em crianças no momento em que elas resolvem determinada
tarefa e mostrou que, para as crianças cuja memória atingiu maior d<
senvolvimento, pensar significa recordar casos concretos. Lembremos
o exemplo clássico e imortal de Binet,21 seu experimento com duas
meninas. Quando ele pergunta o que é um bonde de tração animal e
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930) 193

recebe como resposta “É uma carruagem com assentos fofos, onde se


sentam muitas damas, o condutor faz ‘din’ etc.”.
Tomemos a idade de transição. Vemos que, para o adolescente,
lembrar significa pensar. Se o pensamento da criança pré-adolescente
se apoia na memória e pensar significa recordar, para o adolescente,
a memória se apoia fundamentalmente no pensamento: lembrar sig­
nifica antes de tudo buscar aquilo que é necessário em uma certa
seqüência lógica. É na idade de transição que observamos essa mu­
dança das funções, a alteração da relação entre elas, o papel de .lide­
rança do pensamento em todas as funções decisivas; por conseguinte,
o pensamento não é uma função entre outras, mas a função que re-
constrói e altera outros processos psicológicos.

Mantendo essa ordem de organização e partindo dos sistemas


psicológicos inferiores para a formação de uma ordem cada vez mais
elevada, chegamos aos sistemas que constituem a chave para todos
os processos de desenvolvimento e de desagregação: trata-se da for­
mação do conceito, uma função que amadurece completamente e se
define pela primeira vez na idade de transição.
Não será possível apresentar agora de forma algo completa a
teoria sobre o desenvolvimento psicológico do conceito, e devo dizer
que, na pesquisa psicológica, o conceito é (e este é o resultado de
nosso estudo) um sistema psicológico do mesmo tipo daqueles sobre
os quais eu falava.
Até agora a psicologia empírica tentou colocar como base da fun­
ção de formação de conceito uma determinada função - a abstração, a
atenção, a identificação de sinais da memória, a elaboração de certas
imagens - e partia da compreensão lógica de que toda função tem seu
análogo, sua representação no plano inferior: memória e memória lógica,
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

atenção imediata e atenção voluntária. O conceito era analisado como


uma imagem modificada, reelaborada, livre de seus elementos particula­
res, uma compreensão lapidada. Galton22 comparou o mecanismo dos
conceitos com uma fotografia coletiva, quando uma série de rostos é fo­
tografada em uma mesma chapa: os traços semelhantes são enfatizados,
os traços fortuitos disfarçam uns aos outros.

Para a lógica formal, o conceito é um conjunto de sinais iden­


tificados em uma série e acentuados em seus aspectos coincidentes.
Por exemplo, se tomarmos os conceitos mais simples - Napoleão, fran­
cês, europeu, ser humano, animal, ser etc. - chegamos a uma série
de conceitos cada vez mais gerais e cada vez mais pobres em termos
da quantidade de sinais concretos. O conceito “Napoleão” é infinita­
mente mais rico em conteúdo concreto. O conceito “francês” já é muito
mais pobre: nem tudo o que se refere a Napoleão está relacionado a
francês. O conceito “ser humano” é ainda mais pobre, e assim por
diante. A lógica formal analisa o conceito como um conjunto de sinais
de um objeto separado de um grupo, um conjunto de sinais gerais. Daí
o conceito surgir em decorrência do amortecimento dos nossos conhe­
cimentos sobre o objeto. A lógica dialética mostrou que o conceito não
é um esquema formal, um conjunto de sinais abstraídos do objeto, ele
confere um conhecimento muito mais rico e completo sobre o objeto.
Uma série de pesquisas psicológicas, em particular as nossas,
leva-nos a uma colocação absolutamente nova do problema da forma­
ção de conceitos na psicologia. A questão é de que forma o conceito,
ao se tornar mais geral, ou seja, ao se referir a uma quantidade cada
vez maior de objetos, torna-se mais rico e não mais pobre em termos
de conteúdo, como pensa a lógica formal; essa questão recebe uma
resposta inesperada nas pesquisas e é confirmada na análise do de­
senvolvimento de conceitos em seu corte genético em comparação
com formas mais primitivas do nosso pensamento. As pesquisas mos­
traram que, quando o sujeito resolve uma tarefa com a formação de
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

novos conceitos, a essência do processo que ocorre então consiste no


estabelecimento de relações; quando o sujeito associa ao objeto uma
série de outros objetos, ele procura a ligação entre eles. Ele não se
afasta, como em uma fotografia coletiva, para o pano de fundo dos
sinais; ao contrário, qualquer tentativa de resolver a tarefa consiste
na formação de ligações, e nosso conhecimento sobre o objeto se
enriquece, pois o estudamos em relação com outros objetos.
Darei um exemplo. Comparemos uma imagem direta de um
nove, por exemplo, as figuras em um baralho de cartas e o número 9.
O nove do baralho é mais rico e concreto do que nosso conceito de
“9”, mas o conceito de “9” contém em si uma série de juízos que não
existem no nove do baralho; “9” não é divisível por números pares,
é divisível por 3, é igual a 32, é a raiz quadrada de 81; ligamos o “9”
a uma série de numerais inteiros etc. Assim, compreende-se que, se
o processo de formação do conceito, do ponto de vista psicológico,
consiste na descoberta das relações de dado objeto com uma série de
outros, na identificação de uma totalidade real, no conceito desenvol­
vido descobrimos todo seu conjunto de relações e, se é que se pode
dizê-lo, seu lugar no mundo. O “9” é um ponto determinado em toda
teoria dos números e com possibilidade de movimento e combinação
infinitas, sempre sujeitas a uma lei geral. Dois aspectos chamam a
nossa atenção: em primeiro lugar, o conceito se encerra não na fo­
tografia coletiva, não na eliminação de traços individuais do objeto,
mas em que o objeto é conhecido em suas relações, em suas ligações,
e, em segundo lugar, o objeto no conceito não é uma imagem modifi­
cada, mas, como mostram as pesquisas psicológicas contemporâneas,
uma predisposição a uma série de juízos. Um psicólogo faz a seguinte
comparação: “Quando me dizem ‘mamífero’, a que isso corresponde
psicologicamente?”. Isso corresponde à possibilidade de desenvolver
um pensamento e, no limite, uma visão de mundo, pois encontrar o
lugar do mamífero no reino animal, o lugar do animal no mundo da
natureza, representa toda uma visão de mundo.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Vimos que o conceito é um sistema de juízos colocados em


uma certa ligação regular: quando operamos por meio de conceitos
isolados, toda a essência consiste em que operamos por meio de um'
sistema como um todo.

Piaget (1932) apresentou a crianças de 10 a 12 anos a tarefa


de combinar dois sinais simultaneamente, animais que têm orelhas
compridas e rabo curto ou orelhas curtas e rabo comprido. A criança"
resolve a tarefa tendo em seu campo de atenção apenas um sinal.
Ela não consegue operar por meio de conceitos como um sistema;
ela domina todos os sinais que integram o conceito, mas, separada­
mente, não domina a síntese pela qual o conceito age como um sis­
tema único. Nesse sentido, parece-me extraordinária a observação
de Lênin sobre Hegel,23 quando ele diz que o fato mais simples de
generalização contém em si uma certeza ainda não consciente sobre
a regularidade do mundo exterior. Quando realizamos a mais simples
generalização, tomamos consciência das coisas não como existentes
em si mesmas, mas em ligações regulares, subordinadas a certa lei
(Obra completa reunida, v. 29, pp. 160-161). Não será possível elabo­
rar agora o problema absolutamente fascinante e de significado cen­
tral para a psicologia contemporânea sobre a formação de conceitos.

Somente na idade de transição ocorre a formalização definitiva


dessa função, e a criança passa de um outro sistema de pensamento,
das ligações por complexos, para o pensamento por conceitos. Pode­
mos nos perguntar: o que distingue o complexo da criança? Antes
de tudo, o sistema de complexos é um sistema de ligações e relações
concretas organizadas em relação ao objeto, que se baseia fundamen­
talmente na memória. O conceito é um sistema de juízos que traz em
si uma relação com todo um sistema mais amplo. A idade de transi­
ção é a idade de formação da visão de mundo e da personalidade,
de emergência da autoconsciência e de representações coerentes do
mundo. A base para isso é o pensamento por conceitos, e, para nós,
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

toda experiência da humanidade cultural contemporánea, o mundo


exterior, a realidade exterior e nossa realidade interna são dados em
um certo sistema de conceitos. Nos conceitos encontramos a união
entre forma e conteúdo, sobre a qual falei antes.
Pensar por conceitos significa dominar certo sistema pronto,
certa forma de pensamento, que não predetermina absolutamente o
conteúdo ulterior a que se chegará. Tanto H. Bergson24 quanto um ma­
terialista pensam em conceitos, ambos dominam essa mesma forma de
pensamento, embora cheguem a conclusões diametralmente opostas.

Justamente na idade de transição ocorre a formação defini­


tiva de todos os sistemas. Isso se torna mais claro quando passamos
àquilo que, para o psicólogo, pode ser, em certo sentido, a chave para
a idade de transição e para a psicologia da esquizofrenia.
Busemann25 estabeleceu uma distinção muito interessante na
psicologia da idade de transição. Ela diz respeito aos três tipos de liga­
ção existentes entre as funções psicológicas. As ligações primárias são
hereditárias. Ninguém haverá de negar que existem ligações imediatas
modificadas entre certas funções, tal é o sistema, digamos, constitu­
cional das relações entre mecanismos emocionais e intelectuais. Um
outro sistema de ligações são as estabelecidas, isto é, as relações que
se estabelecem no processo de encontro entre fatores internos e exter­
nos, ligações que me são impostas pelo meio; sabemos que é possível
dar uma criação selvagem, cruel ou sentimental para a criança. Essas
são ligações secundárias. Por fim, as ligações terciárias se formam na
idade de transição e caracterizam efetivamente a personalidade no
plano genético e diferencial. Essas ligações são formadas com base
na autoconsciência. Relaciona-se a isso o já mencionado mecanismo
do “sonho do cafre”. Quando conscientemente ligamos certa função
a outras, de tal forma que elas constituem um sistema único de com­
portamento, isso se dá com base no fato de que tomamos consciência
de nosso sonho, de nossa relação com ele.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Para Busemann, a diferença fundamental entre a criança e o


adolescente é a seguinte: para a criança é característico apenas um
plano psicológico de ação direta; para o adolescente é característica
a autoconsciência, a capacidade de se relacionar consigo mesmo de
fora, a reflexão, capacidade não apenas de pensar, mas também de
tomar consciência do fundamento do pensamento.
O problema da esquizofrenia e o da idade de transição fo­
ram reiteradamente aproximados: a própria denominação dementia
praecox26 indica isso. E embora na terminologia clínica isso tenha
perdido seu significado inicial, mesmo os autores contemporâneos
como Kretschmer,27 na Alemanha, e Blónski,28 aqui, defendem a
ideia de que a idade de transição e a esquizofrenia são chaves uma
da outra. Isso se dá com base na aproximação exterior, pois todos
os traços que caracterizam a idade de transição são observados
também na esquizofrenia.
Aquilo que na idade de transição existe como traços vagos,
na patologia é levado ao extremo. Kretschmer (1924) é ainda mais.
ousado: um processo impetuoso de amadurecimento sexual do ponto
de vista psicológico não se distingue de um processo esquizofrênico'
leve. Do ponto de vista exterior, há uma dose de verdade nisso, mas
a própria colocação da questão me parece falsa, bem como as con­
clusões a que chegam os autores. Mediante o estudo da psicologia da
esquizofrenia, tais conclusões não se sustentam.
Na realidade, a esquizofrenia e a idade de transição estão em
relação inversa. Na esquizofrenia, observamos a desagregação das
funções que estão sendo construídas na idade de transição e, apesar
de se encontrarem a certa altura, o movimento delas é absolutamente
inverso. Na esquizofrenia temos, do ponto de vista psicológico, um
quadro enigmático, e mesmo entre os melhores clínicos contempo­
râneos não encontramos uma explicação para o mecanismo da for­
mação do sintoma; não é possível mostrar por qual caminho esses
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

sintomas emergem. Os debates entre clínicos versam sobre o que é do­


minante: o embotamento afetivo ou a diásquise, proposta por Bleuler29
(o que serviu de base para a denominação da esquizofrenia). Con­
tudo, o cerne da questão consiste aqui menos nas alterações intelec­
tuais e afetivas do que nas ligações violadas que existem.
A esquizofrenia oferece uma enorme riqueza de material so­
bre o tema em questão. Tentarei apresentar o mais importante e
mostrar que todas as variadas formas de manifestação da esquizo­
frenia decorrem de uma mesma fonte, elas têm em sua base certo
processo interno capaz de explicar o mecanismo da esquizofrenia.
No esquizofrênico desagrega-se, antes de tudo, a função de formação
de conceitos, apenas em seguida começam as estranhezas. O esqui­
zofrênico se caracteriza por embotamento afetivo; o esquizofrênico
muda sua relação com a esposa amada, com seus pais, com seus
filhos. A descrição clássica é de embotamento com irritabilidade no
outro polo, ausência de quaisquer impulsos e, não obstante, como
observa corretamente Bleuler, um aguçamento incomum da vida afe­
tiva. Quando a esquizofrenia é ligada a algum outro processo, por
exemplo a arteriosclerose, o quadro clínico se altera radicalmente, a
esclerose não enriquece as emoções do esquizofrênico, apenas altera
suas manifestações principais.
Em caso de embotamento afetivo, empobrecimento da vida
emocional, todo o pensamento do esquizofrênico começa a ser de­
terminado apenas por afetos (como observa Storch).30 Trata-se do
mesmo distúrbio, uma alteração da correlação entre a vida intelec­
tual e a afetiva. A teoria mais clara e brilhante das alterações pato­
lógicas da vida afetiva foi desenvolvida por Blondel.31 O cerne dessa
teoria consiste mais ou menos no seguinte: no processo psicológico
adoecido (especialmente onde não há debilidade mental) que avança
para o primeiro plano, ocorre antes de tudo a desagregação dos sis­
temas complexos que foram adquiridos como resultado da vida cole­
tiva, a desagregação dos sistemas que se formam mais tardiamente.
200 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

As representações, os sentimentos: tudo permanece inalterado, masí


perde as funções que desempenhavam no sistema complexo. Assim,
se, para o cafre, o sonho estabeleceu novas relações com o compor­
tamento ulterior, esse sistema se desagrega e surge o transtorno,
formas incomuns de comportamento. Em outras palavras, a primeira
coisa que chama a atenção em caso de desagregação psicológica na
clínica psiquiátrica é a desagregação dos sistemas que, por um lado,-
se formaram mais tarde e, por outro, constituem sistemas de proce-
dência social.

Isso é especialmente visível na esquizofrenia, que é enigmática


considerando que, do ponto de vista formal, as funções psíquicas es-,
tão preservadas: a memória, a capacidade de orientação, a percepção
e a atenção não apresentam alterações. Está preservada a capacidad
de orientação, e, se perguntarmos habilmente a um paciente em delí­
rio que diz estar em um palácio, veremos que ele sabe perfeitamente
onde ele está, de forma efetiva, na realidade. A preservação das fun­
ções formais por si só e a desagregação do sistema que surge nesse
contexto são o que caracteriza a esquizofrenia. Partindo disso, Blon-
del fala em transtorno afetivo do esquizofrênico.

O pensamento que nos é imposto pelo meio circundante com o


sistema de conceitos também abarca nossos sentimentos. Não apenas
sentimos, tomamos consciência do sentimento como sendo ciúme,
fúria, ofensa, ultraje. Se falamos que desprezamos uma pessoa, a de­
nominação dos sentimentos já os altera; com efeito, eles estabelecem •
certa relação com nosso pensamento; em nós ocorre algo semelhante
ao que acontece com a memória quando ela se torna parte interna do
processo de pensamento e passa a ser chamada de memória lógica.;
Da mesma forma que é impossível delimitar onde termina a percep­
ção da superfície e onde começa a compreensão de determinado ob­
jeto (na percepção estão sintetizadas, dadas em fusão, as particulari­
dades estruturais do campo visual junto com a memória), igualmente
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930) 201

em nossos afetos não sentimos ciúme em forma pura, sem tomarmos


consciência de ligações expressas em conceitos.
A teoria fundamental de Espinosa (1911 )32 é a seguinte: ele era
um determinista e, diferentemente dos estoicos, afirmava que o ser
humano tem poder sobre os afetos, que a razão pode alterar a ordem
e as ligações das paixões e colocá-las em conformidade com uma or­
dem e com ligações que são dadas pela razão. Espinosa expressou
uma relação genética correta. No processo de desenvolvimento onto­
genético, as emoções humanas estabelecem ligações com orientações
gerais tanto em relação à autoconsciência da personalidade quanto
em relação à consciência da realidade. Meu desprezo por outra pes­
soa estabelece uma relação com a apreciação dessa pessoa, com sua
compreensão. E é nessa síntese complexa que a nossa vida decorre. O
desenvolvimento histórico dos afetos ou das emoções consiste, funda­
mentalmente, em que as ligações primárias, nas quais eles são dados,
se alteram e novas ordens e ligações surgem.
Dissemos que Espinosa estava correto ao afirmar que o conheci­
mento do nosso afeto o altera e o converte de estado passivo em ativo.
O fato de que penso coisas que estão fora de mim não altera nada nelas,
mas o fato de que penso nos afetos, coloco-os em outras relações para
com o meu intelecto e outras instâncias, altera muito da minha vida psí­
quica. Dito de modo mais simples, nossos afetos agem em um sistema
complexo com nossos conceitos, e quem não sabe que o ciúme de um
sujeito ligado a conceitos maometanos sobre a fidelidade da mulher e
de um sujeito que está ligado a um sistema de representações opostas
sobre a fidelidade da mulher são diferentes?; quem não compreende
que esse sentimento é histórico, que ele se altera fundamentalmente em
meios ideológicos e psicológicos distintos, embora se mantenha certo
radical biológico, com base no qual essa emoção surge?
Assim, as emoções complexas aparecem apenas historicamente
e constituem uma combinação de relações que emergem das condi­
202 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

ções da vida histórica, e no processo de desenvolvimento das emoções


ocorre essa fusão. Essa representação está na base da teoria acerca
do que ocorre no caso da degradação patológica da consciência. Aqu1
ocorre uma degradação desses sistemas, daí decorre o embotamento
afetivo do esquizofrênico. Quando se diz ao esquizofrênico: “Que
vergonha, isso é coisa de gente canalha”, ele se mantém absolut:
mente frio, para ele isso não é uma grande ofensa. Seus afetos se
separaram e agem de forma separada desse sistema. Também é típica
do esquizofrênico a relação inversa: os afetos começam a alterar seu
pensamento, ele é um pensamento que serve a interesses e necessida­
des emocionais.
Para terminar com o assunto da esquizofrenia, gostaria de di­
zer que, assim como as funções que se formam na idade de transição,
essas funções, cuja síntese é observada na idade de transição, se de­
sagregam na esquizofrenia; desagregam-se aqui sistemas complexos,'
afetos retornam ao seu estado primitivo inicial, perdem a ligação com
o pensamento e a pessoa não consegue sentir esses afetos por meio do
conceito. Até certo grau há um retorno ao estado existente nos estágios
mais iniciais do desenvolvimento, quando é muito difícil se aproximar
de determinado afeto. Ofender uma criança de pouca idade é muito,
fácil, mas ofendê-la mostrando que pessoas decentes não se comportam -,
de determinada forma é muito difícil. O caminho aqui é absolutamente,
distinto do que em nós; a mesma coisa acontece na esquizofrenia.
Para resumir tudo isso, gostaria de dizer o seguinte: o estudo
dos sistemas e do destino deles é instrutivo não apenas para o desen­
volvimento e para a estrutura dos processos psíquicos, como também
para os processos de desagregação observados na clínica psiquiátrica
e que aparecem sem que haja uma queda brusca de certas funções,
por exemplo, a função da fala entre afásicos: isso se explica pelo fato
de que tais distúrbios graves podem ocorrer em caso de distúrbios
leves do cérebro; isso explica o paradoxo da psicologia de que, em
caso de tabes dorsal e de alterações orgânicas de todo o cérebro,
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930) 203

observamos alterações psicológicas insignificantes, mas em caso de


esquizofrenia e psicose reativa há uma confusão completa do compor­
tamento do ponto de vista do comportamento de um sujeito adulto. A
chave para o entendimento aqui é a compreensão dos sistemas psico­
lógicos que surgem não imediatamente a partir das ligações das fun­
ções, do modo como elas são dadas no desenvolvimento do cérebro,
mas a partir dos sistemas sobre os quais falamos anteriormente. E tais
manifestações psicológicas de esquizofrenia, como o embotamento
afetivo, a desagregação intelectual ou a irascibilidade, encontram sua
explicação única, sua ligação estrutural.
Gostaria de encerrar com o seguinte: um dos três sinais car­
dinais da esquizofrenia é a alteração caracterológica que consiste na
separação do meio social. O esquizofrênico se torna mais fechado e
a condição mais extrema disso é o autismo. Todos os sistemas de que
falamos, sistemas de procedência social, encerram-se em uma relação
social consigo mesmos, como dissemos anteriormente, caracterizam-se
pela transferência de relações coletivas para dentro da personalidade.
O esquizofrênico que perde suas relações sociais com as pessoas cir­
cundantes perde a relação social consigo mesmo. Como bem disse um
dos clínicos, sem elevar isso a um nível teórico, o esquizofrênico não
apenas para de compreender e falar com o outro, ele deixa de dirigir-
-se a si mesmo por meio da linguagem. A desagregação dos sistemas
socialmente estruturados da personalidade é o outro lado da desagre­
gação das relações externas, que são relações interpsicológicas.

Irei me deter ainda em duas questões.


A primeira delas diz respeito à conclusão, de extrema impor­
tância para nós, que pode ser tirada em relação a tudo o que foi dito
sobre os sistemas psicológicos e o cérebro. Devo rejeitar as ideias
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

desenvolvidas por K. Goldstein e A. Gelb33 de que qualquer função


psicológica superior tem uma correlação fisiológica direta em uma
função, que é construída exatamente da mesma forma tanto em seu
aspecto fisiológico quanto em sua parte psicológica. Contudo, inicial­
mente, irei explanar esse pensamento. Goldstein e Gelb dizem que
o afásico tem um distúrbio na função do pensamento por conceitos,
que corresponde à função fisiológica básica. Já aqui Goldstein e Gelb
caem em profunda contradição consigo mesmos quando antes, no
mesmo livro, eles afirmam que o afásico retornaria ao sistema de
pensamento que é característico do homem primitivo. Se o afásico
tem prejuízo na função fisiológica básica e ele retorna ao nível de
pensamento em que o homem primitivo se encontra, devemos con­
cluir que o primitivo não tem aquela função fisiológica básica que te­
mos. Isso quer dizer que, sem uma alteração morfológica da estrutura
do cérebro, surge aqui uma nova função básica, que não existe nos
níveis primitivos de desenvolvimento. Onde poderíamos encontrar
fundamento para supor que em alguns milhares de anos surgiu essa
reformulação radical do cérebro humano? Já na teoria de Golsdtein
e Gelb nos deparamos com uma dificuldade insuperável. Mas ela tem
sua verdade, que consiste em que cada sistema psicológico complexo,
seja o sonho do cafre, o conceito, a autoconsciência da personalidade, ,
todas essas noções são, no final das contas, produtos de uma deter­
minada estrutura cerebral. Não há nada que esteja desconectado do
cérebro. A questão é: o que corresponde fisiológicamente no cérebro
ao pensamento por conceitos?
Para explicar como isso surge no cérebro, basta admitir que ele
tem condições e possibilidades de combinar funções, fazer uma nova :
síntese, novos sistemas, que não devem estar fixados estruturalmente
de antemão; penso que toda neurologia contemporânea nos obriga a
pressupor isso. Cada vez mais estamos vendo a infinita diversidade
e incompletude das funções cerebrais. É muito mais correto admi­
tir que o cérebro oferece enormes possibilidades para o surgimento
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

de novos sistemas. Esse é o pressuposto fundamental. Ele permite a


questão que se coloca em relação aos trabalhos de L. Lévy-Bruhl. Na
última discussão realizada na sociedade francesa de filosofia, Lévy-
Bruhl disse que o primitivo pensa de modo diferente de nós. Será que
isso significa que o cérebro dele é diferente do nosso? Será preciso
admitir que o cérebro, em decorrência de uma nova função, alterou-se
biologicamente ou, ainda, que o espírito faz uso do cérebro apenas
como ferramenta, e, portanto, se uma ferramenta tem muitos usos,
isso quer dizer que o que se desenvolve é o espírito e não o cérebro?
Na realidade, parece-me que, ao introduzirmos o conceito de
sistema psicológico da forma como fizemos, temos a possibilidade de
compreender perfeitamente as reais ligações, as reais relações com­
plexas existentes aqui.
Até certo ponto, isso está ligado a um dos problemas mais
difíceis, isto é, o problema da localização dos sistemas psicológicos
superiores. Até o momento, ele tem sido resolvido de duas formas.
O primeiro ponto de vista examina o cérebro como uma massa uni­
forme e se recusa a reconhecer que cada parte tem valores distintos
e desempenha papéis diferentes na construção das funções psicoló­
gicas. Esse ponto de vista é evidentemente inconsistente. Por isso,
a seguir as funções passaram a ser deduzidas de partes do cérebro,
distinguindo-se, por exemplo, um campo prático etc. Os campos estão
ligados entre si, e aquilo que observamos nos processos psíquicos é
a atividade conjunta de diferentes campos. Sem dúvida, essa com­
preensão é mais correta. Temos uma colaboração complexa de uma
série de zonas. O substrato cerebral dos processos psíquicos não são
as partes isoladas, mas os sistemas complexos de todo o aparato cere­
bral. Contudo, a questão consiste no seguinte: se esse sistema é dado
de antemão na própria estrutura do cérebro, ou seja, se ele se esgota
nas ligações existentes no cérebro entre cada uma de suas partes,
devemos supor que, na estrutura do cérebro, estão dadas de antemão
as ligações a partir das quais o conceito surge. Se admitirmos que
206 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

aqui são possíveis ligações mais complexas e não dadas de antemão,


imediatamente levamos essa questão a um outro plano.
Permitam-me esclarecer isso por meio de um esquema, ainda
que muito grosseiro. Na personalidade, unem-se formas de compor­
tamento que antes eram compartilhadas entre duas pessoas: ordem e
execução; antes elas se originavam de dois cérebros, um agia sobre o
outro, digamos, mediante a ajuda da palavra. Quando elas se unem
em um cérebro temos o seguinte quadro: o ponto A no cérebro não
pode alcançar o ponto B por meio de uma linha reta, eles não estão
naturalmente ligados. As possíveis ligações entre partes isoladas do
cérebro são estabelecidas pelo sistema nervoso periférico.
Partindo dessa compreensão, podemos compreender uma sé­
rie de fatos patológicos. Trata-se aqui, antes de tudo, de fatos em que
um paciente com lesão nos sistemas cerebrais não tem condições
de fazer algo diretamente, mas consegue executar se falar para si
mesmo. Observamos um quadro clínico semelhante em pacientes
com Parkinson. Eles não conseguem dar um passo; mas, se você
diz a esse paciente “Dê um passo” ou se cola um pedaço de papel
no chão, ele consegue. Todos sabem que pacientes com Parkinson
sobem bem uma escada, mas caminham mal numa superfície plana.
Para levar o paciente ao laboratório, faz-se necessário colocar no
chão uma série de papéis. Ele quer caminhar, mas não consegue agir
sobre seu sistema motor, ele tem um distúrbio nesse sistema. Por que
o paciente com Parkinson consegue andar quando pedaços de papel
são colocados no chão? Há duas explicações para isso. Uma delas
foi dada por I. D. Sapir:34 o paciente com Parkinson quer levantar a
mão quando alguém pede a ele que o faça, mas esse impulso não é
suficiente; quando o pedido é associado a outro impulso (visual), ele
consegue. O impulso adicional age com o principal. É possível com­
preender o quadro de outra forma. Há um distúrbio no sistema que
permite a ele erguer a mão. Mas ele pode ligar um ponto do cérebro
a outro por meio de um signo externo.
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

