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Vigotski
desenvolvimento
humano e
marxismo
Tradução de Priscila Marques
Organização, introdução e notas de
Gisele Toassa e Priscila Marques
Psicologia,
desenvolvimento
humano e marxismo
Tradução de Priscila M arques
Organização, introdução e notas de Gisele Toassa e
Priscila M arques
Copyright da tradução: © 2023 Editora Hogrefe CETEPP, São Paulo
V741p
Vigotsky, L. S. (Lev Semenovich), 1896-1934.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo / L. S. Vigotski; tradução Priscila Marques;
organização Gisele Toassa e Priscila Marques. - 1. ed. - São Paulo: Hogrefe, 2023.
296 p .; 21 cm.
Inclui índice
ISBN 978-65-89092-72-8
1. Vigotsky, L. S. (Lev Semenovich), 1896-1934. 2. Psicologia. 3. Comportamento.
4. Desenvolvimento social. I. Marques, Priscila. II. Toassa, Gisele. III. Título.
CDD: 302
23-82799 CDU: 159.9.019.4
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou quaisquer
meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópias e gravação) ou arquivada em qualquer siste
ma ou banco de dados sem permissão por escrito.
ISBN: 978-65-89092-72-8
Impresso no Brasil
Sumário
Introdução.................................................................. 7
B io g r a f ia ..................................................................................9
S o b re o s t e x t o s ....................................................................... 16
S o b re a t r a d u ç ã o ..................................................................... 21
Cronologia................................................................. 23
índice 291
Introdução
São muitas as iniciativas de aproximação entre psicologia e
marxismo, seja como simples cruzamentos entre ideias advindas, por
exemplo, da psicanálise ou da análise do comportamento e da teoria
social marxista, seja como iniciativas de maior monta, que partem
do próprio marxismo para edificação de uma nova perspectiva em
psicologia.* A tais iniciativas opuseram-se obstáculos que se confun
dem, em ampla medida, com a própria história do comunismb em
diferentes países. Por seu caráter, via de regra, contra-hegemônico, as
iniciativas marxistas na psicologia foram relegadas a segundo plano
pelas políticas científicas na América do Norte e Europa, ou mesmo
no Sul Global.
* Ver Pavón-Cuéllar, D. (2015). Las dieciocho psicologías de Karl Marx. Teoría y Crítica
déla Psicología, 5, 105-132.
*** Toassa, G. (2016). Nem tudo que reluz é Marx: Críticas stalinistas a Vigotski no ám
bito da ciência soviética. Psicologia USP, 27(3), 553-563. https://doi.org/10.1590/0103-
656420140138
**** Vygodskaia. (2000). Epilogue. Journal o f Russian and East European Psychology,
37(5), 28-48.
Introdução
Biografia
** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
* O autor sabia ler grego, latim e iídiche. Além disso, sabia escrever e falar russo, hebraico,
alemão, inglês, francês e esperanto. Ver Blanck, G. (2003). Prefácio. In L. S. Vygotsky
(Ed.), Psicologia pedagógica (pp. 15-32). Artmed.
** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.
* van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.
* Ver Vygodskaia, G., & Lifanova, T. (1999). Through a daughter’s eyes. Journal o f Rus
sian & East European Psychology, 37(5), 3-27; e van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001).
Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.
** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.
** Yasnitsky, A. (2009). Vygotsky Circle during the decade o f 1931-1941: Toward an integra
tive science o f mind, brain, and education. [PhD thesis]. University of Toronto.
*** Para essa síntese, recorremos aos seguintes textos: van der Veer, R. (1984). Early
periods in the work o f L. S. Vygotsky: The influence o f Spinoza. [Mimeografado]; Veresov,
N. N. (2010). Marxist and non-Marxist aspects of the cultural-historical psychology of L.
S. Vygotsky. Outlines, 1, 31-49; Veresov, N. N. (2020). Discovering the great royal seal:
New reality of Vygotsky’s legacy. Cultural-Historical Psychology, 16(2), 107-117; Beaton,
G. A. (2005). La persona en el enfoque histórico cultural. Linear B.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
*** Texto muito importante dessa fase foi “A consciência como um problema da psicologia
do comportamento (1925)”, o primeiro desta antologia.
**** A tradução correta do título desse manuscrito seria “O sentido histórico da crise
na psicologia”. Vale a distinção porque sentido e significado são conceitos diferentes na
psicologia vigotskiana.
Introdução
Sobre os textos
Sobre a tradução
Karl Marx1
das relações mais elementares entre o ser vivo e o mundo. Será fácil
convencer-se de que esse é o caso se espiarmos o sumário do livro
Fundamentos gerais da reflexologia humana (1923), de V. M. Békhte-
rev: “Princípio de conservação da energia. Princípio de inconstância
permanente. Princípio de ritmo. Princípio de adaptação. Princípio de
reação equivalente à ação. Princípio de relatividade”. Em suma, prin
cípios universais que compreendem não apenas o comportamento
animal e humano, mas também toda a totalidade universal. Não
obstante, não há uma lei psicológica sequer que formule a relação
encontrada ou a dependência entre fenômenos que caracterizam a
peculiaridade do comportamento humano.
