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NACIONAIS-ACHERON
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LIVRO UM
O CHEFE DE NADA
D. J. CALDAS
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O Chefe de Nada
Edição digital.
Copyright © 2017 por D. J. Caldas. Todos os direitos reservados.
Essa é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e eventos são
totalmente fictícios. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou
mortas, ou eventos de verdade, é meramente coincidência.
Exceto no caso de citações breves para o propósito de análise crítica ou
avaliações, esse livro não pode ser reproduzido em nenhum formato
(impresso, eletrônico, áudio ou qualquer outro), por completo ou em parte,
sem a expressa permissão da autora.
Isso inclui fazer upload do livro completo em sites de Internet que distribuem
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penalidades cabíveis para quebra de direitos autorais e outras leis dirigidas a
proteger a integridade dos trabalhos publicados.
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Sumário
1 - Elisa
2 - Ícaro
3 - Elisa
4 - Ícaro
5 - Elisa
6 - Ícaro
7 - Elisa
8 - Ícaro
9 - Elisa
10 - Ícaro
11 - Elisa
12 - Ícaro
13 - Elisa
14 - Ícaro
15 - Elisa
16 - Ícaro
17 - Elisa
18 - Ícaro
19 - Elisa
20 - Ícaro
21 - Elisa
22 - Ícaro
23 - Elisa
Considerações
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1 - Elisa
dedos negros sobre a pele eriçada. — Desafia ele, vai, vê quem aguenta mais
tempo.
— Aguenta mais tempo o quê, menina?
— Encarando, ué, não é isso que ele... Eita, a tapioca! — Ela se lembrou do
fogo e correu para dentro do café.
Fiquei a sós com meu admirador, sua pele clara refletindo o calor do sol,
seu cabelo amarelado raspado nas laterais e penteado numa onda para atrás,
fazendo-lhe um topetinho charmoso. Não conseguia tirar meus olhos dele, o
meu primeiro contato com um homem do outro lado. Tão bem arrumado,
blazer azul sobre uma camiseta branca impecável, calça comprida azul
cobrindo até o sapato de couro.
O único entre todos aqueles do barco com cara de quem conseguia colocar
as coisas em ordem, fazer algum trabalho. O resto, um bando de flores
delicadas, eram pessoas feitas para parecerem bonitas, e nada mais. Seus
olhos pareciam ter visto em mim aquilo que eu própria procurava nele, e por
isso o encarei até o fim. Olho no olho, travamos um confronto silencioso, à
espera da primeira reação.
Hipnotizada pela presença daquele homem no barco, estive a um triz de dar
um primeiro passo em sua direção, quebrar o gelo e convidá-lo ao meu
mundo. Mas Laura gritou de dentro do café, "Elisa, o lanche tá pronto!" e eu
me virei a ela, tomada de surpresa. Quando olhei de novo ao barco, o rapaz
me oferecia um sorriso largo, mostrando-me os dentes perfeitos. Ele venceu
nosso duelo, o último a largar o olhar. Eu sorri timidamente e me virei à porta
do café, juntando-me a Laura à mesa.
história.
— É, olhando por esse lado, pode até ser. Se bem que eu toparia o desafio.
Vão ter que usar muita imaginação para me tirarem do sério.
— Você é um caso especial, né, realmente tem que ter inspiração pra te
balançar, porque é mais fácil a outra pessoa endoidar ao seu lado.
— E isso é bom, diga se não é, um pouco mais de espontaneidade, leveza,
um pouquinho de emoção. — Laura fez uma valsa com as mãos,
gesticulando-as pelo ar.
— É bom sim, é claro — eu disse, sentindo-me corar, antevendo as
próximas palavras de minha amiga.
— Você precisa disso mais do que eu, aliás. O Jones tá te carregando pro
mundo dele, credo, você tem que ficar longe dele um pouquinho.
— E isso é ruim? Nós somos amigos e gostamos fazemos coisas juntos.
— O tempo todo! Ele só quer saber de trabalhar, e você tá indo na mesma
onda, e olha a sua ansiedade. Não, tem que parar com isso, nós não estamos
nesse mundo pra morrer de trabalhar não. Você tem que ter um espaço
próprio pra desenvolver sua individualidade. Não dá pra ser a sombra do
Jones. Tem que se juntar com um pessoal mais descolado, menos
preocupado. Olha pra cara do seu rapaz lá no barco, sente que leveza. — Ela
segurou meu rosto e me virou pelas bochechas para o barco.
Eu sacudi a cabeça para me desvencilhar dela. — Nós nem sabemos o que
eles fazem da vida, Laura! Vai que eles são um bando de desocupados que
não sabem nem lavar a própria roupa? Com um barco desses, é muito
provável.
— Pode até ser, mas esse rapaz olhando pra você tem cara de ser bem
independente também, não acha? Bem, eu acho — ela disse, catando as
últimas migalhas de sua tapioca.
— Não vou dizer nada pra não quebrar a cara depois. Vamos lá, temos
trabalho a fazer.
— Você tem, lá com o seu Jones, eu não. Vou ficar por aqui mesmo, a vista
tá boa, tá bonita, sabe. — Ela me deu um sorriso malicioso, esticando os
braços negros sobre os cachos volumosos de sua cabeça, virando o rosto para
o meu rapaz, lá no barco.
— Tá bom, entendi. — Eu me ergui da cadeira, sacudindo a camisa para me
livrar dos farelos, olhando de soslaio para Laura, com um leve sorriso. —
Deixa eu ir lá acordar a Glória, ver se consigo botar juízo naquela mulher. O
Jones nos espera lá no Posto do Monte.
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— É, e falaram isso pra não dizer outra coisa, pelo menos foi o que me
pareceu. — Jones sacudiu a cabeça. — O que eles querem por aqui? Se eles
esperam conhecer nosso modo de vida, eles tinham de ir pras cidades, não
aqui, na fronteira.
— Devem ter o motivo deles. Quem sabe querem levar algum de nós com
eles? — Glória se pôs sobre o cabo da enxada, sonhando alto com o queixo
apoiado em suas mãos.
— Se vierem com esse papo, desconfie. — Jones deu uma olhada ríspida a
Glória, abaixando-se para ajeitar uma rama na terra.
Almoçamos sob a sombra de uma varanda e esperamos no posto de apoio
até que o sol abaixasse mais um pouco e pudéssemos voltar para finalizar a
cota do dia. Glória, excitada como estava pela presença dos visitantes na vila,
não nos deixou descansar direito, contando-nos tantas histórias sobre o outro
lado que não nos sobrava outro assunto.
Por fim, terminamos nossa cota bem antes do previsto, quando Glória se
deu conta de que se terminasse cedo nós poderíamos adiantar nosso outro
plano, e tomamos um banho para tirar a sujeira. Vesti minha blusa vermelha
de sempre, uma bermuda e meu chinelo, mas tive de esperar até que Gória se
aprontasse com sua roupa de festa.
— Você não vai assim, por acaso, né? — ela me disse, olhando torto para o
meu visual casual.
— E não tá bom? É o que eu uso todo santo dia, ué, qual é o problema?
— Tem que botar sua roupa de festa, Elisa! Você já deve ter visto como
eles estão vestidos no barco, não deve? O pessoal do outro lado é muito mais
elegante do que nós, então temos que causar boa impressão.
— Pra quê? O que vamos ganhar com isso?
Ela se embolou, começou a dizer algo e engasgou. Balançou a cabeça e se
voltou ao espelho para passar seu único batom vermelho, ainda quase novo
depois de anos, tão raras as oportunidades de usá-lo. Ela se ajustou em seu
vestido florido colado ao corpo, numa estampa de violetas escuras para
combinar com o preto intenso de seus longos cabelos.
Chegamos ao barco sem burocracia, encontrando ninguém do porto para
nos dar alguma recomendação. O pôr-do-sol se aproximava, intenso no céu,
refletindo nuances de nuvens coloridas nas águas barrentas do nosso rio. O
barco se impôs diante de nós, um iate enorme, de três andares, nunca antes
visto nas águas da nossa região.
— Ei, querem subir? Podem vir, não tenham medo — uma voz disse ao
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não gosta?
Eu corei, sentindo-me sem chão. — Só estou tentando te conhecer.
— Tudo bem, é que você parece meio tensa, preocupada, toda durinha.
Vamos lá, se solte um pouco. — Ele deslizou a mão sobre meu braço,
alcançando minhas costas. — Eu queria saber mais sobre você também, então
me dá essa chance, tudo bem? Mas antes, aqui, já experimentou desses
doces? Pode provar, nós os trouxemos pra vocês.
A moça com a bandeja parou ao meu lado, expondo-me uma série de
bolinhas achocolatadas e bombons de diversos tipos. Peguei um arredondado
e o mordi sem saber o que encontrar dentro. Licor escorreu de seu interior em
minha primeira mordida. Recuei sobre o parapeito e pus a mão no queixo
para evitar que vazasse mais. Ícaro pegou um guardanapo da bandeja e
limpou minha pele adoçada.
— É bom, não acha? Duvido que tenham isso por aqui — ele me disse,
dobrando o guardanapo e o entregando à moça.
— Verdade, os nossos doces costumam ser bem mais simples.
Olhei para além dele, onde se aglomerava o grupo ao redor de Glória, e para
minha surpresa ela desfilava por entre eles com uma outra roupa, um vestido
vermelho longo com brilhos, um colar de prata com pingentes dourados, a
roupa mais luxuosa que eu já tinha visto. Alguém a tinha vestido daquela
forma, e agora todos a aplaudiam, agraciados com sua beleza. Uma mulher
loura e alta pegou a mão de Glória e a guiou pelo convés, sorrindo para mim.
Ícaro se virou ao perceber a mudança do meu foco de atenção, e engoliu em
seco ao ver a mulher alta.
— Adotaram a sua amiga. — Ele deu uma risadinha, apertando os lábios
para voltar seus olhos a mim. — E aí, como foi o seu dia?
babando...
— Eita, é isso que eles fazem no tempo livre? — Laura disse, engolindo por
inteiro uma folha de couve.
Glória revirou os olhos. — Ah tá, Laura, é, é isso sim, eles só ficam
rodando pra lá e pra cá de vestido... Ah, me poupe, né. Vai lá falar com eles
pra saber como é. São bons de papo, e trouxeram um monte de coisas
gostosas. Eles vão te tratar como uma rainha. — Glória girou o próprio prato
com uma sobrancelha erguida, contrariada e sem fome.
— Eu quero lá ser rainha, hein. Rainha não sabe nem varrer o chão, quem
dirá fazer alguma coisa importante na vida. — Laura riu da cara de Glória. —
Se eles tiverem umas brincadeiras legais, por outro lado... Talvez aí eu me
interesse.
— Laura, deixa esse pessoal pra lá. Não tá perdendo nada de mais — Jones
interviu, cortando um pedaço de omelete. — É gente que só quer saber de
mordomia, que vem nos visitar só pra rir da nossa cara. Né não, Elisa? — Ele
me cutucou com o cotovelo, despertando-me para a conversa.
Eu apenas acenei com a cabeça, pois me encontrava imersa na imagem de
Ícaro no barco, em nossa conversa ao pôr-do-sol, na beira do rio. Os olhos
verdes daquele homem brilharam a cada palavra que me disse, seu peito se
ergueu a cada fato que eu lhe contei sobre meu dia. Ele me ouviu, ele me fez
rir, esquecer da vida, da escassez, das preocupações, de... de Jones. Por duas
horinhas, por um momento que me valeu um coração leve e acalorado.
Jones cerrou as sobrancelhas sobre mim, num sorriso irônico, encucado
com o meu deslocamento. Se ele soubesse de meus pensamentos, certamente
ficaria chateado, pois meu corpo estava cansado de tanto trabalho, e minha
mente pedia a tranquilidade de um coquetel no barco.
— Depois você vai ajudar no calçamento da alameda? — Ele sussurrou ao
meu ouvido, enquanto as meninas debatiam sobre a experiência de Glória no
barco.
Não, eu não queria ajudar em nada mais, eu queria apenas um momento
para mim, eu e minha cama, eu e meus pensamentos... Ícaro, aquela imagem
e a leveza. Por que eu me deixava levar tanto pelo Jones? — Hoje não. Estou
cansada, tudo bem? Quero ir dormir mais cedo.
— Claro, sem problemas. Tô meio cansado também, mas vou lá mesmo
assim. O bom de fazer isso de noite é que não tem o sol pra queimar as
costas.
Terminamos o jantar e os três foram para fora, sob as árvores da grande
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2 - Ícaro
certeza de que ela havia acordado muito mais cedo do que nós, e apenas
esperava a nossa presença.
— Fiquei lembrando aqui de ontem, fiquei pensando nisso a noite toda,
acreditam? — ela disse, arrastando sua cadeira ao meu lado, até que pudesse
recostar sua coxa na minha.
— É mesmo? Teve problemas pra dormir? — Eu bebi um gole da minha
xícara de café, encarando-a com um sorriso brando.
— Um pouco, é verdade, mas não foi isso. Eu fiquei rindo da cara daquelas
duas que subiram aqui, eu realmente não consegui tirar isso da minha mente.
— Penélope pôs a mão sobre a boca, contraindo os lábios num riso preso. —
O que foi aquilo, gente? Ela pôs o vestido de mamãe e ficou se achando a tal,
como pode?
— Nós a aplaudimos, não é? Queria que ela fizesse o quê?
— Fizemos foi certo, porque foi muito engraçado. Eu ria, nossa, como eu
ria, e ela não percebia que na verdade estávamos todos fazendo graça dela.
Esse povo daqui deve ser muito idiota, coitados deles.
— Se me permite, Penélope — Oliseu interviu, saboreando um pedaço de
queijo. — Ela não ficou nada mal com o vestido e as joias. Ela tem um
corpão, né não, Ícaro? — Ele buscou meu olhar, erguendo as sobrancelhas.
— Até parece que Ícaro vai se impressionar com uma caipira daquelas. —
Penélope retirou os óculos escuros e revirou os olhos.
— Olhando só pelo corpo, as duas são muito gostosas, não dá pra negar
isso. — Eu sacudi a cabeça, erguendo os ombros. — Você ficou com ciúmes,
Penélope?
— Ciúmes? Eu? Daquelas duas? Ha ha, mas nunca! — Ela estalou os dedos
para chamar a camareira, apertando o queixo para não demonstrar irritação.
— A nossa missão é essa, você sabe que vamos ter que aprender a conviver
com esse povo — Oliseu disse.
— Ou conseguir enganar bem, né? — Penélope disse.
— É, enganar também funciona. Aliás, é bem mais fácil enganar quando a
mulher te deixa excitado — eu disse, acenando a ela com a cabeça. — Pode
rir, vai, é gostoso te ver rindo assim. Aposto que o pessoal desse mundo aqui
nem liga pra isso. São muito diferentes da gente.
— Isso é, não tem como negar — Oliseu disse.
Penélope escolheu dois tipos de queijo selecionados sobre a bandeja da
camareira, e levou um deles à minha boca, dando-me de comer. Esperou-me
mastigar com o rosto próximo do meu, seus olhos de mel famintos pela
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minha atenção, seus longos fios de cabelo dourado balançado sobre seus
ombros alvos.
Cássio se levantou de sua mesa ao lado da nossa. Observou a vila à beira do
pequeno porto onde nos encontrávamos, e se virou para nós.
— Vamos embora? Isso aqui não é pra gente do nosso tipo — ele disse.
— Dá um tempo, Cássio — eu disse. — Chegamos ontem, vamos lá, tem
muita água pra rolar ainda.
— Mas você esperava que fosse assim? Esse fim de mundo? Eu achava que
eles teriam mais coisas, sei lá, eu sabia que eram pobres, só que... Ah, quando
você vê o lugar, é muito pior.
— Você fez um trato, rapaz. Vai aguentar, e estou aqui pra garantir que
você siga até o final. — Engrossei a voz para lembrá-lo da minha autoridade,
e relaxei para tentar convencê-lo. — O que você tem tanto pra fazer que não
pode se permitir essas férias?
— Férias? — Cássio riu de deboche, suspirando em seco. — Só tô aqui
porque você mandou, e você só fez isso porque nunca tinha vindo pra cá.
Agora que viu como é de verdade, tá na hora de admitir que o plano é uma
furada.
— Não é furada. Deu uma olhada nas mulheres do lugar? Dá pro gasto, vão
cair direitinho. Você já escolheu alguém? — Eu me levantei da mesa, falando
mais próximo dele, mantendo um tom alto para que todos no convés
pudessem me ouvir.
Encabulado, Cássio fugiu do meu olhar, mirando o chão, balançando a
cabeça. — Estou de olho numa pessoa... Mas e daí? Não consigo fazer isso.
Fingir gosto por alguém assim, uma pobretona, cheia de calos nos dedos,
roupa suja, cheiro de suor... Eu vi aquela que você trouxe aqui ontem, não
aquela do vestido, aquela outra, com roupa simples, a sua escolhida.
— Viu, né. Gostosinha, encabulada, pronta pra cair na minha lábia. Mais
fácil do que isso, impossível.
— Isso não é mulher pra gente, Ícaro. — Ele inclinou o rosto, abrindo os
braços.
— Não é, mas o plano é esse. Você escolhe um nativo, começa um caso
com ele ou com ela, e fica na vila junto de nós, até sobrecarregarmos tanto a
rotina deles que vão se irritar conosco e dar motivo para queimar o filme
deles lá no nosso mundo. O que tem de ruim nisso? Você come uma mulher e
ainda salva o mundo.
— É... Não sei.
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movimentar.
Penélope acenou para o rapaz e o chamou para subir. Ele parou diante dos
amigos, deu de ombros e os outros homens sorriram para ele. Um adolescente
o empurrou para o barco, rindo do acanhamento do rapaz de Penélope.
Assistiram com os rostos plenos de curiosidade à chegada do homem ao
nosso convés, encarando-nos com o peito erguido e um olhar destemido.
Um cara alto, parrudo, de pele escura e cabelo raspado, vestindo uma calça
larga de algodão toda manchada e uma camiseta com furos nas mangas. Sua
presença estremeceu o corpo magro de Penélope, encolhida sob o gigantismo
do seu escolhido. Ela engoliu em seco, revirando o pescoço, e o
cumprimentou.
— Olá, bom dia, já era hora de nos apresentarmos, não acha? Eu sou
Penélope, e você? — Ela lhe estendeu a mão, inclinando o rosto para encará-
lo com seu sorriso meigo.
— Precisa de ajuda em alguma coisa? Você ou alguém por aqui, Penélope?
— Ele fez um tour visual pelo convés do barco, onde eu e meus amigos o
observávamos com expectativa.
— Não, muito obrigada, estamos ótimos por aqui, não precisamos de nada
— ela disse, recolhendo a mão. — Poxa, como você é gentil, sabia?
Oferecendo ajuda assim, prestativo... Engraçado que eu consegui adivinhar
esse seu traço só de olhar, acredita? Não quer me dizer seu nome?
— É Jones. Se não precisam de ajuda, então eu vou descer. Não estou a fim
de conversar agora, espero que não se importe. Quem sabe depois. — Jones
se virou rumo à plataforma, deixando Penélope prostrada com os braços
largados sobre a cintura.
Eu me levantei da mesa na hora, correndo até ele. — Ei, queremos só
conhecer você melhor. Viemos atrás de novas amizades, acabar com o
impasse entre os dois mundos, sabe como é. Vem jogar uma partida com a
gente, vai ser legal. Ninguém aqui vai te morder.
— Não gosto de jogos competitivos. Pronto, começa por aí, agora vocês me
conhecem um pouco mais. Se quiserem me conhecer melhor, desçam comigo
e ajudem nos nossos trabalhos. Precisamos de gente nos postos agrícolas e
nas tendas de serviços. — Suas palavras trouxeram silêncio, uma dezena de
pessoas encarando um nativo que nos conclamava a trabalhar. — Bem que eu
imaginei. Vocês não querem nada com nada. — Jones se virou e partiu.
— A vida é mais do que isso, Jones — Penélope disse, falando alto no
parapeito. — O que você faz no tempo livre diz muito mais sobre você do
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vim aqui dar um oi só para eu poder cuidar das coisas do café sem me sentir
cobrada. Até porque, hm... Depois de ontem eu fiquei pensando muito em
vocês aí do barco. Gostei muito da companhia.
— E de mim, você gostou?
— Pra falar a verdade, eu quase não conversei com os outros, então, é...
Quando eu digo vocês, na verdade eu me refiro a você mesmo. Só que não sei
como vocês são, por isso o medo de falar o que não devo.
— Elisa, comigo você pode falar o que quiser. Não tenho essas frescuras,
pode confiar. E fico feliz em saber que causei boa impressão. Quer subir lá
com o pessoal de novo?
— Não, agora não. Vou lá terminar de limpar as mesas, e depois tenho de
ajudar no Posto do Monte outra vez. Talvez de tardezinha eu apareça por
aqui, isso se a Glória não vier antes.
— Vou ficar te esperando então.
Ela acenou com a cabeça para mim, virou o rosto e partiu. Subi de volta ao
barco com as mãos nos bolsos, otimista em relação à minha missão.
— E não resisto mesmo. Mas você mesma acabou de falar que ela é a pior
de todas, então por que o medo?
Ela franziu a testa, mantendo os olhos entrefechados. — Vai saber o que se
passa na sua cabeça. Você tem estado tanto tempo comigo e mal me dá
atenção.
Dei de ombros, perdido. — E isso prova o quê?
— Que você é estranho, Ícaro. Todos os caras aqui vivem tentando me levar
para a cama, menos você.
— Saiba reconhecer um cavalheiro então — eu disse, abrindo um sorriso
malicioso.
— Um cavalheiro que só falta se derreter pela pobretona do vilarejo, sei.
Aquela mulher é muito ruim pra você, Ícaro, não sei como aguenta ficar perto
dela.
— Meu Deus, Penélope, eu tô só jogando com o meu personagem! É isso o
que nós viemos fazer aqui. Eu e você já transamos tantas vezes que não sei
por que você está enciumada assim.
— É porque eu vi o brilho dos seus olhos quando você desceu para
encontrá-la ali embaixo, você não me engana. Olha lá, não vá ser aquele cara
que poderia ter uma rainha como eu entre os braços e prefere ter uma idiota
como aquela, não me venha com essa. Não vá se rebaixar a esse ponto, tudo
menos isso.
— E daí que ela é idiota? — Fechei a cara, olhando baixo. — Precisa
mesmo humilhar tanto assim?
— Não estou humilhando, estou apenas contando a verdade.
— E a verdade do seu Jones, cadê? — Eu me virei para ela, apertando as
sobrancelhas irritadas.
— Que ele é um patetão? Isso eu já sei, tá vendo, e não me afeta nem um
pouco. Pode chamá-lo do que quiser. Meus olhos não brilham perto dele.
— Ah é, mas eu acho o contrário. Eu acho que ele é o par perfeito pra você.
É de alguém assim que você precisa.
Ela se afastou do parapeito, pondo a mão no peito com o rosto deformado
pela revolta. — Como assim, Ícaro? Pelo amor de Deus, que ideia é essa?
Você me ofende com isso, sabia?
— Ofendo por quê? Ele é um cara bonito, de poucas palavras, não se dobra
fácil. Pra conviver com você, tem que ter esse jeito mais durão, senão fica
difícil, quem é que te aguenta? Vai dizer que não é verdade? E com certeza
ele tem água pra apagar esse seu fogo.
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preparava para sair, montada em uma bicicleta, sem se virar para me encarar
novamente. Pés sujos sobre o chinelo de dedo, bermuda larga pendendo sobre
o selim da bicicleta. O meu par predestinado, uma grande enganação.
Fui ao quarto de Penélope, carente de um par de olhos. Bati à porta e
aguardei ser chamado. Uma voz falou baixo de dentro, perguntando quem
era. Entrei sem dizer nada, recebido no cômodo pelo rosto avermelhado de
Penélope, chorando sobre os lençóis, chapéu no chão, sandálias largadas
junto aos óculos de sol. Seus lábios tremiam ao me encarar, cortando meu
coração.
Sentei-me ao lado dela, na cama, e acariciei seu braço. — Vim aqui pra te
pedir desculpas. Eu falei besteira, saiu sem querer. — Ela se manteve em
silêncio, querendo mais, bebendo de minhas palavras com total atenção. —
Isso aqui é difícil pra todos nós, já deu pra perceber, né? Às vezes eu penso,
que droga viemos fazer aqui? Por que aceitamos fazer esse papelão?
Entende? É muita coisa. Daí você fica irritada, eu fico irritado, essas coisas
acontecem. Queria prometer que eu não vou fazer mais isso, mas quero ser
sincero com você. Não posso prometer nada enquanto estivermos aqui. Essa
missão, essa enganação... Isso bagunça a cabeça. Você me perdoa? Por agora,
e pelo futuro?
Ela se ergueu da cama e me abraçou, recostando os olhos marejados sobre
meu ombro. Envolvi-a como pude com meus braços, oferecendo-lhe um
carinho suave com os dedos.
— Nós estamos juntos nessa, Ícaro... Eu e você, todos nós. Eu só quero
ficar junto, só isso — ela disse, soluçando. — É claro que eu te perdoo.
Respirei aliviado, emocionado com o perdão que tinha ganhado um
gigantismo apenas por conta de nossas confidências. Meu coração se apertava
com a complexidade das minhas emoções, um turbilhão de sentimentos me
puxando para todos os lados.
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suprimentos para mais quatro dias. Um dia só de viagem, isso nos deixa com
três para recebermos um convite de hospedagem na vila.
— E se não esperarmos um convite? E se descermos e pedirmos
hospedagem? Eles que se virem. Vivem falando da solidariedade deles, não
vivem? Mandam mensagens mundo afora sobre as maravilhas do lado de cá,
que nos mostrem isso então. — Penélope deu uma garfada em sua salada,
atiçando a conversa com sua provocação.
— Calma lá — eu disse, torcendo o rosto. — Pelo que consta, nossos lados
ainda são inimigos. Já fico surpreso em ver que até agora não nos trataram
mal, muito pelo contrário, por isso é bom não abusarmos da sorte. Vamos
continuar jogando o nosso jogo, e não vai demorar até nos chamarem pra
descer, vamos confiar.
— Convença a sua Elisa a nos chamar para uma festinha da comunidade,
vai. Quero ver você conseguir. — Penélope me encarou sobre a taça de
vinho, apertando os olhos, espremendo a boca sobre o cristal.
A noite caiu sem novidades no porto, contando apenas com o café aberto,
frequentado por um grupo de pessoas que conversava sobre uma mesa.
Entediados, os passageiros foram se deitar em seus cômodos, cansados de
esperar pelo incerto. Penélope ficou ao meu lado na mesa de jantar, ouvindo
os cantos de sapos e insetos ecoando da margem oposta.
— Vem comigo dormir, vem. Nós arrumamos um cantinho... — ela
murmurou, recostando-se sobre meu ombro.
— Tá com sono? Vai lá, me espera no salão que depois eu vou. Não é por
mal, não pense isso — eu disse, antecipando—me à sua frustração. — É que
eu estou com a cabeça muito agitada, preciso de um tempinho pra espairecer
a mente. Não quero te envolver nessa confusão.
— Difícil esse meu amigo, hein. — Ela sorriu com os beiços partidos,
afastando-se de mim. — Vou ficar te esperando, meu bem. Não demora
muito não, hein, porque posso perder a paciência. — Ela me beijou o rosto e
partiu rumo ao corredor.
No convés, restamos eu e uma de nossas serviçais, à espera de uma ordem
minha. Aproximei-me dela e a liberei para ir dormir, querendo ficar a sós sob
a escuridão da noite. Assisti ao jogo de sombras que se projetava sobre a vila,
as luzes apagadas dos prédios, somente os postes marcando os caminhos.
Quase meia-noite, e a esperança de avistar Elisa, como no dia anterior,
diminuía a cada minuto.
De repente, uma silhueta apareceu por entre dois prédios baixos, uma figura
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3 - Elisa
Jones estava certo. No fim das contas, pouco restava da cota diária a ser
cumprida no Posto do Lago. Minha busca por fungos ou frutos estragados me
levou à margem do lago, onde parei para admirar o espelho d'água límpido e
gelado. Abaixei-me para sentir a água com os dedos, e molhei o rosto para
acordar para a vida.
Laura se pôs ao meu lado com seu chinelo de borracha e deu um passo
dentro do lago, molhando-se até as canelas. — Vontade de tomar banho aqui,
né?
— Tá frio, Laura — eu disse, erguendo-me para longe da margem.
— É só se acostumar. Quer pegar uma boia? Eu vou lá na estação pegar pra
você.
— Não, nada disso. Eu preciso... Eu preciso ver com o Jones se nós vamos
mesmo lá ajudar com os painéis daqui a pouco.
— Você não para, né, garota?
— Alguém tem que ser assim, não tem? — Eu virei as costas para ela,
dando um passo rumo a Jones.
Ele terminou de checar os últimos acertos e confirmou o fim do expediente
com os outros ajudantes. Os zeladores do posto nos ofereceram um almoço
modesto, feito com base nas batatas e nos tomates da própria área, e
conversaram um pouco conosco. Após a refeição, Laura ficou com eles,
empolgada com os planos de expansão do cultivo de tomates, mas Jones e eu
partimos de bicicleta para o Campo Aberto.
Recebemos novos painéis fotovoltaicos de Juruci, uma das maiores cidades
do nosso lado, e o pessoal da energia solicitou ajuda pelo menos para a
instalação dos novos equipamentos. Entre todas as áreas de meu interesse, eu
gostava de coisas relacionadas a construção e manutenção. Cuidava da parte
agrícola só em períodos emergenciais, como os quais pelos quais passávamos
quando da chegada do barco.
Eu já tinha ajudado na instalação há um tempo atrás, mas Liliane e Marcos
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cota do dia. O sol já se punha atrás das árvores, deixando-nos sob o branco
intenso dos holofotes do Campo. A pele escura de Jones brilhava com o suor,
e o branco dos meus braços se coloria com o avermelhado dos céus. Terra,
sujeira, minha pele se contaminava com o fruto de um longo dia de trabalho e
me perfumava com o cheiro da alegria após um dia bem vivido.
Passei na casa de banhos para imergir numa banheira quente, depois de me
oferecer uma ducha caprichada que me livrou de toda a sujeira. Escolhi
algumas ervas para me perfumar enquanto fechava os olhos e deixava que a
água quente relaxasse meus músculos, enquanto meu estômago roncava de
fome.
Fui jantar no refeitório com o pessoal, e tomei um susto com Glória. Ela
tinha prendido seus longos cabelos pretos em um coque sobre a cabeça,
emoldurando o montinho com uma tiara brilhante. Sobre seu colo pálido,
pendia um colar de pérolas, adornando sua pele com os apetrechos de um
mundo que não nos pertencia.
— Ai, eles são muito gentis, Elisa. Eles me fizeram desfilar novamente, e
dessa vez me deram até esses presentes — ela me disse à mesa, cortando um
pedaço de frango com os cotovelos juntos sobre suas costelas. — Essas
histórias que contam sobre eles são todas mentirosas, porque eles mudaram,
eles não são mais como antigamente. Eles são como nós, dão presentes
também, dividem as coisas, está vendo? Só que são mais elegantes e não se
contentam com coisas de baixa qualidade.
Vendo-a feliz como poucas vezes a havia visto, eu ouvi suas palavras com
um sorriso contido. Glória trajava seu vestido de festa no refeitório, enfeitada
por joias, e falava em voltar ao barco depois de comer.
— Hoje é meu dia de ficar com as crianças. Elas querem ouvir as histórias
do Roberto, e vou ter de levá-las na casa dele — Jones disse, ao meu lado,
enquanto Laura e Glória conversavam sobre o barco.
— Vai ser divertido — eu lhe disse. — No meu caso, tudo bem se eu
procurar outra coisa pra fazer? Não quero dormir cedo hoje.
— Claro, vai nessa.
Como sempre, nós terminamos a nossa refeição e demos uma volta nos
caminhos da praça à beira-rio, longe do porto. A noite escura nos inspirava à
quietude, à simples constatação da nossa vida em comunidade, uma amizade
formada desde a infância e curtida com muito tempo de convivência
contínua. Não passávamos um dia sem nos vermos, e eles formavam o meu
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4 - Ícaro
Aquela tal de Glória era uma mulher muito bonita, mas coitada dela.
Resolveu voltar ao nosso barco depois da janta, como prometeu que faria, e
em parte ficamos felizes, porque era ótimo saber que pelo menos uma pessoa
da vila buscava a nossa companhia. Por outro lado, o Cássio não conseguia
levá-la a sério, e em suas ironias direcionadas a ela, até eu me embolava.
— E vocês querem tirar foto comigo, com uma nativa? Ora, eu sou quase
uma de vocês agora — ela disse, enfeitada pelas bijuterias baratas que
Penélope lhe tinha dado.
— É que ainda assim você tem um ar exótico, de outras terras, um jeito
próprio de se portar. Olha essa postura, esses ombros largos, vê se alguém do
nosso lado ostentaria um ar tão diferente — Penélope disse, piscando para
mim com um riso preso.
— Ai, sim, vamos tirar essa foto então, vamos lá, onde vai ser?