Parece-me que a segunda hipótese relativa ao movimento em


pacientes com Parkinson é correta. O paciente com Parkinson esta­
belece uma relação entre um ponto e outro de seu cérebro por meio
de um signo, agindo sobre si mesmo a partir da periferia. Uma con­
firmação disso são os experimentos com esgotamento em pacientes
com Parkinson. Se a questão fosse apenas esgotar o paciente com
Parkinson até o final, o efeito adicional do estímulo deveria aumentar
ou, em todo caso, igualar-se ao repouso, à recuperação, e desempe­
nhar o papel de estímulo externo. Um dos primeiros autores russos
a ter descrito o mal de Parkinson apontou para o fato de que o mais
importante para o paciente é o volume do estímulo (tambor, música),
porém pesquisas posteriores mostraram que não é assim. Não quero
dizer que é exatamente isso que ocorre com o paciente de Parkinson,
basta chegar à conclusão de que isso é possível por princípio, e, em
caso de desagregação, observamos, a cada passo, que esse sistema é
efetivamente possível.
Cada um dos sistemas mencionados passa por três etapas. Pri­
meiro, uma etapa interpsicológica: eu ordeno, você executa; em se­
guida, uma extrapsicológica: começo a falar comigo mesmo; depois,
uma intrapsicológica: dois pontos do cérebro que são estimulados
externamente têm a tendência de agir em um sistema único e se trans­
formam em um ponto intracortical.
Peço licença para tratar brevemente do destino posterior des­
ses sistemas. Gostaria de indicar que, num recorte psicológico dife­
rencial, uma pessoa não se diferencia de outra pelo fato de ter um
pouco mais de atenção; a distinção de caráter essencial e de impor­
tância prática na vida social das pessoas está nas estruturas, relações
e ligações que temos entre cada ponto. Gostaria de dizer que não é a
memória ou a atenção que tem um significado decisivo, mas o quanto
a pessoa usa dessa memória, qual papel ela desempenha. Vimos que
o sonho pode desempenhar um papel central para o cafre. Para nós,
o sonho é um parasita da vida psicológica, que não desempenha ne-
208 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

nhum papel essencial. O mesmo vale para o pensamento. Quantas


mentes inférteis ficam em ponto morto, quantas mentes pensam, mas
não estão absolutamente inseridas na ação! Qualquer um consegue1
se lembrar de situações em que sabemos como devemos agir, ma:
fazemos outra coisa. Gostaria de apontar que aqui existem três pla­
nos extremamente importantes. O primeiro é o plano psicológico
de classe. Gostaria de comparar um operário e um burguês. Não se
trata, como pensou W. Sombart,35 que o principal para o burguês é a
ganância, que se cria uma seleção biológica de pessoas gananciosas
para as quais o mais importante é a avareza e o acúmulo. Admito que
pode haver muitos operários mais avarentos do que um burguês. A
essência da questão reside não em deduzir um papel social a partir
do caráter, mas em que, a partir de um papel social, é criada uma
série de ligações de caráter. O tipo social e de classe de uma pesso~
se forma a partir dos sistemas que são introduzidos na pessoa de fora,
sistemas de relações sociais entre pessoas que se transferem para a
personalidade. Com base nisso, são feitas as pesquisas professiográ-
ficas dos processos de trabalho, isto é, cada profissão exige um certo
sistema de ligações. Para o maquinista, por exemplo, é realmente im­
portante não apenas ter mais atenção do que uma pessoa comum,
como também saber usar essa atenção corretamente; é importante
que a atenção ocupe um certo lugar, que ela pode não ocupar, por
exemplo, para um escritor e assim por diante.
Finalmente, em termos diferenciais e de caráter, é necessário
diferenciar as ligações de caráter primordiais, que conferem certa
proporção, por exemplo, na constituição esquizoide ou cicloide,36
das ligações que emergem de modo totalmente distinto e que diferen­
ciam uma pessoa honesta de uma desonesta, uma pessoa verdadeira
de uma falsa, um sonhador de uma pessoa prática; tais ligações que­
rem dizer não que uma pessoa tem mais ou menos correção do que
outra, ou que minta mais ou menos que outra, mas que surge um sis­
tema de relações entre cada uma das funções, que se forma na onto-
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930) 209

gênese. K. Lewin37 está correto ao dizer que a formação dos sistemas


psicológicos coincide com o desenvolvimento da personalidade. Nos
casos mais elevados, nos quais há personalidades eticamente mais
aperfeiçoadas com uma vida espiritual mais bela, estamos diante do
surgimento de um sistema em que todas as coisas estão correlacio­
nadas. Espinosa tem uma teoria (apresento-a de forma ligeiramente
alterada): a alma pode chegar a tal ponto que todas as manifestações,
todos os estados se relacionem a um objetivo; aqui pode surgir um
sistema com um único centro, uma concentração máxima do com­
portamento humano. Para Espinosa a ideia única é a ideia de Deus
ou natureza. Em termos psicológicos isso não é absolutamente ne­
cessário. Mas o ser humano pode de fato trazer para o sistema não
apenas cada função isoladamente, como criar um centro único para
todo o sistema. Espinosa mostrou esse sistema no plano filosófico;
há pessoas cujas vidas são um modelo de submissão a um objetivo,
que são a prova prática de que isso é possível. Diante da psicologia,
coloca-se a tarefa de mostrar esse tipo de emergência de um sistema
único como verdade científica.
Gostaria de encerrar indicando mais uma vez que apresentei
uma escadaria de fatos, ainda que dispersos, mas todos seguem um
percurso de baixo para cima. Todas as considerações teóricas foram
praticamente ignoradas. Parece-me que nossos trabalhos iluminam
esse ponto de vista e o colocam no lugar. Não tenho forças teóri­
cas para reunir tudo isso. Apresentei uma escadaria bastante grande,
mas, no que diz respeito a uma ideia que capta tudo isso, apresen­
tei apenas um pensamento geral. Hoje gostaria de esclarecer se esse
pensamento geral, que acalentei durante alguns anos, mas ainda não
tinha expressado até o fim, pode ser confirmado factualmente. Nossa
próxima tarefa é esclarecer isso de forma mais prática e detalhada.
Com base nos fatos citados, gostaria de apresentar minha convicção
fundamental que consiste em que toda a questão não está apenas nas
alterações dentro das funções, mas também nas alterações das liga­
210 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

ções e das formas infinitamente variadas de movimento que surgem


daí; em que novas sínteses surgem em determinado estágio do desen­
volvimento, novas funções centrais, novas formas de ligação entre
elas, e o que deve nos interessar são os sistemas e o destino deles.
Parece-me que os sistemas e o destino deles, essas duas palavras, de­
vem ser o alfa e o ômega de nosso trabalho futuro.

Notas da tradução

1. Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) foi um poeta, pensador e teórico


da natureza alemão. Um de seus temas de pesquisa foi a percepção visual.

2. Sinônimo de “adolescência” como transição entre infância e vida adulta.

3. No texto original, há uma nota de rodapé indicando que essa é a pal


vra que aparece no estenograma (razmeriénie, medida). A tradução para?
o inglês (em Vygotsky’s Collected Works, vol. 1) traz uma nota indicando a
alteração do termo por “divisão” (mzdeliénie).

4. Kurt Goldstein (1878-1964) foi um neurologista e autor da psicologia


alemã, que também contribuiu com a biologia e psiquiatria. Foi próximo
da psicologia da Gestalt e da fenomenología, tornando-se um dos principais
expoentes de uma neurologia “holística” no plano internacional. Descreveu
diversas síndromes neurológicas, sendo, junto de Gelb, presença recorrente
nas obras do Círculo de Vigotski.

5. Wolfgang Kõhler (1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1941) foram, junto de Max


Wertheimer (1880-1943), fundadores da psicologia da Gestalt, elaborada pri­
meiramente na Alemanha e desenvolvida posteriormente nos Estados Unidos.
t

6. Sobre Karl Bühler e a Escola de Wüzburg, ver nota 9 do texto 1.


7. Erich Jaensch (1883-1940) foi um psicólogo alemão. Conhecido por seus
trabalhos no estudo do eidetismo, isto é, teoria de imagens visuais subje­
tivas que são observadas em crianças e adolescentes em determinada fase
do seu desenvolvimento, e que, excepcionalmente, podem persistir entre
adultos. Tais imagens foram descritas em 1907 por Urbantschitsch. Vigot­
ski publicou um capítulo de livro sobre esse tema em 1930 e faz a crítica a
Jaensch no texto 7 desta coletânea.
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930) 211

8. Como é próprio de suas conferências (a maioria não revisada por ele para
publicação), Vigotski não traz referências precisas, mas o autor e seu Cír­
culo de pesquisadores realizaram diversos experimentos sobre as funções
psíquicas superiores ou voluntárias, particularmente, ao longo dos anos
1920 (ver Vigotski, L. S. (2021). Historia do desenvolvimento das funções
mentais superiores. Martins Fontes).

9. Ver nota 2 do texto 2.

10. Referência ao neurologista austríaco Otto Põtzl (1877-1962).

11. Aleksei Nikoláievitch Leontiev (1903-1979) foi um psicólogo soviético. Co­


laborador de Vigotski no Instituto de Psicologia Experimental de Moscou.
Sob orientação de Vigotski, conduziu importante pesquisa sobre o desen­
volvimento da memória nos anos 1920, ainda que divergências teóricas os
afastassem nos anos 1930, e, posteriormente, levassem Leontiev a desen­
volver sua teoria da atividade, após influente artigo de Rubinstein com ideia
para uma nova teoria marxista em 1934.

12. Leonid Vladímirovitch Zankov (1901-1977) foi defectólogo e psicólogo. Um


dos colaboradores mais próximos de Vigotski, trabalhou no Instituto de Defec-
tologia de Moscou, onde conduziu grande número de pesquisas com portado­
res de deficiências. Nos anos 1920, estudou reações dominantes. Teceu críticas
a trabalhos de A. N. Leontiev, com quem teria estabelecido uma tensa relação.

13. Jean Piaget (1896-1980), psicólogo suíço. Autor de muitos trabalhos ex­
perimentais e teóricos no campo da psicologia infantil e genética, embora
considerasse ter criado uma nova ciência, a epistemología genética, cujo
objeto era a passagem dos estados inferiores do conhecimento aos estados
mais complexos ou rigorosos.

14. Karl Groos (1861-1946) foi um psicólogo alemão. Seus principais trabalhos
são no campo da psicologia genética. Famoso autor da teoria sobre a natu­
reza e desenvolvimento do jogo infantil.

15. Natalia Grigorievna Morózova (1906-1989), defectóloga soviética e aluna


de Vigotski. Com Zaporójets, Bojóvitch, Levina, Morózova e Slávina, ela
teria constituído a piatiórka (“o quinteto”).

16. Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939), filósofo, sociólogo e etnógrafo francês.

17. Exemplo recorrente em Vigotski, sem qualquer conotação pejorativa sobre


os povos bantos. Com ele, o autor tenciona ilustrar como as diferenças
culturais concretas tornam-se sistemas intrapsicológicos.
212 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

18. Cornélio Tácito (55-120) foi um historiador romano.

19. Assim está no estenograma.

20. Charlotte Malachowski Bühler (1893-1963), psicóloga alemã. Com o ma­


rido, o também psicólogo gestaltista Karl Bühler, radicou-se em Viena, onde
fundaram um Instituto de Psicologia, migrando para os Estados Unidos em
1938. Em Viena, com outras mulheres pesquisadoras, Charlotte dedicou-se
aos problemas da psicologia da infância e juventude. Trabalhos dessa fase
são bastante citados por Vigotski.

21. Sobre Binet, ver nota 6 do texto 4.

22. Francis Galton (1822-1911) foi um antropólogo e psicólogo inglês. Elabo­


rou métodos experimentais e quantitativos na psicologia, com ênfase em
fatores hereditários e subestimando a influência do meio social.

23. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo alemão que
desenvolveu a filosofia idealista alemã.

24. Sobre Bergson, ver nota 6 do texto 2.

25. Referência ao psicólogo alemão Adolf Busemann (1887-1967).

26. Denominação antiga para esquizofrenia (demência precoce).

27. Ernst Kretschmer (1888-1964), psiquiatra e psicólogo alemão. Autor de i


pesquisas sobre a correlação entre a estrutura do corpo e as propriedades
psíquicas do ser humano. Com base nisso, propôs uma tipologia dos carac­
teres, estudando as características da personalidade pré e pós-adoecimento
psiquiátrico. Teceu diversas contribuições à psicopatologia. Sua Psicologia
médica (1922) foi muito citada por Vigotski

28. Sobre Blónski, ver nota 2 do texto 1. <

29. Eugen Bleuler (1859-1939), psiquiatra suíço. Elaborou estudos do pensa­


mento autista comentados por Vigotski em seu livro A construção do pen­
samento e da linguagem (1934) no que toca às origens do egocentrismo
infantil e às suas relações com a esquizofrenia. Entretanto, não teria sido
o propositor do conceito de diásquise, mas sim von Monakow, que descre­
veu a interrupção funcional entre os vários centros ou faixas de neurônios
causada por lesão fora do ponto afetado, mas a ele relacionada, sendo uma
expressão clara do funcionamento holístico do cérebro.
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930) 213

30. Referência ao psiquiatra alemão Alfred Storch (1888-1962).

31. Charles Blondel (1876-1939) foi um psiquiatra francés.

32. Baruch Espinosa (1633-1677), filósofo holandês de origem judaica. Sua


obra mestra foi a Ética, publicada apenas postumamente. Em 1690, toda
sua obra foi banida pelo Santo Oficio. Até por volta de 1877, Espinosa e
Hegel eram os filósofos mais discutidos na Rússia. Bastante difundida após
a Revolução como materialista e ateia, a obra de Espinosa exerceu consi­
derável influência nos fundamentos da psicologia de Vigotski, em especial
sua doutrina psicofísica (relações mente-corpo), ontologia, ética e estética.

33. Adhémar Gelb (1887-1936) foi um psicólogo alemão que pertenceu ao cír­
culo da Gestalt.

34. Isai Davídovitch Sapir (1897-1937), psiquiatra soviético.

35. Werner Sombart (1863-1941), economista e sociólogo alemão. Distinguiu


a “psicologia sociológica”, que analisa fatos psicobiológicos, como o sen­
timento, os instintos, as inclinações como base da cultura humana. Distin­
guiu também os fundamentos da cultura em biológicos e espirituais, com
influência freudiana.

36. Os dois tipos principais da psicopatologia de Kretschmer eram esquizoide


e cicloide, reformulados por Bleuler. Este alterou cicloide por síntone e
cicloidia por sintonia. Característica dessa “cicloidia” é a suscetibilidade
afetiva com respeito ao meio.

37. Kurt Lewin (1890-1947), psicólogo alemão. Elaborou a psicologia estrutu­


ral, epistemológicamente próxima da psicologia da Gestalt. Com uma sólida
formação em ciências naturais, e em diálogo com os gestaltistas, propunha
uma Revolução Copernicana na psicologia. Amigo e colaborador de Vi­
gotski e Luria, exerceu influência sobre o Círculo de Vigotski nos estudos
sobre motivação, vontade e necessidade.
7. Sobre o problema da psicologia
da esquizofrenia (1933)
Na clínica da esquizofrenia, o psicólogo encontra casos excep­
cionais e praticamente únicos. Seja como for, casos incomparáveis a
tudo o que foi descrito até o presente, casos únicos e excepcionais
de desenvolvimento psicológico e alteração da consciência e de suas
funções, os quais lançam luz sobre a organização normal da consçiên-
cia e, o principal, sobre a organização normal das relações entre a
consciência e suas funções e o curso normal de seu desenvolvimento.
Nesse sentido, o estudo psicológico da esquizofrenia parece conter a
chave para a compreensão da estrutura da consciência normal. Em
todo caso, mesmo agora a investigação psicológica da esquizofrenia,
ainda longe de ter se desenvolvido completamente, permite a realiza­
ção, em um laboratório de psicologia, de uma nova abordagem para
um novo tipo de experimento com a consciência da pessoa normal.
A essência da novidade que a clínica da esquizofrenia traz para
a análise psicológica da consciência saudável e doente pode ser mais
bem explicada se colocarmos a questão sobre como a pesquisa psi­
cológica e psiquiátrica geralmente trata a relação entre a consciência
e suas funções. Penso não estar enganado se disser que, em todo
percurso histórico do desenvolvimento da pesquisa psicológica e psi­
quiátrica, a consciência sempre foi tratada como algo exterior em
relação às suas funções. Há dois tipos principais de abordagem a
esse problema, se deixarmos de lado uma série de opções que não
podemos tratar agora, pois precisamos nos limitar a uma exposição
esquemática da essência da questão.
No primeiro tipo, o mais difundido na psiquiatria e psicologia
antigas, a consciência é analisada como abstrata, típica a todos os
tipos de atividade e funções conscientes, seja na forma de tomada
21 6 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

de consciência ou de processo de vivência. Destaca-se algo de insufi­


ciente, pobre, franzino e parco, uma vez que de toda riqueza que há
na atividade da consciência, de tudo aquilo que compõe a essência
dessa atividade em suas variadas formas concretas, destaca-se o que é
geral, o que é em igual medida inerente a todas as funções, das mais
elementares às mais complexas.
No segundo tipo, a consciência é examinada como uma espécie
de espaço psíquico, que contém todas as funções e que é apriorístico
em relação a elas. Nesse caso, a psicologia e a psiquiatria dizem igual­
mente que as funções podem se desenvolver ou se transformar, mas a
consciência permanece imóvel; as funções podem ser destruídas, mas
a consciência permanece intacta.
Em ambos os tipos, a consciência é caracterizada predominan­
temente por seu aspecto formal, principalmente do ponto de vista de
certos atributos como continuidade, clareza e unidade, mas sempre e
em toda parte a pesquisa trata a consciência como algo exterior em
relação às suas atividades.
É evidente que em tal abordagem postulam-se a invariabilidade
e a incapacidade de desenvolvimento da consciência, portanto não
surpreende que a ciência sobre a consciência, como a psicologia se
considerou ao longo de muitos séculos, estudava com extrema atenção
uma série de atividades da consciência, mas não dizia nada que fosse
suficientemente convincente sobre a natureza da própria consciência e
seu desenvolvimento. Nesse sentido, é interessante que a ciência sobre
as enfermidades da alma ou da consciência, como se denominava a
psiquiatria, fez muitíssimo para o estudo das perturbações de certos as­
pectos da consciência, mas destacava apenas as formas mais grosseiras
e massivas de sua alteração que, em essência, diziam respeito mais a ca­
sos de desaparecimento da consciência do que de sua alteração efetiva.
Um segundo aspecto que distingue o estudo anterior dessas
questões consiste no fato de que as próprias atividades da consciên­
7. Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia (1933) 217

cia e cada uma de suas funções em geral eram estudadas de modo


isolado e abstrato, ainda que se postulasse a atividade conjunta de
tais funções. Psicólogos e psiquiatras afirmavam invariavelmente que
a atividade de certas funções da consciência sempre estava indisso-
ciavelmente ligada à atividade de outras funções: a memória pres­
supõe a atividade da atenção, a atenção pressupõe a atividade do
pensamento etc. Contudo, esse postulado nunca era colocado como
objeto de estudo e, partindo disso, admitia-se tácitamente que, em­
bora todas as funções ajam em conjunto, a atividade conjunta jião
oferece nada de essencial para o destino de cada função, pois, nova­
mente, pressupunha-se que tais funções agiam em conjunto sempre
de uma mesma forma.
Assim, vemos que, no estudo da consciência e de suas funções
na psicologia e na psicopatologia, por muito tempo predominaram
dois postulados que a psicologia contemporânea converteu em pro­
blema. A mudança mais importante na colocação desses problemas,
que se manifestam de forma mais produtiva no decorrer do trabalho
experimental do laboratório psicológico, seja na clínica psiquiátrica
ou no instituto de psicologia, é que ambos os postulados (sobre a
relação entre a consciência e suas funções e sobre a conexão das
funções entre si em diferentes formas de movimento do psiquismo,
seja o desenvolvimento ou a desagregação) tornaram-se agora objetos
concretos da pesquisa experimental.

Nas pesquisas contemporâneas, esses problemas (da cons­


ciência e de suas funções e da ligação entre as funções) ocupam o
centro das atenções. Apenas recentemente a psicologia foi capaz
de abordar esses problemas de forma suficientemente concreta e
experimental, pois faltavam muitos elos entre a consciência e suas
funções. Agora que alguns desses elos, ou seja, certas formações
psicológicas de ordem mais elevada, de estrutura mais complexa,
de origem mais recente do que a atividade elementar, agora que tais
2 18 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

formações psicológicas foram descritas em seus aspectos normais e


patológicos, tornou-se possível colocar esse problema como objeto
de investigação direta.
A coisa mais importante que a psicologia experimental fez
para o estudo da esquizofrenia e a coisa mais importante que o la­
boratório psicológico ganha com a clínica da esquizofrenia é a con­
quista para o experimento da função da dissociação como objeto
direto de pesquisa.
Em diversos laboratórios de psicologia, esse fenômeno, com
diferentes nomes, foi descrito em relação a diferentes processos. Sua
descoberta mais próxima das formas clínicas tornou-se conhecida
pela análise dessa função feita por Kiebler, depois por Kretschmer,1
que generalizou os dados de Kiebler.
A essência da nova colocação do problema consiste em que a
dissociação é analisada como função, inerente igualmente à consciên­
cia normal e à patológica, portanto como função psicológica por natu­
reza, como função que se mostra igualmente necessária na abstração,
na atenção voluntária, na formação de conceitos, assim como no sur­
gimento de um quadro clínico de processo esquizofrênico. Sobre essa
função, Kretschmer afirma que “a capacidade de dissociação mesmo
que experimental avança tanto para o primeiro plano, que apenas
com base nesse fato pode-se perfeitamente chamá-la de ‘esquizotí-
mica’, mesmo quando não exista a psicose da ‘esquizofrenia’”. Essa
fórmula magnífica, concisa e exata expressa a verdadeira posição das
coisas no problema da dissociação.*
Se nos voltarmos à investigação dessa função em esquizofrê­
nicos, veremos que inicialmente o laboratório de psicologia ofereceu

* Entre os psicólogos contemporâneos, Kurt Lewin foi quem mais se aproximou da correta
resolução desse problema. Ao discutir o problema da unidade da consciência, ele mostrou
que a condição necessária para tal unidade é a separação da consciência em esferas distin­
tas, em sistemas psíquicos, camadas relativamente limitadas e independentes.
7. Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia (1933) 219

muito pouco nesse sentido. Ele se deparou com o seguinte aspecto:


ao lado da dissociação, que é claramente expressa, deparamo-nos com
uma espécie de negativo desse sintoma, com seu duplo, com aquilo
de que falou V. A. Vnúkov ao apontar para a existência de sintomas
internamente não contraditórios em quadros psicopatológicos de es­
quizofrenia. No laboratório de psicologia, deparamo-nos com isso a
todo momento, e o quadro clínico não deixa dúvidas de que cada
sintoma central da esquizofrenia tem um contrassintoma, seu duplo
negativo, seu contrário.
Temos a destruição da afetividade, embotamento emocional e
frieza na vida afetiva. Ao lado disso ninguém nega que no pensamento
do esquizofrênico os aspectos afetivos têm um significado descomu­
nalmente grande. Ninguém nega que o esquizofrênico é inclinado
ao pensamento abstrato. Contudo, o aspecto central do pensamento
dele é a tendência a um tipo primitivo evidente de fluxo dos proces­
sos intelectuais. Sabemos que a forma esquizofrênica do pensamento
com frequência é denominada como simbólica, tendo em vista a pe­
culiaridade de que ela não aceita nada no sentido literal, mas sempre
no metafórico. Por um lado, como vimos, a compreensão do sentido
figurado, simbólico é severamente prejudicada no esquizofrênico; o
paciente com esquizofrenia não tem êxito com nenhuma construção
sem sentido, mas, por outro, o esquizofrênico só produz em grande
quantidade coisas totalmente sem sentido.
A todo momento nos deparamos com o fato de que cada sin­
toma é contraposto por um contrassintoma, que reflete pelo negativo
o mesmo fenômeno. Não conseguimos encontrar uma explicação su­
ficientemente clara para essa estrutura complexa do quadro sintoma-
tológico da esquizofrenia, talvez por falta de conhecimento no campo
da clínica da esquizofrenia, mas tendemos a considerar que essa expli­
cação deva ser procurada no percurso de aplicação da hipótese sobre
a estrutura sistêmica e semântica da consciência à compreensão da
psicologia da esquizofrenia.
220 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Tentaremos mostrar como, do ponto de vista dessa hipótese,