No outro polo do livro, o clássico experimento de formação
do reflexo condicionado, uma pequena experiência, fundamental e
excepcionalmente importante, mas que não preenche o espaço uni
versal que vai do reflexo condicionado até o princípio da relatividade.
A não correlação entre o telhado e o fundamento, a ausência de um
edifício entre eles, revela facilmente que ainda é cedo para formular
princípios universais com base em materiais reflexológicos e como é
fácil tomar leis de outras áreas do conhecimento e aplicá-las à psico
logia. Além disso, quanto mais amplo e abrangente for o princípio,
mais facilmente ele será estendido para o fato que nos é necessário.
Só não podemos esquecer que o escopo e o conteúdo do conceito
sempre se encontram em dependência inversamente proporcional. E
assim como o escopo dos princípios universais tende ao infinito, seu
conteúdo psicológico tende com o mesmo ímpeto a se reduzir a zero.
E esse não é um defeito particular da abordagem de Békhte-
rev. De uma forma ou de outra, esse mesmo defeito se revela e se
manifesta em quaisquer tentativas de formular sistematicamente uma
teoria sobre o comportamento humano como reflexologia pura.
2. A negação da consciência e a aspiração de construir um si
tema psicológico sem esse conceito, como uma “psicologia sem cons-
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)
não são visíveis a olho nu. Por que é possível estudar reflexos verbais
completos, mas não se podem considerar reflexos-pensamentos inter
rompidos em dois terços, embora essas sejam reações indubitáveis,
realmente existentes?
Se digo em voz alta, de tal forma que o experimentador possa
ouvir, a palavra “noite”, que me ocorrera por associação livre, isso
é considerado uma reação verbal, um reflexo condicionado. Já se
pronuncio de forma inaudível, para mim mesmo, se penso, será
que, por esse motivo, isso deixa de ser um reflexo e sua natureza
se altera? Onde está a fronteira entre a palavra dita e a não dita?
E se eu mexer os lábios, se sussurrar algo que não é audível para
experimentador, como fica a situação? Será que ele pode me pedir
para repetir a palavra em voz alta ou isso seria um método subje
tivo, acessível apenas para si mesmo? Se ele pode (e provavelmente
todos irão concordar com isso), por que ele não pode pedir para
dizer em voz alta a palavra dita em pensamento, ou seja, sem movi
mentar os lábios, com sussurro? De fato, ela era e permanece sendo
uma reação motora verbal, um reflexo condicionado, sem a qual
não haveria pensamento. Mas isso já é um questionamento, uma
manifestação do sujeito, seu relato verbal acerca de reações não
manifestas, não captadas pelo ouvido do experimentador (eis toda
a diferença entre pensamento e linguagem), mas que sem dúvida
existem objetivamente. Podemos nos convencer de muitas maneiras
sobre o fato de que elas existem, efetivamente com sinais de uma
existência material. É precisamente a elaboração desses modos que
constitui uma das mais importantes tarefas do método psicológico.
A psicanálise é um desse modos.
O mais importante, contudo, é que eles [os reflexos não ma
nifestos] mesmos tratam de nos convencer sobre sua existência. Eles
se manifestam com tamanha força e vivacidade na corrente ulterior
das reações, que o experimentador é obrigado a considerá-los ou sim
plesmente recusar-se a estudar tal corrente de reações na qual eles
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)
Protopópov, 1923, p. 22).* Mas uma coisa leva a outra. O ser humano
tem um aparato incomparavelmente mais completo, com ajuda do
qual se estabelece uma ligação ainda mais ampla com o mundo, isto
é, o aparato da fala: resta-nos passar às reações verbais.
No entanto, o mais curioso são esses “alguns fatos” com os
quais o pesquisador se depara em seu processo de trabalho. Ocorre
que a diferenciação do reflexo no ser humano foi atingida de forma
extremamente lenta e difícil; verifica-se que, ao impactar o objeto
com uma linguagem correspondente, é possível fomentar tanto rea
ções retardadas como fazer emergir reações condicionadas (Proto
pópov, 1923, p. 16). Em outras palavras, tòda essa descoberta leva à
possibilidade de se convencionar verbalmente com uma pessoa para
que ela mova a mão mediante um sinal conhecido e, mediante o
outro sinal, não a mova! O autor precisa fazer duas afirmações que
nos são importantes aqui:
1. Sem dúvida, as investigações reflexológicas com humanos no
futuro devem ser realizadas fundamentalmente com ajuda de
reflexos condicionados secundários (Protopópov, 1923, p. 22).
Isso não quer dizer outra coisa senão que a consciência irrompe
mesmo em experiências de reflexólogos e altera substancialmente
o quadro do comportamento. Ao expulsar a consciência pela
porta, ela entra pela janela.
