Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
F I D A L G O
DOM QUIXOTE
D E LA M A N C H A ,
PO R MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA ,
T RADUZI DO EM VULGAR.
TOMO II.
I
m a *•>
LISBOA ,
NA TYPOGRAFIA ROLLANDIANA.
I 7 9 4 .
Com littr a ia Real Mexa da CommiJfoS Gtral fobre
0 Exame , e Çtnfura dos Livros.
k
II 0 1 taxado este Livro em papel a qua*
t rapemos ré is: Meza 5 de Dezembro de
I75Í4-
C m tres Rubricas .
O ENGENHOSO FIDALGO
I D. Q U I X O T E
D E LA MANCHA.
PARTE PRIMEIRA.
C A P I T U L O XX III.
j Do que aconteceo ao famoso D . Quixote em
Serra Morena , que fo i humu- das mais
raras aventuras, que nesta verdadeira
H istoria se contao.
CAPITULO XXIV.
Prosegue-se a aventura da Serra Mo
rena.
(%. Si .
34 D. Q u ix o te de l a M ancha;
„ das mais acertadas, que se podiaó ima-
„ ginar , por vêr quad boa occasiaô se me
„ ofterecia de tornar a vêr a minha Lucin-
„ da. Com este pensamento, e desejo ap-
>» provei o seu parecer , e uvigorei-o na
sua resoluçaõ , dizendo-lhe que a po-
j> zesse por obra com a brevidade possível,
„ porque com effeito a auzencia fazia o seu
„ officio a pesar dos mais firmes pensamen-
„ tos. Quando D. Fernando veio dizer-me
„ isto , tinha j á , como depois se soube ,
„ gozado da lavradora a titulo de esposo,
„ e esperava occasiaô de descobrir-se a seu
>» salvo , receando-se do que faria o Du-
„ que seu p a i, quando soubesse do mal ,
„ que elle obrára. Todavia como o amor
„ na maior parte dos mancebos he huma
„ paixaõ desordenada, hum appetite , que
tf só tem por fim o deleite , e com a pos-
ff se se desvanece, porque naó póde exce-
ft der dos limites, a que o cingio a nature-
ff za , apenas D. Fernando obteve a fineza,
íf que esperava da sua lavradora , dimi-
35 nuio-se sua affeiçaô , e seus desejos se
33 esfriáraõ; e se d’antes fingira elle que-
33 rer-se auzentar para remediai lo s , agora
33 de yéras o desejava para naõ polios por,
33 obra.
P a r t e I. C a p . XXIV. ^
obra. Deo-lhe o Duque licença , e orde-
jj nou-me que o acompanhasse. Viemos
jj ambos para casa de meu p a i, que o re-
j) cebeo como a quem era ; vi logo a mi-
jj nha Lucinda ; tornárao a reviver , ainda
” que nunca chegáraó nem ainda a esmo
ei recer os meus desejos , dos quaes dei
” conta , para meu m a l , a D. Fernando,
» por parecer-me que segundo a lei da
>» grande amizade , que me mostrava , naõ
» devia encobrir-lhe nada. Gabei a formo-
” sura, garbo, e discrição de Lucinda ,
>> por tal maneira que os meus elogios o
jj accendêraõ em desejos de querer vêr hu-
jj ma donzella , em quem reluziaó ta6 boas
jj p artes; e eu por contentallo , mostrei-
jj lha huma noite a huma janelía , onde eu,
jj e ella só hiamos fallar hum a outro. Es-
jj tava Lucinda aquelle dia com taÓ lindo
jj parecer, e taó bem enfeitada , que quan-
jj tas formosuras até entaó D. Fernando ti-
jj nha visto , de todas se esqueceo nomes-
jj mo instante. Emmudeceo , perdeo p
jj sentido , ficou enlevado , e finalmente
jj taó perdido de amores por ella , como
jj agora vos contarei. Para accendello mais
nos desejos, de que eu taó cic&o esta-
C ii jj va ,
-6 D. Q uixote de la M ancha ,
)> v a , e ao Ceo so o descobria , quiz a
,, fortuna que achasse hum escrito delia
„ (era aquelle em que me mandava dizer
„ que a pedisse a seu pai para minha espo-
,, sa) taó discreto , taõ honesto , c ao mes-
j) mo tempo cheio de expressões taó amo-
„ rosas, que lendo-o elle disse-me que só
„ em Lucinda se achava junto tudo quanto
„ tem de engraçados, e encantadores a íor-
„ mosura , e o siso , e nas demais mulhe-
„ res se acha repartido. Razaó he agora
„ que eu confesse que naó gostava de ou-
,, vir taes louvores da bocca de D. Fer-
„ nando, posto que sabia quanta razaó ti-
„ nha para louvar a Lucinda , e logo co-
jj mecei a temer , e recear-me delle , por-
jj que nao se passava hum só instante que
jj naóquizesse que fallassemos delia , e era
jj o mesmo que a trazia á conversação ,
jj muitas vezes bem fóra de proposito. Is-
jj to despertava em mim hum naõ sei que
jj de zelos , naó porque temesse desar al-
jj gum da parte da bondade , e fé de Lu-
jj cinda , mas porque a minha sórte me fa-
jj zia recear do mesmo, que ella me asse-
jj gurava. Queria D. Fernando ler sem-
jj pre os escritos , que eu mandava a Lu-»
j >cin-
P a r t e I. C a p . XXIV. 37
cinda , e os que ella me respondia , dan
>> do por pretexto , que gostava muito da
» discrição de ambos. Pedio-me hum dia
v> Lucinda , que era muito affeiçoada á lei-
5? tu ia dos Livros de Cavailarias, que lhe
)> mandasse Amadis de Gaula. j? Apenas
D. Quixote ouvio fallar em Livros deCa-
vallaria, rompeo nestas palavras : Se V.
Mercê me tivera logo dito , que a Senhora
Lucinda era affeiçoada a Livros deCaval-
larias, naó fora necessaria outra exageraçaó
para dar-me .a conhecer qual era a sua sisu-
deza , porque naó a tivera elia nunca , co
mo V. Mercê o tem pintado , senão gostá-
ra de leitura taõ boa. Assirn para comigo
nao saô necessarias mais palavras para de
clarar-me sua formosura , merecimentos ,
e sisudeza , que só de ter conhecido tal af-
feiçao nella , fico conílnnando-a pela mu
lher mais formosa , e discreta do mundo. E
quizera eu , Senhor , que V. Mercê lhe ti
vera mandado com Amadis de Gaula 0 bom
D. Rugel da Grécia , que a Senhora Lucin
da gostaria muito de Daraida , e Ga raia,
e das discrições do Pastor Darinel, e dos
admiráveis versos das suas bucolicas , que
,elle cantava, e representava com toda a gra-
38 D. Q uixote de la M ancha .
ça , discrição , e desembaraço. Mas tempo
virá , em que esta falta se emende , o que
será logo que V. Mercê queira vir comigo
á minha Aldêa , onde lhe poderei dar mais
de trezentos livros, que saó o regalo de
minha alma , e o divertimento da minha
vida; ainda que entendo que já naòtenho
nenhum , por m alicia, e enveja dos mal
ditos encantadores. E perdoe-me V. Mer
cê o ter ido contra o que prometti de na6
atalhar a sua narraçaoj pois em ouvindo
cousas de cavallarias , e Cavalleiros andan
tes , nao está mais em minha maó o deixar
de fallar nelles 3 do que está nos raios do
Sol deixar de aquentar, e de humedecer nos
da Lua. Assim prosiga V. Mercê , que he
o que importa. Em quanto D. Quixote as
sim fallava, deixou Cardenio cahir a ca
beça sobre 0 peito, dando mostras de quem
estava por extremo pensativo. E posto que
D. Quixote duas vezes lhe dissesse que pro-
seguisse o seu conto , nem levantava cabe
ça , nem proferia palavra. Passado porém
algum tempo levantou-a , e disse : Nad
posso arredar o pensamento, nem haverá
quem mo arrede , nem quem me dê a en
tender outra cousa 3 que seria hum velhaco •
P a r t e I. C ap. XXIV. 39
o que entendesse o contrario , on deixasse
de crêr que aquelle velhacaódo mestre Eli-
sabat dormia com a Rainha Madasima. Is
so naõ , por estas ... respondeo D. Quixote
acceso cm cólera , e dando-lhe hum empu
xão , como tinha de costume, que malí
cia he essa muito grande, ou velhacaria pa
ra dizer melhor. A Rainha Madesima foi
huma Senhora das mais gradas, e naó he
de presumir que taõ grande Princeza dor
misse com hum saca-dentes; e quem 0 con
trario entender, mente como hum velha
co ; e assim lho mostrarei a pé , ou aca-
vallo , armado , ou desarmado , de noite,
ou de dia , ou como melhor lhe aprouver.