— Ali no parapeito, de frente ao porto — Cássio disse, guiando-a pela mão.
— E vocês não vão vir também? Tem que ser uma foto de todo mundo
junto. — Glória nos chamou com as mãos erguidas, seus dedos brancos
brilhando com anéis sob as luzes do barco.
— Não, só você agora, fica paradinha aí. Você é a nossa estrela por hoje —
Cássio disse, mirando seu celular sobre o corpo rígido de Glória.
Ela veio ver a foto depois de pronta, abrindo a boca com um ar de
encantamento, agarrando-se a Cássio. Ele fechou os olhos, envergonhado, e
contorceu as sobrancelhas para se desvencilhar dela com sutileza. Glória viu
o horário na tela do celular e se assustou.
— Gente, eu preciso ir! Já são mais de dez horas, e vocês sabem que o sono
é o melhor remédio para uma pele bonita, não sabem?
Saiu de nosso círculo com um olhar confuso, como se esperasse algo de
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uma fileira de prédios baixos além das árvores altas que delimitavam uma
praça. Ruas largas, mas nenhum carro à vista, apenas bicicletas e alguns
quadriciclos. Árvores brotavam nos canteiros centrais, e prédios se abriam
sobre a terra, sem muros ou portões .
Com medo de me perder, olhei para atrás em uma das ruelas pelas quais me
meti e me assustei com uma silhueta que caminhava ao longe, em minha
direção. Meu coração explodiu em excitação, pois aquela figura eu
reconhecia, era aquela que eu procurava, Elisa, em toda a graça de seu
rebolado.
A vila sonolenta me abriu o caminho para o meu encontro com ela, numa
noite sem lua na qual se podia andar sem medo ou preocupação. Elisa vinha
em minha direção cabisbaixa, de braços cruzados. Deu um longo bocejo sob
a luz de um poste baixo, olhou para o lado, para onde a rua se bifurcava numa
alameda entre prédios baixos, e entrou naquela direção. Eu assobiei de leve,
mas o som saiu alto diante de todo aquele silêncio, e de imediato ela olhou
para mim.
Seu rosto brilhou ao se erguer, congelado numa expressão cansada e pálida.
Ela pôs um dedo sobre os lábios, pedindo-me silêncio, e apontou à praça ao
nosso lado, mudando de caminho antes que eu chegasse até ela. Segui sua
direção, reduzindo o meu passo, feliz por tê-la encontrado. Passamos por uma
fileira de bancos e imaginei qual daqueles escolheríamos para nos sentarmos,
pensando no que dizer a ela a uma hora daquelas.
Mas ela parou diante de uma escultura abstrata, entrecortada por pedras e
vigas metálicas, e se sentou sobre uma larga plataforma em rocha que parecia
fazer parte da obra. Ela esperou que eu a alcançasse, mantendo os braços
cruzados, enquanto sobre ela se fechava um arco metálico perfurado por
esferas minúsculas.
— Tomou coragem de andar por aqui, até que enfim — ela disse,
remexendo-se sobre a pedra para me deixar sentar com mais espaço.
— Eu não queria causar problemas caso viesse durante o dia. Achei que
todos estivessem dormindo a essa hora — eu disse, juntando-me a ela sob a
escultura.
— E tem graça assim? De dia é melhor, tudo tem mais vida.
— Não posso reclamar da noite. Passei pelo parque na margem do rio, e
encontrei você. Essa vila está cheia de vida pra mim agora. — Encarei suas
mãos que então se libertavam da cruzada de braços e percebi como eram
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— Claro que não. Mas é que vocês chegaram aqui sem dizer nada, e tá todo
o mundo desconfiado nessa vila. Te achei legal, e tô aqui conversando com
você no meio da noite, então me ajude a entender a situação. Nós somos ou
não somos inimigos?
— Inimigos? Ora, por que seríamos inimigos?
— Bem, né, você vem ... Hm, você sabe ... Você vem do outro lado.
— Ah, esquece essa história, Elisa. Isso tudo é passado. Estamos aqui pra
conhecer o seu mundo. Isso é bom, não acha?
— É sim, claro, e é o que eu tenho dito pros outros. Vou confiar em você,
hein.
— Sim, por favor — eu disse, escondendo um sorriso que brotou em mim, a
alegria suja da mentira bem-sucedida.
— Vão embora quando mesmo?
— Depois de manhã, bem cedinho.
— Deveriam ficar mais.
— É que precisamos voltar para reabastecermos tudo. Ficamos até mais
tempo do que o imaginado. Os passageiros não aguentam mais dormir no
barco. Estão vomitando o tempo todo por causa do balanço, e a comida já
está acabando também. Os ânimos estão meio exaltados, digamos assim.
— É mesmo? — ela disse, erguendo a cabeça com o olhar preocupado. — E
você falando que a vida aqui na vila é difícil, hein. Pra vocês a situação deve
estar bem complicada.
— Não vou mentir, realmente. Estamos no limite.
— Vocês têm que descer aqui na vila. Vai ser mais confortável, e daí vocês
podem ficar mais tempo. — Ela se sentou novamente sobre a rocha e
aproximou o rosto do meu, falando baixo com sua voz doce.
— E tem lugar pra ficarmos aqui? Essa vila me parece tão pequena.
Estamos em trinta pessoas no barco.
— Temos algumas tendas e colchões. Podemos montar um acampamento
de emergência.
Estremeci com a ideia de dormir sobre um colchão inflável sob uma tenda
armada no meio da praça. Por mais apertados e incômodos que fossem os
quartinhos do barco, melhor seria continuar por lá. — Não imaginava que
vocês teriam esse preparo. Vai dar muito trabalho, Elisa.
— Nós podemos ajudar, nós podemos recebê-los por aqui! — ela disse,
arregalando os olhos como se tivesse tido uma ideia genial. — Aí sim vocês
vão poder nos conhecer de verdade, e essa inimizade vai finalmente chegar
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ao fim. — Ela abriu um largo sorriso, transformando seu rosto numa imagem
de perfeita felicidade.
Eu queria dizer não, eu queria voltar ao meu barco e ir embora de imediato,
nem um pouco à vontade com a ideia de acampar em meio àquelas
condições. Mas Elisa sorria para mim, relaxando seu largo maxilar, seus
olhos de mel reluzentes sob a moldura de seus cabelos pretos e curtos, e a
visão de sua expectativa me deu ânimos para persistir no objetivo. Apertei
meus lábios e acenei com a cabeça, mirando o chão sob meus sapatos.
— Acho que temos de ir dormir, não é? — eu disse, levantando-me da
pedra.
Ela me observou com uma mão apoiada na pedra, seu quadril deitado de
lado, uma coxa sobre a outra, a curva de sua cintura se elevando sobre o
ventre. A luz fraca dos postes me revelava a silhueta atraente de uma mulher
que me desafiava e que me oferecia ajuda, uma mulher como nenhuma outra
que eu jamais havia conhecido.
— Sim, já passou da hora — ela disse, levantando-se da rocha com
preguiça. — Amanhã eu vou ver com a comunidade o que podemos fazer
para ajudá-los, tudo bem? Fica tranquilo que nós vamos achar um jeito. —
Ela pegou em minha mão, aninhando-se entre meus dedos, e apertou minha
palma, abraçando-me com os dedos leves.
Eu respondi em mesma intensidade, sentindo as carnes de sua mão, e a
liberei para que partisse. — Boa noite, Elisa. Até amanhã então. Durma bem.
— Boa noite pra você também — ela disse, e deslizou os dedos sobre os
meus até que se soltassem por completo.
Ela deixou a praça e adentrou pelas ruelas da vila sem olhar para atrás.
Apertei o peito para acalmar o coração, repleto de emoções que não deveriam
existir. Eu estava ali para enganar Elisa, e de repente a nossa missão me
pareceu uma grande sujeira.
queixo e virou minha cabeça à luz do barco. — Estão brilhando, Ícaro, você
não me engana. Você está caindo por ela, seu idiota.
— Lá vem você e suas superstições... Vai, não começa. — Eu me desfiz de
seu aperto, voltando a encarar os galpões do porto. — Vira minha cara pra
luz e não quer ver brilho? Detesto quando você vem com essa história.
— Mas estou mentindo? Seu rosto está diferente, está mais...
— E se for porque estou aqui com você? hein? E se está brilhando pela sua
companhia, e não por conta da Elisa?
— Nesse caso, meu bem, já passou da hora de você fazer algo sobre isso. —
Penélope envolveu minhas costas com um braço e se apertou ao meu lado,
aproximando o rosto do meu como se pronta a me beijar.
— Você quer que eu te leve para a cama, é? — eu disse, surpreso ao me ver
imitando o mesmo comportamento de Elisa em nossa conversa na praça.
— Isso seria uma delícia. — Ela sussurrou no pé do meu ouvido, virando o
corpo para me abraçar de frente, encaixando meu braço entre seus seios.
O rosto de Elisa apareceu em minha imaginação, seu rosto de desafio e
coragem, recusando-me com uma sinceridade amigável, querendo-me longe e
ao mesmo tempo perto. Sedutora sem sê-lo, atraente por acidente, uma
mulher se oferecendo como amiga e me prometendo um futuro. Meu coração
fraquejou, baqueado, sedento por aquele desafio, aquela pessoa que me
mantinha à distância para me estudar, para me dar a chance de eu me mostrar.
O corpo de Penélope ficou colado ao meu, seu perfume doce me inebriou,
sua voz sedutora atiçou meus sentidos. Ela me pegava num momento de
excitação e me tentava profundamente. No fundo, ela estava certa, era de
mulheres como ela que eu precisava, e não de alguém como Elisa, uma
pobretona malcuidada e simplória.
— Com você é tudo muito fácil — eu disse, atormentado pelos dedos de
Elisa que deslizaram sobre a minha mão havia poucos minutos atrás.
— O que quer dizer com isso? — Penélope se afastou.
— Elisa achou que eu queria sexo com ela, e disse que eu deveria desistir
dessa ideia, se fosse o caso.
— E você achava que conseguiria transar com ela hoje?
— Não sei. Fui disposto a fazer tudo o que fosse necessário pro avanço do
nosso objetivo aqui. Mas ela não me quis.
— É porque ela não te conhece. Não sabe quem você é, não sabe do seu
dinheiro, do seu poder. Convive com gente feia, burra, e não sabe reconhecer
inteligência quando se depara conosco.
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5 - Elisa
Ainda sonolenta, fiz questão de acordar no horário normal para manter meu
ritmo. O resto do sono eu compensaria com algum cochilo ao longo do dia,
sendo bom até para recompor minhas energias antes de cuidar das outras
atividades. A tarefa que me motivou a levantar da cama era apenas uma, era
dar um jeito na situação do barco do outro lado.
Procurei Laura pelo refeitório, buscando sua ajuda para ir comigo ver a
situação dos visitantes, e não a encontrei. Fiz meu desjejum sozinha, sem a
presença dos meus poucos amigos. Ouvi atrás de mim alguns integrantes do
comitê das fábricas, conversando sobre as últimas remessas para o pessoal
das cidades. Com os novos robôs instalados em nossos galpões, prestes a
serem energizados pelo aumento de capacidade da nossa usina solar, nossa
infraestrutura seria capaz de fornecer quadriciclos para todas as vilas em
nossa região.
Mandei uma mensagem para Laura a partir do nosso sistema online, e logo
recebi sua resposta. Ela estava no Centro de Serviços Externos, ajudando a
traduzir alguns textos dos pesquisadores da nossa Federação para uma rede
de cientistas clandestina do outro lado.
— Laurinha, tem como interromper seu trabalho só por uma hora? — Eu
cheguei por trás dela, encostando a mão em seu ombro negro.
— Deixa eu só terminar esse parágrafo? Daí fica mais fácil eu retomar o
raciocínio depois. Isso aqui é fascinante! — ela disse, atenta à tela enorme à
sua frente, digitando freneticamente.
Ela terminou o parágrafo, salvou o trabalho e se pôs de pé para me
acompanhar.
— O que vamos fazer? — ela disse.
— Os visitantes do barco já estão se preparando pra ir embora. Queria ver a
situação deles, porque aí nós poderíamos discutir o caso numa assembleia
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com mais informações. Pensa só, eles vieram nos ver e nós nem pudemos
conviver com eles na vila. Isso não tá certo. Só que pra ficar, eles precisam de
uma situação mais confortável. — Eu enrosquei os dedos na curta mexa
escura de cabelo escorrendo em meu rosto.
— Ótimo! Eles me pareceram boa gente ontem. Um pouco chatos para o
meu gosto, tanto é que saí cedo e deixei Glória lá sozinha, mas diziam coisas
muito agradáveis.
— Gostou deles, foi? — Eu a guiei para fora do prédio, tomando o caminho
de uma alameda coberta que nos levaria até o porto.
— Gostei. São ótimos atores, e estou aqui esperando a peça deles. Ou talvez
essa já seja a peça... Enfim, estou empolgada! — Laura rodopiou as mãos à
sua frente, sacudindo os cachos pretos a cada frase.
— Você acha que eles são atores? Mas eu pesquisei o nome de um ontem à
noite, e na verdade eu eles são pessoas muito poderosas do outro lado.
— Talvez nem eles saibam que são atores, e isso não significa que não
sejam.
— Ai, você e suas ideias. — Eu ri ao seu lado, caminhando sob a sombra.
— Me diz uma coisa... Por acaso algum deles deu em cima de você?
— Um deles tentou sim, ô, coisa mais fofa. Oliseu, o nome dele, o cara de
barba, parrudão. Mas parece que ele ficou com medo de mim. Acho que
cheguei muito perto dele, perguntei qual era a sua Utopia, e ele não soube me
responder.
— Eles devem pensar que já vivem em um mundo perfeito, Laura. Daí não
faz sentido eles refletirem sobre essas coisas.
Laura e eu subimos no barco sem pedir permissão. Uma mulher de avental e
gravata borboleta veio nos receber, a mesma mulher que costumava servir
comida aos passageiros. Ela guardava o espaço junto a três passageiras
sentadas sob uma mesa, pegando sol. Nem Ícaro nem qualquer outra pessoa
que eu já tinha visto estavam por lá.
— Você está confortável aqui no barco, Rosilda? — eu perguntei à moça, já
conhecendo seu nome de outras vezes.
— Não tenho do que reclamar — Ela ergueu o peito, observando de soslaio
as três outras mulheres que a vigiavam.
— Gosta de dormir com esse balanço das águas? — Laura juntou-se à
minha entrevista.
— Olha... — ela começou a dizer, interrompida por uma das vozes da mesa.
— Bom dia, o que vocês desejam? Deixem a Rosilda cuidar das suas
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tarefas, por favor. Ela é uma mulher muito ocupada. Qualquer coisa que
quiserem perguntar, podem falar conosco — uma mulher de longos cabelos
castanhos e olhos verdes disse, sorrindo para mim com rosto angelical.
— E vocês não são ocupadas? — Laura apertou as sobrancelhas numa
curiosidade sincera.
— Somos sim, meu bem. Ocupadas com outras coisas — A mulher se
ergueu da mesa, deixando as duas outras para atrás, e se pôs entre nós e
Rosilda. — O que vocês querem saber?
— A comida aqui do barco é o suficiente pra vocês? — Eu acatei a sugestão
da mulher, indo direto ao ponto.
— Mais do que suficiente. Trouxemos o que há de melhor do nosso mundo.
— Quanto tempo mais você aguenta ficar aqui no barco? Seja sincera.
— Já que podemos ser honestas, acho que nosso tempo já se esgotou. —
Ela empinou o nariz, fechando os olhos para suspirar. — Quase todos nós
passamos o dia vomitando por conta desse balanço enjoado. O barco é grande
e estamos atracados, é verdade, mas é que somos pessoas muito sensíveis a
isso, não somos de ficar muito tempo embarcados.
— E não pretende ir em terra firme? Nunca quis nem visitar a nossa vila?
Lá você não teria esses problemas.
— Meu bem, nós somos pessoas finas. É falta de educação invadir o espaço
do outro sem ser convidado. Não somos como seus antepassados.
— Alice! — Uma outra mulher de preto gritou atrás dela, impedindo-a de
continuar. — Desculpem-na, eu lhes peço — ela disse nos encarando. — A
Alice não disse isso por mal.
— Ué, o que tem de mal no que ela disse? Nossos antepassados não
esperavam convite mesmo, eles eram bem diretos — Laura sorriu com sua
inocência própria. — Não temos nenhum ditado sobre isso, mas eu posso
inventar um agora, porque faz sentido, peraí, deixa eu pensar, algo mais ou
menos assim... "Que digam logo se não me querem, porque se tem porta eu tô
entrando."
Eu ri da brincadeira de Laura, sem entender por que as três mulheres não
compartilhavam do nosso repentino bom humor. Elas nos olhavam com os
lábios tortos, as mandíbulas travadas.
— Posso dar uma olhada nos aposentos do barco? — eu disse, quebrando o
gelo. — Já vim aqui duas vezes, mas ainda não passei do convés.
— Err, bem... Claro, o que vocês querem ver? — A mulher de preto cruzou
os braços, levantando o queixo para me olhar de cima.
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— Os quartos, os banheiros, o que mais tiver por aí. Quero fazer um convite
para que vocês se alojem em Água Clara, alegando na assembleia que as
condições do barco são ruins para a sua estadia — eu disse.
— Queremos ser amigas! — Laura disse ao meu lado.
A mulher de preto assentiu com a cabeça e nos guiou ao corredor na entrada
do convés. Portas estreitas se incrustavam na superfície de madeira polida da
parede. Ao final, uma pequena escada em caracol subia ao segundo e terceiro
andares.
— Serve se eu lhes mostrar o meu quarto? É onde tenho dormido com
Alice, que vocês já conheceram. — A mulher de preto abriu uma das portas e
nos mostrou o pequeno cômodo no qual dormia.
Uma cama de beliche cravada na parede, um pequeno armário encostado no
canto, e um espaço livre para apenas uma mesinha com um jarro de flores.
Luz entrava por pequenas janelas acima da cama superior, e um cheiro de
podre destoava da arrumação impecável dos colchões.
— Está sentindo esse cheiro? — a mulher perguntou. — Passei mal durante
a noite e vomitei no chão. Esse enjoo do barco não me deixa em paz. A
Neusa limpou, mas o fedor não sai.
— Tem que deixar a porta aberta pra ventilar um pouco, não? — Laura
abriu e fechou a porta como se para abanar o ar interno.
— Não adianta. Você vai ver que todos os quartos estão com um cheiro
parecido.
— Você gostaria de ficar mais tempo aqui em Água Clara? — Eu perguntei
sem me virar à mulher, encarando o quarto minúsculo com beliche e cheiro
de azedo.
— Bem, aqui no barco, não, de jeito nenhum. Mas se vocês tivessem algum
hotel, ou algo do tipo na vila...
— Nós temos alojamento. Mas eu preciso saber se vocês os querem mesmo.
Completei meu pequeno passeio pelo primeiro andar do iate com a certeza
de que eu tinha um caso forte para a nossa oferta de hospitalidade. Não
tínhamos quartos livres na vila, mas poderíamos improvisar um
acampamento, e pelo menos eles não teriam de conviver com a náusea e
aqueles espaços apertados o tempo todo.
Laura e eu nos despedimos da mulher de preto e de Alice, e voltamos à vila.
Meu coração abandonou o aperto do meu peito, pois não encontrei Ícaro no
barco. Depois de uma noite em claro, ele certamente não acordaria cedo.
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Sempre fui uma mulher fechada, muito mais de ação do que de fala. Se
quisessem minha ajuda, bastava que me chamassem, mas poucos se davam a
esse trabalho, e por isso me encaixei tão bem nos planos de Jones. Eu
participava nas assembleias dos projetos maiores nos quais eu trabalhava, e
contribuía apenas com a minha experiência prática, depois que todos já
tivessem falado. Fico vermelha facilmente, minha voz é baixa, e não me sinto
à vontade perto de multidões.
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— Que bom que não somos assim, né. Alguém precisa trabalhar nesse
mundo.
— Ai, já vi que você é um caso perdido. — Ela terminou de secar os olhos
e afastou as costas da poltrona. — Por que você veio aqui? Só pra fazer graça
de mim?
— Não, Glória, eu vim aqui querendo sua ajuda. Estou querendo trazer os
visitantes do barco para viver um pouco aqui conosco. O que você acha da
ideia?
Ela arregalou os olhos, segurou os lábios trementes e me perguntou
baixinho. — Você tá falando sério?
— Sim. Eles vão embora amanhã, mas não puderam ver nada daqui, tudo
porque não os convidamos direito. Se quisermos aproximar os nossos
mundos, nós precisamos nos conhecer melhor.
— Precisamos sim, é claro que sim, com toda a certeza. Vamos lá, vamos
convidá-los, agora mesmo! — Ela se levantou, puxando-me consigo,
abraçando-me enquanto tentava me erguer.
— Calma, não é assim. Falei com Marjorie e Vinícius, e eles acham que
não temos estrutura pra isso. Mas pedi uma assembleia pra hoje de
tardezinha. Preciso que você me ajude, Glória, preciso muito de você lá
comigo. Aquela gente toda, todo o mundo olhando pra mim... Isso é muito...
Eu vou travar lá na hora.
— Deixa comigo, Lis! Ai de quem se negar a receber esses nossos ilustres
convidados! Eles podem vir e dormir na minha cama, se não tiver espaço. Eu
vou estar lá, você não está sozinha, tudo bem? Estamos juntas nisso,
alinhadinhas, uma apoiando a outra.
— Obrigada. Sem você, eu não vou conseguir fazê-los ficar mais tempo
aqui conosco.
— Então vamos lá. Tá confirmada a assembleia?
— Não sei, temos que ver.
Saímos as duas juntas para o salão principal, e logo na entrada o painel
estava aceso. Todos os nossos prédios contavam com uma sinalização
discreta para os casos de convocação de assembleia, um letreiro que se
acendia com as informações necessárias e ficava lá até a hora. Nosso
encontro estava marcado, e Glória e eu tínhamos algumas horas para dar uma
polida nos nossos argumentos.
Com a vermelhidão do céu, suas nuvens coloridas pelos raios baixos do sol,
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rumei ao pavilhão central com Glória. Passei a tarde com ela, analisando
informações e possibilidades, e tudo estava pronto para a assembleia.
Pequenos grupos caminhavam na mesma direção, de banho tomado, de
tarefas feitas, prontos para ouvir novas ideias.
— Na última reunião, lembra que não aconteceu nada de ruim, não lembra?
— Glória disse, de postura altiva, olhando as pessoas passando pelas colunas
da grande cobertura do nosso pavilhão. — Hoje vai ser igual.
— A diferença é que nosso assunto tem uma guerra envolvida. Acho que
algumas pessoas podem ficar irritadas — eu disse, corando ao sentir a
pressão crescer ao meu redor.
— Essa guerra já acabou faz tempo. Está cada um vivendo em seu canto,
em paz. Estamos aqui justamente pra acabar com essa sensação de conflito.
Viemos trazer a harmonia, não é verdade? — Glória sorriu para mim, um
sorriso confiante de quem se acreditava capaz de tudo.
— Tomara. Isso é o que eu mais quero.
A assembleia se formou com espontaneidade no grande salão comunal. De
repente as pessoas pararam de chegar, os grupos se fecharam num burburinho
interminável, ondas de palavras espumando as vozes mais diversas que se
quebravam em nossos ouvidos. Uma multidão reunida livremente, sem palco
ou pedestal. Engoli em seco e me calei, aguardando ao lado de Glória, sem
encontrar Laura ou Jones, meus dois únicos outros amigos.
Uma figura com um microfone na mão veio de um dos extremos da sala.
Era Vinícius, ao lado de Marjorie. Ele ligou o microfone e deu uns tapinhas
para testá-lo. Um som alto saiu das caixas de som pregadas no teto.
— Pessoal, acho que já dá pra começar a conversa, né? — Vinícius disse.
— A Elisa tem um assunto para discutir aqui conosco, e se alguém chegar
depois, ajudem a deixar todos informados sobre o que está acontecendo. Vou
passar a palavra pra ela, tudo bem? Elisa, levanta a mão onde você estiver,
por favor.
Fiz como sugerido, erguendo meus dedos trêmulos no meio daquele mar de
gente. Todos ao redor se calaram e me olharam com rostos tranquilos,
curiosos. Abriram espaço, utilizando toda a amplitude do pavilhão para
mudarem de posição sem tumulto, formando um círculo à minha volta.
— Aqui, fique à vontade pra começar quando quiser. Estamos aqui pra
ouvir o que você quer dizer — Marjorie disse, pegando o microfone de
Vinícius para colocá-lo em minha mão. Ela acariciou meu ombro e ficou ao
meu lado.
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Glória juntou as mãos sobre o peito e acenou a cabeça para mim, encarando
todas as pessoas que se punham diante de mim. Tomando coragem para
observá-las, reconheci quase todas, sendo a vila tão pequena a ponto de ser
possível saber o nome de qualquer um sem esforço.
— Olá, tudo bem com vocês? Olha só, o que eu vim dizer não se refere a
mim especificamente, então peço a compreensão de vocês para podermos
discutir o assunto com tranquilidade. — Eu aproximei o microfone da minha
boca para que o som encontrasse saída nos amplificadores, já que minha voz
se perderia facilmente nas duas primeiras fileiras da assembleia.
Cruzaram os braços, apoiaram as mãos nas cinturas, permaneceram em
silêncio para me ouvir. Eu suava frio, sentindo o peito gelar.
— Temos um barco atracado no nosso porto, vocês todos sabem disso. São
visitantes que vieram do outro lado para nos conhecer. Eles estão para ir
embora, e até agora nós mal sabemos quem são. Ou seja, chegaram aqui e
não lhes demos a chance de dizer a quê. Passaram esses dias todos
aprisionados naquele iate, vomitando, dormindo mal. Eu fui lá ver o lugar
deles, eu vi o estado em que se encontram. É tudo apertado, triste, já estão
ficando sem comida, estressados. Então o que eu quero saber de vocês é se
podemos convidá-los formalmente a se instalarem aqui em Água Clara por
um tempo. São nossos semelhantes, precisando de ajuda.
Mal terminei de falar e recomeçaram os burburinhos. Cenhos fechados,
cabeças se sacudindo para os lados, pessoas virando as costas.
— Ninguém os convidou antes, e mesmo assim eles apareceram! Se
quisessem alguma coisa, eles que dissessem — alguém disse no meio da
multidão.
— Eles são pessoas finas! — Glória gritou ao meu lado com sua potente
voz de soprano. — Eles respeitam o nosso espaço.
— Para de ser tão inocente! — outra pessoa bradou próxima ao círculo. —
Ninguém naquele barco sabe o que é viver do nosso lado. Vieram aqui pra
tirar sarro, pra bagunçar. É só isso que eles sabem fazer, os inimigos.
— Não sabem o que é o nosso lado, é verdade, e vieram aqui para nos
conhecer. Por que então não vamos lhes dar essa chance? — eu disse,
ofegante, escondendo-me atrás de Glória, que se interpunha entre a multidão
e eu como uma guardiã.
— Ela tá certa, e vocês tão com muito medo — uma voz doce falou atrás de
algumas fileiras, a voz familiar de Laura. — Se forem mesmo inimigos, nós
não somos burros, e não vamos cair no jogo deles. Se forem amigos, ótimo,
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6 - Ícaro
Até aquele momento, eu tinha a certeza de apenas uma pessoa da vila que
estava do nosso lado, além de Elisa. Era aquela tal de Glória, que adorava vir
ao nosso barco se enfeitar com a ajuda de Penélope e as outras mulheres. Ela
era a escolhida de Cássio, ficando sob sua responsabilidade, um pouco a
contragosto, mas era o mesmo com todos nós.
— Você deveria tê-la levado pra um quarto, tirado a roupa dela, aproveitado
a chance — eu disse ao Cássio, sentado com o resto dos passageiros no
convés do barco depois da janta, sob o manto escuro da noite.
— Isso não mudaria nada — ele disse, cruzando os braços com o rosto
fechado.
— Mudaria sim. Vai dizer que não gostaria de experimentá-la? Ela estava
ali, doidinha por você. Você tinha de levá-la à loucura, deixá-la implorando
por mais. A partir daí, era só esperar ela nos levar para a vila.
— E como é que eu ia fazer isso com todo o mundo olhando? Ela quase não
tinha um tempo a sós comigo.
Apertei os lábios e as sobrancelhas, sacudindo a cabeça. — Você tem ou
não tem pulso firme, cara? Arrasta ela pro canto, tasca um beijo, e vai pro
quarto. É isso que ela quer.
— Tá, mas agora já era.
— Já era nada. Se ela aparecer aqui, é justamente isso o que você vai fazer,
entendeu? O tempo tá acabando.
— E se for a sua Elisa a aparecer? — Penélope disse, erguendo a vista para
mim, fuzilando-me com os olhos entreabertos e desconfiados.
— Se for ela, vai ser pra me dar a resposta que precisamos. Já fiz o que
tinha de fazer pra conquistá-la. Ela não é como a Glória, ela não sonha com o
nosso mundo, ela não quer ir pra cama com nenhum de nós. Ainda. — Apoiei
o cotovelo sobre a cadeira, virando o peito em direção a Penélope, impondo
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minha presença.
— É, você é o conquistador mesmo, estou vendo — Penélope disse,
lambendo os beiços. — Mas eu acho que você errou no seu julgamento.
Aquela idiota por quem você se apaixonou...
— Não me apaixonei por ninguém — eu interrompi, irritado com as
palavras que ela pôs em minha boca.
— Aquela idiota por quem você se apaixonou... — Penélope insistiu. — Ela
é quem tem o controle sobre você, e não o contrário. Temos aqui o grande
chefe das Indústrias Zanotelli, e ele não consegue dobrar uma pobretona
ignorante. Nossa brincadeira aqui fracassou, já é hora de admitirmos. Foi
bom, foi divertido, mas é hora de voltarmos.
— Também acho — Cássio disse ao lado, olhando-me de cabeça baixa.
— É o que todos vocês aqui pensam? — Varri os passageiros ao meu redor
com os olhos irritados, prestes a me levantar para conter o motim. — Querem
voltar pra ficarmos presos naquele clube? Lá do outro lado vocês são uns
inúteis, é assim que os velhos estão lhes vendo. Por isso os deixam lá no
clube, como crianças. Estou aqui pra dar um sentido pra vocês, pra comandá-
los num projeto importante. E mesmo assim querem ir embora?
— Meu querido, não é que queiramos ir embora — Penélope disse,
revirando os olhos, alisando o colar de pérolas ao pescoço. — É que não nos
querem aqui. Não viemos aqui para invadi-los. Viemos aqui para enganá-los,
e não conseguimos.
— Ainda — eu disse.
— Amanhã é nosso último dia. Acabou. Aceite.
Eu me levantei da cadeira, balançando a cabeça. — Tá, se é o que vocês
acham, vou começar a organizar a partida. Não vim aqui pra cuidar de um
bando de bebês. Achava que vocês eram mais do que isso.
No primeiro passo entre os passageiros sentados e derrotados, virei o rosto
para o porto aonde estávamos atracados, à vila que ainda não conhecíamos.
Eu ainda tinha esperanças, ainda acreditava no meu trabalho, na influência
que eu começava a exercer sobre Elisa. Ela não parecia ter poder algum sobre
a vila, patética como era em sua timidez e nos seus modos ásperos, brutos.
Mas era alguém, a única pessoa que se punha entre nós e o fracasso da
missão.
Conferi os instrumentos com o capitão do nosso barco, repassei os
suprimentos com Rosilda e Bernadete, as nossas empregadas, até que ouvi
um barulho alto de vozes vindo do convés. Citaram meu nome, uma, duas
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vezes, três vezes. Ignorei o som, abrindo as caixas com arroz e outros cereais.
A porta da dispensa se abriu, Oliseu deu as caras.
— É Elisa. Ela veio nos visitar, e está te chamando. Você tem que ir vê-la, é
nossa melhor chance — ele disse, saudando-me com um sorriso infantil por
trás da barba espessa.
— Ótimo. Peça-lhe para me encontrar no meu quarto. — Eu fingi continuar
meu trabalho de contagem ao lado das empregadas, dando tempo para que
Elisa sentisse um pouco da nossa pressão.
Após alguns minutos, subi a escada rumo ao terceiro nível, onde eu dormia.
No pequeno corredor, todas as portas se encontravam fechadas, menos a
minha, entreaberta. Segurei a maçaneta e escancarei a minha porta. Elisa me
olhou com um braço dobrado sob os seios, o outro erguendo um dedo na
boca, seu cabelo preto caído sobre as bochechas, brilhando com o amarelo da
luz baixa de meu quarto.
— Acho que você nunca tinha entrado tão a fundo nesse barco, não é? Que
pena que os passageiros ainda não puderam fazer o mesmo na vila de vocês
— eu disse, fechando a porta atrás de mim.
— É sobre isso que vim falar. Queria ser a primeira a te contar. — Ela tirou
o dedo da boca, juntando um braço no outro, cruzados sobre o peito.
— Sim? Alguma novidade?
