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Série Dois Lados da Paixão

NACIONAIS-ACHERON
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LIVRO UM

O CHEFE DE NADA

D. J. CALDAS

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O Chefe de Nada
Edição digital.
Copyright © 2017 por D. J. Caldas. Todos os direitos reservados.
Essa é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e eventos são
totalmente fictícios. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou
mortas, ou eventos de verdade, é meramente coincidência.
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Sumário
1 - Elisa
2 - Ícaro
3 - Elisa
4 - Ícaro
5 - Elisa
6 - Ícaro
7 - Elisa
8 - Ícaro
9 - Elisa
10 - Ícaro
11 - Elisa
12 - Ícaro
13 - Elisa
14 - Ícaro
15 - Elisa
16 - Ícaro
17 - Elisa
18 - Ícaro
19 - Elisa
20 - Ícaro
21 - Elisa
22 - Ícaro
23 - Elisa
Considerações

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1 - Elisa

Pelo reflexo do vidro, o barco me tomava toda a atenção. Eu vi quando ele


atracou nas docas, trazendo gente de longe, do outro lado. Assim como toda a
comunidade, fiquei de olho em sua aproximação, sem entender direito o que
seus tripulantes queriam aqui conosco. O pessoal do porto negociou tudo com
tranquilidade, e desde então o barco ficou lá, parado, com os passageiros
escondidos. Tocamos nossa vida como num dia normal, apreensivos com a
nova presença.
Passei o pano molhado no vidro, imerso em água com detergente para tirar
a gordura e o pó, e logo esfreguei com o pano seco na outra mão, para não
deixar marcas. Atrás do reflexo, Laura preparava um lanche para nós duas,
diluindo um sachê de chá enquanto a frigideira esquentava uma tapioca.
Era cedo ainda, por volta das nove da manhã, então estávamos só nós duas
no café do porto. Eu limpava a fachada, cuidando do vidro depois de ter
varrido a calçada, e Laura assobiava uma música irritante que me fazia rir a
cada vez que ela enchia as bochechas num som de trombone. Ela parou de
repente, pôs os punhos fechados sobre a cintura, e cerrou os olhos na direção
do barco.
— Esse povo tá vivinho agora, hein! — ela disse, sacudindo seus cachos
negros sobre os ombros. — Deram de tomar um arzinho, até que enfim. Tão
com cara de crianças, você não acha?
— Ah, nem parei pra ver ainda, Laurinha — eu disse, dando de ombros. —
Quando essas pessoas quiserem falar com a gente, elas que desçam de lá.
— Mas e a curiosidade? Acha que eu fico bem se não souber o que eles
querem? Nada disso. — Ela virou a tapioca na frigideira e veio ao lado de
fora para se juntar a mim. — E se eles forem gente boa?
— Tomara que sejam, né. Nós podemos preparar uma festa pra eles, cantar
umas músicas, não sei. A situação tá ruim por aqui, só que sempre podemos
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dar um jeitinho. — Eu esfregava o vidro, abaixando-me para limpar próximo


ao chão, e sequer fazia questão de olhar para o barco para dar mais assunto.
— Se bem que eles nem se mostraram direito, então vai que eles não querem
descer aqui, nunca se sabe.
— Tô te falando, mulher, eles tão vivinhos hoje. Não prestou atenção não?
Olha lá, tem um monte de gente em cima do barco, tudo cara de criança, olha
só que bochechinhas rosadas — Laura disse, assobiando com seu jeito de
trombone.
Eu me virei para o porto, deparando-me com o barco a vinte metros de
mim. Homens e mulheres se recostavam sobre o parapeito da embarcação,
mulheres de saias curtas e cores claras, chapéus de aba larga e óculos escuros,
homens de camisa polo e calça jeans, com os olhos cobertos por óculos de
sol.
— Ixi, então finalmente eles resolveram aparecer. Será que vão descer? —
Eu larguei os panos sobre o balde, enxugando a mão molhada em minha
camiseta larga.
— Bem que podiam. Daí eu escolheria um deles pra perguntar qual é o
sentido da vida, e isso me traria um grande alívio. — Laura apertou os lábios
e balançou a cabeça, focada em si mesma.
Eu ri da cara que ela fez, dando um tapinha em seu ombro. — Ai, assim
você vai complicar as coisas, calma lá. Tem que ir devagar com esse pessoal,
porque vai que eles não estão acostumados a conversar sobre essas coisas.
— Ué, eles conversam sobre o que então? Dizem que esse pessoal do outro
lado gosta de socializar, não dizem? Tenho vários níveis de conversa pra
testar com eles, é tudo uma questão de...
Não ouvi mais nada do que Laura disse, e ela própria percebeu minha pausa
e se juntou a mim. De dentro da imensa plataforma do primeiro andar do
barco, um homem saiu em direção ao parapeito e parou recostado nas barras
metálicas, olhando para mim. O único entre todos do barco a deixar os olhos
expostos, olhos claros, graúdos, exaltados por um sorriso confiante. Quieto,
sem dar atenção aos que se remexiam ao seu redor, ele apoiou um de seus pés
sobre o degrau do parapeito e me encarou com a perna aberta, de mãos na
cintura.
— Ele tá olhando pra você, Elisa.
— É, encarando bastante, né — eu disse, sem tirar os olhos do homem,
sentindo o coração palpitar conforme nossos olhos se buscavam.
— Bonito ele, hein... Gostei. — Laura acariciou o pescoço, deslizando seus
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dedos negros sobre a pele eriçada. — Desafia ele, vai, vê quem aguenta mais
tempo.
— Aguenta mais tempo o quê, menina?
— Encarando, ué, não é isso que ele... Eita, a tapioca! — Ela se lembrou do
fogo e correu para dentro do café.
Fiquei a sós com meu admirador, sua pele clara refletindo o calor do sol,
seu cabelo amarelado raspado nas laterais e penteado numa onda para atrás,
fazendo-lhe um topetinho charmoso. Não conseguia tirar meus olhos dele, o
meu primeiro contato com um homem do outro lado. Tão bem arrumado,
blazer azul sobre uma camiseta branca impecável, calça comprida azul
cobrindo até o sapato de couro.
O único entre todos aqueles do barco com cara de quem conseguia colocar
as coisas em ordem, fazer algum trabalho. O resto, um bando de flores
delicadas, eram pessoas feitas para parecerem bonitas, e nada mais. Seus
olhos pareciam ter visto em mim aquilo que eu própria procurava nele, e por
isso o encarei até o fim. Olho no olho, travamos um confronto silencioso, à
espera da primeira reação.
Hipnotizada pela presença daquele homem no barco, estive a um triz de dar
um primeiro passo em sua direção, quebrar o gelo e convidá-lo ao meu
mundo. Mas Laura gritou de dentro do café, "Elisa, o lanche tá pronto!" e eu
me virei a ela, tomada de surpresa. Quando olhei de novo ao barco, o rapaz
me oferecia um sorriso largo, mostrando-me os dentes perfeitos. Ele venceu
nosso duelo, o último a largar o olhar. Eu sorri timidamente e me virei à porta
do café, juntando-me a Laura à mesa.

— Estranho eles terem conseguido passar pela fronteira. Achei que o


pessoal do outro lado proibisse isso — Laura disse, mordendo um primeiro
pedaço de tapioca queimada.
— Eu também. Deve ser a primeira vez que eles tentam fazer contato assim
desde a separação, né? Mas que bom que decidiram isso, pois quem sabe
assim a gente começa a se entender. — Eu assoprei a minha xícara de chá,
olhando através do vidro em busca da visão do meu rapaz.
— Ele tá caidinho por você, Elisa, ai que inveja... — Laura suspirou ao meu
lado.
— Para com isso, Laurinha, ainda não dá pra saber. Pensa só, se fosse esse
o caso, não seria esquisito? Eles dizem ser nossos inimigos há tanto tempo, e
de repente chegam aqui com esses sorrisos todos. Tem algo estranho nessa
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história.
— É, olhando por esse lado, pode até ser. Se bem que eu toparia o desafio.
Vão ter que usar muita imaginação para me tirarem do sério.
— Você é um caso especial, né, realmente tem que ter inspiração pra te
balançar, porque é mais fácil a outra pessoa endoidar ao seu lado.
— E isso é bom, diga se não é, um pouco mais de espontaneidade, leveza,
um pouquinho de emoção. — Laura fez uma valsa com as mãos,
gesticulando-as pelo ar.
— É bom sim, é claro — eu disse, sentindo-me corar, antevendo as
próximas palavras de minha amiga.
— Você precisa disso mais do que eu, aliás. O Jones tá te carregando pro
mundo dele, credo, você tem que ficar longe dele um pouquinho.
— E isso é ruim? Nós somos amigos e gostamos fazemos coisas juntos.
— O tempo todo! Ele só quer saber de trabalhar, e você tá indo na mesma
onda, e olha a sua ansiedade. Não, tem que parar com isso, nós não estamos
nesse mundo pra morrer de trabalhar não. Você tem que ter um espaço
próprio pra desenvolver sua individualidade. Não dá pra ser a sombra do
Jones. Tem que se juntar com um pessoal mais descolado, menos
preocupado. Olha pra cara do seu rapaz lá no barco, sente que leveza. — Ela
segurou meu rosto e me virou pelas bochechas para o barco.
Eu sacudi a cabeça para me desvencilhar dela. — Nós nem sabemos o que
eles fazem da vida, Laura! Vai que eles são um bando de desocupados que
não sabem nem lavar a própria roupa? Com um barco desses, é muito
provável.
— Pode até ser, mas esse rapaz olhando pra você tem cara de ser bem
independente também, não acha? Bem, eu acho — ela disse, catando as
últimas migalhas de sua tapioca.
— Não vou dizer nada pra não quebrar a cara depois. Vamos lá, temos
trabalho a fazer.
— Você tem, lá com o seu Jones, eu não. Vou ficar por aqui mesmo, a vista
tá boa, tá bonita, sabe. — Ela me deu um sorriso malicioso, esticando os
braços negros sobre os cachos volumosos de sua cabeça, virando o rosto para
o meu rapaz, lá no barco.
— Tá bom, entendi. — Eu me ergui da cadeira, sacudindo a camisa para me
livrar dos farelos, olhando de soslaio para Laura, com um leve sorriso. —
Deixa eu ir lá acordar a Glória, ver se consigo botar juízo naquela mulher. O
Jones nos espera lá no Posto do Monte.
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— Deixa a menina dormir, coitada, é o jeito dela. Ela não é sombra de


ninguém.
— Você que pensa. Ela só quer saber do mundo do outro lado. Se deixar
assim, ela não faz nada, e daqui a pouco ela aparece aí deprimida. Nada disso,
tem que sair daquela cama, respirar um ar, mexer o corpo. — Eu saí pela
porta aberta sem nem dizer tchau, buscando no barco a visão que tanto me
desconcertava. Mas outras pessoas lotavam o convés da embarcação,
nenhuma delas aquele que eu procurava. Abaixei a cabeça, montei em minha
bicicleta e fui ao dormitório onde Glória dormia.
Bati à porta e ela disse "Pode entrar," com sua voz doce e vagarosa. Ela lia
um romance antigo, relíquia do outro lado, contando uma história de um
mundo totalmente diferente do nosso.
— Vamos, levanta, vem comigo. O Jones já deve estar preocupado — eu
disse, parando ao seu lado na cama.
— Deixa ele se preocupar. Não sou obrigada a nada — Glória disse, sem
tirar os olhos do livro em suas mãos.
— Verdade, mas e essa preguicinha aqui, hein? — Eu segurei um de seus
pés e o balancei sobre o colchão, fazendo suas grossas coxas deslizarem sob a
coberta.
— Preguicinha boa...
Eu ri de seu sorriso fofo, mas me forcei ao juízo. — Ai, Glória, tá bom, já
entendi, mas você vai ficar trancada aqui o dia todo? Vamos lá pra fora,
respirar um pouco de vida, ajudar um pouco na comunidade. Você sabe que
nós precisamos de toda a ajuda possível com esses estoques baixos.
Consegue se imaginar num racionamento? Pois é, quem mais vai sofrer vai
ser você.
— As cidades não vão deixar isso acontecer. Vão mandar ajuda — Glória
disse, abaixando o livro em seu colo, encarando-me com seus olhos pretos.
— Eles já estão nos ajudando, já mandaram até uns tratores novos, mas nós
estamos falando aqui de comida, coisa básica, isso nós é que temos de
resolver na nossa área.
— Hm... — ela voltou os olhos às palavras impressas entre seus dedos,
fugindo de minha face.
Respirei fundo num longo suspiro, li o título do livro que ela não largava,
chamado "Marcas da paixão" e fiz como se tratasse com uma criança. —
Você ficou sabendo do barco?
— Hã? Que barco? — Ela cerrou as sobrancelhas, encarando-me de súbito.
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— Chegaram hoje cedo, vindos do outro lado. Um pessoal muito arrumado,


parece gente dos livros e filmes que você gosta de ver. Não quer conhecê-
los?
Glória saltou da cama num pulo, energizada pela promessa. — Gente do
outro lado? Muita gente? — Ela me segurou pelos ombros, trazendo-me para
perto de si.
— Umas trinta pessoas, por aí. É um barco grande, bem luxuoso, coisa
típica do mundo deles. Vamos fazer o seguinte? Passamos algumas horinhas
lá com o Jones e o pessoal do Posto do Monte, e depois vamos conhecer esse
barco, que tal?
— Vamos, vamos sim, claro, nossa, mas não podemos conhecê-los antes?
— Glória pegou um pente sobre a cômoda e se pôs diante do espelho para
pentear seus longos cabelos escuros, emoldurando a brancura de seu rosto
redondo.
— Só depois, Glória, porque aí ficamos livres para aproveitar o tempo que
quisermos com eles.
Consegui convencê-la e levá-la comigo ao Posto do Monte. Pegamos um
ônibus em frente ao dormitório e deixamos a vila para atrás, rumo ao
laboratório agrícola. Passamos pela reserva florestal que marcava o cinturão
verde entre nossos prédios e nossa zona de produção, e saímos do veículo
assim que avistei Jones entre os pés de mandioca mais afastados do Posto.
— Bom dia, meninas. Bora lá, deixei as enxadas um pouco mais pra trás,
vêm comigo que eu mostro — Jones disse, sua pele negra protegida por um
longo chapéu de palha, gotas de suor escorrendo por seu corpo torneado e
marcado com os hematomas de quem topa qualquer trabalho.
— Calma aí que a Glória nem passou o protetor solar ainda. Dá um
desconto porque foi difícil tirar ela do quarto — eu disse, caminhando na
terra com meu chinelo de dedo.
— Glória, o dia tá tão bonito, tão gostoso, por que você não queria vir? —
Jones andava com calma à nossa frente, seu bumbum forte esticando uma
bermuda apertada.
— E pegar esse sol todo, e estragar a minha pele e me sujar toda? Isso não é
trabalho pra mim, delicada como sou. Se quiser, eu sento ali debaixo da
árvore e fico vendo você trabalhar, com todo prazer — Glória disse, secando
Jones de cima embaixo, lambendo os beiços.
Revirei os olhos, sacudindo a cabeça. — Tá vendo, Jones, é complicado.
Ela pode escolher qualquer trabalho pra fazer, e prefere ficar sem fazer nada.
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Vai entender, né.


— É, vai entender. — Ele parou diante dos nossos materiais no chão e se
virou a mim, esperando-me chegar com olhos cheios de carinho. — Prefiro
muito mais estar aqui com vocês do que fechado no quarto sem nada pra
fazer.
— É, eu também. — Eu calcei meu par de botas e peguei uma enxada, junto
a uma cesta com uma dezena de mudas. Sorri para Jones, tão cheia de energia
quanto ele.
— Isso é porque vocês são muito daqui, sabe. Eu acho que tenho mais o
jeito do outro lado, sempre achei. Nasci no lugar errado. — Glória calçou as
botas com nojo, terminou de passar o protetor solar e pegou uma cestinha
para nos acompanhar.
— Se você soubesse como é realmente a vida do outro lado, talvez
reconsideraria as suas ideias — Jones disse, fechando o rosto.
— Exatamente — eu disse, sentindo o meu coração apertar ao me lembrar
do homem sobre o barco me encarando.
Glória deu de ombros e nos seguiu, fazendo como sempre fazia,
trabalhando no ritmo mais vagaroso que ela conseguia fazer.

No Posto do Monte, o pessoal fez cálculos no sistema e projetou a


necessidade de um maior plantio de milho e mandioca para os próximos
meses. Tivemos uma safra muito ruim no último ano, e em pouco tempo já
começaríamos a entrar na nossa margem de reserva. Para não correr riscos,
abriram novas frentes de trabalho na zona rural e convocaram voluntários.
Onde quer que pedissem trabalho, eles podiam contar com a ajuda de Jones, e
eu o seguia com toda a minha energia. Por isso lá fui eu cavar buracos com
Jones e Glória para plantar nossas ramas de mandioca.
— Já conversaram com o pessoal do barco? — Jones disse, socando com
força a terra, seus músculos vibrando com o baque.
— Ainda não, mas... — tentei dizer, interrompida por Glória.
— Nós vamos lá daqui a pouco!
— Esse pessoal não presta não, já vou logo dizendo, viu. — Ele ergueu a
ponta do lábio, fazendo cara de nojo, levantando a enxada sobre a cabeça.
— É mesmo? — eu comentei, tentando fingir desinteresse. — Você foi lá?
— Dei uma passada lá logo quando eles chegaram. Disseram que estão
numa excursão pelo rio, e que acharam curiosa a nossa parada.
— Curiosa?
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— É, e falaram isso pra não dizer outra coisa, pelo menos foi o que me
pareceu. — Jones sacudiu a cabeça. — O que eles querem por aqui? Se eles
esperam conhecer nosso modo de vida, eles tinham de ir pras cidades, não
aqui, na fronteira.
— Devem ter o motivo deles. Quem sabe querem levar algum de nós com
eles? — Glória se pôs sobre o cabo da enxada, sonhando alto com o queixo
apoiado em suas mãos.
— Se vierem com esse papo, desconfie. — Jones deu uma olhada ríspida a
Glória, abaixando-se para ajeitar uma rama na terra.
Almoçamos sob a sombra de uma varanda e esperamos no posto de apoio
até que o sol abaixasse mais um pouco e pudéssemos voltar para finalizar a
cota do dia. Glória, excitada como estava pela presença dos visitantes na vila,
não nos deixou descansar direito, contando-nos tantas histórias sobre o outro
lado que não nos sobrava outro assunto.
Por fim, terminamos nossa cota bem antes do previsto, quando Glória se
deu conta de que se terminasse cedo nós poderíamos adiantar nosso outro
plano, e tomamos um banho para tirar a sujeira. Vesti minha blusa vermelha
de sempre, uma bermuda e meu chinelo, mas tive de esperar até que Gória se
aprontasse com sua roupa de festa.
— Você não vai assim, por acaso, né? — ela me disse, olhando torto para o
meu visual casual.
— E não tá bom? É o que eu uso todo santo dia, ué, qual é o problema?
— Tem que botar sua roupa de festa, Elisa! Você já deve ter visto como
eles estão vestidos no barco, não deve? O pessoal do outro lado é muito mais
elegante do que nós, então temos que causar boa impressão.
— Pra quê? O que vamos ganhar com isso?
Ela se embolou, começou a dizer algo e engasgou. Balançou a cabeça e se
voltou ao espelho para passar seu único batom vermelho, ainda quase novo
depois de anos, tão raras as oportunidades de usá-lo. Ela se ajustou em seu
vestido florido colado ao corpo, numa estampa de violetas escuras para
combinar com o preto intenso de seus longos cabelos.
Chegamos ao barco sem burocracia, encontrando ninguém do porto para
nos dar alguma recomendação. O pôr-do-sol se aproximava, intenso no céu,
refletindo nuances de nuvens coloridas nas águas barrentas do nosso rio. O
barco se impôs diante de nós, um iate enorme, de três andares, nunca antes
visto nas águas da nossa região.
— Ei, querem subir? Podem vir, não tenham medo — uma voz disse ao
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topo da rampa do barco. Um homem aprumado, de gravata sobre uma camisa


branca, calças negras e barba espessa nos saudou.
Glória passou à minha frente e subiu a rampa, erguendo a mão ao homem
que nos recebia com um grande sorriso. Ele a conduziu para o convés da
embarcação, e de repente dezenas de pessoas nos espiavam dos andares de
cima e do espaço de convivência do barco. Minha bochechas coraram, pois
fui tomada por um receio de pisar numa zona perigosa. Aquelas pessoas se
declaravam nossas inimigas há décadas, e lá estava eu, pisando num pedaço
de seu mundo por livre e espontânea vontade.
Um par de olhos me encontrou e não me largou mais, engatando-se numa
dança que me cegou para o resto do universo. Aquele homem, o mesmo que
me viu de manhã, que não largou meu rosto, ele se pôs ali, à minha frente,
trazendo-me uma taça de vinho.
— E eu achava que o dia não poderia ficar mais bonito — ele disse ao pé do
meu ouvido, oferecendo-me um gole da bebida. — Pôr-do-sol, esse rio
calmo, esse clima gostoso... Bem que eu me perguntava se algum de vocês
não gostaria de se juntar a nós.
Glória ria atrás de mim, conduzida para longe, cercada numa roda de
conversas, do jeito que ela queria. Eu, confrontada com o meu homem, deixei
que ele me levasse para uma área mais afastada do convés, recostando-me ao
parapeito.
— Como você se chama? — eu disse, querendo um nome para identificá-lo.
— Ah, sim, claro, eu sou Ícaro. E você?
— Elisa. Está gostando daqui da nossa comunidade de Água Clara? — Eu o
encarei nos olhos, cruzando os braços ao perceber seu peso diante de mim,
encabulada por estar sozinha em meio àquela gente toda.
— Ainda é cedo pra dizer. Só agora pudemos receber vocês aqui no iate, e
no momento as impressões têm sido positivas.
— Bem, vocês passaram o dia todo aqui ou deram uma saidinha para
conhecer a região?
— Ficamos por aqui mesmo, apreciando a vista. Não estamos com pressa.
— Ele bebericou um gole de sua taça, estalando os dedos na direção dos
aposentos do barco, onde uma moça de gravata borboleta e saia abaixo do
joelho servia doces sobre uma bandeja.
— Sabem que podem ficar à vontade, né? Não têm curiosidade de ver como
a nossa vida funciona por essas partes?
Ele sorriu com os olhos virados ao chão. — Você gosta de fazer perguntas,
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não gosta?
Eu corei, sentindo-me sem chão. — Só estou tentando te conhecer.
— Tudo bem, é que você parece meio tensa, preocupada, toda durinha.
Vamos lá, se solte um pouco. — Ele deslizou a mão sobre meu braço,
alcançando minhas costas. — Eu queria saber mais sobre você também, então
me dá essa chance, tudo bem? Mas antes, aqui, já experimentou desses
doces? Pode provar, nós os trouxemos pra vocês.
A moça com a bandeja parou ao meu lado, expondo-me uma série de
bolinhas achocolatadas e bombons de diversos tipos. Peguei um arredondado
e o mordi sem saber o que encontrar dentro. Licor escorreu de seu interior em
minha primeira mordida. Recuei sobre o parapeito e pus a mão no queixo
para evitar que vazasse mais. Ícaro pegou um guardanapo da bandeja e
limpou minha pele adoçada.
— É bom, não acha? Duvido que tenham isso por aqui — ele me disse,
dobrando o guardanapo e o entregando à moça.
— Verdade, os nossos doces costumam ser bem mais simples.
Olhei para além dele, onde se aglomerava o grupo ao redor de Glória, e para
minha surpresa ela desfilava por entre eles com uma outra roupa, um vestido
vermelho longo com brilhos, um colar de prata com pingentes dourados, a
roupa mais luxuosa que eu já tinha visto. Alguém a tinha vestido daquela
forma, e agora todos a aplaudiam, agraciados com sua beleza. Uma mulher
loura e alta pegou a mão de Glória e a guiou pelo convés, sorrindo para mim.
Ícaro se virou ao perceber a mudança do meu foco de atenção, e engoliu em
seco ao ver a mulher alta.
— Adotaram a sua amiga. — Ele deu uma risadinha, apertando os lábios
para voltar seus olhos a mim. — E aí, como foi o seu dia?

Glória e eu saímos do barco na hora da janta, deixando os passageiros do


barco seguirem sua própria programação. Pensamos em convidá-los para
comer conosco, mas um grupo grande daqueles precisava de aviso prévio
para que houvesse pratos para todos. Tampouco nos convidaram para jantar
no barco, portanto nos dirigimos ao refeitório para encontrar nossos amigos.
Assim que se serviu, Glória se sentou à nossa mesa e expressou toda a sua
empolgação com a visita.
— Gente, eles são muito finos, vocês precisam ver! Me deixaram provar um
vestido maravilhoso, quase feito pra mim, coube direitinho, não é, Elisa? Ela
me viu desfilando, viu como eu fiquei um arraso, viu como deixei todos eles
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babando...
— Eita, é isso que eles fazem no tempo livre? — Laura disse, engolindo por
inteiro uma folha de couve.
Glória revirou os olhos. — Ah tá, Laura, é, é isso sim, eles só ficam
rodando pra lá e pra cá de vestido... Ah, me poupe, né. Vai lá falar com eles
pra saber como é. São bons de papo, e trouxeram um monte de coisas
gostosas. Eles vão te tratar como uma rainha. — Glória girou o próprio prato
com uma sobrancelha erguida, contrariada e sem fome.
— Eu quero lá ser rainha, hein. Rainha não sabe nem varrer o chão, quem
dirá fazer alguma coisa importante na vida. — Laura riu da cara de Glória. —
Se eles tiverem umas brincadeiras legais, por outro lado... Talvez aí eu me
interesse.
— Laura, deixa esse pessoal pra lá. Não tá perdendo nada de mais — Jones
interviu, cortando um pedaço de omelete. — É gente que só quer saber de
mordomia, que vem nos visitar só pra rir da nossa cara. Né não, Elisa? — Ele
me cutucou com o cotovelo, despertando-me para a conversa.
Eu apenas acenei com a cabeça, pois me encontrava imersa na imagem de
Ícaro no barco, em nossa conversa ao pôr-do-sol, na beira do rio. Os olhos
verdes daquele homem brilharam a cada palavra que me disse, seu peito se
ergueu a cada fato que eu lhe contei sobre meu dia. Ele me ouviu, ele me fez
rir, esquecer da vida, da escassez, das preocupações, de... de Jones. Por duas
horinhas, por um momento que me valeu um coração leve e acalorado.
Jones cerrou as sobrancelhas sobre mim, num sorriso irônico, encucado
com o meu deslocamento. Se ele soubesse de meus pensamentos, certamente
ficaria chateado, pois meu corpo estava cansado de tanto trabalho, e minha
mente pedia a tranquilidade de um coquetel no barco.
— Depois você vai ajudar no calçamento da alameda? — Ele sussurrou ao
meu ouvido, enquanto as meninas debatiam sobre a experiência de Glória no
barco.
Não, eu não queria ajudar em nada mais, eu queria apenas um momento
para mim, eu e minha cama, eu e meus pensamentos... Ícaro, aquela imagem
e a leveza. Por que eu me deixava levar tanto pelo Jones? — Hoje não. Estou
cansada, tudo bem? Quero ir dormir mais cedo.
— Claro, sem problemas. Tô meio cansado também, mas vou lá mesmo
assim. O bom de fazer isso de noite é que não tem o sol pra queimar as
costas.
Terminamos o jantar e os três foram para fora, sob as árvores da grande
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praça, curtir um pouco do frescor da noite ao lado de outros amigos. Eu me


despedi com um longo bocejo, para que não tivessem dúvidas da minha
necessidade de repouso.
Em meu caminho rumo ao quarto, pelas vielas tranquilas da comunidade,
peguei a trilha das docas, visando uma última imagem do barco. Algumas
pessoas conversavam sobre o convés da embarcação, iluminadas pelo fraco
brilho de lâmpadas externas. Meu coração palpitou ao imaginar Ícaro à minha
espera, e a vergonha me fez mudar de ideia. Apressei meus passos e fui com
pressa ao dormitório. Por um lado eu queria vê-lo mais uma vez, por outro eu
tinha medo.
Eu me deitei na cama, debaixo de um lençol e apaguei a luz. Mergulhada no
escuro, minha mente projetou a visão de uma fantasia boba, uma fantasia que
me trouxe um sorriso sincero e a sensação de leveza que eu tanto buscava em
minha vida. Ícaro nadava nu nas águas calmas de uma lagoa, e eu me juntava
a ele em lentas braçadas, escondendo a minha nudez na turbidez líquida que
nos envolvia. Eu e ele nos aproximávamos, mas não nos encostávamos,
curtindo nada além do desprendimento total de nosso momento juntos.
Prestes a adormecer, caiu sobre mim o peso dos compromissos do dia
seguinte. Eu tinha prometido ao Jones que cuidaria de muitas coisas, num dia
muito mais cheio do que aquele, e como eu arrumaria um tempinho para
conhecer mais do Ícaro? E se ele fosse embora logo? Meu coração apertou,
minha cabeça pareceu encolher por um instante, e tentei voltar à minha lagoa,
sem sucesso. O peso do trabalho me nocauteou, por fim, e me mandou para
um sono pesado e definitivo.

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2 - Ícaro

Atracados no porto da vila, nós acordamos na metade da manhã, após a


primeira noite naquelas terras estranhas. O barco balançava bastante, dando
fortes sinais de que flutuava sobre um rio, e as casas à margem das docas
permaneciam de portas abertas, num entra e sai silencioso de pessoas que
conversavam baixinho, como se não nos quisessem incomodar.
Saí do quarto com cuidado para não acordar Oliseu, que dividia o quarto
comigo, no beliche de baixo. Lavei o rosto no banheiro do corredor, arrumei
o cabelo no espelho e fui ao convés para espiar o lado de fora. Algumas
pessoas tomavam o café da manhã servido pela nossa camareira, em mesas
arrumadas sobre o piso de madeira, tomando sol na tranquilidade daquela
manhã fresca e gostosa.
Aquilo tudo me parecia triste. Sim, tudo, aquela cidade pobre, onde sequer
se via um carro, e aquela nossa situação, atracados num lugar tão assolado
pela teimosia dos seus habitantes. Escolheram uma vida de privações e
dificuldades, tendo seus pais e avós morrido em vão para se separarem de
nós. Eles dizem que nós viemos do outro lado, simples assim. Sequer se
importam em nos dar um nome. E cá estávamos nós, esperando a chance de
descer sobre aquelas ruelas.
Eu me sentei numa cadeira e comi um croissant de chocolate, afastado dos
outros. Oliseu não tardou em aparecer no convés, seu cabelo escuro
desgrenhado, com cara de charme, como ele costumava dizer. Tomamos o
café da manhã juntos, sem muito o que dizer, entediados pelas incontáveis
horas trancados naquele lugar, à espera do momento certo.
Penélope surgiu com o chapéu branco assinado pela marca de sua mãe, uma
estilista renomada da nossa cidade, seus olhos protegidos por óculos escuros
redondos, e um vestido leve azulado, suas pernas magras e brancas
resplandecentes sob a luz do sol. De batom rosa e rosto corado, eu tinha
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certeza de que ela havia acordado muito mais cedo do que nós, e apenas
esperava a nossa presença.
— Fiquei lembrando aqui de ontem, fiquei pensando nisso a noite toda,
acreditam? — ela disse, arrastando sua cadeira ao meu lado, até que pudesse
recostar sua coxa na minha.
— É mesmo? Teve problemas pra dormir? — Eu bebi um gole da minha
xícara de café, encarando-a com um sorriso brando.
— Um pouco, é verdade, mas não foi isso. Eu fiquei rindo da cara daquelas
duas que subiram aqui, eu realmente não consegui tirar isso da minha mente.
— Penélope pôs a mão sobre a boca, contraindo os lábios num riso preso. —
O que foi aquilo, gente? Ela pôs o vestido de mamãe e ficou se achando a tal,
como pode?
— Nós a aplaudimos, não é? Queria que ela fizesse o quê?
— Fizemos foi certo, porque foi muito engraçado. Eu ria, nossa, como eu
ria, e ela não percebia que na verdade estávamos todos fazendo graça dela.
Esse povo daqui deve ser muito idiota, coitados deles.
— Se me permite, Penélope — Oliseu interviu, saboreando um pedaço de
queijo. — Ela não ficou nada mal com o vestido e as joias. Ela tem um
corpão, né não, Ícaro? — Ele buscou meu olhar, erguendo as sobrancelhas.
— Até parece que Ícaro vai se impressionar com uma caipira daquelas. —
Penélope retirou os óculos escuros e revirou os olhos.
— Olhando só pelo corpo, as duas são muito gostosas, não dá pra negar
isso. — Eu sacudi a cabeça, erguendo os ombros. — Você ficou com ciúmes,
Penélope?
— Ciúmes? Eu? Daquelas duas? Ha ha, mas nunca! — Ela estalou os dedos
para chamar a camareira, apertando o queixo para não demonstrar irritação.
— A nossa missão é essa, você sabe que vamos ter que aprender a conviver
com esse povo — Oliseu disse.
— Ou conseguir enganar bem, né? — Penélope disse.
— É, enganar também funciona. Aliás, é bem mais fácil enganar quando a
mulher te deixa excitado — eu disse, acenando a ela com a cabeça. — Pode
rir, vai, é gostoso te ver rindo assim. Aposto que o pessoal desse mundo aqui
nem liga pra isso. São muito diferentes da gente.
— Isso é, não tem como negar — Oliseu disse.
Penélope escolheu dois tipos de queijo selecionados sobre a bandeja da
camareira, e levou um deles à minha boca, dando-me de comer. Esperou-me
mastigar com o rosto próximo do meu, seus olhos de mel famintos pela
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minha atenção, seus longos fios de cabelo dourado balançado sobre seus
ombros alvos.
Cássio se levantou de sua mesa ao lado da nossa. Observou a vila à beira do
pequeno porto onde nos encontrávamos, e se virou para nós.
— Vamos embora? Isso aqui não é pra gente do nosso tipo — ele disse.
— Dá um tempo, Cássio — eu disse. — Chegamos ontem, vamos lá, tem
muita água pra rolar ainda.
— Mas você esperava que fosse assim? Esse fim de mundo? Eu achava que
eles teriam mais coisas, sei lá, eu sabia que eram pobres, só que... Ah, quando
você vê o lugar, é muito pior.
— Você fez um trato, rapaz. Vai aguentar, e estou aqui pra garantir que
você siga até o final. — Engrossei a voz para lembrá-lo da minha autoridade,
e relaxei para tentar convencê-lo. — O que você tem tanto pra fazer que não
pode se permitir essas férias?
— Férias? — Cássio riu de deboche, suspirando em seco. — Só tô aqui
porque você mandou, e você só fez isso porque nunca tinha vindo pra cá.
Agora que viu como é de verdade, tá na hora de admitir que o plano é uma
furada.
— Não é furada. Deu uma olhada nas mulheres do lugar? Dá pro gasto, vão
cair direitinho. Você já escolheu alguém? — Eu me levantei da mesa, falando
mais próximo dele, mantendo um tom alto para que todos no convés
pudessem me ouvir.
Encabulado, Cássio fugiu do meu olhar, mirando o chão, balançando a
cabeça. — Estou de olho numa pessoa... Mas e daí? Não consigo fazer isso.
Fingir gosto por alguém assim, uma pobretona, cheia de calos nos dedos,
roupa suja, cheiro de suor... Eu vi aquela que você trouxe aqui ontem, não
aquela do vestido, aquela outra, com roupa simples, a sua escolhida.
— Viu, né. Gostosinha, encabulada, pronta pra cair na minha lábia. Mais
fácil do que isso, impossível.
— Isso não é mulher pra gente, Ícaro. — Ele inclinou o rosto, abrindo os
braços.
— Não é, mas o plano é esse. Você escolhe um nativo, começa um caso
com ele ou com ela, e fica na vila junto de nós, até sobrecarregarmos tanto a
rotina deles que vão se irritar conosco e dar motivo para queimar o filme
deles lá no nosso mundo. O que tem de ruim nisso? Você come uma mulher e
ainda salva o mundo.
— É... Não sei.
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— Lá no clube, seu pai vai te cobrar as dívidas, lembra? — Oliseu se juntou


ao meu lado, nós dois de pé, recobrando o juízo de Cássio.
— Pois é, tá falando de voltar como se tudo estivesse um mar de rosas no
clube. Lembra que estamos aqui pra não irritarmos os velhos. Sem o dinheiro
deles, você não é nada, e o povo desse lado aqui precisa acabar.
— Eu não preciso do dinheiro de ninguém — Penélope disse, à mesa,
erguendo a sobrancelha. — Estou aqui por vocês, meus amigos. Já estava
cansada dos ares do clube.
— Mas tá aí fazendo graça do pessoal da vila. Até parece que você quer se
envolver com algum deles. — Cássio cerrou os olhos na direção dela,
afastando-se de mim.
— Não quero, mas vai ser divertido. E vai ser fácil também. Você acha que
eles vão me resistir? Nada disso. Vou colocar o meu escolhido na palma da
mão, torná-lo meu servo, doidinho de amor. Quando tudo começar a ruir por
aqui, nós vamos embora. Não vamos passar por nenhum sofrimento, e estou
achando tudo muito engraçado até agora. — Penélope riu, apoiando o rosto
sobre uma mão, o cotovelo equilibrado sobre a cadeira.
— Isso, Penélope tá certa. Tem tanta mulher nessa cidade, com certeza você
vai conseguir dar uns pegas em uma. — Eu dei um sorriso malicioso a
Cássio, cutucando suas costelas com o braço.
Oliseu deu um tapinha nas costas dele. — Tá, mas a gente podia pelo menos
descer um pouco na vila. Sei lá, estamos há tempo demais nesse barco. Tô
precisando andar um pouco, sair desse lugar fechado — Cássio disse,
contraindo os ombros.
— Calma, rapaz. Deixa eles fazerem contato direito. Vamos aguardar um
convite, pra não dar de cara a nossa intenção. Até lá, vai pro seu quarto,
assiste um filme, vai jogar alguma coisa com alguém, ou chega mais aqui na
mesa, vamos bater um papo, esquecer da vida. Marina, vem cá também, o
Cássio aqui tá precisando de companhia. — Eu acenei para Marina, sentada
próxima de Cássio, e ela atendeu ao meu pedido com um olhar atencioso ao
nosso amigo inquieto.

Consegui juntar o pessoal para um jogo de cartas, assim que o silêncio


retomou o controle sobre nós. Coloquei Cássio no meio, formando um grupo
com Penélope e Oliseu, e jogamos sem pressa, esperando o dia seguir seu
rumo.
— Um banho bem longo de espuma... Ai, isso seria bom agora, hein —
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Penélope disse, analisando as cartas em sua mão.


— O rio está logo ali atrás — Oliseu disse. — Não é de espuma, mas deve
ser bem gostoso.
— Não, nessa nojeira eu não entro nem morta!
— A água é limpa — eu disse, atirando uma carta na mesa, posicionando-a
junto de uma outra de mesmo naipe já disposta. — Que tal a gente tirar a
roupa e se jogar? — Eu encarei Penélope com um sorriso malicioso.
Ela, entendendo a brincadeira, aproveitou para fazer charme. — Hm, se
você for mesmo, eu até penso na ideia. Se está dizendo que a água é limpa,
você que prove primeiro. — Apertou os ombros e estufou o volume de seus
seios pelo decote, escondendo-os atrás das cartas.
— Qualquer coisa pra sair desse barco. Vocês vão mesmo? — Cássio se
levantou, pegando as abas de sua camisa, ameaçando subi-la.
— Ui, que fogo desse menino! — Penélope riu, abanando o rosto com a
mão.
— Quieta o facho, Cássio, deixa o mergulho pra depois. Estamos só
brincando — eu falei, agarrando-o para que se sentasse novamente.
— Até que não seria uma má ideia. — Oliseu encarou a outra margem do
rio, distante de nós, abrindo uma enorme piscina de água doce e barrenta,
porém rica em vida e cheirando a terra.
Os olhos de Penélope brilharam através de mim. Achei que me observasse,
mas mirava na área das docas, onde um pequeno grupo de pessoas
descarregava um barco e levava as caixas para um galpão. Um rapaz surgiu a
pé da cidade e se ofereceu para ajudar.
— É o seu escolhido? — perguntei a ela.
— O próprio — ela disse, erguendo uma sobrancelha, sorrindo com
confiança. — Ainda não consegui falar com ele, mas acho que despertei sua
atenção. Vou ali ver se consigo chamá-lo para uma conversa. Nós temos de
agir, não temos?
Ela se levantou, deslizando a mão sobre meus ombros, e se dirigiu ao
parapeito do barco, rebolando em seu vestido justo. Encarou o homem
escolhido de longe, observando-o enquanto ele carregava caixas enormes
com a ajuda de seus companheiros e as levava com dificuldade para o
armazém. Não tinham máquinas para ajudá-los, tamanho o atraso do mundo
em que viviam, e se matavam de trabalhar pesado em tudo. Um pequeno
guindaste aguardava no canto, inutilizado. Talvez servisse apenas para cargas
muito grandes, e por isso no dia inteiro que passei na cidade, não o vi se
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movimentar.
Penélope acenou para o rapaz e o chamou para subir. Ele parou diante dos
amigos, deu de ombros e os outros homens sorriram para ele. Um adolescente
o empurrou para o barco, rindo do acanhamento do rapaz de Penélope.
Assistiram com os rostos plenos de curiosidade à chegada do homem ao
nosso convés, encarando-nos com o peito erguido e um olhar destemido.
Um cara alto, parrudo, de pele escura e cabelo raspado, vestindo uma calça
larga de algodão toda manchada e uma camiseta com furos nas mangas. Sua
presença estremeceu o corpo magro de Penélope, encolhida sob o gigantismo
do seu escolhido. Ela engoliu em seco, revirando o pescoço, e o
cumprimentou.
— Olá, bom dia, já era hora de nos apresentarmos, não acha? Eu sou
Penélope, e você? — Ela lhe estendeu a mão, inclinando o rosto para encará-
lo com seu sorriso meigo.
— Precisa de ajuda em alguma coisa? Você ou alguém por aqui, Penélope?
— Ele fez um tour visual pelo convés do barco, onde eu e meus amigos o
observávamos com expectativa.
— Não, muito obrigada, estamos ótimos por aqui, não precisamos de nada
— ela disse, recolhendo a mão. — Poxa, como você é gentil, sabia?
Oferecendo ajuda assim, prestativo... Engraçado que eu consegui adivinhar
esse seu traço só de olhar, acredita? Não quer me dizer seu nome?
— É Jones. Se não precisam de ajuda, então eu vou descer. Não estou a fim
de conversar agora, espero que não se importe. Quem sabe depois. — Jones
se virou rumo à plataforma, deixando Penélope prostrada com os braços
largados sobre a cintura.
Eu me levantei da mesa na hora, correndo até ele. — Ei, queremos só
conhecer você melhor. Viemos atrás de novas amizades, acabar com o
impasse entre os dois mundos, sabe como é. Vem jogar uma partida com a
gente, vai ser legal. Ninguém aqui vai te morder.
— Não gosto de jogos competitivos. Pronto, começa por aí, agora vocês me
conhecem um pouco mais. Se quiserem me conhecer melhor, desçam comigo
e ajudem nos nossos trabalhos. Precisamos de gente nos postos agrícolas e
nas tendas de serviços. — Suas palavras trouxeram silêncio, uma dezena de
pessoas encarando um nativo que nos conclamava a trabalhar. — Bem que eu
imaginei. Vocês não querem nada com nada. — Jones se virou e partiu.
— A vida é mais do que isso, Jones — Penélope disse, falando alto no
parapeito. — O que você faz no tempo livre diz muito mais sobre você do
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que as ocupações que te tomam o resto da vida.


— Exatamente — ele falou, sorrindo de soslaio já no chão do porto, indo
rumo aos colegas que ainda descarregavam caixas de um dos barcos.
Consolei Penélope com uma piscada de olhos, conduzindo-a à nossa mesa
de cartas. Ela não estava sozinha naquela batalha, e eu próprio não consegui
fazer nada para manter Jones entre nós. Distraímo-nos pelo resto do dia,
almoçando debaixo de um guarda-sol instalado sobre a mesa.
Passei parte da tarde conversando com outros passageiros à beira do barco,
mantendo a ordem, de olho no café das docas onde no dia anterior eu tinha
avistado Elisa. Eu me distraí num dos assuntos, discutindo sobre as possíveis
saídas para a crise econômica pela qual o nosso lado do mundo passava, e
mal percebi quando uma presença se pôs a limpar as mesinhas do café.
Elisa abanava um pano para lá e para cá sobre a madeira das cadeiras, e seu
cabelo preto curto sacudia junto ao seu quadril largo e robusto. Ela parecia se
divertir na tarefa, curtindo o sol de inverno sobre a pele branca, lambendo os
lábios finos a cada pensamento que atravessava sua mente.
Eu me levantei para que ela me visse, e dessa vez não apenas me encarou de
volta como me acenou à distância. Fez um joinha com o polegar, um gesto
tão simplório e grosseiro que não me segurei e ri daquela figura engraçada,
uma mulher de corpo atlético, atraente, com mãos largas e uma atitude
infantil. Ela percebeu o meu riso e interrompeu seu serviço, segurando o pano
com as duas mãos sobre o ventre. Pôs o pano no balde, disse algo para uma
pessoa dentro do café, e veio em minha direção.
Coloquei-me à entrada do barco, aguardando a subida dela. Mas ela parou
embaixo da rampa e me chamou para descer. Olhei em volta, em busca de
olhares dos meus companheiros, e os poucos que me acompanhavam
acenaram para que eu a obedecesse. Não gostava que me dissessem o que
fazer, e ela é quem deveria vir até mim, não o contrário. Como estratégia de
conquista, porém, cedi ao pedido e me encontrei com ela no final da rampa.
— Quer vir tomar com café com a Laura e eu? — ela me disse. — Não
temos nada muito chique como vocês têm aí, mas imagino que devam estar
cansados de tanto tempo dentro desse barco.
— Nada, estamos há poucos dias ali só, e trouxemos muita coisa para nos
distrair. O café fica pra depois, porque não queremos incomodar o ritmo de
vocês, por favor. Ter você aqui comigo já é melhor do que qualquer coisa
gostosa que vocês possam me oferecer.
Ela cerrou a testa, esticando os lábios num sorriso desconfiado. — Bem,
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vim aqui dar um oi só para eu poder cuidar das coisas do café sem me sentir
cobrada. Até porque, hm... Depois de ontem eu fiquei pensando muito em
vocês aí do barco. Gostei muito da companhia.
— E de mim, você gostou?
— Pra falar a verdade, eu quase não conversei com os outros, então, é...
Quando eu digo vocês, na verdade eu me refiro a você mesmo. Só que não sei
como vocês são, por isso o medo de falar o que não devo.
— Elisa, comigo você pode falar o que quiser. Não tenho essas frescuras,
pode confiar. E fico feliz em saber que causei boa impressão. Quer subir lá
com o pessoal de novo?
— Não, agora não. Vou lá terminar de limpar as mesas, e depois tenho de
ajudar no Posto do Monte outra vez. Talvez de tardezinha eu apareça por
aqui, isso se a Glória não vier antes.
— Vou ficar te esperando então.
Ela acenou com a cabeça para mim, virou o rosto e partiu. Subi de volta ao
barco com as mãos nos bolsos, otimista em relação à minha missão.

Penélope assistiu a toda a cena do alto do barco, no ponto extremo da popa,


próxima às hélices. Não tirou os olhos de mim, chamando-me para perto de si
pela pura simpatia. Ao contrário do que tinha acontecido com ela, com Jones
que se recusava a conversar com ela, a minha pessoa escolhida se abria aos
poucos para mim.
— Essa sua escolhida é a pior de todas, Ícaro — ela disse, balançado a
cabeça com os olhos voltados para o café a poucos metros dali, onde Elisa
limpava as mesas.
— Você ainda não conheceu todas as mulheres da vila pra poder
comparar... Vai que tem piores. — Eu resmunguei, parando ao seu lado,
recostado no parapeito, com o rosto virado para dentro do barco, de modo
que Elisa ao longe não pudesse ler os meus lábios.
— Verdade, não conheci, mas isso não muda o fato. Essa sua não tem
nenhuma graça, nenhuma elegância, nada. Alguém como você merecia algo
melhor. Mesmo aquela do vestido de ontem — é Glória o nome dela, não é?
— mesmo ela seria melhor.
— Pouco me importa, Penélope. A Elisa só vai me servir pro propósito da
missão, e nada mais. Por que você está fazendo caso disso?
— Por nada, só para me certificar de que você não caia na lábia dessa gente.
Tem homem que não resiste um rabo de saia, sabe?
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— E não resisto mesmo. Mas você mesma acabou de falar que ela é a pior
de todas, então por que o medo?
Ela franziu a testa, mantendo os olhos entrefechados. — Vai saber o que se
passa na sua cabeça. Você tem estado tanto tempo comigo e mal me dá
atenção.
Dei de ombros, perdido. — E isso prova o quê?
— Que você é estranho, Ícaro. Todos os caras aqui vivem tentando me levar
para a cama, menos você.
— Saiba reconhecer um cavalheiro então — eu disse, abrindo um sorriso
malicioso.
— Um cavalheiro que só falta se derreter pela pobretona do vilarejo, sei.
Aquela mulher é muito ruim pra você, Ícaro, não sei como aguenta ficar perto
dela.
— Meu Deus, Penélope, eu tô só jogando com o meu personagem! É isso o
que nós viemos fazer aqui. Eu e você já transamos tantas vezes que não sei
por que você está enciumada assim.
— É porque eu vi o brilho dos seus olhos quando você desceu para
encontrá-la ali embaixo, você não me engana. Olha lá, não vá ser aquele cara
que poderia ter uma rainha como eu entre os braços e prefere ter uma idiota
como aquela, não me venha com essa. Não vá se rebaixar a esse ponto, tudo
menos isso.
— E daí que ela é idiota? — Fechei a cara, olhando baixo. — Precisa
mesmo humilhar tanto assim?
— Não estou humilhando, estou apenas contando a verdade.
— E a verdade do seu Jones, cadê? — Eu me virei para ela, apertando as
sobrancelhas irritadas.
— Que ele é um patetão? Isso eu já sei, tá vendo, e não me afeta nem um
pouco. Pode chamá-lo do que quiser. Meus olhos não brilham perto dele.
— Ah é, mas eu acho o contrário. Eu acho que ele é o par perfeito pra você.
É de alguém assim que você precisa.
Ela se afastou do parapeito, pondo a mão no peito com o rosto deformado
pela revolta. — Como assim, Ícaro? Pelo amor de Deus, que ideia é essa?
Você me ofende com isso, sabia?
— Ofendo por quê? Ele é um cara bonito, de poucas palavras, não se dobra
fácil. Pra conviver com você, tem que ter esse jeito mais durão, senão fica
difícil, quem é que te aguenta? Vai dizer que não é verdade? E com certeza
ele tem água pra apagar esse seu fogo.
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— Eu não estou acreditando... Eu não acredito nisso, não mesmo! — Ela


fechou os olhos, dando um passo longe de mim. — Chega, Ícaro, tem horas
que com você fica impossível.
Penélope me abandonou no parapeito, partindo para seu cômodo no barco.
Fiquei a sós com o gosto amargo do arrependimento, cruzando os braços sem
olhar para os passageiros ao redor. Revidei as implicâncias dela, sem
conseguir me segurar, e o pior é que eu não acreditava no que eu próprio
dizia. Não, o Jones não era o cara mais adequado para Penélope, é claro que
não era. Ela e eu faríamos um ótimo par, ela era divertida e bonita, rica e
sensual.
Mas odiava quando tentavam dizer o que era melhor para mim, quando
tentavam ver coisas em mim que não existiam de verdade. Eu não era cruel a
ponto de querer o mal de Elisa, pois eu apenas lamentava que ela tinha
nascido naquele lado do mundo e tenha tido de me enfrentar sem saber o que
a aguardava pela frente. Ela me parecia uma mulher inofensiva, bonita, gentil
a seu modo, e nada mais do que isso. Que brilho nos olhos Penélope poderia
ver em mim? Com Elisa? Esses ciúmes sem fundamento, isso me irritava.
— Rapaz, faz isso com ela não — Oliseu disse, aproximando-se de mim. —
Desculpa, eu acabei ouvindo a conversa entre vocês, e...
— Me deixa, cara. Foi coisa de momento, vai passar — eu disse, erguendo
a mão para mantê-lo afastado.
— Entendo, mas você vai querer mesmo passar horas confinado aqui no
barco com uma pessoa magoada com você? Vai lá resolver isso logo.
Respirei fundo, lamentando a minha estadia no barco. — Me dá pelo menos
um tempo pra esfriar o sangue, tá bom? Depois eu vou lá falar com ela, pedir
desculpas, sei lá o que mais. Eu não falei nada de mais, ela é que exagerou.
— Já reparou que ela tá a fim de você, né? Digo, a fim de verdade, coisa
séria, não só pra curtir. Pode até ter sido exagero, mas foi por causa das
expectativas que ela tem de você. O que é que custa dar mais confiança a ela?
Todos os caras aqui queriam estar no seu lugar.
— É coisa demais pra pensar de uma vez só, calma lá. Ela veio aqui me
zoar, e eu não deixo baixo, você sabe. — Cerrei a testa, irritado. Respirei
fundo. — Faz tempo que eu não levo ela pra cama, talvez seja hora mesmo de
dar uns pegas de novo.
— Então vai lá pedir desculpas. A não ser que você queira fazer disso aqui
um inferno.
Esperei o tempo passar, sentindo o leve balanço do barco. No café, Elisa se
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preparava para sair, montada em uma bicicleta, sem se virar para me encarar
novamente. Pés sujos sobre o chinelo de dedo, bermuda larga pendendo sobre
o selim da bicicleta. O meu par predestinado, uma grande enganação.
Fui ao quarto de Penélope, carente de um par de olhos. Bati à porta e
aguardei ser chamado. Uma voz falou baixo de dentro, perguntando quem
era. Entrei sem dizer nada, recebido no cômodo pelo rosto avermelhado de
Penélope, chorando sobre os lençóis, chapéu no chão, sandálias largadas
junto aos óculos de sol. Seus lábios tremiam ao me encarar, cortando meu
coração.
Sentei-me ao lado dela, na cama, e acariciei seu braço. — Vim aqui pra te
pedir desculpas. Eu falei besteira, saiu sem querer. — Ela se manteve em
silêncio, querendo mais, bebendo de minhas palavras com total atenção. —
Isso aqui é difícil pra todos nós, já deu pra perceber, né? Às vezes eu penso,
que droga viemos fazer aqui? Por que aceitamos fazer esse papelão?
Entende? É muita coisa. Daí você fica irritada, eu fico irritado, essas coisas
acontecem. Queria prometer que eu não vou fazer mais isso, mas quero ser
sincero com você. Não posso prometer nada enquanto estivermos aqui. Essa
missão, essa enganação... Isso bagunça a cabeça. Você me perdoa? Por agora,
e pelo futuro?
Ela se ergueu da cama e me abraçou, recostando os olhos marejados sobre
meu ombro. Envolvi-a como pude com meus braços, oferecendo-lhe um
carinho suave com os dedos.
— Nós estamos juntos nessa, Ícaro... Eu e você, todos nós. Eu só quero
ficar junto, só isso — ela disse, soluçando. — É claro que eu te perdoo.
Respirei aliviado, emocionado com o perdão que tinha ganhado um
gigantismo apenas por conta de nossas confidências. Meu coração se apertava
com a complexidade das minhas emoções, um turbilhão de sentimentos me
puxando para todos os lados.

Isolados naquele barco, nossas atividades se repetiam à exaustão. Comer,


dormir, jogar e conversar, basicamente assim se resumiam nossas horas.
Alguns de nós formavam casais temporários e se trancavam em seus
cômodos para curtirem um pouco de intimidade, mas todos nós estávamos ali
para servirmos de par a outras pessoas, e isso nos confundia. Quando a
convivência me cansava demais, eu procurava um filme para assistir no nosso

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salão, ou ficava de bobeira sobre o convés do barco, admirando a paisagem,


conversando, à espera de novidades.
Os melhores momentos eram os das refeições servidas por nossos serviçais,
funcionando como de ponto de referência para as horas que se arrastavam.
Quase dois dias haviam se passado desde a nossa chegada na vila, e nossa
segunda janta estava para começar. Sentei-me junto a Oliseu, Penélope e
Cássio, iluminados por uma luz suave no último andar do nosso iate, a lua
para a noite escura.
— Você já pensou numa parceria com a sua mãe, Penélope? — eu disse,
mantendo um tom calmo de voz para me assegurar de que havíamos feito as
pazes.
— Tentei algumas coisas há um tempo atrás, mas nada me agradou. Quem
tem o dom da criação é ela. Eu só sirvo de modelo — ela disse, erguendo
uma taça de vinho ao meu lado.
— E serve muito bem, permita-me dizer — Oliseu disse, colocando um
salgado na boca.
— Obrigada. Isso nunca me perturbou, sabe? Essa coisa de produzir algo,
ajudar em projetos... Nada disso nunca me atraiu muito. Tem gente que sente
um vazio, não tem?
— Sim, algumas pessoas sentem isso — eu disse, saboreando uma primeira
mordida do meu filé.
— Pois é, isso não acontece comigo. Estou bem satisfeita de estar na minha
pele. Até isso aqui, essa viagem esquisita que estamos fazendo, até isso me
agrada. A vida é isso, não acham?
— Exatamente — disse Oliseu. — O problema é que a crise tá comendo
tudo lá fora, né.
— Ai, lá vem você e essa crise! Isso daí não vai nos afetar, você sabe disso.
— Não sei não, Penélope. A sensação que eu tenho é a de que estamos
definhando.
— Se nós estamos definhando, o lado de cá está o quê? Olha essa pobreza.
— Penélope levantou um braço sobre a mesa, apontando para as docas atrás
do convés do barco. — É isso que vai tomar o mundo todo? Me poupe.
— Bem, se é isso ou não é, não sei, só sei que nosso futuro depende do
quanto conseguirmos afetar o povo daqui, e esse é um povo que não está nem
aí pra dinheiro.
— Azar o deles — ela disse, olhando para mim com um sorriso confiante.
— E nosso também, se não conseguirmos entrar a tempo. Só temos
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suprimentos para mais quatro dias. Um dia só de viagem, isso nos deixa com
três para recebermos um convite de hospedagem na vila.
— E se não esperarmos um convite? E se descermos e pedirmos
hospedagem? Eles que se virem. Vivem falando da solidariedade deles, não
vivem? Mandam mensagens mundo afora sobre as maravilhas do lado de cá,
que nos mostrem isso então. — Penélope deu uma garfada em sua salada,
atiçando a conversa com sua provocação.
— Calma lá — eu disse, torcendo o rosto. — Pelo que consta, nossos lados
ainda são inimigos. Já fico surpreso em ver que até agora não nos trataram
mal, muito pelo contrário, por isso é bom não abusarmos da sorte. Vamos
continuar jogando o nosso jogo, e não vai demorar até nos chamarem pra
descer, vamos confiar.
— Convença a sua Elisa a nos chamar para uma festinha da comunidade,
vai. Quero ver você conseguir. — Penélope me encarou sobre a taça de
vinho, apertando os olhos, espremendo a boca sobre o cristal.
A noite caiu sem novidades no porto, contando apenas com o café aberto,
frequentado por um grupo de pessoas que conversava sobre uma mesa.
Entediados, os passageiros foram se deitar em seus cômodos, cansados de
esperar pelo incerto. Penélope ficou ao meu lado na mesa de jantar, ouvindo
os cantos de sapos e insetos ecoando da margem oposta.
— Vem comigo dormir, vem. Nós arrumamos um cantinho... — ela
murmurou, recostando-se sobre meu ombro.
— Tá com sono? Vai lá, me espera no salão que depois eu vou. Não é por
mal, não pense isso — eu disse, antecipando—me à sua frustração. — É que
eu estou com a cabeça muito agitada, preciso de um tempinho pra espairecer
a mente. Não quero te envolver nessa confusão.
— Difícil esse meu amigo, hein. — Ela sorriu com os beiços partidos,
afastando-se de mim. — Vou ficar te esperando, meu bem. Não demora
muito não, hein, porque posso perder a paciência. — Ela me beijou o rosto e
partiu rumo ao corredor.
No convés, restamos eu e uma de nossas serviçais, à espera de uma ordem
minha. Aproximei-me dela e a liberei para ir dormir, querendo ficar a sós sob
a escuridão da noite. Assisti ao jogo de sombras que se projetava sobre a vila,
as luzes apagadas dos prédios, somente os postes marcando os caminhos.
Quase meia-noite, e a esperança de avistar Elisa, como no dia anterior,
diminuía a cada minuto.
De repente, uma silhueta apareceu por entre dois prédios baixos, uma figura
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feminina de curvas generosas, caminhando com um balanço descompassado.


Elisa, eu já a reconhecia pela sombra, e sua presença me trouxe uma alegria
inocente, sincera. Ela parou ao longe, debaixo de um poste. Seu rosto se
escondeu no preto de seus cabelos, deixando-me às cegas sobre seu olhar. Ela
acenou para mim, encabulada, e continuou seu caminho a pé, para longe de
mim.
Acenei de volta, mas passei tanto tempo admirando-a que ela não viu minha
resposta. Eu murmurei um boa-noite, baixinho, e queria que ela tivesse me
ouvido. Uma excitação boba tomou conta de mim ao constatar que meu
charme era forte mesmo com as mulheres de lá.
Procurei Penélope na sala de cinema vazia e a encontrei à minha espera.
Tranquei a porta e lhe tirei a roupa, beijando-a dos pés às orelhas. Enquanto
transávamos, o rosto sombreado de Elisa insistia em dar as caras na minha
mente, e a cada vez que eu a via, os gemidos de Penélope se intensificavam.

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3 - Elisa

A pior coisa é acordar cansada. A claridade bateu nas cortinas da janela e me


fez despertar, mas para sair da cama, me faltavam forças. Minhas coxas
doíam de tanto que andei no dia anterior, minhas costas pareciam ranger por
tanto ter me abaixado. Acima de tudo, algo me puxava para baixo, uma
gravidade severa, pior do que a força do planeta. Frustração, sensação de
incapacidade, mais uma vez.
Mais um dia ao lado de Jones, mais um dia de trabalho puxado. Laura
estava certa, ele me completava bem demais. Tão bem que não servia para
mim. Ele me levava para novos projetos, explorando como ninguém a minha
vontade de criar e produzir, e com isso eu não tinha tempo para mais nada.
Era como se tivesse me casado com ele, sem sequer estar apaixonada, sem
sequer um beijo, porque casamento para Jones era o dia a dia fazendo tudo
em equipe, e os beijos ele os tinha deixado para atrás.
Encontrei forças para me erguer da cama, lavei o rosto na pia do quarto e
me olhei no espelho. Olheiras e um rosto pálido, desanimado. Abri a janela
para me alegrar com o sol, esperançosa de que o dia pudesse me saudar com
mais força. Força para mudar, para levar a vida a outros rumos, e não para
viver debaixo dos outros, trabalhando no que me diziam para fazer.
No jardim de fora, Rosa e Pedro retiravam ervas daninhas dos canteiros,
cheiravam flores com sorrisos de cumplicidade, os dois envoltos numa paixão
mútua por jardinagem e por eles próprios. Sentaram-se em um banco,
abraçados, dando uma pausa em suas tarefas, e meu coração ficou mais leve
só de vê-los.
Pensei em Ícaro. No dia anterior, à noite, eu o vi no barco, sozinho. O que
eu fui fazer lá? Conversar? Naquela hora, tão tarde? Não fazia sentido. Uma
vontade reprimida me levou para lá, quase um pedido de socorro, alguém
para me distrair daquela ansiedade que eu sentia. Ir atrás logo de uma pessoa
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do outro lado, um inimigo declarado do nosso modo de vida? Que doida


você, Elisa.
— Bom dia, luz do dia! — Laura disse, caminhando pelo jardim atrás dos
dormitórios, encontrando-me pela janela.
Abri mais o vidro, apoiando os cotovelos sobre a abertura. — Ei, já tá tão
tarde assim?
— Um pouco mais do que o normal, eu acho, mas eu também acordei cedo.
Hoje é dia de tomate, e eu fico meio elétrica nesses dias, você sabe, né.
— Sei muito bem, e é ótimo te ver assim.
— Estou indo já pra lá. Você vem também?
— Ainda tô me sentindo cansada, acho que vou esperar mais um
pouquinho.
— É, eu ainda não acredito que você ficou ontem até tarde ajudando nas
alamedas. Que graça tem viver do nosso lado do mundo se você quer se
matar de trabalhar como o pessoal do outro lado? Esse Jones, tô te falando ...
— Ah, eu sei, é complicado. Mas eu queria ajudar, você sabe que eu gosto
disso.
— Tudo bem, é bom mesmo fazer tudo isso, só que você precisa escolher
melhor o que fazer. Quanto tempo faz que você não lê um livro? Ou para pra
brincar com as crianças? Ou tira um dia pra tomar banho de rio?
Eu suspirei, admirando as flores que caíam do ipê-rosa no centro do jardim.
Pelo meu olhar perdido, Laura entendeu o drama e esfregou a mão sobre o
meu braço. — Eu só quero te lembrar das coisas boas da vida, tá bom? Sei
que é chato ficar te cobrando — ela disse.
— Você tá certa, no final das contas. Eu é que não consigo mudar.
— Precisa de ajuda? Quer casar comigo? — Ela riu da minha surpresa com
a pergunta, botando a língua de fora.
Eu ri junto a ela, apertando sua mão quente. — Você já está me ajudando,
Laurinha.
Ela me deixou quieta na janela. Eu meditei sob o manto azulado do céu,
criando forças para ir lanchar no refeitório e depois ir lá no Posto do Lago
ajudar com os tomates. Voltei-me à minha cama e por um momento
considerei me deitar novamente e prolongar o meu repouso, mas ao pensar no
barco e em Ícaro, mudei de ideia. Começar o dia com uma visita, por que
não? Que melhor maneira de deixar um pouco de lado a minha rotina pesada
ao lado do Jones?
Amarrei o cabelo, comi uma broa de milho na entrada do refeitório para
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amenizar o bafo da manhã, eu que ainda não tinha feito o desjejum, e


caminhei até o porto. O sol leve da manhã de inverno me aqueceu e me fez
corar, energizando o meu sangue. Cumprimentei os conhecidos entre as
árvores de nossas ruelas, recebendo até um abraço de Helena, uma menina
fofa que eu ajudei a cuidar desde bebezinha.
Cheguei ao barco com a confiança restaurada, aliviada por ir enfrentar o
pessoal do outro lado sem fraqueza. Parei sobre o calçamento das docas,
buscando por Ícaro no alto do convés. Ele me viu logo, conversando com um
amigo em uma mesa, ambos protegidos por um guarda-sol. Ergueu-se da
cadeira e veio até o topo da rampa de acesso.
— Sobe aqui — ele me disse, chamando-me com um aceno das mãos.
Assim eu fui, olhando baixo, vendo a água barrenta passar debaixo dos
meus pés sob a rampa. Ele pôs um mão em meu ombro e me conduziu para
uma mesa desocupada, oferecendo-me um assento. Havia seis pessoas na
área àquela hora, e me perguntava onde estariam as outras dezenas deles.
— Que prazer te ver aqui a essa hora. Parece que fiz bem em me levantar
tão cedo — ele disse, esticando os dedos para a moça de gravata borboleta
que lhe trazia as coisas de comer.
— Pra falar a verdade, já está até tarde, pelo menos para mim, mas hoje eu
acordei meio cansada.
— É mesmo? Por quê, não dormiu bem?
— Acho que é o excesso de trabalho mesmo, porque meu sono foi pesado,
foi bom, não dá pra reclamar.
— Sei. A vida aqui deve ser bem dura, né? Não é como lá no nosso lado,
onde podemos ficar sem fazer nada quando quisermos. — A moça que nos
servia pôs uma bandeja com um sanduíche de pão integral e frango desfiado
sobre a minha mesa.
— Obrigada, não precisava — eu lhe disse, encarando-a nos olhos, tentando
entender o que ela achava de toda aquela situação. Voltei-me a Ícaro,
respondendo a sua fala. — Mas aqui no nosso lado o trabalho também é
voluntário. Eu é que me envolvi demais com uma certa pessoa por aqui,
caindo numa onda de trabalho sem fim. No final das contas, também, eu não
consigo ficar sem fazer nada. É assim com você também? Aliás, o que você
gosta de fazer?
— Ah, eu sou um cara eclético, Elisa. É até difícil começar a falar assim, do
nada. Eu gosto de gente, de estar com os outros, de curtir a vida ao lado de
pessoas. Acho que meu maior talento é administrar os outros, digamos assim.
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— Gosta de fazer planos então, né?