Estava Cardenio olhando para elle com to
da a attençaó , assalteado já da mania , e
impossibilitado de continuar a narraçao da
sua historia. E taó pouco D. Quixote a
ouvira , visto que tanto o desgostara o que
tinha ouvido dizer da Rainha Madasima ,
estranha cousa, que assim acodíra por el-
la , como se na verdade fora sua legitima
Soberana. Este o estado a que o rinhaó re
duzido os seus excommungados livros. Car
denio que já estava , como fica dito , fora
. de si-5-tanto que ouvio que o desmentiao,
40 D. Q uixote de la M ancha»
e tratavaó de velhaco , e outros nomes se
melhantes , pareceo-lhe mal a graça , e lan
çando maó de hum grande calhdo , que
vio junto a si , deo com elle tal pancada
tmt npifnc o TI OmYnfe nliP r» afirmi flp
J I V 'U I 'L i l W O *-» ■*■■***' «. •« '- j v ^
CA-
42 D. Q uixote de la M ancha.
C A P I T U L O XXV.
E H Car-
68 D. Q u ix o te de l a M ancha.
C A P I T U L O XXVI.
P a r t e I. C a p . XXVI. 7^
Cra-
?! I. C ap. XXVII. 89
C A P I T U L O XXVII.
k V. J M ) . Q i M ancha.
ga±-me', se assim como tenho para quei
xar-me , tivéra coraçao para isso. Em fim
já que então fui cobarde, e nescio, naõ hs
muito que morra agora corrido , arrepen
dido , e louco. Estava o Cura esperando a
resposta de Lucinda, que tardou hum pou
co em dar-lha ; e quando eu cuidei que ti
rava do punhal para acreditar-se , ou que
soltava a lingua para dizer alguma verda
de ou desengano , que redondasse em meu
proveito , ouço dizer com voz fraca , e
tremula: Sim , quero. Disse D. Fernan
do o mesmo , e dando-lhe o annel , ficá-
rao para sempre unidos com indissolúvel
vinculo. Chegou o desposado a abraçar sua
esposa, e ella, levando a maó ao peito so
bre o coraçao , cahio desmaiada nos bra
ços de sua Mai. Resta agora dizer qual fi
quei eu , vendo, quando lhe ouvi dar o sim ,
frustradas minhas esperanças , falsas as pa
lavras , e promessas de Lucinda , impossi
bilitado para naô recobrar nunca em ne
nhum tempo o bem , que naquelle instan
te perdera ! Fiquei sem conselho, desam
parado , a meu vêr , de todo o Ceo , e
tornado em inimigo da terra , que me sus
tentava , negando-me o ar o alento para
meus
P a r t e I. C a p . XXVII. u r
'1 1 8 D- '- A M a n ch a .
pouco am o r, pouco siso, muita am biçao,
e os desejos de grandezas, forao os que
fizeraõ com que ella se esquecesse das ra-
soes , com que tanto tempo me trouxera
-enganado em minhas firmes esperanças, e
honestos desejos. Com estes pensamentos ,
e desassocegos caminhei o restante da noi
te , e ao amanhecer dei n’huma entrada
destas serras, pelas quaes andei outros tres
d ia s, sem achar atalho , nem caminho al
gum , até que vim parar n’huns prados,
que naó sei a que lado destas montanhas fi-
cao, e ahi perguntei a huns pastores qual
era o lugar mais ermo destas serranias. Dis-
seraÕ-me que este , para onde encaminhei
sem demora os passos com tençaõ de aca
bar nelle os meus dias. Ao entrar por estas
asperezas me cahio amul a, em que vinha,
morta de cansaço , e fome , ou pode s e r,
como cu creio , que por lançar de si ta6'
inútil carga , como a que em mim levava.
Fiquei entaõ a pé , estancado de forças,
morto á fome , sem ter , nem buscar quem
me soccorresse. Assim estive naõ sei quan
to tempo estendido sobre a terra , e no
cabo delle levantei-me sem fome , e achei
junto a mim huns cabreiros, os quaes sem
P a r t e I. C a p . XXVII. 119
dúvida foraõ os que remediáraõ a minha
necessidade , pois que medisseraõ de qual
maneira me tinhaó achado , e como estava
dizendo tantos disparates , e desatinos, que
dava indícios claros deter perdido o juizo :
e eu mesmo de entaó para cá conheço de
mim proprio que naõ 0 tenho perfeito,
mas tao mingoadõ , e fraco que faço mui
tas loucuras, rasgando os vestidos , dando
brados por estas soledades , amaldiçoando
a minha ventura , e repetindo em vaõ o
doce nome da minha inimiga , sem outro
intento mais que o de acabar a vida gri
tando. E quando torno a mim , acho-me
taõ cançado , e moido que mal me posso
mover. A minha vivenda mais ordinaria he
no v a õ , que faz o tronco de hum sobrei
ro , assaz grande para recolher este mise
rável corpo. Os vaqueiros , e cabreiros ,
que andaõ por estas montanhas , movidos
da caridade me sustentaõ, pondo-me o co
mer pelos caminhos, e rochas, por onde
entendem que casualmente poderei passar,
e dar com elle. Assim , ainda que então
me falte 0 juizo , a necessidade natural me
dá a conhecer o mantimento , e esperta em
njim o appetite , e vontade de tomallo.
Ou-
120 D. Q t ■-;C'Vr: i=t- la M ancha .
Outras vezes me dizem dies , quando me
encontrão em meu juizo , que saio aos ca
minhos , e que o tiro á força , ainda que
de bom grado mo dem , aos pastores que
vem com die do lugar para as manadas.
Desta maneira vou passando a minha mi
serável , e estremada vida até que ao Ceo
praza de dar-lhe fim , ou de tirar-me a me
mória para que naó me lembre da formo
sura , e deslealdade de Lucinda , e do ag
gravo , que me fez D. Fernando. Que quan
do el!e assim o faça , sem tirar-me a vida ,
desvanecer-se-haõ os desassocegos de meu
espirito, e cobrarei mais juizo : d’outra
sórte, o unico refugio que tenho he pedir-
lhe que tenha misericórdia de minha alma ;
pois eu nao me sinto com valor , nem for
ças para sahir desta estreiteza , em que por
meu gosto me quiz metter. Esta , Senho
res , he a estranha historia da minha des
graça. Confessem VV. Mercês agora se lie
ella tal que possa contar-se com menos sen
timentos que aquelles , que em mim terão
notado. E nao se cansem em persuadir-me,
e acqnselhar-me o que arazaó lhes dictar ,
e util possa ser para meu remedio , porq* -
tanto ha de isso aproveitar como a mediei.-
P a r t e I. Cap. XXVII. ni
na que receita o famoso Medico a hum
enfermo, e este nad quer tomalla. Eu nao
quero saude sem Lucinda; e visto ser do
seu gosto o ser d’outrem , sendo , ou deven
do ser minha , seja minha a desventura por
meu gosto , podendo ter sido a ventura.