2. A inclusão desses procedimentos de pesquisa no conjunto de
procedimentos reflexológicos funde-a inteiramente com os pro
cedimentos de investigação das reações etc. há muito estabele
cida pela psicologia experimental. Isso também é observado por
Protopópov, mas ele considera essa coincidência casual e apenas
exterior. Para nós, contudo, é claro que aqui se trata de uma to-
Notas da tradução
16. John Locke (1632-1704), filósofo, foi um dos principais expoentes do empirismo
britânico. Em sua busca por compreender a natureza da experiência sensorial
e sua relação com o pensamento reflexivo, tornou seu Ensaio sobre o entendi
mento humano (1689) um clássico da filosofia da natureza. Também é bastante
conhecido pelos seus escritos acerca do liberalismo econômico e político.
* É verdade que alguns autores como K. Bühler (Die Krise der Psychologie [A crise da
psicologia], 1927) e outros tentam preservar a unidade da ciência psicológica sob a égide
do princípio teleológico, ou seja, de fato adotam involuntariamente o ponto de vista não
de uma psicologia única, mas de uma das duas psicologias, isto é, da psicologia idealista.
2. A ciência psicológica (1928) 65
* Esse termo deve ser compreendido aqui em um sentido amplo: ele designa todas as ciên
cias reais. Ver V. Ivánovski, Metodologuítcheskoe wediénie v nauku ifllosofiiu [Introdução
metodológica à ciência e à filosofia], 1923, p. 183.
2. A ciência psicológica (1928)
Não pode haver nada mais falso historicamente do que tal afir
mação: o incompatível continuou sendo incompatível, e a luta entre
as duas psicologias logo se tornou clara para todos.
II
* Em 1927 foi publicado o segundo livro do acadêmico Ivan Pávlov, Aulas sobre o trabalho 1
dos grandes hemisférios do cérebro, que traz uma apresentação completa e sistemática de 1
2. A ciência psicológica (1928)
III
marxista, com base nos quais teve início a elaboração teórica e expe-|
rimental de cada problema psicológico.
Com isso, foi dado um passo decisivo, ocorreu uma reviravolta
histórica para o desenvolvimento da psicologia. A psicologia passouj
a ser tida como disciplina marxista. Ela entrou conscientemente paral
o “inventário de ferro da ideologia marxista”, colocou-se consciente^
mente a serviço da revolução. Com isso, ela tomou o único caminho|
que permite a realização da psicologia como ciência.
O avanço para um campo inteiramente novo se mostrou extre- j
mámente difícil; ele foi perpassado por erros e lapsos tanto em rela
ção à teoria do materialismo dialético quanto à psicologia. É preciso!
ter em vista que a psicologia marxista é uma tarefa histórica da nossal
época que pode ser realizada apenas mediante esforços conjuntos!
de mais de uma geração de psicólogos, pois a expressão “psicologia!
marxista” não designa um ramo da psicologia ou uma de suas orien- j
tações, ela designa a psicologia científica como um todo, psicologia!
marxista é sinônimo de psicologia científica, e nesse sentido a cria
ção de uma psicologia marxista é a conclusão de um longo processo
histórico de transformação da psicologia em uma ciência natural.
A tentativa de construir a psicologia com base no materialismo
dialético não é, em essência, algo inteiramente novo. No exterior,
houve mais de uma tentativa, embora não com a seriedade e o im
pulso que distinguem a tentativa russa. “A ideia de fazer uma descri
ção e explicação marxista do comportamento de modo a substituir a
psicologia antiga está amadurecendo em muitos lugares ao mesmo
tempo”, diz Blónski (como citado em Jameson, 1925, p. X).
Isso indica que essa é uma tarefa historicamente justificada, que
se trata da conclusão lógica do estado atual da nossa ciência, que esse
movimento se baseia em uma poderosa tendência histórica de desen
volvimento da nossa ciência. “Somente a psicologia marxista é uma
psicologia que efetivamente esgota seu objeto” (Jameson, 1925, p. IX).
2. A ciência psicológica (1928)
vr
Resta falar sobre o terceiro aspecto que, junto dos dois anterio
res, revela o quadro geral da ciência psicológica na URSS. Trata-se
do rico crescimento da psicologia aplicada, a psicologia aplicada à
educação, ao tratamento de saúde, à organização do trabalho etc.
Esse não é um fenômeno casual; ele está legitimamente ligado a
dois outros traços da nossa psicologia e decorre diretamente da prin
cipal tarefa histórica que ela resolve. Se na teoria dos reflexos con
dicionados a nossa psicologia encontrou seu fundamento biológico,
na dialética materialista ela encontrou sua formulação filosófica e na
psicotécnica (no sentido mais amplo do termo), sua prática, ou seja,
o domínio efetivo sobre o comportamento humano, a subordinação
dele ao controle da razão.
Por sua própria natureza, a psicotécnica foi convocada a de
sempenhar o papel de revolucionar a psicologia, e isso foi de fato
assim em toda parte em que a psicotécnica emergiu.
da educação realmente está no centro dessa teoria. Por isso, sua apli
cação à teoria e à prática da educação se revela tão fértil e simples.