— Não muito. Gosto mais de garantir que os planos sejam seguidos. Não é
o que você também faz?
Sorri para ele, mastigando um pedaço do sanduíche. — Acho que sim.
— Viu como somos parecidos? Você deveria aparecer mais por aqui.
— E por que você não vai conhecer a vila?
— Estou só esperando o convite.
Que tempo eu iria arrumar para lhe mostrar a nossa comunidade?
Realmente, ele precisava de alguém para lhe guiar por lá, e se eu não tinha
tempo, não poderia pedir nada dele. Resolvi tirar a dúvida que mais me
angustiava. — Vocês pretendem ficar aqui até quando?
— Mais uns dois dias. Pra uma primeira visita, acho que já está bom, não
acha?
— Hm, eu acho que não. Não dá para conhecer nada de nós em tão pouco
tempo. Espero que não saiam daqui com uma impressão ruim. Vocês
chegaram numa época meio complicada aqui para nós, um período
conturbado, precisando de muita gente pra ajudar nas tarefas.
— Pelo menos eu tive a chance de te conhecer. Pra mim, já é o bastante.
Ele era uma pessoa muito gentil comigo, gentil até demais. Cada frase
simpática dessas me despertava um pouco de desconfiança, porque ele mal
me conhecia e já se derretia. Os homens da nossa comunidade não agiam
assim, porque ou nós já convivíamos desde jovens juntos e o romance surgia
como uma mera constatação dos fatos, ou eles queriam apenas curtir um
momento de sexo e eram diretos sobre o assunto. Era assim que os homens
do outro lado se relacionavam com suas mulheres?
Para entender mais, fiquei mais tempo com Ícaro, envolvida em conversas
leves sobre problemas de sono e confortos domésticos. Eventualmente senti
meu estômago pedir mais comida, e me dei conta de que já deveria ser quase
hora de almoço! Tomei um susto e me levantei com pressa, esperando que
Ícaro terminasse sua fala para que eu pudesse partir. Laura e Jones me
aguardavam no Posto do Lago, eu havia prometido que estaria lá também.
— Seu trabalho não é voluntário? Escolha ficar aqui comigo então — ele
disse.
— Ser voluntário não significa sem compromisso. Eu falei que iria lá
ajudar, e preciso ir. Depois eu volto, tudo bem?
— Tudo bem. Vou ficar à sua espera.
E parti.
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O ônibus para o Posto do Lago demoraria muito para passar, e eu não


conseguiria esperá-lo com a pressa em que estava. Peguei uma bicicleta e
pedalei pela estrada asfaltada até a entrada do bosque. O cheiro doce da mata
cultivada pela equipe de botânica me acalmou, permitindo que eu curtisse um
pouco do meu passeio pela trilha. Segui o atalho até o módulo de habitação
do Posto, uma casa entre as árvores com fachada modesta e jardim grande,
com amplos espaços escavados no subsolo.
Deixei minha bicicleta estacionada sob um abrigo, cumprimentei o pessoal
que mexia com a manutenção da área, passei pelos pesquisadores no campo e
rumei até a zona de cultivo. Vi Laura à distância, acompanhada de Jones e
alguns outros amigos. Ela me viu antes dele, e veio me encontrar pelo
caminho, trazendo entre os dedos um bocado de tomates-cereja.
— Esses tomates são as joias da vida, Lis, olha como estão bonitos hoje —
ela disse, oferecendo-me alguns.
— Estão mesmo. — Peguei um e o mordi, saboreando as sementes que
explodiram em minha boca. — Nossa, que delícia! Vocês já terminaram de
plantar?
— Ainda não, mas não falta muito. O Fernando fez a avaliação do plantio
agora há pouco, e disse que essa foi a melhor combinação até agora. Não tem
fungo, nem bicho. Pelo menos por falta de tomate eu acho que a gente não
morre.
— Seria o fim pra você se isso acontecesse, não é?
— Um fim trágico. — Laura pôs mais dois tomatinhos na boca e deixou
que as sementes vazassem pelos lábios, lambendo-as depois. Ela era a maior
fã de tomates do mundo.
Jones me ouviu conversando com ela à medida que eu me aproximava da
área em que ele mexia na terra, e não se virou para me cumprimentar. Ao
invés disso, riu de mim. — Veio aqui pegar um solzinho? A hora boa já
passou, agora tá quente demais.
— Espera só eu pegar a enxada pra você ver o solzinho que eu vim tomar
— eu disse, respondendo sem perceber, por impulso.
— Nem tem muito o que fazer por hoje. Eu, Laura e o pessoal já
cumprimos a cota da semana, agora só falta esperar. Queria que você tivesse
chegado mais cedo pra ajudar — Jones disse.
— Claro que ainda tem coisa pra fazer, senão vocês não estariam mais aqui.
Deixa eu trabalhar com vocês.
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— Mas é pouco, nem precisa fazer nada, eu termino o resto. Teríamos


acabado mais cedo se você tivesse vindo na hora marcada.
Balancei o rosto ao sentir meu sangue ferver. Eu fazia tudo à minha
disposição e não podia fugir da linha por um momento que ele vinha dizer
que estava decepcionado. Olhei para o chão verde, falando entre os dentes,
"Nem tudo é como queremos. E que bom que não é." Virei meu olhar para
ele, na esperança de derrubar sua dureza, porém fiquei no vácuo.
— Você foi ao barco, por acaso? — Ele amarrava barbantes num pé de
tomate, pendurando-o sobre um galho fincado na terra.
— Fui. Eles me convidaram para lanchar.
— Tinha tomate? — Laura disse, sentando-se debaixo da sombra da árvore
próxima a nós.
— Uns pedacinhos no sanduíche.
— Já vi que são boa gente. Se tem tomate, tá aprovado. — Ela balançou a
cabeça, pondo mais um tomatinho na boca.
— É, eles são tão gente boa que chegaram no porto sem qualquer aviso,
sem nem falarem o que querem por aqui — Ícaro disse.
— Eles só estão passeando — eu falei.
— E você acredita nisso? Do nada eles aparecem? Reparou como eles
tentam se aproximar de nós isoladamente? Estão aqui pra bagunçar nossas
vidas.
— Por que motivo? Isso não faz sentido. Eles não precisam de nós pra nada.
Vivem lá no mundo deles e, pelo que eu pude entender, eles são daquelas
pessoas que ficam no topo, mandando em todo o mundo.
— Justamente quem mais nos odeia. Foram pessoas assim que mandaram
matar nossos avós, lembre-se disso. Esses daí são os netos dos assassinos, e
você vem dando confiança pra eles sem nenhuma ressalva?
— Talvez eles tenham mudado. Nós não sabemos direito o que se passa no
mundo do outro lado. Talvez eles queiram mudar e aprender com o nosso
modo de vida.
— A gente sabe muito bem o que se passa no outro lado. Estão perdendo
dinheiro como nunca antes, e cada vez mais gente de lá luta pra se juntar a
nós. A guerra não acabou.
— Ainda assim...
— Não estou falando pra expulsarmos essas pessoas, Elisa, fica tranquila.
Acho que temos que mostrar nossa hospitalidade e convencê-los pelo bom
exemplo. Mas tem que desconfiar um pouco também, não acha?
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— Sim, você tá certo — eu disse, abaixando a cabeça, pois realmente ele


estava certo. Seria inocente demais da minha parte conversar com o Ícaro
sem nenhuma ressalva, até porque eu já achava estranho o jeito dele me
elogiar.
O silêncio se abateu sobre nós. Jones, de peito erguido, olhou para o céu
azul e fechou os olhos. Eu, sem ter o que fazer, dei alguns passos pelo pomar
em busca de problemas.

Jones estava certo. No fim das contas, pouco restava da cota diária a ser
cumprida no Posto do Lago. Minha busca por fungos ou frutos estragados me
levou à margem do lago, onde parei para admirar o espelho d'água límpido e
gelado. Abaixei-me para sentir a água com os dedos, e molhei o rosto para
acordar para a vida.
Laura se pôs ao meu lado com seu chinelo de borracha e deu um passo
dentro do lago, molhando-se até as canelas. — Vontade de tomar banho aqui,
né?
— Tá frio, Laura — eu disse, erguendo-me para longe da margem.
— É só se acostumar. Quer pegar uma boia? Eu vou lá na estação pegar pra
você.
— Não, nada disso. Eu preciso... Eu preciso ver com o Jones se nós vamos
mesmo lá ajudar com os painéis daqui a pouco.
— Você não para, né, garota?
— Alguém tem que ser assim, não tem? — Eu virei as costas para ela,
dando um passo rumo a Jones.
Ele terminou de checar os últimos acertos e confirmou o fim do expediente
com os outros ajudantes. Os zeladores do posto nos ofereceram um almoço
modesto, feito com base nas batatas e nos tomates da própria área, e
conversaram um pouco conosco. Após a refeição, Laura ficou com eles,
empolgada com os planos de expansão do cultivo de tomates, mas Jones e eu
partimos de bicicleta para o Campo Aberto.
Recebemos novos painéis fotovoltaicos de Juruci, uma das maiores cidades
do nosso lado, e o pessoal da energia solicitou ajuda pelo menos para a
instalação dos novos equipamentos. Entre todas as áreas de meu interesse, eu
gostava de coisas relacionadas a construção e manutenção. Cuidava da parte
agrícola só em períodos emergenciais, como os quais pelos quais passávamos
quando da chegada do barco.
Eu já tinha ajudado na instalação há um tempo atrás, mas Liliane e Marcos
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me relembraram os pontos principais, e lá fomos nós. Usamos um carrinho


elétrico para levar as placas até o campo da nossa usina, e de lá eu e Jones
instalamos as esquadrias metálicas e os painéis sobre o capim.
— Isso aqui não tem mistério, tão vendo? — Marcos disse, passando ao
nosso lado para ajudar na conexão. — A fábrica lá de Juruci tá mandando
bem agora, deram um jeito de facilitar muito mais isso aqui.
Ele passou o cabeamento pelo novo corredor entre os painéis solares e ligou
as conexões. — É só isso? Certo, a gente consegue fazer com o resto,
obrigada — eu disse, olhando para Jones, que balançava a cabeça em sintonia
comigo.
— E os telhados, chegaram também, Marcos? — Jones disse, abaixando-se
para arrastar uma placa um pouco mais para atrás.
— Ainda não. Esses daí chegam semana que vem. Mas é igual isso aqui, é
só colocar sobre os tetos e depois ligar na central. Os ajustes pode deixar que
Liliane ali dá um jeito. Ela tá toda empolgada com essa história. — Marcos
pôs as mãos na cintura, assistindo enquanto eu e Jones instalávamos mais
uma esquadria sobre o chão.
— Não vamos precisar mais racionar energia quando a oficina de metais
estiver cheia, né? — eu disse.
— Isso aí.
Jones e eu assumimos uma sincronia perfeita entre o carregamento e a
instalação das placas, alinhando-as com perfeição em relação às outras linhas
que eram instaladas por outros voluntários junto a nós. Ele sorria para mim a
cada finalização, olhando-me com a sinceridade de um grande companheiro,
um cara que me tinha como melhor parceira de tarefas, e era nessas horas que
eu entendia por que passava tanto tempo com ele. Era porque era bom. Ele
me entendia naquela minha vontade de fazer de tudo um pouco, ele topava
comigo qualquer desafio e não se deixava cansar com facilidade, do mesmo
jeito que eu.
Nem eu nem ele gostávamos de competições, mas às vezes era difícil evitar
comparações. Um tentava ir além do outro, tudo por conta das dificuldades
da nossa vila, um lugar com mil problemas para se resolver, mas que não
obrigava ninguém a ajudar. E nós ajudávamos, todos da vila ajudávamos,
cada um conforme sua capacidade, e era ótimo conhecer cada um de nossos
vizinhos nos mais diferentes trabalhos requisitados. Eu não conseguia
entender por que alguém preferiria ficar parado sem fazer nenhuma atividade.
Que vida triste deveria ser aquela.
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— E se nós convidarmos o pessoal do barco para nos ajudar aqui? Eles


estão lá parados, sem fazer nada. Acho que eles gostariam de se integrar mais
com a gente — eu disse, enxugando uma gota de suor que escorria pelo meu
pescoço.
— Olha, se eles quisessem isso, eu acharia ótimo. Mas você acha mesmo
que eles vieram aqui pra isso? Esse pessoal não sabe trabalhar. — Jones
lambeu os beiços escuros para curtir um pouco de seu suor, dando de ombros
à minha sugestão.
— Talvez eles não saibam trabalhar porque não foram convidados. Acho
que nós os conheceríamos melhor se eles estivessem aqui, lado a lado,
vivendo como nós. Se tem uma coisa que eu não gosto, é de imaginar algum
motivo escondido para eles estarem aqui. Se pudermos conviver mais com
eles, isso vai ficar claro mais rapidamente.
— É, só que eles vão embora logo, então deixa o tempo passar. Na minha
opinião, quanto menos atenção dermos pra eles, melhor.
Jones ergueu sozinho uma placa do carrinho e se desequilibrou. Mesmo
forte e alto, o jeito como pegou a placa o jogou para a frente. Eu intervi na
hora, evitei que o painel atingisse o chão e levantei as sobrancelhas com o
susto que tomei.
— Acho mais válido colocar a Glória para fazer mais coisas do que tentar
botar esse pessoal do barco para viver como nós — ele disse.
— Aquela mulher é uma complicação só. A essa hora deve estar lá no
barco, quer ver?
— Você fez o mesmo de manhã, e está aqui comigo agora. — Ele me deu
um sorriso malicioso. — Ela só precisa encontrar alguma coisa que goste
muito de fazer.
— Ela gosta das coisas que nós ainda não temos muito por aqui, coisas de
luxo. Às vezes concordo que ela nasceu no lugar errado.
— No outro lado ela não teria o que acha que teria. Lá, as coisas são muito
piores pra gente como nós.
Assenti ao que ele disse com um pesar no coração, tendo ouvido a minha
parcela de histórias sobre a vida no outro lado. Paramos para descansar
debaixo de uma árvore com a equipe do Campo Aberto, e o vento fresco nos
refrescou ao ponto de quase adormecermos. Liliane cantou uma música sobre
o sol e a fábrica de caixas infinitas, e me fez rir tantas vezes que eu
despertava continuamente da minha sonolência.
Quando todos conseguiram tirar um cochilo breve, voltamos para finalizar a
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cota do dia. O sol já se punha atrás das árvores, deixando-nos sob o branco
intenso dos holofotes do Campo. A pele escura de Jones brilhava com o suor,
e o branco dos meus braços se coloria com o avermelhado dos céus. Terra,
sujeira, minha pele se contaminava com o fruto de um longo dia de trabalho e
me perfumava com o cheiro da alegria após um dia bem vivido.
Passei na casa de banhos para imergir numa banheira quente, depois de me
oferecer uma ducha caprichada que me livrou de toda a sujeira. Escolhi
algumas ervas para me perfumar enquanto fechava os olhos e deixava que a
água quente relaxasse meus músculos, enquanto meu estômago roncava de
fome.
Fui jantar no refeitório com o pessoal, e tomei um susto com Glória. Ela
tinha prendido seus longos cabelos pretos em um coque sobre a cabeça,
emoldurando o montinho com uma tiara brilhante. Sobre seu colo pálido,
pendia um colar de pérolas, adornando sua pele com os apetrechos de um
mundo que não nos pertencia.
— Ai, eles são muito gentis, Elisa. Eles me fizeram desfilar novamente, e
dessa vez me deram até esses presentes — ela me disse à mesa, cortando um
pedaço de frango com os cotovelos juntos sobre suas costelas. — Essas
histórias que contam sobre eles são todas mentirosas, porque eles mudaram,
eles não são mais como antigamente. Eles são como nós, dão presentes
também, dividem as coisas, está vendo? Só que são mais elegantes e não se
contentam com coisas de baixa qualidade.
Vendo-a feliz como poucas vezes a havia visto, eu ouvi suas palavras com
um sorriso contido. Glória trajava seu vestido de festa no refeitório, enfeitada
por joias, e falava em voltar ao barco depois de comer.
— Hoje é meu dia de ficar com as crianças. Elas querem ouvir as histórias
do Roberto, e vou ter de levá-las na casa dele — Jones disse, ao meu lado,
enquanto Laura e Glória conversavam sobre o barco.
— Vai ser divertido — eu lhe disse. — No meu caso, tudo bem se eu
procurar outra coisa pra fazer? Não quero dormir cedo hoje.
— Claro, vai nessa.

Como sempre, nós terminamos a nossa refeição e demos uma volta nos
caminhos da praça à beira-rio, longe do porto. A noite escura nos inspirava à
quietude, à simples constatação da nossa vida em comunidade, uma amizade
formada desde a infância e curtida com muito tempo de convivência
contínua. Não passávamos um dia sem nos vermos, e eles formavam o meu
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grupo, a minha família. Foram eles que me resgataram da minha tendência à


reclusão, tímida como eu era.
Glória foi a primeira a nos deixar, conseguindo levar Laura junto a ela,
rumando as duas em direção ao barco.
— Eu vou, mas eu só quero ver de longe e fazer careta se eles me
convidarem — Laura disse, agarrando-se ao braço de Glória, levando-a como
uma dama dos velhos tempos.
Jones riu da cena, largando um pouco do seu cenho preocupado,
aquecendo-se para o tempo que passaria com as crianças da vila. — Vou indo
também — ele disse. — Até eu tô curioso para saber o que o Roberto vai
contar hoje.
Ele amava crianças, e eu adorava saber que ele tinha esse momento no qual
podia agir como palhaço e relaxar, mesmo que aquele relaxamento
significasse cuidar de uma dúzia de pequeninos. Fui a pé com ele até o
Centro, onde me sentei em frente a um computador para pesquisar alguma
tarefa para eu fazer durante a noite. Não buscava nada físico, pois não queria
estragar o perfume do meu banho, e não me importava com o nível de
dificuldade da tarefa, contanto que eu tivesse qualificações para realizá-la.
Nem precisei procurar muito, pois logo dei de cara com a demanda
gigantesca de transferência dos dados históricos da nossa vila de Água Clara
para o novo sistema integrado da nossa Federação. Naqueles dias, tudo o que
nós precisávamos em termos de produção já era enviado através desse
sistema, mas ele era muito recente, coisa de um ano, e os dados antigos eram
necessários para que se tivesse um panorama histórico da capacidade
produtiva da nossa região.
Muitos desses dados antigos se encontravam em incontáveis cadernos em
várias salas do Centro de Planejamento. Quase ninguém se dispunha a ajudar
na tarefa justamente pela chatice tremenda dessa ocupação, mas naquela
noite, era de algo assim que eu precisava.
Peguei uma bicicleta e pedalei pelas alamedas margeadas por canteiros de
flores até chegar ao meu destino. Abri a grande porta do prédio e saudei um
quarteto de colegas que estudava um projeto sobre uma mesa redonda, e
confirmei com eles se eu poderia ajudar.
As salas dos cadernos eram as mais bagunçadas de toda a vila, tamanha a
má vontade geral de tocar naquele projeto. Liguei o computador central da
primeira sala em que entrei, escolhi uma música gostosa gravada por Liliane,
aquela que trabalhava na operação da usina solar, e dancei por entre os
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armários em busca dos registros menos volumosos.


Assim que peguei um primeiro caderno, sentei-me diante do computador e
comecei a digitar os dados no sistema online da Federação. Reconheci alguns
números, informações antigas dos tempos em que os dois mundos tinham
acabado de se separar, e uma alegria repentina subiu em meu coração. O
tempo dos meus avós foi muito mais difícil do que o meu, e se eu às vezes
me incomodava com o excesso de trabalho, pelo menos eu nunca precisei me
preocupar de fato com o que comer, como tinha acontecido com meus pais e
avós. A produção de tudo tinha aumentando significativamente com o tempo,
da comida às roupas, da energia elétrica aos remédios. Um dia, se tudo
seguisse o rumo que vinha seguindo, teríamos a tão sonhada abundância.
Minhas pálpebras pesaram já no começo do segundo caderno. Trabalho
chatíssimo, para ser feito por robôs ou programas de computador, algo
impossível apenas porque os cadernos eram todos diferentes e frágeis.
Resolvi entrar na internet para fazer uma pesquisa sobre algum avanço na
automação desse tipo de tarefa, indo direto ao Grande Fórum atrás de tópicos
de discussão nessa área. Para minha surpresa, logo na página de entrada do
fórum eu vi um anúncio de que a Federação tinha conseguido acesso à
internet do outro lado, e que portanto nós poderíamos pesquisar por lá
enquanto não derrubassem nossa ligação clandestina.
Uma fagulha se acendeu dentro de mim, meu coração palpitou com uma
ideia inesperada. Ícaro. Mordi os lábios, olhei para a porta, receosa de que
alguém me visse diante da enorme tela do computador prestes a pesquisar
fofoca. Lembrei-me do sobrenome que ele havia me falado, Ícaro Zanotelli, e
o busquei.
Uma série infindável de fotos apareceu no buscador. Ele com roupas
elegantes, ele com mulheres, ele de terno, ele com outros homens como ele...
Abri alguns artigos, fiz uma leitura dinâmica, e meu rosto corou, tomado pelo
calor das minhas descobertas, da minha curiosidade indevida. Ele era uma
figura proeminente do outro lado, filho de uma geração de empresários,
herdeiro de um dos maiores impérios industriais do mundo. Um cara de ação,
sempre envolvido em novos projetos, cheio de energia, apaixonado pelo
trabalho. Melhor ainda, um cara que sabia se divertir, levando a vida num
equilíbrio invejável entre deveres e prazeres, em suas festas, com seus
amigos.
E aquele homem, aquela celebridade do outro lado, estava parado ali no
porto, ele se insinuava para mim, e eu não sabia o que fazer com ele. Minha
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mente se eletrizou, e parei com as leituras, receosa de que descobrisse algo


terrível sobre ele que me afastasse de vez de qualquer esperança de... De
qualquer esperança de contato. Por que eu queria o seu contato? O que ele
tinha que me atraía, apesar de todas as nossas diferenças? No fundo, eu
queria que ele me ensinasse a viver de forma mais plena, que me tirasse da
sombra de Jones, porque somente a paixão conseguiria me tirar daquele
caminho.
Retornei aos meus cadernos, colocando mais músicas para tocar enquanto
eu atualizava os dados com as informações de produção de alimentos e de
manufatura nos anos anteriores da vila. Quase ao fim do segundo caderno, a
música parou de tocar e eu não percebi. O sono se espalhou por meu corpo e
fechou meus olhos à força. Eu resisti, eu lutei, mas eu queria continuar, eu
queria ficar ali perto do computador, da internet, tão próxima do outro lado,
ao mesmo tempo tão distante.
Sem perceber, exausta, deitei o rosto sobre a mesa e caí no sono.

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4 - Ícaro

Aquela tal de Glória era uma mulher muito bonita, mas coitada dela.
Resolveu voltar ao nosso barco depois da janta, como prometeu que faria, e
em parte ficamos felizes, porque era ótimo saber que pelo menos uma pessoa
da vila buscava a nossa companhia. Por outro lado, o Cássio não conseguia
levá-la a sério, e em suas ironias direcionadas a ela, até eu me embolava.
— E vocês querem tirar foto comigo, com uma nativa? Ora, eu sou quase
uma de vocês agora — ela disse, enfeitada pelas bijuterias baratas que
Penélope lhe tinha dado.
— É que ainda assim você tem um ar exótico, de outras terras, um jeito
próprio de se portar. Olha essa postura, esses ombros largos, vê se alguém do
nosso lado ostentaria um ar tão diferente — Penélope disse, piscando para
mim com um riso preso.
— Ai, sim, vamos tirar essa foto então, vamos lá, onde vai ser?
— Ali no parapeito, de frente ao porto — Cássio disse, guiando-a pela mão.
— E vocês não vão vir também? Tem que ser uma foto de todo mundo
junto. — Glória nos chamou com as mãos erguidas, seus dedos brancos
brilhando com anéis sob as luzes do barco.
— Não, só você agora, fica paradinha aí. Você é a nossa estrela por hoje —
Cássio disse, mirando seu celular sobre o corpo rígido de Glória.
Ela veio ver a foto depois de pronta, abrindo a boca com um ar de
encantamento, agarrando-se a Cássio. Ele fechou os olhos, envergonhado, e
contorceu as sobrancelhas para se desvencilhar dela com sutileza. Glória viu
o horário na tela do celular e se assustou.
— Gente, eu preciso ir! Já são mais de dez horas, e vocês sabem que o sono
é o melhor remédio para uma pele bonita, não sabem?
Saiu de nosso círculo com um olhar confuso, como se esperasse algo de
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nós. Penélope a encarou no pescoço e no cabelo, observando os ornamentos


que decoravam aquela mulher branca de nariz encurvado e fino, o cabelo
preto embrulhado num coque feio ao redor de uma tiara vagabunda.
— Vai em paz, Glória. Essas joias são mesmo para você, um presente que
não poderíamos dar para mais ninguém — Penélope disse, retorcendo seu
próprio colar de pérolas, sorrindo para que Glória partisse com tranquilidade.
— Muito obrigada. Vocês são maravilhosos — Glória apertou as duas mãos
sobre o ventre magro, descendo a rampa do barco com seu vestido preto e
justo.
Esperamos que ela cruzasse o corredor entre os prédios do porto, rumo à
vila, para que nos liberássemos das amarras do ridículo. Penélope se pôs a
gargalhar, recostando-se em meu peito para recuperar o ar. Cássio abriu a
foto em seu celular e fez um tour pelo convés do barco mostrando o resultado
a todos os outros passageiros, rindo junto a eles da mulher inocente que
acreditava ter nos conquistado.
— As quinquilharias mais baratas, Ícaro, as mais porcas que eu consegui
achar lá no clube, acho que nem a Rosilda usaria algo tão barato quanto
aquilo, né, Rosilda — Penélope puxou a nossa camareira para perto, uma
mulher cansada e calada que não nos respondeu com nada além de um sorriso
encabulado. — E essa coitada... Essa Glória, ficou se achando a tal, ha ha! Eu
a adoro, ai, por mim ela vinha aqui todo santo dia, já que nada me diverte
mais do que vê-la se exibindo com aquele vestido ridículo, acho que o único
que ela deve ter.
— E tô vendo que ela se agarrou de vez no Cássio, hein — eu disse,
erguendo a voz para implicar com ele. — Isso aí, alguém tem que ter sucesso
nessa vida.
— É, vendo aqui pela foto, se ela tirar a roupa, talvez fique aceitável. Mas
só se estiver peladinha mesmo — Cássio disse, vidrado na tela de seu celular,
rindo junto a nós.
A noite se abatia sobre nós e o horário anunciava o fim do dia. Certamente
não veríamos mais nenhum habitante da vila nos arredores do barco, e à
medida em que os assuntos morriam e que se cansavam do tédio, os
passageiros procuravam seus quartos para dormir. Eu liberei Rosilda, nossa
camareira do segundo turno, e aguardei no convés que todos se fossem,
porque eu ainda tinha a esperança de ver Elisa. Por duas noites ela passou
tarde pelo porto, e eu queria estar ali se ela viesse de novo. O tempo corria, a
missão estava em perigo, e eu precisava trabalhar.
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Penélope se enroscou entre meus braços e observou o sono do barco. —


Vem dormir. Não precisa ficar aqui fora — ela disse.
— Quer ir pra cama comigo? — eu disse, observando seu olhar clemente.
— Pode ir descansar, eu sei que deve estar cansada. Hoje eu tenho que tentar
resolver esse negócio da missão. Depois a gente se enrosca de novo.
Ela respirou fundo e me abandonou sem cerimônias, escondendo o rosto
comprido sob a luz amarela do convés. Fiquei a sós com o ruído das águas,
um farfalhar sutil da correnteza arrastando nosso barco contra a borracha do
cais, a única companhia humana para a sinfonia de cantos de bichos e insetos
vindos da mata na outra margem.
Aguardei até a meia-noite, com a mente ainda elétrica, sem qualquer sinal
de Elisa. Inquieto, receoso de ver o dia passar sem mais um encontro nosso,
vendo o fracasso da missão cada vez mais próximo, falhei em cair no sono.
Uma angustia sacudia meu peito, uma dificuldade em acreditar que uma
mulher não cedia de imediato aos meus encantos, uma pobretona ainda por
cima. Elisa precisava me ver direito e se apaixonar por mim, para que eu
pudesse destruir o seu mundo.
Desci a rampa do barco e caminhei pela extensão do porto, afastando-me do
nosso local de atracamento. Até o momento, eu nunca tinha pisado tão longe
na vila. A noite calma e silenciosa me acolheu em seu frescor, apresentando à
minha frente um caminho rodeado por árvores e flores. Um parque linear,
margeando o rio, o mesmo que tínhamos visto em nossa chegada.
Sozinho, dei passos lentos sobre o calçamento de uma das trilhas, atraído
pela beleza do lugar, uma beleza simples mas bem cuidada, caprichada nos
detalhes. Margaridas, rosas, crisântemos e até girassóis, cada flor em seu
canto, e tudo em perfeita harmonia. Uma árvore enorme criava um chapéu à
beira da água, sobre um gramado, um flamboyant sem flores, enegrecendo
um chão escuro aonde as luzes do caminho não chegavam.
Vi algo se mexendo e me aproximei, o coração batendo forte porém
decidido, destemido. Um movimento repetitivo, constante, um vai e vem
incessante. Perto da sombra, percebi que se tratava de um casal fazendo amor
sobre um colchonete, gemendo baixinho e apaixonadamente. Parei de andar
com a surpresa, pus as mãos em meus bolsos e os observei por alguns
segundos. As pessoas daquela vila tinham um jeito diferente do nosso, um
jeito mais... Livre, animalesco. Os dois se mexiam num ritmo sinuoso, lento,
bonito. Senti uma pontada de inveja.
Passei por entre os canteiros de flores para evitar que me vissem, rumei a
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uma fileira de prédios baixos além das árvores altas que delimitavam uma
praça. Ruas largas, mas nenhum carro à vista, apenas bicicletas e alguns
quadriciclos. Árvores brotavam nos canteiros centrais, e prédios se abriam
sobre a terra, sem muros ou portões .
Com medo de me perder, olhei para atrás em uma das ruelas pelas quais me
meti e me assustei com uma silhueta que caminhava ao longe, em minha
direção. Meu coração explodiu em excitação, pois aquela figura eu
reconhecia, era aquela que eu procurava, Elisa, em toda a graça de seu
rebolado.

A vila sonolenta me abriu o caminho para o meu encontro com ela, numa
noite sem lua na qual se podia andar sem medo ou preocupação. Elisa vinha
em minha direção cabisbaixa, de braços cruzados. Deu um longo bocejo sob
a luz de um poste baixo, olhou para o lado, para onde a rua se bifurcava numa
alameda entre prédios baixos, e entrou naquela direção. Eu assobiei de leve,
mas o som saiu alto diante de todo aquele silêncio, e de imediato ela olhou
para mim.
Seu rosto brilhou ao se erguer, congelado numa expressão cansada e pálida.
Ela pôs um dedo sobre os lábios, pedindo-me silêncio, e apontou à praça ao
nosso lado, mudando de caminho antes que eu chegasse até ela. Segui sua
direção, reduzindo o meu passo, feliz por tê-la encontrado. Passamos por uma
fileira de bancos e imaginei qual daqueles escolheríamos para nos sentarmos,
pensando no que dizer a ela a uma hora daquelas.
Mas ela parou diante de uma escultura abstrata, entrecortada por pedras e
vigas metálicas, e se sentou sobre uma larga plataforma em rocha que parecia
fazer parte da obra. Ela esperou que eu a alcançasse, mantendo os braços
cruzados, enquanto sobre ela se fechava um arco metálico perfurado por
esferas minúsculas.
— Tomou coragem de andar por aqui, até que enfim — ela disse,
remexendo-se sobre a pedra para me deixar sentar com mais espaço.
— Eu não queria causar problemas caso viesse durante o dia. Achei que
todos estivessem dormindo a essa hora — eu disse, juntando-me a ela sob a
escultura.
— E tem graça assim? De dia é melhor, tudo tem mais vida.
— Não posso reclamar da noite. Passei pelo parque na margem do rio, e
encontrei você. Essa vila está cheia de vida pra mim agora. — Encarei suas
mãos que então se libertavam da cruzada de braços e percebi como eram
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grandes, quase como as minhas, apesar de finas e suaves.


— É, isso é verdade. Quando você vê o outro com sono e para pra
conversar antes de ir dormir, aí sim você começa a conhecer essa pessoa pra
valer, não acha? — Suas pálpebras pesadas cobriam metade de seus olhos,
forçando sua cabeça para baixo, para meu peito.
— Nunca tinha ouvido falar disso, mas faz sentido. O que aconteceu pra
você estar acordada a essa hora? Se perdeu?
— Trabalhei até tarde e dormi sobre a mesa. Quando despertei, todo o
mundo já tinha ido embora e já era madrugada. E olha que o dia hoje nem foi
tão puxado assim.
— É uma pena que a situação esteja tão difícil pra você aqui. Não é a
primeira vez que te vejo sofrer por excesso de trabalho. Por que não passa um
dia conosco no barco? Você vai esquecer todo esse drama.
— Não sei se isso vai ajudar. Pra falar a verdade, não sei de nada nessa
hora, não tô com cabeça pra pensar. Também não estou com pressa pra
chegar no quarto, e se eu dormir aqui, grandes coisas... Já sentiu isso? Vim a
pé, com calma, porque minha cabeça tá esquisita. Me sinto um pouco
sufocada.
— O que está acontecendo, Elisa? Será que essa vida aqui não tá te fazendo
mal? — Eu pus a mão em seu braço, abaixando-me um pouco para me
aproximar de seu rosto.
— Se está, eu deveria mudar, não? Mas eu não quero mudar. No fundo, eu
gosto de ser assim.
— Assim como?
— Cheia de projetos, ajudando em tudo. Você disse que também é um
pouco desse jeito, não disse? Deve saber como é. — Ela subiu os pés sobre a
rocha, aproximando os joelhos de seu peito, deixando as coxas expostas sob a
bermuda que deslizava sobre a pele.
— Hm, nunca perdi o sono por conta de trabalho. Faço só o que me dá
vontade.
— Eu também, só que me dá vontade de fazer tudo!
— Então qual é o problema?
— Não sei. Tem problema? E se eu me fechar no meu mundo, esquecer que
os outros existem, ficar solitária? Isso não é ruim?
— Os outros não vão esquecer de você, Elisa. Você é uma pessoa
encantadora — eu disse, aproveitando a brecha para tecer as tramas da minha
missão. — Simpática, honesta, e muito bonita. Você não vai conseguir se
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isolar, não sendo essa pessoa especial que você é.


Ela franziu a testa e me encarou com os olhos semifechados, observando-
me calada por alguns segundos. — Você tá aqui comigo atrás de sexo? Quer
me levar pra cama? Porque se for isso, fala logo, eu não estou com paciência
pra entender suas intenções.
Tomado de assalto pela pergunta direta que ela me fez, engoli em seco e
senti o rosto queimar. — Bem... O que é isso... Se você quiser, hm... Quer
dizer... — eu disse, balbuciando.
— É, pelo visto eu vou ter de frustrá-lo, já que isso não vai acontecer. Até
sinto um certo desejo, mas não faço questão agora. Gosto de conhecer bem o
meu parceiro, gosto de ter uma história legal antes de partir para a intimidade.
Até nisso eu sou bitolada, tá vendo, pra mim tudo vira projeto.
— Tudo bem, eu também sou assim — eu disse, virando os olhos para
esconder minha mentira. — Talvez não tenha ficado claro, mas eu sempre
tento ser bem cavalheiro.
— O que é isso?
— Isso o quê?
— Cavalheiro, ué. Nunca ouvi falar dessa palavra. — Sua voz se arrastava,
ela balançava a cabeça de um lado para o outro, como se tentasse manter a
atenção.
Surpreso por sua ignorância dessa palavra tão comum no nosso idioma,
parei um tempo para formular uma explicação simples e que não me
comprometesse. — É quando agimos de forma educada e sensível,
respeitando as mulheres.
Ela deu um riso fraco, deitando-se sobre a pedra com os joelhos dobrados.
— E quando é que você não deveria agir assim? Isso que você descreveu é o
básico do convívio humano, com qualquer pessoa, seja homem ou mulher,
não importa.
— Já vi que eu não deveria ter usado essa palavra.
— Parece que você tá tentando me impressionar. Desculpa, eu tô meio
zonza aqui, quase dormindo, então vamos ser sinceros, porque só assim pra
eu me manter acordada. O que você quer de mim? Eu tenho motivos pra ter
medo de você? — Ela me olhou com os olhos próximos à rocha onde
repousava, ligeiramente atrás de mim, sua boca larga parada à espera da
minha resposta.
— Eu quero te conhecer, Elisa. — Mantive a voz firme e não vacilei,
impondo-me sobre sua ousadia. — É proibido?
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— Claro que não. Mas é que vocês chegaram aqui sem dizer nada, e tá todo
o mundo desconfiado nessa vila. Te achei legal, e tô aqui conversando com
você no meio da noite, então me ajude a entender a situação. Nós somos ou
não somos inimigos?
— Inimigos? Ora, por que seríamos inimigos?
— Bem, né, você vem ... Hm, você sabe ... Você vem do outro lado.
— Ah, esquece essa história, Elisa. Isso tudo é passado. Estamos aqui pra
conhecer o seu mundo. Isso é bom, não acha?
— É sim, claro, e é o que eu tenho dito pros outros. Vou confiar em você,
hein.
— Sim, por favor — eu disse, escondendo um sorriso que brotou em mim, a
alegria suja da mentira bem-sucedida.
— Vão embora quando mesmo?
— Depois de manhã, bem cedinho.
— Deveriam ficar mais.
— É que precisamos voltar para reabastecermos tudo. Ficamos até mais
tempo do que o imaginado. Os passageiros não aguentam mais dormir no
barco. Estão vomitando o tempo todo por causa do balanço, e a comida já
está acabando também. Os ânimos estão meio exaltados, digamos assim.
— É mesmo? — ela disse, erguendo a cabeça com o olhar preocupado. — E
você falando que a vida aqui na vila é difícil, hein. Pra vocês a situação deve
estar bem complicada.
— Não vou mentir, realmente. Estamos no limite.
— Vocês têm que descer aqui na vila. Vai ser mais confortável, e daí vocês
podem ficar mais tempo. — Ela se sentou novamente sobre a rocha e
aproximou o rosto do meu, falando baixo com sua voz doce.
— E tem lugar pra ficarmos aqui? Essa vila me parece tão pequena.
Estamos em trinta pessoas no barco.
— Temos algumas tendas e colchões. Podemos montar um acampamento
de emergência.
Estremeci com a ideia de dormir sobre um colchão inflável sob uma tenda
armada no meio da praça. Por mais apertados e incômodos que fossem os
quartinhos do barco, melhor seria continuar por lá. — Não imaginava que
vocês teriam esse preparo. Vai dar muito trabalho, Elisa.
— Nós podemos ajudar, nós podemos recebê-los por aqui! — ela disse,
arregalando os olhos como se tivesse tido uma ideia genial. — Aí sim vocês
vão poder nos conhecer de verdade, e essa inimizade vai finalmente chegar
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ao fim. — Ela abriu um largo sorriso, transformando seu rosto numa imagem
de perfeita felicidade.
Eu queria dizer não, eu queria voltar ao meu barco e ir embora de imediato,
nem um pouco à vontade com a ideia de acampar em meio àquelas
condições. Mas Elisa sorria para mim, relaxando seu largo maxilar, seus
olhos de mel reluzentes sob a moldura de seus cabelos pretos e curtos, e a
visão de sua expectativa me deu ânimos para persistir no objetivo. Apertei
meus lábios e acenei com a cabeça, mirando o chão sob meus sapatos.
— Acho que temos de ir dormir, não é? — eu disse, levantando-me da
pedra.
Ela me observou com uma mão apoiada na pedra, seu quadril deitado de
lado, uma coxa sobre a outra, a curva de sua cintura se elevando sobre o
ventre. A luz fraca dos postes me revelava a silhueta atraente de uma mulher
que me desafiava e que me oferecia ajuda, uma mulher como nenhuma outra
que eu jamais havia conhecido.
— Sim, já passou da hora — ela disse, levantando-se da rocha com
preguiça. — Amanhã eu vou ver com a comunidade o que podemos fazer
para ajudá-los, tudo bem? Fica tranquilo que nós vamos achar um jeito. —
Ela pegou em minha mão, aninhando-se entre meus dedos, e apertou minha
palma, abraçando-me com os dedos leves.
Eu respondi em mesma intensidade, sentindo as carnes de sua mão, e a
liberei para que partisse. — Boa noite, Elisa. Até amanhã então. Durma bem.
— Boa noite pra você também — ela disse, e deslizou os dedos sobre os
meus até que se soltassem por completo.
Ela deixou a praça e adentrou pelas ruelas da vila sem olhar para atrás.
Apertei o peito para acalmar o coração, repleto de emoções que não deveriam
existir. Eu estava ali para enganar Elisa, e de repente a nossa missão me
pareceu uma grande sujeira.

Encontrei o caminho de volta para o barco sem dificuldades. Debaixo do


flamboyant à beira do rio, o casal de amantes que eu tinha visto sob a sombra
já não estava mais lá, entregando a vila toda para mim. Sendo o único a vagar
pelas vielas vazias sob a luz dos fracos postes em minha trilha, dei passos
vagarosos, ganhando tempo para que a minha mente se assentasse.
No porto, o barco continuava lá, do mesmo modo de sempre, e tentei
imaginar como seria para Elisa nos ver ali parados o dia todo, tantas pessoas
isoladas numa área tão pequena da vila. Antes de entrar, passei em frente ao
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café em que a vi duas vezes trabalhando, para que eu pudesse entender um


pouco da vida que ela levava. A porta estava aberta, apesar de tudo estar
apagado, e dentro dele um cheiro de café e pão me atiçou um pouco a fome.
Subi ao barco como se entrasse num refúgio sagrado, um refúgio que ao
mesmo tempo era uma prisão. Tendo apenas mais um dia para conseguirmos
um convite para entrar na vila, eu finalmente tinha feito progresso
significativo. Elisa prometeu intervir em nosso caso diante da comunidade, e
só me restava esperar.
Fiquei em pé sobre o convés, recostado no parapeito, observando as casas
com luzes apagadas. O cheiro amargo da água barrenta subia pelo casco,
retirando-me por completo da minha breve experiência na vila. De repente fui
tomado por um aroma de perfume, uma fragrância que não poderia vir de
nenhum outro lugar além do barco. Passos agudos soaram ao meu lado,
alguém que se aproximava. Pelo cheiro adocicado, eu já sabia quem era, e
por isso me mantive com os olhos fixos no porto.
— Fez uma boa caminhada? — Penélope disse, recostando-se ao meu lado
no parapeito.
— Fiz. Estão todos dormindo — eu respondi, recebendo-a com um sorriso
amarelo.
— Coragem a sua, hein. Sair assim de noite, sozinho, em terreno inimigo.
Só podia ser você mesmo.
— Achei que você tivesse ido dormir. Perdeu o sono?
— Sim, perdi. Eu me prometi que não dormiria enquanto você não fosse
para o seu quarto também. Queria saber que mistério é esse que tanto te
prende aqui fora durante a noite.
— Conseguiu descobrir? — Eu apertei minhas mãos, esfregando-as para
aquecê-las.
— Ainda não. Você foi longe demais, não dava para te ver. Encontrou o
que queria?
— Sim. — Eu respirei fundo, refletindo sobre o que estava prestes a contar.
— Elisa. Eu encontrei Elisa.
A testa de Penélope se enrugou, deformada por suas sobrancelhas surpresas.
— Aquelazinha... E o que você fez com ela?
— Nós conversamos um pouco. Ela disse que amanhã vai tentar convencer
a comunidade a nos receber. Viu, eu só fui lá fazer o meu trabalho.
— Sei... De madrugada? — Ela contorceu a boca, apertando as
sobrancelhas. — Vem cá, me deixa ver seus olhos. — Ela me pegou pelo
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queixo e virou minha cabeça à luz do barco. — Estão brilhando, Ícaro, você
não me engana. Você está caindo por ela, seu idiota.
— Lá vem você e suas superstições... Vai, não começa. — Eu me desfiz de
seu aperto, voltando a encarar os galpões do porto. — Vira minha cara pra
luz e não quer ver brilho? Detesto quando você vem com essa história.
— Mas estou mentindo? Seu rosto está diferente, está mais...
— E se for porque estou aqui com você? hein? E se está brilhando pela sua
companhia, e não por conta da Elisa?
— Nesse caso, meu bem, já passou da hora de você fazer algo sobre isso. —
Penélope envolveu minhas costas com um braço e se apertou ao meu lado,
aproximando o rosto do meu como se pronta a me beijar.
— Você quer que eu te leve para a cama, é? — eu disse, surpreso ao me ver
imitando o mesmo comportamento de Elisa em nossa conversa na praça.
— Isso seria uma delícia. — Ela sussurrou no pé do meu ouvido, virando o
corpo para me abraçar de frente, encaixando meu braço entre seus seios.
O rosto de Elisa apareceu em minha imaginação, seu rosto de desafio e
coragem, recusando-me com uma sinceridade amigável, querendo-me longe e
ao mesmo tempo perto. Sedutora sem sê-lo, atraente por acidente, uma
mulher se oferecendo como amiga e me prometendo um futuro. Meu coração
fraquejou, baqueado, sedento por aquele desafio, aquela pessoa que me
mantinha à distância para me estudar, para me dar a chance de eu me mostrar.
O corpo de Penélope ficou colado ao meu, seu perfume doce me inebriou,
sua voz sedutora atiçou meus sentidos. Ela me pegava num momento de
excitação e me tentava profundamente. No fundo, ela estava certa, era de
mulheres como ela que eu precisava, e não de alguém como Elisa, uma
pobretona malcuidada e simplória.
— Com você é tudo muito fácil — eu disse, atormentado pelos dedos de
Elisa que deslizaram sobre a minha mão havia poucos minutos atrás.
— O que quer dizer com isso? — Penélope se afastou.
— Elisa achou que eu queria sexo com ela, e disse que eu deveria desistir
dessa ideia, se fosse o caso.
— E você achava que conseguiria transar com ela hoje?
— Não sei. Fui disposto a fazer tudo o que fosse necessário pro avanço do
nosso objetivo aqui. Mas ela não me quis.
— É porque ela não te conhece. Não sabe quem você é, não sabe do seu
dinheiro, do seu poder. Convive com gente feia, burra, e não sabe reconhecer
inteligência quando se depara conosco.
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— Pode ser. Ainda assim, foi a primeira vez, sabe...


— Que primeira vez?
— Desde moleque, nunca precisei seduzir ninguém. Qualquer mulher que
eu quisesse se derretia ao meu lado, e era só eu agarrá-la para conseguir tudo
o que eu queria com ela. Sempre foi muito fácil.
Penélope cruzou os braços, sacudindo a cabeça baixa, escondendo-se na
sombra.
— Elisa me faz sentir um fracote, um garotinho.
— Então mostra o homem que você é. Me pega de jeito, vem me deixar
louca. — Ela me encarou com os lábios abertos, enojados. — Vai deixar uma
idiota mexer com sua autoestima assim? Que patético.
— Ela não mexeu com a minha autoestima, não é isso. Sei do que sou
capaz. Ela só faz com que eu me pergunte quem eu sou de verdade.
Abri meu coração diante de Penélope, precisando de alguém que me
ouvisse. Mas ela se virou e se afastou de mim, indo embora para o corredor
do barco.
— Eu não quero te afastar, por favor, não me entenda mal — eu disse,
dando passos em sua direção, falando baixo.
— Me dá um beijo. Se quer ser claro comigo, faça alguma coisa. Um beijo.
— Ela me trouxe o rosto irritado, empinando o nariz para me fuzilar com
olhos semicerrados.
Segurei seus dedos, levantei-os à minha boca e batizei o dorso de sua mão
com meus lábios. Ela arrancou sua palma gélida do meu domínio, seu rosto
tomado pela indignação, virou-se novamente para longe de mim e foi
embora, abandonando-me sem novas palavras.

Cansado, esperei que Penélope subisse em direção ao seu quarto para


buscar o meu próprio alojamento. Passei por emoções demais em uma só
noite, e não queria pensar em mais nada, apenas dormir. Abri a porta do
quarto com cuidado para não acordar Oliseu em sua cama de solteiro.
Tirei a roupa, enrolando-me só com um calção debaixo da coberta, tateando
na escuridão para encontrar a minha cama. Aquele barco pertencia à família
do meu pai, ele foi minha segunda casa por boa parte da minha vida, e cada
canto daqueles me trazia novas memórias.
Tive transas maravilhosas naqueles colchões apertados, em festas que
duravam dias em alto-mar, ou nas proximidades de praias desertas, como se
todo o mundo se reservasse aos meus desejos. Eu as chamava e elas
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apareciam, beijando-me onde eu as ordenasse, curvando-se conforme as


exigências do meu tesão. As mais cobiçadas, as mais famosas, todas elas
vinham até mim, sem que eu fizesse esforço.
Na verdade, nunca precisei me esforçar. Bastava o meu nome, a minha
pegada, o meu dinheiro. Dias de luxo, de luxúria, eu lhes oferecia o prazer, a
vida plena, cheia de delícias. Esse era o meu mundo, o meu lado, a verdadeira
Utopia. Era a perfeição, e como eu amava estar rodeado por mulheres,
curtindo minhas acompanhantes tanto quanto elas me curtiam.
O que diabos eu estava fazendo com Penélope, então? Antes de partir no
barco junto a ela, eu jurava que nós dois passaríamos as noites enroscados um
no corpo do outro, curando as dores da missão com os gemidos de nosso
prazer. Ela queria o mesmo, ela não se cansava de me lembrar disso. Quando
é que eu não quis sexo com uma mulher daquelas na vida?
Aquela vila mexia comigo. Cada minuto passado no convés do barco na
contemplação dos prédios baixos e das pessoas que compunham aquele
cenário me tirava do meu mundo e me jogava no outro lado. Elisa, seus
cabelos pretos e curtos, seus olhos que me viam como ninguém nunca antes
havia me visto, seus dedos que deslizavam sobre os meus para me deixar a
sós e inquieto, sedento pela imagem que ela construía em sua mente. Quem
era eu diante do que ela via? O que eu representava para aquela que não
conhecia o dinheiro e a fama?
A promessa fácil de Penélope, a vida de sempre, o espelho que não me
desafiava, esse emaranhado de coisas me brochou. Imaginei seu corpo nu,
sua saia jogada ao chão, o sutiã arrancado pelos meus dentes, a calcinha
deslizando sobre suas coxas brancas. Fios amarelados esvoaçando sobre meu
rosto que a beijava, seus seios fartos apertados sob meu peito, mas não, a
imagem não me excitava.
Elisa e seus dedos, aquele aperto em minha mão, a carne áspera de sua
palma calejada, aquilo sim me esquentou o corpo debaixo da coberta. De
olhos fechados, imaginei o resto da conversa com Elisa, imaginei o
amanhecer ao seu lado, naquela praça vazia daquela vila esquisita. Ela me fez
companhia e me pôs para dormir em paz, finalmente.

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5 - Elisa

Ainda sonolenta, fiz questão de acordar no horário normal para manter meu
ritmo. O resto do sono eu compensaria com algum cochilo ao longo do dia,
sendo bom até para recompor minhas energias antes de cuidar das outras
atividades. A tarefa que me motivou a levantar da cama era apenas uma, era
dar um jeito na situação do barco do outro lado.
Procurei Laura pelo refeitório, buscando sua ajuda para ir comigo ver a
situação dos visitantes, e não a encontrei. Fiz meu desjejum sozinha, sem a
presença dos meus poucos amigos. Ouvi atrás de mim alguns integrantes do
comitê das fábricas, conversando sobre as últimas remessas para o pessoal
das cidades. Com os novos robôs instalados em nossos galpões, prestes a
serem energizados pelo aumento de capacidade da nossa usina solar, nossa
infraestrutura seria capaz de fornecer quadriciclos para todas as vilas em
nossa região.
Mandei uma mensagem para Laura a partir do nosso sistema online, e logo
recebi sua resposta. Ela estava no Centro de Serviços Externos, ajudando a
traduzir alguns textos dos pesquisadores da nossa Federação para uma rede
de cientistas clandestina do outro lado.
— Laurinha, tem como interromper seu trabalho só por uma hora? — Eu
cheguei por trás dela, encostando a mão em seu ombro negro.
— Deixa eu só terminar esse parágrafo? Daí fica mais fácil eu retomar o
raciocínio depois. Isso aqui é fascinante! — ela disse, atenta à tela enorme à
sua frente, digitando freneticamente.
Ela terminou o parágrafo, salvou o trabalho e se pôs de pé para me
acompanhar.
— O que vamos fazer? — ela disse.
— Os visitantes do barco já estão se preparando pra ir embora. Queria ver a
situação deles, porque aí nós poderíamos discutir o caso numa assembleia
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com mais informações. Pensa só, eles vieram nos ver e nós nem pudemos
conviver com eles na vila. Isso não tá certo. Só que pra ficar, eles precisam de
uma situação mais confortável. — Eu enrosquei os dedos na curta mexa
escura de cabelo escorrendo em meu rosto.
— Ótimo! Eles me pareceram boa gente ontem. Um pouco chatos para o
meu gosto, tanto é que saí cedo e deixei Glória lá sozinha, mas diziam coisas
muito agradáveis.
— Gostou deles, foi? — Eu a guiei para fora do prédio, tomando o caminho
de uma alameda coberta que nos levaria até o porto.
— Gostei. São ótimos atores, e estou aqui esperando a peça deles. Ou talvez
essa já seja a peça... Enfim, estou empolgada! — Laura rodopiou as mãos à
sua frente, sacudindo os cachos pretos a cada frase.
— Você acha que eles são atores? Mas eu pesquisei o nome de um ontem à
noite, e na verdade eu eles são pessoas muito poderosas do outro lado.
— Talvez nem eles saibam que são atores, e isso não significa que não
sejam.
— Ai, você e suas ideias. — Eu ri ao seu lado, caminhando sob a sombra.
— Me diz uma coisa... Por acaso algum deles deu em cima de você?
— Um deles tentou sim, ô, coisa mais fofa. Oliseu, o nome dele, o cara de
barba, parrudão. Mas parece que ele ficou com medo de mim. Acho que
cheguei muito perto dele, perguntei qual era a sua Utopia, e ele não soube me
responder.
— Eles devem pensar que já vivem em um mundo perfeito, Laura. Daí não
faz sentido eles refletirem sobre essas coisas.
Laura e eu subimos no barco sem pedir permissão. Uma mulher de avental e
gravata borboleta veio nos receber, a mesma mulher que costumava servir
comida aos passageiros. Ela guardava o espaço junto a três passageiras
sentadas sob uma mesa, pegando sol. Nem Ícaro nem qualquer outra pessoa
que eu já tinha visto estavam por lá.
— Você está confortável aqui no barco, Rosilda? — eu perguntei à moça, já
conhecendo seu nome de outras vezes.
— Não tenho do que reclamar — Ela ergueu o peito, observando de soslaio
as três outras mulheres que a vigiavam.
— Gosta de dormir com esse balanço das águas? — Laura juntou-se à
minha entrevista.
— Olha... — ela começou a dizer, interrompida por uma das vozes da mesa.
— Bom dia, o que vocês desejam? Deixem a Rosilda cuidar das suas
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tarefas, por favor. Ela é uma mulher muito ocupada. Qualquer coisa que
quiserem perguntar, podem falar conosco — uma mulher de longos cabelos
castanhos e olhos verdes disse, sorrindo para mim com rosto angelical.
— E vocês não são ocupadas? — Laura apertou as sobrancelhas numa
curiosidade sincera.
— Somos sim, meu bem. Ocupadas com outras coisas — A mulher se
ergueu da mesa, deixando as duas outras para atrás, e se pôs entre nós e
Rosilda. — O que vocês querem saber?
— A comida aqui do barco é o suficiente pra vocês? — Eu acatei a sugestão
da mulher, indo direto ao ponto.
— Mais do que suficiente. Trouxemos o que há de melhor do nosso mundo.
— Quanto tempo mais você aguenta ficar aqui no barco? Seja sincera.
— Já que podemos ser honestas, acho que nosso tempo já se esgotou. —
Ela empinou o nariz, fechando os olhos para suspirar. — Quase todos nós
passamos o dia vomitando por conta desse balanço enjoado. O barco é grande
e estamos atracados, é verdade, mas é que somos pessoas muito sensíveis a
isso, não somos de ficar muito tempo embarcados.
— E não pretende ir em terra firme? Nunca quis nem visitar a nossa vila?
Lá você não teria esses problemas.
— Meu bem, nós somos pessoas finas. É falta de educação invadir o espaço
do outro sem ser convidado. Não somos como seus antepassados.
— Alice! — Uma outra mulher de preto gritou atrás dela, impedindo-a de
continuar. — Desculpem-na, eu lhes peço — ela disse nos encarando. — A
Alice não disse isso por mal.
— Ué, o que tem de mal no que ela disse? Nossos antepassados não
esperavam convite mesmo, eles eram bem diretos — Laura sorriu com sua
inocência própria. — Não temos nenhum ditado sobre isso, mas eu posso
inventar um agora, porque faz sentido, peraí, deixa eu pensar, algo mais ou
menos assim... "Que digam logo se não me querem, porque se tem porta eu tô
entrando."
Eu ri da brincadeira de Laura, sem entender por que as três mulheres não
compartilhavam do nosso repentino bom humor. Elas nos olhavam com os
lábios tortos, as mandíbulas travadas.
— Posso dar uma olhada nos aposentos do barco? — eu disse, quebrando o
gelo. — Já vim aqui duas vezes, mas ainda não passei do convés.
— Err, bem... Claro, o que vocês querem ver? — A mulher de preto cruzou
os braços, levantando o queixo para me olhar de cima.
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— Os quartos, os banheiros, o que mais tiver por aí. Quero fazer um convite
para que vocês se alojem em Água Clara, alegando na assembleia que as
condições do barco são ruins para a sua estadia — eu disse.
— Queremos ser amigas! — Laura disse ao meu lado.
A mulher de preto assentiu com a cabeça e nos guiou ao corredor na entrada
do convés. Portas estreitas se incrustavam na superfície de madeira polida da
parede. Ao final, uma pequena escada em caracol subia ao segundo e terceiro
andares.
— Serve se eu lhes mostrar o meu quarto? É onde tenho dormido com
Alice, que vocês já conheceram. — A mulher de preto abriu uma das portas e
nos mostrou o pequeno cômodo no qual dormia.
Uma cama de beliche cravada na parede, um pequeno armário encostado no
canto, e um espaço livre para apenas uma mesinha com um jarro de flores.
Luz entrava por pequenas janelas acima da cama superior, e um cheiro de
podre destoava da arrumação impecável dos colchões.
— Está sentindo esse cheiro? — a mulher perguntou. — Passei mal durante
a noite e vomitei no chão. Esse enjoo do barco não me deixa em paz. A
Neusa limpou, mas o fedor não sai.
— Tem que deixar a porta aberta pra ventilar um pouco, não? — Laura
abriu e fechou a porta como se para abanar o ar interno.
— Não adianta. Você vai ver que todos os quartos estão com um cheiro
parecido.
— Você gostaria de ficar mais tempo aqui em Água Clara? — Eu perguntei
sem me virar à mulher, encarando o quarto minúsculo com beliche e cheiro
de azedo.
— Bem, aqui no barco, não, de jeito nenhum. Mas se vocês tivessem algum
hotel, ou algo do tipo na vila...
— Nós temos alojamento. Mas eu preciso saber se vocês os querem mesmo.
Completei meu pequeno passeio pelo primeiro andar do iate com a certeza
de que eu tinha um caso forte para a nossa oferta de hospitalidade. Não
tínhamos quartos livres na vila, mas poderíamos improvisar um
acampamento, e pelo menos eles não teriam de conviver com a náusea e
aqueles espaços apertados o tempo todo.
Laura e eu nos despedimos da mulher de preto e de Alice, e voltamos à vila.
Meu coração abandonou o aperto do meu peito, pois não encontrei Ícaro no
barco. Depois de uma noite em claro, ele certamente não acordaria cedo.

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Fui conversar com o pessoal do Planejamento sobre a minha ideia. No


prédio largo onde também se realizavam as assembleias gerais da vila, um
casal ocupava a sala dos computadores, acompanhando os cálculos que iam e
voltavam dos outros Centros da Federação. Eram Marjorie e Vinícius, dois
dos mais famosos membros da nossa comunidade, já que quase sempre
ajudavam a mediar os debates e muitas vezes serviam como nossos membros
delegados para assuntos de produção nas reuniões com outras vilas e cidades.
Logo que me viram entrar, ergueram-se dos computadores. Marjorie pegou
um tablet em uma das mesas e o trouxe até mim. Aceitei a oferta por pura
cortesia, ciente de que ela me oferecia os dados para consulta livre, mas não
era o que me interessava naquela visita.
— Se o pessoal do barco resolvesse ficar aqui conosco por um tempo,
nossos estoques aguentariam? — eu disse, falando baixo, tímida, receosa da
minha ideia.
Vinícius retorceu o rosto enrugado, arqueando uma de suas sobrancelhas
brancas e espessas. — Por acaso eles pediram pra ficar?
— Essas coisas precisam ser comunicadas com mais antecedência, Elisa —
Marjorie disse, ajeitando seus óculos quase transparentes sobre o nariz gordo.
— Eu sei, eu sei, só estou perguntando — Eu virei o rosto para o tablet,
tocando na tela para acessar uma tabela qualquer. — Eles querem estar aqui
conosco, só que aguardam ser convidados. Vieram de longe pra conhecer o
nosso lado, e até agora nós não oferecemos nossa hospitalidade. Essa não é a
nossa cara.
— Eles são os inimigos. Peço que entenda a diferença — Marjorie disse, de
pé sobre suas pernas grossas, envolvida por um vestido largo com saia até o
chão.
— Já foi conversar com eles? — eu disse.
— Eu estava lá quando eles chegaram. Estendemos a mão, mas não
quiseram descer daquele barco deles. Ficaram lá, embarcados, escondidos
nos quartos. Fizemos a nossa parte. — Marjorie disse.
— Mas foram simpáticos — Vinícius disse, aproximando-se de nós duas.
— Temos que ser justos, afinal de contas. Duvido que estejam aqui pra coisa
boa, mas um ou outro ali tem cara de que se encaixaria bem conosco.
— Certo, eu entendo a preocupação, só que vocês não concordam comigo
que um convite para ficar aqui por um tempo é a nossa maior arma contra
eles? Solidariedade, acima de tudo — eu disse.
Marjorie encurvou o pescoço, de um lado e para o outro, medindo as
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minhas palavras. — Você tá certa, Elisa. E em relação à sua pergunta, se os


nossos estoques aguentam mais umas trinta pessoas entre nós, a resposta é
que não aguentam. Deixa eu mostrar a tabela dos alimentos primários. — Ela
se pôs ao meu lado, tomando o tablet das minhas mãos, abrindo um
fluxograma com as entradas e saídas previstas de produtos para o mês.
— Tá, aguentam algumas semanas. Mas eles não vão ficar aqui tanto tempo
— eu disse.
— Isso no melhor dos casos, e um consumo que vai nos deixar ainda mais
frágeis diante de uma emergência. Essas pessoas não vão se contentar em
comer pouco, não acha?
— Eles podem ajudar. Eles podem trabalhar no preparo de alguma coisa,
não sei — eu disse, minha cabeça baixa buscando na tela à minha frente
alguma solução.
Vinícius riu, balançando seu topete branco sobre a cabeça calva. — Mesmo
que houvesse algum trabalho para eles fazerem, eles não fariam. São como
crianças, quase bebês nesse aspecto.
— Exato. Não são educados como nós, não sabem se comportar em
sociedade — Marjorie disse, largando o tablet sobre a mesa.
— Eles provavelmente dizem o mesmo de nós — Eu cruzei os braços. — E
aí, vamos ficar nesse impasse, um julgando o outro como incapaz? Ou vamos
ensiná-los então como se comportar no nosso lado?
Eles se entreolharam, ela por entre as lentes grossas de seus óculos, ele sob
as pálpebras caídas de sua pele flácida.
— Você quer convocar uma assembleia pra discutir isso? — Vinícius disse.
— Sim, eu acho necessário. Hoje de tardezinha, antes da janta. Pode ser? —
Eu abri um sorriso contido, sentindo a pele estremecer com a promessa de
uma assembleia na qual eu ocuparia um ponto central.
— Tudo bem. Vamos enviar o comunicado para todos. Esteja atenta a
qualquer novidade.