é possível resolver a questão da duplicidade da manifestação sinto­
mática em perturbações esquizofrênicas da consciência, em relação
ao fenômeno da dissociação e ao seu contrassintoma, mencionado
anteriormente, ou seja, à tendência de fusão de processos e aspectos
heterogêneos na consciência. O ponto de partida de nosso raciocínio
é o seguinte: a função de dissociação, assim como todas as funções
da consciência, não permanece inalterada; ela se desenvolve com o
percurso de desenvolvimento da consciência, alterando-se qualitativa­
mente nesse processo de desenvolvimento. Sabemos que no desenvol­
vimento surgem neoformações, inexistentes em estágios anteriores e
que não são apenas combinações ou modificações dos embriões que
foram dados no início. O mesmo ocorre com a função de dissociação.
Essa função entra como instância subordinada, como aspecto
suprassumido, como força de conexão na composição de formações
de ordem mais elevada, para as quais ela é um pré-requisito na histó­
ria do desenvolvimento. Se digo que, na história do desenvolvimento
e no funcionamento vivo, a função de dissociação é um pré-requisito
para a atenção voluntária e para a abstração, isso significa que ela
se apresenta em todo ser adulto como força de conexão na estrutura
interna, no sistema psicológico de conceitos; torna-se claro que todo
sistema de conceitos, no qual a consciência generaliza certa realidade
que lhe é dada e todo mundo interior das vivências, que justamente
esse sistema, de certa forma, determina as fronteiras da dissociação e
a unificação de cada esfera ou campo da consciência.
Mas o interessante é o seguinte: na pesquisa experimental, a
função de dissociação tem seu contrassintoma na forma de uma con-
tradissociação, ou seja, fusão de tudo com tudo, unificação sincrética
das mais diversas camadas de aspectos da consciência.
Em outras palavras, ao lado da extraordinariamente desen­
volvida força destrutiva da dissociação, encontramos na consciên­
7. Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia (1933) 221

cia esquizofrênica aspectos que agem na direção oposta. Uma


descrição completa da consciência esquizofrênica, portanto, exige
necessariamente que se leve em conta, além da tendência à disso­
ciação, o reconhecimento de uma força contrária, que também é
desencadeada por causa da desagregação dos conceitos e do apaga-
mento dos limites claros entre cada esfera e processo da consciên­
cia. Ambos estão relacionados com a perturbação do significado da
palavra e de toda a estrutura sistêmica e semântica da consciência,
mencionada anteriormente.
Tendo a pensar que o segundo aspecto que pode ser útil para
a explicação desse quadro duplo da sintomatologia esquizofrênica
reside na ideia que ouvi em todas as outras comunicações anterio­
res; trata-se da ideia de que, no processo esquizofrênico, o paciente
não pode ser analisado apenas como uma figura passiva. É preciso
analisar o papel ativo dessa personalidade, que está passando por
um processo destrutivo. É preciso pensar que, ao lado dos rastros de
destruição da personalidade que se encontram sob o impacto de um
prolongado processo patológico, que destrói as relações e conexões
mais elevadas, complexas, semânticas e sistêmicas da consciência,
encontramos também vestígios contrários, isto é, de que essa perso­
nalidade irá resistir de alguma forma, alterar-se, reconstruir-se, que o
quadro clínico da esquizofrenia nunca pode ser compreendido apenas
como algo que decorre diretamente das conseqüências destrutivas do
próprio processo, mas deve ser analisado também como uma reação
complexa da personalidade ao processo que lhe é destrutivo.*
Penso que a orientação constitucional no estudo da esquizo­
frenia, à qual (na psicologia) devemos a introdução do problema da
dissociação na esfera da pesquisa experimental, estava correta ao pro­

* Segundo esse ponto de vista, alguns casos de dissociação, em particular, podem legiti­
mamente ser considerados reações de defesa da consciência a processos de desagregação
e fusão.
222 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

por o papel da personalidade no curso da doença, mas está definiti- |


vãmente equivocada em seu entendimento da própria personalidade,
colocando o conceito biológico de organismo no lugar do conceito
sociopsicológico de personalidade. Se a psicologia e a psicopatologia 1
contemporâneas assimilaram a ideia principal e mais importante de |
que não são as profundezas, mas os ápices da personalidade2 que se j
mostram decisivo para a compreensão das perturbações e reações da .
personalidade e para o destino da consciência, parece-me que é numa
compreensão não profunda, mas apical3 da reação da personalidade,
que o quadro duplo da esquizofrenia poderá ser resolvido.

Notas da tradução

1. Sobre Kretschmer, ver nota 27 do texto 6.

2. Em russo: verchíni lítchnosti. Trata-se de ideia importante no projeto de ;|


psicologia vigotskiana, referindo-se à busca de uma psicologia do ápice (ver-
chínala psikhológuia), ou seja, de um novo homem socialista.

3. Aqui Vigotski retorna à ideia de ápice (verchínoeponimânie ou “compreen- |


são apical”, em português).
8. O fascismo na psiconeurologia

A profunda crise vivida ao longo das últimas décadas por toda


a psicologia burguesa assumiu formas aguçadas, repugnantes e mons­
truosas, inéditas na historia da ciência psicológica, depois do golpe
fascista na Alemanha. O novo regime acelerou de maneira catastró­
fica o amadurecimento e o desvelamento de uma série de tendências
vagas, não compreendidas, camufladas, que com incrível rapidez, ao
longo de um ano, levou à formação de um núcleo básico no sistema
da psicologia fascista. A demanda política do novo regime agiu como
catalisadora de um processo de decomposição e putrefação que antes
estava entrelaçado no tecido geral da crise e levou a um estado de
aguçamento totalmente inédito.
Evidente que não é possível falar da criação de uma nova psi­
cologia em um período tão curto, desde o estabelecimento do regime
fascista. O fascismo começou a penetrar na psicologia por outros ca­
minhos. Ele reorganizou as fileiras da psicologia alemã, trazendo para
o primeiro plano tudo o que havia de mais reacionário nela. Mas só
isso não seria suficiente. Como já foi dito, era preciso ainda, no mais
curto período possível, montar um sistema de psicologia que respon­
desse a toda a ideologia do fascismo.
Os catálogos alemães de filosofia, psicologia e pedagogia es­
tão repletos de títulos como “Investigações sobre a família e here­
ditariedade”, “Investigações sobre raça”. As escolas idealistas mais
reacionárias correram para reexaminar seus materiais e reconstruí-
-los de tal forma que pudessem oferecer fundamentação real para a
psicologia fascista.
E. Spranger,1 um dos mais ativos e coerentes propagadores
do ponto de vista da classe burguesa na psicologia, manifestou-se
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

em termos de fundamentar a ideia nacional alemã por meio de uma


teoria psicológica da personalidade. É bem verdade que os jornais
informaram que Spranger deixou a Universidade de Berlim logo após
o golpe. Contudo, ao que parece, essa curta fase de protesto foi subs­
tituída por um trabalho assíduo em prol do movimento.
Na psicologia, Spranger sempre defendeu a ideia da existência
de diferentes formas de vida, diferentes tipos de personalidade. Para
Spranger, essas formas de vida são, antes de tudo, formas nacionais.
Em seu amplamente conhecido trabalho “A psicologia da idade juve­
nil”, diz que a estrutura da personalidade do jovem por ele descrita é
típica do jovem alemão. O adolescente judeu, ele diz, apresenta traços
fundamentalmente distintos; já em relação ao tipo psicológico russo,
apesar da proximidade evidente, experienciamos um sentimento pre­
ventivo de alheamento que vai longe. Mesmo dentro do tipo nacional
alemão, ele distingue os adolescentes educados: “nós os denomina­
ríamos adolescentes burgueses, se isso não tivesse se tornado uma
expressão política superficial”.

Outra abordagem que fundamenta a psicologia fascista é a do


famoso psicólogo alemão N. Ach.2 Se Spranger se detém nos proble­
mas do tipo nacional de personalidade, Ach escolhe um problema
ainda mais agudo. Ao longo de muitos anos, esse pesquisador traba­
lhou sobre o problema da vontade, estudando a influência das ten­
dências determinantes sobre as atividades externa e interna do indi­
víduo. Agora se observa que o estabelecimento das leis da psicologia
determinista tem um significado fundamental para o problema do
líder. No congresso de psicologia de Leipzig, em 1933, Ach proferiu
uma palestra sobre a psicologia determinista e seu significado para o
problema do líder. Nessa palestra, Ach deteve-se na investigação da
pureza da origem de sua própria teoria. Ele analisou todas as etapas
de desenvolvimento da psicologia determinista, começando em 1904,
e chegou à conclusão de que sua psicologia sempre permaneceu em
8. O fascismo na psiconeurologia (1934)

profunda contradição com a compreensão individualista e liberal da


vida mental.
Dessa forma, elaboraram-se duas ideias fundamentais que, ao
que parece, foram convocadas a desempenhar um papel de organi­
zação para todo o sistema da psicologia fascista: a primeira ideia é o
tipo nacional; a segunda, o voluntarismo e o problema do líder.
Contudo, uma tentativa mais ampla de fundamentar a psicolo­
gia fascista foi empreendida por um terceiro psicólogo alemão, Erich
Jaensch,3um cientista de renome mundial e que trabalhou amplamente
com a questão da percepção e da memória de um ponto de vista eidé-
tico e da tipologia psicológica. Jaensch lançou um trabalho específico:
O estado e as tarefas da psicologia: sua missão no movimento nacional
alemão e na reconstrução da cultura.4 Nesse livro, Jaensch apresenta
todo um sistema de psicologia fascista, o qual provavelmente irá de­
terminar o caminho e o destino da ala fascista da psicologia alemã.
Assim como Spranger, Jaensch também estabelece uma conexão entre
seus trabalhos anteriores e a psicologia fascista; por isso, seguindo o
exemplo do seu livro, é especialmente fácil detectar como a tendência
revelada agora em sua forma mais cínica amadureceu na psicologia
idealista alemã muito antes de ter-lhe sido colocada a missão de servir
ao movimento nacional, e o que tal missão trouxe de novo e que, sem
dúvida, determinou uma nova etapa da crise da psicologia, a etapa de
putrefação aguda e sem precedentes do pensamento científico burguês.
O livro de Jaensch é atravessado por um espírito militar. Se­
gundo as ideias do autor, ele deve servir como manifesto militar para
a criação de um novo destacamento de combate, que afirme o fas­
cismo na ciência. O próprio autor como cientista afirma querer servir
de coração e mente ao movimento cultural alemão, pois essa não será
uma empreitada apenas pela Alemanha, mas pelos interesses de toda
humanidade. Entretanto, em questões militares deve-se estabelecer
em primeiro lugar contra quem e contra o que se luta.
226 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

A esse respeito, Jaensch responde com absoluta franqueza: con­


tra o marxismo e a União Soviética. Ele aponta que na URSS foram
organizados institutos de psicologia, biologia e antropologia, que o
trabalho de tais institutos está a serviço da teoria dominante entre
nós, que existe grande interesse científico na URSS por aquilo que
a ciência europeia tem feito nessas esferas, em particular, que suas
próprias pesquisas iniciais ficaram conhecidas em nosso país. Tudo
isso são indicadores de quão importantes são esses problemas e do
quanto eles estão ligados a tarefas políticas. A própria existência de
tais institutos é vista por Jaensch como um perigo direto de dissemi­
nação do materialismo além das fronteiras do pensamento científico
soviético. Esse é o principal perigo; antes de tudo é preciso combatê-
-lo. Diz Jaensch,

Esses fatos nos fazem lembrar que na Alem anha, não apenas no
sentido geográfico, mas espiritual, deve ser criado um baile de de­
fesa para resguardar a cultura europeia da onda materialista que a
invade, e nesse sentido nossa ciência se vê diante de tarefas especial­
mente im portantes.

Para Jaensch, o principal pecado do marxismo é o fato de que


a antropologia marxista não é uma teoria psicológica ou biológica
sobre o ser humano. A antropologia marxista é sociologia. A partir
das condições históricas concretas da vida social, o marxismo explica
os problemas fundamentais da personalidade. Jaensch segue um ca­
minho diametralmente oposto. Partindo de uma teoria biológica e psi­
cológica sobre o ser humano, da antropologia, ele quer explicar todos
os principais problemas sociais não apenas relativos aos alemães, mas
também mundiais. Sobre esse princípio metodológico básico repousa
todo o novo sistema da psicologia.
Iremos nos deter com mais detalhes na explicitação desse novo
princípio. A antropologia é a chave de todos os problemas da política
mundial. A psicologia estuda a forma superior da totalidade, a perso-
8. O fascismo na psiconeurologia (1934) 227

nalidade humana. Seguindo esse caminho, ela se defronta com tarefas


de importância vital. Segundo Jaensch, as tarefas mais importantes
da política mundial podem ser resolvidas apenas por psicólogos, os
quais devem estabelecer de forma rigorosamente empírica as estru­
turas básicas da personalidade, estruturas singulares e determinadas
com exatidão, as quais predominam em certos povos e que, ao longo
dos séculos, constituem um campo de preocupação e ameaça ao
mundo europeu. Essa é não apenas a tarefa mais importante para a
propaganda do movimento alemão, como também um esclarecimento
necessário para o interesse de todo o mundo. É preciso abrir os olhos
do mundo e fazer os povos da terra travar conhecimento desses fa­
tos. Jaensch entende ser sua missão realizar o plano de Leipzig, isto
é, fundamentar cientificamente a política. Só que tal fundamentação
científica da política deve apoiar-se na antropologia, na teoria sobre a
natureza do ser humano.
A natureza da personalidade humana é compreendida por
Jaensch de forma completa, integral. Segundo Jaensch, embora mui­
tas coisas nas teorias sobre a raça e sangue ainda não estejam cla­
ras, tudo leva a crer que o mundo das ideias humanas depende não
apenas de fatos espirituais, mas também de sua existência geral. Tal
existência geral inclui também a existência física, como pressuposto
do mundo das ideias. É necessário conservar em estado puro essa
existência geral do ser humano, incluindo a existência física, para que
se possa conservar a pureza das ideias. Para que sejam introduzidas
mudanças no mundo das ideias, não basta substituir certas ideias por
outras. Isso é também insuficiente para que se preserve a pureza das
novas ideias. Porém, tanto um quanto outro necessariamente exigem
a alteração da existência geral. A teoria do sangue e da raça é a mais
aguda contraposição a todas as formas contemporâneas do idealismo
filosófico, que afirmam a necessidade e o primado da consciência e
das ideias sobre a existência. Na realidade, existe uma relação inversa.
A teoria do sangue e da raça comprova o primado da existência hu-
228 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

mana geral, incluindo suas determinações elementares, especialmente,,


as inatas, sobre o mundo das ideias. É exatamente isso que a psicolo*
gia contemporânea comprova ao estabelecer a relação indissociáveL
entre os processos físicos baixos mais elementares e as formas de
vida das ideias mais elevadas. Por isso, não deve haver abismo entre
a psicologia e a biologia da raça autóctone: ambas devem trabalhar
lado a lado. Na teoria sobre a raça e na psicologia, estão assentadas
as verdades do idealismo alemão, a possibilidade de retorno à sua
forma inicial.

Assim, o idealismo alemão, segundo a compreensão de Jaensch,


é um idealismo totalmente particular. Ele deve necessariamente jun­
tar-se à ideologia de raça e aceitar o primado do sangue e da raça,
determinantes inatos sobre o mundo das ideias. Trata-se de um idea­
lismo realista, como denominou o próprio Jaensch. As ideias por si sós
serão impotentes e inférteis se não estiverem ligadas com a existência
física. Apenas na carne e no sangue alemão é possível que ideias pu­
ramente alemãs se desenvolvam. Jaensch prega aberta e diretamente
uma marcha contra o antigo, o ridículo e o impotente na época do fas­
cismo do idealismo alemão. Esse idealismo deve ser forjado debaixo,
para que ele tenha firmeza e força. Jaensch respeita apenas ideias
fortes que possam dominar e vencer. Ele é capaz até de citar Marx e
concordar com ele sobre o fato de que considerar as ideias como um
campo independente da existência constitui um erro grosseiro, que
faz com que se tome o seguinte como se fosse o primeiro, e o resul­
tado como se fosse causa primeira. Por trás de uma modificação das
ideias, está sempre uma modificação das pessoas. Jaensch afirma o
primado do movimento popular sobre as ideias nacionais. Em todas
as esferas da vida, chegam ao poder pessoas cuja estrutura se adapta
ao mundo exterior. Por isso, a psicologia e o movimento alemão de­
vem andar juntos; além disso, a psicologia deve compreender e lançar
a luz da razão sobre aspirações instintivas atreladas ao movimento
nacional. Portanto, para curar o idealismo decrépito, Jaensch busca
8. O fascismo na psiconeurologia (1934) 229

suporte para ele no campesinato alemão, ou melhor, nos senhores


de terra. Ele diz: “Os filósofos devem dar as mãos aos camponeses.
Assim se firma a união entre a baioneta e as ideias, entre a psicologia
científica e os destacamentos de assalto”.
É possível mostrar com um exemplo concreto como, partindo
desses pontos de vista gerais, Jaensch resolve problemas políticos
concretos, como ele tenta fundamentar cientificamente a política por
meio da antropologia e da psicologia. No livro em questão, Jaensch
considera necessário rejeitar a opinião que lhe é atribuída de que
Alemanha e França são separadas por um profundo abismo existente
entre duas estruturas mentais contrapostas, a francesa e a alemã, que
exclui qualquer possibilidade de compreensão mútua. Jaensch é capaz
de admitir que, do ponto de vista antropológico, a relação entre esses
dois grandes povos pode melhorar. Ele raciocina de forma estrita­
mente empírica e exata, determinando em um laboratório de psicolo­
gia o destino dos povos e a relação entre eles exatamente da mesma
forma que se costuma determinar a aptidão de um sujeito para certa
profissão. Com isso, o próprio Jaensch não nota a inacreditável co-
micidade de todos esses raciocínios. Mas é possível que a ausência
de humor integre a lista de características necessárias e, portanto,
inatas, assim como raça e sangue, para o desenvolvimento de “ideias
puramente alemãs”.
Segundo Jaensch,

todo grande povo tem muitas estruturas. O povo tem não apenas
as estruturas m entais que são determinantes em dada época, mas
também outras. Na Alemanha estam os agora trabalhando com o res­
tabelecim ento do tipo nacional fundamental. Esse restabelecimento
está fundamentado na união do tipo do idealista alemão com o cam­
ponês, mais ligado ao tipo da terra. Essas duas estruturas devem se
fecundar entre si. É preciso elevar um pouco o tipo camponês e o tipo
idealista deve ser construído e fortalecido de baixo. Na linguagem
da tipologia integral isso quer dizer fusão das estruturas. Se outros
230 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

povos fizerem o m esm o, ou seja, se seguirem o cam inho indicado


por ele e reexaminarem suas estruturas dominantes, então alemães
e franceses poderão compreender-se uns aos outros. Cada povo tem
em si grandes possibilidades de desenvolvimento.

É difícil acreditar que essas linhas foram escritas nos anos


1930. É difícil acreditar que o próprio autor crê seriamente em
sua ideia de reconstrução das relações entre os povos com base
em fórmulas psicológicas integradas. Jaensch faz tudo para nos
dissuadir da falta de seriedade de suas posições. Ele não finge, ele
acredita de fato.
Ao definir o círculo de tarefas da psicologia, ele compõe esse
círculo exclusivamente de tarefas que, em outras circunstâncias e em
outra época, poderiam ter saído de um sistema delirante de ideias
oriundas de alguma paranoia, mas que constitui, de fato, a língua
real da política fascista na ciência. Segundo Jaensch, o movimento
nacional, como já vimos, tem primazia sobre as ideias. A psicologia
deve caminhar lado a lado com o movimento alemão. A antropologia
psicológica é a base mais importante da filosofia da realidade e da
construção científica da política. Raça e sangue, sangue e raça: é isso
que está na base de tudo. Entre a estrutura de uma rede capilar e a
visão de mundo é traçada uma linha reta única. Os cientistas passam
a pensar de modo militarizado: brusco, linear e resoluto. Onde falta
lógica, começa a filosofia do imperativo.
Bem-aventurada Alemanha! Ela não seguiu o conselho de
Skalozub5 de colocar um suboficial para servir de Voltaire. Os Vol-
taires fascistas se converteram por conta própria em suboficiais do
movimento nacional alemão.
Assim se desenvolve uma antropologia e uma política de su­
boficial. A relação entre os povos é determinada pelo fato de que
na base de diferentes culturas estão diferentes estruturas mentais de
pessoas que pertencem a um determinado tipo nacional. A sabedoria
8. O fascismo na psiconeurologia (1934)

final da filosofia fascista é o antropomorfismo crítico, a partir do qual


Jaensch analisa todos os problemas fundamentais do governo fascista.
Como vimos, ele já resolveu as principais questões da política interna
e externa alemã a partir da tipologia integral. A fórmula antropoló­
gica determina a união insolúvel do filósofo idealista da cidade com
o kulak6 camponês do campo. Em linguagem simples, essa fórmula
significa que o filósofo alemão deve penetrar até o fim na ideologia
do kulak. É isso que na linguagem de Jaensch se chama construir
e fortalecer o idealista alemão de baixo. O kulak deve acreditar no
filósofo quando ele diz que a política que defende seus interesses é
baseada em cálculos exatos e fórmulas tipológicas da química, e que
seus interesses pessoais serão atendidos por um retorno à forma ori­
ginal do idealismo alemão e respondem ao renascimento espiritual
de toda humanidade.
Sob o ponto de vista dessa ideia básica, Jaensch resolve o pro­
blema da relação entre indivíduo e Estado. O sentido do golpe ocor­
rido na Alemanha, segundo Jaensch, reside na luta entre duas estrutu­
ras, e uma delas, vencedora sob o signo da suástica, busca converter
o geral (o Estado) em um todo orgânico, construído segundo as leis
da antropologia psicológica com base na pureza da existência física
da nação, e em uma fórmula única de sangue e de estrutura mental.
Mas o antropomorfismo crítico não seria tão bem-visto aos olhos do
próprio Jaensch, se ele não permitisse, com uma simplicidade sedu­
tora, acessível à inteligência de qualquer camponês médio e de sangue
puro alemão, compreender a verdade simples de que essas mesmas
fórmulas determinam também a relação entre os povos. Um tipo de
estrutura de alma determina o caráter nacional em cada época. O tipo
e o caráter superior é, naturalmente, o alemão. Por isso o antropo­
morfismo crítico se interessa pelo problema não do ser humano em
geral, mas do humano alemão.
Com ajuda de um raciocínio muito simples, Jaensch consegue
demonstrar, empregando a mesma lógica de um delírio sistematizado,
232 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

que a tarefa do espírito alemão é levar a humanidade adiante; p a r'


tanto, vale lembrar que a diferença entre as distintas estruturas men­
tais e os distintos tipos de personalidade tem sua mais viva expressão-
em determinadas épocas etárias do desenvolvimento humano. Uma:
feliz coincidência: ocorre que o tipo humano mais elevado, ou seja,
o tipo fascista alemão, coincide em sua fórmula química com o tipo"
jovem, cuja principal distinção consiste numa aspiração eterna em*
direção ao futuro, ao aperfeiçoamento da humanidade. Esse é o sen*'
tido do movimento alemão de acordo com Jaensch, essa é a tarefa da
psicologia alemã, a qual deseja traduzir para a língua da consciência
científica os instintos zoológicos do fascismo militante.
Em essência, restam ninharias: resta esboçar o programa de
resolução de todas as mais importantes tarefas da política mundial por,
meio do laboratório psicológico, resta fundamentar cientificamente as
fórmulas tipológicas e, assim, fundamentar a partir da linguagem do
idealismo realista o caráter sagrado da baioneta fascista e a força da
ideia alemã. Resta-nos ainda examinar apenas as bases metodológicas
internas desse delírio sistematizado. Jaensch deve realizar algumas
operações tortuosas sobre o corpo vivo da psicologia científica alemã
para confirmar definitivamente a supremacia do fascismo no campo
do conhecimento científico que foi colocado aos seus cuidados. De
fato, a psicologia científica alemã se formou ao longo dos séculos. Ela
acumulou em si não apenas aquilo que servia ao fascismo, mas tam­
bém uma quantidade enorme de conhecimento científico verdadeiro.
Cada tijolo no edifício da psicologia científica brada contra esse delí­
rio monstruoso que Jaensch está tentando transformar em psicologia
científica. Por isso, é preciso liquidar toda ciência verdadeira no campo
da psicologia. A Jaensch resta apenas realizar no plano das ideias a
mesma devastação da psicologia científica que já foi realizada no plano
da política de raça na ordem da divisão do trabalho da política do fas
cismo. Como se sabe, depois do golpe, a Alemanha perdeu a melhor
e mais progressista e científica parte de seus psicólogos. Assim como
8. O fascismo na psiconeurologia (1934)

Jaensch afirma categoricamente que apenas o idealismo realista tem


força, que as ideias sem a baioneta não valem um tostão furado, resta-
-lhe apenas tirar conclusões ideológicas de repressões políticas reais.
Jaensch se dedica a isso com a leviandade e resolução do filó­
sofo-suboficial. Ele não pode deixar de reconhecer que a psicologia
passou por uma séria crise. Mas a crise pressupõe uma certa luta de
ideias e, nessa luta, Jaensch não concorda em se basear apenas na
força das ideias. É um opositor do idealismo não embasado, desco­
lado da realidade, por isso ele resolve a crise da psicologia por mèios
militares, em duas frentes.