Com efeito, o educador quase sempre lida com a educação do reflexo
condicionado, de modo que o conhecimento das leis que regem esses
processos permite que ele eleve seu trabalho a um nível científico.
Especialmente produtiva tem sido a aplicação do método dos
reflexos condicionados ao estudo da criança deficiente, o que foi feito
com particular êxito pela escola de Khárkov do professor Viktor Pro-
topópov28 e Ivan Sokoliánski.29 Mas também na escola geral a lei bá
sica, isto é, a estrutura do meio forma o novo reflexo, as “condições”
criam uma nova reação, corresponde integralmente à posição funda
mental da pedagogia soviética, segundo a qual a educação, no final
das contas, leva à organização do meio educativo.
***
Referências
Békhterev, Vassüiev. Refleksológuiia trudá [Reflexologia do trabalho], 1926.
Blónski, Pável. Ótcherk nautchnoi psikhologuii [Ensaio sobre a psicologia científica], 1921.
Chpilrein, Isaak. God raboti laboratórii promíchlennoi psikhotékniki [Um ano de trabalho
do laboratório de psicotécnica industrial], 1924.
Kautski, Karl. Na drugói dién posle sotsiálnoi revoliútsii [No dia seguinte à revolução
social], In Sotsiálnoi revoliútsii [A revolução social]. Ligi, Genebra, 1903.
Pávlov, Ivan. 20-letnii opit obiektivnogo izutch. visch. nervn. deiat [Duas décadas de expe
riência com o estudo objetivo da atividade nervosa superior], 1923.
Radlov. Ótcherk istorii russkoi filosófii [Ensaio sobre história da filosofia russa], 1921.
Sbornik posviaschiónni 75-letiiu ak. I. P. Pávlov [Antologia dedicada aos 75 anos do aca
dêmico I. P. Pávlov], 1925.
Vvediénski, Aleksandr. Psikhológuiia bez vsiakoi metafiziki [Psicologia sem qualquer me
tafísica], 1917.
Zalkind, Aron. Ótcherki kulturi revoliutsionnogo vremeni [Ensaios sobre a cultura da época
revolucionária], 1926b.
Notas da tradução
12. Aleksander Netcháiev (ver nota 24 do texto 1), filósofo. Após visitar labo
ratórios na Alemanha (de Wundt, Müller e Kraepelin), fundou o primeiro
laboratório de psicologia educacional experimental em 1901, em São Pe
tersburgo, enfrentando forte oposição do também filósofo A. Vvediénksi
(ver nota 24 do texto 1), avesso à experimentação psicológica.
Primeira aula
As duas linhas do desenvolvimento psicológico
** Nesse local foi deixado um espaço em branco. Abaixo fala-se em “linha do desenvolvi
mento cultural”.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
para me deter na segunda delas, uma vez que a explicação dessa se
gunda linha de desenvolvimento é mais difícil e complexa.
Quando comparamos a memória do homem primitivo com a
memória do homem da cultura, estabelecemos, seja com base na sim
ples observação, seja com base na pesquisa experimental, dois fatos
principais, o instinto da matéria básica, em relação ao qual a memó
ria do homem primitivo se distingue da nossa memória. Se compa
rarmos o homem que não é da cultura, primitivo, com o homem da
cultura, o peso da memória será maior para o homem que não é da
cultura. Os senhores conhecem histórias de habilidades extraordi
nárias nesse sentido de homens primitivos, sobre a capacidade do
homem primitivo de reconstruir, a partir dos menores vestígios, um
quadro complexo de acontecimentos, de deduzir pelas pegadas na
neve qual espécie animal esteve ali, quantos eram machos e fêmeas,
como ocorreu a luta, quem a venceu, tudo isso com base em vestí
gios insignificantes, que não nos diriam nada. Os senhores também ■
conhecem histórias, que foram confirmadas por experimentos, sobre
a enorme memória topográfica do ser humano, histórias sobre como
o homem primitivo precisa passar apenas uma vez por um caminho
complicado e confuso para reter na memória esse trajeto e ser capaz
de reproduzi-lo.
Dito de outro modo, submetido à pesquisa experimental o ho
mem primitivo não só não tem uma memória menos desenvolvida
em comparação com o homem da cultura, como, ao contrário, sua
memória é mais desenvolvida do que a nossa. Os senhores sabem que
o homem primitivo não deve de modo algum ser analisado como o
homem pré-histórico, e apenas a custo, apenas condicionalmente com
grande dose de relatividade podemos analisar as pessoas primitivas
da atualidade como, digamos, as tribos negras da África Central, eles
podem apenas condicionalmente ser analisados como representantes
do comportamento humano que não compartilha o desenvolvimento
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)
[Figura 1]*
Com frequência é mais proveitoso fazer um desvio, ainda que
mais longo, do que seguir em linha reta, mesmo que seja um percurso
menor, e a vantagem consiste no fato de que o primeiro caminho de
pende de condições às quais ainda não fomos submetidos. O segundo
caminho, por ter sido criado artificialmente por nós, graças à introdução
de um estímulo artificial, encontra-se totalmente sujeito ao nosso poder.