— Nós vamos fazer uma festa amanhã! — Ela deu um passo em minha
direção, levantando o rosto para me encarar de frente. — Uma festa pra
vocês, pra todos aqui do barco. Vocês não podem ir embora, não mais,
porque não podem perder a nossa festa.
Eu ri de sua voz doce, aguda a ponto de parecer criança, vendo-a fazer
charme pela primeira vez. — Não podemos mesmo, Elisa. Que bom, fico
muito feliz com o convite, nós vamos adorar. Mas, de todo modo, depois da
festa nós teremos de partir.
— Só se quiserem. É uma festa de boas-vindas, Ícaro, é a nossa forma de
dizer que vocês podem passar um tempo aqui com a gente. Talvez vocês não
encontrem tudo o que desejam na hospedagem, já que vêm de um mundo tão
diferente, mas vamos tratá-los com carinho, eu prometo. O que você acha
disso tudo? — Seus olhos brilharam, suas mãos deslizaram sobre o ventre,
com os dedos entrelaçados, o rosto fixo no meu.
— Eu acho ótimo! Fico muito feliz, muito mesmo — Mostrei os dentes
num grande sorriso, encurtando nossa distância com mais um passo,
saboreando as bochechas coradas de Elisa por saber que ela estava aberta a
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mim.
— Então vocês não vão embora amanhã, não é?
— Não, não vamos, não com uma festa preparada para nós. Sabemos honrar
nossos anfitriões.
Ela balançou a cabeça levemente para cima e para baixo, silenciosa,
ouvindo minhas palavras e querendo mais. Veio me provar que eu não
fracassei, muito pelo contrário. Por minha causa a missão continuava, pelo
meu poder nós ganhamos passe livre na comunidade, e aquela mulher
simplória e estranha, ela não me recusava. Ela me convidava.
— Muito obrigado pelo convite, Elisa — eu disse, e fechei o espaço entre
nós com um abraço repentino, sem dar tempo para que ela pensasse.
Envolvida por mim, ela esticou as mãos largas sobre as minhas costas e
acolheu o meu carinho. Seu cabelo cheirava a manjericão, algo que me deu
pena pelas pessoas daquele lado do mundo, e o algodão de sua blusa esfolava
meus dedos com a aspereza de sua velhice. Mas as carnes de seu corpo me
reconfortavam, me aqueciam. Em breve, muito em breve, aquela mulher seria
minha para eu fazer o que quisesse.
No dia seguinte, dormi até tarde para estar disposto para a festa. Penélope
veio ao meu quarto me acordar, sentando-se na beirada da minha cama,
abaixando a cabeça para não bater no andar de cima do beliche que eu dividia
com Oliseu. Seu perfume adocicado me despertou fome e desejo.
— Dorminhoco. Vim aqui te buscar, pois já estava preocupada. Vem, vem
comer comigo, estou há horas te esperando — ela disse, repuxando meu
lençol, expondo meu peito nu.
— Já vou, já vou. Mas você aqui só me atrasa. — Eu puxei seu braço e a fiz
deitar junto a mim, agarrando-a pelas costas.
— Ai, seu doido, o que você está fazendo? — Ela falou baixo entre risadas,
tombando com o vestido leve sobre o meu colchão. — Pra quem tem me
tratado com tanta frieza ultimamente, você está muito animadinho hoje, hein.
— Hoje é o dia, hoje eu tô excitado. Vamos entrar na cidade, bagunçar
tudo, rir dessa gente toda.
— Vai rir até da sua amada Elisa, é?
— Vou, vou rir sim, vou pegá-la de jeito, você vai ver. — Eu beijei o
ombro de Penélope, apertando-a entre os seios.
Ela se debateu e se soltou da minha pegada, pondo—se de pé com o rosto
transformado. Fez bico, encarando-me como uma cômica expressão de
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estivesse aqui.
— Tomara que minha presença ajude a compensar a falta de outras coisas
então.
— Está tudo perfeito, não sinto falta de nada até agora. — Chegamos às
cadeiras e acenei para que ela se sentasse. Ela o fez sem olhar para meu
gesto, como se minha sugestão não fosse necessária.
— E você vai querer ajudar depois? — Elisa arregalou os olhos num tom de
esperança, uma voz que me confundiu.
— Ajudar em quê?
— Nas coisas da festa. As pessoas sujam o chão, as mesas, você sabe como
é. Temos de limpar, mas Glória e Jones me disseram que vocês jamais fariam
isso, e eu disse que não, que vocês também ajudariam a limpar sim, porque
vocês fazem festas no outro lado, não fazem? E vocês também cuidam da
organização como nós, não é?
— Não é bem assim, talvez você não conheça bem como funciona o nosso
mundo. — Eu senti o coração gelar com a ideia de que meus amigos e eu
tivéssemos de trabalhar em qualquer coisa relacionada àquela festa. — Lá nós
temos pessoas responsáveis por isso, então não nos preocupamos. São pagas
justamente pra fazer esse tipo de trabalho.
— Então o que você faz?
— Eu aproveito. Simples assim. Não é bom? Acho que você gostaria de ver
como é, talvez se identificaria mais com o nosso lado do que com o seu.
— Ainda não entendi. E essas pessoas que limpam, elas aproveitam a festa
também?
Sacudi a cabeça, segurando-me para não rir de sua ignorância, ela que me
fazia perguntas como uma criança diante do desconhecido. — Não, elas são
pagas pra trabalhar, não pra curtir. Elas têm as festas delas, em outros
momentos.
— Então é tudo separado mesmo, né. Tinha medo de que fosse assim.
— É para o bem de todos. Cada um tem o seu espaço.
— Você depois ajuda na festa desses outros? Digo, você paga pra alguém
ajudar a limpar a bagunça que você faz, mas depois essa pessoa te paga
também pra você limpar a festa dela?
Não me segurei e gargalhei ao lado dela, erguendo o braço sobre a cabeça
para envolvê-la em um abraço. — Que figuraça você, hein, Elisa. Pelo visto
aqui vocês não aprendem sobre o nosso mundo na escola.
— É que eu nunca tive interesse. Só quis saber mais quando vocês
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demais pra gastar tempo limpando festa, não acha? — Forcei um sorriso,
segurando-me para não continuar a discussão.
— É curta demais para viver só limpando festas, isso sim, como as pessoas
que você paga pra limpar festas.
Desceu em minha garganta o amargor do nosso embate desastrado, a ponta
do desprezo perfurando a minha pele, acordando-me para a realidade diante
de mim. Elisa, tão bonita, tão desafiadora, ela me fascinou naquela noite na
praça com seu jeito sincero, ela embolou minha vida, me deixou obcecado
por ela por uma noite, recusando Penélope, recusando uma noite de prazer
por conta de uma mulher que me resistia. Mas a triste visão daquele mundo
asqueroso em que ela vivia, com suas regras estúpidas e suas pessoas
embrutecidas pelas dificuldades, aquela visão me repeliu.
— Você quer dançar? — eu disse, respirando fundo para continuar em
minha missão. Eu precisava seduzi-la e sabotar sua vida, mostrar-lhe que o
lado dela era uma aberração que jamais aguentaria o peso da vida de verdade,
o meu peso, a minha vida.
— Agora não. Perdi a vontade — ela disse, e ficamos parados, de coração
amargo.
a sujeira da festa.
Ela pressionou os lábios e virou o rosto para mim. — Você queria saber
sobre a nossa vida aqui, lembra que você perguntou? Pois bem, estou
contando sobre como vivemos. Desculpa se não é aquilo que você gostaria de
saber, mas essa é quem eu sou. Não gostei de algumas atitudes suas, da sua
visão de mundo, é verdade. Acho que vamos ter de conversar mais para
resolver nossas diferenças.
Apertei o cenho, olhando-a com atenção. Fiquei surpreso mais uma vez
com a sua sinceridade, com a coragem em se abrir para mim sem fazer
drama, disposta a me receber mesmo na decepção. Antes que eu pudesse
encontrar algo para lhe dizer, porém, Jones decretou fim da dança com
Penélope e se despediu dela com um tapinha em seu ombro. Ela me
encontrou na cadeira e completou a distância até nós com passos firmes.
— Adorei a música do seu povo, Elisa — Penélope lhe disse, piscando o
olho malicioso para mim, rindo internamente de sua mentira. — É dançante,
é contagiante, é tudo de bom. Olha que alegria, olha que bonito. Consegui
tirar até o grandalhão ali pra dançar comigo, você viu? Música ruim não teria
esse efeito.
Ela se sentou sobre meu colo, posta diante de Elisa. Mantive minhas mãos
afastadas de seu corpo para não confundir Elisa com a nossa proximidade.
— E vocês dois, já dançaram? Vamos lá, quero ver mais ânimo desses dois
pombinhos. — Penélope apontou para mim e para Elisa com um dedo
indicador frenético. — O Ícaro aqui é uma maravilha, menina, vou te contar.
Vai na onda dele que tudo vai dar certo, apesar de quê... Bem, a música é
diferente do que estamos acostumados lá do outro lado, bem diferente, mas
ele tem um rebolado tão gostoso que você não vai resistir.
Ela se ergueu da minha coxa e nos puxou pelo braço, uma mão agarrada em
cada um de nós. Forçado a me levantar, aproveitei a deixa para insistir em
Elisa, buscando um motivo para retirar o mal-estar de nosso pequeno conflito
e conquistá-la para mim. Peguei em uma de suas mãos e a levei para longe
das cadeiras, onde havia espaço para se movimentar. Penélope se sentou no
meu lugar e abaixou o rosto para rir de mim com a boca escondida pela mão
resplandecente com um anel de brilhantes.
— Quer me seguir? — Elisa perguntou, desatando uma de suas mãos da
minha. — Nossos passos não são nada complicados.
— Eu preferiria fazer do meu jeito, se não se importar. Vocês gostam de
pular e girar bastante, estou percebendo, mas estou há tantos dias esperando
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por um momento como esses, ao seu lado, que gostaria de te ter mais
próxima a mim. — Apertei de novo a mão fugida, e ela se deixou envolver,
rendendo seus dedos ao entrelace dos meus.
— Claro, vou adorar conhecer o seu jeito de dançar. Me explica como é.
— Por enquanto, pensa só nos pés, assim, dois pra cá, dois pra lá, só isso,
dois pra cá, dois pra lá, deixando a cintura mole, isso, deixa a música nos
guiar.
Sua cintura colou na minha, leve e solta, e de mãos juntas nós rodeamos a
clareira entre a multidão.
— Quais são seus planos pra amanhã? — eu disse em seu ouvido.
— Construção e agricultura. Faço parte desses Conselhos, então me ocupo
do que tiver pra fazer.
— Não vai tirar um tempinho pra ficar alguns momentos comigo?
Ela afastou o rosto do meu ombro, encarando-me de frente com um sorriso
gostoso. — Se quiser, podemos passar o dia inteiro juntos. Você pode me
ajudar nas tarefas. Não tem nada que você não consiga fazer, ainda mais com
toda a sua experiência em projetos complexos.
— Você está fazendo graça de mim?
— Um pouquinho — ela disse, e voltou a encostar o rosto no meu. — Mas
é sério. Eu adoraria ter você comigo durante o dia, para que eu possa te
mostrar como vivo por aqui. Assim a gente resolve as diferenças rapidinho.
Se não quiser, fique livre pra andar por aí, e podemos combinar de nos
encontrar em algum momento.
— Eu queria te ter toda pra mim, o dia todo, sem tarefa nenhuma. Só nós
dois, de bobeira, passeando, conversando, o que mais quisermos fazer.
— Se você tivesse aparecido aqui alguns anos no futuro, talvez isso seria
possível. Mas nossa situação não está tão confortável na comunidade
ultimamente, e precisamos de toda a ajuda disponível. Eu preciso ajudar.
— É uma pena.
— Não é. Nós ainda vamos nos ver muitas vezes.
— E hoje à noite? Quais são seus planos?
— Já não estou aqui? Meu plano é a festa. Vou ajudar a arrumar algumas
coisas depois que ela acabar e vou dormir. Por acaso é possível ter outros
planos?
— Claro que é possível. Você pode aproveitar que já está de bobeira, e
andar comigo na vila, me mostrar seu quarto... Sem pressão, sem
preocupação. Pra relaxar, pra curtir a vida. Você precisa disso tanto quanto
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eu.
Ela ficou quieta, respirando em meus braços. Interrompeu suas passadas,
parando a nossa dança.
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7 - Elisa
— Você não conhece nada sobre mim. Por acaso não estou aqui
conversando? Desde o momento em que nos encontramos pela primeira vez,
isso é tudo o que fazemos, conversar. Por conta disso eu sou mimado?
— A impressão que eu tenho é a de que você conversa só pra satisfazer uma
vontade sua em relação a mim. Agora há pouco me chamou pro quarto, e não
me ache estúpida, eu sei o que isso quer dizer.
— E qual é o problema? Estou errado em querer conhecer o corpo de uma
mulher como você?
— Hoje eu passei a te ver como uma cara mimado, e isso é algo que me
desanima. Então precisamos de mais tempo, pois eu sei que você ainda vai
me surpreender.
— É porque eu falei que não iria ajudar a limpar a festa, é?
Acenei com a cabeça, concordando com o que ele dizia. Dentro de mim, eu
tinha a consciência de que eu tentava impor a minha visão de mundo sobre
ele, eu admitia que havia pessoas mesmo na nossa vila que não faziam muita
coisa da vida, mas eu cresci com as minhas ideias, eu as amadureci ao lado de
Jones, e me desfazer delas de uma hora para a outra era difícil. Eu precisaria
de tempo para isso, tempo ao lado de Ícaro, para aprender com ele ao mesmo
tempo em que ele aprenderia comigo, os dois num diálogo constante,
transformador, não só para mim como para ele também. Assim teríamos uma
vida em comum, uma vida só nossa.
— E não vou ajudar mesmo — ele disse, fuzilando-me com os olhos
verdes, travando o forte maxilar. Deu um passo para o lado, andou para longe
de mim.
— Aonde você vai? — eu disse, acelerando ao seu lado.
— Aproveitar a festa. Se não me quer por perto, paciência. — Ele fixou o
olhar em Penélope, ao longe, sentada de pernas cruzadas em uma cadeira
próxima às mesas.
— Eu te quero por perto. Nós precisamos nos conhecer, senão vamos ficar
com essa impressão ruim um do outro.
— Você é que tá com impressão errada de mim. Fica me ofendendo, como
se eu fosse aceitar tudo numa boa. Não vim aqui pra mendigar atenção.
Segurei seu braço, impedindo que continuasse. Virei seu peito ao meu rosto,
busquei seu olhar com decisão. — Quem é a visita no nosso caso? Você.
Você e seus amigos vieram de barco nos visitar. Você e eles estão na nossa
vila. Por quê? Isso é o que eu quero descobrir. Disse que era para nos
conhecer melhor. Pois então, é isso o que estou pedindo. Venha me conhecer.
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Viva comigo, experimente o meu dia a dia. Senão o que você quer? Ver,
assistir? Você pode conhecer algo sem experimentá-lo de fato? À distância?
Se eu tivesse ido para o outro lado, e te encontrasse por lá, e quisesse te
conhecer, você me apresentaria o mundo ao seu modo, não é verdade? E eu
experimentaria o que você me propusesse, porque eu é que teria tomado a
iniciativa, e você acharia isso bom. Mas aqui, você tomou a iniciativa de nos
visitar, então honre essa sua estadia. Fica comigo, passe um tempo comigo,
experimente fazer o que eu faço.
Ele me ouviu impassivo, de rosto fixo diante de mim, atento à minha boca.
— Eu achei que isso daqui fosse uma festa, e não um sermão de igreja.
— É um tempo juntos, um conhecendo o outro. — Apertei os músculos do
seu braço, insistindo para que ficasse.
Ele se desfez de meu toque com facilidade, deixando-me para atrás.
Continuou a caminhada rumo ao banco com Penélope, abandonando-me com
minhas palavras. Suspirei, sentindo a cabeça doer com a frustração. A
perturbação não me deixaria viver em paz, eu que detestava casos mal
resolvidos e preferia dar cabo deles na hora, por pior que fosse o seu sabor.
Laura passou ao meu lado, saltitante, acompanhada de um homem barbudo,
outro visitante do barco. Assim que me viu, deu um beijo no rosto do homem
e balançou os dedos para se despedir dele. O homem sorriu aturdido, pondo
as mãos no bolso, sem saber para onde olhar.
— Vi momentos tensos entre você e o Ícaro, hein! — Laura disse,
segurando minha mão.
— Fugiu do meu controle. Eu não sei como lidar com ele, Laura, ele é
muito diferente. Acho que o magoei. — Meu lábio caía, entornado pela
decepção comigo mesma.
— Eita, como é que foi essa conversa, me conta. Não vai dizer que você o
chamou pra trabalhar, vai? — Ela virou o rosto com a boca apertada,
repuxando uma das bochechas, formando uma covinha em sua pele negra e
brilhante.
— Perguntei se ele ajudaria a limpar a festa depois. — Abaixei o rosto,
admitindo a culpa.
— Ah, só podia ser. — Ela jogou a cabeça para atrás, balançando os cachos
escuros sobre os ombros. — Lis, você tem que parar com isso! Eu falei que
esse povo tem carinha de criança. Tem que ser paciente, demonstrar a doçura
do amor a cada palavra. Deixa ele aproveitar a festa com você, não é isso que
ele quer? Vai dançar, vai comer, vai beijar, vai fazer tudo o que quiser! Hoje
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pode.
— Mas é um evento grande, e vai dar trabalho, tem que arrumar...
— Pensa nisso depois! Amanhã. — Ela me puxou numa batida da música e
me fez pular, nós duas rodeando pelos espaços livres enquanto ela terminava
de me falar. — Você precisa mudar, viu? Tô te falando, o Jones colocou o
jeito de pensar dele todinho em você. Ele não é a verdade. Se não quer casar
comigo e não quer mudar seus pensamentos com a minha presença, então
cola lá no Ícaro e vai dançar com ele, enche a barriga dele de comida,
conversa sobre o céu, o mar, o rio, o barco, e depois vai lá pra fora, deita no
colo dele e aproveita, menina. Ele tem muito a te ensinar.
— Eu sei disso, é isso que eu quero, mas...
— Chega de falar! Agora vai lá e tira aquele homem pra dançar do nosso
jeito.
Com uma virada de corpo, ela me arremessou para as cadeiras, onde Ícaro
conversava com Penélope.
Foi a primeira vez na vida em que tive de lidar com alguém que fez tanto
caso de uma simples varrida. Tirei apenas umas sujeiras em uma área das
mesas, nada que me cansasse, custando-me menos de dez minutos para reunir
toda a sujeira num canto e recolhê-la com a pá. Nesse tempo, Laura foi e
voltou à cozinha mais uma vez, trazendo uma lasanha de berinjela com um
cheiro maravilhoso.
Sentei-me junto a ela e cortei um pedaço num prato de cerâmica, comendo
enquanto a multidão passava à nossa frente em passos vagarosos, já cansados
de tanto pular. Apenas as crianças insistiam na dança, suas roupas
bagunçadas ou mesmo ausentes, os maiores ajudando os pequenos, rindo da
liberdade de correr o quanto aguentassem.
— Viu Ícaro por aí? — Laura disse, erguendo o prato ao peito para cortar
um pedaço da lasanha.
— Eu queria te perguntar o mesmo. Não apareceu por aqui, mas ainda não
saí pra procurá-lo. — Eu mordi um pedaço de comida e falei de boca cheia.
— Também não o vi no caminho. Tem um pessoal lá fora já, alguns
grupinhos espalhados. Vai que ele saiu pra conhecer um pouco mais da vila.
— É, acho melhor eu deixar pra lá. Ele tem as escolhas dele, e hoje foi um
dia problemático pra nós dois. Não me admira que ele tenha criado desgosto
por mim.
— Você não consegue se segurar, né?
— Eu sou quem eu sou, Laurinha, assim como você. São dois mundos
muito diferentes. Não dá pra ficar bem desde o começo.
— Na minha opinião, dava pra ser diferente. Viu o meu par, por exemplo?
Mastiguei até liberar minha boca, enquanto ela me observava com os olhos
semifechados, numa posição confiante. — O cara barbudo de terno?
— Esse mesmo. Ele se chama Oliseu, do barco, não sei se você chegou a
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conhecê-lo por lá? Pois então, depois de uns giros por aí, ele tá caidinho por
mim.
— Eu vi o beijinho que você deu nele na despedida. O rosto dele estava
mesmo todo bobo. O Ícaro também ficou assim nas primeiras vezes em que
nos vimos, e olha só a nossa situação agora.
— Isso foi porque ao invés de focar nas coisas que te aproximam dele, você
focou naquilo que os afastam. Acha que eu contei ao Oliseu sobre o meu
turno preparando os lanches no café do porto amanhã? Ou sobre o tempo que
vou passar lá no Posto do Lago? Não, mas falei sobre o descanso na rede
depois do almoço, sobre o banho pelada no lago, a caminhada à beira-rio
depois da janta, a noite livre, essas coisas. Quem vem de fora não veio aqui
ver nosso trabalho, Elisa. Isso só vai dar gás para o que eles mais gostam de
fazer lá do outro lado, que é falar mal de nós, ridicularizando nosso modo de
vida pra que seus empregados não queiram se juntar a nós. Temos que
mostrar a eles que a vida aqui é uma delícia. Aliás, eu tenho que te perguntar
justamente isso: a sua vida aqui é uma delícia?
A resposta me veio automaticamente na mente, enquanto eu terminava de
partir mais um pedaço da lasanha, mas uma resposta pré-moldada. Tirei o
foco da vista, olhando fundo para o nada. O cansaço, a preocupação
constante, a sombra de Jones. — O que isso importa? Essa é a vida que eu
tenho. Não interessa como ela seja, pois tenho de aceitá-la como for.
— Que horrível, Elisa! Tá vendo, você precisa mudar. Como é que o Ícaro
vai conhecer o nosso lado mais agradável se você pensa isso? Depois ele vai
voltar para o outro lado com munição total pra nos difamar até o fim dos
tempos.
— Mas esse é o nosso lado mais agradável. Digo, aqui ninguém tem que
passar a vida toda limpando festa, sem poder curtir a festa. Aqui cada um
ajuda um pouquinho, e aí sobra mais tempo pra fazer o que quiser. Se essa é a
delícia de vida, não me interessa muito. Interessa que não é algo que me
aprisione, isso sim. Eu gosto da minha vida aqui.
— Ah, agora sim, entendi melhor. Só que pra fazer ele entender isso aí,
garota, boa sorte. Esse é o desafio que você escolheu?
— Eu não quero desafio. Quero só acolhê-lo bem. Quero que ele me
conheça, quero conhecê-lo.
— Então tá, terminou de comer? Quer mais? — Ela fez a pergunta já com a
mão sob o meu prato vazio, prestes a recolhê-lo. — Vamos lá procurar esse
seu Ícaro. Eu vou te ajudar.
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forte do que eu, que se dispunha a me ajudar a ser boa com Ícaro, perder a
doçura de repente. Ela passou o dia ajudando a preparar o acampamento,
verificando as instalações elétricas, decorando os espaços de lazer, limpando
cada módulo, e não quiseram nem saber da atenção que ela dedicou a eles.
Ícaro pôs a mão em meu ombro, caminhando ao meu lado, atrás de Laura.
Ele matinha o sorriso no rosto, mesmo em silêncio, e sua mão pesada parecia
me empurrar ao chão. Eu me senti só, tendo de enfrentar um gigante sem o
apoio de amigos, cedendo à sua vontade por pura fraqueza e necessidade de
atenção. Perdi o quarto, e o que mais perderia enquanto ele estivesse ali?
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8 - Ícaro
contas, não é?
— Não, não é pra sempre, a não ser que você queira. — Ela se juntou a
mim sobre a cama, ajustando a saia de seu vestido florido. — Você vai
dormir bem aqui, e amanhã nós vemos se você quer outro lugar. O
acampamento vai estar lá ainda. Mas no momento, tenta focar nas coisas
boas. Aliás, isso vale pra nós dois. Vamos focar nas coisas fáceis.
— Para nós dois? Quer dizer que você também tem estado incomodada?
— Sim, você sabe do que estou falando. Aquele papo lá na festa, sobre
trabalhar, ajudar o tempo todo... Essa sou eu. Às vezes penso em mudar,
mas... É difícil. Mudar para quê?
— Pra viver bem.
— Eu sei, mas mudar em que direção, em que sentido? Eu não sou muito
boa em ter novas ideias, sabe. Sou muito prática; eu gosto de pegar pra fazer
e resolver a situação. Então acabo seguindo o caminho dos outros. O Jones,
você sabe quem ele é... Pois então, eu tenho vivido feito ele, como uma
cachorrinha. Idiota, eu sei, só que eu acabei tomando gosto pela coisa. O
estilo de vida dele se encaixa com minha forma de pensar. Só que eu sinto
que tenho perdido oportunidades.
— Se você sente, então é só se afastar dele. Tem outros caras por aqui, não
tem? Ou uma amiga, não sei.
— Já tentei, mas não adianta. No fundo, é bom para a vila ter gente como
Jones e eu, e eles acabam me incentivando, ou simplesmente aceitam o meu
jeito de ser. Mas com alguém de outro lugar, é diferente.
— Tipo eu?
— É, tipo você. Entende por que eu quero ficar perto de você, mesmo
fazendo questão de manter distância? Porque eu sou assim, bitolada, e ao
mesmo tempo não gostaria de ser. Não quero trabalhar o tempo todo e perder
os prazeres da vida, como o Jones, mas também não quero só querer os
prazeres da vida e não trabalhar, como você.
— Ei, eu trabalho pesado, Elisa, não se iluda. Lido com assuntos que você
não conseguiria nem imaginar.
— O tipo de trabalho que você faz é inútil pro nosso mundo.
Apertei o pulso, enraivecido com sua afirmação descuidada. — Tudo bem.
Pelo jeito que você fala, você é uma mulher que precisa de um homem pra te
colocar no rumo.
— Parece mesmo, né. Só que não é, ou pelo menos eu não gostaria que
fosse assim. Eu não te quero como você é agora. Você vem de outro lugar,
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onde as pessoas passam a vida limpando festas sem participar delas, você
vem de território inimigo. Eu quero que você viva aqui conosco e aprenda um
pouco do nosso jeito. Eu gostaria que você mudasse um pouco, para que eu
possa mudar com você também.
— Isso me soa um pouco prepotente, não acha? Quem é você para querer
que eu mude assim, de uma hora para a outra?
— Eu sou uma mulher para quem você tem dedicado sua atenção nos
últimos dias. Uma mulher que precisa de sua ajuda, tanto quanto você precisa
da dela.
Que conversa de louco. Eu, que achava ter feito a escolha mais segura ao
fixar os olhos em Elisa, uma moça recatada e simplória, comecei a desconfiar
de sua sanidade. Ela era daquele tipo de obsessivas, daquelas que grudavam
nos amantes feito umas maníacas?
— Bem, vamos ver — eu disse, olhando para a cabeceira da cama atrás de
mim. — Acho melhor irmos dormir. Quer dormir comigo? Afinal, o quarto é
seu, e tem espaço na cama. — E mesmo com sua aparente loucura, eu tinha
uma missão a cumprir, eu tinha de envolvê-la em uma rede de falsidade para
abusar de sua hospitalidade até o ponto de quebrar todas as suas crenças
naquilo tudo. Seus olhos de mel, sua boca larga, a visão de seu rosto me
salvavam do amargor de sua fala esquisita.
— Não, Ícaro. Durma bem, em paz. Amanhã eu venho aqui para acordá-lo e
mostrar como funciona o café da manhã, tudo bem? — Ela se levantou com
calma, apoiando a mão em meu ombro.
Segurei seus dedos, deslizando-os em sua palma conforme ela partia. Que
mulher esquisita, que mulher! Joguei meu corpo sobre a cama, de sapatos e
tudo, e me pus a rir. Sem que percebesse, caí no sono.
depois vai ter que preparar algo pra você comer. Levanta... As pessoas estão
indo pra lá — Elisa disse, falando baixinho ao meu ouvido.
— Lá pra onde? — Eu me revirei sob o lençol, escondendo o rosto no
travesseiro.
— Pro refeitório. É hora do café da manhã.
— Eu como depois...
— Você sabe cozinhar?
— Não tem cozinheiro nesse lugar?
— Temos pessoas que cozinham, e que guardam tudo depois de certo
horário. Depois do horário, você é que tem que preparar o que achar melhor.
É isso o que você quer?
— Não... Não gosto de cozinhar. — Rendido à fala doce de Elisa, eu me
virei para ela, abaixando a coberta para me espreguiçar. — Você pode
cozinhar pra mim?
Ela abaixou os olhos, como se admirasse meu peito nu diante de si, e
lambeu os lábios. — Prefiro comer a refeição que prepararam. É gostoso,
vamos, você tem que experimentar. E é mais prático do que preparar algo só
pra uma pessoa.
Eu pisquei para ela, lentamente, com o cotovelo se dobrando sobre a minha
testa, o volume do meu bíceps roçando em minha bochecha. Preguiça,
preguiça boa, e uma mulher doida me encarando com o cabelo preso, pele
branca brilhando com a claridade do sol, envolta por uma camiseta regata
rosada. Queria abraçá-la e arrastá-la para a cama comigo, fazer com que ela
se deitasse e ali ficasse, até que eu me cansasse de dormir.
— Eu saio se você me der um beijo — eu disse, abrindo um largo sorriso,
muito maior do que meus olhos sonolentos.
Ela riu, balançando a cabeça. — Nada disso, Ícaro. Você já é grandinho,
vamos lá, sai dessa cama. Além do mais, você tá com bafo.
— Não precisa ser na boca, eu não falei nada sobre ser na boca. Você está
com as ideias erradas, viu. Pode ser em qualquer lugar. Um beijinho.
Ela apertou a bochecha, retorcendo os lábios. Abaixou-se sobre o meu
rosto, sombreando meus olhos. Fechei-os à espera de sua escolha, e ela
estalou a boca sobre a minha testa, num beijo seco e macio.
— Pronto, agora você levanta? — Suas orelhas se avermelharam, as
bochechas coraram.
— Agora eu levanto.
Desembaralhei-me do lençol, procurando minha roupa no chão. De cueca,
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recebi os raios de sol com minhas pernas expostas, abaixando-me para pegar
as calças. Olhei para atrás e Elisa me observava, de pé, admirando-me de
cima em baixo. Virei-me de frente, sorridente, curioso para conferir sua
reação ao me ver daquela forma. Ela cruzou os braços, mantendo o rosto
relaxado, continuando a sua análise do meu corpo.
— Vai ficar aqui me vendo vestir a roupa? Achei que quisesse manter
distância — eu disse, abrindo a aba da cintura da calça.
— Estou mantendo distância. Quer que eu saia?
— Nada, pode ficar. É bom que você já vai se acostumando.
Abotoei a calça e vesti minha camisa branca, deixando o blazer jogado
sobre a cama. Calcei os sapatos e lavei o rosto na pia do canto, enxugando-
me com uma tolha que repousava sobre a penteadeira. Penteei o cabelo com
os dedos, sem muito sucesso. Elisa abriu uma das gavetas sob o espelho,
retirou um pente, e me ajudou a jogar o cabelo para atrás, conferindo o
resultado junto a mim.
— Bom assim? — ela disse.
— Tá ótimo — eu disse, erguendo-me da minha posição agachada para que
saíssemos do quarto.
Fora do dormitório, seguimos um caminho perfumado pelo sabor de queijo,
com flores e árvores servindo apenas de distração para as imagens de comida
que começavam a se formar em minha mente. Atravessamos outro dormitório
e me deparei com um prédio cilíndrico em meio às árvores, com largas
varandas circundando toda a sua circunferência, onde mesas e cadeiras se
dispunham sobre um piso de madeira.
Muitos comiam pratos cheios, verdadeiras refeições, caldos e
macarronadas. Outros se satisfaziam com pães, tapioca e biscoitos, frutas e
cereais. Duplas e trios se sentavam debaixo das árvores e conversavam sem
pressa, deitados em rede ou sobre a grama.
Dentro do refeitório cilíndrico, uma mesa de buffet nos aguardava. Vi
Penélope e Oliseu sentados na varanda com Jones Laura, e acenei para eles
assim como Elisa acenou. Peguei um prato e me servi com as mesmas
escolhas de Elisa, indisposto a fazer caso de uma comida que eu não
conhecia. Enquanto eu preparava minha refeição, vi um casal se levantar de
uma mesa com os pratos e talheres, levá-los para uma área com pias em uma
das paredes, e lavarem tudo o que usaram. Pegaram um pano e limparam os
farelos da mesa que utilizaram. Seriam eles os garçons? Não, naquela vila,
era comum que todos se matassem de trabalhar.
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Eu não fui o último a acordar naquele dia. Depois de ter comido uma tigela
de mamão em cubos, eu vi com felicidade a chegada de Cássio ao jardim do
refeitório. Sua presença me alegrou de tal maneira porque ele estava
acompanhado por Glória, de braço entrelaçado ao dela, ele também só de
camisa, ela despojada de seu vestido de festa, pela primeira vez desde que a
conheci.
— Hm, lá vem o casalzinho — Penélope disse, retorcendo um sorriso
malicioso, falando baixo entre nós na mesa. — Esses daí não se largam desde
ontem.