Quiz Lucinda com sua mudança que fosse
estável a minha perdição , e eu quero,
procurando perder-me ”, contentada nesta
parte , e servirá de exemplo á posteridade,
que a mim só faltou o que a todos os des
graçados sobra , aos quaes serve de conso
lação a impossibilidade de naó relia , e em
mim he causa de maiores sentimentos, e
m ales; porque até estou em que nem com
a morte se acabaráó. Aqui deo Cardenio
fun á sua larga prática , c taõ desgraçada ,
como amorosa historia ; e ao mesmo tem
po que o Cura se prevenia para dizer-lhe
algumas razoes , que o consolassem, sus-
pendeo-ó huma lastimosa voz , que ouvio,
e dizia o que adiante se dirá.
i
Cra-
122 Q la M ancha.
CAPITULO XXVIII.
Em que se irata da nova , e agradavel
aventura , que na Mesma Serra aeon-
teceo ao Cura e Barbeiro.
I
nando. O qual tornou a repetillos f ée con-
con-
P ARTE I. C A ■i , I4I
firmar a palavra , que n a .............ou San
tos por testemunhas, fez mil imprecações
contra s i , senad cumprisse com o que pro-
mettia : derramou novas lagrim as, dco no
vos suspiros: apertou-me mais entre os bra
ço s, sem até então rne ter largado ; e por
ultimo retirando-se a donzella , que me ser
via , deixei eu de 0 ser, e elle acabou de
ser trahidor, e fementido. Nad amanhecia,
como eu creio , taô depressa , quanto D.
Fernando desejava , o dia que se seguio d
noite da minha desgraça ; porque círeirua-
do o que pede 0 appetite , o maior gosto ,
que póde haver lie apartar-se donde o al-
cancáraõ. Deo pressa D. Fernando a reti-
rar-se de mim , e por industria da ininna
criada , que era a mesma que alli o tinha
guiado , antes que amanhecesse , vio-sena
rua. Ao despedir-se, posto que com me
nos aífinco , e vehemencia , do que quan
do entrou , assegurou-me sua fé , e que se-
riaõ finnes, e verdadeiros seus juramentos;
e para mór confirmação da sua palavra , ti
rou do dedo hum rico annel, e o mettco
no meu. Foi-se com effeito, e eu fiquei ,
naó sei sc triste , ou alegre : hum a cousa só
sei diver, e he que fiquei cc fits' 0 ^ n -
1-
141 D. Q u ixote de l a M ancha.
sativa, e quasi fóra de mim com o novo
acontecimento ; e naõ tive animo , ou naô
me lembrou de reprehcnder a minha cria
da pela trahiçaó , que commettera de fe
char a D. Fernando em meu proprio apo
sento , porque ainda naó me determinava
a julgar se era bem , ou naó o que me acon
tecera. Ao partir-se D. Fernando lhe disse
que podia valer-se do mesmo m eio, que
r que! la noite , para vêr-me mais noites ,
pois era já sua até declarar-se quando elle
quizesse , o que estava feito. Mas só tor
nou a seguinte ; e nem eu pude velo pela
r ua, nem na Igreja , mais de hum mez ,
e debalde me cansei em solicitallo, ainda
que sube que estava na Villa , e que os
mais dos dias hia á caça, a que era muito
affeiçoado. Mingcados sei eu que foraó pa
ia mini esses dias, eessas horas; porque
nelles comecei a duvidar, e ainda a dei
xar _dc crêr na fé de D. Fernando. EntaÓ
ouvio a minha criada o que d’antes naó ou-
vna em reprehençaó do seu atrevimento ,
e loi-me forçoso ter conta com minhas la-
giim as, e com a compostura do meu ros
to , por nao dar occasiao , a que meus Pais
me perguntassem de que andava de&con-
F a r t e I. Ca ■ X . I. 143
rente e me obrigassem a buscar mentiras,
que dizer-lhes. Mas tudo isto se acabou
I «’hum instante, chegada que foi a occa
ni siaô, em que atropeláraõ respeitos, dérao
* fim os honrados discursos, a paciência se
perdeo , e sahíraò á praça meus secretos
pensamentos. Passados poucos dias disse-
(
raó no lugar, que n’huma Cidade visinha
delle se casára D. Fernando com huma don-
Í zella formosissima por extremo e de Pais
,
CAPITULO XXIX.
Em que se trata do gracioso artificio , e
ordem , que se guardou em tira r o nosso
enamorado Cavalleiro da asperissima
penitencia, que fa z ia .
CAP] T U L O XXX.
t
P a .i* r e I. C a p . XXX. 177
metier medo a quem o vê ) ; meu Pai di
zia eu soube que este G igante, em tendo
noticia da minha orfandade , viria com hum
grande exercito sobre o meu reino, e mo
tiraria todo , sem deixar-me huma peque
na aldea , onde me recolhesse ; mas que
esta desdita arredaria eu, quando quizesse
casar com elle , cousa, a que com effeito co
nhecia que eu nao seria nunca capaz de re
solver-me. RazaÕ tinha para cuidar assim \
porque nunca me passou pelo pensamento
casar-me com aquelle G igante, nem com
outro algum por grande, e desaforado, que
elle fosse. Ainda disse mais meu P a i, que
morto elle , quando eu visse que Pandafilan-
do começava a marchar contra o meu Rei
no , que nao cuidasse em pôr-me em de
fensão , porque isso seria destruir-me ; mas
que livremente lhe deixasse desembaraçado
o Reino , se queria escusar a morte , e to
tal destruiçaõ de meus b o n s, e leaes vas-
sallos, pois na6 seria possivel defender-me
da endiabrada força do Gigante ; equelcK
go com algum dos meus me pozesse a ca
minho para as H espanhas, onde acharia o
remedio de meus males , dando com hum
Cavalleiro andante, cuja fama aessetem -
Tom. II. M po
i;8 D. Q uixote de la M ancha.
ê
P arte I. C ap. XXX. 1S9
r, andára assim no conto, como na brevida-
10 de delie , e semelhança que este teve com
,s- os dos livros das Cavallanas. Declarou en-
;: taõ ella que algum tempo se entretivera em
a, lellos , mas que naõ sabia onde eraq as Fro
ta vincias, nem portos de mar , e por isso dis
ta séra a advinhar que tinha desembarcado em
a- Ossuna. Isso conhecia eu , tornou-lhe oCu-
io ra , e por essa razaõ acodi logo com o re
ae medio , com que ficou tudo acommodado.
> Mas naõ he cousa estranha vêr com quanta
:t facilidade este desaventurado Fidalgo crê
e- todas estas invenções , e m entiras, só por-
a- que procedem com o estylo , e maneira dos
s- romances, que elle achou nos seus livros ?
, Cerro que h e , disse Cardenio , e tao rara,
a- e nunca vista que eu naõ sei se querendo in-
a- ventalla , e forjalla mentirosamente , teria
ir engenho taõ agudo, que podesse dar com
a. ella. Pois outra cousa ha nelle , disse o Cu-
a- ra , e he que demais das simplicidades que
te este bom Fidalgo diz a respeito da sua lou-
3i* cura , se tratarem com elle sobre outras
3, . cousas , discorre com muito acerto , e rnos-
s. tra ter entendimento delicado , e claro , por
} maneira que como naõ 0 toquem em suas
ta Cavallarias , naõ haverá quem naõ o tenha
por
190 D. Q u ix o te de la M an ch a.
CAPITULO XXXI.
Dos gostosos arrazoam entos, que tiverao
entre si D . Q uixote, e seu Escudeiro
S ancho Pan fa , com outros successos.