Primeira: não há dúvidas sobre a crise, diz Jaensch, mas ela foi
superada, não é possível falar dela como se fosse algo do presente.
Segunda: não houve exatamente uma crise. Trata-se de uma
crise metodológica e não teórica. Quando a psicologia do elemento
de Ebbinghaus7 se deparou com a psicologia estrutural de Dilthey,8
a psicologia associativa já não era uma teoria viva, ela se contrapu­
nha à psicologia estrutural apenas como método de pesquisa. Por
isso a psicologia da Gestalt9 alemã estava lutando no fundo contra
fantasmas quando se manifestava contrariamente à teoria atômica
do psiquismo.10 Ela defendia uma teoria contra um método. Jaensch
cita a opinião oral de seu amigo inglês que lhe garantiu que nesse
movimento do pensamento psicológico, em todo caso, estava a mais
progressista de todas as orientações psicológicas de nosso tempo,
não havia nada que não estivesse nos trabalhos de Stout11 e Sherrin­
gton.12. A ideia do todo que determina suas partes é a ideia primor­
dial da psicologia alemã. Ela não exclui, mas inclusive pressupõe a
psicologia dos elementos. A unidade da psicologia será restaurada
de modo magicamente simples. Jaensch nos ensina que não como “ou-
-ou”, mas como “e-e”. Ele deve lidar com a psicologia da Gestalt, que,
aliás, nos últimos anos não apenas perdeu seu fundador, Wertheimer,13
um dos mais notáveis psicólogos da contemporaneidade, mas acabou
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

tendo na Alemanha apenas um representante. Qual é o pecado da


psicologia da Gestalt? Como Jaensch há muito mostrou, essa teoria
é infeliz pelo materialismo, por sua tendência ao exame monista das
estruturas psicológicas, pela descoberta da união fundamental entre
as estruturas psíquica e física. A negação de que a estrutura seja uma
formação puramente espiritual, seu interesse científico de aproximar
a teoria psicológica com a fisiología e a física teórica sempre desper­
tou a oposição ferrenha de Jaensch. A propósito, ele tem uma dívida
antiga com essa teoria. Seus representantes há muito tempo e de
forma aberta colocaram sob suspeita a validade estritamente cientí­
fica das pesquisas de Jaensch, as quais sempre tiveram a tendência de
dissolver-se em um mar sem fim de bruma idealista. Eles chamaram
suas pesquisas pelo seu verdadeiro nome. Rejeitaram seu diletan­
tismo e sua disposição de a qualquer momento trair o conhecimento
científico exato, a verdade científica, em nome de ideias preconcebi­
das. Eles revelaram, como se mostrou com o tempo, ter uma visão
de pouco alcance, pois não foram capazes de desconfiar quão longe
Jaensch seguiria por esse caminho.

É claro que Jaensch não é contra a física. Ao contrário, como


vimos, sem uma física de tipo grosseiro ele considera impossível pe­
netrar nas profundidades das estruturas mentais da personalidade. O
sangue e a raça determinam a pureza das ideias. Em certo sentido,
Jaensch vai muito mais longe do que Kõhler no sentido de reduzir o
psíquico ao físico. Ele se opõe menos ainda à tendência de se com­
preender o psíquico à luz da biologia. Ele precisa apenas de outra
física e de outra biologia.

Segundo Jaensch, é preciso buscar a aproximação entre psí­


quico e físico não no campo das estruturas físicas amplamente co­
nhecidas, mas na esfera de regularidades físicas especiais, congêne­
res às psíquicas. Os princípios teleofórmicos da física e os processos
especiais, os fenômenos mnemônicos da natureza inorgânica, devem
8. O fascismo na psiconeurologia (1934)

atuar aqui no primeiro plano. Em uma linguagem simples, isso quer


dizer que não é a física materialista científica, mas uma deformação
idealista da teoria da física, que encontra princípios teleofórmicos e
mnemónicos que ligam o físico e o psíquico no ser humano. Como se
pode ver, Jaensch permanece totalmente fiel ao seu real-idealismo. É
preciso teleologizar e dotar o físico de um caráter mnemônico para
que se possa justificar e legitimar o ponto de vista do sangue e da raça
na antropologia psicológica.
A seguir, ele acusa a psicologia da Gestalt por não distinguir
diferentes formas do todo, acusa a biologia por não se basear no psi-
covitalismo de Driesch e Becher.14 Jaensch precisa tanto da biologia
vitalista como da física idealista. Por isso, essa teoria permite o nivela­
mento dos níveis, aproximando de maneira fundamental as estruturas
psíquicas e físicas. Ele manipula ligeiramente os fatos, afirmando que
Koffka15 reduz os problemas do desenvolvimento e Lewin16 os proble­
mas da vontade, assim como todos os estágios superiores, ao nivel de
processos elétricos.
Contudo, Jaensch ainda assim não desdenha do princípio fun­
damental da psicologia da Gestalt, isto é, o princípio da totalidade.
Ele apenas supõe que esse princípio deve ser colocado a serviço do
fascismo. Ele foi convocado a fundamentar e consolidar a teoria do
sangue e da raça. A forma superior de totalidade é a personalidade,
na qual tudo está ligado de forma indissolúvel, de forma que, se as
características inatas de raça e sangue são dadas, o mundo das ideias
da personalidade também é dado.
Para completar o quadro, resta apenas determinar o sangue
e a raça do novo sistema da psicologia professada por Jaensch. Ele
mesmo indica quem são seus precursores. Como é de se esperar de
partida, entre eles não há menos do que 90% de psicólogos alemães.
Jaensch diz que a grande linha do idealismo alemão leva do misti­
cismo de Eckhart17 e dos místicos alemães, passando por Leibniz,
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Kant, Fechner, Helmholtz, Wundt, Külpe e Brentano, desembocando


ávida e diretamente no fascismo da psicologia e no próprio Jaensch.
Esse é o passaporte espiritual de Jaensch, emitido por ele mesmo.
Apresentamos em traços sucintos e resumidos o estado da psi­
cologia e o escopo de suas tarefas mais importantes assim como eles
são delineados no belicoso manifesto fascista de Jaensch. Deixamos
de lado apenas a parte filosófica de seu sistema, elaborada no livro de
forma sumária e lacônica, mas desenvolvida de forma mais detalhada
e exaustiva em seus trabalhos anteriores, prévios ao golpe. Em breve
ainda voltaremos à análise das bases de sua antropologia filosófica,
considerando que no escopo do presente livro cabe fazer uma crítica
científica séria e uma análise desse manifesto, tendo em vista a es­
sência das posições contidas nele. Responder a Jaensch significaria o
mesmo que refutar um delírio por meio de argumento lógicos.
Porém, não podemos deixar de nos interessar por duas coisas:
em primeiro lugar, a relação interna entre essas construções científi­
cas delirantes e toda a crise do pensamento psicológico burguês; e,
em segundo lugar, a explicitação da novidade que a psicologia fascista
introduziu no curso do desenvolvimento ulterior da psicologia bur­
guesa. Na conclusão, iremos nos deter nesses dois aspectos.
Seria ingenuidade pensar que essas estruturas delirantes não
têm nenhuma ligação com toda a crise da psicologia burguesa, que
esta não responde de forma alguma por essas construções. Com
efeito, o verdadeiro delírio do doente mental está ligado com sua per­
sonalidade pré-mórbida. Na realidade, esse exemplo de elaboração
pungente e putrefata do pensamento científico se manifesta de forma
hiperbólica nos processos de decomposição que levaram o pensa­
mento psicológico, ao longo dessas décadas de crise, a um beco sem
saída. O sistema de Jaensch se sustenta essencialmente nas mesmas
bases metodológicas sobre as quais foi construída toda a psicologia
burguesa. Ele é uma integração entre idealismo e mecanicismo, aná-
8. O fascismo na psiconeurologia (1934) 237

loga à integração tipológica que Jaensch quer ver na união do filósofo


alemão com o camponês. Tire um desses pilares e todo o sistema
de Jaensch instantaneamente desaba. A união entre mecanicismo e
idealismo em um todo fascista constitui o alfa e o ómega de toda a
metodologia do sistema de Jaensch. A novidade de sua construção
reside no fato de que ele reúne ambos os elementos de uma maneira
nova. No momento em que a maior parte das outras orientações psi­
cológicas entrelaçam entre si esses elementos, dos quais os próprios
autores não têm consciência, Jaensch une total e completamente um
e outro, tomados em todo seu escopo e considerando o significado
inerente a cada um desses princípios.
Sem um mecanicismo colossal ele não pode construir um idea­
lismo de baixo e estabelecer um elo único entre sangue e raça e o
mundo das ideias. Mas sem um idealismo igualmente colossal ele se­
ria impotente diante da tarefa de ocultar a face bestial da antropolo­
gia tipológica fascista sob a máscara da mais perfeita personalidade
alemã jamais vista.

A introdução do mecanicismo e do idealismo a um denomina­


dor comum, a colocação de processos físico-químicos elementares do
organismo humano e de funções superiores da consciência em uma
mesma série pressupõe necessariamente um erro, que chegou a um
extremo absurdo, mas que no fundo é inerente em alguma medida
a toda psicologia burguesa: a rejeição da natureza social do ser hu­
mano. A sociologia escapa totalmente ao sistema de Jaensch. A raça e
o sangue determinam diretamente a estrutura da personalidade e, por
meio dela, também a política. Aqui Jaensch apenas levou a um grau
extremo de agudeza e franqueza cínica aquilo que está colocado nas
bases da ciência burguesa. Ele fala abertamente a língua da política
do pogrom.™ Passou a justificar de modo aberto e cínico a união en­
tre cientistas e tropas de assalto, a união entre a baioneta e as ideias.
Aquilo que outros mascaram ou de que têm pouca consciência sub­
238 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

jetivamente, Jaensch diz de forma aberta e cínica. Ele diz apenas o


que outros pensam ou, todo caso, fazem. Ele diz que ser um cientista
burguês quer dizer servir às necessidades da burguesia, que se apre­
sentam em determinada época, combater com as armas da ciência
em prol das tarefas políticas que são promovidas na atualidade. Ele
disse que não há ciência sem partido, não há ciência fora da política.

Não é surpreendente que, depois disso, a primeira tentativa


tenha resultado tão infeliz e grosseira? Antes de Jaensch, a tarefa
que se colocava não era das mais fáceis: fazer a ciência voltar à
Idade Média e anular as verdades científicas conquistadas pelos es­
forços do pensamento humano, acumuladas ao longo dos séculos.
Jaensch fez isso como um suboficial e pouco se preocupou com o
fato de que, ao tentar apresentar o tipo alemão ideal como sendo um
atraente super-homem, ele na realidade apresentou apenas aquilo
que Nietzsche chamou de die blonde Bestie, o semblante bestial do
nacionalismo zoológico.19

O significado positivo do livro de Jaensch consiste em que nele


todas as máscaras caem. A hipocrisia diplomática pode apenas atra­
palhar, no momento da batalha final e decisiva, a maior e mais justa
de todas jamais travada pela humanidade ao longo de sua história.
Dois mundos e dois sistemas de ideias se contrapõem abertamente.
O livro de Jaensch, assim como toda a fascistização da psicologia, ne­
cessariamente, levará a psicologia a um terrível aguçamento da luta
de classes na ciência em geral e na psicologia em particular. Isso traz
uma grande dose de responsabilidade para a psicologia soviética.
Ela deve se lembrar de seu front exterior internacional, ao qual até
o momento ela não se atentou suficientemente. Seus aliados nessa
luta serão não apenas os proletários alemães, mas também os pro­
letários de todos os países. É chegada a hora que até para um cego
ficará claro que no momento que em um sexto do mundo as pessoas
lutam pela libertação de toda a humanidade, pela possibilidade de
8. O fascismo na psiconeurologia (1934) 23 9

algo efetivamente superior, novo e inaudito na historia do tipo da


personalidade humana, quando os oprimidos e os demais povos em
seqüência avançam para a vanguarda da humanidade, no campo da
burguesia a consciência das pessoas se orienta por fragmentos me­
dievais ressuscitados.

Notas da tradução

1. Referência ao filósofo e psicólogo alemão Edward Spranger (1882-1963),


que publicou, em 1914, o livro Formas de vida.

2. Referência a Narziss Ach (1871-1946), psicólogo alemão da Escola de


Würzburg (ver nota 9 do texto 1). Em oposição aos associacionistas, desen­
volveu a ideia de que o pensamento, no decorrer da resolução de tarefas,
é determinado por uma tendência nela implícita - a tendência determi­
nante. Mudanças realizadas por Leonid Sakharov, discípulo de Vigotski,
no método experimental de estudo de conceitos de Ach, levaram à criação
do método de Sakharov dos conceitos artificiais, uma variante do método
funcional da dupla estimulação idealizado por Vigotski.

3. Sobre Jaensch, ver nota 7 do texto 6.

4. Jaensch publicou esse livro originalmente em 1933.

5. O trecho é uma citação da peça A desgraça de se ter espirito (1825), de


Aleksandr Griboiédov, na qual o personagem propõe que um militar faça
as vezes do filósofo, sugerindo assim que se instale uma lógica de caserna
no pensamento.

6. Kulak designa o camponês que possuía mais do que 3,2 hectares de terra
no final do Império Russo. No período soviético, o termo passou a desig­
nar, de modo geral, o proprietário rural de estratos sociais superiores, que
resistiram às transformações trazidas pela revolução.

7. Sobre Ebbinghaus, ver nota 22 do texto 1.

8. Sobre Dilthey, ver nota 5 do texto 2.

9. Sobre a Gestalt, ver nota 5 do texto 6.


240 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

10. Vigotski provavelmente refere-se às tentativas da Gestalt de pensar a psico­


logia a partir da mecânica quântica, para além de uma concepção conven­
cional do átomo.

11. Referência ao psicólogo inglês George Stout (1860-1944).

12. Sobre Sherrington, ver nota 6 do texto 1.

13. Sobre Wertheimer, ver nota 5 do texto 6.

14. Referência ao vitalismo de Hans Driesch (1867-1941) e Ernst Becher (1884-


1926).

15. Sobre Koffka, ver nota 5 do texto 6.

16. Sobre Lewin, ver nota 37 do texto 6.

17. Referência ao famoso místico alemão Eckhart de Hochheim (1260-1328),


também conhecido como Mestre Eckhart.

18. Pogrom designa a perseguição de grupos étnicos ou religiosos com atos de


violência em massa.

19. Die blonde Bestie significa literalmente “a besta loura”, que aparece pela pri­
meira vez em obra de Nietzsche de 1887 (A genealogia da moral). Há muitos
debates sobre o sentido dessa expressão, mas, aparentemente, o autor refe-
ria-se a raças antigas que se comportavam como animais de rapina, repletas
de força e vigor, ainda não enfraquecidas pela adoção da moral cristã.
9. Sobre a questão do
desenvolvimento dos conceitos
científicos na idade escolar:
experiência de construção de uma
hipótese de trabalho (1934)
A questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na
idade escolar é antes de tudo uma questão prática enorme, talvez
até de importância primordial do ponto de vista das tarefas que se
colocam diante da escola em relação ao processo de ensino e apren­
dizagem da criança sobre o sistema de conhecimentos científicos. En­
tretanto, o que sabemos sobre essa questão se mostra escasso. Não
é menor o significado teórico dessa questão, uma vez que o desen­
volvimento de conceitos científicos, isto é, autênticos, indubitáveis e
verdadeiros, não pode deixar de se revelar na investigação das re­
gularidades mais profundas, mais essenciais e básicas de qualquer
processo de formação de conceitos em geral. Nesse sentido, é notável
o fato de que esse problema, que constitui a chave para toda a histó­
ria do desenvolvimento intelectual da criança e com a qual pareceria
ser possível iniciar a investigação do pensamento infantil, mostra-se
até muito recentemente quase que não elaborado, de modo que a
presente pesquisa experimental, cujo prefácio se encontra nestas pá­
ginas, é praticamente o primeiro experimento de estudo sistemático
da questão.
Como se desenvolvem os conceitos científicos na mente da
criança que passa pelo processo ensino-aprendizagem escolar? Qual
é a relação na consciência da criança entre os processos propriamente
de ensino-aprendizagem e de assimilação de conhecimentos e os pro­
cessos de desenvolvimento interior da compreensão científica? Eles
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

coincidem entre si, sendo apenas dois aspectos de um processo que


é essencialmente o mesmo? Será que o processo de desenvolvimento
interior da compreensão é subsequente ao processo de ensino-apren-
dizagem, como uma sombra lançada por um objeto, sem coincidir
com ele, mas reproduzido de modo exato e repetindo seu movimento,
ou será que entre ambos os processos existem relações incomensu-
ravelmente mais complexas e sutis, que podem ser estudadas apenas
com auxílio de pesquisas especiais?

Para todas essas perguntas, a psicologia infantil contemporâ­


nea oferece apenas duas respostas. A primeira delas consiste em que
os conceitos científicos, de modo geral, não têm sua própria história
interna, eles não passam por um processo de desenvolvimento no
sentido próprio do termo, mas são apenas assimilados, apreendidos
em seu aspecto acabado com o auxílio de processos de entendimento,
assimilação e compreensão, eles são captados pela criança em seu
aspecto acabado ou tomado de empréstimo da esfera do pensamento
dos adultos; assim, o problema do desenvolvimento dos conceitos
científicos, essencialmente, deveria ser esgotado pelo problema do
processo de ensino-aprendizagem do conhecimento científico e as­
similação de conceitos por parte da criança. Esse é o ponto de vista
mais difundido e praticamente generalizado, com base nele até muito
recentemente continua sendo construída a teoria do ensino escolar e
o conjunto de procedimentos de certas disciplinas científicas.
A inconsistência de tal ponto de vista se revela já no primeiro
contato por parte da crítica científica e, ademais, se revela ao mesmo
tempo em seu aspecto teórico e prático. Sobre a pesquisa do processo
de formação de conceitos, sabe-se que o conceito aparece não como
um mero conjunto de ligações associativas, assimiladas com auxílio
da memória, não é uma habilidade mental automática, mas um ato
complexo e autêntico de pensamento, que não deve ser dominado por
meio da simples memorização, mas que exige necessariamente que
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de um a hipótese de trabalho (1934)

o pensamento da criança tenha se elevado em seu desenvolvimento


interior para um estágio superior, de modo que o conceito possa
emergir na consciência. A pesquisa mostra que o conceito, qualquer
que seja seu grau de desenvolvimento, é em seu aspecto psicológico
um ato de generalização. O resultado mais importante de todas as
pesquisas nessa área é o estabelecimento da posição sólida de que
conceitos, apresentados psicologicamente, como o significado das pa­
lavras, desenvolvem-se. A essência do desenvolvimento deles consiste,
primeiramente, na passagem de uma estrutura de generalização para
outra. Qualquer significado de palavra, em qualquer idade, é uma
generalização. Porém, os significados das palavras se desenvolvem.
No momento em que a criança assimila pela primeira vez uma nova
palavra, ligada a um significado determinado, o desenvolvimento da
palavra não terminou, mas apenas começou; inicialmente ele é a gene­
ralização do tipo mais elementar, e, apenas na medida do seu desen­
volvimento, a criança passa da generalização de tipo elementar para
outras de tipo mais e mais elevado, realizando esse processo por meio
da formação de conceitos autênticos e verdadeiros.
Esse processo de desenvolvimento de conceitos ou do signifi­
cado da palavra exige o desenvolvimento de uma série de funções,
como a atenção voluntária, a memória lógica, a abstração, a compa­
ração e distinção, e todos esses complexos processos psicológicos não
podem emergir apenas da memória, não podem ser apenas decorados
e assimilados. Por isso, do ponto de vista teórico, dificilmente pode
suscitar dúvidas a total falta de fundamento da visão segundo a qual
os conceitos são adquiridos pela criança no processo de aprendiza­
gem escolar em seu aspecto acabado e assimilados do mesmo modo
como são assimiladas quaisquer outras habilidades intelectuais.

Também do ponto de vista prático, a cada passo revela-se o


equívoco de tal visão. A experiência pedagógica nos ensina, não me­
nos do que a pesquisa teórica, que a aprendizagem direta de conceitos
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

é sempre impossível de fato e pedagógicamente estéril. O professor


que tenta seguir esse caminho em geral não chega a lugar nenhum,
a não ser à assimilação vazia de palavras, um verbalismo cru, que
simula e imita a presença dos conceitos correspondentes na criança,
mas que, na realidade, encobre sua futilidade. Nesses casos, a criança
assimila não o conceito, mas a palavra, ela recorre mais à memória
do que ao pensamento e se vê desamparada diante de quaisquer ten­
tativas de aplicação dotada de sentido do conhecimento assimilado.
Essencialmente, esse modo de ensino-aprendizagem dos conceitos é
o defeito básico, condenado por todos, do modo puramente escolás­
tico, puramente verbal de ensino, que substitui o domínio do conhe­
cimento vivo pela assimilação de esquemas verbais vazios e mortos.
L. N. Tolstói,1esse grande conhecedor da natureza das palavras
e de seu significado, deu-se conta de forma mais clara e aguda do que
os demais sobre a impossibilidade da transmissão direta e simples
de conceitos do professor para o aluno; a transferência mecânica do
significado da palavra de uma cabeça para a outra com a ajuda de
outras palavras é uma impossibilidade com a qual ele se deparou em
sua experiência pedagógica.
Ao relatar suas experiências de ensino-aprendizagem da língua
literária por parte de crianças, por meio da tradução das palavras
infantil para a língua do conto maravilhoso e da língua do conto ma­
ravilhoso para um nível mais elevado, ele chegou à conclusão de que
não se pode ensinar a língua literária aos alunos por meio de explica­
ções violentas, da memorização e repetição, contra a vontade deles,
do modo como se aprende francês.
Ele diz:

D evem os admitir que isso foi reiteradamente testado ao longo dos


últimos dois m eses e sempre encontramos uma aversão insuperável,
que comprova a falsidade do cam inho tomado. Com tais experiên­
cias, convenci-m e de que a explicação do sentido da palavra e da
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)

linguagem é totalm ente impossível m esm o para um professor talen­


toso, isso para não falar das explicações, tão amadas por professores
sem talento, por exem plo de que uma assembleia é uma espécie de
sinédrio pequeno2 etc. Ao explicar qualquer palavra que seja, por
exemplo, “im pressão”, ou você apresenta outra palavra, tão ininteli­
gível quanto, no lugar da explicada, ou uma série de palavras cujas
relações são igualmente tão ininteligíveis quanto a própria palavra.3

Nessa posição categórica de Tolstói se veem misturadas, em


igual medida, uma verdade e uma mentira. A parte verdadeira é a
conclusão, que decorre diretamente da experiência, bem conhecida
de qualquer professor que luta em vão, assim como Tolstói, com a
interpretação da palavra. A verdade dessa posição, para usar as pa­
lavras do próprio Tolstói, consiste em que quase sempre não se trata
de que a própria palavra não é compreendida, mas do fato de que o
aluno que não tem o conceito que expressa a palavra. A palavra quase
sempre está pronta quando o conceito está pronto.
O aspecto falso dessa posição, que está diretamente ligado à
visão geral de Tolstói sobre as questões do processo ensino-aprendiza-
gem, consiste em que ela exclui qualquer possibilidade de interferên­
cia mais grosseira nesse processo misterioso; ele tenta compreender
o processo de desenvolvimento dos conceitos por meio das leis de
seu próprio curso interior, separando o desenvolvimento dos concei­
tos do processo ensino-aprendizagem e condenando o professor a
uma grande passividade na questão do desenvolvimento dos concei­
tos científicos. Esse erro aparece de forma especialmente evidente na
formulação categórica segundo a qual “qualquer interferência surge
como uma força grosseira e despropositada, que freia o processo de
desenvolvimento”.
Contudo, o próprio Tolstói compreendeu que nem toda in­
terferência freia o processo de desenvolvimento dos conceitos, mas
apenas uma interferência grosseira, direta, que atua como uma linha
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

reta, como a distância mais curta entre dois pontos, na formação de


conceitos na mente da criança que não pode trazer nada além de
prejuízo. Métodos mais sutis, mais complexos, indiretos de ensino-
-aprendizagem são formas de interferência no processo de formação
de conceitos infantis que fazem esse processo avançar adiante e em
um nível superior. Diz Tolstói:

é preciso dar ao aluno a oportunidade de adquirir novos conceitos


e palavras a partir do sentido geral do discurso. Q uando ele ouve
ou lê uma palavra desconhecida em uma frase conhecida um a vez,
e mais outra vez em outra frase, com eça a surgir vagamente para ele
um novo conceito, ele sente, enfim, fortuitamente, a necessidade de
usar essa palavra; ao empregá-la uma vez, tanto a palavra quanto o
conceito se tornam sua propriedade. Há ainda milhares de outros
caminhos. Mas estou convicto de que oferecer conscientem ente ao
aluno novos conceitos e formas da palavra é tão im possível e inútil
quanto ensinar uma criança a andar de acordo com as leis do equilí­
brio. Qualquer tentativa desse tipo não faz o aluno avançar, mas afas­
ta-o do objetivo proposto, com o a mão grosseira do ser humano que,
desejando ajudar uma flor a se desabrochar, com eçasse a desdobrar
as pétalas e amassasse tudo.