— O amor é um espetáculo, né? — Laura limpou os farelos em seu pratinho
e os juntou com os dedos, pondo-os à boca. — O que a Glória mais queria era
encontrar alguém do lado de vocês, acreditam?
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— Muita coisa pra trabalhar. Você gosta de fazer o quê? Tem atividade pra
todo mundo. — Jones falou com voz gentil, adocicada, convidativa.
Balançou a cabeça para a frente, convidando-nos com um rosto tranquilo. Ele
se voltou a mim, encarou-me a fundo. — Você tem cara de quem gosta de
pegar sol e de comer. Tem trabalho bom nos Postos Agrícolas.
Penélope riu, debochada, ao lado de Jones, cobrindo a boca com a mão. —
E eu, eu tenho cara de quê?
— Você tem cara de quem gosta de roupa e beleza. A Oficina Têxtil tá
fechada por falta de demanda no momento, mas o grupo de teatro sempre
gosta de gente nova.
— Teatro conta como trabalho?
— Não se vive sem arte.
A resposta surpreendeu mesmo a mim. Desde que cheguei, devido ao
mundo que Elisa me apresentava, fui levado a ver aquele povo como um
pessoal embrutecido pelas dificuldades da vida, sem tempo para a
contemplação, para as frivolidades do lazer.
— Olha, pode parar com essa história, Jones! — Glória disse,
interrompendo-o. — Eles não são como nós, então não os obrigue a agir
desse nosso jeito tosco. São pessoas finas, dedicadas a outros tipos de
atividade, certo? O mundo deles separa as pessoas de outra forma.
— Ele não os está obrigando a nada — Elisa disse, tomando as dores de
Jones com um simples olhar. — Só está preocupado com o bem-estar dos
visitantes. O que vão ficar fazendo durante o dia todo? Não tem muita coisa
pra ver aqui. Então se quiserem nos ajudar...
— Eles vão passear, isso sim. Eu vou passear com eles, eu os levo para
conhecer tudo, pode ficar tranquila — Glória disse. — Se quiserem, podemos
assistir filmes, cozinhar, conversar, jogar alguma coisa, tomar banho de rio,
de lagoa, enfim, temos muito o que fazer. — Ela me encarou a fundo,
dirigindo-me um dedo em riste. — Vocês não precisam fazer nada do que
esses dois pedirem, viu? São nossos convidados, não nossos colegas de
trabalho.
— Mas uma hora eles vão se cansar, Glória, eles vão ficar entediados. —
Elisa insistiu, raspando o miolo do pão no pratinho molhado de geleia.
— Ei, não era você que queria mudar? — eu disse, rindo de Elisa. — Então
vem passear com a gente. Eu vou com Glória, e vai ser melhor se você vier
também.
— De jeito nenhum eu vou me meter nos trabalhos de vocês. Prefiro ficar
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qualidade, num vasto quintal gramado com um deck sobre um rio claro,
muito menor e mais tranquilo do que o grande rio por onde chegamos.
— Essa casa aqui não foi destruída depois da guerra e da divisão dos
mundos. — Glória esperou que saíssemos do ônibus e nos levou rumo à
construção, como verdadeira guia turística. — Pensaram em demoli-la para
deixar o mato tomar conta, mas acharam melhor preservá-la, só que abrindo-a
para que todos pudessem usá-la. Hoje em dia, é como se fosse a nossa casa de
campo. Aqui ninguém vai lhes perturbar com trabalho, e ainda podem ter um
gostinho do seu próprio mundo aqui do nosso lado.
— Disso eu gostei — Penélope disse, atracando-se ao meu braço enquanto
seguíamos os ladrilhos sobre o gramado.
— É, agarra essa mulher e não a deixe escapar, Cássio. — Puxei Cássio
para o meu lado. — Você fez um bom trabalho. É assim que precisamos
deixar essas pessoas.
— Mas ela sempre foi assim — ele disse. — Ela quer que eu a leve para o
nosso lado quando partirmos.
— Ô, que coitada. — Penélope riu com os olhos fechados. — Eu a levo, eu
a levo sim, pode deixar. Ela pode trabalhar limpando os meus sapatos. Vai
dar uma ótima empregada.
Encontramos um casal à nossa espera na sala luxuosa da casa. Eram Juliana
e Otávio, que nos receberam como se morassem no local.
— Fiquem à vontade, por favor. A casa não tem dono. — Juliana me
encarou como se esperasse uma faísca de meu olho, como se tivesse lido
meus pensamentos.
— Bom saber — eu lhe disse. — Estamos acostumados a ambientes como
esse. Lá de onde venho, todas as casas são como essa.
— Sim, eu sei — ela disse. — Por isso não terão dificuldades em passar um
dia agradável, não é? Depois eu paro pra conversar um pouco com vocês,
tudo bem? Estou escrevendo um artigo, e não posso interromper agora. As
ideias fluem que é uma beleza nesse lugar!
Ela e Otávio nos deixaram à vontade, como se partilhassem um
acampamento conosco. Fui o primeiro a tirar a roupa e mergulhar no rio de
cueca, chamando os outros homens a se juntarem a mim. Tremi com a água
gelada, mas logo me acostumei, e nadei à outra margem para me proteger na
sombra das árvores imensas da floresta. Havia cordas e bancos fincados sobre
a lama, pequenas construções feitas para nos propiciar um ponto de apoio.
Glória riu de nossos saltos, tirou a blusa e o short, e se jogou com a roupa
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íntima. Seu corpo esbelto, exposto assim sob o dia de céu claro e sol
brilhante, silenciou todos nós homens, que já a esperávamos na outra
margem. Fez-se silêncio enquanto ela andava e antecipava seu salto, todos
nós babando com suas coxas grossas e a cintura fina. Olhei para Cássio de
olhos arregalados.
— Vai dizer que não está gostando disso aqui agora? — eu disse.
— Rapaz... O pior é que estou sim. Gostando muito. — Seus olhos
brilharam no encontro dos de Glória, dela que nadava ao seu encontro.
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9 - Elisa
Uma coisa que o Ícaro precisava entender é que se nós não ajudássemos nas
tarefas, elas ficariam sem ser feitas. Como diziam as histórias das minhas
mães e avós, antes da guerra era muito comum falarem que que sem chicote
ninguém fazia nada. Contar com voluntários era pedir para que todos
morressem de fome.
Mas nossos familiares toparam mostrar que não era assim. Eles e elas
acreditavam que quando se para de tratar o outro como criança, e se permite
que ele lide com as consequências de seus atos, o outro amadurece. Então se
ninguém quer plantar comida, ninguém come. Se ninguém constrói a casa,
ninguém tem casa pra morar. E se todos partilham das tarefas, sobra menos
para cada um fazer, e assim tudo se torna menos penoso. Por isso, não foi por
amor ou gentileza que nos tornamos assim. Foi uma necessidade. Juntos
somos mais fortes.
A festa terminou na noite anterior, e ainda havia muita bagunça para ser
arrumada no pavilhão.
— Elisa, você varre? Laura, vai buscar uns panos, e traz uns três baldes
também. Eu vou lá pegar os rodos, porque tem uma área ali que tem que
jogar água. Não sei de onde tiraram tanta sujeira. — Jones foi rápido ao
sugerir um plano de ação, aproximando-se de um grupo de pessoas já
ocupadas na limpeza do local.
— Vai ajudar a tirar as mesas primeiro — eu lhe disse, observando a
morosidade com que uma dupla tentava arrastar uma das mesas pelo chão. —
Eu já vou ter que pegar a vassoura mesmo, daí aproveito e pego tudo.
— Gente do céu, tem até mancha de óleo no chão... — Laura se
surpreendeu ao dar com o pé numa grande mancha negra sobre o piso de
concreto. — Superaram minhas expectativas. Realmente, Jones, trinta
pessoas sujando tudo sem limpar são como um bicho solto por aí.
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— Eu falei... — Ele se afastou de nós, dirigindo-se até uma das mesas que
seria levada até o refeitório.
O pavilhão tinha como mobiliário fixo apenas algumas cadeiras, e nada
mais. As mesas, o pequeno palco da banda, os arranjos de flores, todos os
apetrechos colocados ali para a festa pertenciam a outros lugares e raramente
saíam de lá. Além de removê-los, portanto, o resto do trabalho era limpar um
chão quase tão extenso quanto um campo de futebol.
— Você está preocupada, Laura? — Trouxemos as vassouras e os baldes e
começamos a varrer o chão, empurrando a sujeira para pequenos montinhos
que um outro voluntário viria recolher depois com pá e sacola.
— Com os visitantes? Não, eles vão se divertir horrores hoje com a Glória.
Amanhã é que eles começam a se entediar, do jeito que são. — Ela deu de
ombros, cercando um montinho de massa salgada com a vassoura.
— Digo, preocupada conosco. Essa sujeira toda, você acha que vai ser
sempre assim enquanto eles estiverem aqui?
— Olha... Eu realmente não esperava que fossem ser tão desleixados assim.
Sempre é bom ter esperança, né? Só que nesse caso, azar o nosso. Nós é que
os convidamos.
— Não precisa ser assim. Eles são adultos, estão na nossa casa. Podem
aprender a ajudar.
— Nesse momento eu deveria ser aquela que te pediria pra parar de ser tão
bitolada e tal, porque você se preocupa demais com isso, mas agora que eu tô
aqui com a mão na massa...
— Eles vão acabar com tudo — Jones disse, interrompendo a conversa. —
Vai sobrar tanta coisa pra fazermos por conta deles, que os trabalhos mais
importantes vão ficar por fazer. Menos comida produzida, menos
manutenção, menos construção. — Ele pôs um balde cheio d'água no chão e
pegou uma vassoura do montinho que eu havia trazido.
— Talvez durante esse tempo nós tenhamos que ignorar o que eles
bagunçarem. Esse pavilhão, por exemplo... Precisávamos limpá-lo agora? —
eu disse.
— Quanto mais esperarmos, mais sujeira acumulada, pior pra limpar. —
Jones falou baixo, sem olhar para nós, enquanto derramava um pouco de
água ensaboada perto de um ralo no chão. — E mais, nós nem sabemos
quando eles vão embora, sabemos? Não dá pra estimar o quanto esperar.
— E se eles resolverem ficar pra sempre aqui? — Laura parou de varrer,
pôs as mãos sobre o cabo e olhou longe.
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— Mas nós temos inimigos, não temos? Eles! E aí, se não são inúteis, qual
é a utilidade deles?
— Criar novas histórias, Jones, sei lá. Você quer medir os outros pela
utilidade deles, é? Hm, interessante, achei que isso fosse atitude dos inimigos.
Eram eles que davam um preço pelos nossos pais e avôs, não eram?
Laura me encarava de olhos atentos, acompanhando de perto a minha
coragem de enfrentar o preconceito de Jones.
— A questão não é essa. Estávamos falando de outra coisa. — Ele
desconversou, balançando a cabeça.
— É que você acha que eles não têm salvação, que se algum deles passasse
a morar aqui conosco, ele não aprenderia a viver do nosso jeito. Já eu acho o
contrário. Se nós dermos atenção e cuidados a essa pessoa, ela pode aceitar o
nosso modo de vida, pode mudar e aprender coisas novas. Pode até encontrar
um sentido maior para a existência. — Eu falei baixo, de rosto corado,
quente. No fundo, eu pensava em Ícaro.
— Ficar sem fazer nada é muito entediante. Eu estou com Elisa nessa —
Laura disse, em tom calmo, como se não tivesse se abalado com a conversa
acalorada entre Jones e eu. — Depois de um tempo, acho que eles topariam
viver como nós.
— Tá, se é o que vocês acham ... Vamos terminar de limpar o chão. Afinal,
eles é que não vão vir aqui ajudar na cagada que fizeram.
No fim das contas, o tempo gasto na limpeza do pavilhão foi menor do que
o previsto. Novos voluntários deram as caras com rodos e vassouras de outros
prédios, e logo terminamos a limpeza geral. Por conta disso, pegamos três
marmitas no refeitório, para almoçarmos depois, subimos em um par de
quadriciclos e dirigimos até o Posto da Mata, uma zona agrícola distante da
vila, onde um mutirão de colheita de cenouras nos aguardava para ajudar.
Três outras pessoas conversavam sob a varanda da casa de apoio, entretidas
numa discussão acalorada sobre a festa da noite anterior. Jones apareceu
diante deles batendo palmas, disposto a começar logo os trabalhos. Os três
voluntários se ergueram e se juntaram a nós, pegando um carrinho onde
depositaríamos a colheita do dia.
Almoçamos na casa, ouvindo a recitação de um poema de Ivete, uma peça
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na qual ela trabalhava durante o próprio trabalho na terra. Suas palavras nos
trouxeram um momento de beleza, proporcionando-me um olhar gostoso
sobre o que realizávamos juntos ali, aquele trato com a terra, a riqueza que
coletávamos e disponibilizávamos aos nossos semelhantes. Uma grande rede
de produção, uns cuidando dos alimentos, outros da energia, outros do
esgotamento, outros da medicina, outros outros da limpeza, outros da
construção, outros da arte. Uns misturavam as áreas, faziam mais de uma
atividade, como eu, outros se focavam e exerciam profissões. Um
emaranhado de beleza e cuidado.
Voltamos ao trabalho sob a cantoria de Ivete e Laura, as duas improvisando
um dueto com canções do campo, contagiando até mesmo Jones com suas
palavras de felicidade e cansaço. Debaixo do meu largo chapéu, redondo com
aba além dos ombros, eu caçava as cenouras mais encorpadas na horta e as
depositava no carrinho. Cada um de nós se revezava para levá-lo de volta à
casa, entornando a colheita numa caçamba que depois seria alocada sobre um
caminhão.
Quando chegou a minha hora de levar o carrinho, Jones foi comigo.
Ajudou-me a derramar as cenouras, e depois pôs a mão no meu ombro. —
Podemos conversar? — ele disse.
— Sim, claro. — Eu me surpreendi com a pergunta, enrijecendo o pescoço.
— Mas temos que levar o carrinho de volta.
— Pode deixar que eu levo. Espere aqui, tudo bem?
Acenei com a cabeça e o vi partir. Subi a escada da sala, deitando-me em
uma das redes do mirante do segundo andar. Um salão amplo e aberto,
permeado por redes penduradas em colunas, e algumas poltronas. Pelas
paredes envidraçadas, via-se a mata e as montanhas ao horizonte.
Jones se juntou a mim ao voltar, escolhendo uma rede ao meu lado. Sem
olhar em minha direção, com o rosto encoberto pelas abas da rede, ele pôs as
mãos sobre o peito.
— O que está acontecendo com você? — ele disse.
— Em que sentido? Com tanta coisa diferente acontecendo por aqui, você
não tá achando que eu não me deixei afetar por nada, tá? — Pus o rosto sobre
o tecido que me separava de sua visão, buscando seus olhos sem encontrá-
los.
— Não estou, e é por isso que queria te perguntar isso. Você tá diferente. —
Ele ergueu uma mão sobre o peito, como se estivesse sentado num divã.
— Isso te incomoda? Mudar é bom, não é o que se diz?
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sua sombra.
— Não te obriguei a nada, Elisa, por favor.
— A culpa não é sua. Eu preciso mudar, eu, eu. Só que se eu ficar sempre
por perto das pessoas daqui, eu não vou conseguir pensar diferente, porque
eles estão todos no mesmo lugar que eu, já acostumados ao meu modo de ser,
e vão estranhar se eu parar de fazer o que faço. Não quero parar de ajudar,
como o pessoal do outro lado faz, não é isso. Quero encontrar um meio-
termo. Pra isso, eu preciso conviver com novas pessoas, preciso mudar de
ares. Você me entende?
Ele respirou fundo, num ruído pesado que reverberou pelo salão. — Eu
sinto muito pelo que tenho te causado. Eu realmente... Eu não acho que vou
mudar meu ritmo, minhas ideias. Ainda desconfio desse pessoal do barco,
ainda acho que eles não deveriam estar aqui, mesmo com algumas qualidades
que eles têm.
— Qualidades? O que você descobriu deles? — Quase me levantei para
ouvi-lo mais perto.
— Nada, nada de mais. Aquela Penélope, hm, ela tem seus charmes. —
Jones apertou o peito com os braços, como se quisesse sumir dentro da rede.
— Digo, a máscara dela é horrível, esse personagem que ela faz enquanto
está entre os outros. Mas eu vi uma fragilidade nela, uma pequena fraqueza
que me deu vontade de escrever uma poesia. Isso é bom, não é?
— Isso é maravilhoso, Jones! Escreva, por favor, escreva sobre isso.
Mesmo que não mostre a ela, me mostre. Eu quero ver.
— Eu vou tentar. Mas, Elisa... Nós estamos bem?
— Estamos se você entender o meu ponto de vista. Vai respeitar os meus
novos caminhos?
— Claro. Posso até não concordar com tudo, mas, enfim, quem manda na
sua vida é você. Tem mais é que me ignorar mesmo.
— Então é isso que vou fazer, hein. Te ignorar quando vier enchendo a
paciência, tudo bem?
— Tudo bem — ele disse, abrindo a rede para me mostrar seu sorriso. —
Obrigado por confiar em mim.
Jones tirou a mão de dentro da rede e a esticou em minha direção. Eu
estiquei a minha e fui ao seu encontro. De mãos dadas, balançamos um
pouco, aliviados pela conversa.
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me levar pra cama ontem mesmo, acredita? Tipo, e as conversas sobre a vida,
sobre a Utopia, sobre as integrações ecossistêmicas dos agrupamentos
humanos? Ele nem se deu ao trabalho de descobrir o que me excita.
— É, o Ícaro veio com uma atitude parecida — eu disse, abaixando os
lábios, dando um teco no pesinho da panela de pressão em que a beterraba
cozinhava.
— Viu só? Personagens. Uma horda de flores cheias de tesão. Sim, olha que
imagem engraçada, porque é isso o que eles me parecem. Sei que é uma peça,
só não sei pra quê. Pra gozar com a gente? Ótimo, isso pode ser muito bom,
mas precisaram vir até aqui pra encontrarem parceiros?
— Talvez tenham se cansado das pessoas do outro lado. É normal
querermos descobrir novos sabores, não?
— Eu que te pergunto. Qual foi a última vez em que você se apaixonou?
Virei o rosto para longe dela, sentindo as orelhas queimarem. — Ah, faz
tanto tempo.
— E cadê os novos sabores? — Ela me encarou com o rosto vitorioso,
misturando os ingredientes já prontos da pasta. — Viu, nem todos querem
descobrir novos sabores.
— Tá, então por que você disse que o Oliseu não está apaixonado por você,
mas você sim?
— Eu gosto dessa peça, eu fico fascinada pela aparição dessa gente. Quero
descobrir o que vieram fazer aqui, de preferência de perto, bem perto de um
desses atores. Isso me excita, de certa forma. Mas ele, por outro lado, fala
comigo como se cumprisse um protocolo. Falta calor nas perguntas dele,
sabe? Tudo frase feita, sem personalidade. Como personagem, ele é muito
fraco. Como agente de uma peça maior do que ele próprio consegue
compreender, porém, ele é fascinante.
— Queria ter esse seu olhar, Laura. Mas conversando com o Ícaro, eu só
consegui ver um cara precisando conhecer um novo modo de vida.
— Querendo ou precisando conhecer?
— Precisando. Talvez ele não ache isso, mas essa vida que ele leva no outro
lado também não o satisfaz. Eu sinto isso.
— Ah, então você também percebeu algo por trás dele.
— É, percebi sim. Só que é algo bom, e não ruim. Ele não seria capaz trair
minha confiança. Enganar sim, mas trair não.
— Não é excitante? Gente, eu mal posso esperar pra ver o que esse povo
está aprontando para nós!
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simples, mas... Foi com carinho. Eu ainda sei pouco sobre você pra te dar um
bom presente. Enquanto isso, espero que goste de comida.
— Você me surpreendeu. Melhor do que isso, só se você aparecesse
pessoalmente para me entregar o sanduíche.
— Não, eu queria que vocês passassem um dia entre vocês, para que se
sentissem seguros estando aqui. Eu só iria atrapalhar.
— A Glória estava conosco. Ela se divertiu pra caramba, e todos gostaram.
O Cássio que o diga. Se ela foi, por que não você?
— É, mas ela é um caso à parte. Era o trabalho dela mostrar-lhes a nossa
vida. Agora você nos conhece um pouco melhor.
— Verdade. Foi bom saber que vocês não destruíram tudo o que havia aqui
antes da guerra.
— Nossas mães e avós não destruíram quase nada, Ícaro. Foram as bombas
dos seus avôs que destruíram tudo.
Ele suspirou. — Então foi mútuo. Nós também perdemos muita coisa no
nosso lado.
— Como o quê?
— A nossa paz.
Vi em seu rosto uma expressão inédita, como se por trás daquela pele
áspera e com barba por fazer batesse um outro coração. Uma angústia se
expôs em suas palavras, escapando da prisão de seu personagem, se é que ele
realmente atuava para mim.
— Que bom que você está aqui. Quem sabe assim você pode reencontrar a
sua paz — eu disse.
Eu me inclinei sobre ele, encostando a testa em seu braço. Ele pôs a mão
em minhas costas e tateou os músculos dos meus ombros. Parou, mantendo
contato com minha pele.
— Suas costas estão rígidas. Você parece tensa. Tudo bem com você?
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10 - Ícaro
Em parte, eu me senti culpado por ter acordado Elisa. Por outro lado,
terminar o dia sem vê-la poderia atrapalhar meu objetivo de conquistá-la para
mim. Precisava agradecê-la por aquele sanduíche que ela tinha me enviado,
enquanto o sabor da memória ainda estivesse fresca em minha mente.
— Meu dia foi bom, mas um pouco tenso. Minhas costas estão duras? —
ela disse, mantendo-se encurvada sobre os joelhos.
— Em algumas partes, sim. São sempre assim? Bem, por que não me diz o
que houve, antes de mais nada?
— Conversei com o Jones. Lembra daquelas coisas que eu te contei, sobre
querer mudar e precisar de gente nova pra me ajudar nisso?
— Gente nova como eu?
— Isso, como você. Abri o coração com ele, e ele próprio não me quer
como sombra. No fundo, ele é um cara especial.
— O que isso significa? Desculpa, eu me perdi aqui. O que te deixou assim
tão tensa? — Apertei os músculos de seus ombros, esfregando o polegar
debaixo de sua fina camisola de algodão.
— Ah, o calor da conversa, essas coisas. Você já deve ter visto que por aqui
nós somos bem diretos com o que temos a dizer, não deve? Só que isso não
significa que não haja tensão entre nós. Querendo ou não, foi um confronto, e
que bom que ele me entendeu. Estamos em paz.
— Certo. Imagino que tenha sido a sua forma de se desfazer de uma amarra,
deixando clara a sua nova visão e se assegurando de que ele estivesse ciente
disso. Desse jeito, você e ele podem voltar a conviver sem atritos, um
sabendo onde o outro está pisando.
— Exatamente... Ai! — ela disse, recolhendo os ombros com um aperto de
minha massagem.
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amanhã, eu posso mudar de ideia, e você vai achar que eu sou mentiroso. A
última coisa que eu quero que você pense é que sou mentiroso.
— Tudo bem. Então vamos dormir. — Com um risinho, ela apagou a luz.
— Elisa... Eu não consigo ver nada. Pode acender de novo só pra eu sair?
— A escuridão tomou conta do nosso cubículo, como se eu estivesse cego.
— Deita e dorme. Tem espaço pra nós dois aqui. Fica quietinho e dorme,
vai. Sua experiência de viver ao meu lado começa hoje. Dormir no
acampamento, que aventura, hein?
Eu dei um riso baixo, e segurei o resto das risadas que ameaçavam vir à
tona. Se a experiência começava, então eu poderia sugerir uma mudança? Eu
poderia beijá-la, acariciá-la por baixo da camisola, despi-la e lambê-la toda,
madrugada adentro? Por um segundo abri a boca para oferecê-la a sugestão,
mas me deitei e não a senti colada em mim. Eu tinha espaço no colchão, eu
estava ao lado de uma mulher que tinha acabado de se abrir à minha
presença, e apenas à presença. Se eu me forçasse sobre ela, adeus qualquer
chance de contato.
Por isso, deitei-me de lado sobre o longo travesseiro que servia às nossas
duas cabeças, e caí no sono, de calça e tudo.
— Desculpa, eu deveria ter pedido a sua ajuda, eu sei. É que aqui nós temos
o costume de já ir fazendo as coisas, porque todo o mundo já sabe o que tem
que ser feito, e... E... Bem, você tem que me lembrar de te falar o que tem pra
fazer.
— Fica tranquila, fez um bom trabalho. Meus parabéns.
Ela sorriu de lábios apertados e retorcidos, captando a minha brincadeira.
Pegou de volta a sua camisola e partiu em frente, levando-me para fora da
tenda. Continuei a pentear o cabelo para atrás, incomodado por me expor em
público todo desarrumado. Elisa, pelo contrário, pouco parecia se importar
com seu cabelo desgrenhado, com mechas pretas amassadas sobre o contorno
de sua cabeça, e vários fios rebeldes destoando de seu corte liso.
Entramos numa tenda ao lado da nossa, por sorte, de piso de plástico
corrugado, levemente inclinado em direção a um ralo no meio do ambiente.
Pias estavam postas em uma das laterais, e módulos com sanitários, estilo
banheiro químico, estavam em outra. Fui em direção à pia, mas antes que eu
pudesse abrir a torneira, Elisa se adiantou a mim, ligou a água, abaixou meu
pescoço com a mão e banhou meu rosto.
— Peraí, você quer ou não quer que eu faça as coisas, hein? — eu disse,
levantando-me da pia, cobrindo o rosto molhado com as mãos.
— Ah, então você já tá desperto, ótimo. Isso, vai lá, que bom que não
precisa de ninguém pra cuidar de você. Por um momento fiquei com medo de
que até pra se limpar você dependesse dos outros no seu lado do mundo.
— Para de besteira, Elisa, você... Ah, você tá brincando comigo, né? —
Esfreguei o rosto com muita água, interrompendo a lavagem para encará-la
ao meu lado.
Ela foi a um armário no canto da tenda, abriu uma portinha, retirou uma
escova e uma xuxinha, e veio se molhar junto a mim. — Talvez eu esteja
brincando. Mas, só por via das dúvidas... Você sabe se limpar sozinho, né?
— Claro que eu sei! — Desliguei a torneira, rindo da cara dela. — Tá, onde
tem uma toalha?
— Ali no armário, onde eu peguei a escova.
— Por que não trouxe logo?
— Pra você ter o que pegar.
Fui aonde ela me indicou, encontrei uma toalha dobrada e limpa e sequei o
rosto. Levei-a até Elisa, para que ela também pudesse se enxugar. Cobriu seu
rosto com o tecido espesso e o esfregou grosseiramente, deixando partes da
raiz de seu cabelo ainda molhadas. Suas bochechas estavam pálidas, sua pele
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enxuta e lisa como a casca de um pêssego, seus lábios rosados e claros. Ela
pôs a toalha sobre o ombro, de olhos fixos aos meus. Eu, hipnotizado por
seus simples cuidados matinais, resolvi entrar num módulo sanitário antes
que ela pudesse brincar com meu encantamento.
Terminei de mijar, saí e vi que ela acabava de se pentear. Lavei as mãos, ela
guardou sua escova no armário, mas manteve a toalha em mãos, junto à
camisola. Andamos juntos até um prédio nas margens da praça, uma espécie
de lavanderia e vestiário. Ela pôs a toalha sobre um balcão, dando bom-dia a
uma pessoa que transitava por lá, e guardou a camisola em um armário com
algumas roupas que eu já a tinha visto usar.
— Esse é o seu guarda-roupas? — eu disse, impressionado pelas fileiras de
armários nos corredores daquele prédio.
— É, tenho preferido guardar minhas roupas aqui ultimamente — Ela
levantou uma blusa da prateleira para me mostrar o conteúdo.
— Não acha ruim ter de vir buscar o que vestir tão longe?
— Acho não. É perto. Tem gente que põe armário no quarto, mas eu não me
importo. É bom que aqui já fica perto de onde vai lavar e secar.
Depois dali, caminhamos por uma passarela coberta até o refeitório. O
clima estava se fechando, ameaçando chover. Sem carros por perto, o fato de
contar com caminhos cobertos para chegar aos lugares me deixava aliviado.
No meu lado do mundo, não conhecia nenhuma cidade em que as pessoas
pudessem se deslocar pelas ruas sem medo de se molhar.
Fizemos nosso café da manhã como no outro dia, porém sem a companhia
de conhecidos. Meus amigos do barco provavelmente acordariam mais tarde,
e era certo que os companheiros de Elisa já tinham comido.
— Se seus amigos demorarem mais, terão de comer as sobras, ou então
prepararem eles mesmos o café da manhã — Elisa disse, saboreando um
pedaço de pão com queijo.
— Talvez os seus amigos do refeitório abram uma exceção pra eles, não?
Afinal, vocês são pessoas muito solidárias.
— Ei, a comida tá lá, é só prepararem. Ninguém aqui vai ficar controlando.
Isso é solidariedade, não?
— Você não tem... Err... Como posso dizer? Você não tem nenhuma
condição cognitiva grave, tem? — ela disse, vasculhando a terra.
— Quer saber se sou idiota? — Cruzei os braços ao seu lado, pisando sobre
algumas ervas cujo nome eu não conhecia.
— Se tem essa consciência, então você não é. Pois bem, eu sei o que você
está fazendo. — Ela enroscou os dedos em um pé de alface vistoso e
começou a tirá-lo.
— Estou tentando ajudar. Não é isso?
— Não. Você quer atrapalhar. Abusar da nossa boa vontade, bagunçar
nosso trabalho, nosso modo de vida, não sei. Algo desse tipo.
Meu coração gelou, despido assim do meu papel. Apertei os olhos e o
maxilar, em silêncio, esperando que ela se explicasse melhor.
— O seu problema — ela disse — é que você acha que somos uns bobos
por aqui. Acha que vamos comprar qualquer lorota que você inventar, acha
que somos inocentes ao ponto de cairmos em qualquer enganação. — Ela
arrancou o pé de alface e o pôs sobre meu peito, para que eu o segurasse.
Resisti de braços cruzados, até que ela insistiu de novo e eu o segurei. — Mas
vai precisar ser mais criativo e sutil, se quiser passar a perna em nós, já vou
avisando.
— Se acha que eu sou falso assim, por que ainda não me chutou daqui?
— Porque você precisa conhecer a vida aqui do nosso lado. Se quer nos
enganar, é porque alguém te disse que somos maus, que fazemos coisas ruins,
e você quer nos prejudicar. Minha única arma contra isso é mostrar que não
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sou má, não sou um monstro, muito pelo contrário. Sou uma pessoa que te
escolheu pra ser meu amigo e mudar minha vida.
Eu me senti o maior idiota do mundo. Que plano burro, que missão mais
sem propósito, impensada. Era verdade, nós do outro lado pensávamos no
povo de Elisa como se fossem deficientes, como se não fossem gente, e eu
acreditava em tudo o que me contavam. Como poderiam viver sem ter
posses, sem líderes, sem luxo? Idiotas, só podiam ser idiotas, doentes. No
fundo, toda essa máscara escondia apenas o nosso próprio despreparo.
Montamos uma missão toda baseada numa visão errada deles, e agora eu
estava ali, confrontado com uma pessoa que sabia de tudo e que me vencia a
cada duelo. Valia mesmo a pena provocá-la para que perdesse a linha e
abandonasse seus princípios? Eu precisava conversar com meus
companheiros e botar a cabeça em ordem.
Enchemos alguns carrinhos de alface e depois os empilhamos nas caixas
que seriam levadas à vila de caminhão. Elisa agia sem requisitar a minha
ajuda, mas ao seu lado eu tentava copiá-la, um tanto sem jeito em acomodar
hortaliças e em empilhar caixas, nunca tendo feito algo do tipo. Não me
agradeceu, não me olhou com candura. É como se eu não tivesse feito nada
mais do que a minha obrigação, e aquela falta de reconhecimento me
desestimulava a fazer mais. Não fosse pela vergonha que eu sentia ao seu
lado, teria me sentado na varanda e apenas assistido ao término das
atividades.
— Quer dar uma olhada no Posto da Rocha, que o Heitor falou? Talvez
você se interesse... — ela começou a dizer, limpando com as costas da mão
uma gota de suor que escorria pelo pescoço.
— Elisa, não. Quero que você me leve a um lugar bonito para ficarmos de
bobeira por um momento. É seu momento de descanso. — Eu abaixei a voz,
quase sussurrando em seu ouvido.
Ela lambeu os beiços e apertou os lábios, balançando a cabeça. — Tudo
bem, é a nova vida, não é? Isso aí, vamos aproveitar o dia nublado. Tem um
lugar aqui perto que talvez você goste.
Subimos nas bicicletas, pedalamos para longe do Posto das Pitangueiras,
deixando para atrás a extensa área de hortaliças. Entramos numa trilha no
meio de uma mata fechada, escurecida pelas copas volumosas do teto de
árvores. Elisa virou num caminho de terra, mudou para uma marcha leve,
preparando-se para uma subida, e por quase cinco minutos nós perdemos o
fôlego escalando um morro.