C A P I T U L O XXXIII.
v Impertinente
E s de viário la m uger;
Pero no se ha de probar
Si se puede , ó no quebrar ,
Porque todo podria ser.
Y es mas fá c il el quebrars e ,
Y' no es cordura ponerse
A peligro de romperse
Lo que no puede soldarse.
Y en esta opinion estén
Todos, y en razon la fu n d o ,
Que si hay Dánaes en el mundo,
May pluvias de oro tambien.
/
Parte I. Cap. XXXIV. 277
e eu cora os meus, o que Cancilía quer y
e se for a maldade , que se pode mais de
pressa temer do que esperar , com silencio,
e discrição poderás ser o verdugo do teu
aggravo. Absorto , e admirado ficou An
selmo com as razoes de Lothario , porque
O colhêrao em tempo, que menos espera
va ouvillas , pois tinha já a Cancilía por
vencedora dos fingidos assaltos de Lothario,
e entrava a desfructar a gloria do vencimen
to. Esteve callado j>or hum bom espaço
olhando para o chao sem mover olhos, e
por ultimo disse : Fizeste, Lothario , o
que eu esperava da tua amizade: em tudo
seguirei o teu conselho : faze o que quize-
res , e guarda o segredo , que vês que con
vem n’hum caso taó improviso , e naõ es
perado. Prometteo-lho Lotario , e apar
tando-se delle , arrependeo-se totalmente
do que lhe disséra , por vêr que andara
tao nesciamente , pois podéra elle mesmo
vingar-se de Cancilía, e naõ por meio taõ
cruel , e de tanta deshonra. Maldizia de
seu pouco juizo : affeava sua leviana deter
minação ; e naõ sabia o que fizesse para
desfazer o que tinha feito , ou dar^lhe al
guma sahida razoavel. Finalmente assen
tou
V
2j6 D. Q uixote de l a M ancha.
ella intentei, eraó comproposito firme tra-„
tados. Cuidei assim mesmo que se ella fora
a que devia , e entre ambos pensávamos,
já te tivéra dado conta do meu procedimen
to ; mas como vejo que tard a, conheço que
saõ verdadeiras as prom essas, que me tem
feito, de que quando segunda vez te auzen-
tes de tua casa, me ha de fallar na anteca-
mara , onde está a tua guardaroupa ( e era
verdade que alli lhe costumava fallar ) :
Mas naõ quero que corras precipitadamen
te a tomar vingança , visto naõ estar o de
licto ainda commetido senaõ por pensamen
to ; e poderia ser que desde agora até o tem
po de polio por obra , mudasse Cancilla,
e se arrependesse; e assim já que de todo,
ou em parte seguiste sempre os meus conse
lhos , segue, e goarda hum que agora te
d a re i, para que sem engano , e com medro
sa advertência te satisfaças do que melhor
vires que te convem. Finge que te ausentas
por dous , ou tres d ia s, como outras vezes
costumas ; e faze de maneira que fiques oc
culto na tua antecamera , porque os pannos
de raz , e outras cousas que nella te n s, po
dem muito bem encobrir-te commodamen-
‘ê ; e entaõ verás com teus mesmos olhos,
P a r t e I. C ap. XXXIV. 277
e eu com os m eus, o que Cancilla quer ■,
e se for a maldade , que se pode mais de
pressa temer do que esperar , com silencio,
e discriçaÕ poderás ser o verdugo do teu
aggravo. Absorto , e admirado ficou An
selmo com as razoes de Lothario , porque
O colhêraõ em tem po, que menos espera
va ouvillas , pois tinha já a Cancilla por
vencedora dos fingidos assaltos de Lothario,
e entrava a desfructar a gloria do vencimen
to. Esteve callado por hum bom espaço
olhando para 0 chao sem mover o lh o s, e
por ultimo disse : Fizeste, Lothario , o
que eu esperava da tua amizade : em tudo
seguirei o teu conselho : faze 0 que quize-
res , e guarda o segredo , que vês que con
vem n’hum caso taõ improviso , e naô es
perado. Prometteo-lho Lotario , e apar-
tando-se delle , arrependeo-se totalmente
do que lhe dissera , por vêr que andara
taõ nesciamente , pois podéra elle mesmo
vingar-se de Cancilla, e naõ por meio taõ
cruel , e de tanta deshonra. Maldizia de
seu pouco juizo : affeava sua leviana deter
minação ; e naõ sabia o que fizesse para
desfazer o que tinha feito , ou dá-lhe al
guma sahida razoavel. Finalmente assen
to u '.
378 D . Q uixote de la M ancha."
tou dar parte de tudo a Cancilla , e como
paó lhe faltava occasiaó para isso , no raes-
mo dia a achou só , e tanto que ella vio
que podia fallar-lhe , disse-lhe : saberás ,
meu Lothario , que me afflige o coraçaô hu-
ma pena tam anha. que parece querer-me
o coraçaó rebentar dentro no peito , e ma
ravilha será , se assim naó for. Porque che
gou 0 desafforamento de Leonela a tanto ,
que todas as noites mette nesta casa hum
galan seu, e com elle fica fechada até que
^manhece, tanto á custa do meu credito,
quaó aberto fica o campo de ajuizar a quem
o vir sahir a horas tab intempestivas de mi
nha casa ; e o que me mortifica mais he nàó
poder eu castigalla , nem peleijar com el
la ; que o ser ella o secretario do nosso tra
to , me põe 0 freio na bocca para callar o
seu, e temo que daqui venha a succeder al
guma. Quando Cancilla entrou a contar is
to cuidou Lothario ser traça para dissuadil-
lo , de que o homem que elle vira sahir
era amante de Leonela , e naó seu *, mas
tanto que a vio chorar, e affligir-se roda ,
e pedir-lhe remedio, veio a crêr a verdade,
e como a crêsse, acabou de confundir-se,
'i fica todo arrependido. Todavia res-
' res-
/ '
P a r t e I. C ap. XXXIV. 279
pondeo a Cancilla que naõ lhe desse istó
cuidado , pois elle Buscaria traças para to*
lher a insolência da criada. Também lhe
disse o que arrebatado da vehemencia dos
zelos tinha dito a Anselmo , e como estava
assentado entre ambos esconder-se este na
antecamera para observar d’alli a pouca le
aldade , que ella lhe guardava. Pedio-lhé
perdaó desta loucura , e conselho para re
medialia j e sahir bem de9te intrincado la
byrintho , em que o mettêra seu pouco dis
curso. Ficou Cancilla pasmada de ouvir o
que lhe dizia Lothario, e muito enfadada-,,
arrazoou com elle com muita discrição , af-
feandc-lhe juntamente 0 seu indigno pensa
mento , e a sim ples, e roitn determinação
que tomára. Mas como a mulher tem nâ-
turalmente mais astúcia para o bem , e para
o m al, do que o homem , posto que lhe vá
faltando o engenho quando de proposito se?
pÔe a discorrer , deo no mesmo instante*
Cancilla na traça para remediar huma cou
sa , ao parecer, taô irremediável, e disse-
para Lothario que fizesse com que outro *
dia se escondesse Anselmo , onde d iz ia ; >
porque ella tiraria do seu eseondimento
commodidade para se gozarem os àous dal-
li
a8o D. Q uixote de la M ancha.
li por diante sem sobresalto nenhum. E
sem declarar-lhe de todo qual era seu pen
samento , advertio-lhe que tivesse o cuida
do , quando Anselmo estivesse escondido ,
de vèr quandoLeonela o chamasse,e que res
pondesse a tudo quanto ella lhe dissesse , da
mesma maneira que respondera senão sou
besse que Anselmo o ouvia. Apertou Lo
thario com ella para que lhe declarasse de
todo o seu intento , para que se houvesse
com maior segurança em tudo o que enten
desse ser necessário. Nao tendes , respon
deo Cancilla , mais que fazer outra cousa ,
senão responder-me ao que eu vos pergun
tar ; e nao quiz dar-lhe de antemaó conta
do que intentava fazer, temerosa de que
elle nao quizesse estar pelo que a ella tad
acertado lhe parecia \ mas seguisse, ou bus
casse outros que nao poderiao ser tao bons.