Gostaria de fazer um segundo esclarecimento a propósito de
algo que foi dito no primeiro esclarecimento: com frequência* em
nosso curso, temos de nos referir à psicologia do homem primitivo,
ao desenvolvimento histórico do comportamento na filogênese, e pre
cisamos inicialmente chegar a um acordo claro sobre o objetivo, sobre
os objetivos metodológicos com os quais isso será feito.
Um mal-entendido que pode surgir aqui diz respeito ao fato
de que as menções ao desenvolvimento histórico do ser humano, à
psicologia do homem primitivo geralmente servem para [fundamen
tar] o paralelismo b[iológico],** isto é: aqui está uma criança, o com
portamento dela é o capital daquilo que outrora a humanidade vi-
venciou no desenvolvimento do comportamento.*" Quando fazemos
referências ou digressões no campo do desenvolvimento do homem
primitivo, fazemos isso por outros motivos, não para isso. Não esta
mos supondo que o desenvolvimento do ser humano é em alguma
** Nas obras de Vigotski não aparece a expressão “reflexo livre”, evidentemente trata-se
do “reflexo” que se forma ao longo do desenvolvimento cultural. Para Vigotski, “cultural”
significa “arbitrário” e essa arbitrariedade é uma característica necessária da ação livre.
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
Por exemplo, uma criança tem 12 anos, mas sua idade óssea
está atrasada ou adiantada em dois anos em relação à idade crono
lógica. Aplicando os mesmos modos de investigação, determinamos
a idade cultural-psicológica da criança. Estabelecemos quais fases e
estágios ocorrem nos procedimentos do comportamento, elevando-se
de formas primitivas a formas culturais mais complexas.
Quando estabelecermos essas fases, tentaremos estabelecer
por quais fases do desenvolvimento cultural a criança passou em
cada idade e qual a relação entre a idade cronológica e a fase de
desenvolvimento cultural; tentaremos medir se ela está atrasada ou
adiantada em seu desenvolvimento cultural em comparação com a
idade cronológica.
* Eis o motivo pelo qual Vigotski expressou o desejo de estudar esse assunto, em res
posta à solicitação do Narkompros (Comissariado do povo para a educação). Muitos
anos mais tarde, ao discutir os resultados do “Experimento Zagórski”, no qual foram
criadas as condições para a formação do psiquismo de crianças cegas-surdas-mudas
pelo sistema Sokoliánski-Mescheriakov, Iliénkov escreve uma carta a A. V. Suvórov, um
dos participantes desse experimento: “Compreendo que a cegueira-surdez-mudez não
cria nenhum problema, nem o mais microscópico, que não seja um problema geral. A
cegueira-surdez-mudez apenas o aguça, não faz nada além disso” (citado cf. Suvórov,
A. V. O problema da formação da imaginação em crianças cegas-surdas-mudas. Vopróssi
psikhológuii, n. 3, 1983). O que Vigótski comparou a um “microscópio”, Iliénkov cha
mou de “lupa do tempo” (Iliénkov, E. V. O psiquismo humano sob a “lupa do tempo”.
Priróda, n. 1, 1970.
Segunda aula
Métodos de pesquisa em psicologia infantil
* Muito provavelmente foi omitida a palavra “diagnóstico” (em particular, o teste Binet-Si-
mon para avaliação do desenvolvimento do intelecto, Vigotski escreveu sobre ele algumas
vezes). Abaixo, a palavra “diagnóstico” foi novamente omitida em outro contexto. Ao que
parece, a estenógrafa não sabia como escrevê-la.
* Duas palavras foram omitidas, a estenógrafa anotou apenas as primeiras letras “c” e "d”.
A diferença entre a análise fenomenológica e a dinâmico-causal, ou fenotípica e genético-
-condicional foi feita por Lewin, a quem Vigotski cita. Ver Vigotski, L. S. Obras escolhidas.
Volume 3, p. 97.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)
mada do caminho percorrido pelo peixe. Que caminho foi este: reto
ou em zigue-zague, no fundo ou na superfície? Jogamos uma corda
com um nó no peixe e seguramos a outra ponta da corda. Ela se movi
menta, pois está ligada ao peixe. Seria ingênuo pensar que pela ponta
da corda seja possível ter uma noção do caminho seguido pelo peixe,
mas uma série de alterações nessa ponta que estamos segurando cor
responde ao movimento do peixe que está ligado à corda. Isso quer
dizer que, além do ponto em que o peixe afunda e do ponto em que
ele emerge, temos ainda as alterações sofridas pela ponta da corda
que, é claro, não reproduz tudo, mas corresponde funcionalmente
aos movimentos realizados pelo peixe. Com base nessas alterações
não conseguimos reproduzir a totalidade do processo interior, isto é,
do percurso do peixe debaixo d’água, mas por meio delas é possível
dizer ao certo a que profundidade o peixe estava. Da mesma forma,
a julgar pela corda, podemos dizer quanto o peixe navegou debaixo
d’água. Evidentemente muita coisa permanece obscura, será interpre
tada de modo equivocado, mas em termos básicos será de extrema
importância, antes de tudo para o método da pesquisa infantil. Aqui
é de extrema importância a passagem para a investigação objetiva
dos processos internos que não se submetem à pesquisa ffenome-
nológica] imediata e são impossíveis de ser verificados por meio do
experimento comum sobre o reflexo condicionado.
de tais formas que são formações históricas, ou seja, que não poderão
ser compreendidas se não forem abordadas historicamente.