Sempre fui uma mulher fechada, muito mais de ação do que de fala. Se
quisessem minha ajuda, bastava que me chamassem, mas poucos se davam a
esse trabalho, e por isso me encaixei tão bem nos planos de Jones. Eu
participava nas assembleias dos projetos maiores nos quais eu trabalhava, e
contribuía apenas com a minha experiência prática, depois que todos já
tivessem falado. Fico vermelha facilmente, minha voz é baixa, e não me sinto
à vontade perto de multidões.
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Mas saí do prédio do Planejamento com o coração apertado entre dois


extremos. Feliz por estar a um passo de ajudar o pessoal do barco, e
preocupada porque eu é que teria de propor o assunto da discussão. Eu,
sozinha, tendo de provar meu ponto de vista para as dezenas de outros
moradores. Estremeci só de pensar. Eu precisava de ajuda.
Na alameda rumo aos dormitórios, Jones assobiava em companhia de uma
criança, um rapazinho de uns oito anos cujo nome eu não me lembrava.
— Esqueceu da nossa tarefa? — Ele me encarou com um olhar leve,
relaxado, continuando seu caminho.
— Hã? Que tarefa? — eu perguntei, ainda aturdida com o prospecto da
assembleia geral.
— O calçamento da estrada. Chegaram as pedras novas, lembra? Estou
levando o Miguel pra ver e aprender um pouco. — Ele sacudiu os cabelos
encaracolados do garoto de pele amarronzada. — Ainda dá tempo, vem
comigo.
— Agora? Hm, eu preciso resolver uma coisa antes. Hoje eu acho que vou
ficar por aqui mesmo. — A criança fixou os olhos escuros sobre mim,
abrindo os pequenos beiços.
— Tem certeza? O calçamento novo tá alto na lista de prioridades, viu. O
que você tem pra fazer de mais importante?
— Nada. O que vou fazer é besteira, eu sei, mas... É algo que precisa ser
feito, e é urgente. — Abaixei o rosto e me afastei dos dois, indicando
mudança de caminho.
Ele parou, segurou Miguel no lugar e se virou para mim. — E poderia dizer
do que se trata? Quero saber também.
— Você vai saber mais tarde — eu disse, e acelerei o passo para ficar livre
daquela insistência.
Minhas orelhas queimaram com o confronto. Apertei os ombros, toda tensa,
enquanto me distanciava de Jones, ciente de que em breve ele me cobraria
explicações. Rebelando-me contra sua influência sobre mim, eu me senti sem
chão, diante do perigo. Ele me dava um porto seguro, uma trilha certa e sem
riscos, algo que me reconfortava, era verdade. Por outro lado, abrir uma
brecha no destino, descobrir meu próprio passo, isso me encheu de vida. O
barco, e Ícaro. O poder da novidade.
Bati à porta de Glória no dormitório, mas ela não me respondeu. Insisti,
conhecendo a pessoa e seus sonos pesados, até que ficasse clara a sua
ausência. Fui ao Centro de Recreação, e perguntei por ela na entrada.
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Disseram-me que ela tinha reservado uma sala de cinema.


Antes mesmo de entrar aonde Glória se escondia, ouvi um som alto de
melodrama. Uma mulher chorava nos braços de um homem, e pelo tom
meloso e sofrido da dita cuja, logo soube que se tratava de um filme do outro
lado. Revirei os olhos e entrei na sala escura, encontrando a minha amiga
esfregando um lenço no rosto, deitada em uma poltrona diante da projeção na
parede.
Ela percebeu a minha presença e estendeu a mão a mim, com os olhos
cobertos de lágrimas. — Ai, amiga, senta aqui comigo, por favor.
— Falta muito pra acabar? — Eu me deixei levar por seu puxão,
encontrando um espaço apertado no assento da poltrona, colada a ela.
— Não, não, já deve tá quase acabando. Fica aqui, eu preciso de apoio. —
Ela recostou a cabeça em meu ombro, soluçando.
No telão, um homem de terno e gravata abandonava uma mulher chorosa no
meio da sala. A pobre coitada, descabelada, implorava para que ele voltasse,
mas ele parou diante da câmera e lhe disse não, com pesar no coração. Glória
se acabava de chorar ao meu lado, e eu me esforçava para não rir do
dramalhão no filme. O cinema do outro lado era tão previsível e exagerado
para os nossos padrões que eu não conseguia me emocionar com nada do que
eles produziam.
Aguentei mais meia-hora daquele filme, sem poder dizer um ai, enquanto
Glória curtia os altos e baixos do filme agarrada ao meu colo. Fiquei feliz
quando o fim chegou, mas peguei um lenço e ajudei a secar o rosto da minha
amiga, abraçando-a para reconfortá-la.
— Uma história tão bonita, um amor tão forte... Você não achou? — ela
disse.
— Eu não peguei o filme do começo, desculpa, fiquei meio perdida.
— Ah, eu devia ter te chamado. É que ninguém gosta de assistir esses
filmes comigo, então eu sempre venho aqui sozinha. Funciona como a minha
terapia, sabe?
— Chorar? — Levantei uma sobrancelha, cética e debochada.
— Tudo! Chorar, rir, torcer, enfim... Tudo!
— Credo, Glória, vai viver isso tudo lá fora, na vida real. Precisa de filme
pra chorar? Onde já se viu.
— Não é a mesma coisa. As pessoas daqui não têm esse charme, essa
presença de espírito. Não viajam de barco pelo mundo, não constroem
impérios, não apreciam o luxo e o mistério.
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— Que bom que não somos assim, né. Alguém precisa trabalhar nesse
mundo.
— Ai, já vi que você é um caso perdido. — Ela terminou de secar os olhos
e afastou as costas da poltrona. — Por que você veio aqui? Só pra fazer graça
de mim?
— Não, Glória, eu vim aqui querendo sua ajuda. Estou querendo trazer os
visitantes do barco para viver um pouco aqui conosco. O que você acha da
ideia?
Ela arregalou os olhos, segurou os lábios trementes e me perguntou
baixinho. — Você tá falando sério?
— Sim. Eles vão embora amanhã, mas não puderam ver nada daqui, tudo
porque não os convidamos direito. Se quisermos aproximar os nossos
mundos, nós precisamos nos conhecer melhor.
— Precisamos sim, é claro que sim, com toda a certeza. Vamos lá, vamos
convidá-los, agora mesmo! — Ela se levantou, puxando-me consigo,
abraçando-me enquanto tentava me erguer.
— Calma, não é assim. Falei com Marjorie e Vinícius, e eles acham que
não temos estrutura pra isso. Mas pedi uma assembleia pra hoje de
tardezinha. Preciso que você me ajude, Glória, preciso muito de você lá
comigo. Aquela gente toda, todo o mundo olhando pra mim... Isso é muito...
Eu vou travar lá na hora.
— Deixa comigo, Lis! Ai de quem se negar a receber esses nossos ilustres
convidados! Eles podem vir e dormir na minha cama, se não tiver espaço. Eu
vou estar lá, você não está sozinha, tudo bem? Estamos juntas nisso,
alinhadinhas, uma apoiando a outra.
— Obrigada. Sem você, eu não vou conseguir fazê-los ficar mais tempo
aqui conosco.
— Então vamos lá. Tá confirmada a assembleia?
— Não sei, temos que ver.
Saímos as duas juntas para o salão principal, e logo na entrada o painel
estava aceso. Todos os nossos prédios contavam com uma sinalização
discreta para os casos de convocação de assembleia, um letreiro que se
acendia com as informações necessárias e ficava lá até a hora. Nosso
encontro estava marcado, e Glória e eu tínhamos algumas horas para dar uma
polida nos nossos argumentos.

Com a vermelhidão do céu, suas nuvens coloridas pelos raios baixos do sol,
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rumei ao pavilhão central com Glória. Passei a tarde com ela, analisando
informações e possibilidades, e tudo estava pronto para a assembleia.
Pequenos grupos caminhavam na mesma direção, de banho tomado, de
tarefas feitas, prontos para ouvir novas ideias.
— Na última reunião, lembra que não aconteceu nada de ruim, não lembra?
— Glória disse, de postura altiva, olhando as pessoas passando pelas colunas
da grande cobertura do nosso pavilhão. — Hoje vai ser igual.
— A diferença é que nosso assunto tem uma guerra envolvida. Acho que
algumas pessoas podem ficar irritadas — eu disse, corando ao sentir a
pressão crescer ao meu redor.
— Essa guerra já acabou faz tempo. Está cada um vivendo em seu canto,
em paz. Estamos aqui justamente pra acabar com essa sensação de conflito.
Viemos trazer a harmonia, não é verdade? — Glória sorriu para mim, um
sorriso confiante de quem se acreditava capaz de tudo.
— Tomara. Isso é o que eu mais quero.
A assembleia se formou com espontaneidade no grande salão comunal. De
repente as pessoas pararam de chegar, os grupos se fecharam num burburinho
interminável, ondas de palavras espumando as vozes mais diversas que se
quebravam em nossos ouvidos. Uma multidão reunida livremente, sem palco
ou pedestal. Engoli em seco e me calei, aguardando ao lado de Glória, sem
encontrar Laura ou Jones, meus dois únicos outros amigos.
Uma figura com um microfone na mão veio de um dos extremos da sala.
Era Vinícius, ao lado de Marjorie. Ele ligou o microfone e deu uns tapinhas
para testá-lo. Um som alto saiu das caixas de som pregadas no teto.
— Pessoal, acho que já dá pra começar a conversa, né? — Vinícius disse.
— A Elisa tem um assunto para discutir aqui conosco, e se alguém chegar
depois, ajudem a deixar todos informados sobre o que está acontecendo. Vou
passar a palavra pra ela, tudo bem? Elisa, levanta a mão onde você estiver,
por favor.
Fiz como sugerido, erguendo meus dedos trêmulos no meio daquele mar de
gente. Todos ao redor se calaram e me olharam com rostos tranquilos,
curiosos. Abriram espaço, utilizando toda a amplitude do pavilhão para
mudarem de posição sem tumulto, formando um círculo à minha volta.
— Aqui, fique à vontade pra começar quando quiser. Estamos aqui pra
ouvir o que você quer dizer — Marjorie disse, pegando o microfone de
Vinícius para colocá-lo em minha mão. Ela acariciou meu ombro e ficou ao
meu lado.
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Glória juntou as mãos sobre o peito e acenou a cabeça para mim, encarando
todas as pessoas que se punham diante de mim. Tomando coragem para
observá-las, reconheci quase todas, sendo a vila tão pequena a ponto de ser
possível saber o nome de qualquer um sem esforço.
— Olá, tudo bem com vocês? Olha só, o que eu vim dizer não se refere a
mim especificamente, então peço a compreensão de vocês para podermos
discutir o assunto com tranquilidade. — Eu aproximei o microfone da minha
boca para que o som encontrasse saída nos amplificadores, já que minha voz
se perderia facilmente nas duas primeiras fileiras da assembleia.
Cruzaram os braços, apoiaram as mãos nas cinturas, permaneceram em
silêncio para me ouvir. Eu suava frio, sentindo o peito gelar.
— Temos um barco atracado no nosso porto, vocês todos sabem disso. São
visitantes que vieram do outro lado para nos conhecer. Eles estão para ir
embora, e até agora nós mal sabemos quem são. Ou seja, chegaram aqui e
não lhes demos a chance de dizer a quê. Passaram esses dias todos
aprisionados naquele iate, vomitando, dormindo mal. Eu fui lá ver o lugar
deles, eu vi o estado em que se encontram. É tudo apertado, triste, já estão
ficando sem comida, estressados. Então o que eu quero saber de vocês é se
podemos convidá-los formalmente a se instalarem aqui em Água Clara por
um tempo. São nossos semelhantes, precisando de ajuda.
Mal terminei de falar e recomeçaram os burburinhos. Cenhos fechados,
cabeças se sacudindo para os lados, pessoas virando as costas.
— Ninguém os convidou antes, e mesmo assim eles apareceram! Se
quisessem alguma coisa, eles que dissessem — alguém disse no meio da
multidão.
— Eles são pessoas finas! — Glória gritou ao meu lado com sua potente
voz de soprano. — Eles respeitam o nosso espaço.
— Para de ser tão inocente! — outra pessoa bradou próxima ao círculo. —
Ninguém naquele barco sabe o que é viver do nosso lado. Vieram aqui pra
tirar sarro, pra bagunçar. É só isso que eles sabem fazer, os inimigos.
— Não sabem o que é o nosso lado, é verdade, e vieram aqui para nos
conhecer. Por que então não vamos lhes dar essa chance? — eu disse,
ofegante, escondendo-me atrás de Glória, que se interpunha entre a multidão
e eu como uma guardiã.
— Ela tá certa, e vocês tão com muito medo — uma voz doce falou atrás de
algumas fileiras, a voz familiar de Laura. — Se forem mesmo inimigos, nós
não somos burros, e não vamos cair no jogo deles. Se forem amigos, ótimo,
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novos amigos, um mundo melhor.


— É verdade — algumas vozes disseram entre os grupos.
— Vocês tão brincando com fogo — a voz grossa e feroz de Jones emergiu
por entre a primeira fileira, encarando-me face a face. — Quem aqui já entrou
em contato com essa gente sabe que só tem falsidade naquele lugar. A
gentileza deles só serve pra manipular, pra distorcer, pra destruir. O que
temos a ganhar com eles aqui?
Os rumores varreram todo o pavilhão, ecoando entre as duas paredes
colossais que erguiam o teto a dez metros de altura. Um vento gelado correu
por entre as duas aberturas cercadas por colunas nas entradas do pavilhão,
fazendo-me estremecer.
— O que temos a ganhar com eles aqui? O nosso próprio coração — eu
disse, olhando fundo nos olhos de Jones, esquecendo-me da multidão. —
Falamos sobre hospitalidade para o resto do mundo, falamos de
solidariedade, de auxílio mútuo. Escolhemos viver num mundo sem donos,
sem fronteiras, sem dinheiro, onde todos são bem-vindos, e é isso que nos
define, é isso que nos diferencia do outro lado. Mas então chega o momento
de provarmos do que somos capazes, de mostrar nossa compaixão ao
inimigo, e damos com o pé atrás? Não, isso não está certo. É muito fácil ser
bom quando não há obstáculos. É justamente diante do obstáculo que temos
que agir da forma certa, por mais difícil que seja. Senão, pra que servem os
nossos valores? De enfeite? Eu achava que isso era coisa do outro lado.
Com minha fala, joguei um manto de silêncio sobre a assembleia. Todos me
ouviram com total atenção até o meu ponto final. Assim que terminei, tirei os
olhos de Jones e contemplei o sorriso orgulhoso de Glória. Ela batia palmas
silenciosas ao meu lado. Uma gota de suor frio escorreu entre meus seios,
minha mão trêmula ficou dormente. Entreguei o microfone a Marjorie, por
mais que ela tentasse recusá-lo, alegando que a conversa ainda continuaria.
Mas continuaria entre os grupos, a assembleia subdividida por afinidade
entre as várias pessoas ali presentes. Começaram a discutir entre si, para que
cada um tivesse voz e não tivesse de esperar a vez, para que não tivessem de
enfrentar os olhares ávidos da multidão. Eu me recostei ao lado de Glória e
Laura, escondendo-me do rosto irritado de Jones.
Aguardei a passagem dos minutos, a noite escura se abatendo sobre nós.
Aos poucos a fome dava as caras e nos lembrava da janta por fazer. Os
grupos se apressaram nas deliberações cada vez menos acaloradas.
Delegaram algumas pessoas entre si para discutir as conclusões de cada
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grupo com os outros membros delegados, de modo que a conversa se tornasse


mais fácil com um menor número de pessoas.
Por fim, os grupos delegados se reduziram mais uma vez até chegarem a
uma conclusão. Marcos, aquele que vivia envolvido no setor de energia da
região, ajudando-me na montagem dos painéis elétricos, pegou o microfone.
Um círculo se abriu ao seu redor, formando um longo espaço livre entre meu
grupo e ele.
— Pelo que foi conversado entre nós, parece que o consenso é o de que
devemos honrar nossos princípios e estender nosso braço amigo aos
visitantes do outro lado — Marcos disse, girando em torno de si próprio para
se mostrar a toda a assembleia. — Amanhã vamos realizar uma festa em
homenagem aos passageiros do barco, e começaremos a montagem de um
acampamento para recebê-los. Precisaremos de voluntários para organizar a
festa, montar o acampamento, e cuidar dos reforços para os nossos estoques.
Então, meus amigos, se preparem. Amanhã é dia de trabalho, mas também é
dia de muita festa.
Glória pulou sobre mim com um grito de emoção, agarrando-me com força
num abraço. Laura se juntou a ela para comemorar a sua felicidade, e eu não
resisti. Abracei-as e pensei em Ícaro. Eu mal via a hora de contar-lhe a
novidade.

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6 - Ícaro

Até aquele momento, eu tinha a certeza de apenas uma pessoa da vila que
estava do nosso lado, além de Elisa. Era aquela tal de Glória, que adorava vir
ao nosso barco se enfeitar com a ajuda de Penélope e as outras mulheres. Ela
era a escolhida de Cássio, ficando sob sua responsabilidade, um pouco a
contragosto, mas era o mesmo com todos nós.
— Você deveria tê-la levado pra um quarto, tirado a roupa dela, aproveitado
a chance — eu disse ao Cássio, sentado com o resto dos passageiros no
convés do barco depois da janta, sob o manto escuro da noite.
— Isso não mudaria nada — ele disse, cruzando os braços com o rosto
fechado.
— Mudaria sim. Vai dizer que não gostaria de experimentá-la? Ela estava
ali, doidinha por você. Você tinha de levá-la à loucura, deixá-la implorando
por mais. A partir daí, era só esperar ela nos levar para a vila.
— E como é que eu ia fazer isso com todo o mundo olhando? Ela quase não
tinha um tempo a sós comigo.
Apertei os lábios e as sobrancelhas, sacudindo a cabeça. — Você tem ou
não tem pulso firme, cara? Arrasta ela pro canto, tasca um beijo, e vai pro
quarto. É isso que ela quer.
— Tá, mas agora já era.
— Já era nada. Se ela aparecer aqui, é justamente isso o que você vai fazer,
entendeu? O tempo tá acabando.
— E se for a sua Elisa a aparecer? — Penélope disse, erguendo a vista para
mim, fuzilando-me com os olhos entreabertos e desconfiados.
— Se for ela, vai ser pra me dar a resposta que precisamos. Já fiz o que
tinha de fazer pra conquistá-la. Ela não é como a Glória, ela não sonha com o
nosso mundo, ela não quer ir pra cama com nenhum de nós. Ainda. — Apoiei
o cotovelo sobre a cadeira, virando o peito em direção a Penélope, impondo
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minha presença.
— É, você é o conquistador mesmo, estou vendo — Penélope disse,
lambendo os beiços. — Mas eu acho que você errou no seu julgamento.
Aquela idiota por quem você se apaixonou...
— Não me apaixonei por ninguém — eu interrompi, irritado com as
palavras que ela pôs em minha boca.
— Aquela idiota por quem você se apaixonou... — Penélope insistiu. — Ela
é quem tem o controle sobre você, e não o contrário. Temos aqui o grande
chefe das Indústrias Zanotelli, e ele não consegue dobrar uma pobretona
ignorante. Nossa brincadeira aqui fracassou, já é hora de admitirmos. Foi
bom, foi divertido, mas é hora de voltarmos.
— Também acho — Cássio disse ao lado, olhando-me de cabeça baixa.
— É o que todos vocês aqui pensam? — Varri os passageiros ao meu redor
com os olhos irritados, prestes a me levantar para conter o motim. — Querem
voltar pra ficarmos presos naquele clube? Lá do outro lado vocês são uns
inúteis, é assim que os velhos estão lhes vendo. Por isso os deixam lá no
clube, como crianças. Estou aqui pra dar um sentido pra vocês, pra comandá-
los num projeto importante. E mesmo assim querem ir embora?
— Meu querido, não é que queiramos ir embora — Penélope disse,
revirando os olhos, alisando o colar de pérolas ao pescoço. — É que não nos
querem aqui. Não viemos aqui para invadi-los. Viemos aqui para enganá-los,
e não conseguimos.
— Ainda — eu disse.
— Amanhã é nosso último dia. Acabou. Aceite.
Eu me levantei da cadeira, balançando a cabeça. — Tá, se é o que vocês
acham, vou começar a organizar a partida. Não vim aqui pra cuidar de um
bando de bebês. Achava que vocês eram mais do que isso.
No primeiro passo entre os passageiros sentados e derrotados, virei o rosto
para o porto aonde estávamos atracados, à vila que ainda não conhecíamos.
Eu ainda tinha esperanças, ainda acreditava no meu trabalho, na influência
que eu começava a exercer sobre Elisa. Ela não parecia ter poder algum sobre
a vila, patética como era em sua timidez e nos seus modos ásperos, brutos.
Mas era alguém, a única pessoa que se punha entre nós e o fracasso da
missão.
Conferi os instrumentos com o capitão do nosso barco, repassei os
suprimentos com Rosilda e Bernadete, as nossas empregadas, até que ouvi
um barulho alto de vozes vindo do convés. Citaram meu nome, uma, duas
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vezes, três vezes. Ignorei o som, abrindo as caixas com arroz e outros cereais.
A porta da dispensa se abriu, Oliseu deu as caras.
— É Elisa. Ela veio nos visitar, e está te chamando. Você tem que ir vê-la, é
nossa melhor chance — ele disse, saudando-me com um sorriso infantil por
trás da barba espessa.
— Ótimo. Peça-lhe para me encontrar no meu quarto. — Eu fingi continuar
meu trabalho de contagem ao lado das empregadas, dando tempo para que
Elisa sentisse um pouco da nossa pressão.
Após alguns minutos, subi a escada rumo ao terceiro nível, onde eu dormia.
No pequeno corredor, todas as portas se encontravam fechadas, menos a
minha, entreaberta. Segurei a maçaneta e escancarei a minha porta. Elisa me
olhou com um braço dobrado sob os seios, o outro erguendo um dedo na
boca, seu cabelo preto caído sobre as bochechas, brilhando com o amarelo da
luz baixa de meu quarto.
— Acho que você nunca tinha entrado tão a fundo nesse barco, não é? Que
pena que os passageiros ainda não puderam fazer o mesmo na vila de vocês
— eu disse, fechando a porta atrás de mim.
— É sobre isso que vim falar. Queria ser a primeira a te contar. — Ela tirou
o dedo da boca, juntando um braço no outro, cruzados sobre o peito.
— Sim? Alguma novidade?
— Nós vamos fazer uma festa amanhã! — Ela deu um passo em minha
direção, levantando o rosto para me encarar de frente. — Uma festa pra
vocês, pra todos aqui do barco. Vocês não podem ir embora, não mais,
porque não podem perder a nossa festa.
Eu ri de sua voz doce, aguda a ponto de parecer criança, vendo-a fazer
charme pela primeira vez. — Não podemos mesmo, Elisa. Que bom, fico
muito feliz com o convite, nós vamos adorar. Mas, de todo modo, depois da
festa nós teremos de partir.
— Só se quiserem. É uma festa de boas-vindas, Ícaro, é a nossa forma de
dizer que vocês podem passar um tempo aqui com a gente. Talvez vocês não
encontrem tudo o que desejam na hospedagem, já que vêm de um mundo tão
diferente, mas vamos tratá-los com carinho, eu prometo. O que você acha
disso tudo? — Seus olhos brilharam, suas mãos deslizaram sobre o ventre,
com os dedos entrelaçados, o rosto fixo no meu.
— Eu acho ótimo! Fico muito feliz, muito mesmo — Mostrei os dentes
num grande sorriso, encurtando nossa distância com mais um passo,
saboreando as bochechas coradas de Elisa por saber que ela estava aberta a
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mim.
— Então vocês não vão embora amanhã, não é?
— Não, não vamos, não com uma festa preparada para nós. Sabemos honrar
nossos anfitriões.
Ela balançou a cabeça levemente para cima e para baixo, silenciosa,
ouvindo minhas palavras e querendo mais. Veio me provar que eu não
fracassei, muito pelo contrário. Por minha causa a missão continuava, pelo
meu poder nós ganhamos passe livre na comunidade, e aquela mulher
simplória e estranha, ela não me recusava. Ela me convidava.
— Muito obrigado pelo convite, Elisa — eu disse, e fechei o espaço entre
nós com um abraço repentino, sem dar tempo para que ela pensasse.
Envolvida por mim, ela esticou as mãos largas sobre as minhas costas e
acolheu o meu carinho. Seu cabelo cheirava a manjericão, algo que me deu
pena pelas pessoas daquele lado do mundo, e o algodão de sua blusa esfolava
meus dedos com a aspereza de sua velhice. Mas as carnes de seu corpo me
reconfortavam, me aqueciam. Em breve, muito em breve, aquela mulher seria
minha para eu fazer o que quisesse.

No dia seguinte, dormi até tarde para estar disposto para a festa. Penélope
veio ao meu quarto me acordar, sentando-se na beirada da minha cama,
abaixando a cabeça para não bater no andar de cima do beliche que eu dividia
com Oliseu. Seu perfume adocicado me despertou fome e desejo.
— Dorminhoco. Vim aqui te buscar, pois já estava preocupada. Vem, vem
comer comigo, estou há horas te esperando — ela disse, repuxando meu
lençol, expondo meu peito nu.
— Já vou, já vou. Mas você aqui só me atrasa. — Eu puxei seu braço e a fiz
deitar junto a mim, agarrando-a pelas costas.
— Ai, seu doido, o que você está fazendo? — Ela falou baixo entre risadas,
tombando com o vestido leve sobre o meu colchão. — Pra quem tem me
tratado com tanta frieza ultimamente, você está muito animadinho hoje, hein.
— Hoje é o dia, hoje eu tô excitado. Vamos entrar na cidade, bagunçar
tudo, rir dessa gente toda.
— Vai rir até da sua amada Elisa, é?
— Vou, vou rir sim, vou pegá-la de jeito, você vai ver. — Eu beijei o
ombro de Penélope, apertando-a entre os seios.
Ela se debateu e se soltou da minha pegada, pondo—se de pé com o rosto
transformado. Fez bico, encarando-me como uma cômica expressão de
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frustração. — Então sai logo daí e vai lá pegar aquelazinha. E ai de você se


está pensando que vou ficar parada, viu. Aquele Jones não me escapa.
— Isso, vai lá dar pra ele, vê se ele faz melhor do que eu. — Eu alcei as
mãos em forma de garra e corri atrás dela. Ela riu e correu mais do que eu,
fechando a porta atrás de si. O dia tinha começado bem, e eu mal me
reconhecia.
Durante todo o dia, acompanhamos um vai e vem de gente pela vila, várias
pessoas carregando papeis coloridos e caixas em quadriciclos ou a pé. No
barco, comemos nossa última refeição sobre o convés, e aguardamos o início
da cerimônia. Elisa tinha dito para esperarmos por ela, já que ela nos
conduziria até o pavilhão de festas na hora certa.
Antes que escurecesse, ela surgiu por trás dos galpões do pequeno porto
acompanhada de duas outras pessoas. Uma delas, Glória, vestindo um longo
vestido preto com brilho em torno do pescoço, rebolava sobre sapatos altos e
finos, atiçando a minha imaginação. Jones também vinha com as duas, de
camiseta e chinelos, como se não fizesse caso da ocasião. Elisa, ela veio
como uma flor. Pôs um arranjo floral sobre o cabelo, e se envolveu com uma
túnica de estampa de pétalas, metida em um par de sandálias rasteiras.
— Estão prontos? Todos lhes aguardam para começarmos a festa. Água
Clara os recebe com todo o prazer — Elisa disse ao chegar ao topo da nossa
rampa. Ela tornou a descer, chamando-nos com os dedos, juntando-se a
Glória e Jones.
Eu tomei a frente, oferecendo a mão para que Penélope descesse a rampa
com cuidado, e acenei para que o resto dos passageiros nos seguisse. Assim
que pisamos em terra firme, Glória passou por nós acariciando os ombros de
todos os que a conheciam, e se atracou no braço de Cássio, fazendo-se de
dama, caminhando ao seu lado. Ele sorriu com alegria, feliz por finalmente
pisar fora daquele barco, seus olhos brilhando com a beleza de sua
companheira.
Penélope se aproximou de Jones com o rosto angelical, relaxada num
sorriso preguiçoso, calculando cada passo. Acelerei o passo para me acercar
de Elisa e não deixar que ela fosse sozinha à frente. Ela me olhou sem dizer
uma palavra, atenta ao caminho de calçamento impecável e coberto pelo qual
nos deslocávamos, como se nos desse tempo e silêncio para admirarmos a
vila. Um lugar pobre e simplório, formado por prédios longos e monótonos,
sem carros e sem luxo, mas com muitas árvores e flores, e limpo como nas
melhores cidades da antiga Europa.
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O pavilhão estava decorado com bandeirolas coloridas, pedaços de pano e


de papel pendurados com barbantes por todos os lados das duas paredes que
sustentavam um teto arredondado e colossal. Flores e galhos adornavam as
colunas das faces frontal e traseira do grande prédio, colunas que deixavam o
vento passar de um lado ao outro pelo prédio, como se fôssemos a uma tenda
enorme para celebrar ao ar livre.
Ao passarmos pelas colunas perfumadas com flores e temperos, deparamo-
nos com algumas dezenas de pessoas espalhadas pelo amplo espaço que se
abria diante de nós, pessoas coloridas, dos estilos mais variados. Algumas
usavam roupas de festa como as nossas, vestidos longos e ternos, outras se
mostravam com as roupas simples do dia a dia de trabalho, e outras faziam
combinações e estilos tão diferentes que pareciam não se importar com o
ridículo.
Entramos sob uma salva de palmas, percorrendo o salão enquanto a
multidão se deslocava entre nós, envolvendo-nos num grande círculo. Um
homem de idade avançada e um par de óculos dourados me trouxe uma
trouxinha enrolada em folhas de milho, provavelmente uma pamonha, e ao
meu lado outros nativos ofereciam outras quitutes aos meus companheiros do
barco. Aceitei o presente com certo asco, sem saber onde deixar aquele
presente inconveniente, e segurei minha pamonha até que alguém nos
dissesse o que fazer.
— Bem-vindos a Água Clara! — alguém disse pelo microfone. —
Agradecemos a chance de virem nos conhecer, e estamos aqui para mostrar o
quanto levamos a sério a nossa solidariedade. A festa já pode começar.
Espero que gostem de dançar!
De súbito, o som estridente de um tipo de violino inexistente no nosso lado
soou, acompanhado de tambores e pandeiros, uma combinação absurda,
produzindo uma música feia e desequilibrada. Ainda assim, muitos na
multidão se puseram a pular e a cantar, todos juntos, fazendo coro.
Os nativos vieram até nós e nos tiraram para dançar. Pegaram Alice,
pegaram Oliseu, Elisabete, Thor. Glória puxou Cássio para longe, girando-o
com força, arremessando-o para longe e o mantendo agarrado com seus
braços esguios. Ela quase tropeçou com seus saltos finos, e ao invés de se
acalmar, chutou os sapatos para a parede e se pôs a pular descalça.
Uma moça usando terno masculino me abordou, chamou-me para dançar,
uma mulher de nariz curvo e olhos verdes, pele escura e cabelo arrepiado.
Quis rir do seu ridículo, mas me controlei e abanei a mão para recusar o
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convite com gentileza. Costurei meu espaço entre a agitação do pavilhão,


percebendo mesas postas com comida aonde pessoas menos animadas
observavam as danças.
Parada ao lado de uma das mesas, Elisa conversava com Jones, seu rosto
fechado, vermelho. Ela e ele discordavam de algo, era fácil perceber à
distância. Quando ela travou os olhos em mim, continuei meu passo até ela.
Li seus lábios, vi que disse um não decidido ao seu amigo, encarando-me de
frente, ignorando o mundo ao redor.
Jones se virou a mim e sacudiu a cabeça, deixando-a a sós. Seu corpo negro
robusto abandonou Elisa à minha chegada, e ocupei seu espaço pronto para
satisfazê-la.
— Tudo bem com você? Aconteceu alguma coisa? — eu disse, colocando a
pamonha que me deram sobre a mesa ao nosso lado.
Ela suspirou e começou a abrir o pacote de folhas de milho que eu tinha
acabado de deixar. — O Jones é desconfiado de vocês. Acha que eu fiz
besteira ao dar a ideia das boas-vindas, e quer que eu fique longe enquanto
estiverem aqui.
— E você mandou ele embora?
— Disse que não ficaria sem me divertir hoje. Estou precisando. — Ela
pegou uma faca metálica sobre a mesa e partiu um pedaço da pamonha. Pôs
um pedaço na boca. — Quer? Tem isso no seu lado do mundo?
— Tem sim, já comi uma vez, obrigado. — Esperei que ela me cortasse um
naco e toquei em seus dedos ao pegá-lo. — É bom.
— Eu gosto muito. — Ela abaixou o rosto, buscando o que dizer.
— Agora que estou onde você mora, é hora de me contar mais sobre como
as coisas funcionam por aqui, não acha? — Eu dei um passo em direção a
algumas cadeiras espalhadas perto de um dos paredões do pavilhão. — Quem
é que montou essa festa?
— Todos nós ajudamos um pouquinho. Eu cuidei dos arranjos nas colunas,
não sei se você reparou — Ela me acompanhou no meu caminhar vagaroso.
— Claro que reparei. Estavam ótimos, e combinaram com você.
— É, hoje eu me permiti fazer uma graça, então aproveite. — Ela ajeitou a
coroa de flores brancas sobre os cabelos pretos, oferecendo-me seus olhos de
mel ao falar alto para se fazer ouvida diante da música e das cantorias. —
Geralmente eu nem vou nessas festas. Não sou muito de multidões. Mas
como eu praticamente dei a ideia da festa, não tinha como faltar.
— Sim, por favor, é uma festa feita pra mim. Não teria graça se você não
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estivesse aqui.
— Tomara que minha presença ajude a compensar a falta de outras coisas
então.
— Está tudo perfeito, não sinto falta de nada até agora. — Chegamos às
cadeiras e acenei para que ela se sentasse. Ela o fez sem olhar para meu
gesto, como se minha sugestão não fosse necessária.
— E você vai querer ajudar depois? — Elisa arregalou os olhos num tom de
esperança, uma voz que me confundiu.
— Ajudar em quê?
— Nas coisas da festa. As pessoas sujam o chão, as mesas, você sabe como
é. Temos de limpar, mas Glória e Jones me disseram que vocês jamais fariam
isso, e eu disse que não, que vocês também ajudariam a limpar sim, porque
vocês fazem festas no outro lado, não fazem? E vocês também cuidam da
organização como nós, não é?
— Não é bem assim, talvez você não conheça bem como funciona o nosso
mundo. — Eu senti o coração gelar com a ideia de que meus amigos e eu
tivéssemos de trabalhar em qualquer coisa relacionada àquela festa. — Lá nós
temos pessoas responsáveis por isso, então não nos preocupamos. São pagas
justamente pra fazer esse tipo de trabalho.
— Então o que você faz?
— Eu aproveito. Simples assim. Não é bom? Acho que você gostaria de ver
como é, talvez se identificaria mais com o nosso lado do que com o seu.
— Ainda não entendi. E essas pessoas que limpam, elas aproveitam a festa
também?
Sacudi a cabeça, segurando-me para não rir de sua ignorância, ela que me
fazia perguntas como uma criança diante do desconhecido. — Não, elas são
pagas pra trabalhar, não pra curtir. Elas têm as festas delas, em outros
momentos.
— Então é tudo separado mesmo, né. Tinha medo de que fosse assim.
— É para o bem de todos. Cada um tem o seu espaço.
— Você depois ajuda na festa desses outros? Digo, você paga pra alguém
ajudar a limpar a bagunça que você faz, mas depois essa pessoa te paga
também pra você limpar a festa dela?
Não me segurei e gargalhei ao lado dela, erguendo o braço sobre a cabeça
para envolvê-la em um abraço. — Que figuraça você, hein, Elisa. Pelo visto
aqui vocês não aprendem sobre o nosso mundo na escola.
— É que eu nunca tive interesse. Só quis saber mais quando vocês
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chegaram. A forma como você me olhou, aquilo me fez pensar. Sempre me


disseram que nossos dois mundos não se misturam, mas lá estava você,
buscando contato. Não era possível que vocês fossem tão diferentes assim.
— Eu também acho que não somos. Já não deu pra perceber?
Ela sorriu aliviada. — Então você vai ajudar, não vai? Um evento grande
desses, você sabe, precisa dos cuidados de todos. Daqui a pouco podemos dar
uma volta para recolher as coisas que caíram do chão, e tem que ver se temos
de pegar mais comida das cozinhas, e...
Fechei o rosto, apertei as sobrancelhas. Que diabos ela estava falando? —
Você não prefere curtir a festa? Por que você é tão preocupada com essas
coisas? Deixa os outros cuidarem disso. Ou cuida disso depois. A hora agora
não é pra se preocupar.
— Mas você falou que era bom em administrar as pessoas. Achei que isso
fizesse parte da sua rotina. Não precisa ser agora, é verdade, mas...
— Não, Elisa, eu não perco tempo com isso. Meus trabalhos lidam com
assuntos mais importantes, e não com essas besteiras. Limpar e arrumar é
coisa de empregados.
— Que coisas são essas, mais importantes do que a limpeza? — Ela
também fechou o rosto, afastando-se de mim para me encarar de frente.
Revirei os olhos, irritado com a conversa. — Fluxo de caixa, acordos
comerciais, novos produtos, ações de marketing, gerenciamento de equipes,
investimentos, tanta coisa. Mas acho que vocês não lidam com assuntos
complexos como esses por aqui, não é?
Ela cerrou os olhos, apertando os lábios. — A Marjorie já trabalhou no
desenvolvimento de sistemas de informação nos computadores quânticos de
Juruci, a maior cidade dessa região, e ajudou a instalar a nossa rede de fluxo
de produção, coordenando as capacidades e necessidades de cada comuna da
federação em uma plataforma descentralizada e acessível a todos
simultaneamente. — Ela apontou para uma mulher gordinha de óculos
andando rumo a uma das mesas ao nosso redor. — E ali está ela, trazendo
mais sopa da cozinha, depois de ter ajudado a prepará-la e depois de ter
passado o dia inteiro ajudando a passar pano nesse pavilhão. Sua capacidade
de realizar um trabalho complexo não exclui a sua capacidade de realizar um
trabalho simples.
— Bem, esse é o seu ponto de vista. Já eu acho que não tem graça fazer o
que não se quer. Viver, pra mim, é liberdade, é fazer apenas o que me der na
telha, na hora que eu desejar. Se eu posso, por que não? A vida é curta
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demais pra gastar tempo limpando festa, não acha? — Forcei um sorriso,
segurando-me para não continuar a discussão.
— É curta demais para viver só limpando festas, isso sim, como as pessoas
que você paga pra limpar festas.
Desceu em minha garganta o amargor do nosso embate desastrado, a ponta
do desprezo perfurando a minha pele, acordando-me para a realidade diante
de mim. Elisa, tão bonita, tão desafiadora, ela me fascinou naquela noite na
praça com seu jeito sincero, ela embolou minha vida, me deixou obcecado
por ela por uma noite, recusando Penélope, recusando uma noite de prazer
por conta de uma mulher que me resistia. Mas a triste visão daquele mundo
asqueroso em que ela vivia, com suas regras estúpidas e suas pessoas
embrutecidas pelas dificuldades, aquela visão me repeliu.
— Você quer dançar? — eu disse, respirando fundo para continuar em
minha missão. Eu precisava seduzi-la e sabotar sua vida, mostrar-lhe que o
lado dela era uma aberração que jamais aguentaria o peso da vida de verdade,
o meu peso, a minha vida.
— Agora não. Perdi a vontade — ela disse, e ficamos parados, de coração
amargo.

A música mudava de harmonia numa ondulação orgânica, indo de canção a


canção sem que percebêssemos a transição. Cantores aleatórios
improvisavam rimas e os outros as repetiam, puxando o coro de nativos e
mesmo de alguns visitantes como eu. Aos poucos, os meus companheiros de
missão se juntavam em pares, encontravam ou enturmavam-se com os
nativos escolhidos, dançando ou conversando.
Vagarosamente, no espaço entre os grupos de pessoas, Penélope surgiu
agarrada a Jones, guiando-o num passo acelerado, como se tentasse se mover
ao som de forró. Sua cabeça recostava no peito do grande homem, e ele a
observava do alto, atento aos seus passos.
— Ela conseguiu o impossível. — Elisa riu ao meu lado. — Quem diria que
o Jones iria se permitir uma coisa dessas.
— Penélope é uma moça bonita. Não tem por que ele resistir a ela — eu
disse, descruzando os braços sobre a cadeira.
— Não, o Jones não é assim. Ele quase não se interessa por esse tipo de
coisas. Prefere cuidar dos projetos da comunidade. Ela deve ter feito algo
bem especial com ele pra conseguir essa atenção toda.
— Ou talvez ele esteja disposto a se divertir, e não queira se preocupar com
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a sujeira da festa.
Ela pressionou os lábios e virou o rosto para mim. — Você queria saber
sobre a nossa vida aqui, lembra que você perguntou? Pois bem, estou
contando sobre como vivemos. Desculpa se não é aquilo que você gostaria de
saber, mas essa é quem eu sou. Não gostei de algumas atitudes suas, da sua
visão de mundo, é verdade. Acho que vamos ter de conversar mais para
resolver nossas diferenças.
Apertei o cenho, olhando-a com atenção. Fiquei surpreso mais uma vez
com a sua sinceridade, com a coragem em se abrir para mim sem fazer
drama, disposta a me receber mesmo na decepção. Antes que eu pudesse
encontrar algo para lhe dizer, porém, Jones decretou fim da dança com
Penélope e se despediu dela com um tapinha em seu ombro. Ela me
encontrou na cadeira e completou a distância até nós com passos firmes.
— Adorei a música do seu povo, Elisa — Penélope lhe disse, piscando o
olho malicioso para mim, rindo internamente de sua mentira. — É dançante,
é contagiante, é tudo de bom. Olha que alegria, olha que bonito. Consegui
tirar até o grandalhão ali pra dançar comigo, você viu? Música ruim não teria
esse efeito.
Ela se sentou sobre meu colo, posta diante de Elisa. Mantive minhas mãos
afastadas de seu corpo para não confundir Elisa com a nossa proximidade.
— E vocês dois, já dançaram? Vamos lá, quero ver mais ânimo desses dois
pombinhos. — Penélope apontou para mim e para Elisa com um dedo
indicador frenético. — O Ícaro aqui é uma maravilha, menina, vou te contar.
Vai na onda dele que tudo vai dar certo, apesar de quê... Bem, a música é
diferente do que estamos acostumados lá do outro lado, bem diferente, mas
ele tem um rebolado tão gostoso que você não vai resistir.
Ela se ergueu da minha coxa e nos puxou pelo braço, uma mão agarrada em
cada um de nós. Forçado a me levantar, aproveitei a deixa para insistir em
Elisa, buscando um motivo para retirar o mal-estar de nosso pequeno conflito
e conquistá-la para mim. Peguei em uma de suas mãos e a levei para longe
das cadeiras, onde havia espaço para se movimentar. Penélope se sentou no
meu lugar e abaixou o rosto para rir de mim com a boca escondida pela mão
resplandecente com um anel de brilhantes.
— Quer me seguir? — Elisa perguntou, desatando uma de suas mãos da
minha. — Nossos passos não são nada complicados.
— Eu preferiria fazer do meu jeito, se não se importar. Vocês gostam de
pular e girar bastante, estou percebendo, mas estou há tantos dias esperando
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por um momento como esses, ao seu lado, que gostaria de te ter mais
próxima a mim. — Apertei de novo a mão fugida, e ela se deixou envolver,
rendendo seus dedos ao entrelace dos meus.
— Claro, vou adorar conhecer o seu jeito de dançar. Me explica como é.
— Por enquanto, pensa só nos pés, assim, dois pra cá, dois pra lá, só isso,
dois pra cá, dois pra lá, deixando a cintura mole, isso, deixa a música nos
guiar.
Sua cintura colou na minha, leve e solta, e de mãos juntas nós rodeamos a
clareira entre a multidão.
— Quais são seus planos pra amanhã? — eu disse em seu ouvido.
— Construção e agricultura. Faço parte desses Conselhos, então me ocupo
do que tiver pra fazer.
— Não vai tirar um tempinho pra ficar alguns momentos comigo?
Ela afastou o rosto do meu ombro, encarando-me de frente com um sorriso
gostoso. — Se quiser, podemos passar o dia inteiro juntos. Você pode me
ajudar nas tarefas. Não tem nada que você não consiga fazer, ainda mais com
toda a sua experiência em projetos complexos.
— Você está fazendo graça de mim?
— Um pouquinho — ela disse, e voltou a encostar o rosto no meu. — Mas
é sério. Eu adoraria ter você comigo durante o dia, para que eu possa te
mostrar como vivo por aqui. Assim a gente resolve as diferenças rapidinho.
Se não quiser, fique livre pra andar por aí, e podemos combinar de nos
encontrar em algum momento.
— Eu queria te ter toda pra mim, o dia todo, sem tarefa nenhuma. Só nós
dois, de bobeira, passeando, conversando, o que mais quisermos fazer.
— Se você tivesse aparecido aqui alguns anos no futuro, talvez isso seria
possível. Mas nossa situação não está tão confortável na comunidade
ultimamente, e precisamos de toda a ajuda disponível. Eu preciso ajudar.
— É uma pena.
— Não é. Nós ainda vamos nos ver muitas vezes.
— E hoje à noite? Quais são seus planos?
— Já não estou aqui? Meu plano é a festa. Vou ajudar a arrumar algumas
coisas depois que ela acabar e vou dormir. Por acaso é possível ter outros
planos?
— Claro que é possível. Você pode aproveitar que já está de bobeira, e
andar comigo na vila, me mostrar seu quarto... Sem pressão, sem
preocupação. Pra relaxar, pra curtir a vida. Você precisa disso tanto quanto
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eu.
Ela ficou quieta, respirando em meus braços. Interrompeu suas passadas,
parando a nossa dança.

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7 - Elisa

Havia uma fagulha de paixão dentro de mim que me atiçava em relação ao


Ícaro. A excitação da novidade, talvez, a beleza de um estrangeiro, a minha
necessidade de experimentar um novo ritmo de vida perto de outra pessoa
que não fosse o Jones. Dançar com ele, agarrada ao seu corpo naquela
passada repetitiva mas íntima, aquele momento me esquentou o coração.
Mas era um calor pesado, carregado de frustração e medo. Sua fala me
revelava com clareza que ele não dava importância para os cuidados básicos
com a infraestrutura dos lugares onde vivia. Não sabia limpar, não sabia
construir, só sabia mandar nos outros e dirigir ações. Um calafrio subia pela
espinha cada vez que eu pensava nisso. Será que nós tínhamos feito besteira
ao convidá-los para se hospedarem conosco?
— Ícaro, nós não temos muito em comum. Vamos ter de lidar com essa
realidade. Você concorda? — Eu interrompi a nossa dança, encarando-o com
olhos sérios.
— Em partes. Viemos de lugares muito diferentes, é claro, mas e daí?
Podemos encontrar muito em comum, se investigarmos a fundo — ele disse,
apertando as minhas mãos.
— Temos de passar mais tempo juntos, conviver mais no dia a dia,
construir e compartilhar histórias. Isso leva tempo. Estou vendo que você só
quer fazer o que sente vontade, mas então como você lida com a paciência?
— É, nesse ponto você me pegou. Eu sou um cara muito impaciente. — Ele
pôs uma mão nas minhas costas, apertando-me contra sua cintura.
— Você é um cara mimado.
Ele fechou o rosto e me largou, tirando as mãos de mim com um passo para
atrás. — O que você quer dizer?
— Que você não sabe conviver com os outros. Não está disposto a
conversar, a fazer acordos de benefício mútuo.
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— Você não conhece nada sobre mim. Por acaso não estou aqui
conversando? Desde o momento em que nos encontramos pela primeira vez,
isso é tudo o que fazemos, conversar. Por conta disso eu sou mimado?
— A impressão que eu tenho é a de que você conversa só pra satisfazer uma
vontade sua em relação a mim. Agora há pouco me chamou pro quarto, e não
me ache estúpida, eu sei o que isso quer dizer.
— E qual é o problema? Estou errado em querer conhecer o corpo de uma
mulher como você?
— Hoje eu passei a te ver como uma cara mimado, e isso é algo que me
desanima. Então precisamos de mais tempo, pois eu sei que você ainda vai
me surpreender.
— É porque eu falei que não iria ajudar a limpar a festa, é?
Acenei com a cabeça, concordando com o que ele dizia. Dentro de mim, eu
tinha a consciência de que eu tentava impor a minha visão de mundo sobre
ele, eu admitia que havia pessoas mesmo na nossa vila que não faziam muita
coisa da vida, mas eu cresci com as minhas ideias, eu as amadureci ao lado de
Jones, e me desfazer delas de uma hora para a outra era difícil. Eu precisaria
de tempo para isso, tempo ao lado de Ícaro, para aprender com ele ao mesmo
tempo em que ele aprenderia comigo, os dois num diálogo constante,
transformador, não só para mim como para ele também. Assim teríamos uma
vida em comum, uma vida só nossa.
— E não vou ajudar mesmo — ele disse, fuzilando-me com os olhos
verdes, travando o forte maxilar. Deu um passo para o lado, andou para longe
de mim.
— Aonde você vai? — eu disse, acelerando ao seu lado.
— Aproveitar a festa. Se não me quer por perto, paciência. — Ele fixou o
olhar em Penélope, ao longe, sentada de pernas cruzadas em uma cadeira
próxima às mesas.
— Eu te quero por perto. Nós precisamos nos conhecer, senão vamos ficar
com essa impressão ruim um do outro.
— Você é que tá com impressão errada de mim. Fica me ofendendo, como
se eu fosse aceitar tudo numa boa. Não vim aqui pra mendigar atenção.
Segurei seu braço, impedindo que continuasse. Virei seu peito ao meu rosto,
busquei seu olhar com decisão. — Quem é a visita no nosso caso? Você.
Você e seus amigos vieram de barco nos visitar. Você e eles estão na nossa
vila. Por quê? Isso é o que eu quero descobrir. Disse que era para nos
conhecer melhor. Pois então, é isso o que estou pedindo. Venha me conhecer.
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Viva comigo, experimente o meu dia a dia. Senão o que você quer? Ver,
assistir? Você pode conhecer algo sem experimentá-lo de fato? À distância?
Se eu tivesse ido para o outro lado, e te encontrasse por lá, e quisesse te
conhecer, você me apresentaria o mundo ao seu modo, não é verdade? E eu
experimentaria o que você me propusesse, porque eu é que teria tomado a
iniciativa, e você acharia isso bom. Mas aqui, você tomou a iniciativa de nos
visitar, então honre essa sua estadia. Fica comigo, passe um tempo comigo,
experimente fazer o que eu faço.
Ele me ouviu impassivo, de rosto fixo diante de mim, atento à minha boca.
— Eu achei que isso daqui fosse uma festa, e não um sermão de igreja.
— É um tempo juntos, um conhecendo o outro. — Apertei os músculos do
seu braço, insistindo para que ficasse.
Ele se desfez de meu toque com facilidade, deixando-me para atrás.
Continuou a caminhada rumo ao banco com Penélope, abandonando-me com
minhas palavras. Suspirei, sentindo a cabeça doer com a frustração. A
perturbação não me deixaria viver em paz, eu que detestava casos mal
resolvidos e preferia dar cabo deles na hora, por pior que fosse o seu sabor.
Laura passou ao meu lado, saltitante, acompanhada de um homem barbudo,
outro visitante do barco. Assim que me viu, deu um beijo no rosto do homem
e balançou os dedos para se despedir dele. O homem sorriu aturdido, pondo
as mãos no bolso, sem saber para onde olhar.
— Vi momentos tensos entre você e o Ícaro, hein! — Laura disse,
segurando minha mão.
— Fugiu do meu controle. Eu não sei como lidar com ele, Laura, ele é
muito diferente. Acho que o magoei. — Meu lábio caía, entornado pela
decepção comigo mesma.
— Eita, como é que foi essa conversa, me conta. Não vai dizer que você o
chamou pra trabalhar, vai? — Ela virou o rosto com a boca apertada,
repuxando uma das bochechas, formando uma covinha em sua pele negra e
brilhante.
— Perguntei se ele ajudaria a limpar a festa depois. — Abaixei o rosto,
admitindo a culpa.
— Ah, só podia ser. — Ela jogou a cabeça para atrás, balançando os cachos
escuros sobre os ombros. — Lis, você tem que parar com isso! Eu falei que
esse povo tem carinha de criança. Tem que ser paciente, demonstrar a doçura
do amor a cada palavra. Deixa ele aproveitar a festa com você, não é isso que
ele quer? Vai dançar, vai comer, vai beijar, vai fazer tudo o que quiser! Hoje
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pode.
— Mas é um evento grande, e vai dar trabalho, tem que arrumar...
— Pensa nisso depois! Amanhã. — Ela me puxou numa batida da música e
me fez pular, nós duas rodeando pelos espaços livres enquanto ela terminava
de me falar. — Você precisa mudar, viu? Tô te falando, o Jones colocou o
jeito de pensar dele todinho em você. Ele não é a verdade. Se não quer casar
comigo e não quer mudar seus pensamentos com a minha presença, então
cola lá no Ícaro e vai dançar com ele, enche a barriga dele de comida,
conversa sobre o céu, o mar, o rio, o barco, e depois vai lá pra fora, deita no
colo dele e aproveita, menina. Ele tem muito a te ensinar.
— Eu sei disso, é isso que eu quero, mas...
— Chega de falar! Agora vai lá e tira aquele homem pra dançar do nosso
jeito.
Com uma virada de corpo, ela me arremessou para as cadeiras, onde Ícaro
conversava com Penélope.

Cheguei esvoaçada perto de Ícaro, ajeitando minha coroa de flores que


ameaçava tombar. Penélope sorriu para mim entre os dedos, levantando uma
sobrancelha de olhos vidrados em Ícaro. Ele deu de ombros, observando
minha aproximação.
— Vamos tentar de novo? Dessa vez dançamos do nosso jeito, porque aí
não precisamos conversar — eu disse, estendendo a mão à frente dele.
— Ele é todo seu, Elisa — Penélope empurrou as costas do homem ao seu
lado. — Vai, faz ele girar, pular, eu quero ver a cena.
Ele agarrou minha mão e veio até mim, puxando-me com força.
Desequilibrei, dei um passo à frente para me recuperar, e quando me vi,
estava quase encostada em sua boca.
— Mudou de ideia, é? Agora você quer curtir? — Ele apertou os olhos,
envolvendo minha palma com os dedos de suas duas mãos.
— Eu falei besteira naquela hora. Quero mais uma chance. — Aceitei o
desafio de seu rosto desconfiado, enfrentei-o com coragem.
— Claro, te dou mais uma chance. Me mostra como é que o povo daqui se
diverte.
Levei-o para o meio do salão, perto da banda que ainda tocava seus
tambores e suas cordas, onde uma fila de pessoas girava ao redor da música.
Entramos na correnteza dos passos largos e saltitantes, olhei para atrás e Ícaro
me acompanhava todo rígido, seus sapatos duros arrastando-se sobre o chão.
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— Pula, é mais fácil — eu disse, dando um salto atrás de um casal,


correndo pelo pavilhão. Ele riu e pulou, olhando para os lados, encabulado.
— Quer tirar os sapatos?
— Fica tranquila, eu vou pegar o jeito — ele disse, pulando em sequência,
imitando os que dançavam à nossa frente.
A alegria da corrida, dos saltos, ela é uma alegria que contagia, que liberta.
Tínhamos todo o espaço do mundo à nossa disposição, a maior construção da
vila dedicada justamente para isso, para festas e reuniões, quase sem cadeiras,
quase sem mesas, apenas um enorme cômodo vazio.
Larguei a mão de Ícaro e pulei, pegando-a de volta ao completar um giro.
Ele entendeu o que os outros faziam e me imitou quando pulei de novo,
girando, encontrando minha mão no ar, dando um estalo. A partir daí, ele se
encontrou em meu ritmo, deu rodopios, estaladas, deu saudações e fez as
cortesias, aprendeu tudo na prática, enquanto fazíamos o que a música nos
ordenava. Ele riu quando tropecei em meu pé e quase caí, assim como eu ri
dele quando tentou rodar em torno de mim e se chocou em meu ombro.
— Mil desculpas — ele disse, preocupado e esbaforido.
— Não foi nada, você tá ótimo! — eu apertei suas mãos para que
rodopiássemos com passos duplos, um pé no ar e dois pulinhos, girando e
girando, vendo o mundo passar, a alegria fluindo.
Dançamos cheios de suor, tingidos pelo vermelho do sangue quente, dos
cabelos desgrenhados. Minha coroa caiu no chão e se esfacelou com as
pisadas dos outros pares.
— Ops, lá se foi a minha beleza — eu inclinei o rosto com sobrancelhas
arqueadas.
— Ainda tem flores no seu vestido. Se você também perdê-lo, tem mais
alguma flor escondida por aí?
Eu gargalhei, pulando e girando, extasiada com a mente livre de
preocupações, entregue à música e ao jeito gostoso que Ícaro tinha
descoberto de responder aos meus passos.
Após tanto dançarmos ao modo da casa, ficamos exaustos. Segurando sua
mão, levei-o às colunas das entradas, adornadas com meus enfeites, longe do
agito. Sentei no chão, com as costas apoiadas no pilar, e puxei Ícaro junto a
mim. Recostados ali, de braços atados, abaixei a cabeça sobre seu ombro,
descansando de olho na multidão que ainda se divertia.
— Se você quiser voltar depois... É só me dar um tempinho pra descansar.
— Ofegante, falei com lentidão, de voz rouca.
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— Não, pra mim tá ótimo aqui. É assim que eu quero estar.


Calei-me para aproveitar o momento, a companhia silenciosa de Ícaro, que
tanto me queria e de quem eu tanto divergia. Meu peito se inflava com a falta
de fôlego, acalmando-se conforme o tempo se passava. Deixei que corressem
os minutos, cortando qualquer iniciativa de puxar assunto, qualquer palavra,
porque se eu falasse, eu poderia estragar tudo de novo, comentar sobre o chão
imundo, sobre as panelas vazias. Ícaro me abraçou de lado, e assim fiquei,
curtindo o momento.
Quando a banda também se cansou, outro grupo pegou os instrumentos para
substituí-la, mas lhes faltava um repertório tão animado quanto o dela. Com
novas melodias introspectivas, a mudança serviu como uma pausa para que
várias pessoas parassem de dançar. Muitas delas carregavam pratos e
talheres, panelas e mesas, dirigindo-se para a cozinha, onde cada uma poderia
lavar o que carregava, de modo a dividir o trabalho. Quanto mais pessoas
ajudassem, menos haveria para cada uma fazer.
— Eu acho que vou ajudar a varrer um pouco o chão. Tem muita coisa
jogada. Vamos comigo — eu disse, paralisando de súbito ao me lembrar do
erro cometido antes. — Mas não precisa me ajudar, não foi isso que eu quis
dizer. Vamos comigo pra você ficar mais perto dos seus amigos, só isso.
— Eu entendi, Elisa. Mesmo assim, que pena que temos de levantar agora.
Estava bom ficar aqui com você. — Ele se levantou do chão, batendo as
mãos em suas nádegas, tirando poeira.
— Estava bom mesmo, obrigada pelo carinho. Viu só, eu também sei
aproveitar a vida.
— Ainda aproveita muito pouco.
Deixei-o sem resposta, caminhando rumo a uma portinha em uma parede do
pavilhão, de onde retirei uma vassoura de base larga. Eu queria varrer só a
área entre as mesas, onde ficava a comida, já que estava cheia de restos
jogados no chão e pisoteados. Da área onde ainda dançavam eu cuidaria
depois que a festa acabasse, para não quebrar o clima.
Laura me encontrou, trazendo uma panela da cozinha, e franziu a testa ao
me ver sozinha. — Ué, cadê ele?
— Aqui do... Olha, ele foi embora. — Procurei Ícaro ao meu redor, e não o
encontrei.
— Você não tem jeito mesmo, né. — Ela sacudiu a cabeça, pondo a mão na
cintura.
— Mas nós dançamos até não aguentar mais, Laurinha, precisava ver, foi
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ótimo. É que tá todo mundo ajudando aqui com as coisas, e eu queria


participar também. Achei que ele estivesse aqui comigo ainda.
— Se é o caso, menos mal. Talvez ele tenha ido pegar alguma coisa pra
comer. Tem uma salada de tomates na mesa do outro lado, então é provável
que ele tenha ido lá pegar um pouco, porque é a fruta sagrada.
— É, talvez seja isso. — Minhas bochechas ardiam de vergonha,
arrependida por ter me distraído com a tarefa. Mas nunca eu iria adivinhar
que ele me deixaria sozinha apenas porque eu estava ajudando a manter a
festa limpa.

Foi a primeira vez na vida em que tive de lidar com alguém que fez tanto
caso de uma simples varrida. Tirei apenas umas sujeiras em uma área das
mesas, nada que me cansasse, custando-me menos de dez minutos para reunir
toda a sujeira num canto e recolhê-la com a pá. Nesse tempo, Laura foi e
voltou à cozinha mais uma vez, trazendo uma lasanha de berinjela com um
cheiro maravilhoso.
Sentei-me junto a ela e cortei um pedaço num prato de cerâmica, comendo
enquanto a multidão passava à nossa frente em passos vagarosos, já cansados
de tanto pular. Apenas as crianças insistiam na dança, suas roupas
bagunçadas ou mesmo ausentes, os maiores ajudando os pequenos, rindo da
liberdade de correr o quanto aguentassem.
— Viu Ícaro por aí? — Laura disse, erguendo o prato ao peito para cortar
um pedaço da lasanha.
— Eu queria te perguntar o mesmo. Não apareceu por aqui, mas ainda não
saí pra procurá-lo. — Eu mordi um pedaço de comida e falei de boca cheia.
— Também não o vi no caminho. Tem um pessoal lá fora já, alguns
grupinhos espalhados. Vai que ele saiu pra conhecer um pouco mais da vila.
— É, acho melhor eu deixar pra lá. Ele tem as escolhas dele, e hoje foi um
dia problemático pra nós dois. Não me admira que ele tenha criado desgosto
por mim.
— Você não consegue se segurar, né?
— Eu sou quem eu sou, Laurinha, assim como você. São dois mundos
muito diferentes. Não dá pra ficar bem desde o começo.
— Na minha opinião, dava pra ser diferente. Viu o meu par, por exemplo?
Mastiguei até liberar minha boca, enquanto ela me observava com os olhos
semifechados, numa posição confiante. — O cara barbudo de terno?
— Esse mesmo. Ele se chama Oliseu, do barco, não sei se você chegou a
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conhecê-lo por lá? Pois então, depois de uns giros por aí, ele tá caidinho por
mim.
— Eu vi o beijinho que você deu nele na despedida. O rosto dele estava
mesmo todo bobo. O Ícaro também ficou assim nas primeiras vezes em que
nos vimos, e olha só a nossa situação agora.
— Isso foi porque ao invés de focar nas coisas que te aproximam dele, você
focou naquilo que os afastam. Acha que eu contei ao Oliseu sobre o meu
turno preparando os lanches no café do porto amanhã? Ou sobre o tempo que
vou passar lá no Posto do Lago? Não, mas falei sobre o descanso na rede
depois do almoço, sobre o banho pelada no lago, a caminhada à beira-rio
depois da janta, a noite livre, essas coisas. Quem vem de fora não veio aqui
ver nosso trabalho, Elisa. Isso só vai dar gás para o que eles mais gostam de
fazer lá do outro lado, que é falar mal de nós, ridicularizando nosso modo de
vida pra que seus empregados não queiram se juntar a nós. Temos que
mostrar a eles que a vida aqui é uma delícia. Aliás, eu tenho que te perguntar
justamente isso: a sua vida aqui é uma delícia?
A resposta me veio automaticamente na mente, enquanto eu terminava de
partir mais um pedaço da lasanha, mas uma resposta pré-moldada. Tirei o
foco da vista, olhando fundo para o nada. O cansaço, a preocupação
constante, a sombra de Jones. — O que isso importa? Essa é a vida que eu
tenho. Não interessa como ela seja, pois tenho de aceitá-la como for.
— Que horrível, Elisa! Tá vendo, você precisa mudar. Como é que o Ícaro
vai conhecer o nosso lado mais agradável se você pensa isso? Depois ele vai
voltar para o outro lado com munição total pra nos difamar até o fim dos
tempos.
— Mas esse é o nosso lado mais agradável. Digo, aqui ninguém tem que
passar a vida toda limpando festa, sem poder curtir a festa. Aqui cada um
ajuda um pouquinho, e aí sobra mais tempo pra fazer o que quiser. Se essa é a
delícia de vida, não me interessa muito. Interessa que não é algo que me
aprisione, isso sim. Eu gosto da minha vida aqui.
— Ah, agora sim, entendi melhor. Só que pra fazer ele entender isso aí,
garota, boa sorte. Esse é o desafio que você escolheu?
— Eu não quero desafio. Quero só acolhê-lo bem. Quero que ele me
conheça, quero conhecê-lo.
— Então tá, terminou de comer? Quer mais? — Ela fez a pergunta já com a
mão sob o meu prato vazio, prestes a recolhê-lo. — Vamos lá procurar esse
seu Ícaro. Eu vou te ajudar.
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Entre as cabeças mais altas do que as nossas, entre os corpos suados em


vagarosas caminhadas, identifiquei alguns rostos conhecidos. Glória,
adornada com as joias recebidas dos visitantes do barco, colar de contas, tiara
e anéis, ela escondia a boca sobre a boca de um homem, o par que ela tinha
escolhido para si desde que fomos ao porto na comitiva de boas-vindas.
Cássio a beijava com os olhos fechados, arrastando a mão nas costas de seu
par, agarrado com ela, um passo para lá, outro para cá.
Laura viu a mesma cena que eu admirava, virando-se para mim com as
mãos apertadas no coração, sorrindo pela felicidade de Glória. Nossa amiga
estava entregue aos braços de um homem estrangeiro, tão rapidamente a me
fazer corar. Que grande risco ela corria, que frustrações ainda se colocariam
em seu caminho. Ou seria apenas eu? Eu projetava sobre ela os meus
próprios medos, os meus próprios defeitos? Eu não conseguiria me entregar a
Ícaro daquela forma sem antes conhecê-lo melhor, não, eu não queria me
entregar a alguém que fosse me prender em uma outra vida da qual eu não
quisesse fazer parte, uma vida em que as pessoas não ajudassem nas tarefas.
Ainda buscando Ícaro, Laura e eu vimos Jones numa roda de conversas com
seus companheiros do Conselho de Engenharia, dois casais e suas crianças.
Jones tinha um pequeno no colo e o segurava enquanto ele brincava com uma
menininha no colo da mãe. A música baixa propiciava um ambiente
acolhedor ao bate-papo calmo, enquanto todas as vidas reunidas no salão
rendiam inúmeros assuntos a todos nós ali reunidos.
Eu me sentia perdida e arrependida, querendo ter uma noite como a de meus
amigos, uma noite de convívio harmonioso e pacífico. Ao invés disso, Laura
abriu mão de seu par para me ajudar a por minha vida em ordem. Rodamos
pelo salão sem sinal de Ícaro. Era provável que ele estivesse fora. Caso
contrário, ele estava me evitando, fugindo de mim.