Com isto retirou-se Lothario , e Anselmo
com a desculpa de ir á aldêa do seu amigo,
partio no outro dia , e voltou a esconder-
se : o que pôde fazer commodamente, pois
Cancilla , e Leonela deraõ-lhe industriosa
mente roda a commodidade para isso. Es
condido pois Anselmo , com aquelle sobre-
, que he de imaginar-se cue teria quem
es-
P arte I. C ap.XXXIV. 281
esperava ver com seus olhos fazer anatomia
nas entranhas da sua honra, via-se a ponto
de perder o extremado bem , que cuidava
ter na sua querida Cancilla. Seguras j á , e
certas Cancilla , e Leonela , de que Ansel
mo estava escondido, entráraó na anteca-
m ara, e apenas aquella entrou , deo hum
grande suspiro , e disse : Ah ! Leonela ,
minha amiga ! Nao seria melhor que antes
que chegasse a pôr em obra o que naó que
ro que saibas para que nao o estorves, to
masses o punhal de Anselmo , que te pedi,
e mo embebesses neste infame peito ? Mas
tal nao faças; que razão nao será que eu
pague a pena da culpa alheia. Primeiro que
ro saber que he 0 que vírao em mimos atre
vidos , e deshonestos olhos de Lothario, que
fosse parte para tomar a ousadia de decla-
rar-me taõ máo desejo , como 0 que me
declarou em despreso de seu Am igo, e des-
honra minha. Chega, Leonela, a essajà-
nella , e chama-o que sem dúvida nenhuma
ha de estar nessa rua , esperando pôr em
execuçaó 0 seu máo desígnio ; mas primei
ro será posto o meu , bem que cruel, hon
rado intento. Oh ! meu Deos ! tornou a
astuciosa , e advertida Leonela. E que he
202 D. Q uixote de la M ancha,
o que V. Mercê quer fazer, Senhora } com
este punhal, matar-se por ventura a si mes
ma , ou tirar a vicia ao Senhor Lothario ?
Veja V. Mercê que qualquer destas duas
cousas redundaráó em descrédito , e des-
honra sua. Melhor he que dissimulle o seu
aggravo, e naÕ dê lugar a que este máo
homem entre agora nesta casa , e nos ache
sós. Olhe V. Mercê , minha Senhora , que
somos duas fracas mulheres , e elle homem,
e determinado : e como vem com taó má
intenção, cégo , e apaixonado , pode ser
que primeiro lhe fará o que a V. Mercê es
tá peior do que tirar-lhe avida , antes que
V. Mercê ponha por obra o que tem no sen
tido. Mal haja o Senhor Anselmo que tanta
entrada quiz dar a este desavergonhado em
sua casa. E quando aconteça matallo V.
Mercê , como eu cuido que quer, e he sua
tenção , que havemos de fazer delle, mor
to que seja. O q u e , Leonela ? respondeo
Canciila j deixallo ahi estar para que An
selmo o enterre, pois justo será que tenha
por descanço o trabalho, que tomar em
sepultar debaixo da terra a sua propria in
famia. Chama-o tu , e acaba com isso,
~tierodo empo que tardo em red tomar
a
P a r t e I. C ap. XXXIV. 283
a devida vingança de meu aggravo, pare
ce que estou offendendo a lealdade que
devo a meu marido. Tudo isto ouvia An
selmo , e a cada palavra que Cancilla di
zia , mudava de pensamentos, mas q uando
entendeo que estava resoluta a matar Lo
thario , quiz sahir, e descobrir-se , para
que tal cousa naõ fizesse ; mas deteve-o o
desejo de vêr , em que parava tanta ga
lhardia , e resolução raô honesta , com pro
posito de sahir a tempo , que a estorvasse.
Cahio entre tanto Cancilla n’hum forte des
maio , e lançando-se sobre huma cama , que
alli estava, entrou Leonela em amargoso
pranto , dizendo : Ah desgraçada de mim.
Se minha desventura fosse tanta , que me
morresse aqui nos braços a flor da hones
tidade do mundo, a corôa das mulheres
honradas , o exemplo da castidade ; e ou
tras cousas semelhantes , que ninguem a
ouvira que naó a ficasse tendo pela mais las
timada , e leal criada do mundo, e a sua
Senhora qual outra perseguida Penelope.
Naó tardou muito Cancilla em tornar a si
do desmaio, e logo. Porque naó vais, dis
se , Leonela , chamar o mais desleal ami
g o , que o Sol vio , e a noite cobre r A v ia ,
cor
284 Q uixote de la M ancha,
corre , dá-te pressa , e caminha , para que
naõ resfrie com a demora a cólera, em que
me abraso, e venha a ramatar-se em amea
ços , e maldições a justa vingança , que
espero. Eu vou já , Senhora , disse Leone-
la j mas de V. Merce ca primeiro esse pu
nhal , para que naó faça , em quanto eu
vou , com que deixe que chorar toda a vi
da a quantos lhe querem bem. Vai segu
ra , Leonela , amiga, de que nao farei na
da , tornou-lhe Cancilla ; pois ainda que
seja ousada, e simples, a teu v e r, em aco-
dir pela minha honra , naõ 0 serei tanto ,
como aquellaLucrecia , de quem dizem que
se matara sem ter commettido erro algum,
e sem ter morto primeiro a quem teve a cul
pa da sua desgraça. Morrerei , mas h a d e
ser depois de vingada , e satisfeita do que
me deo occasiaõ para vir chorar aqui os
seus atrevimentos , para os quaes de ne
nhuma maneira concorri. Foi necessario z
Leonela que sua ama a rogasse muito para
resolver-se a ir chamar Lothario. Com ef-
feito f o i , e no em tanto ficou Cancilla di
zendo , como quem fallava a si propria :
Valha-1' Deos! Naõ fora mór acordo ter
despe. ■ a L othario, co- 0 *ras mui
tas
P a u t e I. C a p . XXXIV. 285-
tas vezes fiz , e naó dar-lhe occasiaÔ , co
mo tenho da do, para que me tenha por
deshonesta pelo menos este tem po, que tar
dar em desenganado ? Melhor fora sem dú
vida ; mas nao ficara eu vingada , nem sa
tisfeita a honra de meu marido , se a mãos
lavadas , e no mesmo estado , em que en
tro u , tornara a sahir com seus máos pen
samentos. Pague o traidor com a vida o
que intentou com taó lascivo desejo, e sai
ba o muudo , se acaso chegar a sabello,
que Cancilla naõ só guardou lealdade a seu
m arido, senaó que até o vingou do que se
atreveo a offendello. Creio todavia que me
lhor fora dar conta disto a Anselmo; mas
já principiei a dar-lha na carta, que lhe es
crevi á À ldêa, e cuido que o naó acodir
elle com o remedio ao damno, de que nella
lhe dei parte , sem dúvida foi por ser taó
cheio de bondade , e confiança que naõ
quiz , nem pôde crêr que no peito de hum
amigo taó constante podesse caber genero
de pensamento, que fosse contrario á sua
honra , nem eu taó pouco 0 crí depois por
muitos d ia s, nem 0 crêra nunca em nenhurq
tem po, se a sua insolência naó chegara &
tanto , que com suas dadivas m àutestas,
H Q uixote de la M ancha.