Apresentarei um exemplo simples, com o qual os psicólogos se
depararam na investigação de operações aritméticas em adultos. Até
certo ponto, tais operações são automatizadas, que .. .*
* A frase está incompleta. Pode-se supor que se trate de um assunto abordado outras vezes
por Vigotski: a operação aritmética em adultos aparece como caso particular da operação
algébrica. A relação genética entre operações inferiores e superiores estão invertidas aqui.
* Na aula anterior, Vigotski deu o exemplo dos quipos, registros feitos com cordões do
povo maia.
138 Psicologia, desenvolvimento hum ano e marxismo
Por fim, a última coisa que gostaria de dizer é que esse grupo
de métodos que busquei caracterizar aqui não é apenas um grupo
histórico objetivo, mas também comparativo. Por sua essência, nosso
modo fundamental de análise será sempre o método comparativo.
Em outras palavras, uma vez que a tarefa de acompanhamento dessas
duas linhas consiste em analisar como se transformam, em diferentes
estágios etários, as leis básicas e constantes do comportamento da
criança, devemos destacar essa constante e, consequentemente, todas
essas.leis. O método e o modo de pesquisa fundamentais passam a ser
o modo comparativo, o método comparativo.
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)
Nota da tradução
Notas da tradução
Engels diz:
operário faz com que a ferramenta sirva a ele, na fábrica ele serve
à máquina. Lá o movimento da ferramenta de trabalho parte dele,
aqui ele deve seguir seu movimento, segundo Marx. Os operários sao
convertidos em “apêndices vivos da máquina”, surge a “desalentada
monotonia do sofrimento sem fim do trabalho”, de que fala Marx,
como sendo uma característica distintiva do período do capitalismo
por ele descrito. Nas palavras de Marx, a ligação do operário a uma
determinada função converte “o operário em um monstro, cultivando
apenas uma capacidade especial e esmagando o mundo restante de
inclinações e talentos produtivos”.
Ele diz:
Notas da tradução
outros objetos e assim por diante. Tal pesquisa nos levou a um beco
sem saída, e outras pesquisas mostraram com total clareza: o desen
volvimento ulterior da percepção consiste em que ela entra em uma
síntese complexa com outras funções, em particular com a linguagem.
Essa síntese é tão complexa que em cada um de nós, exceto em casos
patológicos, é impossível separar todas as regularidades primárias
da percepção. Apresentarei um exemplo bastante simples. Quando
investigamos a percepção de imagens, como fez Stern,9vemos que, ao
relatar o conteúdo da imagem, a criança nomeia objetos separados,
e ao realizar aquilo que está representado no quadro, ela representa
o quadro como um todo, sem tratar de partes isoladas. Nos experi
mentos de Kos, nos quais a percepção é investigada de forma mais ou
menos pura, a criança, em particular a criança surda-muda, constrói
figuras totalmente de acordo com um tipo estrutural, ela reproduz um
desenho correspondente, uma mancha colorida; mas, tão logo a lin
guagem interfere na designação desses cubos, obtemos inicialmente
uma união incongruente, sem estrutura: a criança coloca os cubos
próximos entre si, mas sem formar um todo estruturado.
Para suscitar em nós uma percepção pura, é preciso estabe
lecer certas condições artificiais, e essa é uma tarefa metodológica
ainda mais difícil em experimentos com adultos. Em um experimento
no qual é preciso oferecer ao sujeito uma figura sem sentido, se ofere
cermos não apenas um objeto, mas uma figura geométrica, a percep
ção se unirá a um conhecimento (por exemplo, de que isso é um triân
gulo). E para que se apresente, como diz Kõhler, não uma coisa, mas
um “material para visão”, faz-se necessário exibir uma composição
complexa, confusa e sem sentido ou mostrar com extrema velocidade
um objeto, de modo que dele reste apenas uma impressão visual. Em
outras condições, não é possível voltar à percepção imediata.
Na afasia, em formas profundas de degradação das funções
intelectuais e da percepção em particular (isso foi especialmente
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
Notas da tradução
8. Como é próprio de suas conferências (a maioria não revisada por ele para
publicação), Vigotski não traz referências precisas, mas o autor e seu Cír
culo de pesquisadores realizaram diversos experimentos sobre as funções
psíquicas superiores ou voluntárias, particularmente, ao longo dos anos
1920 (ver Vigotski, L. S. (2021). Historia do desenvolvimento das funções
mentais superiores. Martins Fontes).