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contaria ou não sobre partes do meu passado. Ela pôs a mão grande sobre a
minha coxa, pousando sua palma delicadamente com os dedos. Eu não resisti.
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11 - Elisa
pouco a gastação.
— Isso, de certa forma, eu até consigo entender. Meus pais me deixaram
aqui pra cuidar de uma situação emergencial em outro lugar também, e seus
amigos cuidaram de mim aqui na vila, onde a situação estava mais tranquila.
— Pois é, só que um dia alguém deu a ideia de enviarem alguns dos filhos
numa excursão no outro lado do mundo, e cá estamos. Não tem dinheiro pra
se gastar por aqui, tem?
— Não tem, mas poderia ser perigoso, não? Do jeito que vocês falam sobre
nós, não ficaram com medo de que os atacássemos? Somos inimigos, não
somos?
— Claro que ficamos com medo, mas sabemos que existe um equilíbrio
entre as duas partes, e se vocês atacassem, sofreriam uma retaliação.
— Como viu, não atacamos. E se um de vocês não quiser mais voltar para o
outro lado? Isso não seria ruim?
— Olha, desconfio que seja justamente isso que os velhos querem. Menos
um herdeiro. Eu estou aqui como líder da viagem. Na verdade, eles chamam
isso de missão. Fizeram-nos acreditar que estamos aqui pra bagunçar a vida
de vocês, pra sobrecarregar a cidade e fazer vocês desistirem dos seus
valores.
— Bem que eu desconfiava. Tô falando, vocês nos achavam uns burros, e
agiram com tanto exagero que logo percebemos o que estava acontecendo.
— É, pelo visto foi isso mesmo. Mas tá vendo que missão estúpida? Eu
mesmo já não sei mais o que estou fazendo por aqui.
Está comigo. Tá conhecendo a minha vida.
O sol se erguia a pino, caindo suave sobre nós, debaixo da renda natural
trançada com as pequenas folhas do flamboyant. O vento ainda soprava
fresco, mas a pele de Ícaro se umedecia com o óleo da perspiração. Ele suava,
numa conversa que parecia mais difícil para ele do que para mim.
— Eu não deveria ter falado essas coisas. Vão pensar que eu estraguei a
missão. — Ele passou a mão em seu rosto, alisando os cabelos loiros.
— Agradeço por ter contado. Mais pela conversa do que pelas
consequências que ela pode trazer. Afinal, o que vai mudar a partir de agora?
— Eu dei de ombros, levantando uma sobrancelha.
— É verdade. Tudo vai seguir pelo mesmo rumo. Não pense que está a
salvo só porque sabe pra que viemos. No fundo, somos uma força muito
maior do que as nossas intenções.
— O que você quer dizer? — Meu coração palpitou, receosa com a ameaça
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velada.
Ele se levantou do banco, retirando minha mão de sua perna. — Isso você
só vai ver com o tempo. Seu coração talvez seja puro demais pra admitir que
existam pessoas más nesse mundo.
— Eu não acredito em pureza. Nossa sociedade não tem nada a ver com
pureza. — Eu me levantei ao ver que ele pegava a bicicleta e se preparava
para montar nela. — Ei, por que já está indo embora? Tô adorando a
conversa.
— É, eu sei que está adorando. Mas eu não. Você me faz sentir um idiota.
— Ele pôs o pé no pedal e partiu.
— Ícaro, o que houve? Você não é um idiota, eu nunca pensei isso. — Corri
para cima da minha bicicleta e me joguei pela trilha atrás dele. — Ei, me
espera!
— Eu preciso de um tempo, tá bom? — Seu freio chiava com a pressão de
seu aperto, segurando-se para não descer o morro a toda velocidade.
— Mas o que eu disse de errado?
— O problema não é esse! O problema é isso aqui tudo, essa viagem, e... E
você! O problema não é o que você disse. É o que você é!
Meu cabelo esvoaçava e batia em minhas bochechas, roçando no meu
pescoço, irritando meu rosto fechado. — Então para essa bicicleta e me
explica direito o que você pensa! Não vamos conseguir nada se não
conversarmos sobre isso.
Ele parou a bicicleta de imediato, arrancando poeira da trilha à minha
frente. Desviei rapidamente para o lado e apertei o freio ao máximo. Larguei-
a no chão, subi dois passos em direção a Ícaro. Ele me esperava com a
bicicleta inclinada sob a cintura, de pés no chão.
— Elisa, eu te peço pra deixarmos isso de lado. Pelo menos por hoje. Você
não consegue me dar um tempo? — Ele ergueu o peito, abaixando a voz.
— Hoje é o dia em que você veio me acompanhar. Ainda nem almoçamos e
você já quer ficar longe de mim? Eu sou tão insuportável assim? Só me diga
o que eu fiz, vamos lá, porque senão eu fico perdida, eu não consigo en... —
eu tentei dizer, gesticulando com os braços esticados, girando as mãos ao
redor do corpo.
— Eu já disse coisas demais por um dia. Coisas que eu não deveria ter dito.
Você me faz sentir estranho, fraco, não sei. Por um lado, queria mais dessa
sensação, mas por outro, odeio me sentir incapaz. E é assim que me sinto
aqui, nesse lugar de merda.
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Meu queixo caiu, surpresa com suas reviravoltas. — Eu... Eu não... Poxa,
eu não sei o que dizer. Eu só queria te mostrar a minha vida.
— Eu sei. Não é culpa sua. Você é quem você é, e tudo bem assim. Não
quero te mudar.
Abaixei os olhos, enrosquei uma mão na outra em frente ao meu ventre,
envergonhada. Eu tinha ousado querer que ele mudasse, negando-lhe a
liberdade tão cara a todos nós. Apertei os lábios.
— Viu, eu preciso de um tempo pra pensar. Depois a gente se encontra de
novo.
Acenei com a cabeça, virando-me de costas a ele. Tirei a bicicleta do chão.
Esperei que ele passasse na frente, e sem pressa eu caminhei atrás,
carregando a bicicleta. Quando ele sumiu do caminho, pedalei de volta à vila.
Almocei no refeitório com alguns conhecidos. Nenhum de meus amigos se
encontrava por lá naquela hora, pois provavelmente iriam almoçar nos postos
de trabalho com os quais tinham se comprometido. Onde Jones estaria?
Depois que Ícaro me deixou, dizendo que eu era o problema, quis muito um
abraço de Jones. Ele me aguentava, ele me queria por perto.
Dei uma olhada no computador do meu dormitório, e vi que Jones ajudava
no plantio de batatas no Posto da Rocha. Cansada de tanto pedalar de manhã,
procurei um quadriciclo na praça dos veículos, mas estavam todos ocupados.
Aguardei o ônibus passar, por quase meia-hora, e em quinze minutos de
estrada, cheguei para ajudar.
— Bem-vinda ao novo Posto da Rocha — Jones disse ao me ver, erguendo
a mão de dentro do trator elétrico. — Que bom que decidiu se juntar a nós.
— Então essa vai ser a plantação de emergência? — Eu pisei sobre a terra
arada rumo ao trator e subi na traseira do veículo, juntando-me a ele.
— Tudo isso que você tá vendo aqui, e pra lá vamos ter outros legumes. —
Ele abriu os braços e apontou para os lados, para a grande área de terra
pelada, sem mato, com solo revirado e pessoas caminhando com sacos de
mudas e sementes.
— Você acha que vai ser o suficiente?
— Os estudos estimam que sim, mas consideram o consumo dos visitantes
como equivalente ao nosso. Se fizerem festa todos os dias, talvez passemos
da margem.
— Mas pelo menos não vamos ter de racionar.
— Comida não. O problema são as atividades que tivemos de interromper
pra cuidar dessa área. Se pelo menos eles ajudassem...
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ajude a ser quem você não quer ser mais? Já pensou nisso?
— Isso não vai acontecer. É impossível duas pessoas serem iguais. E você
não gosta do nosso modo de vida por aqui, então vai sempre querer melhorá-
lo. Isso é bom, acredite. De vez em quando, precisamos de um olhar externo
pra nos tirar da paralisia, não acha?
Ele silenciou a fala, usando a boca para esmagar a comida, processar
nutrientes e se fortalecer. Laura gritou ao ver Glória e Cássio chegando ao
refeitório, saiu correndo para puxá-los a nós. A mesa cresceu, e meu
momento com Ícaro foi interrompido.
— Sim, e eu estou brincando com eles também, ué. Quer vida melhor? —
Ela olhou para cima, mirando no céu estrelado, na lua minguante que dava as
caras em meio à escuridão.
— Ah, ufa, então você sabe. Fiquei com medo de que você fosse cair nas
conversas deles.
— Elisa, meu bem, que conversas deles? Sabe o que o Cássio conversa
comigo?
— Não.
— Ele me chama de coisas bonitas, ele me faz sentir como eles. Fala em me
levar para conhecer o mundo dele, em me tornar uma pessoa poderosa por lá,
tudo o que eu sempre quis. Então estou aproveitando.
— Mas esse que é o perigo, Glória. Se eles te levarem pra lá, você não vai
ser tratada como eles! Eles usam dinheiro, e nenhum de nós tem riquezas.
— Fale por si. Eu tenho minhas riquezas. E ele me daria uma parte do que
ele tem, tá achando o quê? Cássio é um homem de bem.
— Você tá feliz com ele, né? Mesmo sabendo que ele está só brincando
com você?
— Olha, Elisa, tá, vamos supor que tudo isso aqui seja um grande teatro que
eles montaram para nos enganar, sabe-se lá por quê. Sim, vamos supor.
Ainda assim, eu não posso curtir essa fantasia? É o mais perto que eu já
estive de viver a vida do outro lado, e você sabe como eu sou. Se no final das
contas eu descobrir que ele estava mentindo, fazer o quê? Pelo menos eu
aproveitei um pouco do que eu queria.
— E o seu coração? Como você ficaria depois dessa desilusão?
— Eu ficaria arrasada, passaria dias chorando. Eu sei. Mas, sabe, algo
dentro de mim me diz que eles estão aqui porque querem de verdade, porque
precisam de nós. Senão pra que se dar a esse trabalho? O meu amor, essa
minha paixão incondicional pelo mundo deles, isso pode nos fazer bem, não?
Quem sabe eu não conquiste um coração assim?
— Ai... Eu também acho isso, Glória. Mas e se nós formos muito
inocentes? E se eles forem capazes de maldades que nós nem conseguimos
imaginar, só pra nos verem sofrer?
— Não, eles não... Qual é a graça? Nós não fizemos nada pra eles. Eles são
pessoas boas, Elisa. Quer que eu te mostre?
— Mostre o quê?
— Vem pro meu quarto.
Ela me puxou pela mão e me levou pelo caminho até um dos dormitórios,
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onde ela dormia naqueles tempos, no mesmo prédio em que eu ficava, antes
de ir para o acampamento. Ao acender a luz do cômodo, tomei um susto com
a bagunça. Cama desarrumada e manchada, chão cheio de terra, roupas
largadas por todos os lados, lenços de papel espalhados, e um cheiro de suor
e sexo nauseante.
Antes que eu pudesse comentar algo sobre esse susto, porém, ela me
arrastou para frente de sua penteadeira, abriu a gaveta e retirou um colar de
dentro dela. Um fio de prata longo, um pingente de ouro incrustado com uma
pedrinha brilhante, um diamante.
— Ele me deu esse colar, ele disse que só poderia dar esse presente a um
grande amor. Eles são pessoas boas, Elisa, não falei? Eles também amam.
Suspirei num misto de pena e preocupação. Ela me parecia ingênua,
deixando-se levar por um presente sem valor em nosso mundo, por um gesto
que poderia muito bem ser encenado, numa caricatura perfeita de tudo o que
havia de errado no outro lado. Mas Glória era bela em sua crença no amor,
mergulhando em um sentimento contra o qual eu não tinha o que dizer. Eu
também acreditava.
— Eu quero que você também use esse colar, quero que todas nós
possamos usá-lo. Ele é lindo, não é? — Glória disse, abrindo o fecho da joia
que segurava, envolvendo-a sobre meu pescoço.
— Sim, é bonito. — Meu rosto brilhava mais do que o colar diante do
espelho, meu verdadeiro tesouro, o brilho dos meus olhos, a força da vida que
nenhum metal poderia tomar. Lutei para disfarçar minha indiferença à beleza
do colar, e perdi a briga. — Seu quarto, por outro lado, precisa de uma
faxina, hein. O que houve por aqui? Por que não o limpa?
— Ah, uma hora a gente cuida disso.
Ela tirou o colar de meu pescoço, e me dirigi à porta da saída antes que ela
dissesse algo mais. Ela me acompanhou pelo corredor do dormitório,
seguindo-me até o quarto onde eu dormia antes da chegada de Ícaro. Abri a
porta, acendi a luz, e me deparei com uma bagunça de mesma magnitude do
quarto de Glória. Cama desarrumada, terra por todo o chão, roupas
empilhadas, uma mala aberta com calças e camisetas transbordando pelo
pavimento, água empoçada debaixo da pia.
Será que o Ícaro esperava que alguém fosse cuidar da limpeza para ele? Ele
não sabia que precisava cuidar do próprio lugar onde dormia? Não, eu não
limparia aquela bagunça por ele. Eu dormiria mais uma noite no
acampamento, e ele que se virasse para se acomodar naquela sujeira toda.
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12 - Ícaro
entendo.
— Não precisa ser próprio. Pode ser apenas um tempo pra pensar, e pode
ser conversando. Por exemplo, eu estive pensando aqui, qual foi a melhor
sensação que você já sentiu na vida?
— Nossa, que pergunta difícil. — Eu deixei escapar um riso preso, o ar
balançando meus lábios. — Não vai me dizer que pensou nisso por conta de
hoje, vai? Não foi um dia tão bom assim, ou foi?
Ela se encolheu, erguendo as sobrancelhas, de olhar preso ao pavimento. —
Ah, pra mim foi. Por algumas horas, pensei que eu poderia ter feito diferença
na sua vida. Um impacto na vida de um estrangeiro, um estrangeiro que veio
pra cá como inimigo... Essa é uma sensação gostosa.
Balancei a cabeça, estufando o peito sob meus braços cruzados, alargando o
espaço entre as pernas. — Você se contenta com pouco. E sexo? Não é a
melhor sensação?
— É sim, mas é uma sensação comum. Todo o mundo faz, todo o mundo
gosta e se sente bem. Mas fazer um bilionário acordar cedo pra ir colher
alface, isso é raro.
— Hm, entendi a pergunta. Bem... Nesse caso, já que sexo não impressiona,
a melhor sensação que eu já senti foi... Hm.
— O que foi?
— Tem certeza que não vale dizer que é gozar? Já passei dias com várias
mulheres me dando prazer, e foi... Bem, foi memorável. Não consigo pensar
em outra sensação melhor.
— Não tem resposta certa, não precisa se preocupar. Se a melhor sensação
que você já teve na vida foi o orgasmo, então é isso. E a segunda melhor
sensação?
— Ah, essa pergunta é muito difícil, Elisa. Não consigo pensar em nada de
cabeça assim. Com certeza não foi acordar cedo pra te atrapalhar a colher
alfaces.
Ela riu, de rosto virado para mim. Ficou em silêncio, vasculhando meus
olhos com suas pupilas enegrecidas pela dilatação, vibrando com o brilho
longínquo dos postes da praça. Continuamos a conversar, falando sobre os
rios do meu lado do mundo, sobre as praias, as maiores montanhas. Ela
conhecia pouco da nossa geografia, e queria saber mais. Como eu já tinha
viajado para todos os lugares que ela queria saber, tinha muito o que dizer.
Conversamos noite adentro, até que olhei para atrás, e não vi mais Laura e
Oliseu rodeando o centro da praça. Estávamos sozinhos, enegrecidos por uma
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Dormi um sono ruim, permeado por uma sensação de sujeira. Deveria ter
tomado um banho antes de ir para a cama, mas estava com preguiça de cruzar
o dormitório atrás da área dos chuveiros. Tirei a roupa para me desfazer das
amarras, mas nas dobras entre os lençóis, algumas pedrinhas de sujeira
picavam minha pele. Na minha ânsia inicial por bagunçar tudo na vila, no
primeiro dia entrei de sapato sujo no quarto, deitei com ele sobre a cama, e
fiz pouco caso de limpeza. Eu queria dar trabalho a quem fosse limpar o
quarto, e não contava com aquela demora. Que espécie de hotel era aquele
sem serviço de quarto?
O sol lutava para entrar por trás das cortinas fechadas, anunciando uma
manhã clara e refrescante. Alguém bateu à porta, em toques leves que eu ouvi
justamente pela falta de sono. Vesti as calças e uma camiseta, e corri para
abri-la. Torcia para que fosse Elisa, para que ela visse as condições do
ambiente e providenciasse uma solução.
— Ei... Estou vendo que também não conseguiu dormir — Penélope disse,
escancarando a porta para que pudesse entrar em meu quarto.
Fechei a porta atrás dela, cocei o olho e fui à janela para abri-la e deixar o ar
entrar. — Problemas? — eu disse.
— Assim como você. Olha essa bagunça, essa sujeirada toda. Isso são
modos de receber os visitantes?
— É, tá complicado.
— Muito! Vem cá, você precisa ver a situação do meu quarto, você precisa
ver! Isso é inaceitável, é indigno!
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Ela pegou minha mão e me puxou para fora do quarto. Descalço, penteei o
cabelo com as mãos, envergonhado por sair a público com visual tão
descuidado, confiando na liderança de Penélope. Ela batia o pé com força no
chão, estalando a sandália sobre o piso de cerâmica, como se fizesse questão
de acordar todos os que ainda dormiam nos quartos.
Ao abrir sua porta, uma visão pior do que eu esperava se mostrou diante de
mim. Roupas jogadas sobre a penteadeira, malas abertas com sapatos e
acessórios esparramados, lençóis caídos perto da pia, molhados. Um cheiro
de umidade e suor, de perfume velho e maquiagem. Um rastro de lama levava
da porta até a cama, colorindo de marrom a borda do cobre-leito.
— Isso é ultrajante! — ela disse, olhos arregalados e dedo apontado para o
chão. — Revoltante! Eles acham que somos o quê? Porcos? Que podemos
viver num chiqueiro?
— Penélope, se acalme. Vamos conversar com Elisa sobre isso, e vamos
ver a solução que ela vai encontrar.
— Solução? Gente pra limpar, apenas isso! Não é complicado, não precisa
ser inteligente pra saber disso. Já não basta eles não nos disponibilizarem
algum empregado para vir aqui pegar minhas roupas para lavar, também não
têm ninguém à disposição para limpar os quartos?
— É um mundo diferente, você deveria saber.
— Eles aceitaram nos hospedar, não aceitaram? Então que raios de gente é
essa que não cumpre o prometido? Estão querendo nos provocar, não estão?
Estão querendo brincar com a nossa cara, é, é isso sim, ah, mas eles vão ver,
ô se eles vão ver... — Penélope cerrou os punhos e deu um soco no ar.
— Vamos falar com Elisa, tudo bem? Vamos lá, resolver tudo com calma.
— Eu não vou ficar calma coisa nenhuma! Isso aqui é pra tirar dos nervos.
Sabe como eu fui dormir ontem, hein, Ícaro? Sabe como eu fui dormir?
— Como?
— Toda encolhida, morrendo de frio, porque eu não ouso tocar nesses
lençóis, de jeito nenhum. Na minha casa os empregados trocavam tudo da
minha cama todos os dias, e eu até consigo dormir sobre um lençol usado
uma vez, em casos de necessidade, vá lá, e eu sei ser compreensiva, você
sabe muito bem disso, mas olha o estado dessa porcaria! — Ela se abaixou
para recolher um lençol branco jogado no chão, amassado e com partes
escuras.
— Você deixou água da pia cair nele?
— Eu deixei, Ícaro, eu deixei? Eu sou burra, por acaso? Eu não deixei nada,
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pelo amor de Deus. A água simplesmente caiu, e que ideia é essa de ter uma
pia no quarto? Quem em sã consciência faria um projeto desses? O pessoal
daqui é muito idiota, um bando de homens da caverna, sem uma mínima
noção de ordem. Isso não pode ficar assim!
— Sim, vamos lá conversar, tudo bem? — Eu levantei as mãos,
gesticulando para que ela se acalmasse.
— Escuta aqui, Ícaro, escuta aqui! — Ela deu um passo veloz em minha
frente e pôs o dedo em riste sobre o meu nariz. — Você é o chefe dessa
excursão, você é o encarregado de resolver a nossa situação, não é? Então
você vai lá, escuta aqui, tô te falando! Então você vai lá pegar aquela sua
mulher, vai trazer ela aqui, e vai fazer ela limpar tudinho, você entendeu?
Tudinho! Eu quero isso daqui brilhando, entendeu?
Eu segurei sua mão parada diante do meu rosto, apertei seus dedos e a
abaixei com força. Ela resistiu, mas era fraca demais para aguentar minha
pressão. Empurrei-a para trás com um golpe contido, e saí do quarto.
Penélope veio atrás de mim, de lábios contraídos e cenho fechado.
Procurei por Elisa no acampamento, mas ela já tinha saído de seu módulo.
Ela deveria estar no refeitório, isso se já não tivesse saído para algum
trabalho. Seguindo o cheiro da comida, Penélope e eu avistamos a varanda
circular rodeando o prédio cilíndrico da cozinha, e encontramos Elisa
tomando seu café da manhã ao lado de Laura.
— Nós estamos com um problema — eu disse ao chegar perto dela.
— Problema não, um problemão! Situação revoltante, uma... — Penélope
começou a dizer. Pus a mão em sua boca, mantive o contato rígido com sua
pele para que ela se calasse.
— O que foi? — Elisa abaixou o garfo e me encarou com seus olhos de mel
curiosos.
— Venha comigo ao dormitório. Preciso mostrar um negócio.
Ela olhou para Laura, e sua amiga gesticulou para que fosse lá ver a minha
situação. Levei-a ao quarto de Penélope, mostrando-lhe a bagunça em que se
encontrava.
— Todos os nossos quartos estão assim. Quando é que a equipe de limpeza
vai vir aqui? — eu disse, levantando uma palma aberta para Penélope,
controlando-a.
— Ué, a equipe de limpeza já tá aqui. — Elisa sorriu numa puxada
maliciosa de sua bochecha.
— Então por que não limparam nada?
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— Tá, peraí que eu já vou resolver isso pra vocês. Realmente, está faltando
fazer um negócio.
Acenei para ela e cruzei os braços, acompanhando seu deslocamento pelo
corredor do dormitório. Penélope entrou no quarto, deu uma volta, e saiu,
parando ao meu lado no corredor, aguardando a chegada de Elisa.
Ela veio carregando dois baldes com coisas dentro, duas vassouras e dois
panos de chão. Largou-os à nossa frente e nos ofereceu as vassouras.
— Tomem. Agora a equipe de limpeza pode trabalhar — ela disse.
— O que significa isso? — Penélope apertou meu braço e me fritou com os
olhos.
— Quem tá dormindo nesse quarto? — Elisa a encarou com calma,
contendo a vontade de rir. — Você, né? Então ele é responsabilidade sua.
Sujou, lavou. Vai dizer que não sabe nem limpar um quarto?
— Minha querida — Penélope disse, partindo para cima de Elisa. — A
questão aqui não é saber ou não limpar, mas sim saber o seu lugar. Meu lugar
não é limpando quarto não, viu? Nunca fiz, e nunca vou me rebaixar a isso!
— Mas quem é que sujou o quarto? Se você pode sujar, você pode limpar.
Penélope fechou os punhos e mostrou os dentes. Puxei seu braço e a contive
ao meu lado. Seus lábios tremiam em busca de uma resposta malcriada à
provocação de Elisa.
— Tá, você deve estar com vergonha, acho que estou entendendo. Não
precisa ter vergonha. Se não sabe limpar, eu te ensino, olha só, até crianças
conseguem fazer, vem cá. — Elisa pegou uma vassoura e entrou no quarto,
chamando-nos com os dedos. — Essa sujeira grossa do chão você tem que
varrer, então é só balançar a vassoura assim ó, jogando tudo para a saída,
tudo numa mesma direção. Tem uma pazinha dentro de um balde, e uma
sacola também, daí é só você juntar tudo e jogar fora. Fácil, não?
Penélope cruzou os braços, relaxando o rosto. Em silêncio, desafiou Elisa a
continuar, cobrindo a saída da porta.
— Daí depois você enche o balde com água, joga um pouco do produto ali
dentro do pote, uns dois copinhos só, molha um pano e o passa pelo chão.
Pode passar com os pés ou com a vassoura mesmo, envolvendo-a assim, ó,
deixa eu te mostrar. — Elisa apartou Penélope da porta, ignorando o
bloqueio, pegou um pano e nos mostrou como preparar a vassoura para
passar pano no chão. — Esfrega o chão todo desse jeito, porque assim vocês
tiram a água empoçada e essa terra grudada no azulejo. Passa um pouco,
depois molha de novo na água, e repete o mesmo processo. Fácil, não é? Em
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quinze minutos vocês terminam tudinho. O que mais vocês precisam saber?
Meu peito se apertou ao ouvi-la falar diante de nós. Ela estava envolvida
numa performance para fazer graça de nós, e não dava sinais de terminar a
brincadeira. Eu temia que ela falasse sério.
— Ah, essas roupas aqui, né? — Elisa disse, apoiando a vassoura em
Penélope, virando-se para a penteadeira, sobre onde dois longos vestidos
repousavam amassados. — Primeiro de tudo, tem que ver o que você quer
lavar, e o que quer usar de novo. No estado em que estão, não dá pra saber o
que tá bom e o que não tá. Então dobra o que ainda vai usar e... Você sabe
dobrar roupas? Desculpa, é algo muito simples e básico, eu sei, mas é que...
Enfim, eu tive de ensinar até como varrer o chão, né.
Penélope virou o rosto para mim, apertando as sobrancelhas numa ira
profunda.
— Tá, você dobra o que for usar ainda, e guarda ali na mala mesmo. Dobra
do jeito que preferir, eu sei que você consegue. E o que quiser lavar, tem que
levar lá para a lavanderia. É só colocar na máquina e colocar sabão e
amaciante. Se precisar de uma lavagem especial pra algum vestido diferente,
é só falar com o pessoal por lá. Sempre tem alguém disposto a ajudar.
— Elisa, eu gostaria que você levasse esse assunto mais a sério. — Eu me
pus diante dela, à frente de Penélope. — Entenda uma coisa, só uma coisa,
por favor. Nós somos hóspedes aqui. Certo? Não sabemos como funcionam
as coisas por aqui, então não somos nós que temos de cuidar da limpeza. Faz
sentido?
— Não. Vocês são adultos saudáveis. — Ela inflou o beiço de baixo,
balançou a cabeça.
— Eu faço um apelo à solidariedade de vocês então. Vocês poderiam cuidar
da limpeza dos quartos pra nós? Não precisa ser você, pode ser qualquer
pessoa, contanto que fique limpo. Nós não queremos mais dormir nesses
quartos imundos assim.
— Ícaro, eu esperava mais de você. Você se acha tão capaz de decidir sobre
os rumos de outras pessoas, e não consegue nem manter seu quarto limpo. É
isso que é ser chefe? Abrir mão de sua independência, da capacidade de
cuidar de si próprio? Sempre são os outros que têm que fazer tudo pra você,
sempre são os outros que têm que seguir suas ordens, fazer o que você quer?
Você nunca vai ajudar, nunca vai pôr a mão na massa e sentir o drama que os
outros passam também? É isso que é ser chefe? Pra que ser chefe, eu não
entendo? Pra se distanciar da humanidade?
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— Calma, você também pegou pesado, hein. Pessoas como nós não lidam
com essa parte. Pagamos bons salários para outros fazerem isso por nós, e
essas pessoas são felizes assim. Se não fosse por nós, essas pessoas não
teriam nem o que comer, então calma lá, pense bem no que está dizendo.
— Não me interessa o seu lado. Me interessa o aqui e agora. Aqui você não
precisa pagar salário pra ninguém. Ninguém aqui corre o risco de morrer de
fome, por isso ninguém aqui vai se curvar a você. Você me ajuda, e eu te
ajudo, é assim que funciona. Vamos, estou disposta a te ajudar a limpar o
quarto, até porque tá uma imundice, e você me acompanhou ontem durante
uma parte. Mas só se vocês limparem junto comigo.
Penélope sacudiu a cabeça com veemência, virou-se à porta e saiu do
quarto. Voltou logo em seguida, fugindo de alguém que falava pelo corredor.
— É festa no quarto? Epa, quero participar também! — Laura disse,
chegando entre nós com a mão encostada no ombro rígido de Penélope. —
Nossa, que bagunça isso aqui. A festa já acabou?
— Nada, Laurinha. Eles estão reclamando que os quartos estão sujos. —
Elisa abriu os braços e girou em torno de si mesma, apontando para o caos ao
redor.
— E por que não limpam? — O olhar de Laura me deixou desconfortável,
pois era um olhar sincero, de dúvida verdadeira.
— Pergunta pra eles.
— Por que não limpam? — Laura se pôs diante de Penélope e eu, com as
mãos na cintura. — Ah, já sei, é porque não aprenderam a dança, né?
— Ai... Lá vem. — Elisa revirou os olhos e soltou uma risada gostosa,
cobrindo a boca com a mão.
— Vem comigo, o homem primeiro, vem mostrar o rebolado, toma aqui
uma vassoura. — Laura me ofereceu um dos cabos e me puxou para o fundo
do quarto, ao lado da cama. Deu passos numa energia tão contagiante que eu
não resisti e me deixei levar.
Próximo à parede da janela, eu observava a cena com uma indisposição
prestes a se transformar em um sentimento mais conciliador. Penélope e seu
vestido leve, de cabelo preso num laço pronto para se desfazer, ela era a visão
da fragilidade, da delicadeza. Braços cruzados, tensionados por sua irritação,
ela me encarava e me proibia de colaborar com as nossas anfitriãs.
Mas então Laura começou a cantar, balançando o corpo numa ondulação
harmoniosa, cada vassourada liderando uma passada ritmada para a frente e
para atrás, e Elisa começou a bater palmas, improvisando uma harmonia. As
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lado dela.
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13 - Elisa
Eu tinha acordado pensando que teria um dia tenso com Ícaro, depois que ele
ficou estranho e quis um tempo de mim. Por mais que tivéssemos conversado
sobre a vida até a madrugada, a situação entre nós ainda precisava de
esclarecimentos. Depois que limpou o próprio quarto, porém, e me ajudou a
cuidar de suas roupas, ele e eu parecíamos ter nos entendido.
— Você vai mesmo comigo? — eu disse, de pé em frente ao computador,
de mãos na cintura. — Eu acho que você deveria ir, mas não quero te obrigar
a nada, você sabe disso.
— Olha, vontade eu não tenho, não tenho mesmo, de fazer seja lá o que
vamos fazer agora. Mas é legal estar com você. No fundo, só isso já vale a
pena. — Ele pôs as mãos nos bolsos e deu de ombros.
— Ótimo! Tá começando a pensar igual a nós. — Dei um tapinha em seu
braço e liderei a marcha até a praça dos transportes, até que tive uma ideia. —
Você tá bem nessas roupas? Nós vamos mexer com terra. Não quer trocar por
algo mais leve não?
— Eu até gostaria, ainda mais que eu é que vou ter que lavar tudo agora,
mas eu não trouxe roupa pra me sujar. Então vai ter de ser assim mesmo.
— Esqueceu que não está no seu lado do mundo? Aqui você não precisa ter
nada. A nossa reserva de roupas fica num prédio aqui perto. Quer dar uma
olhada e escolher alguma coisa?
Ele apertou as sobrancelhas, mantendo as pálpebras abertas. Pelo seu olhar,
vi a dúvida devorá-lo, e por isso peguei sua mão e o puxei para o outro lado,
para o Vestiário. Lá, abri um baú de camisetas e um outro de calças leves, e
lhe as dei para que experimentasse. Ele entrou num provador e se vestiu,
transformando-se num nativo de uma hora para a outra. Não consegui me
segurar e comecei a rir, pegando suas antigas roupas para levá-las a um
armário.
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mudas em crescimento. Segurei o chapéu na cabeça para que não caísse com
o vento gelado, e ergui aquele que eu carregava para ele. Alcancei-o, botei o
chapéu em sua cabeça e corri com velocidade para longe dele, circulando a
casa.
Ele me perseguiu, tocou-me na cintura, eu o persegui, encostei em sua
perna, ele me pegou rapidamente numa bobeira que eu dei ao pular um
canteiro, mas revidei e o deixei desnorteado com uma manobra por trás dele.
Sem fôlego pela corrida e pelas risadas, eu deixei que ele me alcançasse e
parei de correr, ofegante. Ajustei o chapéu em sua cabeça, alisei sua camiseta
para tirar algumas marcas de terra.
— Você se sujou. — Seu peito macio e volumoso me despertou para seu
corpo, para a sensação de nosso contato.
— Adivinha quem fez isso. — Ele pegou minha outra mão e virou a palma
para nossa visão.