Uma voz grave de um homem afinado cantou palavras conhecidas, "...meu


grande ardor, tudo perde no amor," e assim terminou a última música.
Congelei em meu lugar, olhando para o centro do salão, aonde a banda
tocava. Os instrumentistas se abraçaram, levantaram as mãos para
cumprimentar a todos nós com o polegar, e batemos palmas.
— Tem comida ainda? A fome tá brava aqui — um deles perguntou,
causando gargalhadas entre nós.
— Corre lá que já tão levando — alguém respondeu na plateia, no mesmo
tom bem humorado.
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Alguns segundos de um burburinho animado anteciparam o fim oficial,


antevendo o momento em que Vinícius ou Marjorie pegariam no microfone
para pronunciar palavras finais.
— Pessoal, pessoal, antes de começarmos a guardar as coisas, pra quem se
dispôs a ajudar, é claro, vamos só aguardar um momento pra finalizar, tudo
bem? — Marjorie ocupou o espaço antes reservado à banda, chamando
atenção novamente para o centro do salão. — Gostaria de passar a palavra a
algum representante dos nossos visitantes, qualquer um que tenha interesse
em nos dizer um pouco mais sobre vocês, suas expectativas nessa estadia
aqui com a gente, enfim, o que der na mente. Pra podermos terminar o dia
ouvindo um pouco do seu lado.
Olhei ao redor, em busca dos visitantes. Estavam espalhados, unidos a
integrantes da nossa vila, poucos agrupados entre seus próprios
companheiros. Eles mesmos não souberam decidir, encabulados, virando os
olhos um ao outro, percorrendo toda a sala. Silêncio. De repente, ao lado de
Marjorie, Ícaro pegou o microfone com um sorriso gentil.
— Em nome de todos nós que viemos do outro lado da fronteira, eu gostaria
de agradecer ao carinho do povo de Água Clara. — Ele falou em tom claro,
confiante, com o peito erguido, mão no bolso. — Muitos de vocês devem ter
estranhado os dias que passamos resguardados no nosso barco, mas é que nós
precisávamos de um convite. Viemos aqui numa missão de respeito, acima de
tudo. Sei que teremos momentos de dificuldade — ele disse, e nesse
momento seu olhar me encontrou, fixando os verdes olhos no meu rosto
encabulado e vermelho. — Sei que nossas diferenças vão aparecer. Mas não
queremos atrapalhá-los. Queremos ver como é a vida aqui entre vocês, para
que possamos voltar depois com boas impressões desse mundo tão próximo,
e ao mesmo tempo tão distante. Agradeço, mais uma vez, a acolhida de todos
vocês, e meus companheiros e eu estamos muito felizes por termos essa
chance de passarmos os próximos dias aqui. Hoje tivemos o primeiro
gostinho da solidariedade tão famosa nesse lado do mundo, e estamos
ansiosos para conhecer a dimensão desse sentimento entre vocês.
Laura estremeceu naquela última frase, apertando as sobrancelhas. — Elisa,
toma cuidado com ele.
— O que foi, Laura? — Eu segurei em seu braço para entender o que eu
não havia captado.
— Ele quer nos testar, você não ouviu?
Sim, eu o ouvi, e era justamente por isso que eu tinha de esperar e conhecê-
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lo melhor. Agora Laura também entendia o que me assustava? Ela apertou os


lábios ao meu lado, como se concordasse.
— Muito bem, muito bem, é um prazer tê-los aqui — Marjorie disse,
retomando o microfone das mãos de Ícaro. — Se quiserem continuar no
pavilhão fiquem à vontade. Se quiserem nos ajudar também, voluntários são
sempre bem-vindos. Mas gostaria que alguém pudesse mostrar-lhes o
acampamento, o local que preparamos para vocês dormirem, pra que fiquem
bem à vontade e se arrumem quando quiserem. Laura, cadê Laura? Pode ir lá
com eles?
Laura ergueu a mão e acenou com a cabeça. Foi ao centro do salão, em
companhia de Marjorie, e deu um estalo com as palmas para chamar atenção.
Eu fui com ela, disposta a ajudar no que fosse preciso.
— Peço aos visitantes que se juntem por aqui e sigam com a equipe que
ajudou a organizar o acampamento. Qualquer dúvida, é só perguntar pra eles,
tudo bem? — Marjorie desligou o microfone, sorriu pela última vez e se
virou para o outro lado.
Ícaro foi o primeiro a se acostar a Laura, eu, e dois outros companheiros
que a ajudaram a organizar o acampamento ao longo do dia. Ele chamou os
visitantes que se recusavam a deixar seus pares, coordenou todos para que se
aproximassem de nós. Laura contou os que estavam por perto, viu que havia
vinte e sete dos estrangeiros, e nos guiou para fora do pavilhão.
A noite fresca renderia uma ótima noite de sono, perfumada com o cheiro
da grama aparada e da comida farta, acariciada com a folhagem das árvores
que se sacudiam sob um vento suave. Montamos cinco tendas largas na Praça
da Lua, uma praça desprovida de árvores, destinada ao período noturno,
nosso espaço de emergência para acampamentos e eventos especiais. Ao lado
da praça, alamedas cobertas se ligavam aos principais ponto da vila, o lugar
mais estratégico de todos.
Abrimos uma das tendas. Sete colchões grossos e rígidos se espalhavam
pelo chão atapetado. Cada um deles estava colocado em uma espécie de baia,
e cada baia daquelas era um cubículo de madeira com ventilador de teto
embutido e ganchos na parede. A pessoa poderia fechar a porta e dormir na
privacidade de um espaço fechado, iluminada por uma lâmpada amarelada
também embutida na estrutura do cubículo.
Nós chamávamos aquelas baias de módulos de acampamento, quase quartos
portáteis, um dos grandes orgulhos da nossa equipe de design. A tenda tinha
uma área aberta com almofadas e cadeiras na entrada, antes do corredor
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formado pelos quartos.


— Como podem ver, ficarão bem instalados. Podem se dividir entre as
tendas como quiserem. Gostaram do acampamento? — Laura disse, pondo as
mãos na cintura, virada diante de todos nós, orgulhosa da decoração.
Os visitantes se entreolharam. Ícaro abriu um sorriso malicioso ao meu
lado. Ele encarou Penélope e piscou os olhos para que ela falasse.
— Sinto muito, mas sem condições de ficarmos aqui. Saímos de um lugar
apertado para dormirmos em outro pior ainda? Não, não dá — Penélope
disse, cruzando os braços, passando os olhos entre Laura, eu e nossos dois
outros companheiros com um sorriso enigmático.
— Eita, parecem crianças mesmo, hein — Laura disse, balançando a
cabeça. — O que tá faltando?
— Vocês não têm quartos de verdade? Preferimos quartos — Ícaro disse ao
lado de Penélope.
— Onde estão os hotéis desse lugar? Não há nem mesmo uma pensão por
aqui? — Penélope disse.
— Meus queridos — Laura disse, olhando baixo com um riso abafado,
incrédula. — Vocês não tão em casa não, viu? O mundo de vocês tem casa
sobrando e gente sem ter onde dormir, então não reclamem, senão...
— Podem dormir no meu quarto — eu disse, interrompendo a irritação de
Laura. Minha noite de frustrações com Ícaro me pedia um modo de consertar
as coisas, ao menos uma vez fazer algo para agradá-los. — Depois de dias
dormindo num lugar apertado, vocês precisam de espaço, eu entendo. Eu
cedo o meu quarto por uma noite, e durmo aqui no acampamento. Amanhã,
com vocês mais descansados, nós trocamos, tudo bem?
— É, tudo bem, eu cedo o meu quarto também — Laura disse, repuxando a
bochecha. — Se o caso é esse, vamos lá, acho que vamos conseguir quartos
pra todo o mundo.
— Ai, que bom, vai ser muito melhor assim. — Penélope deu palminhas
com os dedos magros na altura do pescoço.
— Vocês são mesmo muito solidárias, não tenho mais dúvidas. — Ícaro me
encarou com as mãos abertas, erguidas ao lado do peito.
— Aham, tá bom, somos mesmo, agora vamos lá ver os quartos de vocês.
— Laura abriu espaço entre eles, impaciente, buscando sair da tenda,
guiando-os de volta ao pavilhão sem fazer questão de tê-los atrás de si,
seguindo-a.
Meu coração apertou ao ver Laura, a pessoa que se propunha a ser mais
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forte do que eu, que se dispunha a me ajudar a ser boa com Ícaro, perder a
doçura de repente. Ela passou o dia ajudando a preparar o acampamento,
verificando as instalações elétricas, decorando os espaços de lazer, limpando
cada módulo, e não quiseram nem saber da atenção que ela dedicou a eles.
Ícaro pôs a mão em meu ombro, caminhando ao meu lado, atrás de Laura.
Ele matinha o sorriso no rosto, mesmo em silêncio, e sua mão pesada parecia
me empurrar ao chão. Eu me senti só, tendo de enfrentar um gigante sem o
apoio de amigos, cedendo à sua vontade por pura fraqueza e necessidade de
atenção. Perdi o quarto, e o que mais perderia enquanto ele estivesse ali?

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8 - Ícaro

A vila como um todo tinha os ares de um lugar provisório. Poucas eram as


casas pequenas, quase todas sem quintais. Espalhavam-se pelo calçamento ou
pela terra, sem muros, sem grades, sem barreiras. Prédios compridos de um
ou dois andares se esticavam por várias dezenas de metros entre jardins,
criando muralhas onde moravam as pessoas.
Elisa me levava por um caminho rodeado por bromélias, quando Penélope
se separou de mim, levada por um nativo que ofereceu seu quarto para ela.
Fiquei a sós com minha companhia, entrando num dos grandes dormitórios
ao lado de um jardim. Ao passar pela larga porta dupla da recepção, pisei
sobre um carpete sintético e limpei os sapatos como Elisa própria o fez à
minha frente. Cadeiras e pequenas mesas estavam dispostas pelo recinto, com
duas cristaleiras recostadas na parede com pães e lanches.
Um longo corredor se abria em incontáveis portas, como o de um hotel.
— Acho que no seu lado do mundo os quartos são organizados de outra
forma, não? — Elisa disse, sua voz contida, intimidada por estar sozinha
comigo. — Você me parece surpreso.
— É aqui que você dorme? — De fato eu estava surpreso, mantendo-me
calmo para não assustá-la.
— No momento, sim. De vez em quando eu troco de lugar com alguém, ou
mudo só para variar mesmo. Já tive períodos em que escolhi dormir longe
daqui, perto de um lago.
— Então esse não é o seu quarto?
— Bem, você vai conhecer o lugar onde eu durmo hoje. Não costumamos
chamar as coisas por aqui de minhas ou suas. São simplesmente coisas que
podemos usar.
Meu estômago se embrulhou com a pobreza escancarada à minha frente.
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Elisa representava o estrago que aquele mundo fazia às suas pessoas, um


lugar onde se negava a individualidade, onde se impedia a construção de uma
identidade a partir de posses.
— Qualquer um pode usar? Até eu? Agora entendo porque foi tão fácil
conseguir o seu quarto. Achei que eu tivesse conseguido te conquistar. — Pus
as mãos atrás de mim, sorrindo para ela.
— Mas você conquistou minha atenção, é claro que sim. Senão eu não teria
oferecido o meu espaço tão facilmente. — Ela virou o rosto enquanto
andávamos pelo corredor, oferecendo-me olhos carinhosos.
— Seu espaço? Você disse que não tem um quarto seu.
— Preciso de um lugar pra dormir, um bom lugar. Esse é o meu espaço.
Seja aqui nesse prédio, ou em outro, não importa, é um lugar onde eu posso
ficar sozinha, quieta. Todos temos isso, porque é importante.
Ela parou frente a uma porta, e empurrou a maçaneta sem pestanejar. Estava
destrancada, e seu interior me pareceu a cela de um monge. Uma cama de
casal na parede, uma penteadeira com espelho pequeno, um armário, uma
cadeira e uma mesa, e uma pia. Uma janela na parede oposta à porta dava
vista para o jardim ao lado do prédio.
Elisa fechou a cortina, acendeu a luz e apertou os lábios com a mão
esticada, apresentando-me ao quarto.
— Não é muito diferente do acampamento, como você vê — ela disse,
fechando a porta atrás de mim.
— Verdade. Eu esperava mais. — Assim falei num misto de sinceridade e
maldade, enjoado com a pobreza do lugar, e disposto a deixar clara a
inferioridade do mundo dela em relação ao meu.
— Se não quiser, dorme no barco. Ninguém te obrigou a nada. — Ela
travou os olhos nos meus, destituída de sua gentileza por um momento, para
marcar terreno. Sorri para ela, cedendo ao jogo, acenando para que ela
continuasse. — A cama é boa, está limpinha. Tem mais cobertas no armário,
se precisar. Os banheiros ficam ali fora, no corredor.
— Banheiros coletivos? — Apertei o cenho, legitimamente enojado.
— Sim. É mais fácil de limpar assim. Algum problema?
Respirei fundo, virei o rosto, dei passos até a cama. Sentei-me sobre o
colchão macio, senti o cheiro de quarto velho, de móveis desgastados.
Espaço, pelo menos um espaço só meu, muito maior do que o cômodo
apertado do barco, sem o balanço da flutuação.
— Obrigado, Elisa. Eu vou ficar bem aqui. Não é pra sempre, no final das
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contas, não é?
— Não, não é pra sempre, a não ser que você queira. — Ela se juntou a
mim sobre a cama, ajustando a saia de seu vestido florido. — Você vai
dormir bem aqui, e amanhã nós vemos se você quer outro lugar. O
acampamento vai estar lá ainda. Mas no momento, tenta focar nas coisas
boas. Aliás, isso vale pra nós dois. Vamos focar nas coisas fáceis.
— Para nós dois? Quer dizer que você também tem estado incomodada?
— Sim, você sabe do que estou falando. Aquele papo lá na festa, sobre
trabalhar, ajudar o tempo todo... Essa sou eu. Às vezes penso em mudar,
mas... É difícil. Mudar para quê?
— Pra viver bem.
— Eu sei, mas mudar em que direção, em que sentido? Eu não sou muito
boa em ter novas ideias, sabe. Sou muito prática; eu gosto de pegar pra fazer
e resolver a situação. Então acabo seguindo o caminho dos outros. O Jones,
você sabe quem ele é... Pois então, eu tenho vivido feito ele, como uma
cachorrinha. Idiota, eu sei, só que eu acabei tomando gosto pela coisa. O
estilo de vida dele se encaixa com minha forma de pensar. Só que eu sinto
que tenho perdido oportunidades.
— Se você sente, então é só se afastar dele. Tem outros caras por aqui, não
tem? Ou uma amiga, não sei.
— Já tentei, mas não adianta. No fundo, é bom para a vila ter gente como
Jones e eu, e eles acabam me incentivando, ou simplesmente aceitam o meu
jeito de ser. Mas com alguém de outro lugar, é diferente.
— Tipo eu?
— É, tipo você. Entende por que eu quero ficar perto de você, mesmo
fazendo questão de manter distância? Porque eu sou assim, bitolada, e ao
mesmo tempo não gostaria de ser. Não quero trabalhar o tempo todo e perder
os prazeres da vida, como o Jones, mas também não quero só querer os
prazeres da vida e não trabalhar, como você.
— Ei, eu trabalho pesado, Elisa, não se iluda. Lido com assuntos que você
não conseguiria nem imaginar.
— O tipo de trabalho que você faz é inútil pro nosso mundo.
Apertei o pulso, enraivecido com sua afirmação descuidada. — Tudo bem.
Pelo jeito que você fala, você é uma mulher que precisa de um homem pra te
colocar no rumo.
— Parece mesmo, né. Só que não é, ou pelo menos eu não gostaria que
fosse assim. Eu não te quero como você é agora. Você vem de outro lugar,
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onde as pessoas passam a vida limpando festas sem participar delas, você
vem de território inimigo. Eu quero que você viva aqui conosco e aprenda um
pouco do nosso jeito. Eu gostaria que você mudasse um pouco, para que eu
possa mudar com você também.
— Isso me soa um pouco prepotente, não acha? Quem é você para querer
que eu mude assim, de uma hora para a outra?
— Eu sou uma mulher para quem você tem dedicado sua atenção nos
últimos dias. Uma mulher que precisa de sua ajuda, tanto quanto você precisa
da dela.
Que conversa de louco. Eu, que achava ter feito a escolha mais segura ao
fixar os olhos em Elisa, uma moça recatada e simplória, comecei a desconfiar
de sua sanidade. Ela era daquele tipo de obsessivas, daquelas que grudavam
nos amantes feito umas maníacas?
— Bem, vamos ver — eu disse, olhando para a cabeceira da cama atrás de
mim. — Acho melhor irmos dormir. Quer dormir comigo? Afinal, o quarto é
seu, e tem espaço na cama. — E mesmo com sua aparente loucura, eu tinha
uma missão a cumprir, eu tinha de envolvê-la em uma rede de falsidade para
abusar de sua hospitalidade até o ponto de quebrar todas as suas crenças
naquilo tudo. Seus olhos de mel, sua boca larga, a visão de seu rosto me
salvavam do amargor de sua fala esquisita.
— Não, Ícaro. Durma bem, em paz. Amanhã eu venho aqui para acordá-lo e
mostrar como funciona o café da manhã, tudo bem? — Ela se levantou com
calma, apoiando a mão em meu ombro.
Segurei seus dedos, deslizando-os em sua palma conforme ela partia. Que
mulher esquisita, que mulher! Joguei meu corpo sobre a cama, de sapatos e
tudo, e me pus a rir. Sem que percebesse, caí no sono.

Acordei de madrugada com calor, sentindo beliscões na cintura e no peito.


Minha roupa de festa marcava a minha pele, e os sapatos sujavam a cama.
Tirei a roupa e fiquei só de cueca, cobrindo apenas metade do corpo com o
lençol. No silêncio do quarto à noite, a pia solitária na quina entre as paredes
me assombrou. Eu dormia num lugar bizarro.
Apaguei. De repente, algo se mexia em meu braço, e quando abri os olhos,
tudo estava claro. Tão claro que tive de fechá-los e por a mão à frente para
me proteger. Aquilo que se mexia sobre minha pele parou no lugar,
envolvendo-me com o calor de uma pele macia.
— Ícaro... Ícaro... Hora de levantar. Senão você vai perder a refeição, e
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depois vai ter que preparar algo pra você comer. Levanta... As pessoas estão
indo pra lá — Elisa disse, falando baixinho ao meu ouvido.
— Lá pra onde? — Eu me revirei sob o lençol, escondendo o rosto no
travesseiro.
— Pro refeitório. É hora do café da manhã.
— Eu como depois...
— Você sabe cozinhar?
— Não tem cozinheiro nesse lugar?
— Temos pessoas que cozinham, e que guardam tudo depois de certo
horário. Depois do horário, você é que tem que preparar o que achar melhor.
É isso o que você quer?
— Não... Não gosto de cozinhar. — Rendido à fala doce de Elisa, eu me
virei para ela, abaixando a coberta para me espreguiçar. — Você pode
cozinhar pra mim?
Ela abaixou os olhos, como se admirasse meu peito nu diante de si, e
lambeu os lábios. — Prefiro comer a refeição que prepararam. É gostoso,
vamos, você tem que experimentar. E é mais prático do que preparar algo só
pra uma pessoa.
Eu pisquei para ela, lentamente, com o cotovelo se dobrando sobre a minha
testa, o volume do meu bíceps roçando em minha bochecha. Preguiça,
preguiça boa, e uma mulher doida me encarando com o cabelo preso, pele
branca brilhando com a claridade do sol, envolta por uma camiseta regata
rosada. Queria abraçá-la e arrastá-la para a cama comigo, fazer com que ela
se deitasse e ali ficasse, até que eu me cansasse de dormir.
— Eu saio se você me der um beijo — eu disse, abrindo um largo sorriso,
muito maior do que meus olhos sonolentos.
Ela riu, balançando a cabeça. — Nada disso, Ícaro. Você já é grandinho,
vamos lá, sai dessa cama. Além do mais, você tá com bafo.
— Não precisa ser na boca, eu não falei nada sobre ser na boca. Você está
com as ideias erradas, viu. Pode ser em qualquer lugar. Um beijinho.
Ela apertou a bochecha, retorcendo os lábios. Abaixou-se sobre o meu
rosto, sombreando meus olhos. Fechei-os à espera de sua escolha, e ela
estalou a boca sobre a minha testa, num beijo seco e macio.
— Pronto, agora você levanta? — Suas orelhas se avermelharam, as
bochechas coraram.
— Agora eu levanto.
Desembaralhei-me do lençol, procurando minha roupa no chão. De cueca,
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recebi os raios de sol com minhas pernas expostas, abaixando-me para pegar
as calças. Olhei para atrás e Elisa me observava, de pé, admirando-me de
cima em baixo. Virei-me de frente, sorridente, curioso para conferir sua
reação ao me ver daquela forma. Ela cruzou os braços, mantendo o rosto
relaxado, continuando a sua análise do meu corpo.
— Vai ficar aqui me vendo vestir a roupa? Achei que quisesse manter
distância — eu disse, abrindo a aba da cintura da calça.
— Estou mantendo distância. Quer que eu saia?
— Nada, pode ficar. É bom que você já vai se acostumando.
Abotoei a calça e vesti minha camisa branca, deixando o blazer jogado
sobre a cama. Calcei os sapatos e lavei o rosto na pia do canto, enxugando-
me com uma tolha que repousava sobre a penteadeira. Penteei o cabelo com
os dedos, sem muito sucesso. Elisa abriu uma das gavetas sob o espelho,
retirou um pente, e me ajudou a jogar o cabelo para atrás, conferindo o
resultado junto a mim.
— Bom assim? — ela disse.
— Tá ótimo — eu disse, erguendo-me da minha posição agachada para que
saíssemos do quarto.
Fora do dormitório, seguimos um caminho perfumado pelo sabor de queijo,
com flores e árvores servindo apenas de distração para as imagens de comida
que começavam a se formar em minha mente. Atravessamos outro dormitório
e me deparei com um prédio cilíndrico em meio às árvores, com largas
varandas circundando toda a sua circunferência, onde mesas e cadeiras se
dispunham sobre um piso de madeira.
Muitos comiam pratos cheios, verdadeiras refeições, caldos e
macarronadas. Outros se satisfaziam com pães, tapioca e biscoitos, frutas e
cereais. Duplas e trios se sentavam debaixo das árvores e conversavam sem
pressa, deitados em rede ou sobre a grama.
Dentro do refeitório cilíndrico, uma mesa de buffet nos aguardava. Vi
Penélope e Oliseu sentados na varanda com Jones Laura, e acenei para eles
assim como Elisa acenou. Peguei um prato e me servi com as mesmas
escolhas de Elisa, indisposto a fazer caso de uma comida que eu não
conhecia. Enquanto eu preparava minha refeição, vi um casal se levantar de
uma mesa com os pratos e talheres, levá-los para uma área com pias em uma
das paredes, e lavarem tudo o que usaram. Pegaram um pano e limparam os
farelos da mesa que utilizaram. Seriam eles os garçons? Não, naquela vila,
era comum que todos se matassem de trabalhar.
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— Consegui tirar esse aqui da cama no horário — Elisa disse ao chegarmos


na mesa de Penélope e Oliseu.
— Bom-dia, e boa refeição — Laura disse, erguendo uma fatia de tapioca
em minha direção. — Tem molho de tomate na travessa do final, você viu?
— Eu vi sim, obrigado — eu disse, sentando-me ao lado de Elisa.
— E aí, dormiram bem? — Elisa encarou Penélope e Oliseu com o olhar
benevolente de uma anfitriã insegura.
— Não foi o melhor sono da minha vida, mas, enfim... Melhor do que no
barco, devo admitir — Penélope disse, dando um tapinha no braço negro de
Jones para que ele lhe passasse um biscoito de seu prato.
— Foi uma boa experiência. — Oliseu partiu um pedaço de pão com os
dedos. — Só não gostei de ter de ir ao banheiro no corredor durante a noite.
Eu acordo muito de madrugada, esse é um problema que eu tenho,
infelizmente.
— Poxa, por que não me falou antes? — Laura apertou o braço de Oliseu,
os olhos escuros esbugalhados. — Eu vou colocar um penico lá no quarto,
não se preocupe, você vai poder fazer seu xixizinho até deitado, se quiser.
Quer coisa melhor do que isso? — Seu sorriso radiante e inocente contagiou
Oliseu, rendendo-o ao riso alegre.
Jones se manteve calado enquanto conversávamos, fixando a atenção em
Elisa. Respondia aos caprichos de Penélope como um robô, cedendo às suas
vontades sem fazer caso. Ela, com seu viso aceso, abusava com maestria da
paciência do pobre rapaz, testando-o a cada pedido. De alguma forma, ela
tinha conseguido cativá-lo.

Eu não fui o último a acordar naquele dia. Depois de ter comido uma tigela
de mamão em cubos, eu vi com felicidade a chegada de Cássio ao jardim do
refeitório. Sua presença me alegrou de tal maneira porque ele estava
acompanhado por Glória, de braço entrelaçado ao dela, ele também só de
camisa, ela despojada de seu vestido de festa, pela primeira vez desde que a
conheci.
— Hm, lá vem o casalzinho — Penélope disse, retorcendo um sorriso
malicioso, falando baixo entre nós na mesa. — Esses daí não se largam desde
ontem.
— O amor é um espetáculo, né? — Laura limpou os farelos em seu pratinho
e os juntou com os dedos, pondo-os à boca. — O que a Glória mais queria era
encontrar alguém do lado de vocês, acreditam?
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— Jura? — Penélope pôs a mão à frente da boca, fingindo surpresa.


— É, ela adora os romances aguados do tipo que vocês vivem fazendo no
outro lado. Deve achar que está vivendo uma história como aquelas.
— O Cássio é um bom rapaz. Vai tratá-la bem — eu disse, balançando a
cabeça em sinal de apoio.
O casal nos cumprimentou à distância e se serviu na mesa de buffet dentro
do refeitório. Fixamos os olhos neles, querendo assunto para a mesa que
reunia pessoas tão diferentes. Glória explicava cada opção à sua frente para
Cássio, e ele a ouvia com atenção. Ela colocou pedaços de bolo para ele,
frutas, cereais, e depois ela própria se serviu. Eu me levantei para pegar mais
cadeiras para a nossa mesa, de modo que eles encontrassem espaço para se
sentarem conosco ao chegarem.
— A noite foi boa, Glória? — Laura disse, apoiando o queixo sobre as
mãos unidas, cotovelos colados na mesa.
— Ô, maravilhosa! — Glória olhou para Cássio com um sorriso largo,
encantador. Seus longos cabelos pretos escorriam sobre os ombros, cobrindo
parte de um decote discreto, de uma blusa amarelada e rendada. — Apesar de
que nós quase não dormimos, não é?
— É... — Cássio murmurou, olhando baixo, evitando nossos olhares.
— Foi bom pra você também, Cássio? — Eu o cutuquei, rindo
maliciosamente.
— Err...
— Claro que foi, você não parava de me dizer como foi bom, não precisa
ter medo. O pessoal aqui não morde. Foi perfeito estar com você. — Glória
apertou os dedos na coxa de Cássio, encarando seu rosto até que ele tomasse
coragem de subir o olhar.
Jones cruzou os braços, já sem nada para comer. Esperou a novidade entre
Glória e Cássio se ajeitar, e virou os olhos para Penélope, eu, e Oliseu.
Travou a atenção sobre mim, admirando fixamente a minha mastigação. Ele
deveria ter a minha idade, por volta dos 30, mas sua testa era mais marcada
do que a minha, mapeada com os relevos da preocupação.
— Vocês aí, do outro lado. O que vocês pretendem fazer durante o dia? —
ele perguntou, virado para mim, mas se dirigindo a todos.
— O que pretendemos? — Eu olhei para Elisa, atrás de uma chave para
decifrar o homem. Ela ergueu as sobrancelhas, tão surpresa quanto eu. — Ué,
o que tem pra fazer aqui? O que você sugere? — Optei pelo caminho da
conciliação, disposto a quebrar o gelo do mais desconfiado.
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— Muita coisa pra trabalhar. Você gosta de fazer o quê? Tem atividade pra
todo mundo. — Jones falou com voz gentil, adocicada, convidativa.
Balançou a cabeça para a frente, convidando-nos com um rosto tranquilo. Ele
se voltou a mim, encarou-me a fundo. — Você tem cara de quem gosta de
pegar sol e de comer. Tem trabalho bom nos Postos Agrícolas.
Penélope riu, debochada, ao lado de Jones, cobrindo a boca com a mão. —
E eu, eu tenho cara de quê?
— Você tem cara de quem gosta de roupa e beleza. A Oficina Têxtil tá
fechada por falta de demanda no momento, mas o grupo de teatro sempre
gosta de gente nova.
— Teatro conta como trabalho?
— Não se vive sem arte.
A resposta surpreendeu mesmo a mim. Desde que cheguei, devido ao
mundo que Elisa me apresentava, fui levado a ver aquele povo como um
pessoal embrutecido pelas dificuldades da vida, sem tempo para a
contemplação, para as frivolidades do lazer.
— Olha, pode parar com essa história, Jones! — Glória disse,
interrompendo-o. — Eles não são como nós, então não os obrigue a agir
desse nosso jeito tosco. São pessoas finas, dedicadas a outros tipos de
atividade, certo? O mundo deles separa as pessoas de outra forma.
— Ele não os está obrigando a nada — Elisa disse, tomando as dores de
Jones com um simples olhar. — Só está preocupado com o bem-estar dos
visitantes. O que vão ficar fazendo durante o dia todo? Não tem muita coisa
pra ver aqui. Então se quiserem nos ajudar...
— Eles vão passear, isso sim. Eu vou passear com eles, eu os levo para
conhecer tudo, pode ficar tranquila — Glória disse. — Se quiserem, podemos
assistir filmes, cozinhar, conversar, jogar alguma coisa, tomar banho de rio,
de lagoa, enfim, temos muito o que fazer. — Ela me encarou a fundo,
dirigindo-me um dedo em riste. — Vocês não precisam fazer nada do que
esses dois pedirem, viu? São nossos convidados, não nossos colegas de
trabalho.
— Mas uma hora eles vão se cansar, Glória, eles vão ficar entediados. —
Elisa insistiu, raspando o miolo do pão no pratinho molhado de geleia.
— Ei, não era você que queria mudar? — eu disse, rindo de Elisa. — Então
vem passear com a gente. Eu vou com Glória, e vai ser melhor se você vier
também.
— De jeito nenhum eu vou me meter nos trabalhos de vocês. Prefiro ficar
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entediada do que por as mãos em qualquer trabalho desse lugar — Penélope


disse.
— Viu, nós vamos passear. Ótimo, assim esse se torna o meu trabalho
também, não é? — Glória disse, buscando a atenção de Elisa e Jones.
— Por mim, vai lá, leva eles, junta um grupo, bota todo mundo pra nadar
pelado no rio, isso aí, e me chama pra ver — Laura disse, piscando para
Oliseu com uma cutucada de cotovelo. — Deixa eles bem cansados pra que
de noite eles queiram dormir no acampamento que eu montei com tanto
carinho pra eles.
— Então vamos passear? — Glória levantou a palma sobre a mesa, na
direção de Cássio, como se esperasse que tocássemos em sua mão.
Cássio bateu a palma na palma dela, no que ela redirecionou o braço ao
meu lugar. Estalei os dedos sobre ela também, rindo internamente de seu
ridículo, assim como depois o fizeram também Oliseu e Penélope. Glória
comeu com pressa e se levantou da mesa.
— Vamos chamar o resto dos visitantes. Tenho um lugar ótimo para lhes
mostrar!

Se eu ficasse com Elisa, eu seria arrastado para a sua rotina de trabalhos.


Ela não cederia à minha pressão mesmo sozinha, e ao lado de Jones ela ficava
impenetrável. Os dois saíram da mesa juntos, despediram-se de nós e foram
cuidar dos afazeres da vila. Não fiz caso da partida, de certa forma aliviado
de ter escapado de um dia de conflitos ao lado dela.
Glória percorreu os jardins do refeitório reunindo os nossos companheiros
do barco. Parou em um computador na entrada de um dos dormitórios, e
enviou uma mensagem para um sistema que não fazia sentido para mim.
— Esse daqui é o Fórum Central. Coloquei uma mensagem prioritária aqui
falando do nosso passeio. Assim, se algum morador vir um visitante como
vocês perdido por aí, ele pode enviá-lo até onde nós estaremos — ela disse,
sentada sobre a cadeira acolchoada, mais baixa do que todos nós, os
visitantes de pé.
— E aonde nós estaremos? — eu disse.
— Vocês gostam de tomar banho de rio? Temos uma casa num dos
afluentes do rio de Água Clara, acho que vocês vão gostar. Estou vendo aqui
no sistema que está vazia hoje, mas a Juliana e o Otávio estão lá ajudando a
cuidar das coisas. Vou encomendar um almoço para nós por lá, tudo bem?
Assentimos à sugestão dela, ouvindo-a sem entender muito bem o que ela
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sugeria. Uma casa no rio? Com empregados? Marmitas de almoço? Tudo


resolvido por computador, sem pagamento, sem agendamento? Eu tinha a
sensação de entrar numa furada, arrastado para o redemoinho de um mundo
esquisito, regido por outras regras, e a todo momento eu tinha de pensar em
como fazer para sobrecarregá-lo, para abusar dele.
Para nosso horror, Glória sugeriu pegarmos um ônibus até a casa do rio.
Solicitou um ônibus pelo sistema, e agora apenas esperava que alguém
disposto a nos dirigir até lá pegasse um ônibus e o estacionasse em frente ao
pavilhão central. Pela primeira vez, vi um veículo grande utilizando uma das
ruas da vila.
— Podemos ir de bicicleta também, se preferirem — Glória disse,
reparando em nossas expressões desgostosas. — Demora bem mais e cansa,
mas é um passeio bonito. Podemos parar em...
— Não, vamos de ônibus mesmo, vai ser melhor. Mas vocês não têm carros
por aqui? Nenhum? — eu disse, antecipando-me ao resto de meus
companheiros.
— Alguns, só pra emergências. Alguns helicópteros e quadricópteros ficam
num galpão mais afastado, pra uso compartilhado com outras vilas da nossa
região.
— Gostei da ideia do helicóptero — Penélope disse.
— Bem, eu não gosto muito. Tenho medo. Prefiro ir de ônibus. — Glória se
fechou num rosto preocupado, agarrando-se a Cássio.
E assim fomos. O motorista do ônibus nos saudou com um riso jovial,
fazendo piada de nossa estadia. — Vamos conhecer o que seus antigos
parentes foram capazes de fazer, hein? — ele disse, batendo palmas para nos
encorajar a subir.
A estrada margeava o rio caudaloso pelo qual chegamos, subindo a
correnteza para além da fronteira com o nosso lado. Estrada asfaltada, sem
buracos, mais por falta de uso do que por bons cuidados. Seguimos sozinhos,
sem nos depararmos com outro ônibus, carro ou caminhão. Em um
determinado momento, entramos numa estrada de terra, numa trilha pelo
meio da mata. O céu escureceu, a temperatura abaixou. O ônibus sacudia, nos
fazia lembrar dos piores momentos no barco.
A casa no rio era um casarão à nossa moda, uma verdadeira mansão como
se via nos melhores bairros das nossas cidades. Dois andares, sala no térreo
com varanda vazada por vidros e pisos de madeira, transparências e blocos de
concreto brancos, impecáveis. Arquitetura contemporânea da melhor
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qualidade, num vasto quintal gramado com um deck sobre um rio claro,
muito menor e mais tranquilo do que o grande rio por onde chegamos.
— Essa casa aqui não foi destruída depois da guerra e da divisão dos
mundos. — Glória esperou que saíssemos do ônibus e nos levou rumo à
construção, como verdadeira guia turística. — Pensaram em demoli-la para
deixar o mato tomar conta, mas acharam melhor preservá-la, só que abrindo-a
para que todos pudessem usá-la. Hoje em dia, é como se fosse a nossa casa de
campo. Aqui ninguém vai lhes perturbar com trabalho, e ainda podem ter um
gostinho do seu próprio mundo aqui do nosso lado.
— Disso eu gostei — Penélope disse, atracando-se ao meu braço enquanto
seguíamos os ladrilhos sobre o gramado.
— É, agarra essa mulher e não a deixe escapar, Cássio. — Puxei Cássio
para o meu lado. — Você fez um bom trabalho. É assim que precisamos
deixar essas pessoas.
— Mas ela sempre foi assim — ele disse. — Ela quer que eu a leve para o
nosso lado quando partirmos.
— Ô, que coitada. — Penélope riu com os olhos fechados. — Eu a levo, eu
a levo sim, pode deixar. Ela pode trabalhar limpando os meus sapatos. Vai
dar uma ótima empregada.
Encontramos um casal à nossa espera na sala luxuosa da casa. Eram Juliana
e Otávio, que nos receberam como se morassem no local.
— Fiquem à vontade, por favor. A casa não tem dono. — Juliana me
encarou como se esperasse uma faísca de meu olho, como se tivesse lido
meus pensamentos.
— Bom saber — eu lhe disse. — Estamos acostumados a ambientes como
esse. Lá de onde venho, todas as casas são como essa.
— Sim, eu sei — ela disse. — Por isso não terão dificuldades em passar um
dia agradável, não é? Depois eu paro pra conversar um pouco com vocês,
tudo bem? Estou escrevendo um artigo, e não posso interromper agora. As
ideias fluem que é uma beleza nesse lugar!
Ela e Otávio nos deixaram à vontade, como se partilhassem um
acampamento conosco. Fui o primeiro a tirar a roupa e mergulhar no rio de
cueca, chamando os outros homens a se juntarem a mim. Tremi com a água
gelada, mas logo me acostumei, e nadei à outra margem para me proteger na
sombra das árvores imensas da floresta. Havia cordas e bancos fincados sobre
a lama, pequenas construções feitas para nos propiciar um ponto de apoio.
Glória riu de nossos saltos, tirou a blusa e o short, e se jogou com a roupa
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íntima. Seu corpo esbelto, exposto assim sob o dia de céu claro e sol
brilhante, silenciou todos nós homens, que já a esperávamos na outra
margem. Fez-se silêncio enquanto ela andava e antecipava seu salto, todos
nós babando com suas coxas grossas e a cintura fina. Olhei para Cássio de
olhos arregalados.
— Vai dizer que não está gostando disso aqui agora? — eu disse.
— Rapaz... O pior é que estou sim. Gostando muito. — Seus olhos
brilharam no encontro dos de Glória, dela que nadava ao seu encontro.

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9 - Elisa

Uma coisa que o Ícaro precisava entender é que se nós não ajudássemos nas
tarefas, elas ficariam sem ser feitas. Como diziam as histórias das minhas
mães e avós, antes da guerra era muito comum falarem que que sem chicote
ninguém fazia nada. Contar com voluntários era pedir para que todos
morressem de fome.
Mas nossos familiares toparam mostrar que não era assim. Eles e elas
acreditavam que quando se para de tratar o outro como criança, e se permite
que ele lide com as consequências de seus atos, o outro amadurece. Então se
ninguém quer plantar comida, ninguém come. Se ninguém constrói a casa,
ninguém tem casa pra morar. E se todos partilham das tarefas, sobra menos
para cada um fazer, e assim tudo se torna menos penoso. Por isso, não foi por
amor ou gentileza que nos tornamos assim. Foi uma necessidade. Juntos
somos mais fortes.
A festa terminou na noite anterior, e ainda havia muita bagunça para ser
arrumada no pavilhão.
— Elisa, você varre? Laura, vai buscar uns panos, e traz uns três baldes
também. Eu vou lá pegar os rodos, porque tem uma área ali que tem que
jogar água. Não sei de onde tiraram tanta sujeira. — Jones foi rápido ao
sugerir um plano de ação, aproximando-se de um grupo de pessoas já
ocupadas na limpeza do local.
— Vai ajudar a tirar as mesas primeiro — eu lhe disse, observando a
morosidade com que uma dupla tentava arrastar uma das mesas pelo chão. —
Eu já vou ter que pegar a vassoura mesmo, daí aproveito e pego tudo.
— Gente do céu, tem até mancha de óleo no chão... — Laura se
surpreendeu ao dar com o pé numa grande mancha negra sobre o piso de
concreto. — Superaram minhas expectativas. Realmente, Jones, trinta
pessoas sujando tudo sem limpar são como um bicho solto por aí.
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— Eu falei... — Ele se afastou de nós, dirigindo-se até uma das mesas que
seria levada até o refeitório.
O pavilhão tinha como mobiliário fixo apenas algumas cadeiras, e nada
mais. As mesas, o pequeno palco da banda, os arranjos de flores, todos os
apetrechos colocados ali para a festa pertenciam a outros lugares e raramente
saíam de lá. Além de removê-los, portanto, o resto do trabalho era limpar um
chão quase tão extenso quanto um campo de futebol.
— Você está preocupada, Laura? — Trouxemos as vassouras e os baldes e
começamos a varrer o chão, empurrando a sujeira para pequenos montinhos
que um outro voluntário viria recolher depois com pá e sacola.
— Com os visitantes? Não, eles vão se divertir horrores hoje com a Glória.
Amanhã é que eles começam a se entediar, do jeito que são. — Ela deu de
ombros, cercando um montinho de massa salgada com a vassoura.
— Digo, preocupada conosco. Essa sujeira toda, você acha que vai ser
sempre assim enquanto eles estiverem aqui?
— Olha... Eu realmente não esperava que fossem ser tão desleixados assim.
Sempre é bom ter esperança, né? Só que nesse caso, azar o nosso. Nós é que
os convidamos.
— Não precisa ser assim. Eles são adultos, estão na nossa casa. Podem
aprender a ajudar.
— Nesse momento eu deveria ser aquela que te pediria pra parar de ser tão
bitolada e tal, porque você se preocupa demais com isso, mas agora que eu tô
aqui com a mão na massa...
— Eles vão acabar com tudo — Jones disse, interrompendo a conversa. —
Vai sobrar tanta coisa pra fazermos por conta deles, que os trabalhos mais
importantes vão ficar por fazer. Menos comida produzida, menos
manutenção, menos construção. — Ele pôs um balde cheio d'água no chão e
pegou uma vassoura do montinho que eu havia trazido.
— Talvez durante esse tempo nós tenhamos que ignorar o que eles
bagunçarem. Esse pavilhão, por exemplo... Precisávamos limpá-lo agora? —
eu disse.
— Quanto mais esperarmos, mais sujeira acumulada, pior pra limpar. —
Jones falou baixo, sem olhar para nós, enquanto derramava um pouco de
água ensaboada perto de um ralo no chão. — E mais, nós nem sabemos
quando eles vão embora, sabemos? Não dá pra estimar o quanto esperar.
— E se eles resolverem ficar pra sempre aqui? — Laura parou de varrer,
pôs as mãos sobre o cabo e olhou longe.
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— Até parece, Laura... — Jones disse.


Eu, assustada com a ideia, partilhava da dúvida levantada. — Teoricamente,
isso seria possível, não? Trinta pessoas aparecem do nada na vila, resolvem
se juntar, mas não querem ajudar em nada. Só querem aproveitar. Não temos
defesas contra isso, temos?
— Por isso que eles não deveriam ter aparecido aqui — Jones disse.
— Peraí, não é isso que aconteceria — Laura disse. — Eles ficariam
fazendo o que aqui? Chega uma hora que bate o tédio. Eles nos veriam
fazendo um monte de coisas, conversando o dia todo, comendo juntos, tendo
novas ideias, tudo, e o que eles fariam ao invés disso? Tomar sol? Assistir
filme? Ler livros? Chega uma hora que bate um vazio, não? Vontade de fazer
coisas.
— Com esse pessoal... Eu não sei não, Laura. A vida deles já é assim no
outro lado, sem fazer nada. Então é possível sim. — Jones derramou o resto
da água pelo chão e esfregou com força uma área manchada, enquanto Laura
e eu varríamos afastadas.
— E o que você sabe sobre a vida deles do outro lado? Você é quem menos
dá papo pra eles — eu disse, sacudindo a cabeça.
— Já li muito sobre a vida de lá, e as poucas conversas que eu tive com
aquela Penélope desde ontem me provavam exatamente o que eu pensava.
— O que ela faz da vida? — Laura disse, antes que eu pudesse perguntar o
mesmo.
— Nada. Tô falando, esse povo não faz nada. Eles se acham essenciais, mas
são imprestáveis, uns completos inúteis. — Jones parecia sentir prazer ao
esculachar os visitantes, sorrindo com alegria a cada ofensa.
— Nenhuma pessoa é inútil. — Eu bati o pé no chão, assustando todos os
voluntários do pavilhão. — O trabalho de alguém pode até ser inútil, mas a
pessoa não, jamais. Se você diz isso, você trai toda a nossa história.
— Ela tá certa, Jones — Laura disse, voltando a varrer o chão.
Ele deu um riso abafado, cínico. Entregou-se ao silêncio, empurrando água
ensaboada para o ralo. Mantive o olhar fixo a ele, esperando uma admissão
de arrependimento, algum sinal de que ele tinha apenas falado sem pensar, e
que ele não cria naquilo de fato.
— Um inimigo serve pra quê? — Jones tinha demorado a responder apenas
para pensar num contra-ataque.
— Como assim? Melhor é não ter inimigos, você sabe disso. — Eu topei o
embate, afastando-me dele com vassouradas pesadas.
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— Mas nós temos inimigos, não temos? Eles! E aí, se não são inúteis, qual
é a utilidade deles?
— Criar novas histórias, Jones, sei lá. Você quer medir os outros pela
utilidade deles, é? Hm, interessante, achei que isso fosse atitude dos inimigos.
Eram eles que davam um preço pelos nossos pais e avôs, não eram?
Laura me encarava de olhos atentos, acompanhando de perto a minha
coragem de enfrentar o preconceito de Jones.
— A questão não é essa. Estávamos falando de outra coisa. — Ele
desconversou, balançando a cabeça.
— É que você acha que eles não têm salvação, que se algum deles passasse
a morar aqui conosco, ele não aprenderia a viver do nosso jeito. Já eu acho o
contrário. Se nós dermos atenção e cuidados a essa pessoa, ela pode aceitar o
nosso modo de vida, pode mudar e aprender coisas novas. Pode até encontrar
um sentido maior para a existência. — Eu falei baixo, de rosto corado,
quente. No fundo, eu pensava em Ícaro.
— Ficar sem fazer nada é muito entediante. Eu estou com Elisa nessa —
Laura disse, em tom calmo, como se não tivesse se abalado com a conversa
acalorada entre Jones e eu. — Depois de um tempo, acho que eles topariam
viver como nós.
— Tá, se é o que vocês acham ... Vamos terminar de limpar o chão. Afinal,
eles é que não vão vir aqui ajudar na cagada que fizeram.

No fim das contas, o tempo gasto na limpeza do pavilhão foi menor do que
o previsto. Novos voluntários deram as caras com rodos e vassouras de outros
prédios, e logo terminamos a limpeza geral. Por conta disso, pegamos três
marmitas no refeitório, para almoçarmos depois, subimos em um par de
quadriciclos e dirigimos até o Posto da Mata, uma zona agrícola distante da
vila, onde um mutirão de colheita de cenouras nos aguardava para ajudar.
Três outras pessoas conversavam sob a varanda da casa de apoio, entretidas
numa discussão acalorada sobre a festa da noite anterior. Jones apareceu
diante deles batendo palmas, disposto a começar logo os trabalhos. Os três
voluntários se ergueram e se juntaram a nós, pegando um carrinho onde
depositaríamos a colheita do dia.
Almoçamos na casa, ouvindo a recitação de um poema de Ivete, uma peça
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na qual ela trabalhava durante o próprio trabalho na terra. Suas palavras nos
trouxeram um momento de beleza, proporcionando-me um olhar gostoso
sobre o que realizávamos juntos ali, aquele trato com a terra, a riqueza que
coletávamos e disponibilizávamos aos nossos semelhantes. Uma grande rede
de produção, uns cuidando dos alimentos, outros da energia, outros do
esgotamento, outros da medicina, outros outros da limpeza, outros da
construção, outros da arte. Uns misturavam as áreas, faziam mais de uma
atividade, como eu, outros se focavam e exerciam profissões. Um
emaranhado de beleza e cuidado.
Voltamos ao trabalho sob a cantoria de Ivete e Laura, as duas improvisando
um dueto com canções do campo, contagiando até mesmo Jones com suas
palavras de felicidade e cansaço. Debaixo do meu largo chapéu, redondo com
aba além dos ombros, eu caçava as cenouras mais encorpadas na horta e as
depositava no carrinho. Cada um de nós se revezava para levá-lo de volta à
casa, entornando a colheita numa caçamba que depois seria alocada sobre um
caminhão.
Quando chegou a minha hora de levar o carrinho, Jones foi comigo.
Ajudou-me a derramar as cenouras, e depois pôs a mão no meu ombro. —
Podemos conversar? — ele disse.
— Sim, claro. — Eu me surpreendi com a pergunta, enrijecendo o pescoço.
— Mas temos que levar o carrinho de volta.
— Pode deixar que eu levo. Espere aqui, tudo bem?
Acenei com a cabeça e o vi partir. Subi a escada da sala, deitando-me em
uma das redes do mirante do segundo andar. Um salão amplo e aberto,
permeado por redes penduradas em colunas, e algumas poltronas. Pelas
paredes envidraçadas, via-se a mata e as montanhas ao horizonte.
Jones se juntou a mim ao voltar, escolhendo uma rede ao meu lado. Sem
olhar em minha direção, com o rosto encoberto pelas abas da rede, ele pôs as
mãos sobre o peito.
— O que está acontecendo com você? — ele disse.
— Em que sentido? Com tanta coisa diferente acontecendo por aqui, você
não tá achando que eu não me deixei afetar por nada, tá? — Pus o rosto sobre
o tecido que me separava de sua visão, buscando seus olhos sem encontrá-
los.
— Não estou, e é por isso que queria te perguntar isso. Você tá diferente. —
Ele ergueu uma mão sobre o peito, como se estivesse sentado num divã.
— Isso te incomoda? Mudar é bom, não é o que se diz?
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— É bom sim, só que... Só que o seu tipo de mudança me preocupa.


Meu peito se apertou, minha boca se comprimiu. — Por quê?
— Eu e você, bem... Parece que você não se sente à vontade comigo mais.
— Ele alçou a cabeça, virando-se a mim, encarando-me com os olhos pretos.
Sua pele estava desarmada, livre de rugas, relaxada.
— Você quer mesmo ter essa conversa, Jones?
— Quem te chamou aqui fui eu, não? Por favor, eu quero te entender
melhor. Tento não ser uma má pessoa, você sabe disso.
A lembrança da nossa conversa da manhã, limpando o pavilhão, me veio à
tona. As pessoas não são inúteis, eu havia dito. — Sei sim. Mas... Ah, enfim,
sim, você observou bem. Eu não me sinto mais da mesma forma com você.
Desde que esse barco chegou, eu...
— Eles começaram a bagunçar tudo. — Ele caiu de volta ao esconderijo da
rede, abafando o rosto atrás do tecido.
— Deixa eu terminar. — Minha voz engrossou. Ele se virou para mim
novamente, num breve momento. — Eu não quero ser a sua sombra. E não,
não me venha com esse olhar, eu sei muito bem o que tenho sido desde que
nos conhecemos. Mas quando você cresce de um jeito desde criança, esse
jeito se torna natural, e você não percebe o que está fazendo, e nem se dá
conta de que você é assim, até que isso passe a te incomodar.
Parei de falar para ver se ele teria algo a dizer, para ver se eu o tinha
convencido com meu pedido por mais fala. Ele me ouvia, deitado de costas
sobre a rede, reconfortado por um casulo de privacidade. Continuei.
— Eu tenho estado ansiosa, Jones. Quem me falou sobre isso foi Laura, mas
a Juciara me examinou e me deu o mesmo diagnóstico. Você também se
sente assim?
— Ansioso... Não — ele disse, sua voz baixa e doce. — Essa é a vida que
eu quero ter, e estamos juntos nessa, então não tem por que eu me preocupar.
— Pois é, mas eu me preocupo, me preocupo o tempo todo. Quando aquele
barco apareceu, e Ícaro... Bem... E quando Ícaro se apresentou a mim, ele me
mostrou um novo mundo.
— E você gosta desse novo mundo?
— Não sei. É o que estou tentando descobrir.
Ele se remexeu na rede, sacudindo a cabeça, segurando-se para não dizer
algo. Torci para que ele se mantivesse calado, pois eu sabia bem o que ele iria
dizer.
— Eu quero mudar, Jones, pelo meu bem, pela minha saúde. Preciso sair da
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sua sombra.
— Não te obriguei a nada, Elisa, por favor.
— A culpa não é sua. Eu preciso mudar, eu, eu. Só que se eu ficar sempre
por perto das pessoas daqui, eu não vou conseguir pensar diferente, porque
eles estão todos no mesmo lugar que eu, já acostumados ao meu modo de ser,
e vão estranhar se eu parar de fazer o que faço. Não quero parar de ajudar,
como o pessoal do outro lado faz, não é isso. Quero encontrar um meio-
termo. Pra isso, eu preciso conviver com novas pessoas, preciso mudar de
ares. Você me entende?
Ele respirou fundo, num ruído pesado que reverberou pelo salão. — Eu
sinto muito pelo que tenho te causado. Eu realmente... Eu não acho que vou
mudar meu ritmo, minhas ideias. Ainda desconfio desse pessoal do barco,
ainda acho que eles não deveriam estar aqui, mesmo com algumas qualidades
que eles têm.
— Qualidades? O que você descobriu deles? — Quase me levantei para
ouvi-lo mais perto.
— Nada, nada de mais. Aquela Penélope, hm, ela tem seus charmes. —
Jones apertou o peito com os braços, como se quisesse sumir dentro da rede.
— Digo, a máscara dela é horrível, esse personagem que ela faz enquanto
está entre os outros. Mas eu vi uma fragilidade nela, uma pequena fraqueza
que me deu vontade de escrever uma poesia. Isso é bom, não é?
— Isso é maravilhoso, Jones! Escreva, por favor, escreva sobre isso.
Mesmo que não mostre a ela, me mostre. Eu quero ver.
— Eu vou tentar. Mas, Elisa... Nós estamos bem?
— Estamos se você entender o meu ponto de vista. Vai respeitar os meus
novos caminhos?
— Claro. Posso até não concordar com tudo, mas, enfim, quem manda na
sua vida é você. Tem mais é que me ignorar mesmo.
— Então é isso que vou fazer, hein. Te ignorar quando vier enchendo a
paciência, tudo bem?
— Tudo bem — ele disse, abrindo a rede para me mostrar seu sorriso. —
Obrigado por confiar em mim.
Jones tirou a mão de dentro da rede e a esticou em minha direção. Eu
estiquei a minha e fui ao seu encontro. De mãos dadas, balançamos um
pouco, aliviados pela conversa.

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A cota de colheita do dia foi cumprida no tempo planejado, por volta da


hora do lanche da tarde. Fiz questão de trabalhar vagarosamente,
internalizando a minha necessidade de menos preocupações. Voltamos à casa
com algumas cenouras nas mãos e frutas maduras que encontramos pela
horta. Sentados no chão da varanda, descascamos as cenouras e as comemos
enquanto conversávamos.
— Você conseguiu descobrir aonde a Glória levou os visitantes? — eu disse
baixinho a Laura, sentada ao meu lado.
— Sim, dei uma olhada ali no computador antes de lavar as mãos. Estão lá
na casa antiga. Por acaso vocezinha quer se juntar a eles? — Laura apontou
uma cenoura ao meu rosto, falando com um sorriso malicioso.
— Não, deixa eles se divertirem em paz. Foi uma boa ideia levá-los pra lá.
Mas eu pensei em mandar alguma coisa pra Ícaro comer. Um presentinho.
— Ah, gostei de ver. Apesar de que eles devem estar empanturrados de
comida por lá. No tópico do fórum, pediram entrega de almoço e três
remessas de lanches completos. Sei nem se o Conselho de Alimentação vai
satisfazer essa demanda. É comida demais, mais até do que se fosse pra uma
festa.
— Talvez eles estejam fazendo uma festa por lá.
— Outra? Já não teve uma ontem? Povo animado mesmo, né?
Olhei baixo, mordiscando a casca de uma goiaba. — Eu queria preparar um
lanche. Pro Ícaro. Você me ajuda?
— Ô, meu bem, claro que ajudo. Daí você pode usar o drone pra mandar o
lanchinho pra ele, aposto que ele vai se surpreender. O que você quer fazer?
— Ainda não sei. Cozinhar não é o meu forte. E tem que ver os ingredientes
disponíveis, essas coisas.
— Isso nós vamos ver melhor no refeitório. E não temos tempo a perder.
Tem que ser algo simples e rápido, tudo bem?
Ela se levantou antes de mim, sacudindo a poeira de sua saia. Eu me ergui
me despedindo dos voluntários e de Jones. Ele já tinha outras tarefas
planejadas para o dia, com a diferença de que eu não me juntaria mais a ele.
Seu olhar se amoleceu com a minha partida, acompanhando o
amadurecimento de sua grande amiga.
Montamos no nosso quadriciclo e aceleramos rumo ao centro da vila. Ao
chegarmos, descemos a escada para o subsolo do refeitório, pedindo um
espaço aos voluntários que já se organizavam para começar a preparar a
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janta. Laura abriu os armários e conferiu os tonéis de ingredientes, atrás de


alguma inspiração. Passava de um ingrediente ao outro com tanta rapidez que
eu não consegui acompanhá-la. Quando ela se virou para mim com os dentes
à mostra, num largo sorriso, apertei os punhos para começar a trabalhar.
— Sanduíche com pasta de beterraba e castanhas! — ela disse, radiante.
— Será que ele vai gostar? — Eu fiquei com medo por conta da beterraba,
já tendo encontrado pessoas que não gostavam muito dela.
— Só tem um jeito de saber. Vamos lá, me ajuda aqui.
Peguei o azeite, o requeijão e algumas castanhas. Enquanto isso, Laura
lavou uma beterraba, cortou-a em cubos e a pôs no fogo. Ela me pediu para
encontrar um pão longo e de casca macia, o que comecei a fazer de imediato.
Ao voltar, ela carregava um potinho na mão, o molho pesto preparado por ela
mesma para lanches especiais.
— Você e o Jones conversaram, né? — Laura disse, levando as castanhas
para um processador de alimentos.
— Sim, eu contei pra ele o que ando sentido. Foi uma conversa boa, e veio
na hora certa. Ele estava perdido com os nossos conflitos, muito mais do que
eu.
— Falou sobre sua paixão pelo Ícaro?
— Laura! Que é isso, que paixão o quê?
Ela ligou o processador e fez careta com o barulho. Esperou até que os
pedaços de castanha estivessem triturados o bastante e abriu a tampa para
conferi-los de perto.
— Vai dizer que não está apaixonada por ele? Sei que tiveram umas rusgas
na festa, mas isso é normal.
— Não, não é paixão. Por acaso você está apaixonada pelo Oliseu?
— Talvez esteja. Mas ele não está por mim.
— Como assim? Ele não queria te largar ontem.
— Por conta do personagem dele. Você deve ter reparado que todos os
visitantes estão fazendo personagens, né? Eles só começaram a se mostrar
com aquela história do acampamento ontem. Ali sim eles foram sinceros.
— O Ícaro me pareceu bem sincero ontem na festa... Se fosse tudo uma
peça, ele faria tudo o que eu sugerisse, não? Como ajudar a limpar a festa.
— Não necessariamente. Pode ser um personagem feito pra te irritar, por
exemplo.
— E por que você acha que eles não estão sendo eles mesmos?
— Porque eles chegaram aqui com muita sede ao pote. O Oliseu já queria
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me levar pra cama ontem mesmo, acredita? Tipo, e as conversas sobre a vida,
sobre a Utopia, sobre as integrações ecossistêmicas dos agrupamentos
humanos? Ele nem se deu ao trabalho de descobrir o que me excita.
— É, o Ícaro veio com uma atitude parecida — eu disse, abaixando os
lábios, dando um teco no pesinho da panela de pressão em que a beterraba
cozinhava.
— Viu só? Personagens. Uma horda de flores cheias de tesão. Sim, olha que
imagem engraçada, porque é isso o que eles me parecem. Sei que é uma peça,
só não sei pra quê. Pra gozar com a gente? Ótimo, isso pode ser muito bom,
mas precisaram vir até aqui pra encontrarem parceiros?
— Talvez tenham se cansado das pessoas do outro lado. É normal
querermos descobrir novos sabores, não?
— Eu que te pergunto. Qual foi a última vez em que você se apaixonou?
Virei o rosto para longe dela, sentindo as orelhas queimarem. — Ah, faz
tanto tempo.
— E cadê os novos sabores? — Ela me encarou com o rosto vitorioso,
misturando os ingredientes já prontos da pasta. — Viu, nem todos querem
descobrir novos sabores.
— Tá, então por que você disse que o Oliseu não está apaixonado por você,
mas você sim?
— Eu gosto dessa peça, eu fico fascinada pela aparição dessa gente. Quero
descobrir o que vieram fazer aqui, de preferência de perto, bem perto de um
desses atores. Isso me excita, de certa forma. Mas ele, por outro lado, fala
comigo como se cumprisse um protocolo. Falta calor nas perguntas dele,
sabe? Tudo frase feita, sem personalidade. Como personagem, ele é muito
fraco. Como agente de uma peça maior do que ele próprio consegue
compreender, porém, ele é fascinante.
— Queria ter esse seu olhar, Laura. Mas conversando com o Ícaro, eu só
consegui ver um cara precisando conhecer um novo modo de vida.
— Querendo ou precisando conhecer?
— Precisando. Talvez ele não ache isso, mas essa vida que ele leva no outro
lado também não o satisfaz. Eu sinto isso.
— Ah, então você também percebeu algo por trás dele.
— É, percebi sim. Só que é algo bom, e não ruim. Ele não seria capaz trair
minha confiança. Enganar sim, mas trair não.
— Não é excitante? Gente, eu mal posso esperar pra ver o que esse povo
está aprontando para nós!
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A beterraba terminou de cozinhar, pronta para ser esmagada na pasta.


Cortamos o pão, preparamos as camadas de recheio e o embrulhamos com
papel. Subimos à superfície e pegamos a alameda até a Praça dos
Transportes. Encontramos alguns drones livres. Um voluntário me ajudou a
prender o sanduíche na caixa de entregas do veículo, e inserimos a
localização da casa antiga no sistema. Do lado de fora, o drone alçou voo e se
dirigiu em linha reta até Ícaro. No fundo, eu torcia para que ele ainda não
tivesse lanchado, e que pensasse em mim enquanto se satisfazia com algo
feito por minhas mãos, especialmente para ele.

Jantei em companhia de Laura, numa mesa com outros conhecidos. Senti


falta de Glória e estava ansiosa a respeito dos visitantes. O primeiro dia que
passaram em terra firme os levou para longe, sem nem dizerem quando
voltariam. Se fizeram mesmo uma festa por lá, talvez continuassem no local
noite adentro.
— Se eles chegarem tarde demais, quando já estivermos dormindo, como é
que vamos avisá-los que hoje quem dorme no acampamento são eles? —
Laura disse, as mãos na barriga diante de um prato vazio e sujo.
— Eles já não sabem disso? — eu disse, lembrando-me do dia anterior,
quando avisamos sobre esse acordo.
— Se souberem, deram alguma mostra de que pretendem mesmo dormir no
acampamento? Acho que vão querer negociar.
— Bem, então vamos manter as coisas do jeito que estão hoje. Só mais essa
noite. Não custa nada.
— Hm... Eles têm que saber o lugar deles aqui também — Laura repuxou a
boca para um lado, contrariada.
Nosso grupo saiu da mesa e se alocou na praça à beira-rio. Nós nos demos
esse descanso despreocupado depois de um dia atribulado, e admiramos as
estrelas com conversas sobre o futuro e os medos. O sono veio a mim no
horário de costume, por volta das dez da noite, sem que os visitantes tivessem
retornado com Glória.
Fui dormir no acampamento. Um casal conversava baixinho nas cadeiras da
entrada, desejando-me boa-noite. Fechei a porta do módulo em que se
encontrava meu colchão, e acendi a luz para poder vestir minha camisola.
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Pendurei minha blusa e minha bermuda nos ganchos da parede, e me deitei.