13. Jean Piaget (1896-1980), psicólogo suíço. Autor de muitos trabalhos ex
perimentais e teóricos no campo da psicologia infantil e genética, embora
considerasse ter criado uma nova ciência, a epistemología genética, cujo
objeto era a passagem dos estados inferiores do conhecimento aos estados
mais complexos ou rigorosos.
14. Karl Groos (1861-1946) foi um psicólogo alemão. Seus principais trabalhos
são no campo da psicologia genética. Famoso autor da teoria sobre a natu
reza e desenvolvimento do jogo infantil.
23. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo alemão que
desenvolveu a filosofia idealista alemã.
33. Adhémar Gelb (1887-1936) foi um psicólogo alemão que pertenceu ao cír
culo da Gestalt.
* Entre os psicólogos contemporâneos, Kurt Lewin foi quem mais se aproximou da correta
resolução desse problema. Ao discutir o problema da unidade da consciência, ele mostrou
que a condição necessária para tal unidade é a separação da consciência em esferas distin
tas, em sistemas psíquicos, camadas relativamente limitadas e independentes.
7. Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia (1933) 219
* Segundo esse ponto de vista, alguns casos de dissociação, em particular, podem legiti
mamente ser considerados reações de defesa da consciência a processos de desagregação
e fusão.
222 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
Notas da tradução
Esses fatos nos fazem lembrar que na Alem anha, não apenas no
sentido geográfico, mas espiritual, deve ser criado um baile de de
fesa para resguardar a cultura europeia da onda materialista que a
invade, e nesse sentido nossa ciência se vê diante de tarefas especial
mente im portantes.
todo grande povo tem muitas estruturas. O povo tem não apenas
as estruturas m entais que são determinantes em dada época, mas
também outras. Na Alemanha estam os agora trabalhando com o res
tabelecim ento do tipo nacional fundamental. Esse restabelecimento
está fundamentado na união do tipo do idealista alemão com o cam
ponês, mais ligado ao tipo da terra. Essas duas estruturas devem se
fecundar entre si. É preciso elevar um pouco o tipo camponês e o tipo
idealista deve ser construído e fortalecido de baixo. Na linguagem
da tipologia integral isso quer dizer fusão das estruturas. Se outros
230 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
Primeira: não há dúvidas sobre a crise, diz Jaensch, mas ela foi
superada, não é possível falar dela como se fosse algo do presente.
Segunda: não houve exatamente uma crise. Trata-se de uma
crise metodológica e não teórica. Quando a psicologia do elemento
de Ebbinghaus7 se deparou com a psicologia estrutural de Dilthey,8
a psicologia associativa já não era uma teoria viva, ela se contrapu
nha à psicologia estrutural apenas como método de pesquisa. Por
isso a psicologia da Gestalt9 alemã estava lutando no fundo contra
fantasmas quando se manifestava contrariamente à teoria atômica
do psiquismo.10 Ela defendia uma teoria contra um método. Jaensch
cita a opinião oral de seu amigo inglês que lhe garantiu que nesse
movimento do pensamento psicológico, em todo caso, estava a mais
progressista de todas as orientações psicológicas de nosso tempo,
não havia nada que não estivesse nos trabalhos de Stout11 e Sherrin
gton.12. A ideia do todo que determina suas partes é a ideia primor
dial da psicologia alemã. Ela não exclui, mas inclusive pressupõe a
psicologia dos elementos. A unidade da psicologia será restaurada
de modo magicamente simples. Jaensch nos ensina que não como “ou-
-ou”, mas como “e-e”. Ele deve lidar com a psicologia da Gestalt, que,
aliás, nos últimos anos não apenas perdeu seu fundador, Wertheimer,13
um dos mais notáveis psicólogos da contemporaneidade, mas acabou
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
Notas da tradução
6. Kulak designa o camponês que possuía mais do que 3,2 hectares de terra
no final do Império Russo. No período soviético, o termo passou a desig
nar, de modo geral, o proprietário rural de estratos sociais superiores, que
resistiram às transformações trazidas pela revolução.
19. Die blonde Bestie significa literalmente “a besta loura”, que aparece pela pri
meira vez em obra de Nietzsche de 1887 (A genealogia da moral). Há muitos
debates sobre o sentido dessa expressão, mas, aparentemente, o autor refe-
ria-se a raças antigas que se comportavam como animais de rapina, repletas
de força e vigor, ainda não enfraquecidas pela adoção da moral cristã.