Dessa forma, Tolstói sabe que existem milhares de outros


caminhos para o ensino-aprendizagem de novos conceitos pela
criança, para além do caminho escolástico. Ele rejeita apenas um
deles: o desdobramento mecânico, tosco e direto de um novo con­
ceito “pelas pétalas”. Isso é correto. É indiscutível. Todas as ex­
periências teóricas e práticas o confirmam. Porém, Tolstói atribui
um significado demasiadamente grande à espontaneidade, à alea-
toriedade, ao trabalho de uma compreensão e sensação vagas, ao
aspecto interior da formação de conceitos, que é fechado em si
mesmo e diminui consideravelmente a possibilidade de influência
direta sobre esse processo, afastando por demais o processo ensi­
no-aprendizagem do desenvolvimento.
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)

Interessa-nos, nesse caso, não esse aspecto equivocado do pen­


samento tolstoiano e seu desmascaramento, mas a semente de ver­
dade de sua posição, manifesta na conclusão sobre a impossibilidade
de se desdobrar um novo conceito “pelas pétalas”. Ocupamo-nos da
ideia, que nos parece absolutamente verdadeira, de que o caminho
desde o primeiro contato com um novo conceito até o momento de
apropriação da palavra e do conceito por parte da criança é um pro­
cesso psicológico interior complexo que envolve a compreensão de
uma nova palavra desenvolvida gradualmente a partir de representa­
ções vagas, a aplicação pela própria criança e, apenas como elo final,
a efetiva assimilação. Em essência, era isso que pretendíamos expres­
sar antes ao dizermos que, quando a criança reconhece pela primeira
vez o significado de uma palavra nova para ela, o processo de desen­
volvimento do conceito não se encerra, mas está apenas começando.
A presente pesquisa teve como tarefa verificar na prática da
investigação experimental a probabilidade e a produtividade das hipó­
teses de trabalho desenvolvidas neste artigo. Ela mostra não somente
os milhares de caminhos de que fala Tolstói, mas também que o pro­
cesso ensino-aprendizagem de novos conceitos e formas de palavra
por parte dos alunos não é apenas possível, como também pode ser a
fonte de um desenvolvimento superior de conceitos próprios, que já
se formaram na criança; mostra que é possível realizar um trabalho
direto sobre os conceitos no processo de ensino-aprendizagem esco­
lar. Mas esse trabalho, como revela a pesquisa, constitui não o final,
mas o começo do processo de compreensão científica; ele não apenas
não exclui os próprios processos de desenvolvimento, como oferece
a eles uma nova direção, colocando os processos de ensino-aprendi­
zagem e de desenvolvimento em uma relação máximamente favorável
do ponto de vista das tarefas finais da escola.
Contudo, para abordarmos essa questão, é necessário antes es­
clarecer uma circunstância. Tolstói está o tempo todo falando sobre
Psicologia, desenvolvimento hum ano e marxismo

conceitos em relação ao processo ensino-aprendizagem da linguagem


literária por parte das crianças. Por conseguinte, ele não se refere ao
conceito adquirido pela criança no processo de assimilação do sistema
de conhecimento científico, mas de palavras novas e desconhecidas
para a criança e os conceitos do discurso corrente que se entrelaça
no tecido de conceitos formados anteriormente na criança. Isso é evi­
dente se considerarmos os procedimentos empregados por Tolstói. Ele
fala da explicação e interpretação de palavras como “impressão” ou
“instrumento”, isto é, palavras e conceitos que não pressupõem ne­
cessariamente a assimilação em um sistema rígido determinado. No
entanto, o objeto de nossa pesquisa é o problema do desenvolvimento
dos conceitos científicos, o qual se dá justamente no processo de ensi-
no-aprendizagem de um determinado sistema de conhecimentos cien­
tíficos por parte da criança. Naturalmente surge a questão sobre até
que ponto a posição por nós analisada anteriormente se difunde em
igual medida também no processo de formação de conceitos científi­
cos. Para isso, é preciso explicitar como, em geral, se relacionam entre
si o processo de formação de conceitos científicos e aqueles conceitos
a que se refere Tolstói e que, em virtude de sua origem na experiência
cotidiana da criança, poderia ser designado convencionalmente como
conceito cotidiano.
Delimitando, dessa forma, conceito científico e cotidiano, de­
terminamos de antemão o quanto tal delimitação é legítima do ponto
de vista objetivo. Ao contrário, uma das principais tarefas da presente
pesquisa é justamente esclarecer se há uma distinção objetiva no
curso do desenvolvimento de determinado conceito, em que consiste
essa distinção, se ela existe na realidade e quais distinções factuais
objetivas existentes entre o processo de desenvolvimento de concei­
tos científicos e cotidianos permitem que esses processos tenham um
estudo comparativo.
A tarefa do presente ensaio, que apresenta a experiência de
construção de uma hipótese de trabalho, é uma evidência de que tal
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de um a hipótese de trabalho (1934)

delimitação é empiricamente justificada, teoricamente consistente e,


portanto, deve estar na base de nossa hipótese de trabalho. Faz-se ne­
cessário comprovar que os conceitos científicos não se desenvolvem
como os cotidianos, que o curso do seu desenvolvimento não repete
o desenvolvimento dos conceitos cotidianos. As tarefas da pesquisa
experimental que apresenta a experiência de verificação de nossas
hipóteses de trabalho são uma comprovação factual dessa posição e
a elucidação da distinção existente entre esses dois processos.
É necessário dizer de antemão que aquilo que tomamos cbmo
ponto de partida, aquilo que desenvolvemos em nossa hipótese de
trabalho e em toda colocação do nosso problema de pesquisa, isto é, a
delimitação entre conceitos cotidianos e científicos não apenas não é
algo amplamente aceito na psicologia contemporânea, como também
está em contradição com as visões difundidas sobre esse objeto. Por
isso, tal delimitação requer necessariamente uma explicação e um
reforço por meio de evidências.
Dissemos anteriormente que atualmente existem duas respostas
para a questão sobre como se desenvolvem os conceitos científicos na
mente da criança que passa pelo processo de ensino-aprendizagem es­
colar. A primeira delas, como já foi dito, expressa uma total recusa de
que exista um processo de desenvolvimento interior de conceitos cien­
tíficos assimilados na escola; buscamos apontar a falta de fundamento
dessa resposta mencionada antes. Resta ainda a segunda resposta. É
justamente ela que aparece hoje em dia como a mais amplamente di­
fundida. Segundo ela, o desenvolvimento de conceitos científicos na
mente da criança que passa pelo processo de ensino-aprendizagem es­
colar de modo geral não se distingue em nada do desenvolvimento dos
demais conceitos que se formam no processo de experiência própria
da criança, de modo que, por conseguinte, a própria delimitação des­
ses processos se revela infundada. Sob esse ponto de vista, o processo
de desenvolvimento dos conceitos científicos simplesmente repete em
250 Psicologia, desenvolvimento hum ano e marxismo

seus traços básicos e essenciais o curso do desenvolvimento dos con­


ceitos cotidianos. Agora, porém, devemos nos perguntar em que se
baseia tal convicção.

Se nos voltarmos para toda literatura científica sobre a ques­


tão, veremos que o objeto de quase todas as pesquisas dedicadas ao
problema da formação de conceitos na idade infantil sempre foram os
conceitos cotidianos. Todas as leis fundamentais do desenvolvimento
dos conceitos infantis foram estabelecidas com base no material dos
conceitos cotidianos próprios das crianças. A seguir, sem qualquer
verificação, eles são extrapolados para o campo do pensamento cien­
tífico da criança, com a transferência direta para uma outra esfera de
conceitos que emergem sob condições internas totalmente distintas,
simplesmente porque, na cabeça do pesquisador, sequer se coloca a
questão da legitimidade e licitude de tal extrapolação da interpretação
dos resultados de pesquisas que se limitam apenas a um determinado
campo dos conceitos infantis.
É verdade que os pesquisadores mais perspicazes, como Piaget,4
não poderiam deixar de se deter nessa questão. Tão logo esse pro­
blema se apresentou, eles tiveram que distinguir claramente entre as
representações da criança sobre a realidade que se desenvolvem de
modo decisivo mediante o trabalho do pensamento infantil e aquelas
que surgem sob influência decisiva e determinante de conhecimentos
assimilados por ela a partir dos que estão ao seu redor. As primeiras
são designadas por Piaget como representações espontâneas; as se­
gundas, como reativas.
Piaget estabelece que esses dois grupos de representações ou
conceitos têm muito em comum entre si: (1) ambos revelam uma opo­
sição em relação à sugestão; (2) ambos têm raízes profundas no pen­
samento da criança; (3) ambos revelam certo caráter comum entre as
crianças de mesma idade; (4) ambos se mantêm por muito tempo, por
alguns anos, na consciência da criança e gradualmente cedem lugar a
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)

novos conceitos em vez de desaparecerem de uma hora para a outra,


como é típico de representações incutidas; (5) ambos se revelam nas
primeiras respostas corretas das crianças.
Todos esses traços comuns a ambos os grupos de conceitos
infantis se distinguem das representações e respostas incutidas, que a
criança dá sob influência da força sugestiva da pergunta.5
Em tais posições, que são fundamentalmente corretas, há pleno
reconhecimento de que os conceitos científicos da criança sem dúvida
pertencem ao segundo grupo de conceitos infantis, os quais emergem
não de modo espontâneo, mas que realizam um processo verdadeiro
de desenvolvimento. Isso se mostra evidente a partir dos cinco pontos
enumerados anteriormente.
Piaget reconhece até que a investigação desses grupos de con­
ceitos pode se tornar um objeto legítimo e independente de um es­
tudo especial. Também nesse sentido ele vai além e mais fundo do que
todos os demais pesquisadores.
Ao mesmo tempo, Piaget comete o erro de desvalorizar uma
parte correta de seu raciocínio. Interessam-nos primeiramente três
aspectos errôneos internos, ligados entre si, do pensamento de Piaget.

O primeiro deles consiste em que, apesar de reconhecer a pos­


sibilidade de investigação independente de conceitos infantis não es­
pontâneos, apesar de indicar que tais conceitos têm raízes profundas
no pensamento infantil, Piaget continua inclinado à afirmação oposta,
segundo a qual apenas os conceitos espontâneos da criança e suas
representações espontâneas podem servir de fonte de conhecimento
imediato sobre as peculiaridades qualitativas do pensamento infantil.
Os conceitos não espontâneos, formados sob influência dos adultos
que circundam a criança, refletem, segundo Piaget, menos as peculia­
ridades do pensamento infantil do que o grau e o caráter de assimila­
ção dos pensamentos dos adultos por parte das crianças. Isso faz com
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

que Piaget caia em contradição com seu próprio pensamento, correto,


de que a criança, ao assimilar um conceito, reelabora-o, deixando a
marca das particularidades específicas de seu próprio pensamento
nesse processo de reelaboração do conceito. Ele tende, contudo, a re­
lacionar essa posição apenas aos conceitos espontâneos, recusando-se
a ver sua aplicabilidade em igual medida a conceitos não espontâneos.
Nessa conclusão totalmente infundada reside o primeiro aspecto er­
rôneo da teoria de Piaget.
O segundo decorre diretamente do primeiro. Uma vez reco­
nhecido que os conceitos não espontâneos da criança não refletem as
peculiaridades do pensamento infantil como tal, mas que essas pecu­
liaridades estão presentes apenas nos conceitos espontâneos, somos
obrigados a aceitar - é o que faz Piaget - que entre conceitos espon­
tâneos e não espontâneos existe uma fronteira intransponível, sólida,
estabelecida de uma vez por todas, que exclui qualquer possibilidade
de influência mútua entre esses dois grupos. Piaget apenas distingue
entre conceitos espontâneos e não espontâneos, mas não vê aquilo
que os une em um único sistema de conceitos, que se forma no curso
do desenvolvimento mental da criança. Ele enxerga apenas a ruptura,
mas não a relação. Por isso, o desenvolvimento de conceitos é visto
como dois processos separados que se formam mecanicamente, que
não têm nada em comum entre si e que transcorrem por dois canais
totalmente isolados e separados.
Esses equívocos colocam a teoria num emaranhado de contra­
dições internas que levam ao terceiro erro. Por um lado, Piaget reco­
nhece que os conceitos não espontâneos da criança não refletem em
si as peculiaridades do pensamento infantil, esse privilégio pertence
exclusivamente aos conceitos espontâneos. Então ele deverá concor­
dar que o conhecimento dessas peculiaridades do pensamento infantil
não tem praticamente nenhuma importância, uma vez que os concei­
tos não espontâneos são adquiridos ao largo de qualquer dependência
dessas peculiaridades. Por outro lado, uma das posições básicas de
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)

sua teoria é o reconhecimento de que a essência do desenvolvimento


mental da criança consiste na socialização progressiva do pensamento
infantil; uma das formas básicas e mais concentradas do processo de
formação de conceitos não espontâneos é o processo ensino-aprendi-
zagem escolar; portanto, o processo de socialização do pensamento
mais importante para o desenvolvimento infantil, do modo como ele
aparece no processo ensino-aprendizagem, mostra-se desconectado
do processo interno de desenvolvimento intelectual da criança. Por
um lado, o conhecimento do processo de desenvolvimento interno do
pensamento infantil se vê desprovido de qualquer importância para a
explicação de sua socialização no curso do processo ensino-aprendi­
zagem; por outro lado, a socialização do pensamento da criança, que
avança para o primeiro plano no processo de ensino-aprendizagem,
não se encontra de modo algum ligada ao desenvolvimento interno
das representações e dos conceitos infantis.
Essa contradição, que constitui o ponto mais frágil de toda teo­
ria de Piaget e que é, ao mesmo tempo, o ponto de partida de sua
revisão crítica na presente pesquisa, merece ser analisada de forma
mais detalhada.
O aspecto teórico dessa contradição tem sua fonte na represen­
tação de Piaget acerca do problema do desenvolvimento e da apren­
dizagem. Piaget não desenvolve essa teoria em parte alguma, quase
não aborda essa questão em observações passageiras; não obstante,
uma certa resolução desse problema está incluída no sistema de suas
construções teóricas na qualidade de postulado de primeira ordem,
com o qual se ergue e decai a teoria como um todo. Essa resolução
se encontra oculta na teoria analisada, e nossa tarefa consiste em
desenvolvê-la como um aspecto ao qual podemos contrapor o ponto
de partida correspondente da nossa teoria.
O desenvolvimento mental da criança é visto por Piaget como a
extinção gradual das peculiaridades do pensamento infantil, à medida
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

que ele se aproxima do ponto final do desenvolvimento. Para Piaget,


o desenvolvimento mental da criança se dá a partir do processo de
substituição gradual das qualidades e particularidade do pensamento
infantil pelo pensamento mais potente e forte dos adultos. O ponto de
partida do desenvolvimento é delineado por Piaget como solipsismo
da consciência infantil, o qual, a depender da adaptação da criança ao
pensamento dos adultos, cede lugar ao egocentrismo do pensamento
infantil, que é um meio-termo entre as peculiaridades próprias da
natureza da consciência infantil e as particularidades do pensamento
maduro. O egocentrismo se manifesta de modo mais forte quanto
menor a idade. Ao lado da idade, decrescem as peculiaridades do
pensamento infantil, desalojadas de uma esfera depois da outra, até
que finalmente desaparecem. O processo de desenvolvimento é visto
não como surgimento ininterrupto de novas propriedades, superio­
res, mais complexas e mais próximas do pensamento desenvolvido, a
partir de formas mais elementares e primárias, mas como substituição
gradual e contínua de certas formas por outras. A socialização do
pensamento é examinada como uma substituição exterior e mecânica
de particularidades individuais do pensamento da criança. Segundo
esse ponto de vista, o processo de desenvolvimento equivale abso­
lutamente ao processo de substituição do líquido existente em um
recipiente por um outro líquido injetado de fora. O que é novo no de­
senvolvimento vem de fora. As peculiaridades da própria criança não
desempenham um papel construtivo, positivo, progressivo, formador
na história de seu desenvolvimento mental. Não é a partir delas que
emergem as formas superiores de pensamento. Elas, essas formas su­
periores, simplesmente tomam o lugar das anteriores.
Para Piaget essa é a única lei do desenvolvimento mental da
criança.

Se continuarmos o pensamento de Piaget de modo que ele


abarque o problema específico do desenvolvimento, seria possível
afirmar com certeza que uma continuação direta desse pensamento
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de um a hipótese de trabalho (1934)

deve ser o reconhecimento de que antagonismo é a única designação


adequada para as relações que existem entre o processo ensino-apren­
dizagem e o desenvolvimento no processo de formação de conceitos
infantis. A forma do pensamento infantil se vê desde o início contra­
posta às formas do pensamento maduro. Elas não emergem a partir
das outras, mas são mutuamente excludentes. Por isso, é natural que
todos os conceitos não espontâneos assimilados pela criança no con­
tato com os adultos não apenas não terão nada em comum com os
conceitos espontâneos, os quais são produto da atividade própria do
pensamento infantil, como também devem, em toda série de relações
fundamentais, estar contrapostos a eles. Entre um e outro não há pos­
sibilidade de qualquer relação, exceto uma relação constante e perma­
nente de antagonismo, conflito e suplantação de um pelo outro. Um
tem que desaparecer para que o outro possa ocupar seu lugar. Assim,
em toda extensão do desenvolvimento infantil, devem existir dois gru­
pos antagônicos de conceitos: os espontâneos e os não espontâneos,
que com a idade são alterados apenas em suas correlações quantitati­
vas. Inicialmente predomina um tipo; com a passagem de um estágio
etário a outro, há um crescimento progressivo da quantidade do outro
tipo. Por causa do processo de ensino-aprendizagem, na idade escolar
os conceitos não espontâneos substituem os espontâneos definitiva­
mente por volta dos 11-12 anos, de modo que nessa idade o desenvol­
vimento mental da criança está, segundo Piaget, totalmente acabado,
e o ato mais importante que resolve todo o drama do desenvolvi­
mento e que decai na época do amadurecimento, o grau mais elevado
do desenvolvimento mental, isto é, a formação de conceitos genuínos
e maduros, é eliminado da história do desenvolvimento mental como
um capítulo supérfluo e desnecessário. Piaget diz que, a todo mo­
mento, encontramos na realidade, no campo do desenvolvimento das
representações infantis, conflitos reais entre o pensamento da criança
e o pensamento dos que estão ao seu redor, conflitos que levam a uma
deformação sistemática daquilo que é recebido dos adultos na mente
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

da criança. Ademais, todo conteúdo do desenvolvimento é reduzido,


segundo essa teoria, a um conflito ininterrupto entre formas antagô­
nicas de pensamento e a um compromisso peculiar entre elas, o qual
é estabelecido a cada estágio etário e pode ser mensurado pelo grau
de recuo do egocentrismo infantil.
O aspecto prático da contradição analisada consiste na im­
possibilidade de aplicação dos resultados do estudo dos conceitos
espontâneos da criança ao processo de desenvolvimento de seus
conceitos não espontâneos. Por um lado, como vimos, os conceitos
não espontâneos da criança, em especial os conceitos formados no
processo de ensino-aprendizagem escolar, não têm nada em comum
com o próprio processo de desenvolvimento do pensamento infan­
til; por outro lado, na resolução de qualquer questão pedagógica, do
ponto de vista da psicologia, faz-se uma tentativa de transferir a lei do
desenvolvimento dos conceitos espontâneos para o processo ensino-
-aprendizagem escolar. O resultado, como se pode ver no artigo “A
psicologia da criança e o ensino de história”, de Piaget, é um círculo
vicioso. Diz Piaget:

Se, de fato, o ensino de conceitos históricos para a criança pressupõe


a presença de uma abordagem crítica ou objetiva, pressupõe a com­
preensão da interdependência, a com preensão das relações e da esta­
bilidade, nada está em condição de definir melhor a técnica de ensino
de história do que o estudo psicológico das orientações intelectuais
espontâneas das crianças, por mais ingênuas e pouco significativas
que elas possam parecer à primeira vista.

Porém, nesse mesmo artigo, o estudo de tais orientações inte­


lectuais espontâneas da criança leva o autor à conclusão de que o
pensamento infantil é alheio justamente àquilo que constitui o objetivo
principal do ensino de história, a abordagem crítica e objetiva, a com­
preensão da interdependência, a compreensão das relações e da esta­
bilidade. Dessa forma, resulta que, por um lado, o desenvolvimento de
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)

conceitos espontâneos não é capaz de explicar nada sobre a questão


da aquisição de conhecimentos científicos; por outro lado, nada é mais
importante para a técnica de ensino que o estudo das orientações es­
pontâneas das crianças. Essa contradição prática é resolvida pela teo­
ria de Piaget também por meio do princípio do antagonismo existente
entre o processo de ensino-aprendizagem e o desenvolvimento. Eviden­
temente, o conhecimento das orientações espontâneas é importante,
pois são justamente elas que devem ser substituídas no processo de
ensino-aprendizagem. Conhecê-las é tão importante quanto conhecer o
inimigo. O conflito ininterrupto entre o pensamento maduro, que está
na base do ensino escolar, e o pensamento infantil deve ser esclarecido
para que a técnica que ensino possa tirar lições úteis dele.
A tarefa da presente pesquisa, tanto no que diz respeito à cons­
trução de uma hipótese de trabalho quanto à sua verificação com
ajuda de um experimento, traz antes de tudo a superação dos três
equívocos fundamentais descritos anteriormente por uma das mais
fortes teorias contemporâneas.
Contra a prim eira dessas posições equivocadas, podemos
apresentar a proposição, de sentido oposto, segundo a qual se deve
esperar que o desenvolvimento de conceitos não espontâneos, e dos
científicos em particular, os quais temos o direito de considerar como
um tipo de conceito não espontâneo elevado, mais puro e impor­
tante no sentido teórico e prático, revele, mediante uma investiga­
ção especial, todas as peculiaridades qualitativas básicas próprias
do pensamento infantil em dado estágio do desenvolvimento etário.
Ao apresentarmos essa proposição, baseamo-nos na simples consi­
deração, desenvolvida anteriormente, de que os conceitos científicos
não são assimilados e aprendidos pela criança, não emergem pela
memória, mas surgem e se formam com ajuda da grande tensão de
toda atividade de seu próprio pensamento. Daí decorre com impla­
cável inevitabilidade que o desenvolvimento dos conceitos científicos
deve revelar em sua toda plenitude as peculiaridades da atividade
2 58 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

do pensamento infantil. A pesquisa experimental confirma integral­


mente essa hipótese.
Contra a segunda posição equivocada de Piaget, apresentamos
novamente uma proposição de sentido oposto, segundo a qual os con­
ceitos científicos da criança, como tipo mais puro de conceito não
espontâneo, revelam no processo de pesquisa não apenas os traços
opostos àqueles dos conceitos espontâneos, que conhecemos pela pes­
quisa, mas também traços em comum com eles. A fronteira que os dis­
tingue é altamente instável, transitando incontáveis vezes no decurso
real do desenvolvimento entre os dois lados. Devemos admitir de an­
temão que o desenvolvimento de conceitos espontâneos e científicos
são processos mútua e estreitamente ligados e que se influenciam
ininterruptamente entre si. Por um lado, é assim que devemos elabo­
rar nossa hipótese, o desenvolvimento de conceitos científicos deve
se basear necessariamente em um certo nível de amadurecimento
dos conceitos espontâneos que não pode ser indiferente para a for­
mação de conceitos infantis porque a experiência direta nos ensina
que o desenvolvimento dos conceitos científicos só se torna possível
quando os conceitos espontâneos da criança atingiram certo nível,
que é próprio do início da idade escolar. Por outro lado, devemos
supor que o surgimento de conceitos de um tipo superior, como é o
caso dos conceitos científicos, não pode ficar sem a influência sobre
o nível dos conceitos espontâneos estabelecidos anteriormente, pelo
simples motivo de que ambos os conceitos não estão encapsulados na
consciência da criança, não estão separados entre si por um anteparo
intransponível, mas correm por dois canais isolados, que se encon­
tram em processo de interação constante e ininterrupta, que neces­
sariamente deve levar a que uma generalização mais elevada por sua
estrutura, que é própria dos conceitos científicos, deva suscitar uma
mudança na estrutura dos conceitos espontâneos. Ao apresentarmos
essa proposição, baseamo-nos no fato de que, quer estejamos falando
do desenvolvimento de conceitos espontâneos ou científicos, trata-se
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)

do desenvolvimento de um processo único de formação de conceitos


que se realiza mediante diversas condições internas e externas, mas
que permanece sendo único em sua natureza, e não se forma a partir
da luta, do conflito e do antagonismo de duas formas que se excluem
mutuamente desde o princípio. A pesquisa experimental confirma
essa posição.
Por fim, contra a terceira posição, podemos apresentar uma
proposição de sentido oposto, segundo a qual entre o processo de
ensino-aprendizagem e o desenvolvimento na formação de conceitos
deve haver não antagonismo, mas uma relação de caráter infinita­
mente mais complexo. Devemos esperar de antemão que o processo
de ensino-aprendizagem deve ser revelado no curso de uma investiga­
ção especial, como uma das fontes fundamentais do desenvolvimento
dos conceitos infantis e como uma força poderosa que direciona esse
processo. Ao apresentarmos essa proposição, baseamo-nos no fato
amplamente conhecido de que o processo ensino-aprendizagem é um
momento decisivo da idade escolar, que define todo o futuro do de­
senvolvimento mental da criança, inclusive o desenvolvimento de con­
ceitos, bem como na consideração de que os conceitos científicos de
tipo superior não podem surgir na cabeça da criança exceto a partir
de tipos de generalização inferiores e elementares, e não podem ser
levados de fora à consciência da criança. A pesquisa novamente con­
firma essa terceira e última proposição e, ademais, permite colocar a
questão sobre o uso de dados do estudo psicológico sobre conceitos
infantis aplicados aos problemas do ensino e da aprendizagem de
forma totalmente distinta do que faz Piaget.
A pesquisa comparativa de conceitos sociológicos científicos e
cotidianos e de seu desenvolvimento na idade escolar realizada por
J. I. Chif6 tem, no universo de tudo que foi dito anteriormente, um
duplo significado. Sua primeira e mais imediata tarefa foi verificar
experimentalmente a parte concreta da nossa hipótese de trabalho
relativa ao caminho peculiar de desenvolvimento realizado pelos con-
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

ceitos científicos em comparação com os cotidianos. A segunda tarefa


da pesquisa foi a resolução, nesse caso particular, do problema geral
da relação entre desenvolvimento e o processo ensino-aprendizagem.
Não vamos repetir aqui como foram resolvidas essas questões na pes­
quisa. Pensamos que ambas foram primariamente resolvidas de modo
absolutamente satisfatório no plano experimental.
Ao lado dessas, surgiram ainda duas questões cujo pano de
fundo são requisitos para que ambas as questões mencionadas ante­
riormente possam ser colocadas para a pesquisa.
Em primeiro lugar, trata-se de questão da natureza dos con­
ceitos espontâneos da criança, que até então eram considerados os
únicos e exclusivos objetos de estudo da investigação psicológica;
em segundo lugar, o problema geral do desenvolvimento psicoló­
gico do escolar,7 fora do qual nenhuma investigação particular dos
conceitos infantis é possível. Essas questões não podiam ocupar o
mesmo lugar na pesquisa que ocupam as outras duas. Por isso, po­
demos falar apenas em dados indiretos que são fornecidos em nossa
organização da pesquisa para a resolução de tais questões. Porém,
pensamos que esses dados indiretos mais confirmam do que nos
fazem rejeitar as proposições por nós desenvolvidas na hipótese
sobre essas duas questões.
Em nossa visão, o significado mais importante desta pesquisa
consiste em que ela leva a uma nova colocação do problema do de­
senvolvimento na idade escolar, oferece uma hipótese de trabalho
que explica bem todos os fatos encontrados em pesquisas anteriores e
encontra em si a confirmação de novos fatos estabelecidos experimen­
talmente nesta pesquisa; por fim, ela elabora um método de pesquisa
de conceitos reais da criança, em particular de conceitos científicos
e, com isso, não apenas estabelece uma ponte entre a pesquisa de
conceitos experimentais e a análise de conceitos cotidianos reais da
criança, como desvela um campo de pesquisa novo, teoricamente fér-
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de um a hipótese de trabalho (1934)

til e de importância praticamente infinita, que talvez seja central em


seu significado para toda a história do desenvolvimento mental do
escolar. Ela mostra como é possível investigar cientificamente o de­
senvolvimento de conceitos infantis.
Por fim, consideramos que o significado prático da pesquisa
reside no fato de que ela revelou para o pedólogo escolar as possibili­
dades de uma análise pedológica efetiva, ou seja, uma análise do de­
senvolvimento que é o tempo todo guiado pelo princípio e pelo ponto
de vista no campo do sistema de ensino-aprendizagem de conceitos
científicos. Com isso, a pesquisa leva a uma série de conclusões pe­
dagógicas imediatas em relação ao ensino de sociologia, iluminando
por ora, obviamente, apenas em traços rústicos mais gerais e esque­
máticos, aquilo que ocorre na cabeça de cada aluno em particular no
processo de ensino-aprendizagem de sociologia.
Nesta pesquisa, vimos três falhas vitais, que infelizmente não
pudemos superar nessa primeira experiência que segue uma nova
orientação. A primeira delas consiste no fato de que os conceitos so­
ciológicos da criança são tomados em seu aspecto mais geral do que
específico. Eles servem para nós mais como protótipo de qualquer
conceito científico em geral do que como um tipo determinado e pecu­
liar de um gênero específico de conceito científico. Isso se deve a que
nos primeiros momentos da pesquisa nessa nova esfera foi necessário
estabelecer uma fronteira entre conceitos científicos e cotidianos, e
revelar aquilo que é próprio aos conceitos sociológicos como o caso
particular dos conceitos científicos. Já as diferenças existentes entre
cada tipo de conceito científico (da aritmética, das ciências naturais,
da sociologia) não poderiam se tornar objeto de pesquisa antes que
fosse traçada a linha demarcadora que distingue conceitos científicos
e cotidianos.