Apaguei e acordei um tempo depois, ouvindo batidas na porta. Esperei que
se repetissem, incerta sobre o que eu tinha ouvido, e quando vieram
novamente, levantei-me e abri a porta. Iluminado em um lado da face pela luz
amarelada da entrada do acampamento, Ícaro me olhava com um rosto
inocente, esticando o lábio inferior.
— Boa-noite. Eu posso entrar? — ele disse.
Apertei o cenho, olhando ao redor, sonolenta. — O que houve?
— Nada. Eu senti sua falta. Queria conversar.
— Eu já tava dormindo.
— Não está mais. Quer conversar aí dentro, ou aqui fora?
Suspirei, sentindo a vida voltar à cabeça. Eu queria uma nova vida, uma
vida menos bitolada, mais livre, não queria? — Se você não se importar em
deitar no colchão... Pode ser aqui dentro. Aí fora nós vamos atrapalhar os
outros.
Ele entrou no módulo apertado, pisando no espaço livre ao lado do colchão.
Eu me sentei e ele se juntou a mim, colando as costas na parede. — Tira os
sapatos — eu disse. — Senão vai sujar o colchão, e... E você vai ficar mais à
vontade sem eles.
Ícaro tirou os sapatos e os colocou com cuidado perto da porta, retornando
para o meu lado em silêncio.
— Foi tudo bem com a Glória hoje? Aconteceu algum problema? — Eu
abracei os joelhos, apertando-os no meu peito, de rosto virado para ele.
— O dia foi ótimo. Aquela casa, ela me lembrou muito a casa do meu pai,
numa região de montanhas do nosso estado. Gostei, me senti bem por lá.
Acho que todos nós nos sentimos. — Seus olhos verdes brilharam com o
amarelado da pequena lâmpada que nos impedia de desaparecer na escuridão
total.
— Fico feliz. Eu também gosto de lá, principalmente do rio. Fizeram
alguma coisa diferente?
— Ficamos de bobeira na água, depois nos secamos do lado de fora,
pegando sol. E comemos bastante também.
— Comeram, é? — Apertei a bochecha sobre o cotovelo, falando baixinho.
Ele abriu um largo sorriso, escondendo os dentes, e se inclinou sobre mim.
Encostou o braço no meu, e abaixou o rosto. — Obrigado pelo presente.
Gostei muito.
— Que bom que gostou. Não temos os ingredientes do seu lado, e foi algo
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simples, mas... Foi com carinho. Eu ainda sei pouco sobre você pra te dar um
bom presente. Enquanto isso, espero que goste de comida.
— Você me surpreendeu. Melhor do que isso, só se você aparecesse
pessoalmente para me entregar o sanduíche.
— Não, eu queria que vocês passassem um dia entre vocês, para que se
sentissem seguros estando aqui. Eu só iria atrapalhar.
— A Glória estava conosco. Ela se divertiu pra caramba, e todos gostaram.
O Cássio que o diga. Se ela foi, por que não você?
— É, mas ela é um caso à parte. Era o trabalho dela mostrar-lhes a nossa
vida. Agora você nos conhece um pouco melhor.
— Verdade. Foi bom saber que vocês não destruíram tudo o que havia aqui
antes da guerra.
— Nossas mães e avós não destruíram quase nada, Ícaro. Foram as bombas
dos seus avôs que destruíram tudo.
Ele suspirou. — Então foi mútuo. Nós também perdemos muita coisa no
nosso lado.
— Como o quê?
— A nossa paz.
Vi em seu rosto uma expressão inédita, como se por trás daquela pele
áspera e com barba por fazer batesse um outro coração. Uma angústia se
expôs em suas palavras, escapando da prisão de seu personagem, se é que ele
realmente atuava para mim.
— Que bom que você está aqui. Quem sabe assim você pode reencontrar a
sua paz — eu disse.
Eu me inclinei sobre ele, encostando a testa em seu braço. Ele pôs a mão
em minhas costas e tateou os músculos dos meus ombros. Parou, mantendo
contato com minha pele.
— Suas costas estão rígidas. Você parece tensa. Tudo bem com você?

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10 - Ícaro

Em parte, eu me senti culpado por ter acordado Elisa. Por outro lado,
terminar o dia sem vê-la poderia atrapalhar meu objetivo de conquistá-la para
mim. Precisava agradecê-la por aquele sanduíche que ela tinha me enviado,
enquanto o sabor da memória ainda estivesse fresca em minha mente.
— Meu dia foi bom, mas um pouco tenso. Minhas costas estão duras? —
ela disse, mantendo-se encurvada sobre os joelhos.
— Em algumas partes, sim. São sempre assim? Bem, por que não me diz o
que houve, antes de mais nada?
— Conversei com o Jones. Lembra daquelas coisas que eu te contei, sobre
querer mudar e precisar de gente nova pra me ajudar nisso?
— Gente nova como eu?
— Isso, como você. Abri o coração com ele, e ele próprio não me quer
como sombra. No fundo, ele é um cara especial.
— O que isso significa? Desculpa, eu me perdi aqui. O que te deixou assim
tão tensa? — Apertei os músculos de seus ombros, esfregando o polegar
debaixo de sua fina camisola de algodão.
— Ah, o calor da conversa, essas coisas. Você já deve ter visto que por aqui
nós somos bem diretos com o que temos a dizer, não deve? Só que isso não
significa que não haja tensão entre nós. Querendo ou não, foi um confronto, e
que bom que ele me entendeu. Estamos em paz.
— Certo. Imagino que tenha sido a sua forma de se desfazer de uma amarra,
deixando clara a sua nova visão e se assegurando de que ele estivesse ciente
disso. Desse jeito, você e ele podem voltar a conviver sem atritos, um
sabendo onde o outro está pisando.
— Exatamente... Ai! — ela disse, recolhendo os ombros com um aperto de
minha massagem.
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— Desculpa. Está doendo muito? Eu posso parar, se não quiser massagem.


— Interrompi meus dedos sobre sua pele, encostando minha palma sobre
suas costas para contagiá-la com o meu calor.
— Não, não, continua, estou gostando. Só não imaginava que eu estivesse
tão cheia de dores. — Seus cabelos pretos escorriam sobre suas orelhas,
cabelos curtos que deixavam seu pescoço branco exposto ao meu olhar,
sombreado por uma linha tênue de pelinhos negros descendo sobre sua
coluna. — Acho que você entendeu bem a importância da minha conversa
com Jones de hoje.
— Viu como não sou mimado? Eu sei ouvir.
— Sabe sim, sempre soube. Eu falei que você é mimado porque não sabe
conviver com os outros. Quer as coisas só do seu jeito. Ai... — Eu belisquei
os músculos de seus ombros com os dedos, apertando-os como se lidasse com
massa de modelar, irritado com aquele jeito que ela tinha de falar de mim.
— Você se engana sobre mim, se engana totalmente — eu disse. — O que
eu preciso fazer para que você pare de pensar isso de mim?
— Passe mais tempo comigo. Só isso — Ela revirou o rosto para me
encarar com seus olhos escurecidos pela sombra, apenas o canto de seus
lábios iluminados num sorriso curto.
— Então eu fiz certo em vir aqui te acordar, no final das contas? — Ergui
uma sobrancelha, insinuando-me ao alisar os dedos sobre suas costas.
— Agora eu posso dizer isso. Mas antes não. Não se acorda uma mulher
cansada no meio da noite. Está sentindo esse corpo duro, não está? Diz se
essa pessoa não precisa de descanso, hein?
— E como precisa! Agora que você não é mais sombra de ninguém, o que
vai fazer da vida? Ficar acordada até as dez da manhã? Beber até se acabar?
Fazer amor o dia inteiro?
— É isso que tem pra fazer, é? — Ela fez bico, fechando os olhos à metade,
de sobrancelhas apertadas. — Tinha pensado em outras coisas.
— Tipo o quê? — Àquela hora eu já tinha apertado e repuxado todos os
músculos à minha disposição, explorando a área exposta por sua camisola.
Minhas mãos deslizavam sobre sua pele apenas para apreciar a maciez de seu
contato.
— Olha, sempre tem trabalho nos Postos Agrícolas pra fazer, então amanhã
acho que vou ajudar na colheita dos alfaces.
— Caramba, só pensa em trabalho mesmo... O que vai mudar então na sua
vida?
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— Você. Você vai comigo. — Ela começou a erguer a coluna,


desvencilhando-se de minhas mãos.
— Eu? Quem te garante isso? — Apoiei os cotovelos sobre os joelhos,
virando o rosto para encará-la ao meu lado.
Ela pôs a mão em meu braço e me agraciou com um leve aperto. —
Obrigada pela massagem. Eu me sinto bem melhor agora. — Elisa retirou os
dedos de mim e olhou para baixo. — Ninguém garante. Só acho que seria
legal. Um favor para mim, que tal? A sua presença. Com a sua companhia, eu
vou ter alguém para me puxar para o lado e descansar mais, de vez em
quando, ao invés de ficar bitolada o tempo todo.
— Tipo um tutor? Aprendendo a viver, com Ícaro Zanotelli. — Eu levantei
as mãos espalmadas e as deslizei pelo ar, ao lado do meu rosto.
— Um tutor? Hm, não, acho que não é bem isso. É mais como um amigo
mesmo. Ícaro e Elisa, vivendo a vida.
— Ótimo. A primeira lição para o dia de amanhã é acordar em horário de
gente, de preferência depois das dez.
— Nada disso. E perder a melhor parte do dia, a manhãzinha?
— Ora, por que temos que viver como você quer, se agora somos uma
dupla?
— Quem é que quer mudar de vida aqui? Eu ou você?
— Hm, você, né.
— Pois então, minha dupla, precisamos ir com calma, aos pouquinhos.
Amanhã você vai experimentar o dia comigo, e vou começar a sair dos
trilhos, se você quiser me ajudar.
— Eu vou ter de trabalhar junto com você?
— Só se quiser. Se não quiser, pode ficar assistindo. Mas vai ser muito mais
entediante assim, então te aconselho a experimentar tudo o que eu fizer.
Um comichão brotava do meu peito, uma coceira gostosa. A voz doce e
engraçada que ela usava naquela conversa acariciava meus ouvidos e beijava
meu coração. Ela fazia sentido, ela me convencia, e eu me deliciava com o
seu jeito de me enfrentar. Acordada no meio da noite, invadida em seu
espaço, e a despeito de tudo, receptiva à minha atenção. Desconfiava de mim,
dizia que eu era mimado. E mesmo assim, ela me queria ao seu lado. Que
mulher diferente!
— Tá, podemos deixar pra ver isso amanhã? — eu disse. — Acho que eu
estou com mais sono do que você, e não consigo pensar em argumentos pra
me defender das suas artimanhas. Se eu prometer passar o dia ao seu lado
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amanhã, eu posso mudar de ideia, e você vai achar que eu sou mentiroso. A
última coisa que eu quero que você pense é que sou mentiroso.
— Tudo bem. Então vamos dormir. — Com um risinho, ela apagou a luz.
— Elisa... Eu não consigo ver nada. Pode acender de novo só pra eu sair?
— A escuridão tomou conta do nosso cubículo, como se eu estivesse cego.
— Deita e dorme. Tem espaço pra nós dois aqui. Fica quietinho e dorme,
vai. Sua experiência de viver ao meu lado começa hoje. Dormir no
acampamento, que aventura, hein?
Eu dei um riso baixo, e segurei o resto das risadas que ameaçavam vir à
tona. Se a experiência começava, então eu poderia sugerir uma mudança? Eu
poderia beijá-la, acariciá-la por baixo da camisola, despi-la e lambê-la toda,
madrugada adentro? Por um segundo abri a boca para oferecê-la a sugestão,
mas me deitei e não a senti colada em mim. Eu tinha espaço no colchão, eu
estava ao lado de uma mulher que tinha acabado de se abrir à minha
presença, e apenas à presença. Se eu me forçasse sobre ela, adeus qualquer
chance de contato.
Por isso, deitei-me de lado sobre o longo travesseiro que servia às nossas
duas cabeças, e caí no sono, de calça e tudo.

Despertei com um toque insistente em meu braço. Um balanço irritante,


sacudindo um pouco do meu peito e minha cabeça. Abri os olhos para a
escuridão total, tentando fazer sentido de onde eu estava. Estiquei o braço
para um lado e encontrei uma parede de fibra. Estiquei o outro e me deparei
com uma pessoa. Elisa, era ela que me acordava.
— O que foi? — eu disse, assustado, temendo ter acontecido algo de ruim
no meio da madrugada.
— Hora de acordar. Bom dia. Posso acender a luz? — Ela sussurrou,
apertando os dedos sobre meu pulso.
— Mas ainda é noite. Não me diga que você é daquelas que se levanta de
madrugada, ah não... — Pus o braço livre em minha cabeça, protegendo os
olhos de uma eventual claridade.
— Já tá claro lá fora, vamos. Aqui dentro não entra a luz do dia. Sei que
isso pode confundir, mas deve ser quase sete horas.
— Sete horas? Cedo demais. Deita aqui de novo, Elisa, vem, deixa eu te
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abraçar, dorme aqui agarradinha comigo. — Eu me virei ao seu lado,


tateando seu corpo, fazendo charme com a voz preguiçosa.
Ela acendeu a luz, atingindo meus olhos em cheio com o amarelo da
lâmpada. — Estou cansada de ficar deitada. Não aguento mais essa cama. Eu
vou lanchar, e você vai comigo. Lembra, hoje é dia de você experimentar um
pouco da minha vida.
— Eu falei que ia pensar no caso... E já não estou mais gostando da ideia.
— Virei-me de costas para ela, escondendo o rosto sonolento.
Ela abaixou o rosto sobre o meu, beijou-me a têmpora, e deu um tapinha em
meu braço. — Vamos, Ícaro. Depois que jogar uma água na cara, você nem
vai lembrar da cama.
— Ah, eu vou lembrar sim, eu vou. Mas tudo bem, tudo bem, vamos
levantar. Vamos ver que dia tão empolgante é esse que te faz levantar tão
cedo da sua cama.
— Ótimo. Tem como você sair só um pouquinho pra eu trocar de roupa?
— Apaga a luz e tira a camisola aqui mesmo. Eu não vou conseguir ver
nada.
— Não confio em você.
Uma pontada atingiu em cheio meu coração, injetando um gosto amargo em
minha boca. Ressentido, fiz como ela quis, levantando-me do colchão de uma
vez e saindo pela porta em silêncio. A entrada da tenda estava aberta,
clareada pelo sol entre nuvens do céu. As portas dos outros módulos do
acampamento estavam todas abertas, com exceção de uma outra além
daquela em que dormi ao lado de Elisa.
Pelos caminhos da praça ao redor, pessoas caminhavam com ferramentas e
roupas sujas. Ajeitei o cabelo, penteando-o para atrás com as mãos, e alisei
minha camisa, numa vã tentativa de corrigir os amassados. Eu queria ir ao
banheiro, mas não fazia ideia de onde encontrá-lo.
Elisa abriu a porta do módulo e me deu a camisola para eu segurar. Sem que
me desse a chance de perguntar por que eu deveria ficar com sua roupa, ela
passou pelo corredor de módulos de acampamento e virou à direita no final.
Saiu de lá com um pano úmido e uma vassoura. Entrou de novo em seu
pequeno quarto, varreu com cuidado o chão livre ao lado do colchão, e depois
passou o pano para retirar a poeira. Espiei por trás da porta e vi as cobertas
dobradas sobre o colchão.
— Você não perde a chance, né? — eu disse, acariciando a camisola em
minhas mãos.
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— Desculpa, eu deveria ter pedido a sua ajuda, eu sei. É que aqui nós temos
o costume de já ir fazendo as coisas, porque todo o mundo já sabe o que tem
que ser feito, e... E... Bem, você tem que me lembrar de te falar o que tem pra
fazer.
— Fica tranquila, fez um bom trabalho. Meus parabéns.
Ela sorriu de lábios apertados e retorcidos, captando a minha brincadeira.
Pegou de volta a sua camisola e partiu em frente, levando-me para fora da
tenda. Continuei a pentear o cabelo para atrás, incomodado por me expor em
público todo desarrumado. Elisa, pelo contrário, pouco parecia se importar
com seu cabelo desgrenhado, com mechas pretas amassadas sobre o contorno
de sua cabeça, e vários fios rebeldes destoando de seu corte liso.
Entramos numa tenda ao lado da nossa, por sorte, de piso de plástico
corrugado, levemente inclinado em direção a um ralo no meio do ambiente.
Pias estavam postas em uma das laterais, e módulos com sanitários, estilo
banheiro químico, estavam em outra. Fui em direção à pia, mas antes que eu
pudesse abrir a torneira, Elisa se adiantou a mim, ligou a água, abaixou meu
pescoço com a mão e banhou meu rosto.
— Peraí, você quer ou não quer que eu faça as coisas, hein? — eu disse,
levantando-me da pia, cobrindo o rosto molhado com as mãos.
— Ah, então você já tá desperto, ótimo. Isso, vai lá, que bom que não
precisa de ninguém pra cuidar de você. Por um momento fiquei com medo de
que até pra se limpar você dependesse dos outros no seu lado do mundo.
— Para de besteira, Elisa, você... Ah, você tá brincando comigo, né? —
Esfreguei o rosto com muita água, interrompendo a lavagem para encará-la
ao meu lado.
Ela foi a um armário no canto da tenda, abriu uma portinha, retirou uma
escova e uma xuxinha, e veio se molhar junto a mim. — Talvez eu esteja
brincando. Mas, só por via das dúvidas... Você sabe se limpar sozinho, né?
— Claro que eu sei! — Desliguei a torneira, rindo da cara dela. — Tá, onde
tem uma toalha?
— Ali no armário, onde eu peguei a escova.
— Por que não trouxe logo?
— Pra você ter o que pegar.
Fui aonde ela me indicou, encontrei uma toalha dobrada e limpa e sequei o
rosto. Levei-a até Elisa, para que ela também pudesse se enxugar. Cobriu seu
rosto com o tecido espesso e o esfregou grosseiramente, deixando partes da
raiz de seu cabelo ainda molhadas. Suas bochechas estavam pálidas, sua pele
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enxuta e lisa como a casca de um pêssego, seus lábios rosados e claros. Ela
pôs a toalha sobre o ombro, de olhos fixos aos meus. Eu, hipnotizado por
seus simples cuidados matinais, resolvi entrar num módulo sanitário antes
que ela pudesse brincar com meu encantamento.
Terminei de mijar, saí e vi que ela acabava de se pentear. Lavei as mãos, ela
guardou sua escova no armário, mas manteve a toalha em mãos, junto à
camisola. Andamos juntos até um prédio nas margens da praça, uma espécie
de lavanderia e vestiário. Ela pôs a toalha sobre um balcão, dando bom-dia a
uma pessoa que transitava por lá, e guardou a camisola em um armário com
algumas roupas que eu já a tinha visto usar.
— Esse é o seu guarda-roupas? — eu disse, impressionado pelas fileiras de
armários nos corredores daquele prédio.
— É, tenho preferido guardar minhas roupas aqui ultimamente — Ela
levantou uma blusa da prateleira para me mostrar o conteúdo.
— Não acha ruim ter de vir buscar o que vestir tão longe?
— Acho não. É perto. Tem gente que põe armário no quarto, mas eu não me
importo. É bom que aqui já fica perto de onde vai lavar e secar.
Depois dali, caminhamos por uma passarela coberta até o refeitório. O
clima estava se fechando, ameaçando chover. Sem carros por perto, o fato de
contar com caminhos cobertos para chegar aos lugares me deixava aliviado.
No meu lado do mundo, não conhecia nenhuma cidade em que as pessoas
pudessem se deslocar pelas ruas sem medo de se molhar.
Fizemos nosso café da manhã como no outro dia, porém sem a companhia
de conhecidos. Meus amigos do barco provavelmente acordariam mais tarde,
e era certo que os companheiros de Elisa já tinham comido.
— Se seus amigos demorarem mais, terão de comer as sobras, ou então
prepararem eles mesmos o café da manhã — Elisa disse, saboreando um
pedaço de pão com queijo.
— Talvez os seus amigos do refeitório abram uma exceção pra eles, não?
Afinal, vocês são pessoas muito solidárias.
— Ei, a comida tá lá, é só prepararem. Ninguém aqui vai ficar controlando.
Isso é solidariedade, não?

Elisa não dava trégua. Ao terminarmos de comer, eu me levantei da mesa e


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me espreguicei, retorcendo o braço acima da cabeça. Pensei em pegar meu


par de óculos escuros no quarto, antes de partirmos para onde ela quisesse me
levar.
— Preciso pegar umas coisas. Você vem comigo? — eu disse.
— Claro — ela disse, levantando-se também. — Pega seu prato e os
talheres. Vamos lavá-los.
Fechei o rosto, contrariado. Lavar pratos? Mas me vi entre os poucos
nativos ainda no refeitório, eu o único a se recusar colaborar, e me senti um
fresco. Eu sabia cuidar de mim, cuidar das coisas, não sabia? Meus
empregados apenas facilitavam a minha vida, não eram eles que me
mantinham vivos. Sem eles, eu dava conta de tudo, eu era um cara
independente e maduro. Não era?
Peguei o prato e fui com Elisa até uma das pias do refeitório. Abri a torneira
ao lado dela e ensaboei os talheres, lavando-os logo em seguida.
— Tá gastando muita água. Abre a torneira só quando for lavar, e abre
pouco. — Ela falou com um tom seco, direto ao ponto, e fechou a minha
torneira.
Irritado, eu deixei que ela fizesse como quisesse, indisposto a discutir com
aquela mulher que me servia ao propósito de uma missão, e nada mais.
Terminamos de lavar nossas coisas, nós as colocamo para secar, e fomos ao
meu quarto para que eu pegasse os óculos. Ela me esperou do lado de fora,
conferindo algo no computador do refeitório.
— Alfaces no Posto das Pitangueiras, tudo bem? — Ela ergueu ambas as
mãos sobre o peito com os polegares em riste, fazendo joinha com sorriso de
moleca.
— Beleza, o que tiver de ser. Estou acompanhando sua vida, não estou? No
final do dia, vou dar minha nota para o seu progresso na vida.
— Já progredi alguma coisa hoje?
— Ainda não.
— Poxa, então você precisa ser mais atuante, viu, Ícaro.
— Preciso, é? Então tá, por que não vamos tomar banho de rio agora, ao
invés de irmos nessa colheita?
— Hm, agora não dá, eu já me comprometi com eles.
— Assim fica difícil, hein. Vou ter que te levar à força pra algum outro
lugar?
— Se quiser perder minha confiança, pode até ser. Quer perder minha
confiança?
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Olhei fundo em seus olhos, remoendo o meu papel naquela missão. — De


jeito nenhum.
Ela me levou até um estacionamento de bicicletas. Escolhemos as nossas e
partimos por uma alameda, entrando em uma estrada de terra ao fim da vila.
Campos de banana, coco e milho margeavam nossa passagem, por onde
galinhas e patos cacarejavam livremente, seguidos por seus filhotes. Árvores
cresciam ao longo da beirada de toda a estrada, sombreando a terra batida que
nos levava ao destino.
Elisa sequer precisou me anunciar a chegada ao tal Posto das Pitangueiras,
pois reconheci as frutas à distância. Arbustos altos, outros baixos, repletos
pelo vermelho das pitangas, crescendo ao redor de pés de couve, brócolis,
acelga, manjericão, alface e muitas outras hortaliças. Eu não conseguia dizer
se aquilo se tratava de uma fazenda ou o quê, porque era uma paisagem rural,
era fato, mas tão desordenada e entulhada de diferentes espécies que eu
duvidava de sua eficiência. Parecia algo mais decorativo do que produtivo.
Paramos diante de um prédio em formato cilíndrico, rodeado por uma
grande varanda coberta. Deixamos nossas bicicletas encostadas sob o telhado,
procuramos por pessoas ali perto, e não encontramos ninguém. Elisa pegou
um carrinho de mão empilhado sobre outros, e partiu em direção a uma trilha
entre o mar de hortaliças.
— Pode deixar que eu carrego. — Eu cheguei ao seu lado e pus as mãos
sobre os cabos do carrinho, interpondo-me sobre ela.
— Ué, por quê? Eu consigo carregar, não estou doente. — Ela disse,
mantendo firme a pegada sobre a ferramenta.
— Eu quero ajudar.
Ela ergueu as sobrancelhas, acendendo os olhos de mel, e contraiu a boca.
— Ô, sim, é verdade, claro, toma, pode pegar. O pessoal deve estar atrás do
monte, vamos lá encontrá-los. — Ela se pôs a andar.
— Às suas ordens, senhorita.
— Ordens de quê? — Ela se virou para mim com as sobrancelhas fechadas,
em dúvida.
— Nada não, esquece — eu disse, sentindo-me como se tateasse no escuro,
falando uma língua que ela não entendia.
Fui atrás dela, seguindo a trilha larga de blocos de concreto que se
subdividia em vários caminhos pelo campo, irrigando toda a região com piso
bom para caminhar. A veia principal, aquela que seguíamos, rumava no meio
de um pequeno vale com passagem coberta por pitangueiras e algumas
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árvores mais altas. Ao passarmos por elas, logo encontramos um senhor de


idade vindo em nossa direção com um carrinho de mão abarrotado de pés de
alface colhidos.
— Eita, dia bom hoje, concordam? — ele disse, abrindo um largo sorriso de
dentes perfeitos ao nos ver.
— Uma maravilha — Elisa disse. — Começaram cedo hoje, é?
— Nada, acabamos de chegar. Essa aqui é a primeira remessa. Vou pegar
umas caixas pra colocarmos tudo, daí quando você estiver na casa, é só
empilhar junto ao resto, entende?
— Claro, Heitor, já já eu chego lá. Hoje eu trouxe ajuda, então vai ser até
mais rápido.
— Ô coisa boa, hein! Um rapaz forte desses é sempre bom pra agitar as
coisas, né? Tão precisando de gente lá no Posto da Rocha, viu?
— Sim, depois a gente vê isso. Vamos cuidar daqui primeiro.
— Então vão lá. — O velho fez o carrinho rodar de novo e seguiu caminho.
Elisa e eu nos reunimos às duas outras pessoas que trabalhavam na colheita.
Nossa tarefa era a de perambular entre as hortaliças à procura de pés de alface
vistosos. Ela me mandou em uma direção, e ela própria foi em outra. Antes
que eu pudesse manifestar minha indisposição a ajudar naquilo, dei-me conta
de que na verdade a missão requeria que eu fizesse o que ela pedia. Afinal, o
propósito da missão era abusar da hospitalidade e da solidariedade deles,
fazer graça dos princípios de sua sociedade e mostrar-lhes que estavam
errados, levando-os à fome e à falência.
Peguei o primeiro pé de alface que encontrei aos meus pés. Mirrado e fraco,
arranquei-o da terra sem fazer caso do enorme buraco que lá deixei.
Depositei-o no carrinho e segui fazendo o mesmo com tudo o que via à
minha frente, pegando inclusive alguns pés de couve-flor e brócolis.
Quando Elisa chegou ao carrinho e viu o que tinha feito, veio correndo até
mim e me pegou pelo braço. — Ícaro, para tudo. Você não sabe é o que é
alface? Nunca comeu?
Seu rosto fechado demonstrava preocupação, e não raiva. Ela me
considerava estúpido, e me repreendia como uma professora. Aquilo feria o
meu orgulho próprio, mas eu estava lá para bagunçar.
— Eu quis pegar mais coisas. Vi que já estavam prontas pra colher também.
— Continuei a andar entre as hortaliças. Envolvi um pé de alface ainda
pequeno entre os dedos e o arranquei sem dó.
— Não, Ícaro! Esse não tá bom ainda.
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— Claro que tá, olha aqui, folhas verdinhas.


Ela me fuzilou com o olhar, e se dissesse alguma coisa, seria para me
ofender. Minhas orelhas queimavam, sentindo-me um palhaço, torcendo para
que ela me livrasse daquele papel de idiota.
— Vem comigo, e só observa. Tá bom? Não precisa ajudar agora, não
precisa. Vem ver como eu faço, e depois você tenta fazer igual.
Assenti com a cabeça, ainda carregando o alface desperdiçado. Ela segurou
minha mão e me levou pelo caminho até a área que ela estava cobrindo antes.
Joguei na terra o alface que eu tinha colhido, e pisei nas hortaliças enquanto
me deslocava com ela.

— Você não tem... Err... Como posso dizer? Você não tem nenhuma
condição cognitiva grave, tem? — ela disse, vasculhando a terra.
— Quer saber se sou idiota? — Cruzei os braços ao seu lado, pisando sobre
algumas ervas cujo nome eu não conhecia.
— Se tem essa consciência, então você não é. Pois bem, eu sei o que você
está fazendo. — Ela enroscou os dedos em um pé de alface vistoso e
começou a tirá-lo.
— Estou tentando ajudar. Não é isso?
— Não. Você quer atrapalhar. Abusar da nossa boa vontade, bagunçar
nosso trabalho, nosso modo de vida, não sei. Algo desse tipo.
Meu coração gelou, despido assim do meu papel. Apertei os olhos e o
maxilar, em silêncio, esperando que ela se explicasse melhor.
— O seu problema — ela disse — é que você acha que somos uns bobos
por aqui. Acha que vamos comprar qualquer lorota que você inventar, acha
que somos inocentes ao ponto de cairmos em qualquer enganação. — Ela
arrancou o pé de alface e o pôs sobre meu peito, para que eu o segurasse.
Resisti de braços cruzados, até que ela insistiu de novo e eu o segurei. — Mas
vai precisar ser mais criativo e sutil, se quiser passar a perna em nós, já vou
avisando.
— Se acha que eu sou falso assim, por que ainda não me chutou daqui?
— Porque você precisa conhecer a vida aqui do nosso lado. Se quer nos
enganar, é porque alguém te disse que somos maus, que fazemos coisas ruins,
e você quer nos prejudicar. Minha única arma contra isso é mostrar que não
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sou má, não sou um monstro, muito pelo contrário. Sou uma pessoa que te
escolheu pra ser meu amigo e mudar minha vida.
Eu me senti o maior idiota do mundo. Que plano burro, que missão mais
sem propósito, impensada. Era verdade, nós do outro lado pensávamos no
povo de Elisa como se fossem deficientes, como se não fossem gente, e eu
acreditava em tudo o que me contavam. Como poderiam viver sem ter
posses, sem líderes, sem luxo? Idiotas, só podiam ser idiotas, doentes. No
fundo, toda essa máscara escondia apenas o nosso próprio despreparo.
Montamos uma missão toda baseada numa visão errada deles, e agora eu
estava ali, confrontado com uma pessoa que sabia de tudo e que me vencia a
cada duelo. Valia mesmo a pena provocá-la para que perdesse a linha e
abandonasse seus princípios? Eu precisava conversar com meus
companheiros e botar a cabeça em ordem.
Enchemos alguns carrinhos de alface e depois os empilhamos nas caixas
que seriam levadas à vila de caminhão. Elisa agia sem requisitar a minha
ajuda, mas ao seu lado eu tentava copiá-la, um tanto sem jeito em acomodar
hortaliças e em empilhar caixas, nunca tendo feito algo do tipo. Não me
agradeceu, não me olhou com candura. É como se eu não tivesse feito nada
mais do que a minha obrigação, e aquela falta de reconhecimento me
desestimulava a fazer mais. Não fosse pela vergonha que eu sentia ao seu
lado, teria me sentado na varanda e apenas assistido ao término das
atividades.
— Quer dar uma olhada no Posto da Rocha, que o Heitor falou? Talvez
você se interesse... — ela começou a dizer, limpando com as costas da mão
uma gota de suor que escorria pelo pescoço.
— Elisa, não. Quero que você me leve a um lugar bonito para ficarmos de
bobeira por um momento. É seu momento de descanso. — Eu abaixei a voz,
quase sussurrando em seu ouvido.
Ela lambeu os beiços e apertou os lábios, balançando a cabeça. — Tudo
bem, é a nova vida, não é? Isso aí, vamos aproveitar o dia nublado. Tem um
lugar aqui perto que talvez você goste.
Subimos nas bicicletas, pedalamos para longe do Posto das Pitangueiras,
deixando para atrás a extensa área de hortaliças. Entramos numa trilha no
meio de uma mata fechada, escurecida pelas copas volumosas do teto de
árvores. Elisa virou num caminho de terra, mudou para uma marcha leve,
preparando-se para uma subida, e por quase cinco minutos nós perdemos o
fôlego escalando um morro.
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Ao alto, um banco de madeira repousava debaixo dos galhos de um


flamboyant. Recostei a bicicleta em seu tronco, e admirei a vista. O rio
reluzia ao longe, no horizonte, descendo por campos cultivados e corredores
verdes de floresta até o agrupamento da vila, com casas que se perdiam nos
limites confusos entre a vila e a zona rural.
Elisa se sentou, olhou para mim, e me juntei a ela.
— Meu pai passou fome por mim, algumas vezes. — Ela cruzou os pés,
repousou as mãos agarradas sobre as coxas. — A terra aqui era pobre,
desgastada. Aqui e em todos os lugares. Criavam gado e café, em tanta
quantidade que ficou tudo pobre.
— Hm, vocês recuperaram a área, estou vendo. — Estávamos em fins de
inverno, e mesmo diante da secura característica da estação, o verde brilhava
por todas as partes.
— Depois da divisão dos mundos, ficou muito difícil viver. Muitos queriam
até voltar a como era antes, acabar com a divisão. Minha avó tinha de ferver
água suja, tinha de vestir roupa imunda. Meu pai e minha mãe tinham de
racionar comida e energia, tinham de trabalhar o dia todo, sem descanso. Eu
peguei uma parte disso, eu vi meu pai dar a cota dele de ração diária pra que
eu não ficasse desnutrida, pra que eu crescesse forte.
— Ele fez bem. Você cresceu forte. Forte e decidida.
— Ao custo dele. Ficou doente, teve de ir se tratar longe daqui, e nunca
mais voltou. Sobreviveu, e ficou por lá, ajudando no que pode. Minha mãe
foi junto, deixando-me sozinha aqui.
— Sinto muito.
— Eu também. Queria que eu tivesse nascido nos dias de hoje. Ninguém
passa mais fome, e ninguém pensa mais em voltar ao que era antes.
— Ainda assim, falta muita coisa. Vocês ainda são bem pobres.
— Se somos, não vai ser pra sempre. Desde criança eu vi tudo melhorar, e a
cada novo voluntário se juntando nos planos e nos trabalhos facilita a vida de
todos. Não estou atrás de coisas fáceis — ela disse, fixando os olhos nos
meus. — Fazendo as coisas juntos, com amigos, com amores, o sacrifício
vale a pena.
— É... talvez seja verdade — eu disse, perdendo-me em memórias do meu
próprio passado.
— Talvez? Hm... E no seu lado, como foi crescer por lá?
Engoli em seco, atordoado por meu coração partido desde a infância. Elisa
me permitiu o silêncio, acompanhou meu rosto enquanto eu me decidia se lhe
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contaria ou não sobre partes do meu passado. Ela pôs a mão grande sobre a
minha coxa, pousando sua palma delicadamente com os dedos. Eu não resisti.

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11 - Elisa

Sentada com Ícaro no Monte Vermelho, ouvindo o som de pássaros entre as


árvores, o ruído do vento varrendo as folhas ao chão e os nossos cabelos, eu
me sentia de coração aberto. Sua presença comigo naquela metade do dia, a
noite que passamos juntos, cada um no seu lado do colchão, mas juntos, tudo
isso me reconfortava. Ele tinha conseguido me tirar dos trilhos. Eu quis que
isso acontecesse, e naquela hora o que eu mais desejava era ouvi-lo.
Sozinhos, unidos pela experiência em comum da colheita matinal, creio que
ambos crescemos na visão um do outro.
— Eu... Bem, acho que pra você eu não deveria ter vergonha de contar
essas coisas. Quase não comento sobre o meu passado porque, pra falar a
verdade, hm... Ainda mais pra alguém como você... Não tenho muito o que
dizer. — Ele me ofereceu os olhos desarmados, as sobrancelhas arqueadas, os
lábios apertados.
— Todos têm o que contar. Eu quero ouvir. — Apertei mais uma vez minha
mão sobre sua coxa, abaixando o rosto para deixá-lo mais à vontade sem o
peso do meu olhar.
— Certo, então vamos ver. O caso mais emocionante da minha infância, e
frustrante também, vamos dizer assim, foi o meu primeiro amor.
Ele suspendeu a fala na última palavra, como se esperasse minha reação.
Balancei a cabeça, varrendo o chão com minhas pupilas vivazes, meu ouvido
atento ao que ele tinha para dizer. Um frio subiu pela minha espinha, uma
constatação de que eu o tinha ali comigo de verdade, Ícaro sem a máscara, a
verdade total.
— Foi com a filha de uma das empregadas dos meus pais. É, pois é, achei
que nunca fosse contar essa história, porque fui tão recriminado na época que
até hoje tenho medo de passar vergonha. Mas foi o que aconteceu, e foi a
única dificuldade da minha vida.
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— O que ela tinha que te marcou tanto assim?


— Ela era... Normal. Uma pessoa normal, uma menina que me tratava
como um semelhante. Sem medo, quero dizer.
— Só isso já basta pra ter o seu amor?
— Ah, calma, você precisa entender como funciona a vida de um bilionário.
Meu pai é um homem muito poderoso lá do nosso lado, e eu, sendo filho
dele, sempre fui tratado como um príncipe, ainda mais quando novinho. Os
empregados se curvavam diante de mim, e mesmo os outros adolescentes me
olhavam com reverência. Eu não sabia o que era alguém dizer não.
— E essa moça, ela disse não pra você?
— De certa forma. Ela conversava comigo, brincava comigo. Aparecia lá
em casa porque sua mãe não tinha com quem deixá-la, e minha mãe aceitava
contanto que a menina ajudasse nas tarefas e não quebrasse nada. Foi um laço
criado a partir da convivência, e ela era muito esperta. Sabia ignorar muito
bem a diferença entre nossas condições. Com ela, eu experimentei o primeiro
beijo.
— Foi bom? — eu disse, virando os joelhos para o lado dele, apoiando os
cotovelos sobre as coxas e o queixo sobre as palmas, encarando Ícaro com
um sorriso.
— Foi, claro que foi. Eu tava apaixonado, Elisa, e ela também, então, bem...
É muito gostosa essa sensação. Eu gosto, e ela é rara.
— Ela é mesmo. Mas e vocês dois? O amor rendeu frutos?
— Nada. Minha mãe descobriu o que estava rolando entre eu e ela.
Expulsou-a de casa, me proibiu de vê-la, de sequer citar o nome dela. Meu
pai, tentando ser compreensivo com as minhas vontades, me jogou no colo
das milionárias.
— Como? No colo de quem? Desculpa, não entendi.
— Ah, é um jeito de dizer. Ele passou a chamar seus amigos com filhas da
minha idade para irem mais vezes em casa, ou para viajarem conosco. Uma
atrás da outra aparecia na minha vida, e meninas muito bonitas, muito
maduras. Por mais que nenhuma delas me trouxesse aquela sensação gostosa
da paixão que eu tinha sentido antes, eu acabei me deixando levar. Transei
pela primeira vez com uma delas, e desde então nunca mais parei.
— E o primeiro amor, como ficou?
— Pra ser sincero, nunca parei pra pensar muito nisso. Gosto de sentir
prazer, o que de certa forma substitui aquele sentimento. Só voltei a pensar
naquela paixão agora, com você.
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— Também sou filha de empregados, não é? Eu também disse não, também


estou conversando e brincando com você. Sou parecida com ela.
Ele fechou os olhos, mordendo o beiço. — É. Parando pra pensar, é isso
mesmo. Mas sabe, Elisa, eu nunca tive desejos fortes. É uma coisa que eu não
entendo direito, porque eu sempre tive tudo. Era só pedir e estava lá. Acima
da lei, acima dos outros, o que eu quisesse pra mim, eu tinha imediatamente.
Então nunca tive de ficar esperando por nada, criando vontade, essas coisas.
— Pelo visto, esse é um fato do qual você se ressente, não? Olha, e eu
pensava que você só tinha coisas boas pra dizer da sua vida, depois de tanto
reclamar da minha vida aqui.
— Mas é isso mesmo. Eu não me ressinto de nada. Meus pais me deram o
melhor que podiam dar, e foi tudo muito bom. Ainda é muito bom, quero
dizer. Eu só estava explicando como eu lido com o mundo. Afinal, estávamos
falando de amor, e o que eu disse foi que eu não tenho desejos muito fortes.
— Nem por sexo?
— O desejo normal. Eu tô a fim, escolho a mulher que eu quiser, ela
geralmente tá a fim também, e acontece.
— Mas e se você se deparar com uma mulher tão poderosa quanto você? E
se ela quiser negociar também?
— Isso é difícil. Meu pai é um dos únicos bilionários que restou no nosso
lado do mundo, depois da guerra. Os nossos conhecidos não têm tanto
dinheiro, e acredite, há uma diferença enorme entre milhão e bilhão. Acima
de mim, existem poucos.
— Tá, acho que entendi. Mas e os seus amigos do barco? Eles não são tão
ricos quanto você?
— Eles... Bem. Eles são uns fracassados.
Arregalei os olhos, contorcendo a boca. — Por que fracassados? Vocês não
estão juntos nessa viagem?
— Deixa eu te explicar, Elisa, deixa eu te falar a verdade por trás dessa
nossa visita ao seu lado do mundo, até pra tirar o peso da minha consciência.
Todas essas pessoas do barco, todas elas, acabaram de passar alguns meses
num clube de elite na nossa cidade que faz fronteira com o seu lado. Nenhum
deles tem dinheiro próprio, por assim dizer. Vivem às custas da fortuna dos
pais. Só que tá todo o mundo perdendo dinheiro lá fora, com esse monte de
crises que a divisão do mundo causou. Os velhos estão segurando as pontas
com qualquer migalha, e começaram a sentir o peso dos filhos. Mandam
esses jovens para algumas temporadas no clube pra ver se diminuem um
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pouco a gastação.
— Isso, de certa forma, eu até consigo entender. Meus pais me deixaram
aqui pra cuidar de uma situação emergencial em outro lugar também, e seus
amigos cuidaram de mim aqui na vila, onde a situação estava mais tranquila.
— Pois é, só que um dia alguém deu a ideia de enviarem alguns dos filhos
numa excursão no outro lado do mundo, e cá estamos. Não tem dinheiro pra
se gastar por aqui, tem?
— Não tem, mas poderia ser perigoso, não? Do jeito que vocês falam sobre
nós, não ficaram com medo de que os atacássemos? Somos inimigos, não
somos?
— Claro que ficamos com medo, mas sabemos que existe um equilíbrio
entre as duas partes, e se vocês atacassem, sofreriam uma retaliação.
— Como viu, não atacamos. E se um de vocês não quiser mais voltar para o
outro lado? Isso não seria ruim?
— Olha, desconfio que seja justamente isso que os velhos querem. Menos
um herdeiro. Eu estou aqui como líder da viagem. Na verdade, eles chamam
isso de missão. Fizeram-nos acreditar que estamos aqui pra bagunçar a vida
de vocês, pra sobrecarregar a cidade e fazer vocês desistirem dos seus
valores.
— Bem que eu desconfiava. Tô falando, vocês nos achavam uns burros, e
agiram com tanto exagero que logo percebemos o que estava acontecendo.
— É, pelo visto foi isso mesmo. Mas tá vendo que missão estúpida? Eu
mesmo já não sei mais o que estou fazendo por aqui.
Está comigo. Tá conhecendo a minha vida.
O sol se erguia a pino, caindo suave sobre nós, debaixo da renda natural
trançada com as pequenas folhas do flamboyant. O vento ainda soprava
fresco, mas a pele de Ícaro se umedecia com o óleo da perspiração. Ele suava,
numa conversa que parecia mais difícil para ele do que para mim.
— Eu não deveria ter falado essas coisas. Vão pensar que eu estraguei a
missão. — Ele passou a mão em seu rosto, alisando os cabelos loiros.
— Agradeço por ter contado. Mais pela conversa do que pelas
consequências que ela pode trazer. Afinal, o que vai mudar a partir de agora?
— Eu dei de ombros, levantando uma sobrancelha.
— É verdade. Tudo vai seguir pelo mesmo rumo. Não pense que está a
salvo só porque sabe pra que viemos. No fundo, somos uma força muito
maior do que as nossas intenções.
— O que você quer dizer? — Meu coração palpitou, receosa com a ameaça
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velada.
Ele se levantou do banco, retirando minha mão de sua perna. — Isso você
só vai ver com o tempo. Seu coração talvez seja puro demais pra admitir que
existam pessoas más nesse mundo.
— Eu não acredito em pureza. Nossa sociedade não tem nada a ver com
pureza. — Eu me levantei ao ver que ele pegava a bicicleta e se preparava
para montar nela. — Ei, por que já está indo embora? Tô adorando a
conversa.
— É, eu sei que está adorando. Mas eu não. Você me faz sentir um idiota.
— Ele pôs o pé no pedal e partiu.
— Ícaro, o que houve? Você não é um idiota, eu nunca pensei isso. — Corri
para cima da minha bicicleta e me joguei pela trilha atrás dele. — Ei, me
espera!
— Eu preciso de um tempo, tá bom? — Seu freio chiava com a pressão de
seu aperto, segurando-se para não descer o morro a toda velocidade.
— Mas o que eu disse de errado?
— O problema não é esse! O problema é isso aqui tudo, essa viagem, e... E
você! O problema não é o que você disse. É o que você é!
Meu cabelo esvoaçava e batia em minhas bochechas, roçando no meu
pescoço, irritando meu rosto fechado. — Então para essa bicicleta e me
explica direito o que você pensa! Não vamos conseguir nada se não
conversarmos sobre isso.
Ele parou a bicicleta de imediato, arrancando poeira da trilha à minha
frente. Desviei rapidamente para o lado e apertei o freio ao máximo. Larguei-
a no chão, subi dois passos em direção a Ícaro. Ele me esperava com a
bicicleta inclinada sob a cintura, de pés no chão.
— Elisa, eu te peço pra deixarmos isso de lado. Pelo menos por hoje. Você
não consegue me dar um tempo? — Ele ergueu o peito, abaixando a voz.
— Hoje é o dia em que você veio me acompanhar. Ainda nem almoçamos e
você já quer ficar longe de mim? Eu sou tão insuportável assim? Só me diga
o que eu fiz, vamos lá, porque senão eu fico perdida, eu não consigo en... —
eu tentei dizer, gesticulando com os braços esticados, girando as mãos ao
redor do corpo.
— Eu já disse coisas demais por um dia. Coisas que eu não deveria ter dito.
Você me faz sentir estranho, fraco, não sei. Por um lado, queria mais dessa
sensação, mas por outro, odeio me sentir incapaz. E é assim que me sinto
aqui, nesse lugar de merda.
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Meu queixo caiu, surpresa com suas reviravoltas. — Eu... Eu não... Poxa,
eu não sei o que dizer. Eu só queria te mostrar a minha vida.
— Eu sei. Não é culpa sua. Você é quem você é, e tudo bem assim. Não
quero te mudar.
Abaixei os olhos, enrosquei uma mão na outra em frente ao meu ventre,
envergonhada. Eu tinha ousado querer que ele mudasse, negando-lhe a
liberdade tão cara a todos nós. Apertei os lábios.
— Viu, eu preciso de um tempo pra pensar. Depois a gente se encontra de
novo.
Acenei com a cabeça, virando-me de costas a ele. Tirei a bicicleta do chão.
Esperei que ele passasse na frente, e sem pressa eu caminhei atrás,
carregando a bicicleta. Quando ele sumiu do caminho, pedalei de volta à vila.
Almocei no refeitório com alguns conhecidos. Nenhum de meus amigos se
encontrava por lá naquela hora, pois provavelmente iriam almoçar nos postos
de trabalho com os quais tinham se comprometido. Onde Jones estaria?
Depois que Ícaro me deixou, dizendo que eu era o problema, quis muito um
abraço de Jones. Ele me aguentava, ele me queria por perto.
Dei uma olhada no computador do meu dormitório, e vi que Jones ajudava
no plantio de batatas no Posto da Rocha. Cansada de tanto pedalar de manhã,
procurei um quadriciclo na praça dos veículos, mas estavam todos ocupados.
Aguardei o ônibus passar, por quase meia-hora, e em quinze minutos de
estrada, cheguei para ajudar.
— Bem-vinda ao novo Posto da Rocha — Jones disse ao me ver, erguendo
a mão de dentro do trator elétrico. — Que bom que decidiu se juntar a nós.
— Então essa vai ser a plantação de emergência? — Eu pisei sobre a terra
arada rumo ao trator e subi na traseira do veículo, juntando-me a ele.
— Tudo isso que você tá vendo aqui, e pra lá vamos ter outros legumes. —
Ele abriu os braços e apontou para os lados, para a grande área de terra
pelada, sem mato, com solo revirado e pessoas caminhando com sacos de
mudas e sementes.
— Você acha que vai ser o suficiente?
— Os estudos estimam que sim, mas consideram o consumo dos visitantes
como equivalente ao nosso. Se fizerem festa todos os dias, talvez passemos
da margem.
— Mas pelo menos não vamos ter de racionar.
— Comida não. O problema são as atividades que tivemos de interromper
pra cuidar dessa área. Se pelo menos eles ajudassem...
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— Precisamos dar tempo a eles. E precisamos ficar atentos — eu disse,


balançando com os solavancos do trator.
As máquinas estavam redirecionadas ao Posto da Rocha, numa ação
emergencial de produção de alimentos para mitigar o impacto que os
visitantes teriam em nossa reserva. O trabalho andou num ritmo mais
acelerado do que o habitual, tanto pela mecanização envolvida quanto pelo
fato de plantarmos tudo num esquema de monocultura, ao invés da criação de
ecossistemas integrados. Depois da colheita, a área seria retrabalhada de
forma mais sustentável.
Por uma tarde, concentrada nos esforços junto aos voluntários do Posto da
Rocha, esqueci da minha manhã conturbada com Ícaro. Sentia sua falta, e
ansiava por encontrá-lo novamente para ver se ele estava mais calmo. Mas
Jones, sem conversar muito, envolvido numa sincronia comigo, me ajudou a
acalmar os ânimos.

As nuvens no céu se coloriam com o rosa do sol baixo, pintando o


firmamento com vapor de luzes. Cantos excitados de pássaros e insetos
anunciavam a chegada da noite na mata, o vento fresco marcava a estação.
Por mais que fosse fim de inverno, ainda era inverno. Jones e eu
terminávamos de passar um pano no trator, na garagem da casa de apoio, e
conversávamos com os outros voluntários que se preparavam para voltar ao
centro da vila.
Montei no quadriciclo que Jones tinha usado para ir ao Posto da Rocha, e
juntos partimos para casa. A estrada escura, iluminada pelos pequenos faróis
do nosso veículo, mergulhava meu rosto em escuridão e me deixava a sós. O
motor rosnava em seu ruído suave de eletricidade, um grasnado incessante
que se misturava com rodas espalhando poeira atrás de mim.
Peguei uma muda de roupas no vestiário e fui ao banho. Pensando em Ícaro,
na minha necessidade de diminuir de ritmo, eu tomei uma ducha rápida e
enchi uma das banheiras. Imergi na água gelada, tremendo de frio, despida de
vestimentas mas carregada de pensamentos. Banhei o corpo com uma bucha
ensaboada, levemente esfolando minha pele já limpa desde a ducha, apenas
para impregnar de cheiro e hidratação aquele manto vivo que me cobria.
Recostei a cabeça na louça, apertei os braços sobre meus seios e fechei os
olhos. Lentamente, meu corpo se habituou ao gelado, e minha mente se
derreteu num sorriso bobo.
Fresca e perfumada, fui ao refeitório atrás da janta. No mesmo caminho,
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Ícaro e Penélope se dirigiam para lá também, à minha frente, sem perceberem


minha aproximação. Conversavam despretensiosamente, ele com as mãos nos
bolsos, ela com uma mão na cintura, rebolando com uma saia acima dos
joelhos, de sandália rasteira e cabelos soltos pelas costas. Acelerei o passo
para ficar ao lado deles, mantendo o silêncio para não interromper sua
conversa.
— Olha quem está aqui! — Penélope disse, percebendo-me próxima a
Ícaro. — Boa-noite, Elisa. Bem que o Ícaro disse que você estaria diferente
hoje.
Ícaro virou o rosto em minha direção, encarando-me de cima em baixo,
aguardando minha fala. — Eu pareço diferente? Você acha? — eu disse,
fechando os braços sobre o peito, de ombros tensos.
— Sim, estou vendo algo novo nesse olhar. Uma cara mais esperançosa,
mais solta, uma boca mais relaxada. Pelo visto passar um tempo com o Ícaro
realmente te fez bem, não fez?
— Eu tomei um banho mais demorado hoje... Acho que é por isso que estou
assim agora. — Olhei baixo, escondendo o rosto vermelho, encabulada por
ter Ícaro calado ao meu lado. — Vocês vão jantar também?
— Sim, estamos indo para o restaurante de vocês. Hoje estou com muita
fome, com vontade de ser surpreendida pelo chef daqui.
— Melhor abaixar as expectativas — Ícaro disse, olhando para a frente, em
tom indiferente. — Nem sempre é bom ser surpreendido por aqui.
Na varanda do refeitório, Laura nos viu e agarrou as mãos de Ícaro e eu. Ela
nos puxou para uma mesa que ela tinha posicionado debaixo de uma árvore
nos arredores dali. Oliseu nos aguardava no local, cúmplice da minha amiga,
certamente tendo-a ajudado a mover os móveis para lá. Nós nos servimos e
nos acomodamos à mesa. Antes que começássemos a comer, porém, Laura
viu Jones se aproximando do refeitório e foi lá buscá-lo também. Penélope
abriu lugar para que ele chegasse ao seu lado, e assim se fechou nossa
comunhão.
— É assim que vocês comem também, do outro lado? — Laura disse, de
olhos fixos na carne vegetal que partia com a faca.
— Comemos coisas melhores, se é o que você quer saber. Bem melhores.
— Penélope arregalou os olhos por um segundo, destilando seu
descontentamento prolongando as sílabas.
— Nunca experimentei a comida de vocês, então não tenho como avaliar
isso, mas vocês se reúnem entre amigos para comer? — Laura disse.
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— Claro, o tempo todo. Só que costuma acontecer bastante com a família


também — Oliseu disse, molhando a farinha de mandioca num caldo de
abóbora. — Isso é algo que eu acho estranho daqui, sabe? Cadê as famílias de
vocês?
— Ué, tão por aí — Laura disse, mordendo uma folha de alface. — Meus
pais são mais velhos, então eles preferem ficar com o grupo deles. A Elisa
aqui é minha prima de segundo grau, e conta como família, não conta?
— Acho que estou entendendo. Vocês não são muito apegados ao
parentesco, né? — Oliseu disse.
— Somos apegados ao afeto, meu caro. O importante é ter amigos, sejam
eles pais, tios, avós, primos ou qualquer outra coisa. Se não me dou bem com
um tio, pra que ficar junto? Cada um no seu canto, e que seja feliz! — Laura
sorriu com o garfo em riste, inclinando-se sobre Oliseu para abraçá-lo de
lado, recostando o rosto em seu ombro.
— Ô, se fosse assim no meu lado, o tanto de parentes chatos que eu poderia
ter evitado... — Oliseu apoiou a cabeça sobre os cachos negros de Laura,
apertando as pálpebras num sorriso gostoso.
Penélope sussurrava algo no ouvido de Jones, girando os olhos como se
analisasse todo o rosto negro do homem, partindo a boca com cuidado,
mantendo o tom baixo e meloso. Ele inclinou o ouvido para escutá-la melhor,
atento à sua fala. O que quer que ela lhe dizia, ela o divertia, pois Jones sorria
e balançava o rosto. A mulher se aproximava dele e a cada palavra ela
fechava a distância entre os dois corpos.
Ícaro comia com atenção voltada para a conversa entre Laura e Oliseu,
como se quisesse fazer parte de outra dupla. Mas forçado a repousar ao meu
lado, ele me oferecia pequenos lapsos de curiosidade, virando-se a mim
enquanto eu partia as batatas e os rabanetes do meu prato.
— Conseguiu ter o seu tempo? — Eu falei baixo sem me inclinar sobre ele,
mantendo a postura.
— Sim, foi bom. Conversei com outras pessoas também, e me sinto mais
confiante. Dei bobeira por um momento, só isso. Espero que você não pense
mal de mim por conta disso, porque eu ainda quero te provar do que sou
capaz. — Ele mastigava com lentidão a papa de milho com pedaços de carne
vegetal, com lábio repuxado, aparência de desgosto.
— Eu só vou pensar mal de você se você quiser o meu mal, Ícaro. Fora
disso, você pode ser quem quiser ser.
— E se eu me tornar igual a você? E se ao invés de te ajudar a mudar, eu te
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ajude a ser quem você não quer ser mais? Já pensou nisso?
— Isso não vai acontecer. É impossível duas pessoas serem iguais. E você
não gosta do nosso modo de vida por aqui, então vai sempre querer melhorá-
lo. Isso é bom, acredite. De vez em quando, precisamos de um olhar externo
pra nos tirar da paralisia, não acha?
Ele silenciou a fala, usando a boca para esmagar a comida, processar
nutrientes e se fortalecer. Laura gritou ao ver Glória e Cássio chegando ao
refeitório, saiu correndo para puxá-los a nós. A mesa cresceu, e meu
momento com Ícaro foi interrompido.

Assim que terminamos a janta, lavamos os pratos e arrumamos a mesa.


Penélope levou o prato e os talheres à pia e os deixou lá, recusando-se a
ajudar, já indignada por ter de tirá-los da mesa. Jones lavou a sujeira dela
com a frieza característica de seus momentos de disciplina, com a mesma
paciência que dedicava às crianças. Ela o observou de braços cruzados,
encarada por todos, até por Oliseu, Cássio e Ícaro, os homens que também
vinham do outro lado e que já não faziam caso dos ritos pós-refeição.
Lavaram tudo o que usaram.
Glória nos guiou até a praça à beira-rio, onde nos sentamos em bancos às
margens do grande rio de Água Clara. A conversa fluía bem desde a chegada
dela ao refeitório, e o jeito expansivo e conciliador de Laura conseguiu atrair
mesmo a participação de Ícaro e Jones. Eu os escutei em meu canto,
perturbada com a dificuldade em ter uma paz prolongada com Ícaro. Não
passávamos um dia sem tocarmos em pontos difíceis, e isso criava um peso
dentro de mim que me fazia afundar.
Ver Glória de mãos dadas com Cássio, em tanta harmonia, com tantas
gargalhadas, aquela visão me dava esperança, ao mesmo tempo em que me
enchia de medos por ela. Levantei do banco e toquei em seu ombro.
— Podemos conversar um momento a sós? — Eu sussurrei em seu ouvido,
para que nem Cássio pudesse me ouvir.
Ela acenou para mim e se ergueu do banco. — Vou dar uma volta com Elisa
e já volto, viu? — ela disse aos que estavam por perto.
Caminhamos lado a lado em uma das trilhas da praça, de passos lentos para
que o percurso rendesse. Ela esfregou a palma quente de sua mão pequena e
de unhas avermelhadas em meu ombro, convidando-me a falar.
— Eles estão aqui pra brincar com a gente. Você já percebeu, não? — eu
disse.
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— Sim, e eu estou brincando com eles também, ué. Quer vida melhor? —
Ela olhou para cima, mirando no céu estrelado, na lua minguante que dava as
caras em meio à escuridão.
— Ah, ufa, então você sabe. Fiquei com medo de que você fosse cair nas
conversas deles.
— Elisa, meu bem, que conversas deles? Sabe o que o Cássio conversa
comigo?
— Não.
— Ele me chama de coisas bonitas, ele me faz sentir como eles. Fala em me
levar para conhecer o mundo dele, em me tornar uma pessoa poderosa por lá,
tudo o que eu sempre quis. Então estou aproveitando.
— Mas esse que é o perigo, Glória. Se eles te levarem pra lá, você não vai
ser tratada como eles! Eles usam dinheiro, e nenhum de nós tem riquezas.
— Fale por si. Eu tenho minhas riquezas. E ele me daria uma parte do que
ele tem, tá achando o quê? Cássio é um homem de bem.
— Você tá feliz com ele, né? Mesmo sabendo que ele está só brincando
com você?
— Olha, Elisa, tá, vamos supor que tudo isso aqui seja um grande teatro que
eles montaram para nos enganar, sabe-se lá por quê. Sim, vamos supor.
Ainda assim, eu não posso curtir essa fantasia? É o mais perto que eu já
estive de viver a vida do outro lado, e você sabe como eu sou. Se no final das
contas eu descobrir que ele estava mentindo, fazer o quê? Pelo menos eu
aproveitei um pouco do que eu queria.
— E o seu coração? Como você ficaria depois dessa desilusão?
— Eu ficaria arrasada, passaria dias chorando. Eu sei. Mas, sabe, algo
dentro de mim me diz que eles estão aqui porque querem de verdade, porque
precisam de nós. Senão pra que se dar a esse trabalho? O meu amor, essa
minha paixão incondicional pelo mundo deles, isso pode nos fazer bem, não?
Quem sabe eu não conquiste um coração assim?
— Ai... Eu também acho isso, Glória. Mas e se nós formos muito
inocentes? E se eles forem capazes de maldades que nós nem conseguimos
imaginar, só pra nos verem sofrer?
— Não, eles não... Qual é a graça? Nós não fizemos nada pra eles. Eles são
pessoas boas, Elisa. Quer que eu te mostre?
— Mostre o quê?
— Vem pro meu quarto.
Ela me puxou pela mão e me levou pelo caminho até um dos dormitórios,
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onde ela dormia naqueles tempos, no mesmo prédio em que eu ficava, antes
de ir para o acampamento. Ao acender a luz do cômodo, tomei um susto com
a bagunça. Cama desarrumada e manchada, chão cheio de terra, roupas
largadas por todos os lados, lenços de papel espalhados, e um cheiro de suor
e sexo nauseante.
Antes que eu pudesse comentar algo sobre esse susto, porém, ela me
arrastou para frente de sua penteadeira, abriu a gaveta e retirou um colar de
dentro dela. Um fio de prata longo, um pingente de ouro incrustado com uma
pedrinha brilhante, um diamante.
— Ele me deu esse colar, ele disse que só poderia dar esse presente a um
grande amor. Eles são pessoas boas, Elisa, não falei? Eles também amam.
Suspirei num misto de pena e preocupação. Ela me parecia ingênua,
deixando-se levar por um presente sem valor em nosso mundo, por um gesto
que poderia muito bem ser encenado, numa caricatura perfeita de tudo o que
havia de errado no outro lado. Mas Glória era bela em sua crença no amor,
mergulhando em um sentimento contra o qual eu não tinha o que dizer. Eu
também acreditava.
— Eu quero que você também use esse colar, quero que todas nós
possamos usá-lo. Ele é lindo, não é? — Glória disse, abrindo o fecho da joia
que segurava, envolvendo-a sobre meu pescoço.
— Sim, é bonito. — Meu rosto brilhava mais do que o colar diante do
espelho, meu verdadeiro tesouro, o brilho dos meus olhos, a força da vida que
nenhum metal poderia tomar. Lutei para disfarçar minha indiferença à beleza
do colar, e perdi a briga. — Seu quarto, por outro lado, precisa de uma
faxina, hein. O que houve por aqui? Por que não o limpa?
— Ah, uma hora a gente cuida disso.
Ela tirou o colar de meu pescoço, e me dirigi à porta da saída antes que ela
dissesse algo mais. Ela me acompanhou pelo corredor do dormitório,
seguindo-me até o quarto onde eu dormia antes da chegada de Ícaro. Abri a
porta, acendi a luz, e me deparei com uma bagunça de mesma magnitude do
quarto de Glória. Cama desarrumada, terra por todo o chão, roupas
empilhadas, uma mala aberta com calças e camisetas transbordando pelo
pavimento, água empoçada debaixo da pia.
Será que o Ícaro esperava que alguém fosse cuidar da limpeza para ele? Ele
não sabia que precisava cuidar do próprio lugar onde dormia? Não, eu não
limparia aquela bagunça por ele. Eu dormiria mais uma noite no
acampamento, e ele que se virasse para se acomodar naquela sujeira toda.
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12 - Ícaro

Na praça à beira-rio, depois de jantar, Elisa tinha pedido um momento com


Glória. Tentei ouvir o que ela dizia, na medida em que se afastava do nosso
grupo, mas Laura, Cássio e Oliseu agitavam a conversa, contando com a
participação esporádica de Penélope e Jones.
Cássio dirigia o olhar a Glória, ao longe, caminhando pela trilha, como se
esperasse que ela voltasse. Eu o encarei a fundo, face fixa em sua expressão
de apaixonado, e apertei os lábios quando ele se virou a mim. Ambos
acenamos a cabeça num entendimento mútuo do que se passava em nossos
corações.
Eu desconfiava que ele estivesse se deixando levar por Glória de verdade.
Por mais que tivesse feito graça dela no começo, a intimidade com ela o
havia transformado nos últimos dias. Ele estava apaixonado. No caso dele,
era compreensível, pois no nosso lado do mundo, seus pais o restringiam em
tantas frentes diferentes que ele se via encurralado. Tentava se fazer de durão,
de indiferente, como se tudo estivesse sob controle e ele ainda pudesse se
comportar como um milionário, mas eu conhecia sua verdadeira situação.
Naquele momento, ele deveria ter em mente a ideia de se juntar a Glória na
vila, ao invés de levá-la para o outro lado.
Eu, ao contrário, tinha tudo a perder se caísse numa armadilha como aquela.
Eu tinha uma fortuna própria, não tão volumosa quanto a do meu pai, mas
uma das maiores do país, e a vida se apresentava como uma sequência
interminável de prazeres. Os meus sentimentos por Elisa, se eu os levasse a
sério, seriam a minha ruína. Ela não iria comigo para o outro lado, e se fosse,
como ficaria minha reputação? E eu não conseguiria ficar com ela na vila,
sem comida decente, sem uma casa de verdade, sem ter aonde me divertir
com pessoas do mesmo gosto.
Tive de fugir dela antes do almoço para não correr o risco de fazer alguma
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besteira. Se antes eu me apressava em seduzi-la e gozar de seu corpo, agora


eu receava, pois se me aproximasse dela, temia ficar preso. Sim, porque ela
me oferecia amor, o amor sincero de quem me queria por perto mesmo eu
sendo um inimigo, e um amor assim era a minha fraqueza. Eu não era um
canalha, ou pelo menos não queria ser. Eu só queria aproveitar a vida.
Eu ainda teria um tempo a sós com ela. Pensava mais do que nunca em seus
lábios sobre os meus, em suas carnes apertadas sobre mim. Uma hora ela
cederia a mim e eu a experimentaria, e depois eu partiria com os outros,
depois de sabotar a vila, arruinando-a. Mas naquele momento eu sabia que se
eu a quebrasse, eu me quebraria junto. O meu destino estava selado, e eu o
encarava de frente.
Meus pensamentos me apartaram da conversa cada vez mais desanimada
entre o grupo. Glória e Elisa voltaram do passeio delas, e sua presença serviu
para nos fragmentar.
— Vamos dar uma volta também? — Glória disse, pegando a mão de
Cássio.
Ele acenou com a cabeça, cúmplice do mesmo desejo. Os dois nos deram
boa-noite e partiram rumo ao centro da vila.
— Também quero! — Laura disse, agarrando o braço de Oliseu, puxando-o
para o meio da praça, onde começaram a caminhar em círculos, enquanto ela
gesticulava sob o céu estrelado e lhe perguntava coisas que ele não conseguia
responder.
— Você poderia aproveitar essa chance para me mostrar a creche, que tal?
— Penélope disse, atracando a mão no braço de Jones.
— Não é creche. É o Lar do Crescimento. — Jones disse.
— Nome feio. Prefiro creche. É o lugar das crianças, não é? Então é creche.
Jones revirou os olhos, levantou-se do banco e ergueu a mão para Elisa e
eu, dando-nos boa-noite. Penélope piscou para mim, caminhando no embalo
de seu companheiro, provavelmente cheia de planos para a noite. A missão
funcionava, e até o Jones começava a perder parte da resistência contra nós.
— Se você quiser ir embora também... Eu entendo. — Elisa retorceu os
dedos em suas mãos, olhando baixo de joelhos apertados um no outro. —
Nosso dia hoje foi meio confuso.
— E te deixar sozinha assim? Seus amigos estão ocupados. — Eu cruzei os
braços, de olhos vidrados no rio escuro que fluía à nossa frente.
— Eu não me importo. Tenho muitas coisas pra pensar.
— Precisa de um tempo próprio, assim como eu precisei, não é? Eu te
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entendo.
— Não precisa ser próprio. Pode ser apenas um tempo pra pensar, e pode
ser conversando. Por exemplo, eu estive pensando aqui, qual foi a melhor
sensação que você já sentiu na vida?
— Nossa, que pergunta difícil. — Eu deixei escapar um riso preso, o ar
balançando meus lábios. — Não vai me dizer que pensou nisso por conta de
hoje, vai? Não foi um dia tão bom assim, ou foi?
Ela se encolheu, erguendo as sobrancelhas, de olhar preso ao pavimento. —
Ah, pra mim foi. Por algumas horas, pensei que eu poderia ter feito diferença
na sua vida. Um impacto na vida de um estrangeiro, um estrangeiro que veio
pra cá como inimigo... Essa é uma sensação gostosa.
Balancei a cabeça, estufando o peito sob meus braços cruzados, alargando o
espaço entre as pernas. — Você se contenta com pouco. E sexo? Não é a
melhor sensação?
— É sim, mas é uma sensação comum. Todo o mundo faz, todo o mundo
gosta e se sente bem. Mas fazer um bilionário acordar cedo pra ir colher
alface, isso é raro.
— Hm, entendi a pergunta. Bem... Nesse caso, já que sexo não impressiona,
a melhor sensação que eu já senti foi... Hm.
— O que foi?
— Tem certeza que não vale dizer que é gozar? Já passei dias com várias
mulheres me dando prazer, e foi... Bem, foi memorável. Não consigo pensar
em outra sensação melhor.
— Não tem resposta certa, não precisa se preocupar. Se a melhor sensação
que você já teve na vida foi o orgasmo, então é isso. E a segunda melhor
sensação?
— Ah, essa pergunta é muito difícil, Elisa. Não consigo pensar em nada de
cabeça assim. Com certeza não foi acordar cedo pra te atrapalhar a colher
alfaces.
Ela riu, de rosto virado para mim. Ficou em silêncio, vasculhando meus
olhos com suas pupilas enegrecidas pela dilatação, vibrando com o brilho
longínquo dos postes da praça. Continuamos a conversar, falando sobre os
rios do meu lado do mundo, sobre as praias, as maiores montanhas. Ela
conhecia pouco da nossa geografia, e queria saber mais. Como eu já tinha
viajado para todos os lugares que ela queria saber, tinha muito o que dizer.
Conversamos noite adentro, até que olhei para atrás, e não vi mais Laura e
Oliseu rodeando o centro da praça. Estávamos sozinhos, enegrecidos por uma
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árvore à beira-rio, já de madrugada. Nem vimos o tempo passar, e


mutuamente decidimos encerrar o assunto.
— O sono bateu agora. Vamos dormir? — Elisa disse, após um longo
bocejo.
— Claro. Quer que eu te acompanhe?
Ela fez que sim com a cabeça, levantou-se do banco e me esperou na
caminhada até o acampamento. Eu me despedi dela e fui ao dormitório onde
eu havia me instalado. Ao entrar, um cheiro ruim de suor e terra me assaltou
o olfato, e tão logo acendi a luz, uma repulsa quase me fez voltar ao
acampamento e dormir de novo no módulo apertado de Elisa. Que bagunça!
Ninguém viria arrumar meu quarto? Ajeitar a cama, tirar o pó, dobrar minhas
roupas, limpar a água no chão? Não, era por essas e outras que eu não poderia
mesmo me adaptar àquela vida.