la-s- messas , e contínuas lagrimas na6
m‘o manifestara. Mas porque entro agora
em taes discursos ? Tem por ventura neces
sidade alguma de conselho huma resolução
nobre ? Certo que naÓ. Fóra pois com o
traidor: tomemos aqui vingança : entico
falso, venha, chegue , morra , acabe , e
succeda o que succeder : ja que pura , e sem
nodoa entrei para o poder do que me deo o
Ceo por meu , pura , e sem nodoa me apar
tarei delle, e quando muito sahirei banha
da em meu casto sangue , e no impuro do
mais falso amigo , que a amizade conheceo
no mundo. E dizendo isto passeava pela sa
la com o penhal nú , rianddpa&os tao des
concertados , e fazendo tá d r festos ,
parecia estar fóra de s i , c naÕ ser^mulher
delicada , senaò desesperado rufião. Esta
va Anselmo vendo , e observando tudo
por de traz de huns panos de raz , onde se
escondera , e de tudo se admiiava , epa
recia-lhe que quanto vira , e ouvira bastan
te satisfaçaõ era para maiores suspeitas ;
e seu gosto fora que naó se chegasse ao ex
cesso Lothario , remendo alguma des
graça * • en tina. E estando j.i paru appare-
lui a abraçai', e d? mar a sua
cer
P a r t e I. C a p . XXXIV. 287
esposa , deteve-se porque vio que Léonela
tornava com Lothario pela maó. Tanto que
Cancilla o vio , fazendo com o punhal hum
signal no chaô : Lothario , disse , adverte
que se ousares de passar deste signal , que
aqui vês , para diante, ou ainda chegar a
elle , no mesmo instante que eu vir que tal
intentas , embeberei no peito este punhal,
que tenho na maó ; e antes de responder-me
huma só palavra , quero que me dês aten-
çaõ , e depois responderás como mais te
aprouver, Quero, Lothario , que me digas
primeiro se conheces Anselmo meu mari
do , e em que opiniaÕ 0 tens , e se me co
nheces a mim. Responde-me a isto , e naó
te perturbes, nem consideres muito no que
has de responder-me , pois naó saó difficul-
dades 0 que te pergunto. Naó era Lothario
tao ignorante, que quando Cancilla lhe dis
se que desse traça para que Anselmo se es
condesse , naó advertisse logo no que ella
queria fazer ; e assim prccedeo raõ bem
com sua intençaÕ , e tanto a tempo, que
ambos fizeraó de maneira que passou por
verdade certa aquelle fingimento ; e assim
lhe disse. Naó cuidei , formosa Canpilla
qug me chamavas para perguntar-me cbusas
•2.93 Q uixote de la M ancha.
I31ITB . ' da intenção , com que venho
ãqui. Se o fazes para retardar-me a merce,
cue me tinhas promettido , poderás de mais
longe preparar-me para isso , pois tanto
mais cança o bem desejado , quanto mais
proxima está a esperança de possuillo. Mas
para que naÓ digas que deixo de respon
der ás tuas perguntas , direi que conheço
muito bem a teu esposo Anselmo , e ambos
nos conhecemos desde a idade mais tenra;
e naó quero deixar de dizer o que tu tam
bém sabes da nossa amizade , para nao ra-
zer-me testemunha do aggravo que o amor
me move a fazer; poderosa desculpa de
maiores - -os. Conheço-te , e na mesma
opinião te tc h o , em que dclle es tida , que
a naó ser assim , por menos prendas que
as tuas nao me resolveria eu a obrar con
tra o que devo ao ser quem sou , e muito
menos contra as leis sagradas da verdadei
ra amizade , hoje por mim quebrantadas por
causa de hum inimigo taõ forte , como o
amor. Se assim o confessas, respondeo Can-
cilla , como inimigo mortal de quantojus-
tamente merece ser amado , com que sem
blante cu -as de apparecer ante quem sa
bes ceei... o espelho , em q 'C e ve aauel-
16 «
V.
P arte T. C a p . XXXIV. 289
le , em quern tu devêras vêr-te para que co
nhecesses com quanta sem razaõ , e incon
sideradamente 0 aggravas ? Mas agora ,
desgraçada de mim ! agora conheço que
algum descuido meu foi parte para que taô
pouco atendesses ao que a ti proprio de
ves y e nao ousarei de dizer que alguma des-
honestidade , pois naó terá procedido de
determinação deliberada , senão da falta de
consideração , em que inadvertidamente ca-
hem aquellas mulheres , que pensaõ que
nao tem de quem recatar-se. E senaõ di
ze-me , quando he que eu te respondi,
traid o r, com alguma palavra , ou signal a
teus rogos , que podesse despertar em ti al
guma sombra de esperança de cumprir teus
infames desejos ? Quando foi que tuas amo
rosas palavras nao foraÕ desprezadas , e
ainda reprehend id as por mim com tig o r,
e aspereza ? Quando foraó de mim acre
ditadas , e admittidas as tuas muitas pro
messas , e maiores dadivas? Mas por pa
recer-me que ninguem pòde perseverar em
amoroso intento largo tem po, senaõ heanir
mado da esperança, quero attribuir-me a
mim a culpa da tua impertinência , pois
sem dúvida que algum descuidv meu sus-
T om. Jt T ten-
aço D» Q uixôte de la M ancha.
tento mat o tempo o teu cuidado , e assint
quero castigar-me , e pagar eu mesmo a
pena , que tua culpa merece^ E para que
visses que sendo comigo tao deshumana ,
naõ era possivel deixar de sello comtigo ,
quiz chamar-te aqui para que fosses teste-
muniia do sacrificio que intento fazer a ol-
fendida honra do honrado m arido, que te
nho , e que tu aggravastes o mais que toi
possivel, e eu naó menos com o^pouco ré-
cato com que me houve em naô fugir da
occasiaõ , se alguma te dei para favoiecer ,
é canonisar tuas más intenções. A suspei
ta , que tenho, torno a dizer , de que al
gum descuido meu gerou em ti tao desva
riados pensamentos , he a que mais me ar-
flige , e a que eu mais desejo castigar com.