— Eu? Poxa, não percebi. Mas você fica bonito assim.
— Sujo?
— Com essa camisa. Ela marca mais o seu corpo, e você é forte. Como
consegue isso, se não faz trabalho braçal?
— Eu tenho uma academia em casa e um personal trainer. Malho desde a
adolescência.
— Fez um bom trabalho então. — Mordi o beiço, de bochechas coradas, e
voltei ao campo.
O tempo se aproximava do horário de almoço. Faltava vistoriar uma área
pequena antes de rumarmos de volta à vila para nos alimentarmos. Uma
trovoada se abateu sobre a terra ao longe, e trouxe com seu vento de
tempestade as primeiras gotas de uma chuva gelada. Meu blazer absorveu
pingos grossos, protegendo-me da água. As folhinhas ao redor de meus pés se
curvavam a cada golpe do céu, a terra levantava poeira e seu cheiro gostoso.
— Tá chovendo, Elisa. Vamos embora? — Ícaro disse.
— Preciso terminar aqui primeiro. Depois nós vamos.
— Vamos ficar molhados.
— Água não mata.
Ele permaneceu comigo nos primeiros minutos da chuva. Achei que ela não
fosse à frente, mas me enganei. Molhou-nos num banho contínuo que
engrossava a cada nova rajada de vento.
— Eu vou ficar lá na casa! — Ícaro gritou com as mãos envoltas ao redor
da boca. — Você é doida de ficar aqui nesse tempo.
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— Então toma uma, e eu fico com essa outra. Vamos ficar parecendo
integrantes de um culto.
— Tá, vira de costas pra eu tirar a roupa.
Ele se virou, tirou as calças, e eu própria desobedeci a ordem dada. Dei uma
espiada na nudez de suas pernas, a cueca molhada e transparente, deixando à
mostra a linha de suas nádegas. Um calor tomou conta de meu rosto, o rubor
da excitação e, envergonhada, tirei a blusa e a bermuda, sequei-me com a
toalha e me enfiei debaixo da túnica amarronzada.
— Já acabou? — ele disse, de costas para mim.
Entrei na casa, saudando-o com uma mão em suas costas, e fui atrás de
algum lugar para pendurar as roupas molhadas. Os telhados vibravam com as
pedradas líquidas derramadas do céu, e lá fora mesmo as árvores do quintal
se escondiam atrás do vapor cinza.
tempo a eles, precisamos confiar. Eles podem nos ajudar tanto quanto nós
podemos ajudá-los. Eles podem ser boas pessoas, e nunca saberemos se não
os dermos a chance."
Tão concentrada como eu estava diante do fórum, não percebi que Ícaro lia
a minha tela. Ele tentou disfarçar ao se surpreender com o meu rosto virado a
ele, mas me envergonhei ao saber que ele havia visto minha escrita.
— Eu estou errada? — eu disse, tentando contornar a situação.
— Talvez. Nós somos boas pessoas sim, Elisa, eu não poderia pensar o
contrário. Mas somos capazes de coisas que você nem imagina.
— Então me mostre e me ajude a imaginar.
— Torço pra que isso não aconteça, apesar de me parecer inevitável.
água?
Ele retorceu a boca, apertando os olhos. Arrancou sua roupa do varal,
retirou a túnica sem se virar de costas, expondo seu corpo coberto apenas por
uma cueca, e se vestiu diante dos meus olhos. Eu fui ao banheiro me trocar,
incomodada com a umidade ainda marcante de minhas roupas, ciente de que
em alguns minutos haveria tanta água extra em meu corpo que eu não me
incomodaria mais com nada. Dobramos nossas túnicas e as deixamos sobre a
mesa da sala de entrada, reservando-as para uma futura lavagem.
Tirei o quadriciclo da garagem, parei em frente à varanda para que Ícaro
subisse na garupa. Ele quis pegar de mim a direção, como na vinda, mas
impus minha vontade.
— Eu dirijo.
O trajeto precisava de alguém que conhecesse bem a estrada, e não havia
tempo para brincadeiras. Ele se apertou em mim, braços cruzados sobre meu
ventre, polegar levemente encostado embaixo de meu seio, rosto colado em
meu ombro, e acelerei. As rodas arrancavam sulcos de terra e navegavam
pela lama que começava a se assentar, forçando-me a uma velocidade
cautelosa. O veículo era leve e tracionado nas quatro rodas, avançando com
segurança debaixo da água que não cansava de nos castigar.
Poças tomaram conta dos pequenos vales pelos quais passamos. Mergulhei
o quadriciclo na altura das canelas, confiando em sua resiliência. Ícaro e eu,
além de encharcados, ganhamos uma camada de lama, uma lama lavada em
chuva e escorrida, manchando todas as roupas.
Atolamos em uma subida. Forcei o veículo num ritmo moroso, esperando
vencer a terra com paciência, mas não conseguimos avanço. As rodas
giravam no mesmo lugar, sem sinal de melhora. Ícaro saltou da garupa,
enfiou os pés na lama, e empurrou a traseira com os dois braços. Olhei para
atrás e ele espremia os dentes, de lábios abertos, rosto imerso em fúria e
força. Pernas tingidas de marrom e pedra, escorregando para atrás, atoladas
tanto quanto as rodas.
Avançamos. O empurrão de Ícaro nos tirou da lama, um longo empurrão
cobrindo quase metade da ladeira, insistente, feroz, ele sozinho contra a água,
ele contra quinhentos quilos de máquina e mulher. Acelerei e me descolei
dele, parando para esperá-lo. Ele pulou na garupa e me agarrou.
— Vai, vai!
Seu toque em meu peito despertou minha adrenalina, acelerou meus
batimentos e me fez sorrir. Ícaro se sujava por mim, fazia força por mim, se
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seu entorno, e peguei em um dos seus cantos para carregá-lo até o dormitório
com ajuda de meus companheiros. Gotas pesadas atingiam o plástico e
respingavam sobre nós, molhando o rosto e nossas roupas impermeáveis.
Ficar molhada era a menor das minhas preocupações naquele momento. Eu
só queria saber como eu iria dormir naquela noite.
Retornei para ajudar a carregar mais colchões, resgatando o que havia de
útil dentro do acampamento na escuridão que se abatia sobre a vila. Com os
colchões reunidos e salvos, deram a ideia de os colocarmos em quartos dos
dormitórios e compartilhar do espaço com os visitantes.
— Mas eles talvez não gostem de dividir o quarto — uma pessoa disse.
— Então eles que saiam — Jones disse, seu rosto coberto por gotas do
dilúvio lá de fora.
Jones estava certo. Não havia o que se discutir. Cada pessoa que dormia no
acampamento levou o colchão para o quarto onde dormia antes, até que
chegou a minha vez. Abri a porta do quarto onde eu dormia, empurrei o
colchão para dentro, e encontrei Ícaro sentado na cama, olhando para mim.
Derrubei o colchão no chão, arrastei-o para o canto, afastando-o do caminho
de entrada.
— Eu vou dormir aqui agora. Se não quiser dividir o quarto, coloque o
colchão no corredor e durma lá. Eu preciso de uma boa noite de sono — eu
disse, e me joguei sobre o colchão.
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14 - Ícaro
para lá e para cá, trocando de rodas de conversa como se estivessem atrás das
últimas novidades. Elisa abaixou a cabeça e passou por todos sem troca de
olhares, indo direto à mesa com as refeições. Eu a segui, mas mantive o
ouvido atento ao que tantos rostos conhecidos discutiam entre si, os desastres
da chuva partilhados nos mínimos detalhes.
Meus companheiros do barco se misturavam entre os nativos, contando eles
também sobre a chuva que pegaram e que viram cair, fazendo pouco caso de
minha presença. Fiz meu prato junto a Elisa, servindo-me de batatas
gratinadas, queijo, omelete e salada de palmito. Numa mesa escondida,
afastada da multidão, comemos em silêncio. Era impossível conversar sobre
outro assunto que não aquele da tempestade, e minha companheira mantinha
o rosto fechado em relação ao que se falava ao redor. Ela queria dormir,
apenas isso.
Acompanhei-a até o prédio com as salas de banho. Uma estranha fantasia
circundava minha mente, a esperança de receber dela um convite para um
banho juntos na banheira larga que eles tinham em uma das salas. Ao invés
disso, ela pegou uma muda de roupas no vestiário, entrou num banheiro e se
despediu de mim.
— Se quiser, fica livre pra fazer o que quiser. Saindo daqui, eu vou pro
quarto dormir. Eu tenho sono pesado, então não se preocupe se precisar
chegar tarde. É só não pisar em mim.
Mas eu não queria fazer nada além de estar com ela. As memórias do dia
acaloravam meu coração, eu e ela sozinhos no campo, brincando,
conversando, esperando a chuva passar. Silêncio e a voz de Elisa, voz doce e
gentil, amigável como nenhuma outra. Junto a ela, longe de meus
companheiros do barco, eu me esquecia da minha fortuna, eu me esquecia
dos meus modos, das minhas frescuras.
Afastado da fama, da minha imagem perante o mundo, eu era um cara
diferente, um cara... Independente. Eu ainda não sabia como lidar com aquela
sensação, tendo saudades das facilidades da minha vida no outro lado, do
meu poder, da minha influência. Eu nunca teria de lavar os pratos de ninguém
para conquistá-la por lá. Bastava o meu nome.
Deitei-me na cama do quarto, de pés descalços, sem camisa, bermuda de
dormir. Com as mãos atrás da cabeça, encarei o teto à espera de Elisa,
ouvindo a chuva cair e ameaçar destruir o mundo. Um clarão iluminou o
quarto escuro, atravessando a cortina, estourando lá fora. Um estrondo varreu
o ar por todo o dormitório, rugindo num trovão valente, ensurdecedor. O
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espaço. Não são como você, que me ouve porque me quer ouvir, mesmo sem
ter o que ganhar com isso.
— Mas eu tenho muito a ganhar com isso.
— Tipo o quê?
— Ué... Uma vida nova.
Uma rajada de vento se chocou contra o vidro, chacoalhando as esquadrias.
Um raio estatelou o céu lá fora, clareando o firmamento, urrando de poder.
Pisquei os olhos em sequência, recuperando-me do susto, assimilando a
conversa com Elisa.
— Você é... Você é uma pessoa especial — eu disse.
— Hm, por que você acha isso?
— Porque você quer mudar.
— Então você também é especial. Também está mudando por mim, não
está?
Sim, eu estava, ainda sem me dar conta das consequências daquela minha
experiência de vida. Eu brincava com ela, eu a arrastava para a desilusão. Por
mais que tentasse ser sincero com ela, minha condição exigia de mim a
sabotagem. A cada pedaço de meu coração que eu dedicava a Elisa, era mais
uma parte de mim que seria dilacerada no fim.
O céu trovejou e o vento rasgou os ares. Fizemos silêncio, cada um em seu
colchão, e dormimos.
Sonhei que o mundo tinha virado uma grande piscina. Esferas d'água
gigantes flutuavam pelo céu, libertas da gravidade assim como eu e os outros.
Eu pulava de bolha em bolha, nadando em seu interior e depois no ar. No
sonho, eu pressentia a presença de Elisa em uma das bolhas, mas não
conseguia encontrá-la.
Acordei por conta própria, assustado. No canto do quarto, Elisa se levantava
e arrumava o cabelo. Foi à pia lavar o rosto, abrindo a torneira com tanto
cuidado a ponto de não fazer barulho. O gotejar incessante da chuva atrás da
janela competia com o derramar suave de água na bacia da pia.
Observei-a do meu travesseiro, vislumbrando seu corpo quente através da
camisola branca. Suas canelas grossas estavam expostas como em todos os
dias, já que ela preferia usar bermudas ao invés de calças, e aquele era apenas
um detalhe de suas pernas bonitas, reveladas na manhã preguiçosa,
portadoras de uma aura própria. Eu desejava aquele calor junto a mim.
Ela se virou a mim e percebeu que eu a observava. — Vamos levantar? —
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ela disse.
— Ainda não... Tá muito cedo. — Eu deitei de lado, encarando-a de frente.
— Você sabe que horas são?
— Se você se levantou, é porque ainda tá cedo.
Ela riu de meu charme e percorreu meu corpo com as pupilas cheias de
brilho. Fixou a atenção em meu peito desnudo, apertou os beiços, encontrou
meus olhos. Ficou calada, esperando que eu agisse.
— Vem cá dormir mais um pouco, vai, deixa eu te mostrar como é bom. —
Eu a persegui de joelhos pelo colchão da cama e a agarrei do lado de fora,
arrastando-a para a cama.
— Mas eu sei dormir mais, eu já acordei tarde várias vezes na vida! — Ela
protestou sem resistir, tombando entre os lençóis, endurecida pela
indisposição.
— Só acredito vendo. — Eu a cobri com meu lençol, abracei seu corpo e
me deitei ao seu lado. — Dorme mais um pouco, dorme comigo.
— Ai, Ícaro... A gente tem que ir. — Debaixo de meu braço, seu ventre se
expandia numa respiração conformada, suas mãos buscavam minha pele em
toques calorosos. As palavras que ela dizia não condiziam com as reações de
seu corpo.
— Só um pouquinho. Dorme só um pouquinho mais.
Fez silêncio, fechou os olhos. Aquecido por seu corpo macio e cheiroso,
minha sonolência me pegou de novo, adormecendo-me com um sorriso
satisfeito no rosto. Quando despertei novamente, Elisa estava entre meus
braços, deitada de lado à minha frente, de conchinha comigo. Apertei-a num
impulso de instinto, buscando seu calor. Dei um beijo em seu pescoço, e me
assustei ao perceber que foi um beijo sincero.
Ela deu um tapinha leve em meu braço estendido sob seu peito. — Vamos?
Assustado com meus sentimentos, alarguei meu abraço. — Sim, agora
vamos. Foi bom, não foi? Dormir é bom.
Levantando-se da cama já com os dedos embolados no lençol, prontos para
dobrá-lo, ela fez que sim com a cabeça, com o rosto corado, as orelhas
vermelhas como sangue. Espreguicei-me, joguei as pernas para o lado e me
ergui. Peguei as outras pontas do lençol para ajudá-la a dobrá-lo, e cobri a
cama com o cobre-leito. Abri a janela para deixar entrar um ar,
impressionado com o cinza do mundo lá fora. A chuva cobria tudo com seu
rio flutuante.
Elisa saiu de camisola pelo corredor do dormitório, nem um pouco
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Elisa me guiou até o prédio de serviços. Uma casa larga, com um pátio
interno generoso, onde crescia um ipê tímido sob a chuva que despencava
sobre suas folhas. As portas ficavam nas bordas do pátio, cada cômodo
designado com uma placa. Procurei a sala das traduções, encontrei-a, e entrei
com Elisa.
Uma senhora de cabelos brancos me cumprimentou, uma mulher de pele
negra como a noite, um par de óculos vermelhos e bata colorida com padrões
geométricos.
— Ora, se não é o grande Ícaro Zanotelli, finalmente aqui comigo — ela
disse, abrindo os braços para me abraçar.
— Ele veio aqui te ajudar um pouco, Maya — Elisa disse, juntando-se ao
nosso abraço. — Ele fala inglês, francês e italiano, não é? — Ela olhou para
mim, balançando a cabeça, esperando confirmação.
— É, eu já morei um tempo fora, e viajo sempre que posso. Se houver algo
que eu possa fazer por aqui... — Eu pus as mãos no bolso, erguendo o peito,
olhando ao redor da sala. Quatro computadores, vasos de plantas em móveis
nas paredes, quadros pendurados, um balcão com biscoitos e frutas.
— Eu sei, eu sei muito bem quantas línguas o Ícaro fala. Sei muito sobre
ele, pode ficar tranquila, Elisa. — Maya apertou meu braço, sorrindo para
nós.
— Ah, então ótimo, creio que vocês vão ficar bem por aqui então, né?
Ícaro, você vai gostar da Maya. Ela já morou um tempo do outro lado e
conhece muita coisa sobre o seu mundo. Vocês vão ter muitos assuntos em
comum. Fique aqui com ela, e de noite nós nos vemos, tudo bem? — Elisa se
pôs novamente à porta, apoiando a mão na maçaneta.
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mulher. Pensa na sua vida lá do outro lado. Você não era assim — Oliseu
disse.
Eles tinham razão. Quando eu cheguei à vila, de barco, eu encarava a minha
estadia como uma diversão barata. Pegar uma mulher, sabotar os idiotas, e
voltar para casa rindo da miséria alheia. Mas ao começar a viver com Elisa,
fui arrastado ao seu mundo.
— Tudo bem. — Eu respirei fundo e pus as mãos em seus ombros. — Eu
vou acertar tudo, vocês vão ver.
Eles apertaram os lábios e assentiram à minha promessa, liberando-me ao
meu caminho. Desisti de voltar a Maya. As traduções eram muito chatas, e eu
não teria nada a ganhar com aquilo. Elisa tinha me contaminado com o germe
da inquietude, porém, e eu queria usar minha capacidade para trabalhar em
algo. Tive uma ideia, e fui à cozinha ver se ela poderia render frutos.
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15 - Elisa
nossa frente. O morro era afastado da torre da caixa d'água, e a lama chegou
apenas ao seu pé. Ainda assim, parecia ter sido forte o bastante para
desequilibrar a pilastra e tombá-la ao chão.
A estrutura de concreto se retorceu na queda, partindo-se em duas. A caixa
d'água propriamente dita, composta de uma fibra especial com mescla de
metais e polímeros plásticos, ficou amassada na face do impacto, rachada e
perfurada. No chão, o encanamento que a abastecia jorrava água como uma
nascente. Por algum motivo, a válvula de bloqueio de emergência havia
falhado. Um lago se formava no arredor do vazamento, um lago profundo,
cobrindo nossas galochas por inteiro.
A cicatriz do morro ao nosso lado assustava pela promessa de novos
deslizamentos. O registro manual tinha sido soterrado, e nem mesmo Jones
demonstrava coragem para escavar diante de condições tão perigosas.
— Vamos ter de ir direto no córrego e estancar por lá — eu disse. — É
melhor sair daqui antes que caia mais lama.
— Tá, é melhor mesmo — Jones disse. — No caminho, a gente dá uma
olhada na casa da mata pra ver se acha o Marcos.
A trilha até o córrego se encontrava em melhores condições do que a
própria estrada pela qual viemos. Seu calçamento resistia à chuva incessante,
e os morros ao nosso redor, tão prístinos e cobertos da vegetação de Mata
Atlântica, resistiam intactos ao poder das águas, hidratando-se para manter a
saúde e o verde. Uma rajada de vento nos assustou, derrubando um galho
velho a poucos metros de nós. Aceleramos o passo.
O córrego fluía num corpo duas vezes mais caudaloso do que o normal,
derramando-se sobre as pedras com o marrom barrento da tempestade.
Galhos e folhas se prendiam entre as armadilhas de seu solo, cobras corriam
das gretas inundadas de suas tocas. A estação de coleta sugava aquela água e
a jogava para o cano perfurado da usina. Jones apertou sua válvula e fechou a
entrada. Ele acenou para Tobias e eu, e apontou para a continuação da trilha
pelas margens do córrego.
Entre as copas espessas das árvores, eu tomava menos chuva desde o
princípio da tempestade. Água fluía por todos os lados, molhava todas as
coisas, atormentando-nos em seus córregos, seus pingos, suas poças, e suas
infiltrações. Minha pele a sentia apenas nas mãos e no rosto, e no fundo eu
queria mais. Queria tirar a roupa e me encharcar de chuva, dançar sob ela e
beber de si debaixo de folhas. Desejei Ícaro ali comigo, ele nu ao meu lado,
os dois tomando banho de céu, de nuvens cinzas, de vapor enraivecido, os
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Tobias não tardou a reaparecer na usina de Campo Aberto depois que levou
Liliane e Marcos de volta para a vila. Jones e eu permanecemos deitados nos
sofás o tempo todo de sua espera, mantendo um silêncio amigável de duas
pessoas assustadas com a tempestade. O barulho da chuva nos distraía o
bastante com seus golpes fortes no chão, quicando no teto reconfortante de
nosso abrigo.
Quando ele chegou, recolocamos nossas vestes impermeáveis e entramos no
buggy. Tive a impressão de que a chuva perdia um pouco de sua intensidade,
embora ainda banhasse o mundo com a fúria de seus pingos grossos. O céu
escurecia com a proximidade da noite, e não por conta da densidade das
nuvens. O dia chegava ao seu fim, nós três na estrada, tendo de retirar um
galho pesado de árvore que havia caído no meio da estrada asfaltada. Jones,
Tobias e eu o agarramos, cada um em um lado, e o puxamos de volta para o
acostamento, após inúmeras tentativas. Arranhei as costas da mão direita,
aqueci o corpo com o esforço, senti as pernas tremerem.
De volta à vila, Tobias perambulou pela Praça dos Transportes atrás de
mais alguém precisando de carona para algum lugar.
— Ainda temos uns sacos de areia precisando de um abrigo mais seguro lá
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você tá aí?
— Ah, é você, Laurinha.
— E Elisa também.
— Podem vir vocês duas então. É bom que a gente conversa um pouquinho.
Tirei a roupa e a coloquei dobrada em uma prateleira, entrei na área do
ofurô e tomei uma ducha quente para tirar a casca. Glória estava imersa na
água quente do ofurô até a altura das clavículas, descorando a água com a
alvura de sua pele. Mergulhei na banheira com a ponta do pé, medindo a
temperatura, reconfortada pelo calor quase fervente que me agraciava os
poros.
— Eu estou esgotada... — Glória jogou a cabeça para atrás, fazendo de seu
coque de fios pretos uma almofadinha sobre o concreto.
— Você também, é? — eu disse, assentando-me em meu lugar no ofurô,
massageada por completo pela simples quentura da água.
— Trabalhou muito hoje? — Laura jogou água em seu rosto, fazendo
conchinha com as mãos e derramando o líquido sobre seu pescoço e seus
seios.
Glória se virou levemente para o lado, encarando Laura com os olhos
semicerrados. — Sim, trabalhei muito. Esses visitantes exigem muito de
mim, sabiam? A toda hora eu tenho que mostrar o que eles podem fazer, e
eles reclamam de tudo comigo, de tudo.
— E você faz o quê? Se impõe ou fica fazendo a vontade deles? — eu
disse.
— Faço o que é possível. Mas não tem como parar a chuva. — Glória disse.
— Deixa eles à-toa mesmo. São gente grande, e um pouco de tédio é uma
ótima chance pra repensar a vida. Aos poucos eles vão melhorando. O Ícaro,
por exemplo, tem entrado no nosso ritmo há alguns dias já.
— Eu ainda não consigo acreditar nisso, Elisa. Ele é um cara muito
diferente, porque os outros... Os outros não querem nem saber. — Laura
fechou os olhos e abandonou o corpo sob a água.
— Ele tá apaixonado por você, amiga. Só o amor é capaz disso. — Glória
remexeu o pé para se encostar no meu.
— Vocês acham? — As duas balançaram a cabeça. — Mas ele vem do
outro lado. E vive me dizendo que lá eles são capazes de maldades que nós
aqui não conseguimos imaginar.
— Quem tem passado mais tempo com ele é você, por isso você é a melhor
pessoa pra dizer o perigo que há nele. — Laura reabriu os olhos. — Por outro
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lado, um pouco de amor é sempre bom pra temperar a vida. Quanto tempo
faz que você não fica com um homem, Elisa?
— Ah, faz um tempinho já... — Minhas bochechas coraram, olhei baixo.
— E não sente falta? Digo, não sente falta nem do prazer? — Laura disse.
— Sinto, claro que sinto, mas... Eu vou vivendo. Eu tenho meus momentos
só pra mim.
— Não é a mesma coisa. — Glória olhou para o alto, erguendo uma
sobrancelha. — Alguém que te pegue de jeito, que te toque nos lugares
certos, nos momentos mais inesperados, que te queira todinha em sua boca,
ai... Isso é bom demais. Pelo menos disso eu não posso reclamar dos
visitantes, porque o Cássio e eu nos entendemos muito bem na cama.
— Ele consegue te satisfazer mesmo, Glória? — Laura disse.
— Olha, no começo foi meio estranho, e ele fica querendo fazer umas
coisas que eu não gosto, umas coisas que me deixam muito desconfortáveis...
Só que eu falei pra ele com jeitinho o que eu gosto mais, e ele tem tentado me
seguir. Tem sido ótimo assim.
— É disso que eu tenho medo — eu disse. — Se eu e o Ícaro... Hm, se eu e
o Ícaro tivéssemos um momento assim... De intimidade, eu tenho medo do
que ele faria.
— Acha que ele não sabe amar? — Laura disse.
— Ele sabe, disso eu sei. Só não sei o quanto ele sabe demonstrar.
— Isso você só vai descobrir tentando, meu bem. — Glória me deu um
sorriso sacana, ao mesmo tempo encorajador.
— Vocês acham que eu deveria? — Com o rosto corado pelo meu
acanhamento, abracei meu ventre e cruzei as pernas.
— Se você quer, e ele também, por que não? Experimenta. Pode ser bom —
Glória disse.
— Também acho — Laura disse. — E se não estiver convencida ainda, e
quiser esperar mais, não se apresse a nada. O importante é se sentir bem.
O banho com as meninas renovou meu astral. Não apenas pelo relaxamento
no ofurô, depois de um dia inteiro pegando chuva gelada e vento no rosto,
mas pelo apoio emocional que elas me deram. O Ícaro ainda não tinha
passado muito tempo comigo, por mais que nossos dias parecessem longos,
com tantos novos acontecimentos. Mas vê-lo se esforçar para experimentar a
minha vida, abrindo mão de suas manias, de seus gostos, mesmo sem estar
completamente convencido, aquela era a maior demonstração de carinho que
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Ele me serviu, antes mesmo que eu pensasse em pegar meu prato, e depois
fez o mesmo para si. Saboreei um primeiro pedaço de seu jantar, tomada de
um sabor encantador. Sabor de comida boa, apesar das aparências, e de
experiência preciosa. Ninguém nunca tinha preparado um jantar só para mim.
— Quando vocês fazem jantares como esse no outro lado, como vocês se
sentem? — eu disse.
— Nós nos sentimos bem. Não é assim que você se sente? É melhor para
conversar, e tem todo o lado da dedicação, que conta muito.
— É verdade. Costumamos dizer por aqui que amor é tempo e dedicação.
Se você dedica seu tempo a alguém, é porque o ama, nem que seja só um
pouquinho. Você deve ter amado muitas pessoas nessa vida, preparando
tantos jantares.
— Eu nunca preparei nenhum jantar assim — Ícaro disse, abaixando os
olhos.
— Ué, mas você mesmo disse que é assim que fazem do outro lado.
— Eu tenho empregados pra preparar tudo pra mim. Nunca me dei ao
trabalho. Só pra você eu tive de preparar um por conta própria, por conta do
jeito esquisito em que vocês decidiram viver aqui nesse mundo.
— É um jeito esquisito que fez você dedicar seu tempo a mim. Eu não
gostaria que fosse de outra maneira.
Apreciamos nossa refeição na paz de um quarto reservado para nós, ao som
de chuva, vislumbrando a pele um do outro pelo amarelo da luz de velas. Tão
encantada eu estava por tudo o que ele demonstrava fazer por mim, por sua
beleza, pelo seu jeito de me ouvir, que eu queria não dizer mais nada ao
longo da noite. Falar pelo olhar, comunicar-me pelo toque de dedos, pelo
silêncio da pele.
— Será que agora eu consegui tirar da sua cabeça a ideia de que eu sou
mimado? — ele disse, interrompendo meus pensamentos.
Eu ri com a boca cheia, e terminei de mastigar para responder. — Sim, eu
acho que você tem se mostrado um cara mais maduro nesses últimos dias.
— Ah, então além de mimado eu era imaturo?
— Olha, para os nossos padrões aqui... Sim, você era. Imaturidade é quando
a pessoa age igual criança, precisando de alguém sempre por perto pra dizer o
que deve ser feito ou não, o que pode fazer ou não. É uma pessoa que ainda
não tá pronta pra viver com os outros, entende? Você amadurece quando
você passa a decidir por conta própria, quando você reconhece que precisa
colaborar com os outros tanto quanto eles colaboram com você.
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16 - Ícaro
Pela primeira vez, acordei antes dela. O perfume de sua pele nua me
despertou, o cheiro de seus cabelos cobrindo o rosto, a brancura de seus
ombros acima do lençol, expostos para minha contemplação. Tão logo abri os
olhos para ela, fui forçado a mantê-los assim pela força do meu encantamento
por aquela mulher.
Encaixei-me sobre seu ombro, deitando-me ao lado de Elisa, abraçando-a
com o braço acima de seu peito. Meu rosto encontrou espaço entre seu
pescoço, nutrindo-se do calor que emanava daquela carne macia. Ela se
remexeu para ajudar a me ajeitar em seu colo, passando a perna sobre a
minha cintura, travando-se sobre mim numa posição de repouso entrelaçado.
Adormeci mais uma vez, envolto por ela.
Ao despertar, ela me aguardava com o sorriso de quem lutava para começar
o dia sem pressa. Ela sabia que eu falaria algo sobre sua vontade de se
levantar, e já se preparava para me cortar, mas não falei nada. Ao invés disso,
beijei-a levemente, encostando meus lábios em seu colo, subindo-os pelo
pescoço, pela bochecha, até chegar em sua boca. Ali, fiquei.
Apertei-a com mais força, trazendo-a para mim, tão macia e quente.
Deslizei o rosto sobre seus cabelos, alisando-a de leve com minha barba
raspada. Voltei a beijá-la, e não parei até que me molhasse com sua saliva,
unindo-me a ela num tímido balé entre as nossas línguas. Ela me virou por
cima dela e alisou minhas canelas com os pés, empurrando o lençol para fora
da cama. Com as mãos, explorou minhas costas e me fez cafuné,
aprofundando nossos beijos a cada leva de toques.
Eu já estava excitado desde que acordei, e com seu convite eu me senti
aceso. Ela me aceitava em seu meio mais sagrado, sua cama transformada em
altar de nossos delírios. Mergulhei nela atrás do inacreditável, seduzido por
algo novo, inacessível do outro lado. Eu, Ícaro, fazia amor com uma mulher
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para ajudá-la a ser feliz, e tal mulher fazia o mesmo por mim. Era mais do
que prazer, mais do que curtição; era o estado natural entre duas pessoas que
conviviam uma com a outra e se gostavam.
Após uma noite intensa, tirando toda a nossa tensão acumulada, uma manhã
radiante. Esquecemo-nos da chuva, ela que caía em gotas mais gentis, como
se combinasse com o astral do quarto, e nos perdemos em gemidos ofegantes.
Minha missão começava ali, mas não a missão do princípio, de enganar Elisa
e rir dela no final, não, não essa mais, e sim a de descobrir o que fazer com os
sentimentos que ela me despertava.
Quando terminamos, ela se sentou sobre a beirada da cama e arrastou o
cabelo para atrás das orelhas. Suas costas nuas resplandeciam com a cortina
iluminada pelo dia que lutava para se mostrar lá fora, coberto por nuvens
ainda cheias d'água. Meu olhar se prendeu entre as curvas de sua cintura, e
antes que eu erguesse os braços para agarrá-la mais uma vez, virei o rosto ao
travesseiro. Quanto mais eu me envolvesse com ela, mais dolorosa seria a
despedida no fim, porque não havia outro caminho a não ser o da despedida
em nossa frente. Eu jamais ficaria ali preso naquele mundo, e ela não iria
jamais comigo para o outro lado.
— Tô com tanta fome... — Elisa lavou o rosto na pia do canto do quarto,
secando-se com as próprias mãos.
Abri apenas um olho para observá-la, vislumbrando uma gota d'água
escorrendo sobre seus seios. Se eu não a visse assim, jamais imaginaria que
uma mulher como ela fosse dona de um erotismo tão pulsante. — Que bom.
Isso é saúde. — Eu murmurei, apertando o quadril contra o colchão.
— Vamos nos aprontar pra comer? Nem sei que horas são, mas qualquer
coisa nós preparamos algo pra nós dois. Você agora é um cozinheiro também,
não é? — Ela pegou a toalha ao lado da penteadeira e enxugou o rosto.
— E você se esqueceu da hora. Estamos evoluindo mesmo, hein.
Elisa pegou a calcinha para vesti-la, desdobrou a blusa e a bermuda. Eu me
levantei para me unir a ela, gostando da ideia de afastar de mim a tentação de
tê-la mais uma vez, embolando-me num emaranhado de sentimentos
confusos. Vesti minhas roupas com pressa, ansioso para esconder a pele.
Esperei para me virar a Elisa somente quando ela estivesse completa, quando
não me balançasse mais com sua beleza escondida.
— Pronto? — ela disse às minhas costas.
Eu me virei para ela com um aceno da cabeça, e ao invés de encontrar uma
pessoa desprovida de sensualidade, deparei-me com uma Elisa bela como
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— Então pare de falar e coma seu café da manhã. Eu te acompanho até lá.