Dormi um sono ruim, permeado por uma sensação de sujeira. Deveria ter
tomado um banho antes de ir para a cama, mas estava com preguiça de cruzar
o dormitório atrás da área dos chuveiros. Tirei a roupa para me desfazer das
amarras, mas nas dobras entre os lençóis, algumas pedrinhas de sujeira
picavam minha pele. Na minha ânsia inicial por bagunçar tudo na vila, no
primeiro dia entrei de sapato sujo no quarto, deitei com ele sobre a cama, e
fiz pouco caso de limpeza. Eu queria dar trabalho a quem fosse limpar o
quarto, e não contava com aquela demora. Que espécie de hotel era aquele
sem serviço de quarto?
O sol lutava para entrar por trás das cortinas fechadas, anunciando uma
manhã clara e refrescante. Alguém bateu à porta, em toques leves que eu ouvi
justamente pela falta de sono. Vesti as calças e uma camiseta, e corri para
abri-la. Torcia para que fosse Elisa, para que ela visse as condições do
ambiente e providenciasse uma solução.
— Ei... Estou vendo que também não conseguiu dormir — Penélope disse,
escancarando a porta para que pudesse entrar em meu quarto.
Fechei a porta atrás dela, cocei o olho e fui à janela para abri-la e deixar o ar
entrar. — Problemas? — eu disse.
— Assim como você. Olha essa bagunça, essa sujeirada toda. Isso são
modos de receber os visitantes?
— É, tá complicado.
— Muito! Vem cá, você precisa ver a situação do meu quarto, você precisa
ver! Isso é inaceitável, é indigno!
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Ela pegou minha mão e me puxou para fora do quarto. Descalço, penteei o
cabelo com as mãos, envergonhado por sair a público com visual tão
descuidado, confiando na liderança de Penélope. Ela batia o pé com força no
chão, estalando a sandália sobre o piso de cerâmica, como se fizesse questão
de acordar todos os que ainda dormiam nos quartos.
Ao abrir sua porta, uma visão pior do que eu esperava se mostrou diante de
mim. Roupas jogadas sobre a penteadeira, malas abertas com sapatos e
acessórios esparramados, lençóis caídos perto da pia, molhados. Um cheiro
de umidade e suor, de perfume velho e maquiagem. Um rastro de lama levava
da porta até a cama, colorindo de marrom a borda do cobre-leito.
— Isso é ultrajante! — ela disse, olhos arregalados e dedo apontado para o
chão. — Revoltante! Eles acham que somos o quê? Porcos? Que podemos
viver num chiqueiro?
— Penélope, se acalme. Vamos conversar com Elisa sobre isso, e vamos
ver a solução que ela vai encontrar.
— Solução? Gente pra limpar, apenas isso! Não é complicado, não precisa
ser inteligente pra saber disso. Já não basta eles não nos disponibilizarem
algum empregado para vir aqui pegar minhas roupas para lavar, também não
têm ninguém à disposição para limpar os quartos?
— É um mundo diferente, você deveria saber.
— Eles aceitaram nos hospedar, não aceitaram? Então que raios de gente é
essa que não cumpre o prometido? Estão querendo nos provocar, não estão?
Estão querendo brincar com a nossa cara, é, é isso sim, ah, mas eles vão ver,
ô se eles vão ver... — Penélope cerrou os punhos e deu um soco no ar.
— Vamos falar com Elisa, tudo bem? Vamos lá, resolver tudo com calma.
— Eu não vou ficar calma coisa nenhuma! Isso aqui é pra tirar dos nervos.
Sabe como eu fui dormir ontem, hein, Ícaro? Sabe como eu fui dormir?
— Como?
— Toda encolhida, morrendo de frio, porque eu não ouso tocar nesses
lençóis, de jeito nenhum. Na minha casa os empregados trocavam tudo da
minha cama todos os dias, e eu até consigo dormir sobre um lençol usado
uma vez, em casos de necessidade, vá lá, e eu sei ser compreensiva, você
sabe muito bem disso, mas olha o estado dessa porcaria! — Ela se abaixou
para recolher um lençol branco jogado no chão, amassado e com partes
escuras.
— Você deixou água da pia cair nele?
— Eu deixei, Ícaro, eu deixei? Eu sou burra, por acaso? Eu não deixei nada,
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pelo amor de Deus. A água simplesmente caiu, e que ideia é essa de ter uma
pia no quarto? Quem em sã consciência faria um projeto desses? O pessoal
daqui é muito idiota, um bando de homens da caverna, sem uma mínima
noção de ordem. Isso não pode ficar assim!
— Sim, vamos lá conversar, tudo bem? — Eu levantei as mãos,
gesticulando para que ela se acalmasse.
— Escuta aqui, Ícaro, escuta aqui! — Ela deu um passo veloz em minha
frente e pôs o dedo em riste sobre o meu nariz. — Você é o chefe dessa
excursão, você é o encarregado de resolver a nossa situação, não é? Então
você vai lá, escuta aqui, tô te falando! Então você vai lá pegar aquela sua
mulher, vai trazer ela aqui, e vai fazer ela limpar tudinho, você entendeu?
Tudinho! Eu quero isso daqui brilhando, entendeu?
Eu segurei sua mão parada diante do meu rosto, apertei seus dedos e a
abaixei com força. Ela resistiu, mas era fraca demais para aguentar minha
pressão. Empurrei-a para trás com um golpe contido, e saí do quarto.
Penélope veio atrás de mim, de lábios contraídos e cenho fechado.
Procurei por Elisa no acampamento, mas ela já tinha saído de seu módulo.
Ela deveria estar no refeitório, isso se já não tivesse saído para algum
trabalho. Seguindo o cheiro da comida, Penélope e eu avistamos a varanda
circular rodeando o prédio cilíndrico da cozinha, e encontramos Elisa
tomando seu café da manhã ao lado de Laura.
— Nós estamos com um problema — eu disse ao chegar perto dela.
— Problema não, um problemão! Situação revoltante, uma... — Penélope
começou a dizer. Pus a mão em sua boca, mantive o contato rígido com sua
pele para que ela se calasse.
— O que foi? — Elisa abaixou o garfo e me encarou com seus olhos de mel
curiosos.
— Venha comigo ao dormitório. Preciso mostrar um negócio.
Ela olhou para Laura, e sua amiga gesticulou para que fosse lá ver a minha
situação. Levei-a ao quarto de Penélope, mostrando-lhe a bagunça em que se
encontrava.
— Todos os nossos quartos estão assim. Quando é que a equipe de limpeza
vai vir aqui? — eu disse, levantando uma palma aberta para Penélope,
controlando-a.
— Ué, a equipe de limpeza já tá aqui. — Elisa sorriu numa puxada
maliciosa de sua bochecha.
— Então por que não limparam nada?
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— Tá, peraí que eu já vou resolver isso pra vocês. Realmente, está faltando
fazer um negócio.
Acenei para ela e cruzei os braços, acompanhando seu deslocamento pelo
corredor do dormitório. Penélope entrou no quarto, deu uma volta, e saiu,
parando ao meu lado no corredor, aguardando a chegada de Elisa.
Ela veio carregando dois baldes com coisas dentro, duas vassouras e dois
panos de chão. Largou-os à nossa frente e nos ofereceu as vassouras.
— Tomem. Agora a equipe de limpeza pode trabalhar — ela disse.
— O que significa isso? — Penélope apertou meu braço e me fritou com os
olhos.
— Quem tá dormindo nesse quarto? — Elisa a encarou com calma,
contendo a vontade de rir. — Você, né? Então ele é responsabilidade sua.
Sujou, lavou. Vai dizer que não sabe nem limpar um quarto?
— Minha querida — Penélope disse, partindo para cima de Elisa. — A
questão aqui não é saber ou não limpar, mas sim saber o seu lugar. Meu lugar
não é limpando quarto não, viu? Nunca fiz, e nunca vou me rebaixar a isso!
— Mas quem é que sujou o quarto? Se você pode sujar, você pode limpar.
Penélope fechou os punhos e mostrou os dentes. Puxei seu braço e a contive
ao meu lado. Seus lábios tremiam em busca de uma resposta malcriada à
provocação de Elisa.
— Tá, você deve estar com vergonha, acho que estou entendendo. Não
precisa ter vergonha. Se não sabe limpar, eu te ensino, olha só, até crianças
conseguem fazer, vem cá. — Elisa pegou uma vassoura e entrou no quarto,
chamando-nos com os dedos. — Essa sujeira grossa do chão você tem que
varrer, então é só balançar a vassoura assim ó, jogando tudo para a saída,
tudo numa mesma direção. Tem uma pazinha dentro de um balde, e uma
sacola também, daí é só você juntar tudo e jogar fora. Fácil, não?
Penélope cruzou os braços, relaxando o rosto. Em silêncio, desafiou Elisa a
continuar, cobrindo a saída da porta.
— Daí depois você enche o balde com água, joga um pouco do produto ali
dentro do pote, uns dois copinhos só, molha um pano e o passa pelo chão.
Pode passar com os pés ou com a vassoura mesmo, envolvendo-a assim, ó,
deixa eu te mostrar. — Elisa apartou Penélope da porta, ignorando o
bloqueio, pegou um pano e nos mostrou como preparar a vassoura para
passar pano no chão. — Esfrega o chão todo desse jeito, porque assim vocês
tiram a água empoçada e essa terra grudada no azulejo. Passa um pouco,
depois molha de novo na água, e repete o mesmo processo. Fácil, não é? Em
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quinze minutos vocês terminam tudinho. O que mais vocês precisam saber?
Meu peito se apertou ao ouvi-la falar diante de nós. Ela estava envolvida
numa performance para fazer graça de nós, e não dava sinais de terminar a
brincadeira. Eu temia que ela falasse sério.
— Ah, essas roupas aqui, né? — Elisa disse, apoiando a vassoura em
Penélope, virando-se para a penteadeira, sobre onde dois longos vestidos
repousavam amassados. — Primeiro de tudo, tem que ver o que você quer
lavar, e o que quer usar de novo. No estado em que estão, não dá pra saber o
que tá bom e o que não tá. Então dobra o que ainda vai usar e... Você sabe
dobrar roupas? Desculpa, é algo muito simples e básico, eu sei, mas é que...
Enfim, eu tive de ensinar até como varrer o chão, né.
Penélope virou o rosto para mim, apertando as sobrancelhas numa ira
profunda.
— Tá, você dobra o que for usar ainda, e guarda ali na mala mesmo. Dobra
do jeito que preferir, eu sei que você consegue. E o que quiser lavar, tem que
levar lá para a lavanderia. É só colocar na máquina e colocar sabão e
amaciante. Se precisar de uma lavagem especial pra algum vestido diferente,
é só falar com o pessoal por lá. Sempre tem alguém disposto a ajudar.
— Elisa, eu gostaria que você levasse esse assunto mais a sério. — Eu me
pus diante dela, à frente de Penélope. — Entenda uma coisa, só uma coisa,
por favor. Nós somos hóspedes aqui. Certo? Não sabemos como funcionam
as coisas por aqui, então não somos nós que temos de cuidar da limpeza. Faz
sentido?
— Não. Vocês são adultos saudáveis. — Ela inflou o beiço de baixo,
balançou a cabeça.
— Eu faço um apelo à solidariedade de vocês então. Vocês poderiam cuidar
da limpeza dos quartos pra nós? Não precisa ser você, pode ser qualquer
pessoa, contanto que fique limpo. Nós não queremos mais dormir nesses
quartos imundos assim.
— Ícaro, eu esperava mais de você. Você se acha tão capaz de decidir sobre
os rumos de outras pessoas, e não consegue nem manter seu quarto limpo. É
isso que é ser chefe? Abrir mão de sua independência, da capacidade de
cuidar de si próprio? Sempre são os outros que têm que fazer tudo pra você,
sempre são os outros que têm que seguir suas ordens, fazer o que você quer?
Você nunca vai ajudar, nunca vai pôr a mão na massa e sentir o drama que os
outros passam também? É isso que é ser chefe? Pra que ser chefe, eu não
entendo? Pra se distanciar da humanidade?
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— Calma, você também pegou pesado, hein. Pessoas como nós não lidam
com essa parte. Pagamos bons salários para outros fazerem isso por nós, e
essas pessoas são felizes assim. Se não fosse por nós, essas pessoas não
teriam nem o que comer, então calma lá, pense bem no que está dizendo.
— Não me interessa o seu lado. Me interessa o aqui e agora. Aqui você não
precisa pagar salário pra ninguém. Ninguém aqui corre o risco de morrer de
fome, por isso ninguém aqui vai se curvar a você. Você me ajuda, e eu te
ajudo, é assim que funciona. Vamos, estou disposta a te ajudar a limpar o
quarto, até porque tá uma imundice, e você me acompanhou ontem durante
uma parte. Mas só se vocês limparem junto comigo.
Penélope sacudiu a cabeça com veemência, virou-se à porta e saiu do
quarto. Voltou logo em seguida, fugindo de alguém que falava pelo corredor.
— É festa no quarto? Epa, quero participar também! — Laura disse,
chegando entre nós com a mão encostada no ombro rígido de Penélope. —
Nossa, que bagunça isso aqui. A festa já acabou?
— Nada, Laurinha. Eles estão reclamando que os quartos estão sujos. —
Elisa abriu os braços e girou em torno de si mesma, apontando para o caos ao
redor.
— E por que não limpam? — O olhar de Laura me deixou desconfortável,
pois era um olhar sincero, de dúvida verdadeira.
— Pergunta pra eles.
— Por que não limpam? — Laura se pôs diante de Penélope e eu, com as
mãos na cintura. — Ah, já sei, é porque não aprenderam a dança, né?
— Ai... Lá vem. — Elisa revirou os olhos e soltou uma risada gostosa,
cobrindo a boca com a mão.
— Vem comigo, o homem primeiro, vem mostrar o rebolado, toma aqui
uma vassoura. — Laura me ofereceu um dos cabos e me puxou para o fundo
do quarto, ao lado da cama. Deu passos numa energia tão contagiante que eu
não resisti e me deixei levar.
Próximo à parede da janela, eu observava a cena com uma indisposição
prestes a se transformar em um sentimento mais conciliador. Penélope e seu
vestido leve, de cabelo preso num laço pronto para se desfazer, ela era a visão
da fragilidade, da delicadeza. Braços cruzados, tensionados por sua irritação,
ela me encarava e me proibia de colaborar com as nossas anfitriãs.
Mas então Laura começou a cantar, balançando o corpo numa ondulação
harmoniosa, cada vassourada liderando uma passada ritmada para a frente e
para atrás, e Elisa começou a bater palmas, improvisando uma harmonia. As
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duas infestaram o ambiente com seus sorrisos e a sensualidade de seus


movimentos, mesmo na mais banal das circunstâncias, tentando limpar um
quarto imundo.
Penélope me vigiava com uma sobrancelha levantada, desconfiada, travada
em seu lugar, sem mover um dedo. Laura encostou sua vassoura na parede,
parou em minha frente, segurou minhas mãos junto ao cabo que eu segurava,
e guiou meus braços no movimento de uma dança. Uma primeira vassourada
no chão, partindo de mim, sob os versos engraçados de uma mulher que
cantava para esquecer da fadiga da atividade.
— Isso aí, agora eu gostei! — Elisa bateu as palmas numa sequência
acelerada, juntou-se ao meu lado e rebolou com canção de Laura, unindo-se
ao coro.
Ela pegou a vassoura recostada na parede, no mesmo momento em que
Laura me deixou a sós com minha vassoura, e se dirigiu a Penélope na porta.
Pegou a mão de minha amiga e tentou arrastá-la para dentro do quarto, para a
penteadeira onde vestidos ocupavam todo o espaço como se uma bomba
tivesse explodido no quarto. Mas Penélope sacudiu a mão e resistiu com
violência, vencendo a pressão.
— Essas roupas não vão se dobrar sozinhas, meu bem, vem comigo fazer
carinho nelas, vem. — Laura interrompeu a cantoria para rebater a teimosia
de Penélope, erguendo as mãos e balançando a cintura como se ainda
dançasse.
Penélope apertou a boca e deixou a porta rumo ao corredor, desaparecendo
de nossa visão. Laura se pôs a observá-la entre as esquadrias, e a
acompanhou com o olhar em sua longa caminhada para fora do dormitório.
Voltou-se a nós, deu de ombros e retomou a cantiga, batendo palmas, a banda
de uma mulher só, alegre e agitada como somente ela conseguia ser.
— Você pode rebolar mais também, ó, assim — Elisa disse à minha frente,
varrendo a poeira do chão com mais velocidade do que eu, jogando o quadril
de um lado ao outro em passadas de perna que faziam ondular seu corpo até
os cabelos.
— Ei, eu sei dançar, beleza? — eu disse. — O problema é que fica difícil
com uma vassoura.
— A vassoura é seu par, pensa nela como a sua companheira. Daí é só tratá-
la com carinho.
Ela brincava comigo, e me fazia rir. Sacudi os pés, apoiei as fibras da
vassoura no chão e a empurrei para a frente, imitando Elisa, unindo-me à
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cadência dos seus passos, transformando aquele momento de chateação num


pequeno intervalo de alegria, surpreendido pelo poder que aquelas duas
tinham de lidar com as partes chatas de suas vidas.
Sem Penélope para me recriminar, a música cantada de Laura me
contagiou. Quando eu menos esperava, uma grossa camada de terra e poeira
se formava rente à parede da porta, o acúmulo de toda a sujeira que eu e Elisa
expulsávamos do chão com nosso gingado. Laura, percebendo a dureza dos
meus quadris, pois eu me esforçava e não conseguia imitar a leveza de Elisa,
ela se colocou atrás de mim, pôs as mãos em minha cintura e me guiou na
ondulação correta, cantando a melodia ao pé do meu ouvido.
Rindo de embaraço, eu olhei para Elisa. Suas bochechas coraram ao ver
Laura colada em mim. Ela desviou sua atenção ao chão, saiu da sala e
retornou com a pá e uma sacola. Laura me deixou em meu próprio ritmo,
pegou um balde vazio, retirou uma mangueirinha de dentro dele e a enroscou
na pia do quarto. Encheu-o com água, jogou dois copinhos de um produto
que estava dentro do outro balde, e molhou um pano. Enquanto ela fazia isso,
eu juntava o resto da poeira sobre a pá de Elisa, e a ajudava a segurar a sacola
para que ela a enchesse com a pá.
Laura me deu o pano molhado, e molhou outro. Elisa o pegou, dobrou-o
sobre as cerdas da sua vassoura, e apontou para a minha. Fiz o mesmo,
envolvendo as cerdas de forma desajeitada, de modo que o pano se soltou
antes de ir ao chão. Elisa se abaixou para pegá-lo, chamou minha atenção, e
observei a forma como ela o colocava. Agarrou-se com mais resistência,
permitindo-me imitá-la na nova fase de limpeza.
Passamos pano na cerâmica do quarto, retirando a caraca marrom da terra
batida, retornando o branco do chão ao seu estado natural. Eu nunca tinha
feito isso na vida. Pano úmido, produtos de limpeza, vassoura... Era coisa de
empregados. Se minha mãe me visse naquele quarto, junto àquelas duas
mulheres, limpando o quarto de uma outra pessoa, mesmo a pior vergonha
que eu conseguisse imaginar não seria o bastante para o que ela sentiria de
mim. Mas que bom que ninguém além de Elisa e Laura me observava, pois
com elas eu podia ser o que eu quisesse.
Limpamos o chão e partimos para as roupas. Cheiramos as peças para ver
quais tinham suor e as separamos para lavar. As limpas, nós as dobramos e as
organizamos dentro das malas. Ajustamos os sapatos num canto, enfileirados,
e arrumamos a cama.
— Pronto, quarto arrumado. E aí, doeu? Morreu? Foi muito difícil? — Elisa
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disse, juntando as duas vassouras, empilhando um balde no outro.


— Foi mais fácil do que eu pensava. Mas com vocês duas, acho que tudo
fica mais fácil. — Eu alisei o cobre-leito de Penélope, tirando uma prega para
que ficasse lisinho.
— Fica mais fácil mesmo — Laura disse. — Elisa e eu sempre arrumamos
os quartos juntas. É mais divertido, e dá pra revezar.
— Estou vendo. Agora vocês poderiam, err... Poderiam me ajudar a arrumar
o meu quarto? A situação lá tá tão ruim quanto aqui estava.
— Certo, vamos lá. Com nós três, rapidinho terminamos tudo. — Elisa me
deu as vassouras e os baldes para segurar. — Vou só levar essas roupas aqui
que são pra lavar, porque aí juntamos com as suas e levamos tudo de uma
vez.
Carregando as vestimentas sujas de Penélope, ela se juntou a minha
procissão rumo ao meu quarto. Varremos, passamos pano, tiramos o pó e
arrumamos a cama. O quarto ficou como novo, tomando-nos pouco tempo.
— Agora tenta se esforçar pra mantê-lo limpo, né. — Elisa bateu um pé no
chão e pôs a mão na cintura, olhando-me com reprovação. — Você é que tem
que manter a ordem aqui, não é verdade, chefão? Comece pelo seu quarto. Se
quiser ajuda, é só auxiliar a manter o meu acampamento limpo também. Aí
sim, eu venho aqui te dar uma mão.
— Tudo bem, eu entendi. Só me mostra depois onde fica o material de
limpeza. Eu consigo dar conta disso aqui sozinho.
— Ótimo, mostro sim. E agora, vamos botar essas roupas pra lavar?
Fomos à lavanderia, onde ela me ensinou a usar a máquina de lavar. Àquela
hora, eu tinha sido rendido por completo às suas vontades, e o que ela
quisesse, eu faria. Não por fraqueza minha, não por dificuldade de mim
impor. Eu poderia falar grosso, bater o pé, ameaçar, eu sabia como fazer tudo
isso. Mas naquela vila todos cuidavam da limpeza, homens e mulheres,
jovens e velhos, e nos olhavam como se fôssemos uns incapazes, uns doentes.
Aquilo pesou sobre mim. Eu não era incapaz, não era mimado, e queria
mostrar o quanto ela pensava errado sobre mim.
— Que tal aproveitar que você entrou no ritmo da nossa sociedade e
arrumar mais coisa pra fazer? Vamos olhar no computador que atividade
podemos fazer juntos, que tal? — Elisa me carregou pela mão até a sala da
lavanderia, onde computadores repousavam sobre mesas de madeira. O calor
de sua mão, aqueles dedos macios, a palma carnuda sobre a minha, levando-
me para viver, aquele calor me derreteu. Sim, eu queria mais atividades ao
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lado dela.

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13 - Elisa

Eu tinha acordado pensando que teria um dia tenso com Ícaro, depois que ele
ficou estranho e quis um tempo de mim. Por mais que tivéssemos conversado
sobre a vida até a madrugada, a situação entre nós ainda precisava de
esclarecimentos. Depois que limpou o próprio quarto, porém, e me ajudou a
cuidar de suas roupas, ele e eu parecíamos ter nos entendido.
— Você vai mesmo comigo? — eu disse, de pé em frente ao computador,
de mãos na cintura. — Eu acho que você deveria ir, mas não quero te obrigar
a nada, você sabe disso.
— Olha, vontade eu não tenho, não tenho mesmo, de fazer seja lá o que
vamos fazer agora. Mas é legal estar com você. No fundo, só isso já vale a
pena. — Ele pôs as mãos nos bolsos e deu de ombros.
— Ótimo! Tá começando a pensar igual a nós. — Dei um tapinha em seu
braço e liderei a marcha até a praça dos transportes, até que tive uma ideia. —
Você tá bem nessas roupas? Nós vamos mexer com terra. Não quer trocar por
algo mais leve não?
— Eu até gostaria, ainda mais que eu é que vou ter que lavar tudo agora,
mas eu não trouxe roupa pra me sujar. Então vai ter de ser assim mesmo.
— Esqueceu que não está no seu lado do mundo? Aqui você não precisa ter
nada. A nossa reserva de roupas fica num prédio aqui perto. Quer dar uma
olhada e escolher alguma coisa?
Ele apertou as sobrancelhas, mantendo as pálpebras abertas. Pelo seu olhar,
vi a dúvida devorá-lo, e por isso peguei sua mão e o puxei para o outro lado,
para o Vestiário. Lá, abri um baú de camisetas e um outro de calças leves, e
lhe as dei para que experimentasse. Ele entrou num provador e se vestiu,
transformando-se num nativo de uma hora para a outra. Não consegui me
segurar e comecei a rir, pegando suas antigas roupas para levá-las a um
armário.
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— Fiquei tão ridículo assim, é? — ele disse, alisando o algodão branco de


sua camiseta.
— Nem um pouco! Tá ótimo assim, amei.
— É que você tá rindo.
— Porque eu adorei te ver desse jeito. Tirou toda a sua cara de estrangeiro,
parece outra pessoa.
— Tá vendo, eu sempre me adapto ao que você propõe. De mim você não
pode reclamar.
— É mesmo, né, Ícaro. Às vezes eu sou muito injusta. Vou fazer o seguinte
então, vou usar o seu blazer pra trabalhar, pode ser? Daí você trabalha com
nossas roupas, e eu trabalho com uma sua. Um pedacinho de cada mundo,
que tal?
— Err... Tem que tomar cuidado, Elisa, é tecido fino isso aí, não dá pra...
— Eu lavo depois, pode ser?
— Tá, assim tá tranquilo. É só não rasgar.
Na praça dos transportes, eu já tinha reservado um quadriciclo antes de
tomar o café da manhã, apesar de que eles não estavam em falta naquele dia.
Montei na direção e aguardei que Ícaro subisse na garupa.
— Posso dirigir? — Ele apontou para o guidão e me olhou com ar
generoso.
— Poder pode, mas... Você sabe o caminho?
— Você me fala por onde ir. Quero experimentar te levar a algum lugar
pelo menos uma vez.
Aceitei sua proposta, afastando-me da direção. Ele montou no quadriciclo e
eu o agarrei pelas costas, erguendo um dedo à frente.
— Sai por ali, e depois...
Ele acelerou fazendo curva, empinando o veículo para o lado. Eu gritei com
o susto, e me apertei com força ao seu corpo quando as rodas voltaram ao
chão. Ícaro riu de mim, levando-nos pelo caminho indicado. O danado fez
aquilo de propósito, e eu temia que o caminho todo fosse cheio de emoção.
E foi mesmo! Ao ver a primeira clareira à beira da estrada, ele jogou o
quadriciclo sobre a relva e nos fez quicar a cada solavanco do terreno.
— O que você tá fazendo? — Eu gritei ao pé do seu ouvido, agarrando-me
a ele com medo de tombar.
— Esses carrinhos aqui servem pra isso! Se não tiver emoção, não tem
graça! Se segura em mim — ele disse, subindo um morrinho e descendo em
curva, retirando mais uma vez o equilíbrio do quadriciclo.
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Voltamos à estrada, seguindo a terra batida debaixo de árvores, passando


por campos cultivados por onde saudamos conhecidos meus. Nós nos
dirigíamos ao Posto Quente, um campo dedicado à plantação de mandioca,
onde apenas eu e Ícaro cuidaríamos da manutenção de uma área.
Antes de estacionar o quadriciclo sob a cobertura da garagem, Ícaro deu
uma volta pela área gramada no entorno da casa do posto, fazendo zigue-
zague para me provocar. Tive de me segurar nele com força, apertando seu
peito ao meu, envolvida num longo abraço que se tornava mais natural a cada
minuto.
— Olha a bateria, hein, para logo o motor, vamos. Depois a gente volta —
eu disse, metendo a mão no guidão, retirando-o do controle.
Entramos na casa para beber água e pegarmos uma cesta. Ícaro entrou na
sala em silêncio, olhando cada canto com atenção. Parecia assustado,
andando na ponta dos dedos. Insetos chiavam do lado de fora, uma árvore
farfalhava no quintal, e meus passos, apenas meus passos, ecoavam na sala.
— Não tem ninguém aqui? — Ele se aproximou de mim, sorrindo, pegando
a cesta de minha mão.
— Hoje não. O campo aqui já está plantado, então nós nos revezamos para
tirar as plantas daninhas. Nessa fase, não precisa de muita gente. Mandioca
leva um tempinho pra cobrir o solo, e se não mantivermos o caminho livre,
perdemos muita produção.
— Se eu não estivesse aqui hoje, você estaria sozinha?
— Hm, não sei. O mais provável é que eu estaria com o Jones em algum
lugar. Eu não fazia nada longe dele.
— Se sente mais independente agora?
— Um pouco mais, sim. — Chegamos na área cultivada, caminhando
debaixo das árvores altas do quintal.
— E tudo por minha causa.
Uma série de canteiros se estendia aos nossos lados, pequenos caules dos
pés de mandioca despontando sobre o solo, circundados por um emaranhado
de outras espécies de hortaliças e ervas. Olhei para Ícaro, balancei a cabeça, e
apertei os lábios.
— Eu sinto que às vezes nós precisamos de um sacode da vida pra
descobrirmos quem somos. Com você, é mais fácil ser quem eu sou — eu
disse.
Seu rosto congelou, seus olhos se perderam num horizonte infinito de
algum pensamento. Eu tirei a cesta de suas mãos e pulei sobre um canteiro.
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No chão, vi uma planta daninha e a retirei, colocando-a na cesta. Ícaro


permaneceu alguns segundos imerso em pensamentos, olhou ao redor, e
suspirou.
— É bom ter um canto sossegado assim, né? Fazia tempo que eu não
experimentava esse silêncio — ele disse.
— Não há lugares silenciosos no outro lado?
— Tem sim, claro. Eu é que deixei de buscá-los. Gosto de gente, você sabe.
— Bem, aqui tem silêncio, e tem gente também. Eu conto como gente, não
conto?
Ele concordou com a cabeça, sorrindo para mim, analisou o chão ao seu
lado e retirou uma planta daninha. Jogou-a na cesta que eu levava, e me
ajudou na tarefa.

Nuvens espessas cobriam o céu, escurecidas pela promessa de chuva. Por


não sentir o sol concentrado em minha pele, esqueci de me proteger do
mormaço. Algumas das piores queimaduras que eu já tive na vida vieram de
um tempo encoberto, pois fui ingênua a ponto de achar desnecessário um
chapéu ou protetor solar. Ficar exposta no campo, sem árvores por perto, me
incomodou a tal ponto que deixei a cesta no chão e fui à casa do posto pegar
um chapéu.
— Já volto, tudo bem? — eu disse a Ícaro, sua pele branca já vermelha por
conta do esforço. — Quer um chapéu também? Eu trago pra você.
— Então traz. De chapéu de palha e blazer você vai ficar uma beleza.
Ele riu de mim, mas era verdade. Por conta das mangas cumpridas do blazer
dele que eu usava, eu protegia meus braços do sol. Estava orgulhosa do meu
visual, feliz também por alegrá-lo. Peguei nossos chapéus na casa e voltei ao
campo. No caminho, porém, parei ao ver Ícaro correndo a toda velocidade em
minha direção, de olhos travados em mim e um sorriso malicioso fixo no
rosto.
— O que foi? Achou algum bicho? — eu disse, esperando ele chegar.
Ícaro chegou em mim, deu-me um tapinha em meu ombro e continuou a
correr. — Peguei! Agora tá com você.
Tive um acesso de risos ao entender, e parti atrás dele na brincadeira de
pega-pega. Corri entre os canteiros do campo, cuidadosa para não pisar nas
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mudas em crescimento. Segurei o chapéu na cabeça para que não caísse com
o vento gelado, e ergui aquele que eu carregava para ele. Alcancei-o, botei o
chapéu em sua cabeça e corri com velocidade para longe dele, circulando a
casa.
Ele me perseguiu, tocou-me na cintura, eu o persegui, encostei em sua
perna, ele me pegou rapidamente numa bobeira que eu dei ao pular um
canteiro, mas revidei e o deixei desnorteado com uma manobra por trás dele.
Sem fôlego pela corrida e pelas risadas, eu deixei que ele me alcançasse e
parei de correr, ofegante. Ajustei o chapéu em sua cabeça, alisei sua camiseta
para tirar algumas marcas de terra.
— Você se sujou. — Seu peito macio e volumoso me despertou para seu
corpo, para a sensação de nosso contato.
— Adivinha quem fez isso. — Ele pegou minha outra mão e virou a palma
para nossa visão.
— Eu? Poxa, não percebi. Mas você fica bonito assim.
— Sujo?
— Com essa camisa. Ela marca mais o seu corpo, e você é forte. Como
consegue isso, se não faz trabalho braçal?
— Eu tenho uma academia em casa e um personal trainer. Malho desde a
adolescência.
— Fez um bom trabalho então. — Mordi o beiço, de bochechas coradas, e
voltei ao campo.
O tempo se aproximava do horário de almoço. Faltava vistoriar uma área
pequena antes de rumarmos de volta à vila para nos alimentarmos. Uma
trovoada se abateu sobre a terra ao longe, e trouxe com seu vento de
tempestade as primeiras gotas de uma chuva gelada. Meu blazer absorveu
pingos grossos, protegendo-me da água. As folhinhas ao redor de meus pés se
curvavam a cada golpe do céu, a terra levantava poeira e seu cheiro gostoso.
— Tá chovendo, Elisa. Vamos embora? — Ícaro disse.
— Preciso terminar aqui primeiro. Depois nós vamos.
— Vamos ficar molhados.
— Água não mata.
Ele permaneceu comigo nos primeiros minutos da chuva. Achei que ela não
fosse à frente, mas me enganei. Molhou-nos num banho contínuo que
engrossava a cada nova rajada de vento.
— Eu vou ficar lá na casa! — Ícaro gritou com as mãos envoltas ao redor
da boca. — Você é doida de ficar aqui nesse tempo.
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— Vai, fica lá que eu já vou daqui a pouco.


Era como se um balde escorresse das nuvens, um rio desabasse dos céus. A
chuva engrossou e cobriu o horizonte de cinza, envolvendo-me em água
abundante e violenta. A terra virava lama sob minhas passadas, cobrindo
minhas galochas, tirando-me o equilíbrio. Minha roupa se agarrou à minha
pele, o blazer ensopado, pesando em meu corpo. Gotas penetravam as ramas
do meu chapéu de palha, deslizando em meu rosto até minha boca e meu
pescoço.
Como se uma cascata caísse sobre minhas costas, dei passos apressados até
a casa do posto, ansiosa para me juntar a Ícaro sob a proteção de um teto
firme. Ele me observava atrás da porta de entrada, pertinho da varanda, de
peito nu, sem camisa. Corri na reta final e escapei da chuva.
— Eu estava certo, não acha? Olha o seu estado agora — ele disse,
ajudando-me a tirar o blazer que ele tinha me emprestado.
— Não achei que fosse chover assim. Os últimos meses foram bem secos.
— Tirei o chapéu e apertei meus cabelos para que perdessem o acúmulo de
água.
— Mas até eu consegui reconhecer a tempestade a caminho. Você tá toda
molhada, mais até do que eu. Tem alguma toalha por aqui pra te ajudar a
secar?
— Talvez tenha, tem que ver nos armários. Mas você nem vai precisar, pelo
visto... — Seu abdômen me atraiu, prendendo o meu olhar longe de seu rosto,
em sua pele molhada e cheia de brilhos, um corpo delineado e belo. Encostei
em sua barriga e tirei os dedos na mesma hora, como se tomasse um choque,
envergonhada por não conseguir me segurar diante dele.
— Eu vou dar uma olhada ali dentro então. Você fica aqui se secando.
Ele entrou, virando-se de costas a mim. Sua calça estava colada às suas
coxas grossas e torneadas, seu bumbum se mostrava através do tecido úmido,
vítima da chuva, e suas costas nuas me guiavam numa linha de músculos que
me fazia imaginar a nudez de suas partes baixas. Lambi os lábios e sorri para
mim mesma, divertindo-me com minha alegria mesmo debaixo de uma
tempestade. Ícaro passou a manhã comigo e me ajudava, e ainda por cima era
um homem de incrível beleza.
Para minha surpresa, ele encontrou uma toalha seca e um par de túnicas. —
Isso daqui é pra vestir?
— Sim, é roupa que cabe em qualquer um. Pra emergências mesmo, igual
hoje.
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— Então toma uma, e eu fico com essa outra. Vamos ficar parecendo
integrantes de um culto.
— Tá, vira de costas pra eu tirar a roupa.
Ele se virou, tirou as calças, e eu própria desobedeci a ordem dada. Dei uma
espiada na nudez de suas pernas, a cueca molhada e transparente, deixando à
mostra a linha de suas nádegas. Um calor tomou conta de meu rosto, o rubor
da excitação e, envergonhada, tirei a blusa e a bermuda, sequei-me com a
toalha e me enfiei debaixo da túnica amarronzada.
— Já acabou? — ele disse, de costas para mim.
Entrei na casa, saudando-o com uma mão em suas costas, e fui atrás de
algum lugar para pendurar as roupas molhadas. Os telhados vibravam com as
pedradas líquidas derramadas do céu, e lá fora mesmo as árvores do quintal
se escondiam atrás do vapor cinza.

As casas dos nossos postos agrícolas contavam com uma infraestrutura de


convivência e de emergência. Roupas de reserva, camas, comida enlatada,
banheiros e energia elétrica, tudo à disposição de seus ocupantes e
monitorado automaticamente.
— Tá com fome? — eu disse, sentando-me numa poltrona da sala de
entrada, ajeitando a saia de minha túnica sob as pernas.
— Um pouco. Mas nós temos de voltar ao refeitório pra comer, não? Não é
assim que as coisas funcionam por aqui? — Ícaro se sentou na poltrona à
minha frente.
— Podemos improvisar por aqui mesmo. A cozinha tem pratos e talheres, e
podemos encontrar várias coisas em conserva ou em lata. Milho, feijão,
cogumelo, cebola, cenoura, tomate, ervilha, vagem, grão-de-bico, peixe, e
acho que é isso. Dá pra montar um prato nutritivo.
— Hm, pode ser. Vamos ter de esperar a chuva passar mesmo, né? Pelo
menos temos algo pra fazer.
Ouvimos um pouco do ruído da chuva, calados, em seus sopros contra as
paredes e as janelas da casa. Um vento forte balançava as árvores e arrancava
folhas, penetrando pela porta da varanda em rajadas úmidas e geladas. Fechei
parcialmente a porta de correr da entrada, e fui à cozinha.
Abri os armários, peguei duas latas grandes de refeições completas, e
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procurei os pratos e talheres. Em uma das gavetas, achei um jogo americano


florado, bonito, e o levei comigo pelas escadas rumo ao terraço. Algumas
mesas redondas com cadeiras ocupavam o espaço junto a redes, iluminadas
pelo brilho opaco do dia tempestuoso. O sol escondido penetrava pelas
paredes envidraçadas do segundo andar, dando luz ao nosso cantinho solitário
e aconchegante.
Arrumei uma mesa com o jogo americano, desci à cozinha para pegar os
talheres, e Ícaro me ajudou a trazer o resto. Abrimos nossas latas,
derramamos a comida nos pratos, e nos sentamos um de frente ao outro,
acompanhados pelas vozes da chuva.
— Essa daqui é a refeição mais diferente da minha vida, Elisa. Mais até do
que as que eu fiz no seu refeitório. — Ícaro remexeu o feijão sobre as
ervilhas, misturando um pouco mais de sua comida.
— É mesmo? Mas até pra mim é raro comer assim. Só em situações de
emergência. Isso aqui não é pra ser gostoso, é pra alimentar. Você se importa
muito assim com comida, é? — Dei minha primeira garfada sem escolher o
que pegar, engolindo uma primeira cebola por pura fome.
— A comida sempre foi um ritual pra mim. Tenho meus próprios chefs,
uma adega, e gosto de ser servido na varanda de casa, com vista para o mar.
Comida boa, refinada, num ambiente sossegado.
— Você sabe preparar alguma coisa do que gosta de comer? Talvez você
poderia me mostrar algum dia. Tenho curiosidade em saber como vocês se
alimentam do outro lado.
— Pra que cozinhar? Nunca precisei.
— Pelo prazer, não? Conhecendo tanto assim de comida fina, aposto que
deve sair coisa boa da sua cozinha.
— Você acha?
— Claro! Quem sabe você não descobre algo que goste de fazer assim?
— Não sei, ainda prefiro que façam pra mim. Ganho mais tempo, e posso
explorar novos sabores sempre que me cansar de alguém. Você adoraria
conhecer alguns restaurantes que temos em nossas melhores cidades. É a
comida transformada em arte, uma experiência que faz valer a vida.
— Bem, a não ser que você traga esses cozinheiros pra cá, dificilmente vou
conhecer isso do qual você fala. Então minha sugestão é você tentar cozinhar
pra mim algum dia.
— Você é folgada, hein? Gosta de me dar trabalho.
— E você não gosta que eu te dê trabalho?
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— Não sei... Hm, não sei.


Conversamos pelo resto do almoço, e Ícaro me contou mais sobre sua vida
de luxo no outro lado ao longo da tarde. A chuva não dava trégua e não
tínhamos para onde ir. Conheci tudo sobre os carros que ele tinha, os barcos,
os helicópteros e seu jatinho, sobre suas casas de praia, de montanha e seus
apartamentos em várias cidades do mundo. Contou-me sobre festas com os
poderosos, sobre as riquezas administradas por ele e seu pai. Um mundo
diferente do meu em todos os aspectos, um mundo que me causava repulsa e
medo. Mas o ouvi com atenção porque ele me fascinava a cada abertura que
se permitia comigo.
Quando ele próprio se cansou de suas histórias, recolhemos os nossos
pratos e os lavamos na cozinha. Nós os secamos com uma toalha, e fomos
conferir nossas roupas penduradas num varal da varanda. Encharcadas como
antes, gotejando diante de uma chuva que não dava trégua, grossa como há
meses não se via.
Acessei um dos computadores da casa para saber de notícias da vila. Como
Ícaro não tinha nada para fazer, sugeri que ele usasse o outro computador,
mesmo que ele não reconhecesse nada do nosso sistema. Entrei no fórum
geral da nossa região, e logo no topo das discussões encontrei um tópico ao
nível da nossa Federação, aberto a todas as comunidades associadas a nós.
As outras comunidades e cidades estavam cientes da presença dos visitantes
do outro lado na nossa vila, e o consenso formado entre as discussões era o
de que eles não deveriam estar entre nós. Não os queriam necessariamente
expulsos, mas consideravam perigosa a concentração deles em tão grande
número num lugar tão pequeno quanto o nosso. Recomendavam que os
dividíssemos e os mandássemos para outras comunidades do entorno, de
modo a diminuir a força deles e reduzir a pressão sobre os nossos estoques.
Já outros recomendavam a expulsão imediata dos visitantes, usando os
dados coletados por nossos espiões no outro lado, dados que confirmavam
aquilo que Ícaro já me dizia. Os visitantes eram herdeiros de impérios falidos,
atolados em dívidas, e vinham para o nosso lado tanto para abusar de nossos
valores e usar nossa reação para nos difamar no outro lado, quanto para livrar
seus pais dos gastos de homens e mulheres acostumados demais a consumos
absurdos.
Eu resolvi participar da discussão e escrevi uma resposta: "Muitos deles
podem se juntar a nós. Talvez nem eles saibam disso, mas creio que eles
próprios desconfiam que seriam mais felizes entre nós. Precisamos dar mais
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tempo a eles, precisamos confiar. Eles podem nos ajudar tanto quanto nós
podemos ajudá-los. Eles podem ser boas pessoas, e nunca saberemos se não
os dermos a chance."
Tão concentrada como eu estava diante do fórum, não percebi que Ícaro lia
a minha tela. Ele tentou disfarçar ao se surpreender com o meu rosto virado a
ele, mas me envergonhei ao saber que ele havia visto minha escrita.
— Eu estou errada? — eu disse, tentando contornar a situação.
— Talvez. Nós somos boas pessoas sim, Elisa, eu não poderia pensar o
contrário. Mas somos capazes de coisas que você nem imagina.
— Então me mostre e me ajude a imaginar.
— Torço pra que isso não aconteça, apesar de me parecer inevitável.

A escuridão do céu se intensificava com a chegada da noite. Nuvens escuras


atormentavam o ar, sacrificando-se em forma de chuva, caindo sobre o
mundo como se morressem sobre o solo. Poderíamos passar a noite ali na
casa, mas o isolamento me preocupava, e não havia certeza sobre o dia de
amanhã. As previsões do fórum indicavam uma temporada de tempestades,
marcando o fim do inverno, orientando-nos a manter atenção ao tempo.
— Nós temos de voltar antes que escureça, Ícaro — eu disse, pegando
minhas roupas molhadas no varal. — Não pude encontrar muitas informações
sobre o pessoal lá na vila, mas parece que estão ocupados resolvendo
problemas causados pela chuva por lá. Precisamos ir lá ajudar.
— Eles não conseguem dar conta por si próprios? Pode ser perigoso
encararmos a estrada nesse tempo. Eu vi camas em um dos quartos. Por que
não ficamos aqui?
Dormir ao seu lado, sozinhos na noite, que tentação. Ele ganhava minha
confiança, ele me criava desejo, vontade de ficar perto, mas ainda vinha do
outro lado, ainda dizia ter segredos. Eu precisava ficar atenta, precisava
manter alguma distância.
— Porque se acontecer algo ruim, estamos sozinhos, e ninguém vai vir
ajudar.
— Não vai acontecer nada de ruim. É só por uma noite — ele disse.
— Ninguém nunca espera por um desastre. Precisamos ir. Vamos nos
molhar, mas vamos chegar antes que escureça por completo. Tem medo da
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água?
Ele retorceu a boca, apertando os olhos. Arrancou sua roupa do varal,
retirou a túnica sem se virar de costas, expondo seu corpo coberto apenas por
uma cueca, e se vestiu diante dos meus olhos. Eu fui ao banheiro me trocar,
incomodada com a umidade ainda marcante de minhas roupas, ciente de que
em alguns minutos haveria tanta água extra em meu corpo que eu não me
incomodaria mais com nada. Dobramos nossas túnicas e as deixamos sobre a
mesa da sala de entrada, reservando-as para uma futura lavagem.
Tirei o quadriciclo da garagem, parei em frente à varanda para que Ícaro
subisse na garupa. Ele quis pegar de mim a direção, como na vinda, mas
impus minha vontade.
— Eu dirijo.
O trajeto precisava de alguém que conhecesse bem a estrada, e não havia
tempo para brincadeiras. Ele se apertou em mim, braços cruzados sobre meu
ventre, polegar levemente encostado embaixo de meu seio, rosto colado em
meu ombro, e acelerei. As rodas arrancavam sulcos de terra e navegavam
pela lama que começava a se assentar, forçando-me a uma velocidade
cautelosa. O veículo era leve e tracionado nas quatro rodas, avançando com
segurança debaixo da água que não cansava de nos castigar.
Poças tomaram conta dos pequenos vales pelos quais passamos. Mergulhei
o quadriciclo na altura das canelas, confiando em sua resiliência. Ícaro e eu,
além de encharcados, ganhamos uma camada de lama, uma lama lavada em
chuva e escorrida, manchando todas as roupas.
Atolamos em uma subida. Forcei o veículo num ritmo moroso, esperando
vencer a terra com paciência, mas não conseguimos avanço. As rodas
giravam no mesmo lugar, sem sinal de melhora. Ícaro saltou da garupa,
enfiou os pés na lama, e empurrou a traseira com os dois braços. Olhei para
atrás e ele espremia os dentes, de lábios abertos, rosto imerso em fúria e
força. Pernas tingidas de marrom e pedra, escorregando para atrás, atoladas
tanto quanto as rodas.
Avançamos. O empurrão de Ícaro nos tirou da lama, um longo empurrão
cobrindo quase metade da ladeira, insistente, feroz, ele sozinho contra a água,
ele contra quinhentos quilos de máquina e mulher. Acelerei e me descolei
dele, parando para esperá-lo. Ele pulou na garupa e me agarrou.
— Vai, vai!
Seu toque em meu peito despertou minha adrenalina, acelerou meus
batimentos e me fez sorrir. Ícaro se sujava por mim, fazia força por mim, se
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mostrava capaz de tudo, um companheiro para todas as horas, falando a


língua de meu mundo, ao mesmo tempo me desafiando, esperando mostras de
que eu também mudava por ele, e o que eu mais queria era isso, era mudar
por ele.
Estacionei o quadriciclo no primeiro prédio da vila que encontramos, uma
casa de ferramentas. Todos as nossas construções eram ligadas por passarelas
cobertas, então circulamos pela varanda até entrarmos no caminho que nos
levaria à lavanderia. Passamos por uma vila deserta, de paisagens tomadas
pela chuva e pela solidão, ninguém ousando brincar com a água, ninguém
tomando banho de chuva.
Na lavanderia, outras pessoas como nós buscavam entregar suas roupas
para a lavagem, tomando emprestado algumas roupas impermeáveis, de
plástico e materiais sintéticos. No trocador, tirei toda a minha roupa, troquei
de calcinha e sutiã, e vesti uma longa capa amarelada, pronta para ajudar
aonde todos corriam para acudir.
— O acampamento desabou! — um conhecido me disse, correndo pelos
corredores, também protegido contra a chuva da cabeça aos pés.
De olhos arregalados, segui esse meu conhecido, esperando pelo pior. Ícaro
ficou para trás, ainda procurando o que vestir, e o desespero me levou para
longe dele. O acampamento desabou? Ele não foi feito para aguentar a
chuva?
Ao chegar à Praça da Lua, aonde as tendas tinham sido montadas, as estacas
que as sustentavam estavam caídas, inclinadas sobre o chão. O tecido do teto
se apoiava sobre os módulos de sono, e suas entradas vazadas deixavam a
água correr por toda a tenda, molhando tudo em seu interior. Alguém tinha
deixado as proteções abertas.
Uma multidão ajudava a tirar os colchões de dentro dos módulos do
acampamento, cobrindo-os com lona plástica para não se molharem no
caminho. Tiravam com cuidado a proteção e os empilhavam nas paredes do
dormitório ao lado, para onde todos se dirigiam.
Eu entrei debaixo da chuva e fui ajudar a salvar o próprio colchão em que
eu dormia. Dentro de minha tenda, acompanhada por outras pessoas, a água
ocupava todo o chão e pingava do teto. Furos na tenda. Ninguém tinha feito
testes? Quem tinha falhado tanto assim na montagem do acampamento?
Laura não tinha prestado atenção em tudo? Ou não esperava uma tempestade
com rajadas de vento tão fortes?
Ajudei a envolver meu colchão em uma das lonas, amarrei uma corda em
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seu entorno, e peguei em um dos seus cantos para carregá-lo até o dormitório
com ajuda de meus companheiros. Gotas pesadas atingiam o plástico e
respingavam sobre nós, molhando o rosto e nossas roupas impermeáveis.
Ficar molhada era a menor das minhas preocupações naquele momento. Eu
só queria saber como eu iria dormir naquela noite.
Retornei para ajudar a carregar mais colchões, resgatando o que havia de
útil dentro do acampamento na escuridão que se abatia sobre a vila. Com os
colchões reunidos e salvos, deram a ideia de os colocarmos em quartos dos
dormitórios e compartilhar do espaço com os visitantes.
— Mas eles talvez não gostem de dividir o quarto — uma pessoa disse.
— Então eles que saiam — Jones disse, seu rosto coberto por gotas do
dilúvio lá de fora.
Jones estava certo. Não havia o que se discutir. Cada pessoa que dormia no
acampamento levou o colchão para o quarto onde dormia antes, até que
chegou a minha vez. Abri a porta do quarto onde eu dormia, empurrei o
colchão para dentro, e encontrei Ícaro sentado na cama, olhando para mim.
Derrubei o colchão no chão, arrastei-o para o canto, afastando-o do caminho
de entrada.
— Eu vou dormir aqui agora. Se não quiser dividir o quarto, coloque o
colchão no corredor e durma lá. Eu preciso de uma boa noite de sono — eu
disse, e me joguei sobre o colchão.

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14 - Ícaro

A água batia no toldo da janela, preenchendo o silêncio do quarto com as


pancadas incessantes das gotas carregadas de tempestade. Deixei uma greta
aberta, para ventilar, e mesmo por ela o vento jorrava sua umidade. Fechei
por completo o vidro, admirando a escuridão barulhenta do lado de fora. O
mundo se acabava e Elisa o tinha enfrentado para salvar seu colchão.
Ela afundou seu rosto no tecido espumado, mantendo as mãos próximas ao
seu cabelo esparramado. Suas pernas se estiravam a partir da curva de seu
bumbum, e o único movimento vinha de seu peito. Ela respirava lentamente,
com os olhos escondidos.
— Você não quer comer alguma coisa antes de dormir? — Sentei-me ao
seu lado, no colchão. Acariciei seus cabelos.
— Não... Eu tô cansada. — Ela resmungou com a boca pressionada contra a
espuma.
— Quer que eu te traga alguma coisa? Você precisa comer.
Ela se revirou sobre o colchão, virando o peito a mim, deitada de costas.
Olhou-me por alguns segundos através de pálpebras sonolentas, uma boca
larga, preguiçosa. Tirei os dedos de seu cabelo, apoiei a mão perto de seu
rosto.
— Você tá certo. Eu tenho que tomar banho direito ainda. Banho de chuva
não conta — ela disse.
— Então vamos. Eu vou com você, eu te ajudo no que precisar.
Ela sorriu, fechou os olhos, espreguiçou-se com os braços esticados acima
da cabeça, os dedinhos do pé enrijecidos, e ergueu a coluna. Eu me levantei,
oferecendo a mão para que ela se apoiasse. Elisa aceitou minha oferta,
apertou minha palma e demorou a largá-la. Saímos do quarto de mãos dadas.
No refeitório, um burburinho agitado tomava conta de todas as discussões.
Mesas se unificavam em longas filas, pessoas comiam de pé, perambulando
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para lá e para cá, trocando de rodas de conversa como se estivessem atrás das
últimas novidades. Elisa abaixou a cabeça e passou por todos sem troca de
olhares, indo direto à mesa com as refeições. Eu a segui, mas mantive o
ouvido atento ao que tantos rostos conhecidos discutiam entre si, os desastres
da chuva partilhados nos mínimos detalhes.
Meus companheiros do barco se misturavam entre os nativos, contando eles
também sobre a chuva que pegaram e que viram cair, fazendo pouco caso de
minha presença. Fiz meu prato junto a Elisa, servindo-me de batatas
gratinadas, queijo, omelete e salada de palmito. Numa mesa escondida,
afastada da multidão, comemos em silêncio. Era impossível conversar sobre
outro assunto que não aquele da tempestade, e minha companheira mantinha
o rosto fechado em relação ao que se falava ao redor. Ela queria dormir,
apenas isso.
Acompanhei-a até o prédio com as salas de banho. Uma estranha fantasia
circundava minha mente, a esperança de receber dela um convite para um
banho juntos na banheira larga que eles tinham em uma das salas. Ao invés
disso, ela pegou uma muda de roupas no vestiário, entrou num banheiro e se
despediu de mim.
— Se quiser, fica livre pra fazer o que quiser. Saindo daqui, eu vou pro
quarto dormir. Eu tenho sono pesado, então não se preocupe se precisar
chegar tarde. É só não pisar em mim.
Mas eu não queria fazer nada além de estar com ela. As memórias do dia
acaloravam meu coração, eu e ela sozinhos no campo, brincando,
conversando, esperando a chuva passar. Silêncio e a voz de Elisa, voz doce e
gentil, amigável como nenhuma outra. Junto a ela, longe de meus
companheiros do barco, eu me esquecia da minha fortuna, eu me esquecia
dos meus modos, das minhas frescuras.
Afastado da fama, da minha imagem perante o mundo, eu era um cara
diferente, um cara... Independente. Eu ainda não sabia como lidar com aquela
sensação, tendo saudades das facilidades da minha vida no outro lado, do
meu poder, da minha influência. Eu nunca teria de lavar os pratos de ninguém
para conquistá-la por lá. Bastava o meu nome.
Deitei-me na cama do quarto, de pés descalços, sem camisa, bermuda de
dormir. Com as mãos atrás da cabeça, encarei o teto à espera de Elisa,
ouvindo a chuva cair e ameaçar destruir o mundo. Um clarão iluminou o
quarto escuro, atravessando a cortina, estourando lá fora. Um estrondo varreu
o ar por todo o dormitório, rugindo num trovão valente, ensurdecedor. O
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susto me tirou do meu estado de relaxamento, agitando meu sangue.


A porta se abriu em silêncio. A silhueta de Elisa entrou num passo esguio,
uma mulher perfumada de camisola. Fechou a porta, entrou para a escuridão
e tateou pelo caminho até chegar ao colchão. Deitou-se de barriga para cima,
pousou as mãos abertas ao lado da cintura. Seu olho brilhava, o reflexo fraco
da janela. Ela estava desperta.
— Elisa? É você? — eu disse, falando para o teto.
— Sim. Te acordei?
— Não, eu estava te esperando.
— Por quê? Eu falei que não precisava se preocupar.
— Eu não tinha mais nada pra fazer. Queria ficar com você.
Silêncio. Clap, clap, clap de chuva, pingos incessantes sobre o toldo.
— Ainda não se cansou de mim? Não precisa de um tempo sozinho, como
ontem?
— Hoje não. Depois da chuva que pegamos, eu me sinto capaz de tudo com
você.
— É bom, não é? Viver em companhia de alguém, fazer as coisas juntos. A
pior coisa é estar sozinha, é ter de resolver as coisas sozinha — ela disse,
falando baixinho, com se para si mesma. — Tem gente que consegue, tem
gente que até prefere. Mas eu tenho medo. Acho que por isso me agarrei
tanto a Jones, sabe? Com ele, eu nunca estava sozinha.
— Eu tinha a impressão de que não havia solidão aqui no seu lado do
mundo. Vocês dividem tudo, resolvem tudo juntos. Você só seria sozinha se
escolhesse, não?
— As pessoas são diferentes aqui também, Ícaro. Algumas preferem ficar a
sós, outras não conseguem evitar. Eu sou dessas. Não sei por quê. Talvez até
saberia, mas é difícil explicar. Você não tem esse medo, né? Digo, de ficar
sozinho?
— E quem não tem? Só que no fundo, enquanto eu tiver dinheiro, eu sei
que não vou ser esquecido. Sempre vai ter alguém querendo estar comigo.
— Isso é reconfortante. Não sabia que dinheiro servia pra isso também.
Mesmo quando for velho, vão ter paciência com você se tiver dinheiro?
— Vão querer o meu dinheiro, por isso vão demonstrar paciência. Ou então
vão tentar me matar, ou me deixar morrer logo, pra ficarem com o dinheiro.
Eu não falei sobre isso como se fosse algo bom.
— Ah, entendi. Então você também tem medo da solidão.
— Sim. As pessoas me ouvem porque eu tenho como comprar o meu
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espaço. Não são como você, que me ouve porque me quer ouvir, mesmo sem
ter o que ganhar com isso.
— Mas eu tenho muito a ganhar com isso.
— Tipo o quê?
— Ué... Uma vida nova.
Uma rajada de vento se chocou contra o vidro, chacoalhando as esquadrias.
Um raio estatelou o céu lá fora, clareando o firmamento, urrando de poder.
Pisquei os olhos em sequência, recuperando-me do susto, assimilando a
conversa com Elisa.
— Você é... Você é uma pessoa especial — eu disse.
— Hm, por que você acha isso?
— Porque você quer mudar.
— Então você também é especial. Também está mudando por mim, não
está?
Sim, eu estava, ainda sem me dar conta das consequências daquela minha
experiência de vida. Eu brincava com ela, eu a arrastava para a desilusão. Por
mais que tentasse ser sincero com ela, minha condição exigia de mim a
sabotagem. A cada pedaço de meu coração que eu dedicava a Elisa, era mais
uma parte de mim que seria dilacerada no fim.
O céu trovejou e o vento rasgou os ares. Fizemos silêncio, cada um em seu
colchão, e dormimos.