9. Sobre a questão do
desenvolvimento dos conceitos
científicos na idade escolar:
experiência de construção de uma
hipótese de trabalho (1934)
A questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na
idade escolar é antes de tudo uma questão prática enorme, talvez
até de importância primordial do ponto de vista das tarefas que se
colocam diante da escola em relação ao processo de ensino e apren
dizagem da criança sobre o sistema de conhecimentos científicos. En
tretanto, o que sabemos sobre essa questão se mostra escasso. Não
é menor o significado teórico dessa questão, uma vez que o desen
volvimento de conceitos científicos, isto é, autênticos, indubitáveis e
verdadeiros, não pode deixar de se revelar na investigação das re
gularidades mais profundas, mais essenciais e básicas de qualquer
processo de formação de conceitos em geral. Nesse sentido, é notável
o fato de que esse problema, que constitui a chave para toda a histó
ria do desenvolvimento intelectual da criança e com a qual pareceria
ser possível iniciar a investigação do pensamento infantil, mostra-se
até muito recentemente quase que não elaborado, de modo que a
presente pesquisa experimental, cujo prefácio se encontra nestas pá
ginas, é praticamente o primeiro experimento de estudo sistemático
da questão.
Como se desenvolvem os conceitos científicos na mente da
criança que passa pelo processo ensino-aprendizagem escolar? Qual
é a relação na consciência da criança entre os processos propriamente
de ensino-aprendizagem e de assimilação de conhecimentos e os pro
cessos de desenvolvimento interior da compreensão científica? Eles
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
Fevereiro de 1934.
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade
escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)
Notas da tradução
******
10. O problema do desenvolvimento e da
desagregação das funções psíquicas superiores (1934)
******
é uma moeda; 40% das vezes ele está correto, 60% incorreto. Em
uma criança com agnosia congênita, o principal prejuízo é na função
de definição dos objetos, a criança não reconhece certas coisas em
diferentes situações.
Porém, se nos voltarmos às conseqüências que surgem em cada
caso, veremos que elas são diametralmente opostas.
O que ocorre com um paciente com agnosia? Os clínicos aqui
presentes poderão confirmar que ocorre o seguinte: há um compro
metimento imediato e severo da função de percepção dos objétos,
portanto há também um comprometimento da função visual. Grosso
modo, em caso de lesão da esfera visual, a gnose ótica se vê compro
metida, a percepção ótica se vê comprometida. Goldstein é enfático
nesse sentido, Põtzl fala disso, qualquer um que tenha trabalhado
experimentalmente com pacientes com agnosia pode se convencer de
que a posição mencionada antes é correta. Mas será que os conceitos
superiores estão comprometidos aqui? Será que o paciente consegue
raciocinar sobre objetos que ele não reconhece? Sim, a função do
raciocínio está preservada. Os clínicos poderão confirmar que os
conceitos sobre os objetos não estão comprometidos. Pesquisei em
tais pacientes os conceitos de objetos que eles não reconhecem e
pude verificar que esses conceitos se revelaram altamente modifica
dos; porém, o conceito se mostrou muito mais preservado do que
a percepção, e, caso não haja demência, o conceito sobre os obje
tos pode agir até como principal meio de compensação do defeito.
Quando o paciente de agnosia não reconhece que é um relógio, ele
recorre a mecanismos mais complexos. Ele age como um investiga
dor: tenta deduzir por meio de sinais conhecidos e, mediante um tra
balho complexo do pensamento, chega à conclusão de que se trata de
um relógio. Basta mencionar o trabalho de Goldstein para mostrar
que o paciente tem tanto domínio de sua percepção que reconhece
um quadrado depois de dirigir o olhar para todos os quatro cantos
Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
Notas da tradução
11. Sobre Leontiev, ver nota 11 do texto 6. Sobre Zankov, ver nota 12 do
texto 6.
18. Willem van Woerkorm, autor de “Über Stõrgungen im Denken bei apha-
sischen Patienten” [“Sobre as perturbações do pensamento em pacientes
290 Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo
19. Henry Head (1861-1940) foi um neurologista inglês, que realizou pesquisas
pioneiras no campo da investigação do sistema somatossensorial.
Priscila M arques
Professora do curso de russo da
Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Bacharel e licenciada em Psicologia pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie,
mestre e doutora em Literatura e Cultura
Russa pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP).
Realiza pesquisas na área de literatura e
cultura russa, com ênfase na psicologia
da arte de L. S. Vigotski e traduções de
literatura russa.
Gisele Toassa
Psicóloga pela Universidade Estadual
Paulista (Unesp-Bauru), fonoaudióloga
pela Universidade de São Paulo (USP-
Bauru), mestre em Educação pela Unesp
(Marília) e doutora em Psicologia Escolar
e do Desenvolvimento Humano pela USP
(São Paulo). É professora associada da
Universidade Federal de Goiás.
Liev Semiónovitch Vigotski (1896-1934) é o psicólogo
soviético mais popular do mundo. Apesar disso, diversas
facetas de sua obra permanecem desconhecidas ou
pouco exploradas, mercê de uma ampla contribuição que
chega a 282 textos, entre livros, artigos, estenogramas de
conferências e outras produções. Seu firme compromisso
com o “refazimento socialista do ser humano” atravessou
o campo estritamente acadêmico para envolver também
propostas para elaboração de políticas públicas, manuais
de formação de professores de educação básica, resenhas
jornalísticas, entre outras, em um estilo que variou da
sobriedade erudita à ironia cáustica, embora nunca
despida de empatia para com o sentido presente nas obras
criticadas.