minhas proprias m ãos; porque castigando-
me outro verdugo , quiça fora mats publi
ca a minha culpa. Porém antes que o fa
ça , quero matar morrendo , e levar comi
go quem me acabe de satisfazer o desejo
da vingança , que espero, vendo onde quer
qüe for a pena , que dá ajustiça desinte
ressada , e que nunca se dobra ao que etft
ta p a s^ ^ s e s p e ra ç a ô me tem por'o. E di-
7e.ndo’es'$‘- palavras, lan$â-*e com men-
P a r t e I. C a p . XXXIV. 29 r
vel im peto, e ligeireza sobre Lothario com
o punnal n il, e com taes mostras de querer
cravar-lho pelo peito , que elle mesmo
esteve em dúvida se eraõ ou naõ falsas,
ou verdadeiras aquellas demonstrações, e
foi-lhe necessario valer-se de sua força , e
industria para tolher que Cancilla naõ o
traspassasse. A qual taõ vivamente fingia
aquelle estranho embuste, e falsidade que
para dar-lhe a côr da verdade, quiz tingil-
lo em seu proprio sangue ; porque vendo
que naõ podia ferir a Lothario , ou fingin
do que naõ podia : Já que a sórte , disse ,
naõ quer satisfazer de todo o meu justis
simo desejo , pelo menos naõ poderá tan
to que em parte me prive de que naõ o sa
tisfaça. E forcejando por soltar a maõ do
punhal, que Lothario lhe tinha preza, sol
tou-a com eífeito , e apontando o punhal
em parte , onde naõ podesse fazer grande
ferida , embebeo-o no lado esquerdo a cima
do hombro , e logo se deixou cah ir, como
desmaiada. Estavaõ Leonela , e Lothario
suspensos, e atonitos com tal acontecimen
to , e todavia duvidavaõ da realidade do
feito , vendo a Cancilla cahid? ' m t errat,
e banhada em sangue. Acodio LoühariG çoríi
T ii mui-
9
292 D- Q uixote de la M ancha.
muita pressa , esmorecido , e sem alento a
tirar o punhal, e tanto que vio a pequena
ferida , sahio do temor , que ate então ti-
v éra, e de novo se admirou do astúcia ,
prudência , e muita discrição da formosa
Cancilla. E por fazer o que lhe cumpria ,
entrou a lastimar-se tristemente sobre 0 cor
po de Cancilla , como se estivéra detunta ,
amaldiçoando-se naó só a e lle , senão ao
que tinha sido causa de vêr-se naquelles ter
mos i e como sabia que seu amigo Anselmo
o escutava , dizia cousas que quem o ouvis
se , se enternecera , e lastimara muito mais
dellc , do que de Cancilla , ainda que por
morta a julgára. Tomou-a Leonela nos bra
ços , e deitou-a sobre o leito , pedindo a Lo
thario que fosse buscar secretamente quem
curasse a s.ua ama. Pedia-lhe também con
selho , e parecer sobre o que diriao a An
selmo a respeito da ferida , quando chegas
se antes de estar sã. Respondeo elle que dis-
sesem o que quizessem , porque elle nao
estava para dar conselho , que proveitoso
fosse. Só lhe disse que fizesse por tomar-
]b? o sangue , porque elle dalli se hia 011-
, e o visse j e com mostras de
: : ‘ e sentimento sahio e casa , e
tan
ti
P a r t e I. C ap. XXXIV. Í93
tanto que se vio só , e em parte onde nin
guem o via , naõ cessava de benzer-se , ma-
ravilhando-se da industria de Cancilla , e
dos gestos tao proprios de Leonela. Con
siderava quao certo havia de ficar Anselmo,
de que tinha por mulher outra Porcia, e
desejava vèr-se com elle para festejarem
ambos a mentira, e a verdade mais dissi
mulada , que nao se pode nunca em nenhum
tempo imaginar. Tomou Leonela , como
fica dito o sangue a sua Senhora, que naõ
era mais daquelle, que bastou para acre
ditar 0 embuste ; e lavando com hum pou
co de vinho a ferida , atou-a o melhor que
soube , dizendo taes cousas em quanto a
curava , que ainda quando nao houvessem
precedido outras , bastariao para que fi
casse Anselmo acreditando que tinha em
Cancilla hum simulacro da honestidade.
AcompanháraÕ as palavras de Leonela ou
tras de Cancilla, que se intitulava de co
barde , e de pouco valor, pois lhe faltara
quando mais necessario lhe fora para tirar-
se a si própria a vida , que tao aborreci
da passava. Pedia conselho a sua criada, se
diria ou naõ tudo quanto rinha acontecido
a seu querido esposo , e ella lhefaisle ifue
294 D* Q u ix o te de l a M an ch a.
naõ lhe desse conta de cousa nenhuma , por
nao obrigallo a tomar vingança de Lotha
rio , o que nao poderia succeder sem mui
to risco seu , e que a boa mulher estava
obrigada a naÔ dar occasiao a seu marido
de ter desavenças com ninguem , mas a evi-
tallas quanto lhe fosse ppssivel. Respondeo
Cancilla que muito bem lhe parecia seu pa
recer, o qual seguiria-, mas que convinha
todavia considerar o que se havia dizer a
Anselmo, quanto á causa da ferida , que
elle nao poderia deixar de vêr. A isto res
pondeo Leonela que nem zombando sabia
mentir. Pois então , replicou Cancilla, que
tenho eu , filha , de saber , senão me atre
ver a forjar , nem sustentar huma mentira^
se nisso me fora a vida ? E se he que nao
havemos de saber dar sahida a isto , melhoi
será dizer-lhe a verdade simplesmente, pa
ra que elle nao nos apanhe na mentira. Nao
lhe dê isso cuidado , Senhora ; que á ma-
nhã, respondeo Leonela , considerarei no
que havemos de d izer; e talvez q u e , sendo
a ferida onde h e , possa V. Mercê encobril-
l a , para que elle naõ a veja , e o Ceo se
uUfna I i fr. orecer os nossos pensamentos
q,> tmo honrados. Sc egue , Se
nho-
P a r t e T. C a p . X X X I V . 29^
nhora ; faça por quietar-se em tamanho des-
assocego , para que o Senhor nafó venha
achalla sobresaltada ; e deixe 0 mais ao meu
cuidado, e por conta de D eos, que sempre
acode aos bons desejos. Estava Anselmo
attentissimo a ouvir , e vêr representar a
tragédia da perdição da sua honra , que as
personagens delia representáraõ com taõ es
tranhos , e efficazes affectos , que pareceo
terem transformado na mesma verdade o
que fingiaõ. Desejava muito que anoiteces
se para ter lugar de sahir da sua casa , e ir
ter com seu bom amigo Lothario , e cop-
gratular-se com eile da preciosa margarita
que achara no desengano da bondade de sua
esposa. TiveraÕ cuidado a ama , e a criada
de dar-lhe occasiaõ commoda de sahir, e
elle sem levantar mao delia , sahio , e logo
foi-se para Lothario , e avistando-se corn
d ie , naó se pode dizer quantos abraços lhe
d e o , e o que lhe disse do seu contentamen
to , nem os louvores , com que elogiou a
Cancilla. Tudo ouvio Lothario sem poder
dar mostra alguma de alegria, pois se lhe
representava na imaginaçaó quanto estava
enganado 0 seu amigo , e quaõ injustamen
te elle 0 aggravava. E posto que Aurdm o
296 D. Q u ix o te d e l a Mancha.
visse qute Lothario nao se alegrava , julga
va ser causa disso o ter deixado a sua rr.u-
lher ferida , e ser elle o culpado. Pelo que
entre outras razoes: Naõ te dê pena , dis
se , o que aconteceo a Cancilla , porque
sem dúvida a ferida era ligeira , visto que
tratáraó ambas de encobrir-ma : isto sup-
posto nao ha que tem er, e 0 que deves fa
zer d’ora em diante he alegrar-te comigo,
pois por tua industria , e meio me vejo ex
altado á mais sublime felicidade, a que
com tanto acordo aspirei: Os nossos diver
timentos nao seráÓ outros, senaó compor
versos em louvor de Cancilla , que a façaó
eterna na memoria dos vindouros. Louvou
Lothario a boa determinação do seu am igo,
e disse que da sua parte faria o que podes-
se. Ficou Ariselmo desta maneira enganado
com 0 maior gosto, que no mundo pode
haver, e era o proprio que guiava pela maõ,
crendo que levava comsigo o instrumento
da sua gloria, o que era a causa de toda a
perdiçaó da sua fama. Recebia-o Cancilla
com rosto crime , se bem que com alma
risonha. Este engano ^lurou alguns dias ,
af'5 v . ados poucos mezes deo a for-
: : iu? sua roda , e sahio a público
ta-
P a r t e I. C a p . XXXV. 297
*
tamanha maldade , até então encoberta com
tanto artificio , e custou a Anselmo avida
sua impertinente curiosidade.
C A P I T U L O XXXV.