Ela sorriu para mim e fez conforme o sugerido, usando as mãos para limpar
o prato. A chuva nos acompanhou ao longo da refeição, adornando de
preocupação o rosto de Elisa. Era aquele tipo de estrago que minha missão ali
com ela queria causar. Eles se desdobravam para dar conta de nos sustentar,
abdicando de seus projetos, de suas vidas, tudo em prol de um bando de
estrangeiros que exigiam um trato de luxo. A chuva, no final das contas,
trabalhava em nosso favor, e ver as consequências da missão expressas no
rosto de Elisa me amargava o coração.
Peguei o prato dela assim que terminou de comer, levei-o para a pia junto
ao meu e aos talheres, e os lavei para ela. Elisa pegou um pano úmido e o
passou sobre a mesa, verificando a mesa de buffet atrás de comida exposta.
Fomos os dois juntos até o pavilhão da assembleia, protegidos pelas
passarelas cobertas que se tornaram meu grande xodó no mundo. Na ausência
de carros, os pedestres tinham a cidade disponível o tempo todo, sem risco de
se molharem.
— Só você entra, Elisa — uma pessoa na entrada do pavilhão nos disse,
erguendo a mão para mim. — Os visitantes devem ficar de fora.
Ela me encarou, apertou minha mão e me disse: — Fica na biblioteca.
Depois eu te encontro e te falo o que foi discutido, tudo bem?
— Claro. Eu vou ficar bem. Depois a gente se vê.
Dei-lhe um beijo e me virei de volta à vila, procurando o prédio da
biblioteca. Passei pela porta pesada que protegia os livros do mundo externo,
e vi um casal se beijando em um dos sofás. Eram Alice e Álvaro, dois dos
que vieram comigo no barco. Uma outra pessoa lia algo num leitor
eletrônico, um homem nativo, sentado em uma mesa de madeira.
Eu poderia pegar um leitor eletrônico e escolher o que eu quisesse, mas
preferi passar os olhos pelas prateleiras em busca de uma noção geral da
literatura daquela parte do mundo. Livros técnicos e de ficção ocupavam cada
um metade da biblioteca, livros famosos em meu país, livros nunca antes
vistos por lá. Escolhi um título que me chamou a atenção, "Mitos antigos: o
empresário", rindo de antemão do conteúdo, e me sentei para lê-lo.
Duas horas depois, Elisa entrou no salão da biblioteca e me encontrou. Veio
até mim, sentou-se ao meu lado, segurou minha mão e olhou fundo em meus
olhos.
— Eu vou precisar me ausentar por uns dias. Vamos cultivar uma área das
Terras Comunais a uns duzentos quilômetros daqui, onde a tempestade não
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homem por aqui, não tem? — Jaqueline disse. — Eu até tentei com um
também, mas já desisti. Não consigo chegar perto desse povo, mas admiro
quem consegue.
— É diferente, Jaque, é diferente. O Ícaro descobriu uma missão nova, não
foi, Ícaro? Veja esses olhos dele, o que você me diz?
Eu me levantei, segurei-a pelo braço, aproximei meu rosto do seu e falei
entre os dentes: — Nós podemos conversar a sós?
Ela me encarou atentamente, varrendo meu rosto com suas íris azuladas, e
conforme meu aperto em seu braço se intensificava, o medo tomava conta de
sua expressão. Penélope engoliu em seco e acenou com o rosto. Despedi-me
de Thor e Jaqueline, e conduzi Penélope para o interior do Centro de
Convivência.
— Me desculpe, Ícaro, eu não queria... — Ela abaixou a cabeça,
obedecendo aos meus passos.
— Eu sei. — Eu parei ao lado de um canteiro de flores sob um teto de
vidro, afastado das outras poucas pessoas ali. — Eu sei. Você não está tão
errada assim. Eu... Eu estou diferente mesmo. Me sinto diferente. Mas fazer
graça de mim não vai ajudar em nada.
— Então é verdade mesmo? Você gosta dela? — Ela abriu a boca, de olhos
arregalados, alisando a pele avermelhada do braço liberto de minha pegada.
— Eu não sei. Gosto de estar com ela, e de passar perrengue com ela, de
conversar, e hoje nós transamos e... E foi maravilhoso. Foi muito bom, quero
dizer, tão bom que eu não consigo parar de pensar nela.
— Tá, e... Hm... E você sabe quem você é, não sabe? Sabe da vida que te
espera quando voltar, não sabe? Seu mundo não é esse, e nem comece a
pensar em levá-la para lá, porque isso não dá certo.
— Eu sei...
— Vocês estão se entendendo aqui porque você se dobrou completamente a
ela. Virou capacho, está fazendo tudo o que ela manda. Por isso estou tão
preocupada. Cadê a sua pegada? É só comigo que você vai apertar o braço e
arrastar pra onde você quiser?
— Eu não posso agir assim com ela, senão eu estrago tudo.
— Estraga o quê, Ícaro? A farsa? Que farsa, se agora você a quer de
verdade?
— Estrago o que ela sente por mim.
— E isso te importa? Você quer que ela goste de você? Ha ha, muito mais
sádico do que eu imaginava, hein. Quer mesmo arrancar o coração dela
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17 - Elisa
A terra que nos recebeu ficava a oeste, a caminho da nascente do rio de Água
Clara. Terra montanhosa, fértil e cultivada em sua quase totalidade. Para
recuperar a terra, castigada pelos pastos sem fim que dominavam a paisagem
antes da guerra que dividiu o mundo em dois, as comunidades da região
retrabalharam o solo com um misto de espécies nativas e vegetais
comestíveis, de modo que cada canto verde tivesse uso humano.
Eu, Jones e os outros companheiros que vieram de Água Clara recebemos
instruções de como aproveitar melhor o esquema montado pela comunidade,
e fomos apresentados aos Rodinhas. Pequenas máquinas rolantes com uma
esfera tão grande quanto seu corpo, elas conseguiam perambular entre
arbustos e vinhas, reconhecendo visualmente as espécies ao redor, fazendo
uma leitura geral da região de plantio. Analisavam os dados obtidos por todas
as outras máquinas e cavavam nos lugares mais adequados para cada tipo de
semente, muda ou rama que nós carregávamos.
— Da última vez que ouvi falarem sobre esses Rodinhas, ainda estavam em
fase de testes — eu disse, carregando uma caixa de ramas de batata-doce
entre algumas hortaliças altas.
— É, eu também estava meio desatualizado. Talvez isso aqui ainda seja
teste, mas olha como eles não erram uma! Parece que vão cair, mas passam
pela terra com mais facilidade do que nós. — Jones carregava uma caixa
como a minha, sem camisa, aproveitando o sol entre nuvens da nossa estadia
sem tempestade.
— Eu fico hipnotizada. — Enterrei uma rama num buraco que o Rodinha à
minha frente tinha cavado. — Precisamos levar alguns desses lá pra Água
Clara. Daqui a pouco nós vamos conseguir usá-los até pra tirar as plantas
daninhas, e imagina como isso vai poupar trabalho.
— O problema é que nós ficamos muito afastados de tudo, né? E somos
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em ação.
— Lá na sua vila vocês têm o que de máquina?
— Tratores e drones compartilhados com as outras vilas, mas nada de mais.
Fazemos muita coisa na mão mesmo, porque tem pouca gente e a maioria
gosta de trabalhar com a terra.
— É o contrário daqui então. — Ele riu, encaixou uma peça do Rodinha. —
Aqui nós somos bem mais folgados, então qualquer robô é uma salvação.
Após uma semana imersa no ritmo pacato da comunidade, realizaram uma
pequena festa para a nossa despedida. Voltaríamos para ajudar na colheita
dali a alguns meses, mas a manutenção do terreno, conforme nos diziam,
ficaria a cargo deles e dos Rodinhas. Com a mescla de diferentes culturas
numa mesma área, o cuidado com pragas seria mínimo.
A festa foi o único momento em que me permiti parar e respirar com calma.
Tomada pela sensação de emergência, tendo deixado para atrás a minha vila
atormentada por uma tempestade que havia inundado vários de nossos
campos e arrasado as colheitas de emergência que havíamos preparado, eu
voltei ao ritmo de antes de conhecer Ícaro. Jones ao meu lado, trabalho
tomando meus dias e minhas noites, meu peito começou a me apertar, minha
respiração me sufocava, e durante a noite eu acordava inúmeras vezes
preocupada com o futuro.
A vila sofria com as trinta pessoas a mais para alimentar, e tinha sido tudo
culpa minha. Eu tomei a iniciativa de convidá-los entre nós, e não tinha a
coragem de expulsá-los.
— Quer dizer que esses visitantes só querem saber de consumir as coisas e
não dão nem uma mãozinha no resto? — Bial disse, segurando um copo de
suco numa cadeira debaixo de uma árvore, sob o céu opaco da noite.
— Um ou outro até tentou entrar no nosso ritmo — eu disse, mordiscando
um petisco com massa de mandioca, lembrando-me de Ícaro. — Mas eles
estão testando a nossa paciência. Tem que manter a calma, senão dá vontade
de deixá-los passando fome.
— Se fôssemos nós no mundo deles, é o que fariam conosco. Vê se eles nos
receberiam assim nas mansões deles, até parece. Nós ficaríamos na cidade e
teríamos de implorar por comida.
— Ainda bem que não somos como eles, não é? Mas que pena que eles não
são como nós.
— É, é uma pena mesmo. Um dia eles não vão ter como fugir. Nós vamos
vencer.
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Era o meu desejo também, torcendo apenas para que não viesse através de
armas. Que viesse através do amor, da preguiça. Pessoas dividindo as tarefas,
sobrando menos para cada uma fazer, eliminando ocupações inúteis,
refazendo o mundo para propiciar a autonomia de todos. Guerra, contudo,
pode começar só de um lado, e o outro lado nos ameaçava constantemente.
— Você já deve estar de saco cheio desses visitantes lá na sua vila, né? —
Bial cruzou as pernas e se virou para mim, sorrindo com segundas intenções,
analisando as curvas de minha cintura e o volume de meus seios sob a blusa.
— Eu e uns amigos daqui vamos fazer uma expedição lá pra Rio Bonito, bem
no interiorzão. Cachoeiras, trilhas, rios cristalinos... Não sei se você já viu
como é que é. Natureza linda. Se quiser se juntar a nós, vai ser massa.
— No momento não, Bial. Com a vila no estado em que ficou com a
tempestade, eu preciso voltar e ajudar. Tem muita coisa pra fazer. — Cruzei
os braços e as pernas, fechando-me a ele.
— É, já vi que o pessoal de Água Clara só quer saber de serviço.
O que eu mais queria era voltar para casa. Eu poderia morar onde eu
quisesse, eu poderia escolher qualquer comunidade em qualquer parte do
nosso mundo para fincar raízes, mas a sensação de comunidade ao lado das
pessoas que cresceram comigo me acalenta o coração mais do que tudo. Eu
desejava estar de volta ao olho do furacão, cuidando dos desafios de trinta
estrangeiros se aproveitando de nós. Com um deles eu tinha feito amor, e
para ele, mais do que tudo, eu queria voltar.
A estrada apresentava muitos buracos na região de Água Clara, e marcas
das inundações ainda permeavam a paisagem. Lama, pedras deslizadas,
árvores caídas, lagos e poças por todas as partes. O sol se mostrava soberano,
limpando as nuvens brancas que rumavam pelo céu como cordeiros mansos,
calmas após tantos dias de choro.
Jones reduziu a velocidade de nosso ônibus a menos de quarenta
quilômetros por hora, receoso de quebrar o veículo em um trecho de asfalto
destroçado pela erosão. Deixamos nossos caminhões na região onde
realizamos nosso plantio de emergência, cientes de que os utilizaríamos para
carregar a produção quando pronta. Emprestaram-nos um ônibus, mas não
trafegamos com nenhum carro de apoio, então qualquer problema significaria
um grande atraso para todos nós.
— Já era pra termos resolvido esses buracos há tempos. Se não me engano,
o Conselho de Manutenção tinha isso planejado, não? — Jones disse, pondo a
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— Tudo bem, é só perguntar pra eles. Quanto a mim, pode contar com
minha ajuda. É só me dirigir pra onde eu tenho de ir. Me dá a chave dos
veículos que eu já vou acoplar as ferramentas e partir agora mesmo.
— Ótimo, já venho te ajudar nisso.
Em minha mente, eu juntava os pontos e fazia todos os planos necessários.
Pensei na marmita que eu pegaria, no leitor eletrônico com manuais de
referência para lidar com qualquer situação nova, e com as pessoas que eu
poderia pedir para me acompanhar, pessoas com mais experiência no trato de
estradas. Nadir conversava com Jones e os outros em seu tempo apressado,
incapaz de esconder seu senso de urgência. Sem acesso aos Postos, nossa
sobrevivência ficava comprometida.
Tomada pelos meus pensamentos, nem percebi a chegada de Ícaro na praça.
Ele se aproximou de mim e parou ao meu lado, em silêncio. Virei-me a ele e
tomei um susto ao vê-lo tão perto. Abracei-o num impulso, envolvendo meus
braços nele com uma força explosiva, um forte abraço e depois o larguei.
— Que saudades de você! — eu disse, sentindo o rosto queimar o com o
rubor de minha excitação.
— Eu também. E aí, fez muita coisa? — Ele vestia seu blazer e a calça de
linho que usou na festa de boas-vindas, pisando no chão com seus sapatos.
— Sem parar, e ainda vou fazer mais! Parece que a situação aqui continua
crítica, então preciso ajudar no que for possível. Quer vir comigo? Vamos
acertar umas estradas.
— Você acabou de chegar, Elisa. Não vai descansar nem um pouquinho?
— Hoje eu só vou descansar na hora de dormir, e olhe lá, porque eu não
estou exagerando em relação à seriedade das coisas.
— Não parece nada grave. Acho que você tá exagerando sim. Vamos lá,
vem tomar um banho comigo, vem pro quarto pra gente matar as saudades
direito. — Ele deslizou os dedos em meu braço, buscando tomar posse de
minha mão.
Recuei, tirei minha pele de seu contato. — Ícaro, eu te entendo, mas esse
não é o momento. Você deve ter continuado a trabalhar aqui na vila, então
deve ter uma noção das nossas urgências. Onde você atuou nesse tempo?
— Em nada. Sem você aqui, pra que trabalhar? Eu tava te esperando.
— Então você ficou sem fazer nada só porque eu não estava ao seu lado?
Por acaso eu sou sua mãe, é? — O sangue esquentou em meu corpo,
abastecido não por paixão, mas por decepção e raiva. — Com tanta coisa pra
ser feita por aí, com tanta necessidade de gente pra ajudar, e você preferiu
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ignorar tudo? Posso saber o que tomou tanto assim do seu tempo pra você se
recusar a continuar o caminho que você já tava seguindo? — Apertei o
cenho, pressionando os lábios.
— Não sou obrigado a nada, você sabe disso. Estou aqui pra aproveitar a
vida, e só passei aquele tempo te ajudando pra quebrar o seu gelo, pra
conseguir te ter como uma mulher normal. Não pense que eu virei um de
vocês. Jamais! Eu queria te conquistar.
— Ah é? Então eu sempre estive certa ao te ver como um cara mimado.
Não sei por que você se ofendia tanto com isso, se é a verdade. Só consegue
pensar em você, no que você deseja, no que você quer. Não consegue me ver
como alguém com outras afeições, com uma mulher que também é amiga,
que também trabalha, que também sonha com um mundo bom, que quer amar
a vida como um todo, e não só um homem.
— Elisa, acalme-se, por favor. Eu não falei nada que você já não sabia
antes, não entendo por que a raiva. — Ele ergueu as palmas abertas à minha
frente, aproximando-se um passo.
— Eu estou calma. Só estou muito decepcionada com você. Achei que
tivesse começado a me entender, achei que estivesse percebendo o quanto eu
e o meu mundo fazemos parte de um mesmo sistema. Mas não, no final das
contas você só queria me levar pra cama mesmo. — Virei-me para longe
dele, temendo levantar a voz e falar mais coisas indesejáveis. Com tantas
necessidades precisando de cuidados na vila, ele só se importava com as
vontades dele. Não, aquilo era inaceitável, e eu me senti uma idiota.
Acostei-me ao lado de Nadir. — Já reuniu todo o mundo? Vamos lá que eu
quero sair logo daqui. Tô pronta.
— Ótimo, então vem comigo — Nadir disse, levando-me pela Praça dos
Veículos até o galpão coberto dos veículos de manutenção.
Abri a porta do quarto, carregando meu lençol, e pisei sobre o chão com
passos carregados de fúria, fazendo tudo tremer.
— Eu não vou ficar com um abusador, eu me recuso a dividir o quarto com
alguém como você! Não é não! Eu não quero, ouviu, eu não quero. Depois de
um dia cansada, trabalhando, exausta, eu chego no quarto e você quer
transar? Logo você, que...
— Elisa, fala baixo, por favor, shhh — Ícaro veio atrás de mim, pondo o
dedo na frente da boca, olhando para as portas fechadas do dormitório com o
rosto tomado pelo pânico.
— Logo você, que não faz nada da vida, que poderia ser uma pessoa tão
rica de verdade, tão criativa, tão produtiva, e escolhe viver nessa pobreza aí,
nessa miséria de deixar que os outros cuidem de tudo pra você, que te tratem
igual criança. Um crianção, é isso que você é, você e todos os seus amigos!
Uma criança que acha que só porque tem um desejo não precisa de mais nada
no mundo, só satisfazer esse desejo e pronto, custe o que custar, machuque
quem machucar! Você não tá sozinho no mundo, Ícaro, aprenda isso! E você
não é o chefe de nada, ouviu? Aqui você não manda em ninguém, aqui você
não obedece. Aqui você conversa e respeita.
Continuei minha marcha sem olhar para atrás, sem me importar se ele me
seguia ou não, se ele se trancava no quarto ou não. Caminhei pelas passarelas
até o Centro de Convivência, deitei-me no grande sofá de uma das salas, e
dormi um sono agitado.
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18 - Ícaro
Quando acordei, não queria saber da hora, mas desconfiava que era cedo. As
marcas da presença de Elisa se manifestavam assim comigo, mostra clara de
seu peso sobre mim. O sol batia nas cortinas da janela e iluminava o quarto
num claro cheio de vida, chamando-me para o dia. Para me levantar tarde, eu
precisaria mudar de ambiente e de companhia.
O colchão de Elisa estava vazio, desarrumado desde a noite anterior. Seu
lençol não estava mais lá, carregado por ela em sua fuga de mim. Se eu saísse
cedo da cama, arriscaria encontrá-la lá fora, ao lado de outras pessoas que
talvez tivessem ouvido a gritaria. Fiquei entre os lençóis, segurando a
vontade de ir ao banheiro, esperando adormecer novamente.
Meus olhos não me deram descanso. Despertos e sem sono, mantiveram-me
acordado ao longo das horas. Eu rolava na cama em busca das poses-chave
que me apagassem, mas ao invés de dormir, eu pensava na vida, na vergonha
que passei, na explosão de Elisa. Eu achei que ela fosse voltar carente, doida
para estar comigo, pois nos despedimos no auge de nosso carinho. As
preocupações, porém, lhe tomaram toda a cabeça, e eu não imaginava que ela
estaria tão abalada.
A cama me expulsava, por mais que eu insistisse nela. Era hora de erguer a
cabeça e enfrentar o mundo, quaisquer fossem as consequências dos meus
atos. Vesti minha roupa com movimentos mecânicos, munindo-me de
coragem. Fui ao banheiro e passei pelos corredores com o peito erguido,
pronto para confrontar os que esperassem satisfação da minha parte. Eu não
tinha feito nada de errado. Elisa é que tinha surtado.
No refeitório, os poucos nativos que faziam suas refeições me olharam com
desconfiança, apertando os olhos e as bocas. Oliseu comia sozinho em uma
das mesas. Ele ergueu a mão para me chamar. Fiz meu prato com os últimos
restos do buffet, sentei-me junto a ele, e relaxei os ombros.
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o futuro? Ah, o futuro é sempre a incerteza, né? Mas eu tenho mais esperança
do que medo. Por que se preocupar se nós estamos fazendo de tudo para que
seja bom?
— Porque mesmo fazendo de tudo, pode ser que não seja bom. Passar a
vida lavando banheiros, por exemplo, ou limpando as coisas... O que vai
acontecer quando você for velha? Como vai sobreviver?
— Ué, da mesma forma que eu sobrevivo agora. Dormir num quarto, comer
no refeitório, ajudar onde for preciso, fazer exercícios, pegar remédios no
posto de saúde... Qual é o mistério?
— Vocês aqui não têm aposentadoria? — Abri a porta de uma baia de vaso
sanitário, jogando um pouco d'água sobre o assento.
— Moço, o que é isso? Aposendatocria? Aposen... Aposendacaria? —
Laura falou alto de outra baia, esfregando a cerâmica com uma escovinha
comprida.
— Quando você fica velho, você não pode mais trabalhar. Precisa de juntar
dinheiro ao longo da vida pra se manter depois. Mas como vocês não usam
dinheiro aqui, como é que fazem?
— Nós cuidamos dos mais velhos, ué. Por que nós precisaríamos nos
preocupar com a sobrevivência justamente na nossa fase da vida mais frágil,
e depois de termos feito tanta coisa pra ajudar o mundo? Se a pessoa tem
lucidez, ainda dá pra ajudar na comunidade até morrer. Se não tem, várias
pessoas ajudam a cuidar dela. Não é assim o modo natural de cuidar das
pessoas?
— É sim, mas não é fácil. Nesse ponto, pelo menos nesse ponto, eu queria
que no meu mundo as coisas fossem como aqui.
— Que bom. Pelo menos em algo nós acertamos, né? O problema é que não
dá pra levar só esse ponto lá pro seu lado. Só funciona assim se levar tudo
junto.
pensando nela. O que dizer, como sair daquela situação, tudo girava em
minha cabeça numa sequência de simulações, a minha conversa com ela
encenada à exaustão.
O cansaço me tomou o corpo, e mesmo com a luz clareando minhas
pálpebras, a sonolência me amoleceu. Tirei cochilos curtos, acordado pela
claridade, pela preocupação. Revirei-me no colchão e suspirei a cada nova
posição, imerso num mar de questionamentos.
A porta se abriu. Levantei a coluna num salto, permanecendo sentado na
cama. De olhos em alerta, apertei o colchão sob minhas palmas. Elisa me
encarava de pé em frente à porta, de queixo erguido, punhos fechados. De
camisola e pele branca perfumada, seus cabelos ainda úmidos roçavam sobre
os ombros tensos. Ela me estudava tanto quanto eu a analisava, nós dois
presos num duelo de olhares.
— Eu não vou mais fugir de você — ela disse, fechando a porta atrás de si,
inundando o quarto com sua voz grave. — Você vai ficar no seu canto, eu no
meu, e você vai me respeitar. Consegue me respeitar, ou é mesmo um
crianção que não consegue se controlar?
— Fique, Elisa, por favor. O quarto é seu. Não está certo você ficar sem
onde dormir por minha causa.
— O quarto não é meu. Mas não tá certo mesmo eu ter de dormir no sofá,
isso você entendeu. — Ela se sentou sobre o colchão no canto do quarto, de
costas encostadas na parede, de rosto virado a mim.
— Ontem foi um dia ruim. Não pense que eu fiquei feliz com o que
aconteceu. Esse mundo de vocês... Ele mexe com a minha cabeça.
— O que tem de mais nesse mundo nosso? Desde quando respeitar a
vontade da outra pessoa é algo estranho? Vocês não têm gente do outro lado?
— Não é isso... Olha, eu já me relacionei com outras mulheres, já tive casos
que você nem imagina. — Eu me arrastei pela cama, apoiando as costas na
cabeceira, afastando-me de Elisa. — E isso nunca aconteceu antes, mesmo eu
tendo feito a mesma coisa que eu fiz com você. Sempre achei que as
mulheres eram assim. Charme, sei lá. Diz que não tá a fim, mas tá, porque
depois que fica bom, ela muda de ideia e me agradece.
— Essas mulheres não foram sinceras com elas mesmas. Estavam com
medo de você. Quem é que vai agradecer por uma falta de respeito? Um
golpe desses deixa uma cicatriz profunda.
— Mas eu só queria ficar com você. Passamos uma semana distantes. Você
não ficou feliz em saber que eu te esperava?
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19 - Elisa
jeito.
— Você tem fé demais nesse povo.
A mesa se encheu com a nossa equipe, repleta de novas pessoas levando os
assuntos em outras direções. Jones se assegurou de que eu estava bem, depois
de eu ter passado a noite no mesmo cômodo de Ícaro, e se permitiu levar pela
conversa. Comemos falando sobre o dia bonito e seco, e sobre as estradas que
ficariam sob nossos cuidados naquele dia.
Ao terminarmos, lavamos e organizamos nossos talheres, e fomos em bando
até a Praça dos Veículos. No meio do caminho, debaixo de uma passarela,
Penélope vinha em nossa direção. Jones revirou os olhos, inclinando o rosto
com fadiga, e engoliu em seco.
— Oi, Jones, bom-dia. — Penélope parou ao nosso lado, forçando-nos a
interromper a caminhada. — Você já comeu? Eu estava indo pra lá.
Jones me olhou com a boca retorcida. Virei-me ao resto do nosso grupo e
varri o ar com os dedos, exortando-os a seguir o rumo. — Podem ir. Depois a
gente se encontra — eu disse baixinho para eles. Nossos companheiros se
foram.
— Eu tenho que cuidar de umas tarefas agora. — Jones cruzou os braços,
erguendo o peito. Seus músculos pareciam crescer com sua postura,
transformando-se num homem ainda mais robusto e escultural. — Precisa de
ajuda em alguma coisa?
— Preciso de companhia. Acordei muito cedo hoje, sabe, e esse clima
horrível não me deixa relaxar. Fora que meu quarto anda tão sujo que não
suporto ficar lá. Eu esperava te encontrar. — Penélope se aproximou dele e
pousou a mão sobre seu forte bíceps.
— Pois encontrou. Satisfeita? — Jones riu com malícia. — Agora deixa eu
ir.
— Espera. Fica comigo. Queria conversar sobre o que eu posso fazer pra
ajudar. Eu preciso me encontrar.
— Ah, tá, aham, acredito. Isso só você pode fazer, tá bom? A não ser que
você queira vir mexer em estrada comigo, não posso te ajudar.
— Não, eu não quero me sujar. Tem que ser outra coisa.
— Boa sorte. Depois me conta o que descobriu. — Jones descruzou os
braços e se afastou dela, seguindo o caminho pela passarela.
— Você quer ajudar, Penélope? — eu disse, sentindo o coração pulsar com
sua vontade. — Eu posso tentar te ajudar nisso.
— Você vem? — Jones olhou para mim e me chamou.
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— Pra você? Nossa, isso seria muito... Err... Engraçado! — Ela bateu as
palmas com delicadeza, explodindo num sorriso carinhoso, mostrando todos
os dentes. — Talvez eu gostaria de fazer isso.
— Você sabe costurar?
— Não muito bem, mas alguém poderia fazer isso pra mim, não?
— Poderia, claro. Só que você não prefere aprender também? Assim você
ganha mais controle sobre todo o processo, e ao invés de simplesmente fazer
uma peça de roupa para alguém, você se sente fazendo arte.
— Hm, gostei disso, hein. Eu poderia inaugurar a minha grife por aqui, a
linha Penélope para roupas de festa. Você acha que eu faria sucesso?
— Acho sim. Faria alguém feliz com sua roupa, não faria? Eu confesso que
ficaria muito feliz vestindo uma roupa feita por suas próprias mãos. Quer
sucesso maior do que esse?
— Ai, você é uma fofa, Elisa. Isso me faz pensar, acredite, me faz pensar
muito.
— Quer que eu te leve ao ateliê de costura? Provavelmente não tem
ninguém trabalhando lá atualmente, com todas essas urgências da vila, mas
você pode ficar à vontade pra estudar os materiais e usar o que estiver à
disposição. Se quiser começar um projeto, é só me chamar pra tirar as
medidas.
— Sim, eu quero ir lá ver. Você me leva mesmo?
— Claro! Vai ser um prazer.
— Então tá, deixa eu só terminar aqui que nós vamos.
A melhor decisão do dia tinha sido ceder ao convite de Penélope. Naquela
conversa ela me deu a esperança de conquistar os corações de todos os
visitantes. Ao invés de retornarem para o outro lado, talvez eles nunca mais
saíssem do nosso mundo, mesmo que viajassem para casa. Talvez houvesse
mesmo esperança, e confiar em Ícaro me parecia algo possível, novamente.
quer começar?
— Pode ser. — Janine, uma mulher de meia-idade de olhos pequenos e pele
marrom, levantou a mão e deu um passo à frente do círculo de pessoas. —
Primeira coisa, pra quem ainda não sabe, o acampamento só desabou porque
foi sabotado.
— Eita! — Laura gritou perto dela, levando a mão à boca chocada.
— É, isso mesmo, alguém foi lá e estragou tudo. Fizemos a perícia nas
estruturas e nas lonas do teto, e encontramos furos e cortes onde não deveria
acontecer por desgaste natural ou por falha de projeto. Sabotagem.
— E quem fez isso? — alguém disse.
— Ora, quem você acha? — Janine torceu a boca e cruzou os braços. — Só
pode ter sido algum desses visitantes. Eles nos expulsaram dos quartos, não
é? E ainda por cima quiseram nos ver dormindo debaixo da chuva. Quem
aqui faria algo do tipo?
— Mas você tem provas de que foram eles? — Vinícius disse, afastando-se
do meio do círculo, unindo-se à parede de pessoas.
— Evidência que ligue diretamente a algum deles, não, não temos, mas esse
foi só um dos fatores estranhos que tem acontecido desde que eles chegaram
aqui. — Janine disse.
— E isso não é nada! — Clóvis, um jovem de corpo rechonchudo, de
cavanhaque espesso e cabelos castanhos, deu um passo à frente. — Nem
precisamos falar de sabotagem pra percebermos os prejuízos que eles têm nos
causado. E essa sujeirada toda? Não incomoda vocês não?
— Pra mim tá normal... — uma voz perdida na multidão disse.
— Não, tá sujo mesmo, tá feio — outra retrucou perto de mim.
— Pois é. — Clóvis retomou a fala, erguendo as sobrancelhas com os
ombros apertados. — Basicamente eles nos deram duas escolhas: ou viver
com tudo sujo, ou não fazer nada além de limpar as cagadas que eles deixam
por aí. Nunca vi pessoas tão porcas quanto essa gente! Não limpam nada do
que usam, não se dão nem ao trabalho de guardar o que pegam. Parece que
eles sentem prazer em deixar as coisas pros outros fazerem.
— O mundo deles é esse — Janine disse, camuflada ao redor das pessoas,
cedendo o protagonismo a Clóvis. — Os outros fazem tudo pra eles. Eles
mesmos não fazem nada. Preguiça total.
— E antes fossem só preguiçosos! — Alaís levantou um dedo atrás de um
senhor de idade, e passou à sua frente para se mostrar a nós. — Quantos aqui
estiveram lá nas Terras Comunais pra conseguir mais comida? Uma semana
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de trabalho em outro lugar pra tentar garantir um estoque mais seguro pra
gente. Esse povo do outro lado come igual bicho. E o pior, eles não sentem a
menor vergonha em desperdiçar. Vem cá, me diz aí qualquer um de vocês,
vai dizer que nunca viram algum deles fazer um pratão, depois pegar só um
pedacinho de alguma coisa e jogar tudo fora depois?
— Por isso que o mundo deles é o inferno que é! — alguém disse no
círculo.
— São crianças em corpo de adultos — outro sussurrou perto de mim,
causando risadinhas ao redor.
— Pior ainda! — Zezinho saltou à frente de todos, aproximando-se do
centro. — Já tentaram conversar com eles? Em toda a minha vida, nunca me
deparei com pessoas tão desagradáveis. Achei que o esnobismo estivesse
extinto, mas não, ele segue firme e forte nos corações dessas pessoas. Tentam
disfarçar, é claro, eles não são bestas, só que cada frase deles tá cheia de
sarcasmo. Eles acham que a gente aqui é burro, que não percebe o que eles
fazem, e não percebem que eles é que estão fazendo papel de ridículo.
— Recebemos eles aqui na vila, abrimos os braços para acolhê-los, com
festa e com tudo... — Janine disse, sacudindo a cabeça. — Pra no fim das
contas, eles esgotarem nossos estoques, sujarem tudo, e ainda por cima nos
tratarem como idiotas.
— Eu acho que eles têm que sair daqui! Já deu — Zezinho disse,
arremessando os braços magrelos para todos os lados.
— É, eles que entrem naquele barco e vão embora! — Clóvis disse.
— Isso aí, basta desses folgados! — Janine disse.
Glória assistia à discussão empalidecida, sua boca tremendo a cada ataque
aos visitantes. Ela amava Cássio, ela o queria por perto, e o furor da
assembleia a paralisou. Seus olhos se encontraram com os meus, e a energia
que já me balançava por dentro, pensando em quanto Ícaro foi capaz de
mudar, no que Penélope demonstrava para mim, a energia contagiou minhas
pernas e me jogou para a frente do círculo.