É essa circunstância qúe explica o fato de que o conjunto de


conceitos introduzidos nesta pesquisa não aparece como um sistema
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

de conceitos concretos básicos que constroem a lógica do próprio ob­


jeto, mas, antes, foi criado a partir de uma série de conceitos isolados,
não diretamente relacionados entre si, que foram selecionados empí­
ricamente com base no material programático. Isso explica também
o fato de que a pesquisa oferece muito mais sobre o sentido das leis
gerais do desenvolvimento dos conceitos científicos em comparação
com os cotidianos do que sobre as leis específicas dos conceitos socio­
lógicos como tais, bem como o fato de que os conceitos sociológicos
foram submetidos a uma comparação com conceitos cotidianos toma­
dos de outras esferas da vida social.
A segunda falha, evidente para nós e que está contida no
trabalho, diz respeito novamente ao estudo excessivamente geral,
sumário, não diferenciado e indivisível da estrutura dos conceitos e
das funções que determinam tal estrutura. Assim como a primeira
falha do trabalho levou a que as relações internas entre os con­
ceitos sociológicos, esse im portante problema, não tivessem sido
esclarecidas, a segunda falha levou a uma elaboração insuficiente
sobre o problema do sistema de conceitos, o problema das rela­
ções de comunidade, que é central para toda a idade escolar e é o
único capaz de estabelecer uma ponte entre o estudo dos conceitos
experimentais e sua estrutura e o estudo dos conceitos reais com
sua unidade entre estrutura, funções de generalização e operação
cognitiva. Essa simplificação, inevitável nos primeiros momentos,
que foi admitida por nós na própria elaboração da pesquisa experi­
mental e foi ditada pela nècessidade de colocar a questão de modo
mais estreito, levou, por sua vez, a uma simplificação inaceitável
em outras condições da análise das operações intelectuais que esta
belecemos no experimento. Assim, por exemplo, nas tarefas aplica­
das por nós não foram desmembrados os diversos tipos de relações
de causa e conseqüência, os “porquês” empíricos, psicológicos e ló­
gicos, como fez Piaget, o qual, nesse caso, mostra-se infinitamente
superior; isso levou a um ofuscamento das fronteiras etárias dentro
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)

da idade escolar tomada de modo global. Porém, tivemos de perder


conscientemente a sutileza e o desmembramento da análise psico­
lógica para ter ao menos alguma chance de ganhar na sutileza e
definição da resposta à pergunta básica sobre o caráter específico
do desenvolvimento de conceitos científicos.
Por fim, a terceira falha deste trabalho, em nossa visão, é a
elaboração experimental insuficiente de duas questões mencionadas
anteriormente, as quais se colocam concomitantemente para a pes­
quisa: a natureza dos conceitos cotidianos e a estrutura do desen­
volvimento psicológico na idade escolar. A questão da relação entre
a estrutura do pensamento infantil, como foi descrita por Piaget, e
os traços fundamentais que caracterizam a própria natureza dos
conceitos cotidianos (o caráter extrassistêmico e não voluntário), e
a questão do desenvolvimento da tomada de consciência e o caráter
voluntário a partir de um sistema emergente de conceitos, que é
central para todo o desenvolvimento mental do escolar: essas duas
questões não apenas não foram solucionadas experimentalmente,
como também sequer foram colocadas como tarefas passíveis de
resolução por meio de um experimento. Isso se deve ao fato de que,
para que essas duas questões fossem elaboradas de modo minima­
mente satisfatório, seria necessário realizar uma pesquisa especial.
Contudo, isso levou inevitavelmente a que a crítica das posições
básicas de Piaget realizada no presente trabalho se mostrasse insu­
ficientemente fortalecida pela lógica do experimento e, portanto,
insuficientemente avassaladora.
Foi por esse motivo que na conclusão nos detivemos em detalhe
nas falhas que consideramos mais evidentes neste trabalho, pois elas
nos permitem observar todas as perspectivas fundamentais que se
abrem nas últimas páginas da nossa investigação e, com isso, também
permitem estabelecer a única atitude correta em relação a este traba­
lho, como sendo um primeiro muito modesto passo no campo novo e
26 4 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

infinitamente produtivo, tanto do ponto de vista teórico quanto prá­


tico, da psicologia do pensamento infantil.

Resta-nos ainda dizer que no curso da própria investigação, do


início ao fim, nossa hipótese de trabalho e pesquisa experimental se
formou de modo distinto do que foi exposto aqui. No processo vivo
do trabalho de pesquisa, as coisas nunca são como elas aparecem na
formulação literária final. Em prol da organização sistemática, faz-se
necessário relacionar ao começo coisas que na pesquisa apareceram
mais tarde e expor no final aquilo que surgiu nos primeiros estágios,
bem no início da pesquisa. Essa hipótese e esse experimento - nas
palavras de Lewin,8 dois polos de um único todo dinâmico - se forma­
ram, se desenvolveram e cresceram em fecundação mútua e fazendo
avançar uma a outra.
Consideramos que uma das evidências mais importantes da
verossimilhança e da produtividade da nossa hipótese é o fato de
que a organização conjunta da pesquisa experimental e a hipótese
teórica nos levaram não apenas a resultados concordantes, mas tam­
bém únicos. Eles mostraram aquilo que constitui o ponto central, o
eixo básico e a ideia principal de todo nosso trabalho, isto é, que
o processo de desenvolvimento de um conceito correspondente a
uma palavra não se encerra no momento de assimilação dessa pala­
vra, mas apenas se inicia. No momento da assimilação primária, a
palavra nova não está no final, mas no início de seu desenvolvimento.
Nesse período ela sempre é uma palavra não madura. O desenvol­
vimento interno gradual de seu significado leva ao amadurecimento
da própria palavra. Como diz Tolstói, “a palavra está quase sempre
pronta quando está pronto o conceito”, isto é, naquele momento em
que geralmente se supunha que o conceito está quase sempre pronto
quando a palavra está pronta.

Fevereiro de 1934.
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)

Notas da tradução

1. Liev Nikoláevitch Tolstói (1828-1910), escritor russo. De origem aristo­


crática, converteu-se em um acerbo crítico das profundas desigualdades
existentes no Império Russo. Além de uma vasta obra literária, escreveu
também ensaios sobre religião, política, arte, filosofia e, tal como comenta
Vigotski, experiências educacionais com crianças de origem camponesa.

2. Os termos usados no original são sonmische (traduzido como "assembleia”)


e sinedrion (“sinédrio”). Este último designa o órgão político e religioso
supremo da antiga Israel, ao passo que o primeiro se refere a uma grande
reunião ou ajuntamento de pessoas. A crítica diz respeito não apenas à
equivalência de termos de natureza e escopo diferentes, mas também ao
uso de palavras igualmente complexas para a compreensão da criança.

3. A referência provável é a Tolstói, L. N. (1903). Pedagoguítschkie stati [Arti­


gos pedagógicos], Ed. Kuchnereva i K°.

4. Sobre Piaget, ver nota 13 do texto 6.

5. Nessa e em outras passagens do texto, Vigotski faz referência à ideia, recor­


rente em Piaget, de que o discurso adulto exerce uma influência negativa
na elaboração do pensamento próprio da criança, cerceando a naturalidade
de tal processo.

6. Jozefina Uinitchna Chif (1904-1978), pesquisadora da psicologia. D e ori­


gem judaica, nasceu em Varsóvia, mudando-se para Odessa em 1909. Em
1923, começa os estudos no Instituto Pedagógico de Leningrado. Em 1934,
defende sua tese Desenvolvimento dos conceitos científicos entre escolares
sob orientação de Vigotski, em Moscou, onde morava desde 1933. O pre­
fácio escrito por Vigotski para a tese de Chif está incluído nesta edição (ver
texto 9).

7. Vigotski refere-se ao estudante em idade escolar (aproximadamente, dos 7


anos até a puberdade).

8. Sobre Lewin, ver nota 37 do texto 6.


10. O problema do desenvolvimento
e da desagregação das funções
psíquicas superiores (1934)
O problema das funções psíquicas superiores é central para
toda psicologia humana. Na psicologia contemporânea, encontram-se
ainda insuficientemente destacados até mesmo os princípios teóricos
básicos sobre os quais deve ser construída a psicologia humana còmo
sistema, e a elaboração do problema das funções psíquicas superiores
deve ter um significado central para a resolução dessa tarefa.
Na psicologia contemporânea estrangeira, existem dois prin­
cípios básicos, a partir de cujo ponto de vista a psicologia humana
é elaborada.
O primeiro é o princípio naturalístico, ou seja, aquele que exa­
mina a psicologia humana e seus processos psíquicos superiores sob
os mesmos fundamentos básicos nos quais são construídas as teorias
sobre o comportamento animal. É o caso, por exemplo, do princípio
estrutural que parte do pensamento de que a psicologia humana não
traz nada de fundamentalmente novo que a distinga radicalmente da
psicologia animal. Todo pathos da teoria estrutural1 reside em sua
universalidade e aplicabilidade geral. Como se sabe, os próprios es-
truturalistas afirmam que a estrutura é a forma inicial de toda vida.
Em seus experimentos, Volkelt2 tenta provar que a percepção de uma
aranha está subordinada às mesmas leis estruturais que a percepção
humana. As mesmas leis estruturais foram encontradas na investiga­
ção da estrutura do comportamento de macacos antropoides. Todos
os fenômenos, da reação da aranha à percepção do ser humano, são
abarcados por um princípio único.
O caráter universal da teoria estrutural responde à tendên­
cia de toda psicologia naturalística contemporânea à qual Thorn­
2 68 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

dike3 se referiu de forma um tanto irônica, mas correta, ao dizer


que o ideal da psicologia científica é criar uma linha de desen­
volvimento única da minhoca ao universitário norte-americano.
É a esse ideal que o princípio estrutural responde. Em termos de
regularidade geral, a minhoca e o universitário norte-americano
apresentam leis estruturais em igual medida. De fato, dentro de
leis estruturais gerais e da investigação clínica, faz-se necessário
distinguir entre as estruturas “boas” (como são denominadas pelos
representantes dessa psicologia) e as estruturas “ruins”, entre es­
truturas “fortes” e “fracas, diferenciadas e indiferenciadas. Porém,
todas essas são distinções quantitativas, em termos fundamentais
verifica-se que os princípios estruturais são igualmente aplicáveis
tanto a estruturas superiores quanto a inferiores, tanto ao ser hu­
mano quanto ao animal.
A inconsistência de tal princípio se manifestou no campo da
psicologia genética e da clínica em relação ao desenvolvimento e à
desagregação das funções psíquicas. Os fundadores da psicologia da
Gestalt, Kõhler e Wertheimer,4 depositavam grandes esperanças no
princípio estrutural. De acordo com esse princípio, como já foi dito,
foram realizadas pesquisas com galinhas domésticas e macacos. Con­
tudo, verificou-se que, do ponto de vista da psicologia comparativa,
essas pesquisas não traziam quaisquer perspectivas, pois o resultado
obtido por Kõhler com galinhas e macacos foi o mesmo. No sentido
dos princípios estruturais gerais, ele não foi capaz de estabelecer as
diferenças entre a galinha doméstica e o macaco. Quando, em Paris,
Kõhler foi perguntado sobre a percepção humana, ele respondeu com
dados coletados em material animal. Ao expor todas as leis fundamen­
tais reveladas em animais (em macacos e galinhas), ele disse que a
percepção humana está subordinada a essas mesmas leis. É evidente
que esse é seu ponto fraco. Além disso, ele não foi capaz de se livrar
da impressão de que o animal está submetido às leis da estrutura do
polo sensorial em grau muito maior do que o ser humano, no qual
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

essas leis determinam seus processos sensoriais em menor medida.


O animal se encontra em forte dependência em relação aos dados
objetivos, à iluminação, à posição dos objetos etc., em relação à força
relativa do estímulo que faz parte de tal situação, mostrando-se aqui
mais subordinado às leis da estrutura do que o ser humano.
Fatos análogos foram encontrados na tentativa de aplicação
do princípio estrutural aos fenômenos do desenvolvimento infantil.
Quanto mais baixo descesse o pesquisador, mais dados ele encon­
trava de que a organização estrutural dos processos psíquicos na
criança tem a mesma forma que no adulto. Kofíka5 fez uma tentativa
de aplicar o princípio estrutural à explicação do desenvolvimento.
Ele indicou que o desenvolvimento de estruturas pode ser “forte” ou
“fraco”, “bom” ou “ruim”, diferenciado ou indiferenciado, mas que
todo desenvolvimento, de alfa a ômega, tem um caráter estrutural
como tal. Tal colocação do problema do desenvolvimento no campo
da psicologia comparada e infantil se revelou, do ponto de vista do
princípio estrutural, extremamente improdutiva. Todas as formas su­
periores de percepção humana perdem sua especificidade.
Indicarei as dificuldades encontradas pela psicologia estrutu­
ral quando se trata das disciplinas clínicas. Mencionarei os trabalhos
de Põtzl6 sobre agnosia, nos quais ele estabelece uma sutil distinção
entre a esfera visual inferior e a superior, que, quando afetada, leva
à agnosia. Porém, quando Põtzl parte da descrição para a análise,
verifica-se que tudo é reduzido à estruturação e a partir das funções
superiores surgem apenas duas: a de estímulo e a interdição. Segundo
a expressão de Schedrin, eles podem apenas “arrastar e não liberar”
os centros inferiores, mas são incapazes de criar algo novo, de trazer
novos elementos para a atividade dos centros superiores.
Estou discutindo em detalhes esse aspecto da questão para
mostrar que a teoria estrutural, predominante na psicologia con­
temporânea, mostra-se inadequada para o problema que constitui o
270 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

principal objeto para o estudo do ser humano, isto é, o problema


das funções psíquicas superiores, pois a resposta dada pela psicolo­
gia estrutural consiste em que as funções psíquicas superiores são
reduzidas às inferiores, só que são mais complexas e mais ricas em
comparação com elas, e isso não resolve o problema.
A segunda linha da psicologia humana é representada pela
chamada psicologia descritiva, ou psicologia como ciência do es­
pírito,7 a qual, em contraposição aos princípios naturalísticos que
reduzem as formações superiores especificamente humanas a leis
inerentes a formações inferiores, declara que as funções psíquicas
superiores são formações de natureza puramente espiritual, que não
se submetem a explicações causais e não requerem uma análise gené­
tica. Tais peculiaridades da vida psíquica podem ser compreendidas,
mas não explicadas. Elas podem ser sentidas, mas não colocadas em
dependência causai de processos cerebrais, evolutivos etc. Esse beco
sem saída leva a uma concepção idealista, que é clara e não requer
maiores explicações.
Delineei esses dois grupos de perspectivas de modo esquemá­
tico, mas esse quadro me parece descrever corretamente o estado da
psicologia humana na ciência estrangeira de nosso tempo. Se formos
resumi-lo, teremos a seguinte impressão: apesar do enorme material
obtido no estudo do ser humano, do ponto de vista teórico, a psicolo­
gia humana não apenas não tomou nem sequer a forma de um broto
de ciência verdadeira, mas, ao contrário, essa possibilidade se mostra
totalmente excluída enquanto a psicologia seguir por essas duas li­
nhas paralelas: de um lado, uma psicologia espiritualista e, de outro,
uma psicologia naturalista.
Gostaria de passar agora ao conteúdo das posições principais
e dos fatos que caracterizam o desenvolvimento e a desagregação das
funções psíquicas superiores. Parece-me que o mais importante para
a colocação desse problema é a compreensão correta da natureza das
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

funções psíquicas superiores. Seria possível pensar que para tratar da


questão das funções psíquicas superiores é preciso começar com uma
definição clara dessas funções e com a indicação de quais critérios
permitem distingui-las das funções elementares. Contudo, entendo
que a formulação de uma definição exata não se dá no momento
inicial do conhecimento científico. Acredito que posso me limitar ini­
cialmente a definições empíricas e heurísticas.
As funções psíquicas superiores se desenvolveram como formas
superiores de atividade que possuem uma série de diferenças em .re­
lação às formas elementares das atividades correspondentes. Assim,
pode-se falar da atenção voluntária em comparação com a atenção
involuntária, da memória lógica em comparação com a memória
mecânica, das representações gerais em comparação com as parti­
culares, da imaginação criadora em comparação com a imaginação
reprodutora, da ação volitiva em comparação com a involuntária, dos
processos afetivos em comparação com formas complexas de proces­
sos emocionais.
A posição central para a elucidação da natureza das funções
psíquicas superiores, de seu desenvolvimento e de sua desintegração,
torna-se clara quando se contrastam a psicologia comparada e a psi­
cologia humana. Há muito se introduziu na psicologia comparada um
conceito que foi desenvolvido na última década, em particular nos
trabalhos do falecido V. A. Vagner,8 isto é, o conceito de evolução por
linhas puras ou mistas. Ao estudarem o desenvolvimento de determi­
nadas funções psíquicas no mundo animal, os pesquisadores passa­
ram a distinguir o surgimento de novas funções por linhas puras (o
surgimento de um novo instinto, de uma variedade de instintos, que
mantém fundamentalmente intacto todo sistema de funções existente
anteriormente) e o desenvolvimento de funções por linhas cruzadas,
quando ocorre não apenas o surgimento do novo, mas também a
mudança da estrutura de todo sistema psicológico animal existente
anteriormente. Como mostram as pesquisas no campo da psicologia
272 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

comparada, a lei fundamental da evolução no mundo animal é a lei


do desenvolvimento por linhas puras, já o desenvolvimento por linhas
cruzadas é mais uma exceção do que uma regra, sendo insignificante
no campo do desenvolvimento animal.

É preciso dizer que a desconsideração dessa lei explica uma sé­


rie de equívocos cometidos por psicólogos no trabalho com animais,
em particular o equívoco de Kõhler, que admitiu o surgimento de um
intelecto antropoide e o uso de ferramentas em macacos. Ele não con­
siderou que, se compararmos uma operação no ser humano e em um
macaco, verifica-se uma semelhança grande, mas, se compararmos
toda a estrutura do comportamento do animal e o lugar que ela ocupa
em sua consciência, então, como mostrou Koffka, Gelb9 e outros au­
tores, os quais submeteram à critica as principais posições de Kõhler
(Guillaume e Meyerson),10os usos de ferramentas nos humanos e nos
macacos são drasticamente diferentes entre si. A ferramenta só existe
de fato para o animal no momento da execução de certa operação; a
coisa fora de determinada situação não existe para o animal. Suas for­
mas mais complexas de comportamento resultam do desenvolvimento
de funções “por linhas puras”.
Para a consciência humana e seu desenvolvimento, como mos­
tram as pesquisas com humanos e suas funções psíquicas superiores,
a posição é inversa. No primeiro plano do desenvolvimento das fun­
ções psíquicas superiores, estão não tanto o desenvolvimento de cada
função psíquica (“desenvolvimento por linhas puras”) quanto a alte­
ração das ligações interfuncionais, a alteração da interdependência
dominante da atividade psíquica da criança em cada estágio etário.
É preciso compreender que a consciência não se forma a partir
da soma do desenvolvimento de funções separadas, mas o desenvol­
vimento de cada função separada depende do desenvolvimento da
consciência como um todo. O desenvolvimento da consciência como
um todo consiste na mudança das correlações entre as partes e os
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

tipos isolados de atividade, na mudança da correlação entre o todo


e as partes. Essa mudança das ligações funcionais e das correlações
aparece em primeiro plano e permite que nos aproximemos da reso­
lução do problema principal.
Apresentarei apenas um exemplo. Se voltarmos à pesquisa das
funções psíquicas da criança na primeira infância, entre 1 e 3 anos
de idade, é possível ver que aqui a psicologia se depara com uma
série de dificuldades. É difícil comparar a memoria de uma criança
dessa idade, bem como seu pensamento e atenção, com a memória, o
pensamento e a atenção de uma criança mais velha, e essa dificuldade
se baseia no fato de que nos deparamos com um sistema especial de
correlações funcionais, um sistema de consciência especial, no qual
a função dominante é a percepção e todas as demais atuam apenas
como resultado da percepção è por meio dela. Quem não sabe que a
memória de uma criança dessa idade se manifesta fundamentalmente
como reconhecimento, uma vez que a criança se lembra apenas em re­
lação ao que ela percebe agora. O pensamento da criança dessa idade
se realiza apenas como ato de percepção. Ele pode ser direcionado
apenas àquilo que se encontra agora na esfera da percepção. Para
desviarmos a criança da percepção, precisamos empreender esforços,
e fazer isso é extremamente difícil.
O que é essencial para a memória, para o pensamento da
criança entre 1 e 3 anos de idade? É essencial não apenas o desen­
volvimento da memória e do pensamento, mas também o fato de que
todas essas funções são absolutamente dependentes, indiferenciadas
e se encontram em dependência direta da percepção, atuam apenas
dentro do sistema da percepção. As pesquisas mostram que a cons­
trução das funções psíquicas superiores é um processo de formação
de sistemas psíquicos. Dito de outro modo, no decorrer do desenvol­
vimento infantil, a estrutura interna da consciência como um todo se
modifica, alteram-se as correlações entre cada função e cada tipo de
atividade e, com base nisso, surgem novos sistemas dinâmicos que
274 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

integram toda uma série de tipos e elementos isolados da atividade


psíquica da criança.
Se for verdade que no decorrer do desenvolvimento infantil
as relações entre as funções se modificam, então é justamente no
processo de modificação dessas relações interfuncionais que ocorre
a integração entre funções elementares isoladas que leva à forma­
ção das funções psíquicas superiores, que aparecem no lugar das
funções psíquicas inferiores. Aqui estamos tratando de diferentes
tipos de atividade. As pesquisas mostram que as funções psíquicas
superiores (memória lógica, atenção voluntária, pensamento) têm
uma base psicológica comum, de modo que temos pleno direito de
falar em memória voluntária como falamos em atenção voluntária:
poderíamos chamar esta última de atenção lógica em vez de volun­
tária. As pesquisas mostram que existe uma forte correlação entre
memória voluntária e atenção voluntária. Em outras palavras, as
funções psíquicas superiores estão mais correlacionadas entre si
do que com as funções psíquicas inferiores correspondentes. Isso
aponta para a natureza comum das funções psíquicas superiores,
para um caminho comum que elas percorrem em seu desenvolvi­
mento. O estudo especial do desenvolvimento da memória volun­
tária, que há alguns anos foi realizado por nossos colaboradores
A. N. Leontiev e L. V. Zankov,11 e pesquisas sobre outras funções
psíquicas superiores mostraram que esse caminho de integração
é o caminho de formação de determinados sistemas psicológicos.
Em todos esses casos, temos sistemas funcionais especiais, que não
são uma continuação direta ou um desenvolvimento das funções
elementares, mas aparecem como um todo no qual as funções psí­
quicas elementares existem como uma das instâncias que entram
na composição do todo.