Sonhei que o mundo tinha virado uma grande piscina. Esferas d'água
gigantes flutuavam pelo céu, libertas da gravidade assim como eu e os outros.
Eu pulava de bolha em bolha, nadando em seu interior e depois no ar. No
sonho, eu pressentia a presença de Elisa em uma das bolhas, mas não
conseguia encontrá-la.
Acordei por conta própria, assustado. No canto do quarto, Elisa se levantava
e arrumava o cabelo. Foi à pia lavar o rosto, abrindo a torneira com tanto
cuidado a ponto de não fazer barulho. O gotejar incessante da chuva atrás da
janela competia com o derramar suave de água na bacia da pia.
Observei-a do meu travesseiro, vislumbrando seu corpo quente através da
camisola branca. Suas canelas grossas estavam expostas como em todos os
dias, já que ela preferia usar bermudas ao invés de calças, e aquele era apenas
um detalhe de suas pernas bonitas, reveladas na manhã preguiçosa,
portadoras de uma aura própria. Eu desejava aquele calor junto a mim.
Ela se virou a mim e percebeu que eu a observava. — Vamos levantar? —
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ela disse.
— Ainda não... Tá muito cedo. — Eu deitei de lado, encarando-a de frente.
— Você sabe que horas são?
— Se você se levantou, é porque ainda tá cedo.
Ela riu de meu charme e percorreu meu corpo com as pupilas cheias de
brilho. Fixou a atenção em meu peito desnudo, apertou os beiços, encontrou
meus olhos. Ficou calada, esperando que eu agisse.
— Vem cá dormir mais um pouco, vai, deixa eu te mostrar como é bom. —
Eu a persegui de joelhos pelo colchão da cama e a agarrei do lado de fora,
arrastando-a para a cama.
— Mas eu sei dormir mais, eu já acordei tarde várias vezes na vida! — Ela
protestou sem resistir, tombando entre os lençóis, endurecida pela
indisposição.
— Só acredito vendo. — Eu a cobri com meu lençol, abracei seu corpo e
me deitei ao seu lado. — Dorme mais um pouco, dorme comigo.
— Ai, Ícaro... A gente tem que ir. — Debaixo de meu braço, seu ventre se
expandia numa respiração conformada, suas mãos buscavam minha pele em
toques calorosos. As palavras que ela dizia não condiziam com as reações de
seu corpo.
— Só um pouquinho. Dorme só um pouquinho mais.
Fez silêncio, fechou os olhos. Aquecido por seu corpo macio e cheiroso,
minha sonolência me pegou de novo, adormecendo-me com um sorriso
satisfeito no rosto. Quando despertei novamente, Elisa estava entre meus
braços, deitada de lado à minha frente, de conchinha comigo. Apertei-a num
impulso de instinto, buscando seu calor. Dei um beijo em seu pescoço, e me
assustei ao perceber que foi um beijo sincero.
Ela deu um tapinha leve em meu braço estendido sob seu peito. — Vamos?
Assustado com meus sentimentos, alarguei meu abraço. — Sim, agora
vamos. Foi bom, não foi? Dormir é bom.
Levantando-se da cama já com os dedos embolados no lençol, prontos para
dobrá-lo, ela fez que sim com a cabeça, com o rosto corado, as orelhas
vermelhas como sangue. Espreguicei-me, joguei as pernas para o lado e me
ergui. Peguei as outras pontas do lençol para ajudá-la a dobrá-lo, e cobri a
cama com o cobre-leito. Abri a janela para deixar entrar um ar,
impressionado com o cinza do mundo lá fora. A chuva cobria tudo com seu
rio flutuante.
Elisa saiu de camisola pelo corredor do dormitório, nem um pouco
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incomodada. Ela tinha se esquecido de levar uma muda de roupas para o


quarto. Passamos no vestiário para que ela pudesse se trocar, encontrando
pelo caminho pessoas que se agitavam nas primeiras horas de mais um dia de
trabalho sob a chuva, todas vestidas com casacos impermeáveis e chapéus
plásticos amarrados ao queixo.
Famintos, fomos ao refeitório. Pela passarela coberta antes da chegada ao
prédio, ao longe já era possível ver um grupo de pessoas em pé, conversando
entre si num canto afastado da enorme varanda. Pelas roupas, logo
identifiquei meus companheiros de barco, trajados em vestidos longos e
calças pretas de linho.
Antes que eu pegasse um prato para me servir, o olhar inquieto de Penélope
me fisgou para o grupo. Ela levantou um dedo curvo, balançando-o para me
chamar para perto de si. Pedi licença a Elisa, aproximei-me de meus amigos,
afastando-me da área onde os nativos se serviam.
— Por onde você andou? Esqueceu-se de nós? — Penélope disse,
apegando-se ao meu braço.
— Me envolvi na vida da minha escolhida. Não era essa a missão? — Eu
me defendi de prato vazio na mão, de pé, secando a voz para assumir meu
papel central diante deles.
— Ícaro, nós estávamos te procurando desde ontem — Oliseu disse,
mordiscando um pedaço de pamonha. — Com essa chuva, rapaz, com essa
chuva não dá pra ficar mais.
— Algum de vocês se molhou muito ontem? — eu disse.
— Eu! — Marisa disse, uma mulher rechonchuda, de cabelos curtos loiros,
adornada por um chapéu de penas. — Fui colher flores no jardim, e de
repente o mundo desabou sobre mim.
— Eu também me molhei — outra pessoa disse.
— E morreram? Ficaram doentes? — Eu falei alto, apertando as
sobrancelhas.
— Claro que não, mas o que vamos fazer por aqui se continuar desse jeito?
A previsão do tempo fala que vai continuar assim por alguns dias — Oliseu
disse.
— Vamos continuar fazendo o que temos feito desde que chegamos. Tenho
visto alguns de vocês por aí, e me parecem bem entrosados com as pessoas
daqui. Pelo visto, a missão está seguindo bem, então por que interrompê-la
agora? — Apoiei o meu prato vazio numa mesa próxima, abri os braços para
os lados, desafiando-os à discussão.
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— Que missão o quê, Ícaro — Penélope segurou uma de minhas palmas e a


puxou para baixo. — Isso aqui já perdeu a graça. Não dá nem pra sair dos
abrigos com toda essa água, e não temos nada pra fazer. Os quartos estão
sempre sujos, e ninguém aqui se dispõe a limpar para nós.
— Querem desistir? É isso? E voltar pro outro lado, pras suas vidas de
merda? — Eu me arrependi da última palavra, mas mantive o pulso firme.
— Vida de merda é isso aqui, meu bem. — Penélope falou mais alto do que
todos, erguendo a mão para requerer prioridade. — Já ficou tão acostumado
em servir de capacho pro povo daqui que se esqueceu de quem você é em
casa? O Ícaro não é mais o chefe de todos, não é mais o homem implacável
que nós conhecemos?
— Estou cumprindo o objetivo da missão, nada mais. Ao contrário de
vocês, quando eu voltar, não vou ter de ficar preso no clube porque meus pais
têm vergonha de mim. Esse é o momento de vocês mostrarem que servem pra
alguma coisa, e estão querendo fugir por causa da chuva.
— Se você é tão livre assim, se sua vida por lá é tão melhor do que a nossa,
por que então é justamente você que não quer voltar pra lá? — Penélope
falou num tom sinuoso, cheia de malícia.
— Porque eu nunca desisto de um acordo.
Uma mão repousou sobre meu ombro, vinda de trás, repentina. Virei-me
para ver quem era e me deparei com Elisa, seu olhar vago, em direção ao
meio imaginário de nossa roda de conversas. Todos interromperam a
discussão para disfarçar o assunto diante de uma nativa.
— Não vai comer nada, Ícaro? Por que vocês não conversam enquanto
comem? — Elisa disse, partindo os lábios com o rosto mirado no meu.
— Nós já comemos — Penélope disse ao seu lado, cruzando os braços.
— Eu ainda tô comendo. — Oliseu ergueu um pedaço de pamonha.
— Eu já vou, Elisa. Estamos aqui só discutindo a nossa situação em relação
a essa chuva toda. — Eu acariciei seu ombro, empurrando-a levemente para
trás.
Ela firmou o pé no chão, resistindo à minha pressão. — Estão se sentindo
presos, sem poder sair?
— Mais ou menos isso.
— Temos guarda-chuvas, e algumas roupas impermeáveis sobrando no
vestiário. Ninguém vai morrer com um pouco de chuva, não é? — Ela sorriu
para todos, colhendo olhares desconfiados, rostos virados para o chão.
— Não é agradável, por mais que isso ajude. Nós vamos nos molhar, se
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sairmos para a chuva, e é justamente isso que não queremos — eu disse.


— Bem, então fiquem por aqui mesmo. Já foram à biblioteca? Já foram ao
cinema? A Glória já deve ter lhes mostrado isso tudo, não?
— Já mostrou sim, mas não nos impressionou — Penélope disse, repuxando
o lábio.
— Querem alguma sugestão minha? — Elisa disse, encarando Penélope.
— Olha, agradeço a sua gentileza, mas acho que suas atividades não vão
nos interessar. Nosso estilo de vida é que não combina muito num lugar
como esses, ainda mais nesse clima, espero que você entenda. — Penélope
deu de ombros, buscando apoio nos olhares do grupo.
— Bem, vou sugerir mesmo assim, porque vai que vocês estão precisando
de uma forcinha, né? — Elisa manteve o bom humor, enrubescida pela
vergonha de falar em grupo, mas cheia de coragem para defender sua visão
de mundo. — Vocês podem trabalhar com arte nos ateliês, podem ajudar na
cozinha a preparar a refeição, podem fazer um documentário sobre a estadia
de vocês aqui na vila, podem acessar nosso fórum virtual atrás de discussões
legais, podem inclusive ajudar no setor de serviços externos, fazendo
traduções, design, e projetos em geral para o pessoal do outro lado.
— Err... Obrigada, Elisa, é muito gentil de sua parte. Mas, como dizia, não
é bem isso que nos atrai. No momento, até ficar deitada em minha cama
ouvindo a chuva cair me parece melhor do que qualquer uma dessas suas
sugestões — Penélope disse.
— Todos vocês concordam com ela? — Elisa revirou a roda com um olhar
inquisidor, apontando um dedo a sua interlocutora.
O grupo acenou positivamente com a cabeça, dezenas de ricaços de um
mundo regido pelo dinheiro, recusando-se a participar do modo de vida
estrangeiro. Elisa constatou a má vontade geral em relação às suas propostas,
e deu de ombros. — Se é assim, então fiquem livres pra encontrar o que fazer
por aí. Você também não quer fazer nada, Ícaro?
Olhei ao redor, sentindo o peso de meus companheiros. Esperavam minha
resposta como se dela dependesse a integridade total de nosso grupo, o porta-
voz e líder sepultando de vez as esperanças tolas daquela pobretona. Fixei-me
em Elisa para respondê-la, e meu coração falou mais alto.
— Esse setor de serviços externos... Como ele funciona? Talvez eu possa
ajudar em alguma coisa. Falo inglês bem, e tenho um bom francês e italiano.
Se precisarem de ajuda em traduções, quem sabe eu possa oferecer alguma
coisa?
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Seus olhos se acenderam num brilho de fogo, fogo interno, de peito


apaixonado. — Ótimo! Vem comigo que eu vou te mostrar. — Ela pegou
minha mão e me puxou para longe do grupo. Parou, virou-se para trás. —
Alguém mais quer vir com a gente? — Ninguém lhe respondeu. Fecharam-se
para ela, deram-lhe as costas. Elisa continuou, sem se abalar, e parou de
novo. — Espere aí, você ainda nem comeu! Vamos, comece a se servir.
— Calma, Elisa, não precisa me dar ordens. Não precisa me dizer que estou
com fome — eu disse, rindo de seu rosto envergonhado, pegando um prato
limpo em direção à mesa com o café da manhã.
— Desculpa, você tá certo. É que eu acho que você vai adorar o setor de
serviços externos.
— Quero ver como é. Por que ele se chama de serviços externos? Por que
não internos? É para outro lugar? — Peguei fatias de pão e frutas, escolhendo
alguns cereais como acompanhamento.
— São trabalhos que realizamos para clientes do outro lado. O dinheiro que
conseguimos, usamos pra manter nossos agentes no seu lado do mundo. É a
única ocasião em que ouvimos falar de dinheiro por aqui, mas nada vem para
o nosso lado, já que não teria utilidade. — Elisa se sentou em minha frente,
numa mesa, apoiando o queixo com as duas mãos.
— Estou surpreso com isso. — Mordi um primeiro pedaço de pão. — Achei
que vocês detestassem a noção de trabalhar seguindo as regras do mercado,
mas é isso que estão fazendo assim. Seus clientes desse setor têm
necessidades, e os contratam, provavelmente pagando menos do que
pagariam para alguém do meu lado, senão por que eles arriscariam fazer
negócios com vocês?
— Não vou dizer que você tá errado, porque é verdade, mas é por isso que
temos nossos agentes por lá. Um dia, o mundo inteiro pode ser como nós, e
daí não precisaremos mais manter espiões. O que nos deixa seguros quanto a
isso é que não se tratam de atividades primárias, tipo comida e energia. É um
bônus. E temos pessoas muito capacitadas pros tipos de trabalho que pedem
de nós, provavelmente mais do que o pessoal do seu lado.
— Duvido. As melhores universidades do mundo estão no nosso lado, os
melhores centros de pesquisa, as melhores empresas. Vocês podem até
quebrar um galho em algumas coisas, mas não podem clamar por excelência.
— Acho que você se esqueceu que no nosso lado nós não temos
universidades, nem centros de pesquisa, nem empresas. — Elisa levantou
uma sobrancelha, sorrindo maliciosamente. — Por aqui, tudo é uma
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universidade, tudo é um centro de pesquisa. Cada casa, cada oficina, cada


campo cultivado. E todos nós somos potenciais cientistas.
— Acredito que esse seja o problema do seu lado do mundo. Acham que
todos podem ser o que quiserem ser. Ao invés de focarem nos mais capazes,
para conseguir o melhor deles, resolvem apostar em todos e ficam sempre na
média.
— Já vi que você está fechado em relação a isso. Lá no setor dos serviços
externos, quem sabe você comece a reconsiderar esse pensamento.
Terminei de comer sem dar importância às palavras dela. Uma pessoa que
nunca tinha visto o meu mundo, que mal sabia como vivíamos por lá, uma
pessoa dessas não poderia falar sobre as diferenças entre um lugar e o outro.

Elisa me guiou até o prédio de serviços. Uma casa larga, com um pátio
interno generoso, onde crescia um ipê tímido sob a chuva que despencava
sobre suas folhas. As portas ficavam nas bordas do pátio, cada cômodo
designado com uma placa. Procurei a sala das traduções, encontrei-a, e entrei
com Elisa.
Uma senhora de cabelos brancos me cumprimentou, uma mulher de pele
negra como a noite, um par de óculos vermelhos e bata colorida com padrões
geométricos.
— Ora, se não é o grande Ícaro Zanotelli, finalmente aqui comigo — ela
disse, abrindo os braços para me abraçar.
— Ele veio aqui te ajudar um pouco, Maya — Elisa disse, juntando-se ao
nosso abraço. — Ele fala inglês, francês e italiano, não é? — Ela olhou para
mim, balançando a cabeça, esperando confirmação.
— É, eu já morei um tempo fora, e viajo sempre que posso. Se houver algo
que eu possa fazer por aqui... — Eu pus as mãos no bolso, erguendo o peito,
olhando ao redor da sala. Quatro computadores, vasos de plantas em móveis
nas paredes, quadros pendurados, um balcão com biscoitos e frutas.
— Eu sei, eu sei muito bem quantas línguas o Ícaro fala. Sei muito sobre
ele, pode ficar tranquila, Elisa. — Maya apertou meu braço, sorrindo para
nós.
— Ah, então ótimo, creio que vocês vão ficar bem por aqui então, né?
Ícaro, você vai gostar da Maya. Ela já morou um tempo do outro lado e
conhece muita coisa sobre o seu mundo. Vocês vão ter muitos assuntos em
comum. Fique aqui com ela, e de noite nós nos vemos, tudo bem? — Elisa se
pôs novamente à porta, apoiando a mão na maçaneta.
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— Você vai embora? Nessa chuva? — Eu me assustei com a partida de


Elisa, confinado num quarto com uma pessoa estranha que dizia me
conhecer.
— Tenho que ajudar a cuidar de umas obras em andamento. Com a
tempestade, talvez algumas coisas tenham se estragado. Vou passar o dia com
saudades, mas assim que é bom, não é? — Ela segurou minha mão, deu-me
um aperto suave, e partiu.
Maya observou meu silêncio após a saída de Elisa, inclinando o rosto para
me analisar. Sentou-se na cadeira atrás de si, desligando a tela de seu
computador.
— Como anda o seu pai, o Sr. Augusto Zanotelli? O que eu sei é que
acabou de comprar a Armature, o que vai render um domínio quase completo
no que restou do mercado europeu. Mas emocionalmente, como ele está? —
Maya cruzou as pernas, apoiando os braços no encosto da cadeira.
— Está bem, como sempre. Você se interessa por esse tipo de coisas? —
Sentei-me no assento ao lado, diante da tela desligada de um outro
computador.
— Garoto, eu sou toda sentimentos. A coisa que eu mais fiz no outro lado
foi chorar.
— E mesmo assim ficou por lá. Quanto tempo esteve entre nós?
— Ah, muitos anos, quase uma década. Viajei para tudo quanto é lugar,
conheci o mundo todo. Vi coisas tristes, miseráveis, mas também muita coisa
boa, não vou mentir.
— Você trabalhava em quê?
— Na articulação das nossas redes de apoio. Aos pouquinhos, estamos nos
infiltrando no seu mundo, novamente.
— E quebrando a trégua?
— Nunca houve trégua. Só um equilíbrio de forças, mas assim como vocês
tentam nos sabotar sempre, nós fazemos o mesmo com vocês. Não é à-toa
que o seu mundo está na crise que está. — Maya sorriu com as mãos
apertadas em frente à boca, como se rezasse.
— É, não vou negar que temos problemas. Mas nosso modo de vida vai
aguentar as turbulências, você vai ver. Se conversasse com meu pai, veria o
seu otimismo, e não conseguiria se manter cética. Ele nunca esteve tão
próximo de dominar o mundo.
— Ainda falta muito, rapaz. Ele nem é o homem mais rico do seu mundo.
— Está a caminho de se tornar. — Arranhei a madeira da mesa, retirando
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meu olhar dos óculos de Maya.


— Talvez. Não vou dizer que torço por ele, porque não torço, mas fico feliz
de ter seu filho ilustre aqui comigo. E pode me dizer o que Elisa fez de tão
especial para convencê-lo a nos ajudar? Onde já se viu um bilionário
trabalhando? — Ela riu, encurvando-se sobre a mesa, de mão no peito.
— Vocês aqui têm essa noção esquisita de que não trabalhamos. Como acha
que conduzimos nossas empresas? Sem nossas decisões, nada acontece.
— É o que acha. Veja aqui o quanto fazemos, e veja aqui se precisamos de
bilionários. A propósito, você ainda não me respondeu a pergunta. O que
Elisa fez?
— Ela foi gentil, apenas isso. Não sou um cafajeste, como talvez você
pense. Quis retribuir a gentileza.
— E é bom isso, né? É bom ser gentil. Olha como formamos laços assim,
como nos entendemos melhor. Ela está fazendo um bom trabalho com você,
estou percebendo. E você nunca se relacionou com alguém do tipo dela, não é
verdade? Pelo que sei das suas companhias, pelo tanto de notícias que
publicavam de você naqueles jornais horrorosos do outro lado, seu tipo de
mulher é bem específico.
— Ah é, e qual seria esse tipo?
— Mulheres ricas e belas.
— Elisa é bonita.
— Mas não é rica. E nem fica excitada só de ouvir seu nome, nem sonha
com sua fortuna, nem se interessa por seus antepassados. Não treme diante do
seu poder, porque aqui você não tem poder. É apenas um homem, como
todos os outros. Aqui você é você. — Maya arregalou os olhos, curvando-se
em minha direção, mostrando os dentes num sorriso cínico.
Pigarreei, pus a mão fechada na boca e olhei para o lado. — Err... Tudo
bem, eu já entendi. Mas eu vim aqui para ajudar nesse serviço de vocês. O
que você sabe fazer?
— Eu traduzo textos. Falo dez idiomas e tenho ajudado a aperfeiçoar o
nosso assistente virtual de traduções. Nossa federação conseguiu reunir um
bom time para pesquisar novas aplicações para a inteligência artificial nessa
área. Se quiser experimentar nosso protótipo mais novo, ele está disponível
pelo computador. Quer traduzir de que língua? Temos muita demanda pelo
inglês para o francês. Acha que dá conta?
— Acho que sim. São textos de quê? Livros?
— Artigos científicos. Fazemos as traduções para uma universidade
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francesa, e depois as distribuímos para sites piratas às escondidas.


— No caso de artigos, bem, eu preciso ver alguns exemplos primeiro. Não é
algo que eu leia com frequência.
— Eu estou aqui pra te ajudar. Vamos lá, quer dar uma olhada comigo?
Maya e eu vasculhamos a lista de artigos disponíveis para tradução, uma
fila enorme de documentos compartilhada por vários centros de serviço ao
redor da federação da qual fazia parte a vila de Elisa. Escolhi um texto
pequeno, inseri-o no protótipo de tradutor automático deles, e me
impressionei com o resultado. A não ser por alguns pontos de gramática e
ortografia, as palavras se encaixavam perfeitamente no contexto, mesmo as
de cunho técnico. Meu papel me parecia mais o de revisor do que de tradutor.
Almocei em companhia de Maya. Ela se mostrou uma boa companheira,
tendo histórias de sobra para me contar de suas aventuras no meu mundo.
Esteve com políticos, com empresários, com sindicalistas, com todas as
esferas de poder, e se mostrou uma pessoa de inteligência muito aguçada.
Na saída do refeitório, Oliseu e Alice me encontraram em uma passarela e
pediram um momento comigo. Falei com Maya para que fosse à frente.
Encontramos um canto afastado para conversar, onde meu amigo me
confidenciou um receio.
— Isso tá entrando demais na sua cabeça, Ícaro — ele disse. —
Trabalhando pra eles? Nós não viemos aqui pra executar tarefas pra eles,
lembra? Temos de montar em cima, abusar, e não ajudar. O que aconteceu?
— Se quisermos que eles confiem em nós, não tem outro jeito. — Eu cruzei
os braços, evitando me fixar em seus olhos.
— Claro que tem! Você tá fazendo um papel de ridículo. Perdeu a
confiança do grupo. É, isso mesmo, não me olhe com essa cara agora.
Ninguém mais te leva a sério. Se quiser recuperar a autoridade sobre nós, vai
ter que fazer por onde, vai ter que mostrar do que é capaz.
— E não ser capacho desses miseráveis, seguindo ordens igual a um
cachorrinho — Alice disse, cercando-me com os braços. — Você é o chefe
ou não é?
— Eu sou o chefe. Eu ainda sou. Vocês não são nada perto de mim,
ouviram? — Eu apertei o maxilar, inclinando-me para a frente com os punhos
fechados.
— Não é o que me parece. Trabalhando assim, parece até um empregado
qualquer — Alice disse.
— É, cara, tem que ter mais dignidade. Você tá se deixando levar por uma
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mulher. Pensa na sua vida lá do outro lado. Você não era assim — Oliseu
disse.
Eles tinham razão. Quando eu cheguei à vila, de barco, eu encarava a minha
estadia como uma diversão barata. Pegar uma mulher, sabotar os idiotas, e
voltar para casa rindo da miséria alheia. Mas ao começar a viver com Elisa,
fui arrastado ao seu mundo.
— Tudo bem. — Eu respirei fundo e pus as mãos em seus ombros. — Eu
vou acertar tudo, vocês vão ver.
Eles apertaram os lábios e assentiram à minha promessa, liberando-me ao
meu caminho. Desisti de voltar a Maya. As traduções eram muito chatas, e eu
não teria nada a ganhar com aquilo. Elisa tinha me contaminado com o germe
da inquietude, porém, e eu queria usar minha capacidade para trabalhar em
algo. Tive uma ideia, e fui à cozinha ver se ela poderia render frutos.

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15 - Elisa

Um barranco desabou sobre a caixa d'água da usina de Campo Aberto.


Liliane nos enviou o aviso, estando ela lá quando ouviu o estrondo. Jones, eu
e Tobias chegamos ao local logo ao atendermos sua ligação. Pegamos um
buggy coberto na Praça dos veículos e partimos para lá.
Pela estrada lameada, rios corriam ao longo das caneletas, inundando vales
e derramando terra. No acostamento, galhos de árvores tombaram com as
rajadas de vento, um deles impedindo metade da pista. O vento jorrava água
dentro do nosso veículo, e em meu casaco impermeável, eu pouco me
importava com a água. A adrenalina acelerava meu coração, enchia meu
corpo de energia.
A usina solar estava segura, assentada em um terreno cuja drenagem havia
passado por meses de testes. O que se via ao longe era um barranco derretido
sobre a torre da caixa d'água. Seu cano partido vazava a água coletada de um
córrego próximo, inundando o chão com uma poça ainda maior do que a da
própria chuva.
— Foi tudo muito rápido! Nem eu nem o Marcos acreditávamos que algum
barranco ia ceder. — Liliane nos recebeu com os olhos arregalados, agitada,
pondo o dedo na boca e nos cabelos. — Ele tá na casa da mata, ele foi a pé.
Vocês têm que ir lá ver se está tudo bem com ele, por favor.
— Claro, Lili, fica calma agora, tá bom? — Eu envolvi suas costas com um
braço, levando-a para um sofá na sala da casa de apoio da usina. — Primeiro
nós vamos dar uma olhada nesse cano vazando, e depois vamos lá até ele.
— Mas ele tá bem, a casa da mata é ainda mais segura do que aqui. —
Jones pegou uma pá do quarto de ferramentas, e voltou à varanda.
Tobias esfregou as mãos, preparando-se para a ação, e sorriu confiante para
Liliane. Saímos os três debaixo da chuva, atravessando o campo de painéis
fotovoltaicos inutilizados pela chuva espessa, analisando o deslizamento à
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nossa frente. O morro era afastado da torre da caixa d'água, e a lama chegou
apenas ao seu pé. Ainda assim, parecia ter sido forte o bastante para
desequilibrar a pilastra e tombá-la ao chão.
A estrutura de concreto se retorceu na queda, partindo-se em duas. A caixa
d'água propriamente dita, composta de uma fibra especial com mescla de
metais e polímeros plásticos, ficou amassada na face do impacto, rachada e
perfurada. No chão, o encanamento que a abastecia jorrava água como uma
nascente. Por algum motivo, a válvula de bloqueio de emergência havia
falhado. Um lago se formava no arredor do vazamento, um lago profundo,
cobrindo nossas galochas por inteiro.
A cicatriz do morro ao nosso lado assustava pela promessa de novos
deslizamentos. O registro manual tinha sido soterrado, e nem mesmo Jones
demonstrava coragem para escavar diante de condições tão perigosas.
— Vamos ter de ir direto no córrego e estancar por lá — eu disse. — É
melhor sair daqui antes que caia mais lama.
— Tá, é melhor mesmo — Jones disse. — No caminho, a gente dá uma
olhada na casa da mata pra ver se acha o Marcos.
A trilha até o córrego se encontrava em melhores condições do que a
própria estrada pela qual viemos. Seu calçamento resistia à chuva incessante,
e os morros ao nosso redor, tão prístinos e cobertos da vegetação de Mata
Atlântica, resistiam intactos ao poder das águas, hidratando-se para manter a
saúde e o verde. Uma rajada de vento nos assustou, derrubando um galho
velho a poucos metros de nós. Aceleramos o passo.
O córrego fluía num corpo duas vezes mais caudaloso do que o normal,
derramando-se sobre as pedras com o marrom barrento da tempestade.
Galhos e folhas se prendiam entre as armadilhas de seu solo, cobras corriam
das gretas inundadas de suas tocas. A estação de coleta sugava aquela água e
a jogava para o cano perfurado da usina. Jones apertou sua válvula e fechou a
entrada. Ele acenou para Tobias e eu, e apontou para a continuação da trilha
pelas margens do córrego.
Entre as copas espessas das árvores, eu tomava menos chuva desde o
princípio da tempestade. Água fluía por todos os lados, molhava todas as
coisas, atormentando-nos em seus córregos, seus pingos, suas poças, e suas
infiltrações. Minha pele a sentia apenas nas mãos e no rosto, e no fundo eu
queria mais. Queria tirar a roupa e me encharcar de chuva, dançar sob ela e
beber de si debaixo de folhas. Desejei Ícaro ali comigo, ele nu ao meu lado,
os dois tomando banho de céu, de nuvens cinzas, de vapor enraivecido, os
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dois correndo na lama e vivendo o mundo como se não houvesse problema


em se molhar demais. Eu sentia sua falta.
Na casa da mata, Marcos tomava chá sentado na varanda. Jones e eu rimos
ao cumprimentá-lo, cientes do que havia se passado.
— A Liliane tá preocupada com você. Viemos aqui te resgatar — eu disse,
esfregando as mãos em meu casaco para escorrer um pouco das gotas.
— Nessa chuva eu vou é ficar aqui. Não quero me molhar. — Ele assoprou
sua xícara e cruzou as pernas.
— Deve ter algum guarda-chuva aqui dentro, ou alguma capa. — Eu entrei
na pequena casa de um cômodo só e um banheiro, procurando os baús na
parede. — Vamos lá, a caixa d'água desabou, e é melhor você voltar pra
central da usina enquanto a tempestade continuar.
— Não vai estiar logo não, é? — Marcos disse.
— A previsão é de mais alguns dias assim.
Sentamo-nos junto a ele e o esperamos terminar seu chá. Lavou os talheres
e se vestiu numa das capas da casa. Seguimos a trilha de volta à usina,
devolvendo um Marcos despreocupado e brincalhão a uma Liliane angustiada
com o barranco esfacelado ao fundo dos painéis solares.
— Eu quero voltar pra vila — Liliane disse, fechando minha visão com seu
rosto tenso, suas duas mãos apertadas sobre as bochechas. — Não quero ficar
aqui. Vocês me levam pra lá?
Encarei Jones com as sobrancelhas erguidas. Nós não tínhamos espaço
extra, tendo vindo num buggy de três pessoas.
— O Tobias leva vocês. Depois ele volta aqui pra nos apanhar. Tudo bem
assim, Tobias? — Eu estalei os dedos para chamá-lo e lhe refiz a pergunta.
Ele concordou com a disposição de sempre, ele que amava carros e nunca
recusava uma chance de pilotar.
Ficamos Jones e eu sozinhos na casa, acompanhados pela chuva. Tiramos a
roupa impermeável, pegamos túnicas de emergência, e nos sentamos nos
sofás, cada um transformando os assentos em uma cama sobre a qual nos
jogamos cansados. A trilha e a tempestade me cansaram, mas eu me sentia
radiante. Assim que voltasse para a vila, eu ficaria com Ícaro, apenas com
ele, e não pensaria mais em trabalho. Afinal, ele também passaria o dia
inteiro envolvido com as traduções, e pensar nele se integrando conosco,
ajudando com suas habilidades, pensar naquilo me deixava excitada.
— Os ventos mais fortes das últimas décadas... Já parou pra pensar nisso?
— Jones disse, de olhos virados ao teto.
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— Hm, essa tempestade? — eu disse, de bochechas coradas, envergonhada


pela interrupção de meus pensamentos em Ícaro.
— Ela mesma, uma das piores de todos os tempos. Ela tá varrendo toda essa
região, e já fizeram comparações. E mesmo assim, olha só, quase nenhum
desastre. Nenhum ferido, nenhuma morte. Acho que nós estamos
conseguindo.
— É verdade. — Tirei o foco dos olhos, perdida no infinito. — Nosso
mundo tá entrando nos eixos.
— Essa prosperidade era o que eles sonhavam no passado, ou quase isso.
Você sente vontade de ter um filho, Lis? Acho que a hora nunca foi tão boa
pra isso quanto agora.
— Engraçado, eu nunca paro pra pensar sobre isso. Mas agora que você
falou, eu... Eu gosto da ideia.
— Você daria uma ótima mãe. Assim que encontrar um cara que se encaixe
no seu modo de ser, experimenta dar uma chance pra essa ideia. Eu adoraria
ajudar a cuidar de um filho seu junto com as outras crianças.
— Eu vou pensar mais nisso. Mas vamos com calma. O momento não é
agora. Deixa a chuva passar primeiro.

Tobias não tardou a reaparecer na usina de Campo Aberto depois que levou
Liliane e Marcos de volta para a vila. Jones e eu permanecemos deitados nos
sofás o tempo todo de sua espera, mantendo um silêncio amigável de duas
pessoas assustadas com a tempestade. O barulho da chuva nos distraía o
bastante com seus golpes fortes no chão, quicando no teto reconfortante de
nosso abrigo.
Quando ele chegou, recolocamos nossas vestes impermeáveis e entramos no
buggy. Tive a impressão de que a chuva perdia um pouco de sua intensidade,
embora ainda banhasse o mundo com a fúria de seus pingos grossos. O céu
escurecia com a proximidade da noite, e não por conta da densidade das
nuvens. O dia chegava ao seu fim, nós três na estrada, tendo de retirar um
galho pesado de árvore que havia caído no meio da estrada asfaltada. Jones,
Tobias e eu o agarramos, cada um em um lado, e o puxamos de volta para o
acostamento, após inúmeras tentativas. Arranhei as costas da mão direita,
aqueci o corpo com o esforço, senti as pernas tremerem.
De volta à vila, Tobias perambulou pela Praça dos Transportes atrás de
mais alguém precisando de carona para algum lugar.
— Ainda temos uns sacos de areia precisando de um abrigo mais seguro lá
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na Estação. Quer ir lá ajudar? — Jones disse, caminhando ao meu lado


debaixo de uma passarela coberta entre dois prédios.
— Ai, hoje não, Jones. Preciso ver outras coisas. — Eu acariciei seu braço,
assegurando-o de minha estima pelo seu convite, já que o jeito
despreocupado e solto com que ele o havia feito me fazia sentir livre para
recusá-lo.
— Tranquilo. Mais tarde a gente se vê de novo então.
Cada um de nós seguiu um caminho à parte, acenando com a palma
erguida. Laura me encontrou no mesmo momento, vindo até mim numa
caminhada exagerada, balançando de um lado para o outro, como se estivesse
cansada a ponto de não se sustentar.
— Diazinho chato esse, hein — ela disse, encostando a testa em meu
ombro, de olhos fechados.
— O que houve, Laura? Trabalhou muito? — Eu a envolvi com os braços,
acariciando seus cachos negros sobre o pescoço.
— Muito, o dia todo. Agora eu quero um banho. Quer dizer, um banho de
verdade, chega de chuva.
— Um banho é uma boa ideia. Acho que vou me lavar também. Peguei
chuva o bastante pra um dia só.
— Ah, então você tá igual a mim. Que tal um ofurô? — Ela se acendeu,
erguendo a cabeça com os olhos fixos, animados, mirados nos meus.
Eu ri de sua empolgação, e por mais que eu quisesse me encontrar com
Ícaro o quanto antes, a ideia de um banho de ofurô viria a calhar. — Ótimo!
Vamos ver se tem algum disponível.
Na grande casa de banhos, conferimos a tabela de usos no computador e
encontramos todos os quartos ocupados. Mas em um deles havia apenas uma
pessoa, uma outra mulher.
— Nós podemos nos juntar a ela. A não ser que ela queira um tempo a sós,
não vai ligar se nos juntarmos. Até porque é desperdício uma banheira grande
daquelas só pra uma pessoa, né. — Laura foi à frente, entrando no corredor
numa marcha engraçada, balançando os braços dobrados com os dedos se
esticando e se comprimindo a cada passo.
Atrás da porta de entrada do quarto escolhido, paramos antes da cortina que
protegia a área de banho dos recém-chegados. Uma voz falou de dentro do
ofurô.
— Tem gente aqui. Eu gostaria de ficar sozinha, se não se importarem.
Era a voz de Glória. Laura meteu a cabeça entre as cortinas. — Menina,
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você tá aí?
— Ah, é você, Laurinha.
— E Elisa também.
— Podem vir vocês duas então. É bom que a gente conversa um pouquinho.
Tirei a roupa e a coloquei dobrada em uma prateleira, entrei na área do
ofurô e tomei uma ducha quente para tirar a casca. Glória estava imersa na
água quente do ofurô até a altura das clavículas, descorando a água com a
alvura de sua pele. Mergulhei na banheira com a ponta do pé, medindo a
temperatura, reconfortada pelo calor quase fervente que me agraciava os
poros.
— Eu estou esgotada... — Glória jogou a cabeça para atrás, fazendo de seu
coque de fios pretos uma almofadinha sobre o concreto.
— Você também, é? — eu disse, assentando-me em meu lugar no ofurô,
massageada por completo pela simples quentura da água.
— Trabalhou muito hoje? — Laura jogou água em seu rosto, fazendo
conchinha com as mãos e derramando o líquido sobre seu pescoço e seus
seios.
Glória se virou levemente para o lado, encarando Laura com os olhos
semicerrados. — Sim, trabalhei muito. Esses visitantes exigem muito de
mim, sabiam? A toda hora eu tenho que mostrar o que eles podem fazer, e
eles reclamam de tudo comigo, de tudo.
— E você faz o quê? Se impõe ou fica fazendo a vontade deles? — eu
disse.
— Faço o que é possível. Mas não tem como parar a chuva. — Glória disse.
— Deixa eles à-toa mesmo. São gente grande, e um pouco de tédio é uma
ótima chance pra repensar a vida. Aos poucos eles vão melhorando. O Ícaro,
por exemplo, tem entrado no nosso ritmo há alguns dias já.
— Eu ainda não consigo acreditar nisso, Elisa. Ele é um cara muito
diferente, porque os outros... Os outros não querem nem saber. — Laura
fechou os olhos e abandonou o corpo sob a água.
— Ele tá apaixonado por você, amiga. Só o amor é capaz disso. — Glória
remexeu o pé para se encostar no meu.
— Vocês acham? — As duas balançaram a cabeça. — Mas ele vem do
outro lado. E vive me dizendo que lá eles são capazes de maldades que nós
aqui não conseguimos imaginar.
— Quem tem passado mais tempo com ele é você, por isso você é a melhor
pessoa pra dizer o perigo que há nele. — Laura reabriu os olhos. — Por outro
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lado, um pouco de amor é sempre bom pra temperar a vida. Quanto tempo
faz que você não fica com um homem, Elisa?
— Ah, faz um tempinho já... — Minhas bochechas coraram, olhei baixo.
— E não sente falta? Digo, não sente falta nem do prazer? — Laura disse.
— Sinto, claro que sinto, mas... Eu vou vivendo. Eu tenho meus momentos
só pra mim.
— Não é a mesma coisa. — Glória olhou para o alto, erguendo uma
sobrancelha. — Alguém que te pegue de jeito, que te toque nos lugares
certos, nos momentos mais inesperados, que te queira todinha em sua boca,
ai... Isso é bom demais. Pelo menos disso eu não posso reclamar dos
visitantes, porque o Cássio e eu nos entendemos muito bem na cama.
— Ele consegue te satisfazer mesmo, Glória? — Laura disse.
— Olha, no começo foi meio estranho, e ele fica querendo fazer umas
coisas que eu não gosto, umas coisas que me deixam muito desconfortáveis...
Só que eu falei pra ele com jeitinho o que eu gosto mais, e ele tem tentado me
seguir. Tem sido ótimo assim.
— É disso que eu tenho medo — eu disse. — Se eu e o Ícaro... Hm, se eu e
o Ícaro tivéssemos um momento assim... De intimidade, eu tenho medo do
que ele faria.
— Acha que ele não sabe amar? — Laura disse.
— Ele sabe, disso eu sei. Só não sei o quanto ele sabe demonstrar.
— Isso você só vai descobrir tentando, meu bem. — Glória me deu um
sorriso sacana, ao mesmo tempo encorajador.
— Vocês acham que eu deveria? — Com o rosto corado pelo meu
acanhamento, abracei meu ventre e cruzei as pernas.
— Se você quer, e ele também, por que não? Experimenta. Pode ser bom —
Glória disse.
— Também acho — Laura disse. — E se não estiver convencida ainda, e
quiser esperar mais, não se apresse a nada. O importante é se sentir bem.

O banho com as meninas renovou meu astral. Não apenas pelo relaxamento
no ofurô, depois de um dia inteiro pegando chuva gelada e vento no rosto,
mas pelo apoio emocional que elas me deram. O Ícaro ainda não tinha
passado muito tempo comigo, por mais que nossos dias parecessem longos,
com tantos novos acontecimentos. Mas vê-lo se esforçar para experimentar a
minha vida, abrindo mão de suas manias, de seus gostos, mesmo sem estar
completamente convencido, aquela era a maior demonstração de carinho que
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eu poderia esperar de alguém.


Meu coração estava fraco por ele. Se por um lado eu precisava de mais
tempo para perder todos os medos dele, por outro eu o desejava naquele
momento mesmo. E as minhas amigas não viam mal nisso, não achavam
precipitado. Entregar-me aos toques de Ícaro, ao conforto de seu corpo, essa
ideia me fascinava. Seria parte da experiência de conhecê-lo, seria abrir-me
ao mundo dele assim como ele se abria ao meu.
De rosto corado por pensar nele, fui ao centro de serviços externos procurar
Maya. Quem sabe ele ainda estaria com ela, precisando ser retirado do
trabalho por aquela que o faria viver a vida mais leve, numa inversão de
papeis que me excitava? Bati à porta com ansiedade, entrei antes de ser
chamada.
— O Ícaro tá por aqui?
— Nada, Elisa. Fomos almoçar e ele não voltou mais. Acho que se cansou
do trabalho — Maya disse, sentada diante de seu computador.
Meu rosto murchou, de bochechas desarmadas e lábios pesados. Despedi-
me de Maya. As passarelas tomavam um banho contínuo em seus telhados,
derramando água nas caneletas que desaguavam sobre a terra, irrigando os
jardins ensopados. A noite escura se escondia atrás das lâmpadas brancas do
meu caminho, marcando presença no mundo com a força de seu horário. Eu
estava com fome.
Era pedir demais que Ícaro passasse o dia inteiro ajudando em um projeto
de sua própria escolha? Eu tinha criado muitas expectativas, sim, a culpa era
minha. Fantasiei com um dia abarrotado de atividades para ele e para mim, de
modo que no final, estivéssemos os dois prontos um para o outro, cansados
de todo o resto, ansiosos apenas para estar juntos. Consciência limpa por ter
ajudado a manter o mundo em ordem, coração liberado para amar. Ele se
esforçava, ao menos ele se esforçava.
No refeitório, pessoas saíam de estômago cheio, outras chegavam de banho
tomado, fosse de chuveiro, banheira ou de chuva. Um burburinho tomava
conta do ambiente, com pessoas de pé perambulando entre as mesas da
varanda coberta. Alguns estrangeiros do barco se reuniam em uma das mesas,
porém nenhum com quem eu poderia conversar. Vasculhei o ambiente com
meu olhar atento em busca de amigos, e não os encontrei. Uma mão encostou
em meu ombro, por trás, e me virei para ver quem era.
— Estava te procurando. Você pode me acompanhar, por favor? — Ícaro
disse, aprumado num terno sem gravata, seu cabelo penteado para atrás com
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um brilho sedutor, seu rosto reluzente numa pele raspada e amaciada.


— Eu também te procurava... — Mal consegui falar, perdida entre as
belezas de seu rosto, tocada pelo desejo. — Vamos jantar?
— Sim, vamos, mas não aqui. Venha comigo.
— Como assim? Vamos aonde? O lugar de comer é aqui. — Segurei-me no
lugar, enquanto ele tentava me guiar para fora do refeitório.
— Hoje não. Hoje é diferente. Confie em mim, você vai gostar.
Seu olhar carinhoso, alegre, quase infantil, de uma criança empolgada para
mostrar algo a um ente querido, ele me conquistou. Dei-lhe a mão e o segui
pela passarela, adentrando num dos prédios de dormitórios até chegar ao
nosso quarto. Paramos diante de nossa porta.
— Espere só um minuto — ele disse, e entrou sozinho no cômodo escuro.
— Por quê? O que você tá... — tentei dizer, em vão, dando-me conta de que
ele pedia confiança e eu queria confiar.
A porta se abriu alguns segundos depois, revelando-me um ambiente
iluminado pelo amarelado de velas. Uma pequena mesa de madeira ocupava
o espaço livre à frente da cama, com duas cadeiras dispostas em lados
opostos. Um cheiro forte de laranja dominava o ambiente, e se eu
investigasse o odor mais a fundo, encontraria uma essência mais leve, leitosa,
como a de cogumelos.
— Hoje eu preparei um jantar pra nós dois — Ícaro disse, fechando a porta
atrás de mim, afastando uma cadeira para que eu me sentasse. — É assim que
fazemos no meu mundo, e queria te mostrar um pouco da sensação.
— Que lindo, Ícaro. — Sentei-me, admirando os pratos dispostos sobre a
mesa, um risoto ao fungo e ervilhas, uma salada de abacate, laranja, castanhas
e frutas. — Você que preparou tudo isso?
— Sim. Perdi a vontade de fazer traduções, mas ainda queria fazer algum
trabalho. Essa foi a melhor ideia que eu tive. — Ele ajustou as velas no centro
da mesa e se sentou à minha frente.
— Então você sabe cozinhar, no final das contas. — A salada não estava
bem cortada, misturada com ingredientes demais, e o risoto me parecia um
pouco papado, mas sua intenção tinha sido tão especial que não merecia
qualquer comentário.
— Algumas pessoas na cozinha me ajudaram. Mas eu que preparei tudo, no
final das contas. Espero que você goste.
— Já estou amando. — Estiquei minha mão sobre a mesa, agarrando-me à
sua palma, e apertei seus dedos.
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Ele me serviu, antes mesmo que eu pensasse em pegar meu prato, e depois
fez o mesmo para si. Saboreei um primeiro pedaço de seu jantar, tomada de
um sabor encantador. Sabor de comida boa, apesar das aparências, e de
experiência preciosa. Ninguém nunca tinha preparado um jantar só para mim.
— Quando vocês fazem jantares como esse no outro lado, como vocês se
sentem? — eu disse.
— Nós nos sentimos bem. Não é assim que você se sente? É melhor para
conversar, e tem todo o lado da dedicação, que conta muito.
— É verdade. Costumamos dizer por aqui que amor é tempo e dedicação.
Se você dedica seu tempo a alguém, é porque o ama, nem que seja só um
pouquinho. Você deve ter amado muitas pessoas nessa vida, preparando
tantos jantares.
— Eu nunca preparei nenhum jantar assim — Ícaro disse, abaixando os
olhos.
— Ué, mas você mesmo disse que é assim que fazem do outro lado.
— Eu tenho empregados pra preparar tudo pra mim. Nunca me dei ao
trabalho. Só pra você eu tive de preparar um por conta própria, por conta do
jeito esquisito em que vocês decidiram viver aqui nesse mundo.
— É um jeito esquisito que fez você dedicar seu tempo a mim. Eu não
gostaria que fosse de outra maneira.
Apreciamos nossa refeição na paz de um quarto reservado para nós, ao som
de chuva, vislumbrando a pele um do outro pelo amarelo da luz de velas. Tão
encantada eu estava por tudo o que ele demonstrava fazer por mim, por sua
beleza, pelo seu jeito de me ouvir, que eu queria não dizer mais nada ao
longo da noite. Falar pelo olhar, comunicar-me pelo toque de dedos, pelo
silêncio da pele.
— Será que agora eu consegui tirar da sua cabeça a ideia de que eu sou
mimado? — ele disse, interrompendo meus pensamentos.
Eu ri com a boca cheia, e terminei de mastigar para responder. — Sim, eu
acho que você tem se mostrado um cara mais maduro nesses últimos dias.
— Ah, então além de mimado eu era imaturo?
— Olha, para os nossos padrões aqui... Sim, você era. Imaturidade é quando
a pessoa age igual criança, precisando de alguém sempre por perto pra dizer o
que deve ser feito ou não, o que pode fazer ou não. É uma pessoa que ainda
não tá pronta pra viver com os outros, entende? Você amadurece quando
você passa a decidir por conta própria, quando você reconhece que precisa
colaborar com os outros tanto quanto eles colaboram com você.
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— Entendi. É que lá no meu lado do mundo, chamar o outro de imaturo


quer dizer outra coisa. Pessoa que chora muito, que não sabe lidar com as
perdas, que não quer cuidar de nada. Isso eu nunca fui.
— Acredito. Você tá mudando. Não precisa ser mimado a vida toda.
— Não sou, você sabe. Até te tirei de um atoleiro na lama, não foi?
— Até trabalhou comigo debaixo da chuva. Isso sim me impressiona.
— O que te impressiona é o que todo o resto das pessoas aqui faz
diariamente, sem nem se dar conta?
— Me impressiona que você tenha decidido estar comigo nessas condições.
Nenhuma outra pessoa que chegou com você do barco se dispôs a ajudar na
vila de qualquer forma. Só você.
— Isso mostra que eu sou um cara especial. Tem que ficar de olho nele,
Elisa, senão ele pode ir pra outro lugar.
— Ele já está em outro lugar. Encontrou um cantinho onde ele pode ser
quem ele é de verdade, sem um monte de gente obedecendo as suas ordens,
sendo falsos com ele, fazendo as coisas por dinheiro, não por compaixão.
Encontrou uma casa onde ele pode dormir com uma mulher que vê um
tesouro desabrochando dentro dele, e quer estar ao seu lado mais do que com
qualquer outra pessoa.
— Eu nunca dormi com essa mulher.
— Dormiu sim. Dividimos o mesmo quarto, não?
— Ah... No meu lado do mundo, dormir com alguém quer dizer outra coisa.
— Aqui isso também quer dizer o que você está pensando. — Mordi os
lábios, de coração acelerado, suas batidas sacudindo meu peito, fortes contra
minha carne.
— É sério? Então, bem... Então você gosta de mim? De verdade?
— Sempre gostei. E você, gosta de mim? De verdade? Sem ser por conta de
sua missão aqui?
Seu rosto se iluminou com minhas palavras, tomado de calor. Seu peito
também lhe bombeava o sangue pelo corpo, ele também o excitava. Se
houvesse falsidade no que Ícaro dizia, não haveria aquele rubor, não haveria
aquela fragilidade, aquele silêncio encantado, à espera de meu beijo. Ele me
queria, era o que seu corpo todo me dizia, ele me queria por bem, por uma
paixão que nascia entre nós e que clamava pela quebra de todas as nossas
barreiras.
Antes que ele me respondesse, eu me levantei da cadeira. Parei de pé diante
dele e acariciei seus cabelos. Arrastei o polegar sobre sua testa, encostei uma
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palma em sua bochecha. Calor, eu queria o seu calor, a chama do jantar


transfigurada em carne e carinho. Ele se ergueu à minha frente, crescendo em
minha visão até que seu rosto tomasse conta de todo o meu mundo, até que
sua boca viesse até a minha com o convite à união, à comunhão dos corpos.
Beijei-o com os lábios secos, num toque suave, parados um sobre os lábios
do outro, experimentando o contato, a respiração próxima, os olhos fechados.
Ele me abraçou levemente, envolvendo minhas costas com as mãos fortes,
tateando minha blusa com dedos delicados. Cada toque de sua exploração me
deu choques de prazer, forçando minha boca a se abrir e a buscá-lo com sede.
Apertei-o ao meu corpo, puxando-o para mim com mãos que sondavam
todas as partes daquele homem que se abria a mim, agarradas em suas costas,
arranhando seu blazer, explorando a camisa por baixo, mãos doidas pelo
contato com a pele de seu peito. Eu o conhecia de vista, eu o tinha visto
seminu, eu sabia o que encontrar, mas não conhecia ainda a sensação, a
proximidade real de respirar daquela pele e saboreá-la como a sobremesa de
um jantar feito só para mim.
Sua boca estalava sobre a minha nos beijos que se repetiam insaciáveis,
mordiscando meus lábios à procura de mais e mais. Pôs a mão em meu
pescoço, e levou-a num passeio sobre meu braço, descendo na minha cintura,
encontrando espaço debaixo de minha blusa, onde me descobriu nua e
eriçada.
— Eu não tenho proteção aqui. Tenho que passar no posto de saúde. Espera
só um minuto? — Tirei os lábios dos seus, respirei fundo, apoiei a mão em
seu peito.
— Mas eu tenho aqui, fica tranquila. Se você quiser, eu quero dizer...
— Eu quero sim, por favor, eu quero... — Beijei-o novamente, arrancando
as bordas de sua camiseta de dentro de sua calça, para que eu pudesse fazer
como ele fazia em mim e experimentar a sensação de suas carnes.
Levados por uma dança silenciosa de mãos e bocas inebriadas pelo toque,
despimo-nos de pé e nos abraçamos em nossa nudez. Todo o calor do mundo,
toda a quentura que eu desejava, toda ela ali, agarrada a mim, querendo-me
por completo. Olhei para cima, para os olhos de Ícaro, e me vi refletida. Cada
marca de suas expressões, cada dobra de sobrancelha, cada ranhura de seus
lábios, cada parte de seu corpo me dizia sobre nós, sobre nossa união.
Naquela noite, o mundo era perdia seus lados e se transformava em Ícaro e
eu, nós dois e apenas nós.

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16 - Ícaro

Pela primeira vez, acordei antes dela. O perfume de sua pele nua me
despertou, o cheiro de seus cabelos cobrindo o rosto, a brancura de seus
ombros acima do lençol, expostos para minha contemplação. Tão logo abri os
olhos para ela, fui forçado a mantê-los assim pela força do meu encantamento
por aquela mulher.
Encaixei-me sobre seu ombro, deitando-me ao lado de Elisa, abraçando-a
com o braço acima de seu peito. Meu rosto encontrou espaço entre seu
pescoço, nutrindo-se do calor que emanava daquela carne macia. Ela se
remexeu para ajudar a me ajeitar em seu colo, passando a perna sobre a
minha cintura, travando-se sobre mim numa posição de repouso entrelaçado.
Adormeci mais uma vez, envolto por ela.
Ao despertar, ela me aguardava com o sorriso de quem lutava para começar
o dia sem pressa. Ela sabia que eu falaria algo sobre sua vontade de se
levantar, e já se preparava para me cortar, mas não falei nada. Ao invés disso,
beijei-a levemente, encostando meus lábios em seu colo, subindo-os pelo
pescoço, pela bochecha, até chegar em sua boca. Ali, fiquei.
Apertei-a com mais força, trazendo-a para mim, tão macia e quente.
Deslizei o rosto sobre seus cabelos, alisando-a de leve com minha barba
raspada. Voltei a beijá-la, e não parei até que me molhasse com sua saliva,
unindo-me a ela num tímido balé entre as nossas línguas. Ela me virou por
cima dela e alisou minhas canelas com os pés, empurrando o lençol para fora
da cama. Com as mãos, explorou minhas costas e me fez cafuné,
aprofundando nossos beijos a cada leva de toques.
Eu já estava excitado desde que acordei, e com seu convite eu me senti
aceso. Ela me aceitava em seu meio mais sagrado, sua cama transformada em
altar de nossos delírios. Mergulhei nela atrás do inacreditável, seduzido por
algo novo, inacessível do outro lado. Eu, Ícaro, fazia amor com uma mulher
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para ajudá-la a ser feliz, e tal mulher fazia o mesmo por mim. Era mais do
que prazer, mais do que curtição; era o estado natural entre duas pessoas que
conviviam uma com a outra e se gostavam.
Após uma noite intensa, tirando toda a nossa tensão acumulada, uma manhã
radiante. Esquecemo-nos da chuva, ela que caía em gotas mais gentis, como
se combinasse com o astral do quarto, e nos perdemos em gemidos ofegantes.
Minha missão começava ali, mas não a missão do princípio, de enganar Elisa
e rir dela no final, não, não essa mais, e sim a de descobrir o que fazer com os
sentimentos que ela me despertava.
Quando terminamos, ela se sentou sobre a beirada da cama e arrastou o
cabelo para atrás das orelhas. Suas costas nuas resplandeciam com a cortina
iluminada pelo dia que lutava para se mostrar lá fora, coberto por nuvens
ainda cheias d'água. Meu olhar se prendeu entre as curvas de sua cintura, e
antes que eu erguesse os braços para agarrá-la mais uma vez, virei o rosto ao
travesseiro. Quanto mais eu me envolvesse com ela, mais dolorosa seria a
despedida no fim, porque não havia outro caminho a não ser o da despedida
em nossa frente. Eu jamais ficaria ali preso naquele mundo, e ela não iria
jamais comigo para o outro lado.
— Tô com tanta fome... — Elisa lavou o rosto na pia do canto do quarto,
secando-se com as próprias mãos.
Abri apenas um olho para observá-la, vislumbrando uma gota d'água
escorrendo sobre seus seios. Se eu não a visse assim, jamais imaginaria que
uma mulher como ela fosse dona de um erotismo tão pulsante. — Que bom.
Isso é saúde. — Eu murmurei, apertando o quadril contra o colchão.
— Vamos nos aprontar pra comer? Nem sei que horas são, mas qualquer
coisa nós preparamos algo pra nós dois. Você agora é um cozinheiro também,
não é? — Ela pegou a toalha ao lado da penteadeira e enxugou o rosto.
— E você se esqueceu da hora. Estamos evoluindo mesmo, hein.
Elisa pegou a calcinha para vesti-la, desdobrou a blusa e a bermuda. Eu me
levantei para me unir a ela, gostando da ideia de afastar de mim a tentação de
tê-la mais uma vez, embolando-me num emaranhado de sentimentos
confusos. Vesti minhas roupas com pressa, ansioso para esconder a pele.
Esperei para me virar a Elisa somente quando ela estivesse completa, quando
não me balançasse mais com sua beleza escondida.
— Pronto? — ela disse às minhas costas.
Eu me virei para ela com um aceno da cabeça, e ao invés de encontrar uma
pessoa desprovida de sensualidade, deparei-me com uma Elisa bela como
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nenhuma outra. Olhos de mel esperando minha mão, cabelos pretos


espanando ombros alvos, uma blusa branca caindo sobre um corpo
aconchegante. Peguei sua mão, dei-lhe um abraço, apoiando seu rosto em
meu peito. Com a mão em sua nuca, apertei-a em mim, e suspirei. Ela me
enlaçou, fechou os olhos junto a mim, e assim ficamos.
Soltei os braços, mantendo as mãos atadas. Um de olhos vidrados no outro,
sorrimos satisfeitos. Ela virou o rosto para uma de minhas malas.
— Precisamos de um banho, não acha? Se quiser, pega alguma roupa para
levarmos ao banheiro e você se trocar por lá — ela disse.
— E você, não vai trocar de roupa?
— Eu pego lá no armário.
Fomos juntos à casa de banhos, onde eu acreditava que entraria em um box
individual e tomaria uma ducha rápida para tirar o suor e o ranço da noite.
Elisa não me largou, porém, mantendo a mão apertada na minha enquanto
nos conduzia até seu armário e até a porta de uma sala de banhos ampla, com
chuveiro largo e espaço para um casal.
Fechamos a porta, apoiamos as roupas secas nas prateleiras, e antes que eu
me desse conta do que Elisa me propunha, ela se despiu e ligou o chuveiro.
— Vai ficar aí me olhando? Vem tomar banho — ela disse, mergulhando o
corpo na água.
— Ainda tô tentando me situar com você. Não achei que você fosse ter esse
fogo todo. — Eu tirei as calças e a camisa, virando-me de costas a ela para
retirar a cueca.
— Que fogo? Você acha isso exagerado? Que novidade tem em tomar
banho com você depois de ontem?
— É que você parecia muito recatada, pelo menos nesse aspecto. Pensei que
teria de lidar com uma puritana. — Cheguei ao seu lado com o corpo exposto
às gotículas que rebatiam sobre o corpo de Elisa, esfriando-me a cada golpe.
— O que é uma puritana? Nunca ouvi esse termo.
— Uma pessoa que tem medo de sexo.
Ela apertou as sobrancelhas, olhando-me surpresa. — Mas é impossível não
gostar de sexo. Eu adoro! Você não percebeu ainda? — Ela envolveu os
braços em minha cintura, trazendo-me para debaixo da ducha.
— Então por que não me quis logo no começo? Isso poderia ter acontecido
antes.
— Mas antes eu precisava te conhecer melhor, eu falei. Chegou uma hora
em que você ficou irresistível. Assim fica mais gostoso, não acha?
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— O pior é que é verdade.


Para esfriar o sangue e resistir a vontade de beijá-la, virei o rosto para a
ducha e esfreguei minhas bochechas. Eu estava perdido em seu mundo,
partido em dois. Somente o tempo poderia me salvar, poderia me mostrar a
face ruim de Elisa, daquele mundo pobre e esquisito, e somente assim eu a
deixaria. Porque se dependesse do meu estado de espírito naquele banho, não
haveria nenhum lado no mundo. Apenas ela e eu.

No fim das contas, Elisa olhou a hora e se surpreendeu. Acordamos um


pouco mais tarde do que o habitual, mas nada que atrapalhasse nossa ida ao
refeitório. A refeição ainda estaria disposta na mesa do buffet, e tínhamos
tempo para planejarmos o resto do dia de forma produtiva.
— Eu tô entrando no seu ritmo já, tá vendo? Acordando tarde todos os dias
— ela me disse, segurando minha mão na caminhada pela passarela coberta,
protegidos da chuva.
— Se você está assim, e eu então? Acordando cedo sem nem precisar de
alguém me chamando. — Apertei sua mão e senti sua palma macia se ajeitar
em meus dedos.
Ao chegarmos no refeitório, nenhuma alma à vista. Cadeiras espalhadas
pela varanda, desocupadas. Mesa de refeições coberta com um grande tampo
de vidro, dando mostras de que haviam comido e saído. O relógio estava
errado? Era mais tarde do que pensávamos?
Elisa fechou o rosto, estranhando a ausência generalizada. — Tô com medo
de que tenha acontecido algum problema grave.
— Tem como saber se é o caso? — eu disse, aguardando no meio do salão
com as mãos nos bolsos.
— Provavelmente tem sim. Você espera aqui um pouquinho enquanto eu
vou no computador da cozinha olhar? Pode ir se servindo com o que tiver,
porque eu já volto.
Servi meu prato com sobras de pão e de omelete, catando pedaços de fruta
com cor mais saudável. Sentei-me em uma cadeira no ambiente interno do
refeitório, e ouvi o calafrio do mundo penetrar em minha mente. Uma cidade
fantasma me observava, uma cidade cinza, molhada, estrangeira. Inquieto,
mantive os olhos atentos à porta por onde Elisa havia passado, aguardando
sua chegada a qualquer momento.
Ela voltou ao salão e logo pegou um prato para se servir. — Estão todos
numa assembleia lá no pavilhão. Por conta da chuva, perdemos algumas
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plantações novas de emergência, e tivemos atrasos em várias frentes. Querem


ideias novas pra resolver os problemas.
— Vocês não têm planos de contingência? — Eu parei de comer,
esperando-a terminar para juntar a mim na mesa.
— Temos, mas assembleia faz parte do plano. Cada situação requer
medidas especiais. No nosso caso, temos vocês aqui, os visitantes, trinta
cabeças a mais pra alimentar por tempo indeterminado.
— Não é tempo indeterminado. Viemos aqui pra ficar alguns dias.
— Alguns dias já passaram.
— Você quer que nós vamos embora? — Inclinei o rosto, esforçando-me
para compreender sua fala brusca.
— Não quero. Mas entende por que dizemos que é um tempo
indeterminado? Não existe uma previsão exata, então temos de trabalhar
pensando no pior dos casos, justamente para não os expulsarmos daqui.
— Tudo bem. Só me admira como vocês estavam despreparados para
receber algumas pessoas a mais na vila. Achei que a... Como é que se chama
o grupo de vocês, a Federação? Achei que a Federação fosse mais integrada.
— Ela é integrada. Nossas máquinas, nossas ferramentas, parte de nossa
energia, tudo vem dela. E nós mandamos algumas manufaturas, enviamos
pessoas pra ajudar em projetos, e alguns produtos agrícolas. Só que você está
numa vila afastada, de fronteira, minúscula. Duzentas e poucas pessoas
moram aqui, então trinta a mais é uma adição significativa. Ninguém espera
que justamente nós soframos uma sobrecarga dessa maneira, por isso não
temos planos dessa natureza. A assembleia serve pra isso. Dela vão sair
ideias e grupos de trabalho encarregados de cuidar do que for preciso.
— A Federação não pode ajudar com nada? Mandar comida de algum outro
lugar?
— Ela já nos mandou remédios extra, produtos de limpeza, e mais um
monte de coisas pra nos ajudar com vocês. Você viu aquele dia no
computador que muitos querem que vocês sejam distribuídos em outros
lugares com mais infraestrutura. Mas o mais provável é que vamos conversar
com pessoas de outros lugares e estudar novos planos de ação. A Federação
se estende por todo o nosso lado do mundo, então não nos falta espaço e
recursos, fica tranquilo.
— E você pretende participar dessa assembleia?
— Claro que sim! Estou aqui me sentindo envergonhada já por ter perdido
o começo.
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— Então pare de falar e coma seu café da manhã. Eu te acompanho até lá.
Ela sorriu para mim e fez conforme o sugerido, usando as mãos para limpar
o prato. A chuva nos acompanhou ao longo da refeição, adornando de
preocupação o rosto de Elisa. Era aquele tipo de estrago que minha missão ali
com ela queria causar. Eles se desdobravam para dar conta de nos sustentar,
abdicando de seus projetos, de suas vidas, tudo em prol de um bando de
estrangeiros que exigiam um trato de luxo. A chuva, no final das contas,
trabalhava em nosso favor, e ver as consequências da missão expressas no
rosto de Elisa me amargava o coração.
Peguei o prato dela assim que terminou de comer, levei-o para a pia junto
ao meu e aos talheres, e os lavei para ela. Elisa pegou um pano úmido e o
passou sobre a mesa, verificando a mesa de buffet atrás de comida exposta.
Fomos os dois juntos até o pavilhão da assembleia, protegidos pelas
passarelas cobertas que se tornaram meu grande xodó no mundo. Na ausência
de carros, os pedestres tinham a cidade disponível o tempo todo, sem risco de
se molharem.
— Só você entra, Elisa — uma pessoa na entrada do pavilhão nos disse,
erguendo a mão para mim. — Os visitantes devem ficar de fora.
Ela me encarou, apertou minha mão e me disse: — Fica na biblioteca.
Depois eu te encontro e te falo o que foi discutido, tudo bem?
— Claro. Eu vou ficar bem. Depois a gente se vê.
Dei-lhe um beijo e me virei de volta à vila, procurando o prédio da
biblioteca. Passei pela porta pesada que protegia os livros do mundo externo,
e vi um casal se beijando em um dos sofás. Eram Alice e Álvaro, dois dos
que vieram comigo no barco. Uma outra pessoa lia algo num leitor
eletrônico, um homem nativo, sentado em uma mesa de madeira.
Eu poderia pegar um leitor eletrônico e escolher o que eu quisesse, mas
preferi passar os olhos pelas prateleiras em busca de uma noção geral da
literatura daquela parte do mundo. Livros técnicos e de ficção ocupavam cada
um metade da biblioteca, livros famosos em meu país, livros nunca antes
vistos por lá. Escolhi um título que me chamou a atenção, "Mitos antigos: o
empresário", rindo de antemão do conteúdo, e me sentei para lê-lo.
Duas horas depois, Elisa entrou no salão da biblioteca e me encontrou. Veio
até mim, sentou-se ao meu lado, segurou minha mão e olhou fundo em meus
olhos.
— Eu vou precisar me ausentar por uns dias. Vamos cultivar uma área das
Terras Comunais a uns duzentos quilômetros daqui, onde a tempestade não
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chegou, e eu vou junto ajudar no preparo da terra. Só alguns dias.


— Entendo. Eu posso ir junto? — Um frio percorreu a minha espinha, a
marca de minha mente surpresa por eu próprio sugerir algo assim.
— Não há espaço, Ícaro. Só vão os que se propõem a trabalhar dia e noite, e
eu sei que você não é capaz disso.
— Eu sou capaz.
Ela me acariciou o rosto, sorrindo para me consolar. — Um dia você vai
ser. Mas já está tudo combinado. Fique aqui e ajude nas tarefas daqui.
Quando voltarmos, nós tiramos o nosso atraso.
— Você parte quando?
— Agora. Estamos preparando os caminhões.

Ela não me deu escolhas. Mesmo se eu quisesse, eu não poderia


acompanhá-la nas Terras Comunais. Mas ela não me fazia justamente um
favor? Por acaso eu tinha me transformado tanto em tão pouco tempo que
agora a promessa de dias de trabalho ao lado dela era algo que me seduzia?
Trabalho na terra? Bruto, feio, sujo, cansativo, fedorento, pobre? Eu queria
estar com ela. E minha vida acabava ali, ela se condicionaria tanto à presença
de Elisa? Não, eu era mais do que isso, e eu precisava recobrar o controle.
Acompanhei-a até a Praça dos Transportes na hora da partida. Levaram
quatro caminhões que haviam pedido da reserva regional de veículos, quatro
máquinas sem marca, de motores elétricos, de carroceria moldada numa fibra
de plástico que eu não conhecia, tão resistente quanto um metal, adaptada ao
encaixe de incontáveis caixas de frutas, legumes e verduras. Ela acenou para
mim conforme seu caminhão se afastava, deixando para atrás uma pequena
multidão que a assistia partir debaixo dos abrigos.
Entre aqueles ao meu redor, apenas nativos. Pessoas que eu não conhecia,
pessoas que tinham receio de mim, ainda pouco convencidos dos benefícios
de nossa estadia por lá. Deixei meus companheiros do barco de lado nos
últimos dias, e não podia reclamar de não tê-los por perto. No mais, cada um
deles deveria estar espalhado pela vila, envolvidos em suas próprias missões.
Se eu encontrasse algum deles, eu lhes faria companhia mesmo que não
quisessem.
Fiz o caminho do porto, optando pela rota coberta, ao invés de passar pela
praça à beira-rio. Talvez alguém estivesse no barco, recebendo os cuidados
de nossos empregados que continuavam por lá. A rampa continuava
estendida, sem sinal de vida no iate. No café onde eu havia visto Elisa pela
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primeira vez, duas pessoas conversavam em seu interior.