U li tha-
3‘o8 D. Q uixote de l a M ancha.
thario , e deixou-a no Mosteiro ; e elle au-
sentou-se logo também da Cidade , sem
dar parte a ninguem da sua ausência. Quan
do amanheceo , sem que Anselmo désse pe
la falta de sua esposa, com o desejo que
tinha de saber o que Leonela queria con
tar-lhe , levantou-se , e foi ao aposento ,
onde a deixara fechada. Abrio a porta , e
entrando achou menos a criada , e vio ata
dos á janella huns lançoes , indicio , e si
gnal de ter descido por ellas para a rua. T o r
nou logo muito triste para dizello a Can-
cilla , e nao a achando na cama , nem em
toda a casa, ficou pasmado. Perguntou por
ella aos criados de casa; mas ninguém lhe
soube dar razao do que perguntava. Vio
casualmente , quando buscava a Cancilla,
abertos os batas , e que faltavaõ a maio*
parte das jo ia s, que ella tinha, e desta ma
neira acabou de crêr a sua^esgraça , e que
m ó era Leonela a causa da Sua desventura,
mesmo estado , efn que se achava , sem
: oar de vestir-se , triste , e pensativo foi
dai parte da sua desdita ao seu amigo L -
thario. Mas quando naó o achou , e sei ;;
cri • !he disseraõ que aquella noire fa:;
•i - casa, e levara, comsigo quanto
nhc
P a r t e I. C a p . XXXV. 309
nheiro tinha , cuidou de perder 0 juizo. E
para acabar de concluir tudo , tornando pa
ra casa , naÕ acha nella nenhum de quan
tos criados, e criadas tinha ; toda ella es
tava deserta , e solitaria. NaÕ sabia que
cuidasse , pem que dissesse , e muito me
nos que havia de fazer , e apouco e pou
co hia perdendo o juizo. Entrava em s i , e
via-se a hum tempo sem m ulher, sem a-
itiigo , e sem criados , desamparado , a
seu ver do Céo , que o cobria , e sobre
tudo isto sem honra , pois na falta de
Cancilla vio a sua perdição. Resolveo em
fim , passadas horas, ir á aldêa de seu a-
migo , onde estivera quando deo lugar a
que se maquinasse tamanha desventura. Fe
chou as portas de sua casa , montou a caval-
lo , e quasi sem alento metteo-se ao cami
nho : mas em meio deile , apertado de seus
pensamentos, vio-se precisado a apear-se,
e atar pela redea o cavallo a huma arvore,
ao pé de cujo tronco se deixou cahir, dan
do ternos , e dolorosos suspiros, e alli fi
cou até ser quasi noite. A esta hora vio vir
da Cidade hum homem a cavallo , a quem,
depois de saudallo , perguntou que novas
havia em Florença. As mais estranhas ,
res-
- I0 D. Q uixote de l a Mancha.
respondeo elle , que muitos dias ha quenaô
se tem ouvido > porque se diz publicamen-
te que Lothario , o grande amigo de An
selmo o Rico , o qual morava a S. Joaó ,
roubou esta noite a Cancilla , mulher do
mesmo Anselmo , que tambemsnaõ appa-
rece. Tudo isto contou huma criada , que
o Alcaide apanhou de noite a descer por
hum lançol pela janella da C2sa de sua ama»
Com effeito nao sei pontualmente o que se
passou ) o que sei he que a toda a Cidade
deixou este successo admirada; porque nao
se podia esperar semelhante cousa da gran
de , e familiar amizade de ambos , a qual
dizem que era tanta , que por anthonoma-
sia oschamavaó os dous amigos. E nao se
sabe, disse Anselmo , o caminho que levaó
Lothario , e Cancilla ? Nem por pensamen
tos , disse o homem , posto que o Gover
nador tem feito toda a diligencia por achal-
k Deos vá em vossa companhia , disse
. - elmo ; e respondeo o homem , elle r ■
i com V. Mercê , e continuou seu cam
nho. Com estas noticias taÕ tristes , este
ve Anselmo a ponto , naõ só de perder o
jui?o mas também de acabar a vida. L '
vantoú-se como pôde , e chegou á casa do
seu
♦
P ab te I. C a p . XXXV. 311
seu amigo , que ainda naó sabia da sua des
graça. Mas vendo-o vir raó enfiado , e con
sumido , logo entendeo que algum grande
mal o affligia. Pedio Anselmo , que lhe
dessem cama para encostar-se , e papel,
penna , e tinta para escrever e assim lho
fizeraô , dfeixando-o deitado, e so , por
que elle assim o quiz , e até que lhe fechas
sem a porta. Vendo-se Anselmo só , entrou
a apertar tanto com elle a imaginaçaõ da
sua desdita., que claramente conheceo que
hia chegando ao termo de sua vida. Isto
o moveo a deixar noticia da sua estianha
morte ; e começando a escrever, antes de
acabar quanto queria dizer , faltou-lhe 0
alento , e deo avida nas máos da dor , que
sua impertinente curiosidade lhe causara.
Vendo o Senhor da casa que era já tarde,
e ainda Anselmo naó chamava , deliberou-
se a entrar no aposento para saber se pas
sava a mais a sua indisposição mas achou-
o cahido com a face sobre o bofete, e a me
tade do corpo sobre a cama , com hum p ^
pel escrito , e aberto , e a elle com a penna
na maõ. Chegou-se o hospede a Anselmo ,
e depois de teilo chamado, e tomado pe
la m ao, vendo que naó lhe respondia, 2
achan-
yii D. Q uixote de la Mancha.
achando-o frio , conheceo que estava mor
to. Admirou-se , e affligio-se sobre manei
ra : chamou a gente da casa , çara que vis
sem a desgraça , que acontecera a Ansel
mo \ e finalmente lêo o papel , que conhe
ceo ser escrito de seu proprio punho, e dl-
z ia a ssim t
Hum nescio , e impertinente desejo me
tirou a vida. Se a noticia de minha morte
chegar aos ouvidos de Cancilla, saiba el-
la que eu lhe perdôo \ pois naõ estava obri
gada a fa z e r m ilagres, nem eu tinha ra -
zaõ para querer que ella os fiz e s s e , eja^
que fu i o author da minha deshonra , naõ
he bem que.........
Até aqui chegou Anselmo; e claro esta
que naquelle instante acabou a vid a, sem
poder acabar o que tinha que dizer. No
ourro dia deo o seu amigo parte aos paren
tes de Anselmo de sua morte. Os quaes já
sabiao da sua desgraça , e em que Mostei
ro ■ achava Cancilla, quasi prestes a acqm-
. aar seu esposo naquella necessaria jor
nada , na6 pela noticia delle ser morto.,
mas pela que lhe déraÕ de ter-se ausentado
Lothario. Dizem que naõ quiz sahir do
j.Qvs.'e.u-; , e ta6 pouco professar nelle,
pos-
P arte I. Cap. XXXV. 313
posto que se visse viuva , até que passa
dos muitos dias lhe chegáraó novas que Lo
thario era morto n’huma batalha que Mr.
de Lautrec deo naquelle tempo ao graó Ca-
pitaô M d- Gonçalo Fernandes de Cordova
no Reino . . Nápoles , onde fora parar arre
pendido inda que tarde. O que sabido que
tosse de ^ancilla, fez profissaó, e em bre
ves dias acabou a vida ás rigorosas mãos da
tristeza, e melancolia. Este o fim , que ti-
veraó to d o s, procedidos de taó desatinado
principio.
Bem me parece esta Novella,disse 0 Cura,
mas naó me posso persuadir, que seja ver
dade o que nella se conta : e se he fingido ,
fingio mal o Author, porque ninguém poderá
imaginar que haja marido taó nescio , que
se queira aventurar a taó custosa experien
d a , como Anselmo. Se este caso se suppo-
zéra entre hum galan, e huma dam a, podé-
va ter lugar ; mas entre marido, e mulher,
alguma cousa tem de impossivel, equ°~ >
á maneira de contallo , naô me descontei
a.
Fim do Tomo II.
I NDI CE
DOS C A P Í T U L O S
DO T O M O II.
C o m b r e v i d a d e 0 m e fm o p u b l i c a r á os f e g u i n t e s .
Anno CHriftaó de Croifet, em 4. 18 Vol.
' P u b l i c a r - f e - h a e jl a O b r a p e r i o d ic a m e n te .
Enfaios de Moral de Nicole , em 8. 9 Vol.
C o m to d a a b r e v id a d e f e p u b l ic a r á 0 T o m o I. e
o s f e g u i n t e s p e r i o d ic a m e n te .