******
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

Um papel central na organização das funções psíquicas supe­


riores, como mostram as pesquisas, é desempenhado pela linguagem
e pelo pensamento verbal, funções que são especificamente humanas,
as quais, ao que parece, devem estar relacionadas aos produtos do
desenvolvimento histórico do ser humano.
O que a primeira palavra dotada de sentido introduz na cons­
ciência da criança? O estudo dessa questão me parece muito im­
portante para a compreensão da natureza do desenvolvimento das
funções psíquicas superiores. A psicologia associativa imaginava'que
a palavra estava ligada ao significado como uma coisa está ligada a
outra coisa; como diziam os clássicos da psicologia associativa, a pa­
lavra faz lembrar o significado como o casaco de um conhecido nos
faz lembrar de seu dono. Do ponto de vista da psicologia estrutural,
as palavras estão ligadas entre si como coisas, só que não de forma
associativa, mas estrutural. Em outras palavras, a palavra é uma das
estruturas em uma série de outras, que, como tal, não traz um novo
modus operandi para a nossa consciência. Entretanto, os dados da
história do desenvolvimento da linguagem, a análise de seu funciona­
mento na consciência desenvolvida e os dados clínicos do campo da
patologia da linguagem mostram que a situação é diversa, que junto
da palavra é introduzido na consciência humana um novo modus ope­
randi, um novo modo de ação.
Em que consiste esse novo? Nossas modestas pesquisas expe­
rimentais da época concluíram que, do ponto de vista psicológico, o
mais essencial para a palavra é a generalização, o fato de que todo sig­
nificado de palavra designa não um objeto único, mas um grupo de
coisas. O estudo das formas iniciais dessas generalizações ou de pala­
vras infantis levou a uma conclusão que, pode-se dizer, está começando
a entrar na teoria contemporânea sobre o pensamento e a linguagem.
Essa conclusão diz que o significado das palavras infantis se desenvolve,
que a criança, no começo do desenvolvimento da linguagem, generaliza
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

a coisa em palavra de modo diferente do adulto. Nossos estágios de


desenvolvimento dos significados das palavras infantis mostram tipos
variados, modos variados de generalização. Além da introdução das ge­
neralizações, parece-me que também é introduzido um novo princípio
na atividade da consciência. Penso que, nesse caso, os psicólogos se
baseiam integralmente na posição de que o salto dialético não é apenas
a passagem de uma matéria morta para uma matéria viva; o salto dialé­
tico é também a passagem da sensação para o pensamento. Isso significa
que existem leis especiais para o pensamento, as quais não se reduzem
às leis que regem a sensação. Isso quer dizer que, embora a consciência
sempre reflita a realidade, ela o faz não apenas de um único modo, mas
de maneiras diversas. Esse modo generalizado de refletir a realidade é,
penso eu, um modo de pensamento especificamente humano.
Três grupos de fatos permitem que eu pense assim. O primeiro
deles é o seguinte: todos sabem que o fundamental para a consciên­
cia humana é seu caráter social. A vida psíquica não é uma mónada
fechada que não tem entrada e saída. Todos sabem que é impossível
a comunicação entre as almas, que nos comunicamos com a ajuda J
da linguagem, com a ajuda de signos correspondentes. É importante,
contudo, ressaltar que a comunicação é possível não apenas com au­
xilio da linguagem, mas também de signos generalizados. Se o signo
não for generalizado, ele terá sentido apenas para mim, terá apenas o
sentido de um fato isolado. Como exemplo, tomarei o fato apontado
pelo pesquisador norte-americano Edward Sapir.12 Alguém precisa
informar outra pessoa, por exemplo, que está sentindo frio. Como
mostrar isso? Posso começar a tremer, e você verá que estou com
frio. Posso fazer com que o outro sinta frio e, assim, mostrar a ele
que estou com frio. Mas o que é característico para a comunicação
humana é a transmissão de determinado estado em palavras. Quando
digo “frio”, faço uma generalização ligada a uma vivência. Conse­
quentemente, a questão sobre a existência de uma ligação direta entre
comunicação e generalização merece toda atenção.
10. O problema do desenvolvimento e da
27 7
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

Como resultado de uma série de investigações em psicologia,


foi colocado um problema (quem o colocou na época foi Piaget),
que, não obstante, permaneceu teoricamente obscuro, ou seja, o
problema da compreensão de uma criança por outra, do adulto pela
criança e entre crianças de diferentes idades. Conseguimos estabele­
cer que a compreensão no sentido da profundidade e da adequação,
no sentido da esfera da compreensão possível, ou seja, do processo
de comunicação, sempre revela uma forte correlação regular com
o nível de desenvolvimento da comunicação infantil. O desenvolvi­
mento da comunicação e o da generalização andam de mãos dadas.
Esse é o primeiro grupo de fatos que permite pensar que o modo
generalizado de refletir a realidade na consciência, que é introduzido
pela palavra na atividade cerebral, é o outro lado do fato de que a
consciência humana é uma consciência social, uma consciência que
se forma na comunicação.
Um outro grupo de fatos que permite pensar assim está ligado
ao campo das observações clínicas.
Se generalizarmos o que se sabe a partir estudo da desagrega­
ção das generalizações, do campo da patologia do aspecto semântico
da linguagem, pode-se dizer que nesses distúrbios temos mais ou me­
nos o comprometimento geral de todos os aspectos específicos das
funções humanas. Todas são afetadas quando se tem uma alteração
patológica no campo da generalização, no campo da mudança dos
significados da palavra. Adiante, ao falar sobre as pesquisas com afa­
sia, tentarei apontar exemplos concretos relacionados a esse campo.
Monakow,13 em um de seus últimos artigos, chamou a atenção
para as perturbações específicas da memória voluntária, apresentadas
por um afásico. Ao apontar para o problema, mas sem resolvê-lo, ele
diz por que uma função psíquica superior como a atenção voluntária,
aparentemente não relacionada com a linguagem como tal, mostra-se
drasticamente comprometida em todos os casos típicos de afasia. Isso
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

mostra a ligação existente entre a desagregação das generalizações e


toda atividade psíquica, a preservação das representações, a preserva­
ção de todas as funções psíquicas superiores como um todo.

******

Passarei agora ao problema da desagregação das funções psí­


quicas superiores que hoje gostaria de expor tendo em vista o aspecto
da localização dessas mesmas funções.
Em última instância, o problema da localização é um pro­
blema de unidades estruturais14 na atividade cerebral. Ele não pode
permanecer indiferente a uma concepção geral, a partir da qual se
busque resolver suas questões fundamentais. Na época da psicologia
associativa, existia uma teoria que localizava cada representação em
centros separados. A teoria estrutural da psicologia fez com que a
teoria da localização recusasse a localização de cada representação
isoladamente. Sabe-se que a teoria estrutural seguiu outro caminho
na resolução da questão da relação entre as funções e o cérebro. Isso
demonstra que toda teoria psicológica necessariamente exige algum
avanço no campo do problema da localização, e, desse ponto de vista,
os dados do experimento psicológico devem ser comparados aos da­
dos da clínica no sentido amplo do termo.
A teoria da localização contemporânea resolveu apenas uma
tarefa que estava colocada para ela. Com ajuda do princípio estrutu­
ral, ela tentou superar suas compreensões falsas anteriores. O prin­
cípio estrutural se mostrou positivo apenas para a superação dos
defeitos da teoria da localização. Com efeito, as construções típicas
das teorias da localização contemporâneas não avançam em relação
à posição acerca da existência de dois aspectos funcionais no traba­
lho dos centros cerebrais, as assim chamadas funções específicas e
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

não específicas do cérebro. Quem melhor desenvolveu essa teoria


foi Lashley.15
De acordo com Lashley, cada campo do córtex domina uma
função específica, cujos exemplos ele investigou ao analisar as estru­
turas óticas diferenciadas do córtex cerebral. Só que essas zonas tam­
bém têm funções não específicas. Elas participam não apenas da for­
mação das habilidades visuais, mas também de habilidades que não
têm nenhuma relação com a ótica. Com isso, Lashley concluiu que
cada centro tem duas funções: uma específica, por um lado, e yma
não específica, ligada a toda massa cerebral, por outro. Em relação às
funções específicas, segundo a teoria de Lashley, cada centro é insubs­
tituível. Em caso de lesão grande ou trauma, a função específica se
perde. Já em relação às funções não específicas, os campos corticais
são equivalentes entre si.
A teoria de Goldstein16 sobre a localização tem traços análo­
gos, sendo apenas mais sutil em seu conteúdo. Segundo Goldstein,
um determinado centro cerebral, cuja degradação leve clinicamente
ao comprometimento ou à degradação de certas funções, está ligado
não apenas a uma função de certo tipo, mas também à formação de
certo pano de fundo para aquela dada função. Se ele estiver compro­
metido, isso tem uma importância grande para o cérebro não apenas
porque esse “centro” está ligado a uma certa “figura” dinâmica, mas
também porque o fundo, que é a condição necessária para a forma­
ção da “figura” correspondente, também está comprometido, pois as
funções do fundo também sofrem daquilo que sofre o centro.
A compreensão de Goldstein de que cada centro domina fun­
ções específicas de “figura” e uma função geral - o “fundo” - é uma
perspectiva sutil, uma continuação lógica da visão de Lashley relativa
às funções específicas e não específicas de cada um dos centros.
Parece-me que a análise teórica dessa posição mostra que a teo­
ria sobre a função dupla de cada centro cerebral aparece como uma
280 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

unificação de dois pontos de vista antigos. De um lado, voltamos à


teoria dos centros especializados: reconhecemos que uma estrutura de
determinado tipo está localizada em determinados centros. De outro
lado, as funções do centro se revelam difusamente equivalentes no sen­
tido de que o “fundo” dinâmico, do qual participa o centro, está locali­
zado no cérebro como um todo. Dessa forma, aqui temos a unificação
entre o antigo ponto de vista da localização e o da vista antilocalização.
Contudo, unir essas teorias não significa resolver o problema. Que essa
compreensão leva no campo da localização a uma posição análoga à
posição da psicologia genética, que ela usa apenas o princípio estrutu­
ral, pode ser facilmente demonstrado nas pesquisas do próprio Golds­
tein e de outros clínicos que fazem uso do mesmo princípio. Goldstein,
ao estudar a afasia amnésica, verificou que o problema central é o
comprometimento do pensamento categorial. Mas, quando tenta es­
tabelecer a seguir qual mecanismo está na base do comprometimento
do pensamento categorial, ele retorna à ideia de “figura” e “fundo”.
Verifica-se que o pensamento categorial se vê comprometido na medida
em que está comprometida a função principal do cérebro, a formação
de “figura” e “fundo”. Contudo, a formação de “figura” e “fundo” é
comum a todas as funções, de modo que, para Goldstein, a seguir, nada
resta a não ser elevar esse princípio à condição de lei geral. Goldstein
defende um ponto de vista próximo àquele proposto por Wernicke,17 o
qual suscitou críticas justas. Wernicke propôs a ideia de que as funções
psíquicas superiores, quanto à sua ligação com o cérebro, são cons­
truídas do mesmo modo que funções não psíquicas, e tal conclusão
de Wernicke, na opinião de Goldstein, deve ser mantida. Seu ponto de
partida na teoria da localização é a posição de que o princípio de “fi­
gura” e “fundo” é o mesmo para toda ação do sistema nervoso central;
ele se manifesta da mesma forma seja na perturbação do reflexo patelar
ou nos distúrbios do pensamento categorial. Em outras palavras, esse
princípio pode categorizar tanto formas elementares como superiores
de atividade. Cria-se um sistema único, segundo o qual pode ser in-
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

terpretada e explicada qualquer lesão do sistema nervoso central: a


desagregação dos sentidos, dos centros motores, o rebaixamento geral
da consciência, a desagregação do pensamento categorial etc. A relação
entre “figura” e “fundo” se converte em princípio explicativo universal,
igualmente aplicável seja para o fluxo dos processos psíquicos ou para
sua localização. As funções psíquicas superiores se mostram não ape­
nas iguais às elementares em sua estrutura, mas também em termos
de localização no córtex cerebral, e nesse sentido elas tampouco se
diferenciam das funções não psíquicas.
Parece-me que todas essas dificuldades decorrem da ausência,
na psicologia contemporânea, de uma análise psicológica adequada
das funções psíquicas superiores. Na psicologia estrutural, a análise
parte do princípio geral da estrutura, que abarca tanto as funções psí­
quicas superiores como as inferiores, sendo aplicável a ambas. Com
isso fica provado que diferentes tipos de lesão são fundamentalmente
iguais. Entendo que, em função da situação inadequada da análise
psicológica, até mesmo os melhores pesquisadores se encontram num
beco sem saída, alguns deles caem num estruturalismo puro, outros
em um naturalismo grosseiro. Exemplos disso podem ser encontrados
nos trabalhos de Van Woerkom,18Head19e outros pesquisadores. Mui­
tos deles, justamente em decorrência dessa posição falsa, passaram a
repetir a posição de Bergson,20 que entende o cérebro como meio de
manifestação do espírito; assim, eles caem em profunda contradição
com uma abordagem materialista do problema.
Parece-me que, na mesma medida em que o problema do de­
senvolvimento psíquico se apoia na necessidade de ir além do prin­
cípio estrutural geral, ele se baseia na insuficiência da indicação do
caráter “integral” da vida psíquica, igualmente aplicável à aranha e ao
ser humano também na teoria da localização.
Parece-me que esses enormes materiais com os quais conta­
mos no campo da investigação clínica oferecem aos clínicos e aos
282 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

psicólogos a possibilidade de propor duas posições essencialmente


distintas acerca das compreensões básicas da teoria contemporânea
da localização.
Por um lado, estamos convictos quanto ao caráter específico de
uma série de sistemas do córtex cerebral, bem como da relação espe­
cífica das funções psíquicas superiores com uma série de sistemas do
córtex cerebral; essa tese se opõe à teoria de Lashley e de Goldstein.
Por outro lado, não podemos concordar que a função não específica
de cada centro seja equivalente para todas as partes do cérebro. A
concepção aqui apresentada sobre a construção das funções psíquicas
superiores exclui a compreensão sobre uma organização equivalente
homogênea da atividade do nosso córtex, na qual apenas a quanti­
dade de massa determina o caráter e o grau da lesão de um processo
psíquico superior. Não terei a possibilidade de esclarecer plenamente
esse problema aqui, por isso irei me deter apenas em um aspecto que
considero de fundamental importância.
Trata-se da posição que se formou ao longo de alguns anos com
o estudo de crianças com deficiência cerebral, por um lado, e com o
estudo das perturbações correspondentes em adultos, por outro.
Quando se estudam a criança e o adulto com determinados dis­
túrbios cerebrais, salta aos olhos o fato de que tal comprometimento
na idade infantil produz um quadro totalmente distinto, conseqüên­
cias diferentes, daquilo que se forma em caso de lesão na mesma área
em um cérebro maduro, desenvolvido.
Apresentarei um exemplo simples de uma área com a qual
temos nos deparado nos últimos tempos, isto é, a área da agnosia.
Como se sabe, a agnosia ótica em adultos, em seu estado puro, por
exemplo nos casos descritos por Goldstein e Põtzl, é expressa por
um tipo de comprometimento de uma função: a função de reconhe­
cimento de objeto. O paciente não consegue ver se é uma moeda
ou um relógio; às vezes ele diz que é um relógio, outras vezes que
10. O problema do desenvolvimento e da
283
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

é uma moeda; 40% das vezes ele está correto, 60% incorreto. Em
uma criança com agnosia congênita, o principal prejuízo é na função
de definição dos objetos, a criança não reconhece certas coisas em
diferentes situações.
Porém, se nos voltarmos às conseqüências que surgem em cada
caso, veremos que elas são diametralmente opostas.
O que ocorre com um paciente com agnosia? Os clínicos aqui
presentes poderão confirmar que ocorre o seguinte: há um compro­
metimento imediato e severo da função de percepção dos objétos,
portanto há também um comprometimento da função visual. Grosso
modo, em caso de lesão da esfera visual, a gnose ótica se vê compro­
metida, a percepção ótica se vê comprometida. Goldstein é enfático
nesse sentido, Põtzl fala disso, qualquer um que tenha trabalhado
experimentalmente com pacientes com agnosia pode se convencer de
que a posição mencionada antes é correta. Mas será que os conceitos
superiores estão comprometidos aqui? Será que o paciente consegue
raciocinar sobre objetos que ele não reconhece? Sim, a função do
raciocínio está preservada. Os clínicos poderão confirmar que os
conceitos sobre os objetos não estão comprometidos. Pesquisei em
tais pacientes os conceitos de objetos que eles não reconhecem e
pude verificar que esses conceitos se revelaram altamente modifica­
dos; porém, o conceito se mostrou muito mais preservado do que
a percepção, e, caso não haja demência, o conceito sobre os obje­
tos pode agir até como principal meio de compensação do defeito.
Quando o paciente de agnosia não reconhece que é um relógio, ele
recorre a mecanismos mais complexos. Ele age como um investiga­
dor: tenta deduzir por meio de sinais conhecidos e, mediante um tra­
balho complexo do pensamento, chega à conclusão de que se trata de
um relógio. Basta mencionar o trabalho de Goldstein para mostrar
que o paciente tem tanto domínio de sua percepção que reconhece
um quadrado depois de dirigir o olhar para todos os quatro cantos
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

da imagem; esse paciente se deslocou por Berlim e trabalhou por


15 anos, preservando todas as possibilidades da vida prática e de
deslocamento em meio de transporte e a pé, apenas graças ao fato
de que sua interpretação correta dos sinais lhe permitia reconhecer
o número do bonde e saber como fazer para chegar aonde queria.
Para pacientes adultos com agnosia, a regra principal é o comprome­
timento dos centros óticos, que são inferiores em relação ao que está
comprometido, e preservação de centros superiores em relação ao
que está comprometido, os quais desempenham as funções compen­
satórias em casos de agnosia.
É preciso dizer que no caso de crianças a situação é diferente.
É possível encontrar crianças com afasia congênita, sensorial e mo­
tora, mas não com agnosia congênita. Até recentemente não havia
casos desse tipo. Quando aprendemos a identificá-los, eles passaram
a ser menos raros. Por que é difícil identificar esse problema em crian­
ças? Porque a criança com agnosia congênita é quase sempre defi­
ciente mental. Ela não tem apenas comprometimento da visão, mas
quase sempre tem linguagem menos desenvolvida, apesar do fato de
que as possibilidades sensório-motoras para o desenvolvimento da
linguagem estejam preservadas. Se nos atentarmos a isso, veremos
que a seguinte lei salta aos olhos. Em caso de lesão de uma mesma
parte ou centro em um adulto, os centros mais comprometidos são os
inferiores e não os superiores. No caso da agnosia em adultos, temos
mais perturbações da visão simples do que da compreensão mental
dos objetos. Um comprometimento análogo em uma criança resulta
em maior prejuízo para o centro superior do que para o inferior. A
dependência mútua dos centros é inversa em ambos os casos. Tudo
isso pode ser explicado a partir de um ponto de vista teórico. Difi­
cilmente se poderia esperar uma correlação distinta da observada.
Conhecemos a lei da transição de uma função para cima. Sabemos
que nos primeiros meses de vida da criança é possível observar um
funcionamento independente de centros que, no adulto, só funcionam
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

de forma independente em casos patológicos. A transição da função


para cima significa que certa dependência se estabelece entre os cen­
tros inferiores e superiores. Uma criança que não desenvolveu a per­
cepção não pode desenvolver a linguagem, pois no funcionamento
normal da percepção há um pré-requisito para o desenvolvimento
normal dos sistemas superiores.
Mencionarei uma questão que sempre me interessou: existe
cegueira congênita central? Surdez congênita central existe. Ale­
xia e agnosia também. Seria possível admitir probabilisticamente
que não há casos de desenvolvimento incompleto embrionário de
centros óticos? Na literatura que conheço a esse respeito, há ape­
nas uma indicação de que cegos com deficiência visual congênita
central frequentemente apresentam deficiência mental. Lesões nos
lobos occipitais, nos centros visuais em adultos resultam não ape­
nas em “cegueira da alma”. Goldstein dedica trabalhos específicos
à elucidação das conseqüências de lesões dos lobos occipitais em
adultos e constata que, nos casos de lesão dos lobos occipitais e
parietais, o pensamento e a linguagem são pouco afetados. Quem
nunca viu deficiência visual central, como descrita, por exemplo,
por Põtzl e outros, como um comprometimento central em que as
funções psíquicas superiores estão preservadas? Nesses casos são
afetados apenas os centros inferiores, a lesão da zona ótica corti­
cal em adultos é um comprometimento relativamente leve. Quando
esse tipo de lesão ocorre em uma criança pequena, ela terá defi­
ciência mental. O corre algo impressionante: a criança com defi­
ciência visual central será deficiente mental, ao passo que o adulto
com a mesma deficiência terá todas as suas funções superiores pre­
servadas. Parece-me que esse fato é explicado pelas dependências
indicadas. Quer dizer, como mostrou Goldstein, um comprometi­
mento específico da percepção visual em adulto se manifesta em
outras funções, mas apenas em um sentido determinado, isto é, na
formação de estruturas simultâneas. Todo resto se mantém. Por
286 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

isso, o paciente de Goldstein percebe o quadrado do modo como


percebemos um sistema complexo de números.
Imagine agora uma criança que não pode desenvolver quais­
quer estruturas simultâneas. Ela será uma pessoa que não conseguirá
estabelecer relações espaciais. Essa criança necessariamente será de­
ficiente mental.

Poderia apresentar ainda uma série de dados de outros distúr­


bios, mas nesses minutos finais gostaria de tirar algumas conclusões
a partir do que foi dito.
Será que o que foi dito tem alguma relação com a teoria sobre
as duas funções dos centros? Parece-me que há uma relação direta.
Ocorre que, além do distúrbio específico que surge em caso de lesão
de zonas centrais, surge ainda um distúrbio em relação a funções
não específicas, que não estão diretamente ligadas a essas zonas. A
pergunta que fica é: as funções específicas e as não específicas são
igualmente afetadas no caso de lesão de determinado centro? No caso
de uma criança que nasceu com deficiência visual central e de um
adulto que sofreu uma lesão que levou à deficiência visual central, as
funções específicas são igualmente afetadas, já as não específicas são
afetadas de modos totalmente distintos. Em todo caso, no desenvol­
vimento e na desagregação podemos ter fenômenos inversos de um
centro em relação a outro, conseqüências de longo prazo inversas.
É claro que isso exclui qualquer compreensão de que o centro está
ligado apenas de forma não específica às demais funções, que a le­
são de determinado centro não resulta em um efeito equivalente em
relação a outros centros. Vemos que um tem relação específica com
determinado centro, que essa relação é estabelecida no decorrer do
desenvolvimento, e, uma vez que isso é assim, verifíca-se que o dis­
túrbio que surge em caso de lesão de um centro correspondente pode
ter outro caráter. Isso deixa claro também que a teoria sobre funções
específicas e constantes de cada centro é infundada. Se cada centro
10. O problema do desenvolvimento e da
287
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

desempenhasse funções determinadas e se para cada função psíquica


não fosse necessária a atividade complexa, diferenciada e unificada de
todo sistema de centros, a lesão de um centro nunca poderia levar a
que os demais centros fossem afetados de formas específicas e deter­
minadas, mas sempre faria com que a lesão de certos centros fizesse
com quem os demais centros fossem afetados igualmente.
Nos minutos restantes, gostaria de fazer uma breve conclusão.

Parece-me que o problema da localização, como via geral,


absorve em si aquilo que está ligado ao estudo do desenvolvimento
das funções psíquicas superiores e aquilo que está ligado ao estudo
da desagregação delas; isso permite colocar um problema que tem
grande significado, isto é, o problema da localização cronogênica.
Esse problema, proposto ainda por Monakow, não pode ser resolvido
de modo algum em relação às funções psíquicas superiores do modo
como Monakow o fez, pelo simples motivo de que em seus últimos
trabalhos ele se concentrou inteiramente na base instintiva de toda
atividade psíquica, inclusive das funções psíquicas superiores. Para
Monakow, a agnosia é uma doença dos instintos. Só isso já indica que
sua interpretação concreta do problema das funções psíquicas supe­
riores não responde nem à tarefa de criação de um sistema adequado
de análise das funções afetadas, nem ao problema de localização das
funções psíquicas superiores nas regiões novas do cérebro. A própria
ideia de que a localização das funções psíquicas superiores não pode
ser compreendida de outro modo senão como sendo cronogênica,
como resultado do desenvolvimento histórico, de que as relações que
são características para cada parte do cérebro são formadas no decor­
rer do desenvolvimento e, ao serem formadas de determinada forma,
elas agem no tempo, e de que isso não exclui a possibilidade de dedu­
zir um processo complexo de apenas uma região: essa ideia perma­
nece correta. Porém, parece-me que ela deve ser complementada pela
seguinte consideração. Há muitos fundamentos para se pensar que o
2 88 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

cérebro humano domina novos princípios de localização em compa­


ração com o cérebro dos animais. A posição apresentada por Lashley
de que a atividade psíquica de uma ratazana é fundamentalmente aná­
loga à organização das funções psíquicas superiores humanas é falsa.
Não se pode admitir que o surgimento de funções especificamente
humanas seja simplesmente o aparecimento de novas funções ao lado
de outras que já existiam no cérebro pré-humano. Não se pode pen­
sar que, em termos de localização e complexidade na relação com
as regiões do cérebro, as novas funções tenham a mesma estrutura,
a mesma organização entre parte e todo que, por exemplo, a função
do reflexo patelar. Por isso, há total fundamento para se pensar que
uma esfera produtiva para a pesquisa seja o campo das relações es­
pecíficas, muito complexas e dinâmicas que permitem compor nem
que seja uma noção grosseira sobre a efetiva complexidade e singula­
ridade das funções psíquicas superiores. Não podemos aqui oferecer
uma resolução definitiva ainda, mas isso não deve nos deixar descon­
certados, pois trata-se de um problema de altíssima complexidade. O
grande material que possuímos, as dependências e os exemplos que
apresentei, e que ainda podem ser multiplicados, mostram em que di­
reção devemos nos mover. Em todo caso, parece-me produtivo admi­
tir que o cérebro humano domina novos princípios de localização em
comparação com aqueles que encontramos no cérebro dos animais,
princípios que permitem que ele se torne um órgão da consciência
humana, um cérebro humano.

Notas da tradução

1. Não confundir com o estruturalismo de Titchener. Vigotski emprega bas­


tante a expressão “psicologia estrutural” que, grosso modo, identifica inicia­
tivas afinadas com o pensamento gestaltista, as quais priorizam as dinâmi­
cas do conjunto da relação entre o psiquismo e seu entorno, irredutíveis a
meras associações fragmentárias entre estímulos e respostas.
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)

2. Referência ao psicólogo alemão Hans Volkelt (1886-1964), ex-aluno de


Wundt.

3. Sobre Thorndike, ver nota 7 do texto 4.

4. Sobre Kohler e Wertheimer, ver as notas 5 do texto 6 .

5. Sobre Koffka, ver nota 5 do texto 6.

6. Sobre Põtzl, ver nota 10 do texto 6.


7. A psicologia descritiva situa-se no bojo das ciências do espírito, de Dilthey.
Com ela, W. Dilthey (1833-1911) busca compreender uma “razão histó­
rica”, focada na compreensão holística da vida anímica, que viria a inspirar
a fenomenología de Husserl.

8. Sobre Vagner, ver nota 10 do texto 1.

9. Sobre Gelb, ver nota 33 do texto 6.

10. Vigotski parece se referir às pesquisas conduzidas sobre comportamento


animal pelos autores franceses Ignace Meyerson (1888-1983) e Paul Guil­
laume (1878-1962) aproximadamente entre 1928 e 1934.

11. Sobre Leontiev, ver nota 11 do texto 6. Sobre Zankov, ver nota 12 do
texto 6.

12. Referência ao antropólogo e linguista Edward Sapir (1884-1939).

13. Constantin von Monakow (1853-1930), neurocientista. Nascido na Rússia,


cedo emigrou com a família para Zurique. Ali, foi diretor do Instituto de
Anatomia Cerebral, elaborando, por exemplo, o conceito de diásquise (ver
nota 29 do texto 6).

14. Em russo: struktúrnie edinítsi.

15. Referência ao psicólogo norte-americano Karl Lashley (1890-1958).

16. Sobre Goldstein, ver nota 4 do texto 6.

17. Referência ao neurologista alemão Carl Wernicke (1848-1905).

18. Willem van Woerkorm, autor de “Über Stõrgungen im Denken bei apha-
sischen Patienten” [“Sobre as perturbações do pensamento em pacientes
290 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

afásicos”], publicado em 1925 e citado por Luria em As funções corticais


superiores do ser humano.

19. Henry Head (1861-1940) foi um neurologista inglês, que realizou pesquisas
pioneiras no campo da investigação do sistema somatossensorial.