— Eles merecem uma chance! — eu disse, olhando para o teto distante,
ignorando a queimação de minhas orelhas. — Eu mostrei o nosso mundo para
um visitante, eu o fiz experimentar o nosso ritmo de vida, e ele me
acompanhou, e ele mudou. Não deixou de ser quem é, e talvez nem queira
mais saber de nós, mas pelo menos aprendeu a cuidar das coisas por um
momento. Isso teve um impacto, quer ele queira, quer não. E não fui a única a
afetar um visitante assim.
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20 - Ícaro
O rio estava prenhe, remexendo-se com sementes e folhas. Sua água clara
abria o fundo aos meus olhos, peixes cinzentos ou alaranjados, crescendo e
diminuindo conforme as ondulações da correnteza. O sol penetrava no corpo
cristalino do rio e o fecundava com vida e beleza.
O sabor do vinho se sobrepunha ao cheiro das águas. Revirei a minha taça,
chacoalhando o gole que me restava, e respirei com reverência a essência
amarga de uvas fermentadas sob meu nariz. De lábios recostados nas bordas
da taça, virei a bebida à minha boca. Encharquei toda a minha carne com o
vinho, usando a língua de espátula, uma esponja de sabores.
Um vento suave expulsava o calor de meu peito, balançava meus cabelos.
Sentado à beira o rio, numa espreguiçadeira sob um guarda-sol, pus a taça na
bandeja do chão. Bastou um olhar para que Bernadete me visse e viesse de
prontidão até mim. Abaixou-se para pegar o que deixei.
— Obrigado, Bernadete. Traga-me o melhor queijo que você tiver.
— Sim, senhor. — Ela assentiu com a cabeça e se virou de imediato para
me servir.
Tiraram ela do barco e a colocaram na mansão antiga à beira do rio de
águas cristalinas, aonde Glória nos havia levado em nosso primeiro dia na
vila. Junto a ela, trouxeram-me também, e não me deixavam sair. Oliseu dizia
que eu precisava me desintoxicar do ambiente da vila, pois aquilo me afetava
demais. De certo modo, concordei, e permiti ser levado de bom-grado.
Bernadete me trazia um pedaço de queijo num prato. Uniformizada, de
avental branco sobre vestido preto, servindo-me diante de uma mansão como
as melhores casas de meu mundo, minha mente se confundiu. De repente, eu
me senti de volta à vida, como se toda a experiência com Elisa não tivesse
sido nada além de um sonho esquisito.
— Chame Oliseu para mim, Bernadete. Diga-o que o aguardo aqui mesmo.
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— Sim, senhor. — Isso era tudo o que ela ousava dizer diante de nós, e de
fato não havia nada mais a ser dito. Seu papel era nos obedecer, e isso ela
fazia com reverência.
— Outra coisa. Traga uma cadeira para ele. Ele não pode se sentar no chão,
não é?
— Não, senhor.
O velho prazer da minha superioridade retornava ao meu sangue,
inebriando-me de poder. Era fácil retornar ao papel de senhor, recebendo
tudo de mão beijada, satisfazendo qualquer desejo com o estalar dos dedos.
Difícil era o caminho inverso, aquele que Elisa tentava fazer comigo, o
caminho da pobreza, do homem comum, num mundo desprovido de
hierarquias. Em parte, um alívio por ter sido levado à mansão. Ali, eu poderia
voltar a ser quem eu era, interrompendo a minha metamorfose.
Bernadete arrastou uma espreguiçadeira até o meu lado. Oliseu a
acompanhava atrás, em passadas lentas, aguardando-a terminar o serviço. De
cadeira posta ao chão, ele se sentou e afastou nossa empregada com um gesto
das mãos. Ela assentiu à ordem e partiu, retornando à porta da varanda, ao
longe, esperando nova chamada.
— Isso sim que é vida, hein — Oliseu disse, cruzando as pernas, juntando
as mãos atrás da cabeça.
— Sempre foi a vida. Só quando nos afastamos de algo é que percebemos o
quanto era bom, não é? — Eu cortei um pedaço do meu queijo e dei uma
pequena mordida.
— Correto. Bom ver você retornar à sua lucidez. Estava ficando
preocupado.
— Vocês fizeram bem em me sequestrar.
Oliseu riu. — Sequestrar? Boa forma de colocar essa sua estadia aqui. Tá
com saudades da sua Elisa?
Curti o sabor do queijo, de olhos fixos nas águas claras do rio. Eu não
queria me lembrar dela, aquela mulher que me evitava por eu não ter me
curvado o bastante diante dela. — Você se lembra do nosso tour no Báltico?
Depois da corrida?
— Ô se não lembro! Três dias sumido no mar, todo o mundo achando que
você tinha se perdido, já tinha até helicóptero saindo pra te procurar.
— Três loiraças, rapaz. Uma pra cada dia. Se dependesse delas, eu tinha
ficado ainda mais tempo no mar. Até pensei em procurá-las depois pra fazer a
vontade delas, mas então me lembrei que não eram tão imperdíveis assim e
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as mãos. — Se ele aceitar minhas sugestões, poderia fazer um ótimo par com
uma certa pessoa. — Penélope ergueu a mão para Bernadete, antes que ela se
fosse. — Bernadete, quero o almoço em duas horas. Você vai nos servir aqui
mesmo. Vá ver se está tudo em ordem, pois não quero mais um de seus
imprevistos desagradáveis.
— Sim, madame.
— Vocês dois têm de parar de bancar os cupidos — eu disse, retomando a
palavra após ter sido feito de fofoca. — Tenho meus próprios planos.
— Acontece que se nós o deixarmos com seus planos, você fica louco e cai
de amores por uma pobretona da vila. Daqui a pouco nem vai querer voltar
conosco! — Penélope disse.
— Acima de tudo, Penélope, eu sou um colecionador. Gosto de
experimentar novos sabores. Nunca tinha provado o gosto de uma mulher
pobre, então minha coleção estava incompleta.
— E está completa agora? Está satisfeito?
— Nunca estará completa.
— É, he he, só quando você virar rei, não é? — Oliseu bateu o braço no
meu, rindo com malícia. — Você sabe que a princesa Kate morre de amores
por você, não sabe? Tem que aproveitar, não é qualquer um que tem esse
acesso à família real.
— Isso é pouco pra ele, eu já disse. Ele merece mais, merece mulheres com
personalidade mais forte do que aquela paspalha sem sal. Só porque tem
sangue azul ela acha que pode alguma coisa, mas é tonta como a Bernadete.
Enquanto eles insistiam em decidir sobre a minha vida, o rio de águas claras
corria à minha frente, impregnado de vida e frescor, e minha mente se
dividia. Levada para longe pelas memórias evocadas, ao mesmo tempo ela
fincava raízes naquela terra de Elisa.
Por duas noites, dormi na mansão afastada da vila, escondido por Penélope
e Oliseu. Eles se retiravam para os dormitórios na vila todos os dias de noite,
para que não levantassem suspeitas sobre um grupo de visitantes
desaparecidos. Deixavam-me aos cuidados de Bernadete, seguros de que com
uma empregada à minha disposição, eu não teria por que fraquejar
novamente e voltar para o ritmo de vida imposto por Elisa.
Naquela mansão eu me sentia em casa. Banheiros individuais, suítes,
varandas, salas e um quintal grande e exclusivo. Após a janta, sozinho, eu
dispensava Bernadete de seus serviços e me punha à beira do rio para
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Demos uma volta na praça à beira-rio, onde ela me contou sobre seus
últimos trabalhos no reparo de estradas, e me recitou uma poesia que um de
seus colegas compôs sobre a tempestade. Cansada, ela fez força para manter
as pálpebras abertas, até que me pediu licença para ir dormir. Fui junto a ela,
sem ter o que fazer, e entramos juntos no quarto do dormitório.
Ela vestiu a camisola, ignorando minha presença. Apagou a luz, pegou
minha mão e me guiou à cama. Sentamo-nos na beirada, procurando o brilho
fraco de nossos olhos, reluzindo o claro fraco e azulado da janela coberta. Ela
encostou o rosto no meu, beijando-me de lábios fechados. Boca macia,
quente, gostosa. Olhos fechados, respiração interrompida.
— Tudo bem se dormirmos juntos hoje? Mas só dormir, nada mais, por
favor. Estou muito cansada, mas quero ficar com você.
— Claro, Elisa, claro que sim. Você precisa descansar.
Ela se virou de lado. Estendi o lençol sobre ela e me coloquei debaixo dos
panos, abraçando-a por trás. Beijei sua bochecha, disse-lhe boa noite, e
repousei a cabeça sobre o travesseiro, sentindo o cheiro de seus cabelos.
Dormimos abraçados, apesar de minha mente agitada, preocupado como eu
estava com a nova tempestade a caminho.
De repente, no meio da madrugada, um alarme de incêndio tocou na vila.
Uma sirene escandalosa, violenta, arremessou seu som pela janela e nos
despertou num susto traumatizante. Eletrizada, Elisa apertou minha mão.
— Fogo!
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21 - Elisa
aos olhos. Ícaro me encarava com o medo profundo de alguém que parecia
ter apenas descoberto a fragilidade da vida, congelado em sua posição ao lado
dos outros. Segurei o choro, balançando os braços e as pernas em preparação
para o combate, vestindo a manta antifogo que haviam trazido para mim.
O carro chegou na estrada de carga, descendo Jones de lá com uma primeira
mangueira enrolada numa roda. Trouxe-a até nós, engatou-a no hidrante e fez
o teste. A pressão o empurrou para atrás no esguichar de água, fazendo-o
sorrir com o poder em suas mãos. Tomei dele a mangueira, empurrando-o
para atrás.
— Vá vestir a sua manta!
— Tá! Mas deixa os outros pegarem as mangueiras. Você tem de esperar a
nossa formação pra agir. Não vá bancar a heroína.
— Eu só quero evitar o pior. Se um desses prédios desabar, já era tudo.
Ícaro levou as mãos à cabeça, abrindo a boca com os olhos arregalados de
medo, brilhando no amarelo das chamas. O calor ardia em meu rosto,
deformava os fios do meu cabelo. Um companheiro da brigada colocou um
capacete em minha cabeça, e correu ao carro em busca de sua mangueira. O
desespero me tomava, me fazia esquecer dos procedimentos básicos e me
colocava em risco.
Nós sete da brigada de incêndio avançamos rumo ao fogo, dois para cada
silo, e eu alternando entre cada um. As chapas de aço cobrindo os enormes
cilindros perdiam o brilho no avanço das chamas, rangendo com a dilatação
do calor e dos gases. Banhamos a parte externa de cada um, mas o fogo vinha
de dentro, e por mais que resfriássemos os silos, os grãos ardiam no interior e
serviam de combustível.
A água precisava entrar pelos buracos do teto por onde saíam as chamas.
Não tínhamos caminhões de combate com escadas ou torres na vila, por não
contarmos com estruturas altas e porque os silos contavam com chuveiros
internos que por algum motivo não funcionaram. Da distância em que eu
estava, a água da mangueira não tinha força para chegar até o topo.
Aproximei-me do silo central para reduzir o ângulo e tentar direcionar o
meu jato d'água sobre o fogo no teto. Um companheiro mantinha seu fluxo
sobre as paredes metálicas, e no lado oposto uma outra combatente buscava
resfriar a todo custo o inferno à nossa frente.
De repente, um grito tomou os ares acima do incêndio, um grito de
desespero e fuga. No silo sob meus cuidados, a junta entre duas chapas se
partiu numa explosão de fumaça em alta pressão, explodindo em grãos e
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22 - Ícaro
precisou dizer nada para que eu entendesse o que nos esperava no dia. Saí do
colchão, espreguiçando-me de pé, dobrei os lençóis com ajuda de Elisa,
joguei água no meu rosto e, antes que eu me desse conta, Elisa penteava
meus cabelos de frente para o espelho.
No refeitório, encontramos uma mesa de buffet mais simples do que o
normal, provida de torradas e algumas geleias ou patês, acompanhada de
ovos cozidos. Elisa apertou os olhos com desconfiança, correndo as pupilas
de um canto ao outro do ambiente.
— Não tiveram tempo de preparar tudo hoje. Estamos todos cansados, eu
acho — ela disse.
— Tudo bem. Pelo menos temos o que comer. — Eu acariciei as costas
dela, saboreando o sorriso que despertei nela.
— É, isso é muito bom. Mas amanhã deve voltar ao normal.
As mesas se enchiam de pessoas à medida que saíam dos quartos. Uma
parcela delas parecia não ter dormido desde o incêndio da madrugada,
conversando com tanta energia que certamente já tinham planos para lidar
com os novos problemas.
Elisa balançava o pé incessantemente, piscava sem parar, engolia após
mastigar pouco. Virava os olhos de um canto ao outro do refeitório,
analisando todas as pessoas. Inquieta, ela comia à minha frente como se não
houvesse tempo a perder.
Ao longo da passarela, uma mulher esbelta caminhava até nós trajando um
vestido leve de verão, azulado e com um laço sobre o peito. Penélope. Ela me
viu junto a Elisa e mostrou os dentes num largo sorriso, de olhos ardentes e
passos pesados, chacoalhando a saia.
— Elisa, minha cara, eu estou tão triste com o que aconteceu hoje à noite —
Penélope disse, repousando a mão sobre o ombro de Elisa. — Vocês já têm
uma vida tão sofrida por aqui, e ainda por cima uma coisa dessas... Tomara
que isso não afete muito a rotina da vila.
— Nós vamos dar um jeito. Se quiser ajudar, vai ser bem-vinda. — Elisa
segurou um pedaço de pão e encarou Penélope com os beiços partidos.
— Acho melhor não. Afinal, vamos embora em poucos dias, não vamos? Se
ficássemos mais tempo, quem sabe eu pensaria em ajudar.
— Você nunca pensaria nisso — eu disse, fechando a cara diante do
sarcasmo de Penélope. — Está doida pra sair daqui.
— E você não? — ela disse, erguendo as sobrancelhas.
Calei-me antes que dissesse algo que me complicasse diante de Elisa. Eu
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era cúmplice de assuntos que precisavam ser deixados para atrás, assuntos
que me envergonhavam e que se sobrepunham às minhas vontades.
— Bem, eu vou comer um pouco da ração que colocaram para comermos
hoje, e vejo que vocês já estão terminando, então tenham um bom dia, tudo
bem? — Penélope saiu de perto, torcendo a boca para a mesa de buffet.
— Tudo bem com você? — Eu me virei a Elisa, antes que ela terminasse de
comer o último pedaço da refeição.
— Claro. Você vem comigo plantar batatas?
— O trabalho hoje é com a terra, então? Achei que fosse ajudar a limpar os
silos.
— Nós perdemos muita comida, Ícaro. Temos de nos certificar de que
teremos o que comer.
Tão logo limpamos nossos pratos e escovamos os dentes, fomos juntos à
Praça dos Veículos. Montamos num quadriciclo disponível e dirigimos até o
Posto do Monte. Um outro voluntário já preparava o terreno para um
conjunto de ramas de batata-doce e batata-inglesa. Após cumprimentá-lo,
Elisa calçou uma bota na casa de apoio, deu uma olhada no planejamento
daquela região agrícola, e pegou um carrinho de mão com ramas para
começar o trabalho.
Eu a ajudei com a enxada, alternando com ela cada parte das tarefas, sem
que ela tivesse me pedido qualquer cooperação. Dentro de mim, algo me
afastava da minha vida no outro lado, de tudo o que meu papel naquele
mundo representava. A vila passava por problemas, grande parte deles
causados pela presença de minha gente por lá, e eu me sentia muito
mesquinho em deixar tudo nas costas de Elisa e de seus companheiros.
— Tô com uma dor de cabeça bem ruinzinha — Elisa disse, debaixo do sol,
fungando o nariz. — Uma sensação de sufocamento também, sabe.
— Será que ficou resfriada? Sua imunidade deve ter baixado depois desses
dias. Você anda muito ansiosa, e isso é ruim pra saúde. — Eu repeti apenas o
que minhas babás me disseram ao longo da vida, lamentando não poder
ajudar mais.
— É, né, faria sentido. Pra ser sincera, eu não tô bem.
— Então larga tudo, Elisa, vai descansar.
— Não, eu tenho de ajudar. Vai passar, você vai ver.
— Nada disso. — Agarrei seu pulso, encarando-a fundo nos olhos. —
Precisa de repouso. Lá na casa tem cama, não tem? Deita lá um pouquinho,
descansa, bebe água. Eu vou com você.
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Eu me preparava para insistir, esperando sua réplica, ela que nunca acatava
minhas sugestões sem debate. Mas respirou fundo e balançou a cabeça,
olhando baixo, retirando as luvas grossas. Conduzi-a pela terra até a casa de
apoio, levei-a ao segundo andar, onde colchões e redes disputavam o terraço
envidraçado. Ela se deitou no chão com o rosto coberto por uma mão,
fechando os olhos.
Procurei na cozinha algo para lhe preparar, mas só encontrei comida
enlatada e água. Enchi um copo e o levei para ela. Elisa bebeu um gole e
escondeu seu sorriso.
— E as batatas? — ela disse.
— Pode deixar que eu cuido disso. Vi você trabalhando nelas, e acho que
consigo fazer igual. Não vai ficar perfeito, mas vou tentar.
— Você vai conseguir. Obrigada, Ícaro. Tô precisando mesmo de um
descanso maior hoje.
— Você está ficando doente, Elisa. Só isso pra te fazer ficar quieta um
pouco, não?
Voltei ao terreno onde Elisa havia deixado o carrinho de mão, e cavuquei o
resto da nossa cota. O outro voluntário que trabalhava no lugar me deu uma
mão quando tive dúvidas, e corrigiu meu trabalho com tanta boa vontade que
não me importei com as sugestões. No fundo, ele queria apenas me ajudar.
Almocei ali mesmo, na casa, retirando uma refeição improvisada na lata
para Elisa e eu. O voluntário retornou à vila, perguntou se não queríamos
alguma coisa. Disse que não, que eu queria apenas comer e cuidar de Elisa.
Mas no segundo andar, ela não estava mais deitada. Encontrei-a de frente ao
computador, lendo uma página de texto do Fórum Geral.
— Ei, você tem que descansar — eu disse, pousando as mãos em seus
ombros.
— Mas eu estou descansando. — Ela se virou para mim com os olhos
culpados, como uma criança negociando a traquinagem.
— Deita, Elisa, deita. Trouxe algumas coisas pra você comer. Vamos lá,
descansa, pelo menos por hoje.
Ela inclinou o rosto, retorceu os lábios e desligou a tela do computador. Fez
como eu sugeri e se abandonou aos meus cuidados.
estrago causado pelo incêndio, tudo aquilo fazia meu sangue ferver. Eu era o
chefe da missão do outro lado, eu era o culpado de tudo. Mas eu não queria
aquela culpa, eu abdicava de tudo.
Deixei Elisa aos cuidados da equipe de saúde, planejando um retorno em
breve. Parti em busca de Penélope e Oliseu, e ao perceber que o sol se
preparava para se por no horizonte, perambulei por toda a vila até encontrá-
los. Eles passeavam pela praça à beira-rio, nas imediações do porto, rodeados
por outros de nossos amigos. Riam juntos, apartando-se dos nativos.
Receberam-me com frieza, dirigindo-me olhares fechados, desconfiados.
Calaram-se, alguns mantendo os sorrisos maliciosos. Penélope se pôs à frente
do grupo, aguardando-me chegar.
— Ora, se não é o nosso herói — ela disse, estufando o peito, girando o
pulso na altura dos ombros.
— Estão felizes agora? — Bati o pé no chão, interrompendo meus passos.
— Sempre felizes, meu caro. Tivemos uma noite iluminada, não tivemos,
meus amigos? — Penélope olhou para atrás, colhendo risadas das pessoas.
— Que superioridade moral vocês esperam conseguir depois de uma coisa
dessas? Destruição, pura e simples. Poderia ter morrido alguém! — eu disse.
— Mas não morreu. Você estava lá para salvá-la. Não está feliz em ser
herói?
— Vocês não se arrependem? Nem um pouco?
— Arrepender de quê? Eles também vivem destruindo tudo no nosso lado.
O que fizemos aqui não foi nada.
— Cale a boca! Quando é que eles colocaram fogo em algum lugar nosso?
Quando é que se divertiram com a morte de alguém? Nunca!
— Ué, não estou te entendendo, Ícaro. Por acaso você não veio aqui
justamente para isso? Amarelou, é? Aquela idiota fez de você um covardão,
não é? Hm, acho que agora entendi.
— Eu tô aqui na frente de vocês, dando esporro em vocês. Sozinho, eu
contra todos. Isso é covardia pra você?
— Pra mim você tá só fugindo da raia. Tem as mãos tão sujas quanto as
nossas, querido. Ou vai dizer que a sua pobretona não vai desconfiar do seu
envolvimento nisso tudo? Você pertence ao nosso lado, e não ao deles. Você
não nasceu pra ser pobre, ao contrário desse povo. Aceite isso. — Penélope
segurou meu braço, arrastando-me para si.
Desfiz-me de sua pegada, afastando-me do grupo. — Eu não nasci pra ser
pobre, você tá certa. Por isso eu não volto mais pro outro lado.
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— Mas não foi para isso que você veio pra cá com eles? Pra sabotar? Pra
bagunçar tudo? — Laura se levantou, cruzando os braços à minha frente,
cada vez mais próxima de mim.
— Sim, quando eu não os conhecia direito. Quando eu achava que vocês
eram nossos inimigos. Quando...
— E não somos mais os seus inimigos?
— Não, não mais...
Elisa se levantou num salto da cama. Jogou o lençol sobre o colchão,
cambaleou num passo inseguro, quase caindo. Corri para seu lado, acudindo
sua queda. Ela se estabilizou e me empurrou para o lado, de rosto fixo na
porta, sem olhar para mim.
— Elisa, você ficou doida? Volta pra cama, mulher, não faz isso não! —
Laura levou as mãos ao rosto com a boca aberta, e correu atrás dela.
— Por favor, Elisa, você precisa repousar. — Eu me juntei a ela enquanto
Elisa caminhava a passos apressados pelo corredor do posto de saúde. — Eu
saio do quarto, eu fico longe de você, mas não faça isso.
Um casal da equipe que cuidava dela a encontrou pelo corredor e se pôs à
frente de sua paciente, seus olhos arregalados procurando entender entre nós
o que acontecia.
— Os visitantes provocaram o incêndio. Os visitantes! Chega! É hora de
mandar todos eles embora — Elisa disse, empurrando-os com a força que
brotava de seu coração cansado.
Abriram espaço para ela porque a revelação e a chamada à ação os seduzia.
Ela alcançou a passarela e rumou aos dormitórios com nossa pequena
comitiva atrás de si. Erguia os braços quando encontrava alguém, esbravejava
palavras de ordem e exauria sua energia a cada grito.
— Os visitantes queimaram os silos! Hora de expulsá-los! Venha comigo, e
se achar alguém por aí, traga ele para cá!
O grupo de quatro pessoas se tornou um de dez, de vinte, de quarenta. Os
visitantes perdidos que vagavam pelos corredores e salões foram convidados
a seguir nossa comitiva, vigiados por membros zangados e prontos para o
confronto. Meus antigos companheiros olhavam para mim em busca de
consolo, amedrontados com a reação da massa, e eu lhes oferecia uma cabeça
baixa e resignada.
Elisa arrastou uma multidão até a praça à beira-rio, capitaneando um grupo
que não conhecia líderes. Passando mal, enervada, cansada e decepcionada,
sua voz falava mais alto, mais urgente. Elisa ganhava no grito, ela que se
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dizia tímida, que tinha dificuldades para se expressar diante de muita gente.
Em seu caminho, encontrou Penélope, Oliseu, e quase duas dezenas de
meus antigos amigos. Reunidos cara a cara, o rosto febril de Elisa se fechou
ao se deparar com uma Penélope risonha, mulher de cabelos loiros e nariz
empinado, pernas magras à mostra e postura impecável. Mais alta do que
Elisa, mais endinheirada, mais famosa, mais bonita, Penélope dava passos
rumo ao avanço de Elisa como se fosse esmagá-la, ignorando a procissão que
a seguia.
Empurraram os visitantes que seguiam na multidão rumo ao grupo de
Penélope, para reunirem todos num só lado. Tentaram me empurrar também,
mas eu resisti e Laura ficou comigo. Ela via em meu rosto a minha
transformação, e ao debater comigo ela se aliou a mim. Fiquei na fronteira
entre um lado e o outro, ao lado de Elisa, à frente de Penélope.
— Nós lhes demos comida, abrigo, água, tempo livre... Honramos a sua
humanidade, provemos tudo o que vocês precisavam pra uma vida plena, e o
que vocês fazem? — Elisa sacudiu a cabeça ao falar alto com a voz rouca,
desgastada pela garganta que se inflamava com a febre a dor de cabeça. Seu
rosto avermelhado não se abatia. — Vocês nos sabotam! Queimam nossa
comida, destroem nosso acampamento, emporcalham tudo, cospem no prato
que lhes ofereceram. Chega! Todos vocês, fora daqui, agora. Subam naquele
maldito barco de vocês e nos deixem em paz! Todos, todos!
— Minha cara, acalme-se, por favor. — Penélope piscou os olhos numa
lentidão cruel, rindo da fúria de Elisa. — Nós ainda nem jantamos em seu
adorável refeitório. Que espécie de hospitalidade é essa que expulsa seus
visitantes de estômago vazio? Isso não se faz, convenhamos, não é, nem
mesmo num lugar como esses.
— Seja razoável, Elisa, aprenda a controlar suas emoções, mostre um pouco
mais de maturidade — Oliseu disse, cruzando os braços ao lado de Penélope,
de boca escondida debaixo das sombras de sua barba. — Nós vamos embora
no prazo que vocês nos deram, e só se quisermos.
— Nada disso, chega de conversa. Vocês não sabem dialogar, então é
impossível negociar. — Elisa se aproximou de Penélope, olho no olho. —
Saiam agora!
— Você virou a prefeita da vila agora, é? — Penélope riu de deboche,
revirando os olhos. — Achei que vocês aqui não gostassem de chefes para
nada.
Elisa se virou para a multidão atrás de si. Fixou os olhos em mim. Ergueu o
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23 - Elisa
Minha cabeça ardia de dor. Eu tentava resistir ao calor da cena com a raiva
que brotava dentro de mim, mas ser jogada ao chão me quebrou. Eu já me
sentia mal, e aquele agravante tornava minha situação mais complicada.
Minha coxa latejava em espasmos doloridos, irradiando ardência para todo o
meu corpo. Meu cotovelo rugia uma dor aguda, tendo tomado grande parte
do impacto.
Quando abri os olhos novamente, ouvindo gritos ao meu redor e o som de
socos, Ícaro atacava Oliseu com um golpe em sua barriga. Oliseu se recolheu,
deu um passo para trás, fugindo de um novo ataque, tirou a mão da barriga e
a usou para se defender. Escapando de Ícaro, Oliseu aproveitou o momento
para desferir uma cotovelada nele, acertando a costela de Ícaro. Mas numa
virada rápida, Ícaro desferiu um soco no rosto de Oliseu e o nocauteou.
Oliseu cambaleou até cair ao chão.
Um par de visitantes o acudiu com os olhos arregalados, erguendo-o pelos
braços de modo que ele se pusesse novamente de pé com o apoio dos dois.
Ícaro veio até mim com o rosto fechado, caminhando ileso diante de uma
paisagem humana colorida pelo choque. Ele se abaixou, pôs a mão
gentilmente em minha testa, e me levantou de uma só vez, segurando-me
num abraço. Envolvi meus braços em suas costas, pousando a cabeça em seu
peito. Fechei os olhos de novo, porque ele me protegeria.
— Eles não vão sair por bem — Ícaro disse, voltando-se às pessoas da vila
que haviam me acompanhado até a praça. — Elisa já disse o que temos de
fazer. Vocês estão em maior número. É hora de colocá-los pra fora!
A multidão passou por nós como um rio caudaloso, avançando rumo ao
grupo de visitantes numa marcha constante e vagarosa. Dezenas de olhos
fixos em menos de trinta pessoas assustadas, integrantes do outro lado do
mundo, onde tinham dinheiro e fama, mas não tinham paz, atormentados por
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alguém intervisse. — É só isso o que a gente precisa. Tem lugar pra todo o
mundo. — Ele deu um tapinha no ombro de Ícaro, acenando para ele com a
cabeça.
— Hm, estou vendo que ele seduziu mais do que uma mulher idiota nesse
lugar, hein. Mas ninguém aqui é tão besta quanto vocês para cair na lábia
barata dele. Todos aqui...
— Com licença, madame, eu quero descer. — O capitão parou atrás dela e
pousou a mão na parte de trás de seu vestido.
— Hã? Que diabos? — Penélope fechou o rosto e se virou para o capitão,
fechando a entrada da rampa do barco com o corpo.
— Eu vou me juntar a eles. Peço com gentileza, abra caminho.
— Mas você é que vai levar esse barco! De jeito nenhum você vai embora!
Nós te pagamos pra você cumprir o seu serviço, e agora inventou de
abandonar tudo? Quem você pensa que é?
— Eu sou Nilo. Eu não quero mais ser capitão de nada. Saia do caminho
que eu quero passar.
— Não saio nada! Volta lá pra dentro. Prepare a partida! É uma ordem! —
Penélope arregalou os olhos e varreu os rostos dos companheiros sobre o
convés. Todos assustados com a multidão no porto, nem mesmo Oliseu
oferecia ajuda.
— Viu como você depende dos outros pra fazer tudo pra você, Penélope?
— Ícaro disse, rindo da cena. — Que força há nisso? Sem o poder do
dinheiro, você não é nada. É como uma criança mimada. Nilo, vem pra cá,
empurra ela pro lado. Ela não vai te impedir. Ela não pode nada aqui nesse
lado do mundo.
O capitão encarou Penélope com os lábios apertados, num leve sorriso.
Apontou para o caminho, deu um passo à frente, apoiou a mão no braço de
Penélope e fez pressão para que ela se afastasse. Ela abriu caminho a
contragosto, mas sem resistir.
Nilo desceu a rampa com seu uniforme, buscou os olhares das pessoas da
vila com as mãos entrelaçadas em frente à barriga. Acanhado, ele só relaxou
quando Laura lhe deu um tapa nas costas e o puxou para o meio da multidão
com um largo sorriso.
Ícaro me segurou pelos ombros e me virou para ele. Encarei-o com febre,
temendo suas palavras. Ele ainda poderia partir, escolher ir embora. O barco
estava para sair, e precisava de alguém para levar os passageiros.
— Elisa, você quer que eu faça parte do seu mundo? — Ele aproximou o
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agora aquela área parece até meio vazia. O engraçado é que eles saíram bem
irritados, xingando todos nós até o último segundo.
— Ah, pelo menos nos deixaram, finalmente.
— Por enquanto, né. Alguns deles eu sei que um dia ainda vão voltar.
— Como assim?
— Eu vi isso nos olhos do Oliseu. Ele é obstinado demais pra aceitar uma
derrota assim. Vai querer sua vingança, ou algo do tipo. Acha isso também,
Ícaro?
— É bem provável — Ícaro disse.
— Pelo visto eles gostam de ter inimigos. Parece que nosso convívio com
eles foi em vão. — Eu balancei a cabeça, repousando a nuca em meu
travesseiro.
— Não foi não — Laura disse. — Deixa o Oliseu voltar pra cá pra você ver
se eu não dou um jeito nele. Pode vir que eu quero ver! Ninguém saiu daqui
ileso. Sem contar que conquistamos um deles para nós, não é? — Laura
sorriu para Ícaro.
— Um não, dois — Glória disse. — O Cássio também.
— Ué, ele ficou na vila? — Eu levantei o corpo da cama, virando-me para
ela.
— Infelizmente não... Os outros visitantes o arrastaram pro barco e não
deixaram ele ficar. Ele tentou fugir, mas não conseguiu. — Glória comprimiu
os lábios, segurando um tremor que ameaçava tomar seu rosto.
— Ah, que pena, Glória. Você acha que ele vai voltar?
— Ele tem que voltar! Se ele me ama de verdade, ele tem que voltar. Senão
eu vou para lá procurá-lo.
— Não, não faça isso. Você viu como essas pessoas são. Eles vão fazer gato
e sapato de você.
— E daí? Não tenho medo. O Cássio vai estar lá pra me proteger.
— Que vida é essa, mulher? Precisa de homem pra te proteger? — Laura
revirou os olhos e riu com as mãos na cintura. — Você pode mais do que
isso. Traga ele pra cá que é melhor.
Glória fungou o nariz e se calou. Passou o dedo sob os olhos, mantendo o
rosto virado para o chão. Eu mordi os lábios e suspirei, curada de minha dor
de cabeça, mas entristecida com o destino de Glória. Ícaro me observava em
silêncio, de braços cruzados, aguardando pacientemente a sua vez de receber
minha atenção.
— Meninas, vocês poderiam me dar um tempo a sós com o Ícaro? Eu e ele
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Considerações
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No caso de alguém estreante como eu, é muito importante ter o meu livro
avaliado. Isso dá confiança para outros compradores experimentarem minha
história, e me dá um retorno sobre o que eu posso fazer para melhorar as
minhas próximas obras.
Por favor, considere me deixar uma avaliação honesta na Amazon.
Seu tempo e sua opinião contam muito para mim.
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