20. Sobre Bergson, ver nota 6 do texto 2.


Índice
A objetivo, 128, 131
Ach, Narziss, 224,239 reflexo, 51
Adaptação, 2 8 ,3 6 ,3 7 ,6 0 ,7 5 , 107,112, 123,124, sagrado, 232
157, 161, 254 secundario, 53
Adolescência, 210 secundário da consciência, 51
Afasia, 180,183, 277, 280 social, 138,188, 276
Atenção, 30, 40, 106, 115, 139, 178, 182, 186, superior, 231
187, 192, 193, 194, 196, 200, 207, 208, voluntario, 263
217, 218, 220, 243, 271, 273, 274,277 universal, 267
Atraso mental, 113, 114, 115, 117, 118 Cérebro, 2 1 ,3 2 ,3 9 ,4 0 , 70, 73,94, 115,137,186,
187, 188, 189, 202, 203, 204, 205, 206,
B 207,212,278 ,2 7 9 ,2 8 0 ,2 8 1 ,2 8 2 ,2 8 7 ,2 8 8
Becher, Ernst, 235, 240 Chif, Jozefina Ilinitchna, 20, 21, 259, 265
Békhterev, Vladimir Mikháilovitch, 2 8 ,3 1 ,4 4 ,4 6 , Chpilrein, Isaak Naftúlevitch, 89, 9 2,97
59, 61, 77, 78, 79, 92, 95 Classes sociais, 163
Bergson, Henri, 66, 94, 197,212, 281, 290 Clínica, 268,278
Binet, Alfred, 127,154,159, 212 da esquizofrenia, 215, 218, 219
Bleuler, Eugen, 199, 212, 213 de doenças nervosas, 18
Blondel, Charles, 199, 200,213 disciplinas, 269
Blónski, Pável Petróvitch, 29, 59, 79, 81, 82, 83, investigação, 268, 281
87, 92, 95, 135, 198, 212 psiconeurológica, 15
Bojóvitch, 211 psiquiátrica, 19, 200, 202,217
Brentano, Franz, 63, 64, 6 5 ,9 0 , 92, 9 3 ,2 3 6 Comportamento, 16, 29, 31, 32, 33, 36, 38, 39,
Brincadeira, 105, 186, 188 41, 44, 51, 54, 60, 74, 78, 103, 106, 107,
Bühler, Charlotte Malachowski, 212 108, 110, 112, 114,117, 118, 119, 120, 122,
Bühler, Karl, 60, 64, 181, 210 123,124,125,126,128,133,137,140,141,
Bukhárin, Nikolai Ivánovitch, 73 ,9 2 , 95 142, 150, 157,171, 178, 186, 187, 200,203
Busemann, Adolf, 197,198,212 análise do, 7,77
animal, 20, 28, 29, 35, 36, 39, 61, 72, 267,
c 272,289
Capitalismo, 163, 164, 165, 166,167, 168, 169 assistência ao, 107
Caráter, 27, 208 ciência do, 79, 81
avaliativo da emoção, 81 da consciência, 54
catastrófico, 40 da criança, 105, 109, 110, 111, 114, 115,
coletivista, 172 122,124,131,133,136, 142
consciente, 3 5 ,4 3 , 51, 53, 56 de um mamífero, 30
de assimilação dos pensamentos, 251 de experiência, 37,
de classe, 163 desenvolvimento do, 99,105,108,109,112,
dialético, 20 114,120,126,138,142,143,158,179
do pensamento, 138 do adulto, 134, 203
duplo, 169, 171 do sujeito, 29, 33
estrutural, 269 do cachorro, 38, 110
extrassistêmico, 263 do macaco, 267
histórico, 134 duplicação do, 58
inconsciente, 52 estrutura do, 3 2 ,3 5 ,5 8 , 128,162,267,272
integral da vida psíquica, 281 estudo do, 49, 84
integrativo, 60 exemplos de, 49
material, 163 explicação marxista do, 82
metafísico, 68 fenômenos do, 78
mnemônico, 235 forma(s) do, 75, 105, 107, 108, 139, 186,
nacional, 231 187, 191, 200, 206, 272
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

formas superiores de comportamento, 74, da ciência, 64, 7 2 ,82


139,158 da comunicação, 277
fórmula do, 57 da comunicação infantil, 277
história do, 135 da consciência, 53,216, 220,272
histórico, 135 da criança/infantil, 87, 99, 101, 110, 111,
humano, 20, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 34, 36, 112, 113, 115, 116, 117, 124, 133, 136,
37, 47, 49, 51, 57, 84, 96,102, 107, 171, 142, 143, 146, 149, 150, 155, 156, 158,
172, 173,209 179, 210, 211, 241, 243, 252, 253, 254,
individual, 73 2 5 5 ,2 6 9 ,2 7 3 ,2 7 4
infantil, 99 da cultura/cultural, 15, 24, 99, 105, 111,
interno, 127 113, 114, 115, 116, 133, 138, 145, 146,
mecanismo de, 33, 34,41, 54,158 147, 148, 149, 150, 151, 153, 157, 158,
meios de, 137, 138, 139, 142 161, 182, 188
modo(s) de, 106, 111, 138, 141, 186 da memória, 101,103,111,184,211,273,274
organização do, 120 das emoções, 202
pesquisa do, 119, 138, 142 das/de ideias, 21,229
pessoal, 186, 188 da linguagem, 116, 117, 132, 157, 275,284
psicologia do, 14, 16,24, 27, 35, 78, 79 da memória, 101,103,125,184,211,273,274
problemas do, 51 da(s) palavra(s), 243, 275
processo de, 106, 111, 115, 134 da personalidade, 158,167,169,170,171,209
sistema do, 47, 190, 197 da psicologia, 68, 69, 72, 82, 83, 91, 224,
social, 54, 2 36,269
quadro do, 50 da sociedade, 167
verbal, 59 da técnica, 162
teoria sobre o, 79 das forças produtivas, 162, 166
Conceito(s) das/de funções, 177, 271, 272
científico(s), 20, 241, 242, 245, 248, 249, das funções elementares, 274
251, 257, 258, 259, 2 6 0 ,261,262 das/de funções mentais, 211
espontâneos, 251,252,255,256,257,258,260 das/de funções psíquicas, 25, 271, 272,
Consciência, 15, 16, 20, 27, 28, 30, 31, 34,35, 275,287
39, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 50, 51,das
52, reações táteis, 56
53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 63, 66, 68,
de69,
ferramentas, 107
70, 71,7 9 ,9 5 , 132, 162, 171, 191, 196, 197, de signos, 106
1 9 8 ,2 0 0 ,201,202,215,216,217,218,219, do capitalismo, 167,168, 169
220, 221,22, 227, 232, 237,239, 241, 243, do cérebro, 203
250, 254, 258, 259, 263, 272, 273, 275, do comportamento, 99, 108, 109, 112, 120,
276, 277, 281, 288 136,138, 142, 143, 158
Crise na psicologia, 14, 15, 17, 24, 95 do córtex, 111,113
do pensamento, 116, 179, 256, 273
D do intelecto, 127
Defectologia, 23, 24, 129, 211 d o psiquismo, 111, 162
Deficiência(s), 96, 285 dos/de conceitos/ conceitos científicos, 20,
básica, 81 194, 241, 242, 243, 245, 247, 248, 249,
cerebral, 282 2 5 0 ,2 5 2 ,2 5 6 ,2 5 7 ,2 5 8 ,2 5 9 ,2 6 0 ,2 6 3 ,
do trabalho, 20 264
mental, 285 econômico, 145
portadores de, 211 espiritual, 164,210
visual, 285, 286 físico, 164,172
Desenvolvimento, 15, 20, 31, 63, 66, 69, 83, 99, histórico, 63, 77, 102-103, 105, 106, 109,
101, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 111, 112, 119, 125, 126, 136, 141, 161, 162, 163,
115,118, 128, 129, 130, 131,137,145, 152, 179, 189, 201,220, 275, 287
157, 167, 170, 184, humano, 1-290
animal, 272 leis de, 127, 262
biológico, 112, 113, 189 mental, 114, 149, 172, 252, 253, 254, 255,
capitalista, 168,171 259,261,263
da atenção, 186, 188 por linhas puras, 272
índice 293

por linhas cruzadas, 272 I


psicológico, 17,99,107,166, 187, 188, 192, Idade, 114,119,130, 154,166,167, 181,202,241-
193,215, 260,263 265,273
psíquico, 20,111, 281 cronológica, 112, 113
problemas do, 235, 248, 253, 254, 260, cultural, 112, 113
267 de transição, 180, 191, 192, 193, 196, 197,
processo de, 140, 155, 157, 158, 173, 174, 198, 202
178, 179, 193, 220, 241, 242, 245, 247, escolar, 20, 88, 156, 192, 241-265
248, 251, 254 ,2 5 6 , 257, 264 fisiológica, 112
social, 161 infantil, 88, 99, 118, 119, 120, 179, 250,
uterino do feto, 63 282
Dilthey, Wilhelm, 65, 66, 83, 84, 92, 94, 233, juvenil, 224
23 9,289 óssea, 112
Driesch, Hans, 235, 240 pré-escolar, 119,156, 157, 186, 187
Dualismo, 30, 31, 74 Idealismo, 31, 65, 85, 227, 228, 231, 232, 233,
2 3 5,236, 237
E real-, 235
Ebbinghaus, Hermann, 53, 62, 233, 239 Internalização da cultura, 15
Educação, 9, 12, 21, 56, 78, 84, 87, 88, 94, 96,
116,117, 147, 164, 171, 173, 174 J
Eidetismo, 181, 210 Jaensch, Erich, 181,210,225,226,227,228,229,
Emoção(ões), 15, 33, 35, 51, 61, 199, 201, 202, 230, 231, 232, 233, 234, 235, 236, 237,
Engels, Friedrich, 37, 59,135, 136,163,164, 165, 238,239
169, 172,174 James, William, 11, 51, 57, 58, 61, 66, 159
Ensino-aprendizagem, 21, 168, 174, 241, 242, Jukóvski, Vassíli, 60
244, 245, 246, 247, 248, 249, 253, 255,
256,257, 259, 260, 261 K
Escola de Würzburg, 52, 60, 61, 239 Kautski, Karl, 91, 92, 97
Espinosa, Baruch, 10, 91, 95, 97, 174, 190, 201, Koffka, Kurt, 210, 240, 272, 289
209, 213, Köhler, Wolfgang, 105, 106, 122, 123, 180, 181,
Esquizofrenia, 1 8 0 ,1 9 8 ,1 9 9 ,2 0 0,202,203,212, 183,210, 234,268, 272, 289
215-222 Kornílov, Konstantin Nikoláevitch, 14,16, 25, 60,
clinica da, 215, 218 8 0 ,8 1 ,8 3 ,9 2 , 9 5 ,96, 141
psicologia da, 19, 197, 198, 215-222 Kretschmer, Ernst, 198,212,213,218, 222
Krúpskaia, Nadiéjda Konstantinovna
F Külpe, Oswald, 52, 60, 61, 62, 6 6 ,9 2 ,9 4 , 236
Fascismo, 19, 21,223-240
Frank, Semion Liudvígovitch, 68, 69, 92, 95 L
Funções psíquicas, 20, 21, 188, 200 Lange, Nikolai Nikoláievitch, 44, 61, 68, 95
desagregação das, 20, 267-290 Lashley, Karl, 279, 282, 288, 289
superiores, 2 0 ,2 5 , 111, 188, 211, 267-290 Leontiev, Aleksei Nikoláievitch, 12, 24, 184, 192,
211,274,289
G Levina, 211
Galton, Francis, 194, 212 Lévy-Bruhl, Lucien, 188,205, 211
Gelb, Adhémar, 204, 210, 213, 272, 289 Lewin, Kurt, 13, 24, 25, 127, 128, 129, 130, 213,
Goethe, Johann Wolfgang, 178, 210 ' 2 1 8 ,2 4 0 ,2 6 4 ,2 6 5
Goldstein, Kurt, 180, 204, 210, 279, 280, 282, Linguagem, 33, 48, 54, 116, 117, 132, 179, 183,
283, 285, 286, 289 186, 188, 192, 203, 229, 231, 245, 275,
Groos, Karl, 186, 211 276, 277, 284,285
Guillaume, Paul, 272, 289 centros de, 56
correspondente, 50
H da criança, 116
Head, Henry, 281,290 da psicologia causai, 85
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 10, 196, 212, desenvolvimento da, 116, 117, 132, 157,
213 275, 284, 285
Hochheim, Eckhart de, 235,2 4 0 do idealismo, 232
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

egocêntrica, 24 de comparação, 116


em surdos-mudos, 56,117 de pensamento infundado, 75
escrita, 157 de pesquisa, 233, 260
infantil, 179 de pesquisa etnopsicológica, 154
interna, 132 de testes, 155
literária, 248 de trabalho, 81, 89
patologia da, 275 dialético, 135
objetiva, 35, 77 do condicionamento na ação do reflexo, 76
tácita, 46 do materialismo dialético, 81
Locke, John, 46, 61, 94 do reflexo condicionado, 74, 77, 88
Lósski, Nikolai, 92, 94 especulativo, 68
experimental, 239
funcional, 121, 124, 239
Marbe, Karl, 60 natural, 77
Marx, Karl, 7, 8, 37, 59, 163, 166, 167, 169, 171, objetivo, 121
172, 174, 228 psicológico, 48,124
Marxismo, 7, 8, 14, 81, 174, 226 subjetivo, 48, 75
Materialismo dialético, 81, 82, 96, 174 Meyerson, Ignace, 272, 289
Mecanicismo, 236, 237 Minorias nacionais, 17, 145-159
Memória, 10, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 124, Molojávi, Stepan Stepánovitch, 87, 96
137, 139, 184, 185, 192, 193, 196, 200, Morózova, Natalia Grigórievna, 188, 211
207, 217, 225, 242, 244, 257, 271,273 Münsterberg, Hugo, 5 3 ,6 2 ,6 5 ,6 6 ,8 5 ,8 6 ,9 2 ,9 4
altamente desenvolvida, 100
artificial, 104 N
comum, 101 Natorp, Paul, 6 5 ,94
da criança, 111, 273 Netcháiev, Aleksandr, 62, 68, 94
desenvolvida, 100, 101 Nietzsche, Friedrich, 172, 173, 238, 240
desenvolvimento da, 103, 111,211
do homem da cultura, 102, 105 P
do homem primitivo, 102, 103 Pávlov, Ivan, 8 ,3 0 ,3 3 ,3 6 ,3 8 ,3 9 ,4 0 ,4 2 ,4 5 , 53
excepcional, 100 60, 61, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78
funções da, 106 79, 8 7 ,9 3 ,9 4 ,9 5
desenvolvida, 100 Pedologia, 8, 15, 17, 18, 24, 25, 59, 62, 87, 88,
humana, 137 96, 112, 145, 145, 147, 148, 150, 152
imediata, 103 das culturas nacionais, 152
infantil, 137, 138 das minorias, 145-159
inicial, 100 papel da, 146
lógica, 178, 185, 192, 193, 200, 243, 271, soviética, 147, 153
274 Pensamento, 29, 3 5 ,4 8 ,4 9 , 52, 58, 62, 70, 106,
mnemotécnica, 100 132, 138,140, 141,171,182, 185,186,187,
natural, 103, 104 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 197,
orgânica, 100,101 200, 202, ?04, 208, 209, 219, 239, 242,
topográfica, 102 244, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 267,
voluntária, 274, 277 273, 274, 276, 283
Método, 17, 49, 66, 73, 76, 117, 118, 120, 123, abstrato, 219
124, 126, 134, 137, 139, 142, 167, 233 atividade do, 80, 217
alteração do, 135 autista, 212
comparativo, 142 aritmético, 140
concreto, 129 categorial, 280,281
da estimulação dupla, 24 científico, 225, 226, 236, 250
da evolução na biologia, 76 da(s)/de criança(s), 186, 192, 193, 243,
da pesquisa infantil, 134 2 5 0 ,2 5 3 ,2 5 4 ,2 5 5 ,2 6 5 ,2 7 3 ,
de campo, 153 das ciências naturais, 75
de criação, 168 de Piaget, 251, 254,
de estudo, 33 desenvolvimento do, 116, 179, 256, 273
de Pávlov, 87 do adolescente, 192
índice 295

do esquizofrênico, 199, 219 meio, 138


do homem primitivo, 188, 189 povo, 103
dos adultos, 242,254 tipo, 219
e linguagem, 179, 275, 285 Primitivismo, 158
e memória, 185 formas de, 158
espontaneidade do, 53 infantil, 114
fundamento do, 198 Protopópov, Viktor Pávlovitch, 5 0 ,6 1 ,9 6 ,9 7
gestaltista, 288 Psicologia
humano, 70, 238, 276 experimental, 50, 127,218
infantil, 241, 250, 251, 252, 253, 254, 255, marxista, 12,14, 15, 16, 59, 82, 83, 86, 95,
256, 257,263, 264 96
infundado, 75 pedagógica, 12, 24, 68, 86, 87, 95, 96
ingênuo, 148 Psiconeurologia, 223-240
lógico, 115 Psicopatologia, 212, 213, 217,222
por conceitos, 196, 204 Psicotécnica, 8 4 ,8 5 ,8 6 , 89
processo do, 80, 200 russa, 89 90,97
processo superior de, 139 Psiquiatria, 210, 215, 216
psicológico, 233,2 3 6
recursos do, 157 R
reflexivo, 61 Raça, 227,228, 230, 234, 235, 237
sistema de, 187, 196, 204 biologia da, 228
social-democrata, 97 ideologia de, 228
tolstoiano, 247 particularidades, 156, 158
verbal, 275 política de, 232
vigotskiano, 15 ponto de vista de, 235
visual, 184 teoria da, 227, 235
Personalidade, 55, 182, 196, 197, 203, 206, 208, Reação, 33, 34, 39, 40, 41, 44, 46, 51, 54, 60,
221, 221,222, 235 73, 80, 81, 88, 120, 122, 123, 124, 126,
alemã, 237 139, 141
autoconsciência da, 201, 204 circular, 44
conceito de, 40, 222 complexa, 221
características da, 212 condicionada, 30
constituição da, 149, 162, 163 da personalidade, 222
da criança, 150 de defesa, 76
da pessoa, 166 de resposta, 49
de Vigotski, 13 direta, 122, 123, 126
degradação da, 169 do animal, 73
desenvolvimento da, 158,169,170,171,209 estética, 16,
destruição da, 221
estímulo-, 125,141
estrutura da, 224,227, 234, 237
interna, 51
humana, 163, 167, 169, 170, 171, 172, 173,
motora verbal, 48
227, 239
primária, 45
papel da, 20, 222
princípio de, 28
pré-mórbida, 236
secundária, 45, 53
problemas da, 226
simples, 121,141
reações da, 222
superior, 140
teoria psicológica da, 224
verbal, 48
tipo de, 173, 224, 2 3 2,239
Reactologia, 16, 60, 96
Pesquisa etnopsicológica, 154
Reflexo, 3 2 ,3 3 ,3 4 ,3 8 ,4 0 ,4 2 ,4 3 ,4 4 ,4 7 ,5 0 ,5 2 ,
Plekhánov, Geórgui Valentínovitch, 162, 174
54, 56, 58, 60, 73, 74, 76, 77, 87, 88, 111
Pötzl, Otto, 184,211,269, 282, 283, 285, 289
alimentar, 38
Primitivo, 102, 205
conceito, 60
desenho, 106
condicionado, 28, 29, 30, 34, 36, 37, 48,
estado, 107, 202
72, 73, 74, 76, 88, 110, 111, 116, 122,
grau, 104
123,134,137,140, 141, 142
homem/humano, 102, 103, 107, 109, 110,
da liberdade, 33
137, 162, 188, 189, 204
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

de deglutição, 43 Sombart, Werner, 208, 213


de objetivo, 60 Sonho, 189,190,191, 197, 200, 207
de orientação, 60 do cafre, 189,190, 191, 197, 200, 204
do abraço nos sapos, 30 Spranger, Edward, 223, 224,225, 239
do sentimento, 51 Stern, Wilhelm, 93,115, 159, 183
interno, 43 Storch, Alfred, 199,213
livre, 111 Strumínski, Vassíli Iákovlevitch, 81, 96
não condicionado, 141
patelar, 280, 288 T
psíquico, 68 Tchelpánov, Geórgui Ivánovitch, 68, 69, 70, 71,
salivar, 33, 34 76, 93, 94, 95, 96
separados, 43 Teste
verbal, 49, 56 aplicado, 148
vitorioso, 39 Binet-Simon, 127
Reflexologia, 28, 31, 46, 60, 77, 78, 87 construção do, 149
material, 154-155
s Thorndike, Edward Lee, 155, 159, 289
Sapir, Edward, 276,289 Thurnwald, Richard, 154, 159
Sapir, Isai Davídovitch, 206, 213 Titchener, Edward B., 61,288
Sensação, 33, 276 Tolstói, Liev Nikoláevitch, 167, 244, 245, 246,
Sétchenov, Ivan Mikháilovitch, 67, 68, 70, 71, 74, 247, 248, 264, 265
9 3 ,9 4 Troitski, Matvei Mikhailovich, 67, 94
Sherrington, Charles, 39, 40, 41, 44, 45, 60, 95, Troll, Mikhail B., 62
233,2 4 0 Trótski, Liev Davídovitch, 91, 93, 97, 159
Significado, 14, 46, 86, 89, 90, 155, 162, 188,
190,191, 196, 198, 275 U
absoluto geral, 136 Úkhtomski, Aleksei Alekséievitch, 3 0 ,5 9 ,7 8 ,9 3 ,9 5
biológico, 44, 51 Unidade (edinítsa/edínstvo), 21, 61
central, 196, 267
da/de palavra, 221, 243, 244, 247, 275, 276 V
277 Vagner, Vladimir Aleksándrovitch, 60, 67,271,289
da pesquisa, 261 van Woerkorm, Willem, 289
da psicologia explicativa, 85 Vivência, 21,43, 46, 65,276
do objeto, 188 do(s) objeto(s), 43
duplo, 169, 259 objeto da, 4 3 ,5 2
especial, 187 particularidade da, 130
funcional, 123 processo de, 216
geral, 121, 136 von Monakow, Constantin, 212, 277, 287,
histórico, 95 289
ideológico, 190 Vvediénski, Aleksandr Ivánovitch, 55, 62, 86, 93
literal, 71
prático, 177 W
teórico, 241 Wernicke, Carl, 280, 289
Signo, 108, 188, 189, 207, 276 Wertheimer, Max, 210, 233, 240, 268, 289
da suástica, 231 Wundt, Wilhelm, 5 1 ,6 1 ,8 0 ,9 4 ,9 5 ,1 5 9 ,2 3 6 ,2 8 9
externo, 105, 206
-nó, 108 Z
Sistema psicológico, 28, 79, 179, 193, 204, 205, Zalkind, Aron Boríssovitch, 54,62, 8 8 ,8 9 ,9 3 ,9 7 ,
220,271 147, 151, 159
Slávina, 211 Zankov, Leonid Vladímirovitch, 23, 24, 185, 211,
Socialismo, 91, 97 274, 289
científico, 174 Zaporójets, 96, 211
Sokoliánski, Iván Afanássievitch, 8 8 ,9 6 , 117 Zelióni, Gueórgui Pávlovitch, 42, 61
“[...] o destino da ciência psicológica no
país da revolução também só pode ser
compreendido em seu aspecto histórico,
à luz do passado e do futuro, em um a
grande perspectiva, na dinâmica do
desenvolvimento e de catástrofes.” A
ciência psicológica (1928).

“[...] a tarefa de estudar positivamente a


criança de minorias nacionais consiste em
revelar todas as peculiaridades positivas
do psiquismo e do comportamento de
tal criança e mostrar como as leis gerais
do desenvolvimento infantil assumem
um a expressão específica, concreta, em
determinado meio cultural e cotidiano,
como elas se refratam através de uma
determinada forma nacional e histórica
concreta de existência de todo um povo.”
Sobre o plano de trabalho de investigação
científica a respeito da pedología das
m inorias nacionais (1929).

“Em uma de suas obras, Marx diz que, se a


psicologia quer se tornar um a ciência real e
efetivamente rica de conteúdo, ela deve ser
capaz de ler o livro da história da indústria
material, no qual estão encarnadas as
“forças essenciais objetificadas do ser
humano”, que são elas mesmas uma
encarnação concreta da psicologia
humana.” O refazim ento socialista do ser
h um ano (1930 ).
Liev Sem iónovitch Vigotski (1896-1934)
Estudou Direito na Universidade de
Moscou, além de História e Filosofia
na Universidade do Povo de Chaniávski
(1913-1916). Uma de suas primeiras
realizações no campo da psicologia foi
a obra Psicotogia da arte (1925), a qual
lhe serviu como tese de doutorado. De
1924 a 1934, agregou em seu entorno
uma rede informal de pesquisadores
que o acompanharam em suas arrojadas
pretensões de refundar a psicologia sobre
bases marxistas.

Priscila M arques
Professora do curso de russo da
Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Bacharel e licenciada em Psicologia pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie,
mestre e doutora em Literatura e Cultura
Russa pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP).
Realiza pesquisas na área de literatura e
cultura russa, com ênfase na psicologia
da arte de L. S. Vigotski e traduções de
literatura russa.

Gisele Toassa
Psicóloga pela Universidade Estadual
Paulista (Unesp-Bauru), fonoaudióloga
pela Universidade de São Paulo (USP-
Bauru), mestre em Educação pela Unesp
(Marília) e doutora em Psicologia Escolar
e do Desenvolvimento Humano pela USP
(São Paulo). É professora associada da
Universidade Federal de Goiás.
Liev Semiónovitch Vigotski (1896-1934) é o psicólogo
soviético mais popular do mundo. Apesar disso, diversas
facetas de sua obra permanecem desconhecidas ou
pouco exploradas, mercê de uma ampla contribuição que
chega a 282 textos, entre livros, artigos, estenogramas de
conferências e outras produções. Seu firme compromisso
com o “refazimento socialista do ser humano” atravessou
o campo estritamente acadêmico para envolver também
propostas para elaboração de políticas públicas, manuais
de formação de professores de educação básica, resenhas
jornalísticas, entre outras, em um estilo que variou da
sobriedade erudita à ironia cáustica, embora nunca
despida de empatia para com o sentido presente nas obras
criticadas.

Esta antologia procura destacar o fio condutor que une


as reflexões vigotskianas sobre a natureza e os métodos
da psicologia ao compromisso ético-político do autor.
Sem ceder terreno ao proselitismo, Vigotski aborda
os estudos do desenvolvimento humano no contexto
soviético problcmatizando as dificuldades (e mesmo
impropriedades) características da importação acrítica
de teorias ocidentais por países “atrasados”. Sete dos
dez textos que compõem o presente volume estão sendo
publicados pela primeira vez em língua portuguesa, e os
demais ganham sua primeira tradução direta do russo.

Hogrefe P u b lish in g Group


ISBN 978-65-89092-72-8
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B o s t o n -A m s t e r d a m - P ra g u e - F lo re n c e
C o p e n h a g e n ■S t o c k h o lm ■H e ls in k i •O s lo
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