— ...e até agora só ouvi falar de prisões, prisões e mais prisões. Vai ter que
melhorar se... — Laura dizia, sentada de pernas cruzadas diante de uma
mesinha, um prato com migalhas disposto à sua frente.
— Calma lá, me escuta direito — Oliseu disse, sentado na cadeira à frente
dela. Viu-me chegar, acenou com a cabeça e com a mão, mas não
interrompeu seu fluxo de palavras. — O que vocês têm aqui é a escravidão
mais pura e simples. Sua vontade pessoal está totalmente sujeita à vontade
dos outros. Tudo o que você quiser fazer, tem que pedir autorização pra
alguém.
— Se vai afetar esse alguém, então é bom conversar com esse alguém, não?
— Laura disse, dando de ombros. — Por acaso não é assim do outro lado?
Vocês não conversam nada, não levam os outros em consideração?
— Lá nós temos leis pra reger isso. Não precisa perder tempo conversando
com ninguém. Se eu quero construir uma torre na minha casa, eu construo e
acabou. É só respeitar o plano da cidade e pronto, meu vizinho não tem que
opinar nada — Oliseu disse.
Eu me apoiei no balcão da cafeteira, onde estavam dispostos alguns pratos e
doces. Sem receber atenção, assisti à conversa entre os dois, com desinteresse
o bastante para evitar me envolver.
— Acontece que você não vai construir nada. Você não sabe lavar nem a
própria cueca, Oliseu, vê se te enxerga. Os construtores é que vão construir
pra você, e me diz se eles também podem construir a casa que quiserem.
— Claro que podem!
— E se eles quiserem uma torre de três andares com jardins suspensos e
paredes retráteis?
— Se eles tiverem dinheiro pra isso, é só construírem. — Oliseu riu de lado,
crendo-se vitorioso. — Lá eles são livres.
— E eles têm esse dinheiro?
— Como é que eu vou saber? Talvez alguns tenham.
— Tá vendo, esse que é o negócio, você vive no mundo da fantasia, da
especulação. Eles podem ter, eles vão ter, mas eles têm? Hoje, agora,
realidade prática? Duvido que tenham, se não por que trabalhariam pra você?
Então eles também não têm a liberdade que você tem, hoje, agora, realidade
prática. E se não têm liberdade hoje, simplesmente eles não são livres. Ponto
e acabou.
— Você não entendeu nada, nadinha. Esse mundo seu aqui que te deixa
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confusa assim, que contamina seus...


Oliseu falava com a voz acalorada, sacudindo a cabeça com veemência,
apertando os dedos na mesa. Laura, por outro lado, mantinha as pernas
cruzadas, os ombros relaxados, gesticulava como se contasse sobre o que
comeu no café da manhã. Resolvi sair do café e deixar os dois a sós em seu
duelo.
Fui ao Centro de Convivência, uma grande casa de dois andares com pátios
internos. Glória segurava uma tesoura em uma mão e cortava os cabelos de
uma mulher sentada em uma cadeira de madeira. Cássio conversava com
elas, segurando um espelho para que a mulher se observasse e ajudasse a
guiar Glória em seu corte.
— Ei, Ícaro, está perdido por aí? Cadê Elisa? Já foi? — Glória disse,
talhando as pontas dos fios negros e molhados da pessoa sob seus cuidados.
— Foi embora num dos caminhões. Estou aqui de bobeira um pouco,
revendo o pessoal. E aí, Cássio, tudo de boa? — Sentei-me na bancada de
concreto de um pequeno jardim ao lado do grupo. Um teto de vidro deixava a
claridade do dia entrar por ali, bloqueando a chuva.
— Tranquilo. Ajudando aqui a dar um visual pra Iraci, não é? — Ele sorriu
para a mulher à sua frente, balançando o espelho. — Glória sabe dar um trato
em todo o mundo.
— Tirei um monte de cravos dele, Ícaro, precisava ver — Glória disse. —
Um homem tão bonito desses, pele tão boa, e cheio de sujeira? Nada disso.
— Ah é, você fez limpeza de pele com ela, Cássio? — Olhei para ele com
malícia. Ele sempre se fez de machão, demonstrando total má vontade com os
cuidados da aparência.
— É... Sempre tem uma primeira vez pra tudo, né. Mas se dependesse da
Glória, ela arrancava a minha pele toda. O negócio dói, viu.
— Dói porque tinha nojeira aí acumulada desde a sua adolescência! —
Glória disse, revirando os olhos com a tesoura no ar. — Quer que eu faça em
você depois também, Ícaro? É só eu terminar aqui com a Iraci que a gente vê
isso.
— Não, obrigado, não precisa. Antes de entrar no barco eu já tinha me
cuidado. Nós temos uma esteticista em casa, e ela toma conta da família toda.
Minha mãe não consegue ficar um dia sem tratar a pele, e elas acabam me
carregando pra fazer o mesmo. Como a moça é bonita e tem um toque bom,
eu acabo gostando. Não posso traí-la com outras mãos, entende?
— Aham, entendo... — Glória me encarou com um sorriso escondido,
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apertando as pálpebras. — Mas se Elisa soubesse fazer limpeza você a


deixaria, não é?
— É, com ela é outra história... Elisa pode fazer o que quiser comigo — eu
disse, mostrando os dentes num sorriso descontraído.
Cássio me encarou com os olhos atentos, de rosto controlado, tentando
discernir a verdade da mentira em minha fala. Sem conseguir penetrar em
minha mente, ele olhou baixo e voltou a se concentrar em Iraci à sua frente.
Eu sabia o que ele pensava, eu sabia que ele se perdia de amores por Glória
tanto quanto eu por Elisa, e queria alguém para partilhar do mesmo drama.
Ele se sentia perdido entre a missão e os sentimentos, e precisava que eu lhe
ajudasse na decisão.
Mas eu estava tão sem chão quanto ele.
Parar fugir do nome de Elisa, antes que eu me arrastasse ainda mais para
seu mundo, deixei Cássio e Glória quietos em sua sessão de cabeleireiros. Se
antes eu o via como um fraco irritante, agora eu o admirava e torcia por sua
felicidade. Se ele acreditasse que seu destino era ficar com Glória, eu queria
que ele se realizasse.
Ainda no Centro de Convivência, Jaqueline e Thor conversavam em uma
das varandas cobertas do segundo andar, olhando a paisagem com rosto
enojado. Viram-me chegar e me convidaram para sentar junto a eles, de
costas para a porta, de rosto vidrado no horizonte nublado.
— O que mais me irrita é não ter nada pra comprar por aqui, acredita? —
Jaqueline disse, tirando a franja ruiva do rosto. — Eu me sinto presa sem
conseguir escolher o que eu quero pra mim. Tenho de ficar dependendo do
que eles me dão, ai, isso é péssimo.
— Engraçado que lá no nosso lado qualquer cidadezinha de merda tem uma
lojinha que seja, um mercadinho, um lugar que vende lembranças, qualquer
coisa. Aqui é tão pobre que nem isso eles têm! — Thor disse, batendo a mão
no banco.
— Mas nem se você for nas grandes cidades deles aqui você vai ter o que
comprar — eu disse. — Eles não usam dinheiro, esqueceram? O que você
quiser, você vai lá e pega.
— É, eu sei que é assim, e é justamente por isso que é tão ruim. Não dá pra
escolher as marcas, sabe? Não dá pra escolher o melhor. Eu tenho de engolir
o que colocam pra mim. — Jaqueline se virou para o meu lado, dobrando
uma perna sobre o assento, cruzando a outra sobre a coxa, encarando-me
através de Thor, entre nós.
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— E se o que eles produzem já é o melhor possível? — Eu me lembrei de


Jaqueline no barco, de seus seios fartos, de seu rosto cheio de sardas, sua pele
branca sedosa, e de como desejei levá-la para a cama. Ali, na vila, ela já não
me despertava mais a menor excitação.
— Como é que eu vou saber se é o melhor? Entende? — ela disse.
— Eles aqui fazem tudo aqui pra te tirar o poder de escolha, e depois vêm
com esse papinho de liberdade e não sei o que mais. Liberdade é minha
empresa, é meu carro, minha casa, minha comida, sem ter de dar satisfação a
ninguém. — Thor ergueu os braços à frente, cerrando os punhos.
— Nem à sua família? Você não quer dar satisfação nem à sua família? —
eu disse.
— Ué, como assim? — Thor me encarou numa virada rápida de rosto,
exalando surpresa. — Família é outra coisa, Ícaro.
— Mas é que eles se consideram aqui uma grande família. Então eles
sempre levam o outro em consideração.
— Podem até se considerar, mas não são. São estranhos se metendo na vida
uns dos outros, dizendo o que cada um tem de comer, o que cada um tem de
fazer...
— Não, não é bem assim — eu disse.
— Ora, vejam só, se não é o grande bilionário defendendo os miseráveis do
mundo — a voz de Penélope ressoou em meus ouvidos, vinda de trás, da
porta da varanda.
Ela se juntou a nós com um vestido justo, vermelho, colado em suas coxas e
de alças finas, revelando parte de seus seios num decote raso. Cabelo loiro
amarrado num coque ao lado da orelha, brincos de pérolas, batom rosa.
Apoiou a mão em meu ombro, parou ao meu lado.
— O que estou defendendo? — Eu me virei a ela, de rosto fechado.
— Uma vida que não te pertence. Só porque passou uns dias sujo feito um
porco ao lado daquela idiota, só pra levá-la para a cama, está aí achando que
sabe alguma coisa do mundo de cá. — Penélope apertou a unha em minha
pele, balançou-me para testar minha resistência. — Vocês dois sabiam disso?
Jaqueline, você sabia que o nosso Ícaro aqui tinha uma tara com gente fedida,
que era só pegar na terra pra que ele te desse uns pegas? Ele já teve gostos
mais refinados, vou te dizer.
— Penélope, pega leve... — Thor disse ao meu lado, inclinando o rosto com
os ombros erguidos.
— É, ele só tá cumprindo o que viemos fazer aqui. Você também tem o seu
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homem por aqui, não tem? — Jaqueline disse. — Eu até tentei com um
também, mas já desisti. Não consigo chegar perto desse povo, mas admiro
quem consegue.
— É diferente, Jaque, é diferente. O Ícaro descobriu uma missão nova, não
foi, Ícaro? Veja esses olhos dele, o que você me diz?
Eu me levantei, segurei-a pelo braço, aproximei meu rosto do seu e falei
entre os dentes: — Nós podemos conversar a sós?
Ela me encarou atentamente, varrendo meu rosto com suas íris azuladas, e
conforme meu aperto em seu braço se intensificava, o medo tomava conta de
sua expressão. Penélope engoliu em seco e acenou com o rosto. Despedi-me
de Thor e Jaqueline, e conduzi Penélope para o interior do Centro de
Convivência.
— Me desculpe, Ícaro, eu não queria... — Ela abaixou a cabeça,
obedecendo aos meus passos.
— Eu sei. — Eu parei ao lado de um canteiro de flores sob um teto de
vidro, afastado das outras poucas pessoas ali. — Eu sei. Você não está tão
errada assim. Eu... Eu estou diferente mesmo. Me sinto diferente. Mas fazer
graça de mim não vai ajudar em nada.
— Então é verdade mesmo? Você gosta dela? — Ela abriu a boca, de olhos
arregalados, alisando a pele avermelhada do braço liberto de minha pegada.
— Eu não sei. Gosto de estar com ela, e de passar perrengue com ela, de
conversar, e hoje nós transamos e... E foi maravilhoso. Foi muito bom, quero
dizer, tão bom que eu não consigo parar de pensar nela.
— Tá, e... Hm... E você sabe quem você é, não sabe? Sabe da vida que te
espera quando voltar, não sabe? Seu mundo não é esse, e nem comece a
pensar em levá-la para lá, porque isso não dá certo.
— Eu sei...
— Vocês estão se entendendo aqui porque você se dobrou completamente a
ela. Virou capacho, está fazendo tudo o que ela manda. Por isso estou tão
preocupada. Cadê a sua pegada? É só comigo que você vai apertar o braço e
arrastar pra onde você quiser?
— Eu não posso agir assim com ela, senão eu estrago tudo.
— Estraga o quê, Ícaro? A farsa? Que farsa, se agora você a quer de
verdade?
— Estrago o que ela sente por mim.
— E isso te importa? Você quer que ela goste de você? Ha ha, muito mais
sádico do que eu imaginava, hein. Quer mesmo arrancar o coração dela
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quando você for embora?


— Eu preciso mesmo ir embora?
— Ícaro, acorda! — Penélope estalou a palma aberta em minha testa. —
Olha que mundo miserável. Você nunca vai ter um carro aqui, nunca vai
viajar só pra curtir a vida, nunca vai fazer as festas que você tanto curte,
nunca vai ter uma casa própria, nunca vai comprar as roupas que quiser,
nunca vai fazer nada que a sua condição te permite. Você é o dono do mundo,
caramba! Vai abrir mão disso por causa de uma mulher?
— Não, não vou, é verdade, eu não consigo.
— Então o que você quer? Tá sentindo falta de sexo de verdade, do jeito
que você gosta? Você não precisa da Elisa, vem cá que eu sei te satisfazer.
Vem, vem comigo, vem pro quarto agora, eu vou te dar um trato que você
nunca vai esquecer. — Penélope segurou minha mão e me puxou.
Eu a puxei de volta, fixando-a no lugar. — Não. Eu não quero traí-la.
— Não quer trair a pobrezinha. Tudo bem, entendi. — Ela se sentou de
novo ao meu lado, erguendo uma sobrancelha, resignada. — Espero que você
se lembre do que vai acontecer no final. Nós não vamos sair dessa vila sem
causar impacto, você sabe muito bem disso.
— Sim, eu sei. Eu vou até o fim com vocês. — De olhos vidrados no chão,
respirei fundo e fechei os olhos. Elisa ficaria longe por uma semana. Que
efeito ela teria sobre mim?

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17 - Elisa

A terra que nos recebeu ficava a oeste, a caminho da nascente do rio de Água
Clara. Terra montanhosa, fértil e cultivada em sua quase totalidade. Para
recuperar a terra, castigada pelos pastos sem fim que dominavam a paisagem
antes da guerra que dividiu o mundo em dois, as comunidades da região
retrabalharam o solo com um misto de espécies nativas e vegetais
comestíveis, de modo que cada canto verde tivesse uso humano.
Eu, Jones e os outros companheiros que vieram de Água Clara recebemos
instruções de como aproveitar melhor o esquema montado pela comunidade,
e fomos apresentados aos Rodinhas. Pequenas máquinas rolantes com uma
esfera tão grande quanto seu corpo, elas conseguiam perambular entre
arbustos e vinhas, reconhecendo visualmente as espécies ao redor, fazendo
uma leitura geral da região de plantio. Analisavam os dados obtidos por todas
as outras máquinas e cavavam nos lugares mais adequados para cada tipo de
semente, muda ou rama que nós carregávamos.
— Da última vez que ouvi falarem sobre esses Rodinhas, ainda estavam em
fase de testes — eu disse, carregando uma caixa de ramas de batata-doce
entre algumas hortaliças altas.
— É, eu também estava meio desatualizado. Talvez isso aqui ainda seja
teste, mas olha como eles não erram uma! Parece que vão cair, mas passam
pela terra com mais facilidade do que nós. — Jones carregava uma caixa
como a minha, sem camisa, aproveitando o sol entre nuvens da nossa estadia
sem tempestade.
— Eu fico hipnotizada. — Enterrei uma rama num buraco que o Rodinha à
minha frente tinha cavado. — Precisamos levar alguns desses lá pra Água
Clara. Daqui a pouco nós vamos conseguir usá-los até pra tirar as plantas
daninhas, e imagina como isso vai poupar trabalho.
— O problema é que nós ficamos muito afastados de tudo, né? E somos
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muito pequenos, daí se não mostrarmos interesse, os outros nem sem


lembram que existimos.
— Sem contar que, no fundo, acho que gostamos do nosso jeito de fazer as
coisas. Esse apego é um perigo, eu que o diga.
— Também estou pensando nisso. Fazia tanto tempo que eu não saía de
Água Clara, que ver o pessoal daqui tão envolvido nessas pesquisas, junto do
resto da Federação, me deu uma certa inveja. Tem coisas que não se resolvem
só com fórum virtual.
— Só que eu não tenho vontade de sair de lá. Não consigo deixar os amigos
pra trás. — Plantei outra rama em outro buraco do Rodinha.
— Ah, eu já pensei nisso. Pelo menos passar um tempo em uma
comunidade maior, em uma cidade, pelo menos isso eu acho que me faria
bem.
— E por que não vai?
— Tinha algo que me segurava antes. Mas agora eu me sinto mais livre.
Agora, quem sabe, eu leve essa ideia mais a sério.
Ele apertou os lábios, escondendo os olhos dos meus. Um pressentimento
me dizia que o que o segurava antes era eu, mas eu nunca quis prendê-lo
comigo. Por mais que fôssemos amigos e estivéssemos envolvidos em quase
tudo juntos, aquele era um casamento ao qual eu não tinha sido convidada.
Deixei que o silêncio se abatesse entre nós, retornando ao meu encantamento
pelos Rodinhas correndo sobre a terra e cavando rapidamente.
Em uma das oficinas, depois de acabar com algumas caixas de ramas e
sementes, observei um dos nativos da região, Bial, cuidar de um Rodinha
defeituoso. Ele o desmontava sobre uma mesa e deixava à mostra a sua
estrutura interna permeada por giroscópios e estabilizadores, circundando a
grande broca que encontrava espaço entre os furos da roda vazada que a
máquina usava para se locomover.
— Quantos desses vocês já produziram? — eu disse, apoiando as mãos na
mesa, de olhos fixos no robô.
— Poucos ainda, na casa dos milhares. — Bial limpou a mão em sua
camiseta suja de óleo, balançando o rabo de cavalo crespo num sorriso. —
Esse aqui é um protótipo regional, adaptado pra regiões montanhosas, uma
variação do modelo desenvolvido em Juruci. Não sei se você tem
acompanhado as discussões no fórum, mas lá você vai ver as outras versões.
— Ele é um tipo de tratorzinho, só que que consegue criar campos caóticos
como se fossem feitos por pessoas. Eu ainda estou impressionada por ver um
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em ação.
— Lá na sua vila vocês têm o que de máquina?
— Tratores e drones compartilhados com as outras vilas, mas nada de mais.
Fazemos muita coisa na mão mesmo, porque tem pouca gente e a maioria
gosta de trabalhar com a terra.
— É o contrário daqui então. — Ele riu, encaixou uma peça do Rodinha. —
Aqui nós somos bem mais folgados, então qualquer robô é uma salvação.
Após uma semana imersa no ritmo pacato da comunidade, realizaram uma
pequena festa para a nossa despedida. Voltaríamos para ajudar na colheita
dali a alguns meses, mas a manutenção do terreno, conforme nos diziam,
ficaria a cargo deles e dos Rodinhas. Com a mescla de diferentes culturas
numa mesma área, o cuidado com pragas seria mínimo.
A festa foi o único momento em que me permiti parar e respirar com calma.
Tomada pela sensação de emergência, tendo deixado para atrás a minha vila
atormentada por uma tempestade que havia inundado vários de nossos
campos e arrasado as colheitas de emergência que havíamos preparado, eu
voltei ao ritmo de antes de conhecer Ícaro. Jones ao meu lado, trabalho
tomando meus dias e minhas noites, meu peito começou a me apertar, minha
respiração me sufocava, e durante a noite eu acordava inúmeras vezes
preocupada com o futuro.
A vila sofria com as trinta pessoas a mais para alimentar, e tinha sido tudo
culpa minha. Eu tomei a iniciativa de convidá-los entre nós, e não tinha a
coragem de expulsá-los.
— Quer dizer que esses visitantes só querem saber de consumir as coisas e
não dão nem uma mãozinha no resto? — Bial disse, segurando um copo de
suco numa cadeira debaixo de uma árvore, sob o céu opaco da noite.
— Um ou outro até tentou entrar no nosso ritmo — eu disse, mordiscando
um petisco com massa de mandioca, lembrando-me de Ícaro. — Mas eles
estão testando a nossa paciência. Tem que manter a calma, senão dá vontade
de deixá-los passando fome.
— Se fôssemos nós no mundo deles, é o que fariam conosco. Vê se eles nos
receberiam assim nas mansões deles, até parece. Nós ficaríamos na cidade e
teríamos de implorar por comida.
— Ainda bem que não somos como eles, não é? Mas que pena que eles não
são como nós.
— É, é uma pena mesmo. Um dia eles não vão ter como fugir. Nós vamos
vencer.
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Era o meu desejo também, torcendo apenas para que não viesse através de
armas. Que viesse através do amor, da preguiça. Pessoas dividindo as tarefas,
sobrando menos para cada uma fazer, eliminando ocupações inúteis,
refazendo o mundo para propiciar a autonomia de todos. Guerra, contudo,
pode começar só de um lado, e o outro lado nos ameaçava constantemente.
— Você já deve estar de saco cheio desses visitantes lá na sua vila, né? —
Bial cruzou as pernas e se virou para mim, sorrindo com segundas intenções,
analisando as curvas de minha cintura e o volume de meus seios sob a blusa.
— Eu e uns amigos daqui vamos fazer uma expedição lá pra Rio Bonito, bem
no interiorzão. Cachoeiras, trilhas, rios cristalinos... Não sei se você já viu
como é que é. Natureza linda. Se quiser se juntar a nós, vai ser massa.
— No momento não, Bial. Com a vila no estado em que ficou com a
tempestade, eu preciso voltar e ajudar. Tem muita coisa pra fazer. — Cruzei
os braços e as pernas, fechando-me a ele.
— É, já vi que o pessoal de Água Clara só quer saber de serviço.

O que eu mais queria era voltar para casa. Eu poderia morar onde eu
quisesse, eu poderia escolher qualquer comunidade em qualquer parte do
nosso mundo para fincar raízes, mas a sensação de comunidade ao lado das
pessoas que cresceram comigo me acalenta o coração mais do que tudo. Eu
desejava estar de volta ao olho do furacão, cuidando dos desafios de trinta
estrangeiros se aproveitando de nós. Com um deles eu tinha feito amor, e
para ele, mais do que tudo, eu queria voltar.
A estrada apresentava muitos buracos na região de Água Clara, e marcas
das inundações ainda permeavam a paisagem. Lama, pedras deslizadas,
árvores caídas, lagos e poças por todas as partes. O sol se mostrava soberano,
limpando as nuvens brancas que rumavam pelo céu como cordeiros mansos,
calmas após tantos dias de choro.
Jones reduziu a velocidade de nosso ônibus a menos de quarenta
quilômetros por hora, receoso de quebrar o veículo em um trecho de asfalto
destroçado pela erosão. Deixamos nossos caminhões na região onde
realizamos nosso plantio de emergência, cientes de que os utilizaríamos para
carregar a produção quando pronta. Emprestaram-nos um ônibus, mas não
trafegamos com nenhum carro de apoio, então qualquer problema significaria
um grande atraso para todos nós.
— Já era pra termos resolvido esses buracos há tempos. Se não me engano,
o Conselho de Manutenção tinha isso planejado, não? — Jones disse, pondo a
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cabeça fora da janela para ver melhor o asfalto.


— Ainda tá nos planos, mas com os visitantes na vila, tivemos de cuidar de
outras coisas, né. — De pé ao seu lado, diante do para-brisas, eu admirava a
estrada à frente como um capitão.
— É, esse pessoal tem sido um atraso mesmo. Não sei o que vamos tirar de
bom disso tudo.
— Novos amigos. Não é possível que eles saiam daqui indiferentes aos
nossos cuidados.
— Também torço por isso. — Jones se remexeu na cadeira, atento aos
buracos, pressionando os ombros sobre o volante, fazendo força.
— Você tem falado com a Penélope? Ela vive atrás de você.
— Às vezes a gente conversa sim, mas não tem muito o que se dizer. Ela
não quer me ouvir, e eu não tô nem aí pro mundo dela. Mas ela é bonita.
— Hm, então você também não resiste a beleza feminina, é?
— Ué, sempre gostei. — Ele me deu um sorriso gostoso, de amigo, seguro
de suas intenções. Jones era um cara tranquilo nesse sentido, evitando tomar
a iniciativa. Mas era bom saber que ele era tão normal quanto eu.
A paisagem tomada pelo sol ainda escorria na cor escura da umidade. A
terra vazava em pequenos córregos ao longo das caneletas da estrada, gotas
grossas pingavam da copa das árvores, cascatas minúsculas desciam pelas
encostas dos pedregulhos cobrindo o horizonte. Tudo isso debaixo de um céu
azul radiante, sinalizando o fim derradeiro da tempestade, e nossa chegada a
Água Clara.
Paramos o ônibus na Praça dos Veículos. Um pequeno comitê nos
recepcionou, composto por alguns membros dos Conselhos de Construção e
Manutenção.
— Elisa, estávamos só esperando vocês chegarem — Nadir me disse, uma
das pessoas mais ativas na manutenção dos nossos sistemas de circulação. —
Temos de nivelar umas estradas de terra urgentemente.
— Tem que consertar os buracos da rodovia também. Passamos por lá e a
situação estava bem ruim. — Eu pus as mãos na cintura e olhei ao redor,
procurando o rosto de Ícaro.
— Isso vai ter de esperar, porque pelo menos ainda dá pra passar. Mas
vários trechos de terra estão impassáveis, e estamos com dificuldade pra
circular entre os Postos. Quer tomar partido de uma frente? Tô pedindo pra
você e o Jones porque sei que o ritmo de vocês dois é mais frenético, mas se
alguém mais quiser aqui do ônibus, vai ser ótimo.
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— Tudo bem, é só perguntar pra eles. Quanto a mim, pode contar com
minha ajuda. É só me dirigir pra onde eu tenho de ir. Me dá a chave dos
veículos que eu já vou acoplar as ferramentas e partir agora mesmo.
— Ótimo, já venho te ajudar nisso.
Em minha mente, eu juntava os pontos e fazia todos os planos necessários.
Pensei na marmita que eu pegaria, no leitor eletrônico com manuais de
referência para lidar com qualquer situação nova, e com as pessoas que eu
poderia pedir para me acompanhar, pessoas com mais experiência no trato de
estradas. Nadir conversava com Jones e os outros em seu tempo apressado,
incapaz de esconder seu senso de urgência. Sem acesso aos Postos, nossa
sobrevivência ficava comprometida.
Tomada pelos meus pensamentos, nem percebi a chegada de Ícaro na praça.
Ele se aproximou de mim e parou ao meu lado, em silêncio. Virei-me a ele e
tomei um susto ao vê-lo tão perto. Abracei-o num impulso, envolvendo meus
braços nele com uma força explosiva, um forte abraço e depois o larguei.
— Que saudades de você! — eu disse, sentindo o rosto queimar o com o
rubor de minha excitação.
— Eu também. E aí, fez muita coisa? — Ele vestia seu blazer e a calça de
linho que usou na festa de boas-vindas, pisando no chão com seus sapatos.
— Sem parar, e ainda vou fazer mais! Parece que a situação aqui continua
crítica, então preciso ajudar no que for possível. Quer vir comigo? Vamos
acertar umas estradas.
— Você acabou de chegar, Elisa. Não vai descansar nem um pouquinho?
— Hoje eu só vou descansar na hora de dormir, e olhe lá, porque eu não
estou exagerando em relação à seriedade das coisas.
— Não parece nada grave. Acho que você tá exagerando sim. Vamos lá,
vem tomar um banho comigo, vem pro quarto pra gente matar as saudades
direito. — Ele deslizou os dedos em meu braço, buscando tomar posse de
minha mão.
Recuei, tirei minha pele de seu contato. — Ícaro, eu te entendo, mas esse
não é o momento. Você deve ter continuado a trabalhar aqui na vila, então
deve ter uma noção das nossas urgências. Onde você atuou nesse tempo?
— Em nada. Sem você aqui, pra que trabalhar? Eu tava te esperando.
— Então você ficou sem fazer nada só porque eu não estava ao seu lado?
Por acaso eu sou sua mãe, é? — O sangue esquentou em meu corpo,
abastecido não por paixão, mas por decepção e raiva. — Com tanta coisa pra
ser feita por aí, com tanta necessidade de gente pra ajudar, e você preferiu
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ignorar tudo? Posso saber o que tomou tanto assim do seu tempo pra você se
recusar a continuar o caminho que você já tava seguindo? — Apertei o
cenho, pressionando os lábios.
— Não sou obrigado a nada, você sabe disso. Estou aqui pra aproveitar a
vida, e só passei aquele tempo te ajudando pra quebrar o seu gelo, pra
conseguir te ter como uma mulher normal. Não pense que eu virei um de
vocês. Jamais! Eu queria te conquistar.
— Ah é? Então eu sempre estive certa ao te ver como um cara mimado.
Não sei por que você se ofendia tanto com isso, se é a verdade. Só consegue
pensar em você, no que você deseja, no que você quer. Não consegue me ver
como alguém com outras afeições, com uma mulher que também é amiga,
que também trabalha, que também sonha com um mundo bom, que quer amar
a vida como um todo, e não só um homem.
— Elisa, acalme-se, por favor. Eu não falei nada que você já não sabia
antes, não entendo por que a raiva. — Ele ergueu as palmas abertas à minha
frente, aproximando-se um passo.
— Eu estou calma. Só estou muito decepcionada com você. Achei que
tivesse começado a me entender, achei que estivesse percebendo o quanto eu
e o meu mundo fazemos parte de um mesmo sistema. Mas não, no final das
contas você só queria me levar pra cama mesmo. — Virei-me para longe
dele, temendo levantar a voz e falar mais coisas indesejáveis. Com tantas
necessidades precisando de cuidados na vila, ele só se importava com as
vontades dele. Não, aquilo era inaceitável, e eu me senti uma idiota.
Acostei-me ao lado de Nadir. — Já reuniu todo o mundo? Vamos lá que eu
quero sair logo daqui. Tô pronta.
— Ótimo, então vem comigo — Nadir disse, levando-me pela Praça dos
Veículos até o galpão coberto dos veículos de manutenção.

A minha frente de trabalho ficou responsável por cuidar da estrada até o


Posto do Monte. Um comboio de caminhões carregando caixas de tomates
circulou por lá durante a tempestade e destroçou parte da via, gerando
buracos de lama profundos e desalinhados. Barrancos caíram nas áreas
elevadas, depositando sedimentos sobre a passagem.
Limpamos a estrada antes de mais nada, utilizando uma escavadeira como
apoio, mas precisamos esperar os carregamentos de brita chegarem para
misturarmos à terra. Enquanto aguardávamos, retificávamos a terra onde
possível, percorrendo o caminho até cumprimos a cota do dia.
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— Ainda é pouco — eu disse, raspando o solo com meu trator. — Tem


muitas estradas precisando do nosso trabalho, então por que parar agora?
Vamos continuar até não dar mais.
— Nada disso, pra mim já deu por hoje — Nadir disse, afastando-se do
barulho do motor sob meu controle. — Todos vão parar agora, ouviu? Não
adianta continuar sozinha. Desce daí, Elisa.
— Se vocês já querem ir, paciência. Mas eu vou continuar. Eu sei o que
fazer, fiquem tranquilos. Só volto pra vila na hora de dormir.
Nadir balançou a cabeça, buscando conforto nos olhares dos outros
ajudantes. Jones suspirou, acenou para Nadir, deu passos largos em minha
direção e subiu na garupa do meu trator.
— Escuta aqui, já tá escuro. É ruim trabalhar de noite na estrada — ele
disse.
— Tem o farol, não tem? Olha ali, tá tudo claro — eu disse.
— É mais perigoso assim, e você tem que descansar. Chegamos de viagem
hoje cedo, e você não parou desde que amanheceu. Não quer voltar, tomar
um banho e se alimentar direito?
— Tô sem fome. Eu quero trabalhar, Jones, me deixa. Já era pra termos
consertado essas estradas há um tempo, mas não deu. Agora que é
emergência, precisamos de um ritmo de urgência, e tô aqui pra isso.
— Eu sei que você não faz corpo mole, Elisa. O que você quer provar aqui?
— Nada! Não quero provar nada. Quero só fazer o meu papel, só isso.
Ele se calou atrás de mim, olhando para o grupo de Nadir que montava em
seus veículos para voltar à vila. Jones ergueu uma mão a eles e saltou do meu
trator. Montou na garupa de um quadriciclo e foi embora com eles.
Revirei a terra com a pá acoplada à frente do meu trator, fazendo um
montinho acidentalmente num canto, desnivelando a passagem. Retornei e
esparramei a lama sobre o buraco, preenchendo-o por completo. Avancei
algumas dezenas de metros à frente, encontrando uma região de atoleiros,
precisando de drenagem antes do que qualquer outra coisa.
Peguei a pá na caçamba do trator, posicionei-o de modo que seus faróis
iluminassem boa parte da estrada, e desci sobre a lama para estudar o terreno.
Cavei sulcos entre as poças de lama para fazer com que a água descesse até o
ponto mais baixo, e de lá eu tive de cavucar um caminho até uma depressão
no meio da mata.
A escuridão me envolveu por completo tão logo me afastei da linha dos
faróis. Minhas galochas afundaram entre os arbustos da mata, pisando em
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folhas encharcadas e se prendendo em vinhas trepadeiras. Perto de mim, um


barulho entre as folhagens, algo que se mexia no breu. Um bicho? Uma
cobra? Voltei à estrada para virar o trator e usar suas luzes para iluminar o
interior da mata.
Um novo motor roncou na estrada, um quadriciclo vindo em minha direção.
Ele parou atrás do meu trator, e dele saiu Jones, carregando uma trouxinha.
Entregou-me o embrulho, segurando um igual em suas mãos, e me deu um
garfo e uma faca. Trouxe-me a janta, e se sentou na garupa do trator,
apoiando a cumbuca no joelho.
Por seu silêncio, eu sorri e me juntei a ele. Assentei-me na cadeira do
motorista, abri a tampa do meu pote e me inebriei com o cheiro de comida
fresca. Macarrão ao pesto, carne de feijão e salada de chuchu, vagem e
folhas. Numa primeira garfada, engoli junto aos nutrientes o isolamento de
minha condição. O preto da noite desceu em minha garganta, salpicado com a
sinfonia de cantos da mata, insetos, pássaros e anfíbios disputando os espaços
do som.
Ninguém ao redor além de Jones e eu. O garfo batia na parede dos potes e
arranhava o vidro, a boca se abria e a saliva estalava numa nova mordida. As
luzes dos faróis clareavam a frente, penetravam um ar denso de bichinhos
voadores, uma névoa de vida que desconfiava de presença humana e vinha
voar ao nosso redor, inspecionando nossas carnes.
— A vila tá uma bagunça — Jones disse baixinho, ainda mastigando. —
Não sei se foi porque ficamos esse tempo longe, mas todos estão na correria,
e por mais que limpem, tudo continua sujo e fora do lugar.
— Que bom que a tempestade já passou. — Eu remexi minha comida,
enrolando o garfo na massa.
— Mas não passou. A tempestade real são os visitantes.
— Hm, nesse caso já era. Por que você acha que eles são assim? Já parou
pra pensar nisso?
— Foram criados assim. Lá no outro lado, é assim que funciona as coisas.
Se você tem poder, você recebe tudo na boca, igual criança.
— Pois é, mas eles não ganham nada com isso. Por que não são como nós?
Por que resistem tanto se unir ao nosso mundo?
— Elisa, pra quem nunca cuidou das coisas na vida, é difícil abrir mão da
preguiça. Pra deixar de ser mimada, a pessoa tem de ser educada por outros
que não sejam mimados. E lá no outro lado, todos com poder são mimados.
— É justamente isso que não entendo. Eles lutam pra continuarem
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mimados, mas se nós os chamamos de mimados, eles ficam irritados e tentam


se justificar de mil maneiras. Se eles se envergonham disso, por que não
tentam mudar? Ou nos permitem ajudá-los nisso?
— Aí você tem que ver com eles... Eu não vou ser prepotente a ponto de
achar que posso explicar o jeito com que eles agem.
— É, eu também não sei explicar.
Jones e eu terminamos de comer, e ele me ajudou a concluir o primeiro
passo da drenagem daquele trecho. Retiramos alguns excessos pelo caminho,
limpamos o acostamento de alguns galhos caídos, e avançamos um pouco
mais só para termos noção do que nos aguardava no dia seguinte.
Voltamos à vila num ritmo vagaroso, apreciando o luar. Guardamos os
veículos na garagem, passamos uma água neles com a mangueira para retirar
a crosta de lama, e nos despedimos. Desligada de minhas obrigações no dia, o
corpo se fez sentir, pesando sobre a terra como um saco de batatas. Minhas
pálpebras clamavam pela cama, meus pés ardiam numa agonia medonha,
brigados com o chão.
Tomei uma ducha rápida, circulando o sabonete sobre todo o meu corpo
com força, molhando os cabelos apenas para tirar o suor. Eu dormiria com
eles ainda úmidos, infelizmente, mas se não os lavasse, eu arriscava sujar o
travesseiro com lama e poeira. Saí do banho já trajando minha camisola,
depois de ter escovado os dentes, seguindo direto para o dormitório.
Passei pela porta em silêncio, vislumbrando a sombra de Ícaro na cama. Fiz
de tudo para não acordá-lo, doida como eu estava para simplesmente dormir
em meu colchão e não ter de lidar com ele naquela noite, não depois de ter
me decepcionado tanto com ele.
Entrei nas cobertas e me virei para o lado da parede. De olhos fechados,
chamei o sono, feliz por estar ali, finalmente, descansando. Ícaro se revirou
no colchão, e achei que apenas mudasse de posição. Ao invés disso, deu
passos no chão até chegar ao meu colchão. Deitou-se ao meu lado e pôs a
mão em minha cintura.
— Estava te esperando — ele disse.
— Ícaro, sai! Volta pra sua cama, finge que eu não estou aqui!
— Para de se fazer de difícil, vai, eu sei que você quer... Precisa disso tanto
quanto eu. — Ele deslizou a mão sobre meu ombro, arrastando a manga da
minha camisola para baixo, revelando meu pescoço. Beijou-me a pele.
Eu o empurrei para atrás e me levantei de súbito. — Eu disse que não,
Ícaro! Você não consegue me respeitar?
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Abri a porta do quarto, carregando meu lençol, e pisei sobre o chão com
passos carregados de fúria, fazendo tudo tremer.
— Eu não vou ficar com um abusador, eu me recuso a dividir o quarto com
alguém como você! Não é não! Eu não quero, ouviu, eu não quero. Depois de
um dia cansada, trabalhando, exausta, eu chego no quarto e você quer
transar? Logo você, que...
— Elisa, fala baixo, por favor, shhh — Ícaro veio atrás de mim, pondo o
dedo na frente da boca, olhando para as portas fechadas do dormitório com o
rosto tomado pelo pânico.
— Logo você, que não faz nada da vida, que poderia ser uma pessoa tão
rica de verdade, tão criativa, tão produtiva, e escolhe viver nessa pobreza aí,
nessa miséria de deixar que os outros cuidem de tudo pra você, que te tratem
igual criança. Um crianção, é isso que você é, você e todos os seus amigos!
Uma criança que acha que só porque tem um desejo não precisa de mais nada
no mundo, só satisfazer esse desejo e pronto, custe o que custar, machuque
quem machucar! Você não tá sozinho no mundo, Ícaro, aprenda isso! E você
não é o chefe de nada, ouviu? Aqui você não manda em ninguém, aqui você
não obedece. Aqui você conversa e respeita.
Continuei minha marcha sem olhar para atrás, sem me importar se ele me
seguia ou não, se ele se trancava no quarto ou não. Caminhei pelas passarelas
até o Centro de Convivência, deitei-me no grande sofá de uma das salas, e
dormi um sono agitado.

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18 - Ícaro

Quando acordei, não queria saber da hora, mas desconfiava que era cedo. As
marcas da presença de Elisa se manifestavam assim comigo, mostra clara de
seu peso sobre mim. O sol batia nas cortinas da janela e iluminava o quarto
num claro cheio de vida, chamando-me para o dia. Para me levantar tarde, eu
precisaria mudar de ambiente e de companhia.
O colchão de Elisa estava vazio, desarrumado desde a noite anterior. Seu
lençol não estava mais lá, carregado por ela em sua fuga de mim. Se eu saísse
cedo da cama, arriscaria encontrá-la lá fora, ao lado de outras pessoas que
talvez tivessem ouvido a gritaria. Fiquei entre os lençóis, segurando a
vontade de ir ao banheiro, esperando adormecer novamente.
Meus olhos não me deram descanso. Despertos e sem sono, mantiveram-me
acordado ao longo das horas. Eu rolava na cama em busca das poses-chave
que me apagassem, mas ao invés de dormir, eu pensava na vida, na vergonha
que passei, na explosão de Elisa. Eu achei que ela fosse voltar carente, doida
para estar comigo, pois nos despedimos no auge de nosso carinho. As
preocupações, porém, lhe tomaram toda a cabeça, e eu não imaginava que ela
estaria tão abalada.
A cama me expulsava, por mais que eu insistisse nela. Era hora de erguer a
cabeça e enfrentar o mundo, quaisquer fossem as consequências dos meus
atos. Vesti minha roupa com movimentos mecânicos, munindo-me de
coragem. Fui ao banheiro e passei pelos corredores com o peito erguido,
pronto para confrontar os que esperassem satisfação da minha parte. Eu não
tinha feito nada de errado. Elisa é que tinha surtado.
No refeitório, os poucos nativos que faziam suas refeições me olharam com
desconfiança, apertando os olhos e as bocas. Oliseu comia sozinho em uma
das mesas. Ele ergueu a mão para me chamar. Fiz meu prato com os últimos
restos do buffet, sentei-me junto a ele, e relaxei os ombros.
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— Tem reunião depois lá no barco. A Penélope convocou, e parece que


você já não é mais o chefe mesmo. — Oliseu falou baixo, escondendo a boca
atrás das mãos.
— Reunião de quê? — Levantei as sobrancelhas, interrompendo minha
garfada rente aos meus lábios.
— Da missão. Não estamos aqui à-toa, não é?
— Ah, cara, isso é besteira. Estamos aqui à-toa sim, tá na hora de você
aceitar isso. Acha mesmo que nós vamos exercer qualquer impacto aqui com
eles? Nós?
— Eles têm feito planos de emergência, têm estado preocupados. Isso é
impacto, não acha?
— Verdade, mas e daí? Eles têm acesso a uma federação maior do que
qualquer país do nosso lado. Tudo de graça, ajuda a qualquer hora. O que um
bando de ricaços pode fazer nisso tudo? Estamos aqui por conta do nosso
tédio, porque os seus velhos querem se livrar de vocês, aceita isso.
— Nisso você se engana. Nós podemos fazer muita coisa, você deveria
saber disso. Quando eles estiverem passando fome aqui e se cansarem de
tanto refazer as mesmas coisas de sempre, você acha mesmo que não vão
resistir a um convite para abandonar essa vida deles? Nós podemos lhes dar
dinheiro e mostrá-los como é bom viver como nós.
— Você quer levá-los conosco, é?
— Por que não? No nosso lado eles podem ter uma vida melhor, você não
acha? Cada um pode ter sua casa, suas coisas, pode andar de carro, pode
comprar o que quiserem. Coisas deles, de ninguém mais, sem dividir nada.
Estamos aqui para lhes fazer um favor, não estamos?
Balancei a cabeça, estranhando o discurso de Oliseu. Ele falava como eu
mesmo falava ao vir para a vila, ele ainda não conhecia o povo de Água Clara
e acreditava ser mais esperto do que todos eles.
— Reunião no barco na hora do almoço. Aparece por lá, viu? — Ele se
levantou da mesa e me deixou sozinho, finalizando meu café da manhã.
A reunião não me atraía nem um pouco. Eu já tinha entendido que aquele
encontro seria para combinar os passos derradeiros da missão, para organizar
a melhor forma de sujarmos as mãos. Eu não queria sujar minhas mãos, por
outro lado Elisa parecia ter desistido de mim. Meu papel naquela missão foi
arruinado por meus sentimentos, arrasado da pior maneira possível.
Sem Elisa e sem meus companheiros de barco, não me restava com quem
conversar. Receoso de me deparar com alguém que tivesse ouvido a bronca
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dela na noite anterior, minha vontade era a de me esconder em um canto. Mas


essa era a vontade do covarde, e com isso eu não resolveria nenhuma das
minhas preocupações.
Lembrei-me de Maya, a mulher que havia me passado serviços de tradução
no dia de meu jantar a sós com Elisa. Por ela ter vivido por um tempo no
outro lado, talvez ela pudesse me ajudar com minha perturbação. Procurei-a
no prédio em que atuava, e a encontrei sozinha em sua sala.
— Olha só quem voltou! — Ela disse, levantando-se com os braços abertos,
pronta para me abraçar. — Vem aqui, Ícaro, me conta o que te traz até essas
partes da vila.
Retribuí o abraço pela necessidade de reconforto, incapaz de segurar o
sorriso aliviado de meu rosto. — Estive pensando em você, Maya.
— Ora, em mim? Eu já tenho uma certa idade, não sei se você percebeu, e
me admira que você perca seu tempo comigo quando tem a Elisa ao seu lado,
porque, cá entre nós, ela é muito mais enxuta do que eu, apesar de que eu
quando mais jovem tinha meus charmes também. — Ela pôs a mão na cintura
e inclinou o rosto, olhando alto, fazendo beiço.
Eu ri de sua brincadeira e me sentei na cadeira ao seu lado. — Na verdade
eu queria saber mais sobre a sua relação com o meu mundo. Você era feliz
por lá, não era?
— Feliz em que termos? Sim, porque não é fácil responder isso quando se
trata do outro lado. Seu mundo é contraditório ao extremo, Ícaro. — Ela se
sentou novamente, retirando a cadeira da frente do computador, virando-a
para mim. — Por um lado, pujança e prazeres, por outro, carência e miséria.
Eu tive bons momentos por lá, eu tive sim, não posso negar, tanto com os
poderosos como com as pessoas simples. Mas bastava sair às ruas pra me
entristecer no mesmo momento.
— Nós quase não temos mais pobreza. Que miséria é essa da qual você
fala?
— É verdade, as pessoas lá não passam mais fome, mas a miséria é mais do
que isso. Um segurança fica o dia todo parado, sem fazer nada, vendo a vida
passar, quando ele poderia ser tanta coisa. Um vendedor passa o dia atrás de
um balcão, ou de pé numa loja, repetindo as mesmas frases, sem ter tempo
para ficar com a família, sem aprender nada de novo. Um entregador de
panfletos fica horas no meio da rua dando pedaços de papel sem valor,
afastado de qualquer chance de crescimento. Milhões de pessoas numa
existência vazia, Ícaro, angustiada e frustrante. Pobreza de espírito também é
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pobreza. Até pior do que a de bens materiais.


— Entendi, apesar de discordar. Você deve ter andado pelo mundo todo,
não é?
— Sim. Já te contei um pouco de minhas viagens.
— E sente saudades?
— Sinto saudades das pessoas que conheci. Mas minha vontade era trazê-
las para cá, e não ficar por lá. É uma pena que nosso avanço no mundo tenha
sido interrompido na metade. Nós poderíamos estar todos juntos agora.
— Quem dividiu o mundo foram vocês.
— Não, Ícaro. Ele já era dividido antes. Nós é que tentamos acabar com
isso. Diga-me se você não seria mais feliz se a Elisa não fizesse parte de um
mundo oposto ao seu.
— Por que você sempre fala dela para mim?
— Porque você a ama.
Engasguei, de boca aberta. Desviei o olhar do rosto de Maya, engoli em
seco para me recompor. — Ela fugiu do quarto ontem à noite. Eu queria
dormir com ela, mas ela não me quis.
— Você insistiu?
— Ela também queria, eu sei que ela queria. Como poderia não querer,
depois do que tivemos, depois do nosso tempo afastados?
— Você insistiu... Isso não se faz. Sei que é comum no seu lado do mundo,
mas aqui não é.
— Eu só queria que ela visse o meu lado também. Não é justo que eu tenha
de mudar mil coisas só para estar com ela.
— Você não precisa mudar mil coisas. De onde tirou essa ideia?
— Dela! Ela quer que eu seja outra pessoa, senão não sirvo para ela.
— Ela só quer que você a respeite, Ícaro. Apenas isso. Você não pode
respeitar uma mulher apenas para levá-la para a cama. Isso é pobreza mental.
Está vendo como seu mundo é pobre? Você tem que respeitar uma pessoa
com olhos voltados para toda a vida dela. Ninguém nasce no vácuo. Cada
prato que lavamos, cada tarefa que realizamos, cada coisinha dessas diz
respeito a quem somos.
— E quando é que ela vai me respeitar então?
— Desde que você chegou ela já te respeita. Todos nós te respeitamos.
Você é a visita aqui, não é? Pelo que eu saiba, não tem vivido exatamente
como nós, e nós continuamos a conversar com você, continuamos a querê-lo
bem. Aposto que nós te tratamos melhor por aqui do que seus próprios
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companheiros de viagem, não é verdade?


Abaixei os olhos, sentindo brotar no peito a acidez das palavras de Oliseu e
Penélope. Mas Elisa fugiu de mim, não me deu a chance de falar sobre o que
eu sentia. Se eu quisesse me aproximar dela, teria de me aproximar não só de
sua presença física, de seu corpo de mulher. Teria de me aproximar de seu
mundo como um todo.
— Tudo bem, Maya. Você tem alguma tradução aí precisando de ajuda?
Preciso distrair a cabeça um pouco.
— Claro que tenho traduções! Nós sempre temos traduções — ela disse,
rindo de mim. — Liga a máquina aí do seu lado e vamos lá.

Maya me deu um artigo com linguagem acessível para que eu traduzisse,


um artigo cujo conteúdo me interessou. Havia uma vila no coração da
Federação onde faziam experimentos para a automatização da totalidade dos
trabalhos do local, liberando seus habitantes de qualquer fadiga, realizando
uma verdadeira utopia na Terra. Várias pesquisas eram realizadas sobre todos
os aspectos do experimento, e traduzindo algumas observações sobre as
alterações psicológicas naquelas pessoas, eu pensei no impacto que aquele
artigo teria no outro lado.
Logo chegamos à hora do almoço, após pararmos um tempo para conversar
sobre os temas de nossas traduções. Não havia horas a se cumprir naquele
trabalho, não havia ordens. Havia apenas projetos a serem cumpridos, no
tempo adequado a cada pessoa. Portanto, tão logo terminei de revisar o texto
que Maya tinha me passado, aguardei que ela o lesse em busca de erros
ortográficos, e assim partimos para o refeitório.
Em companhia de Maya, estando ela já ciente da confusão pela qual passei
com Elisa na noite anterior, eu me senti mais forte para enfrentar os olhares
alheios. Entrei na fila do buffet, servindo-me de um prato atrás de Maya, e
ouvi o burburinho dos que montavam suas refeições com ouvidos atentos.
Captei alguns olhares reprovadores vindos em minha direção, mas nenhuma
fala agressiva.
Ao chegar ao fim da fila, preparando meu prato, uma presença se pôs ao
meu lado, e por um segundo meu coração gelou. Se fosse Elisa, ela gritaria
comigo diante da multidão, expulsando-me dali? Virei o rosto e me deparei
com a negritude da pele de Laura, seu rosto infantil emoldurado pelos cachos
pretos de seus cabelos. Ela segurava um prato com uma das mãos, e apoiava
a outra em sua cintura, apertando os lábios num bico irritado.
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— Vem sentar comigo — ela disse.


— Por quê? — Eu olhei ao redor, procurando Maya, procurando algum de
meus companheiros.
— Precisamos conversar.
Ignorei o seu pedido, passei rente à sua figura de pé. Sentei-me na mesa que
Maya havia escolhido, circundada por quatro cadeiras. Laura me seguiu
colada ao meu braço, encostando em mim. Por fim, juntou-se a nós como se
no fim das contas eu a tivesse obedecido.
— Eu ouvi o que você tentou fazer ontem com a Elisa. — Laura pôs o prato
na mesa à sua frente, fechou as mãos sobre as coxas e me encarou. — Você
quis abusar dela. Por quê, Ícaro? Por que você não conseguiu se controlar?
— Não foi nada disso. — Eu cortei um pedaço de empadão de palmito, de
olhos atentos ao meu manuseio. — Foi tudo um mal entendido.
— Então você não se arrepende de nada? Pra você foi uma situação
qualquer?
— Eu não sabia que ela iria reagir daquele jeito. Nós tivemos momentos de
intimidade, eu achava que nós tínhamos atingido essa liberdade um com o
outro. Estava com saudades dela, e queria fazer carinho nela. Isso é errado?
Laura encostou as unhas em meu braço e as arrastou sobre minha pele,
arranhando-me. Retirei meu braço de seu contato, mas ela insistiu em me
arranhar, agarrando-se a mim para continuar em seu assédio.
— Ei, para com isso! — eu disse, afastando-me da cadeira.
— Eu tô com vontade de te arranhar. Isso é errado? — Ela fez um bico
inocente, arregalando os olhos.
— Tá, tá, entendi, pode parar, tá bom? — Eu segurei sua mão e impedi seus
movimentos. Maya ria ao meu lado, observando tudo com calma.
— Percebeu, né? Aprendeu que há momento pra tudo, não percebeu? De
que vai adiantar forçar a outra pessoa a aguentar uma coisa que só você quer,
se depois essa pessoa nunca mais vai querer nada com você? Você sai
perdendo tanto quanto ela.
— Um abuso, no fundo, é demonstração de poder — Maya disse,
gesticulando com o garfo próximo à boca. — Esse é um mal que assola o
mundo do Ícaro, e lá no outro lado o que ele mais tem é poder.
— É, só que aqui você não tem esse poder, então pode parar com esse
comportamento. — Laura deu uma garfada e mastigou com força.
— Por acaso vocês acham que sou criança, é? Falam de mim como se eu
não fosse dono de mim. — Eu abri os braços e dei de ombros.
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— Você não é criança. É um homem muito bonito e simpático — Laura


disse, inclinando o rosto com um sorriso sincero. — Cometeu um erro e
estamos conversando, só isso. Eu quero te entender, e quero que você nos
entenda, pra que não faça mais isso.
— Sempre sou eu que cometo os erros por aqui. Melhor eu me acostumar
mesmo, não é?
— Seu mundo é cheio de problemas, Ícaro — Maya disse. — Aqui nós
também temos o que resolver, mas pelo menos no nosso lado ninguém manda
em ninguém. Só isso já torna nossas relações muito mais harmoniosas. Por
isso você tem essa impressão de que tudo sobra pra você. Não é culpa sua.
Você é filho do outro lado.
— É, exatamente, relaxa — Laura disse. — Você se arrepende do que fez
com Elisa ontem?
— Sim. Quero pedir perdão a ela. — Eu olhei baixo, prendendo os olhos no
meu prato, preparando outro pedaço.
— Ótimo, então a vida segue. Se quiser retomar a confiança de Elisa, mãos
à obra!
— Como eu posso fazer isso? Não sei por onde começar. Será que ela
aceitaria me ver?
— Meu bem, o melhor jeito de conquistar o coração daquela mulher é me
ajudar a lavar os banheiros agora de tarde. — Laura ergueu as sobrancelhas,
segurando uma risada, de ombros apertados.
Eu ri de sua expressão, aliviado por receber mais uma chance após o mal
que eu tinha causado. — Se é o jeito, então vamos lá... Você não vai se
importar se eu te abandonar nas traduções não, né, Maya?
— Ô, claro que não, Ícaro. Lavar banheiros vai ser uma boa meditação pra
você. — Maya juntou uns grãos de arroz na beirada do prato e os levou à
boca com os dedos.
Fui com Laura a um dos dormitórios para pegar nossos baldes, vassouras e
rodos. Juntamos os produtos de limpeza, as buchas, e pegamos um par de
panos de chão. Eu, que nunca tinha lavado banheiros na vida, ajudei Laura a
molhar as paredes em cerâmica do primeiro, ensaboando-as com a bucha.
— Você não se preocupa com o futuro, Laura? — eu disse, enrolando a
bainha da minha calça para evitar que molhasse com os pingos d'água que
espirravam a calda balde jorrado sobre as paredes.
— Hm, que pernas gostosas... — Laura disse, lambendo os lábios ao se
deparar com parte de minhas coxas. — Ops, o que você disse mesmo? Sobre
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o futuro? Ah, o futuro é sempre a incerteza, né? Mas eu tenho mais esperança
do que medo. Por que se preocupar se nós estamos fazendo de tudo para que
seja bom?
— Porque mesmo fazendo de tudo, pode ser que não seja bom. Passar a
vida lavando banheiros, por exemplo, ou limpando as coisas... O que vai
acontecer quando você for velha? Como vai sobreviver?
— Ué, da mesma forma que eu sobrevivo agora. Dormir num quarto, comer
no refeitório, ajudar onde for preciso, fazer exercícios, pegar remédios no
posto de saúde... Qual é o mistério?
— Vocês aqui não têm aposentadoria? — Abri a porta de uma baia de vaso
sanitário, jogando um pouco d'água sobre o assento.
— Moço, o que é isso? Aposendatocria? Aposen... Aposendacaria? —
Laura falou alto de outra baia, esfregando a cerâmica com uma escovinha
comprida.
— Quando você fica velho, você não pode mais trabalhar. Precisa de juntar
dinheiro ao longo da vida pra se manter depois. Mas como vocês não usam
dinheiro aqui, como é que fazem?
— Nós cuidamos dos mais velhos, ué. Por que nós precisaríamos nos
preocupar com a sobrevivência justamente na nossa fase da vida mais frágil,
e depois de termos feito tanta coisa pra ajudar o mundo? Se a pessoa tem
lucidez, ainda dá pra ajudar na comunidade até morrer. Se não tem, várias
pessoas ajudam a cuidar dela. Não é assim o modo natural de cuidar das
pessoas?
— É sim, mas não é fácil. Nesse ponto, pelo menos nesse ponto, eu queria
que no meu mundo as coisas fossem como aqui.
— Que bom. Pelo menos em algo nós acertamos, né? O problema é que não
dá pra levar só esse ponto lá pro seu lado. Só funciona assim se levar tudo
junto.

Conforme passavam as horas do dia, minha coragem aumentava. O medo


de cruzar com Elisa em algum corredor se tornava uma expectativa, uma
vontade de que acontecesse. Tão logo eu me resolvesse com ela, mais cedo
eu poderia ficar em paz e retomar a minha relação com ela. Sim, pois Elisa
tinha se tornado a minha missão, minha única e exclusiva missão, e o barco
ficava lá no porto, ignorado, sem que eu me importasse. Eventualmente, eu
sabia, tudo iria pelos ares, mas se fosse assim enquanto eu estivesse afastado
da pessoa que tinha me dedicado o maior carinho, parte do meu coração se
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perderia para sempre.


Tomei banho depois de uma tarde colocando os banheiros em ordem junto a
Laura. Limpo e perfumado, procurei Elisa pela vila. O local tinha poucos
prédios, e seu sistema informatizado poderia me dizer onde ela estava, mas
ela tinha feito questão de não informar seu paradeiro a ninguém. Percorri os
corredores e os salões com o peito apertado, ansioso para encontrá-la a cada
nova virada. No refeitório, comi ao lado de Penélope e Oliseu, os dois me
recriminando por ter faltado a reunião, dando-me os detalhes do novo plano
num falatório entendiante que sequer conseguia me prender a atenção. Minha
mente estava voltada a outra situação, a uma missão muito mais nobre.
Fiquei com eles na mesa por muito mais tempo além da refeição. Sendo o
refeitório o local de encontro geral, onde praticamente todos se encontravam
para comer, eu tinha a certeza de que uma hora Elisa iria aparecer ali e me
confrontar. As horas passaram, porém, sem que ela desse as caras, quando até
mesmo minhas companhias se cansaram de falar e me convidaram para
caminhar pelas praças.
Aceitei o convite apenas para manter as aparências, apreciando a noite
nublada naquela vila calma que crescia em minha estima a cada dia. Penélope
ria sadicamente, acompanhada por Oliseu.
— Esse lugar precisa de um pouco de caos, vocês não acham? — ela disse.
— Sim, estão precisando de uma renovação, certamente. — Oliseu cruzou
as mãos atrás das costas, estufando o peito e o nariz.
Se esperavam que eu me juntasse a eles, estavam mais perdidos do que eu.
O meu mundo perdia seu charme, e do meu dinheiro eu mal me lembrava.
Depois de semanas sem precisar usá-lo para nada, eu começava a me
acostumar a um mundo sem bilionários, a um lugar sem pessoas como eu. E
o que seria eu sem o meu dinheiro? Que papel me restava perante os outros?
Quem era eu por trás do papel que eu exerci durante toda a vida? Mais do que
um abusador, muito mais do que aquilo, eu implorava para que eu fosse.
Despedi-me de Penélope e Oliseu com a desculpa de que estava com sono.
Eles me olharam com desdém, de lábios pressionados e uma sobrancelha
erguida. Que fizessem como quisessem, porque eu me preparava para um
conflito muito maior do que o que tinham em planos. Um conflito para salvar
a mim mesmo.
Abri a porta de meu quarto com a esperança de encontrar Elisa lá dentro.
Tudo escuro, vazio como eu o havia deixado de manhã. Acendi a luz, tirei os
sapatos e me deitei na cama. Escondi os olhos com o braço, e assim fiquei
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pensando nela. O que dizer, como sair daquela situação, tudo girava em
minha cabeça numa sequência de simulações, a minha conversa com ela
encenada à exaustão.
O cansaço me tomou o corpo, e mesmo com a luz clareando minhas
pálpebras, a sonolência me amoleceu. Tirei cochilos curtos, acordado pela
claridade, pela preocupação. Revirei-me no colchão e suspirei a cada nova
posição, imerso num mar de questionamentos.
A porta se abriu. Levantei a coluna num salto, permanecendo sentado na
cama. De olhos em alerta, apertei o colchão sob minhas palmas. Elisa me
encarava de pé em frente à porta, de queixo erguido, punhos fechados. De
camisola e pele branca perfumada, seus cabelos ainda úmidos roçavam sobre
os ombros tensos. Ela me estudava tanto quanto eu a analisava, nós dois
presos num duelo de olhares.
— Eu não vou mais fugir de você — ela disse, fechando a porta atrás de si,
inundando o quarto com sua voz grave. — Você vai ficar no seu canto, eu no
meu, e você vai me respeitar. Consegue me respeitar, ou é mesmo um
crianção que não consegue se controlar?
— Fique, Elisa, por favor. O quarto é seu. Não está certo você ficar sem
onde dormir por minha causa.
— O quarto não é meu. Mas não tá certo mesmo eu ter de dormir no sofá,
isso você entendeu. — Ela se sentou sobre o colchão no canto do quarto, de
costas encostadas na parede, de rosto virado a mim.
— Ontem foi um dia ruim. Não pense que eu fiquei feliz com o que
aconteceu. Esse mundo de vocês... Ele mexe com a minha cabeça.
— O que tem de mais nesse mundo nosso? Desde quando respeitar a
vontade da outra pessoa é algo estranho? Vocês não têm gente do outro lado?
— Não é isso... Olha, eu já me relacionei com outras mulheres, já tive casos
que você nem imagina. — Eu me arrastei pela cama, apoiando as costas na
cabeceira, afastando-me de Elisa. — E isso nunca aconteceu antes, mesmo eu
tendo feito a mesma coisa que eu fiz com você. Sempre achei que as
mulheres eram assim. Charme, sei lá. Diz que não tá a fim, mas tá, porque
depois que fica bom, ela muda de ideia e me agradece.
— Essas mulheres não foram sinceras com elas mesmas. Estavam com
medo de você. Quem é que vai agradecer por uma falta de respeito? Um
golpe desses deixa uma cicatriz profunda.
— Mas eu só queria ficar com você. Passamos uma semana distantes. Você
não ficou feliz em saber que eu te esperava?
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— Eu te esperava com outros olhos. O Ícaro que eu encontrei não foi o


mesmo que me deixou excitada antes.
— Era a mesma pessoa! Eu não mudei nada.
— Justamente. Talvez não tenha mudado nada mesmo, no final das contas.
Eu achava que tinha, eu achava que nós estávamos criando um mundo só
nosso, um lugar onde pudéssemos nos encontrar para sermos felizes. Eu
confiava em você.
— E não confia mais?
— Não. Desconfio totalmente.
— Eu trabalhei hoje, sabia? Fiz traduções, e depois lavei banheiros. Fiz isso
por você.
— Então fez pelo motivo errado.
— Por quê? Por acaso você não me queria por perto para mudar? Por acaso
não seria eu o gatilho da sua mudança? Por que então não pode ser você o
gatilho da minha?
— Porque você não quer mudar. No fundo, só quer me quebrar para me
levar para a cama. Me abrir pra depois fingir que nada aconteceu.
— Elisa, por favor...
— Por favor o quê?
— Você não sabe o que se passa comigo, não fale assim.
— Então me diga o que se passa com você.
— Você vai confiar?
— Não.
— De que vai adiantar, nesse caso? Sem confiança, o que nós temos?
— Um eterno confronto. Você gosta disso? Não é assim que vocês vivem
do outro lado? Um eterno confronto, competição em todos os lados?
— Eu quero a paz. Eu confio em você. Confie em mim também.
— Para que vai me servir essa confiança?
— Pra você saber que eu te quero bem. Estou arrependido do que fiz.
— Só pra isso?
— Não sei o que mais eu posso te oferecer. Isso é tudo o que eu sou.
Ela acenou a cabeça, piscou lentamente os olhos, e mordiscou o lábio.
Levantou a mão sobre o interruptor, escondeu o rosto na parede.
— Tudo bem. Podemos ir dormir agora? — ela disse.
Suspirei, frustrado, repuxando o canto da boca. — Sim, podemos. Durma
em paz, Elisa. Eu nunca mais vou te faltar com respeito. Isso empobrece a
vida, e eu não quero ficar pobre.
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Apoiei a cabeça no travesseiro, perturbado com o silêncio. O escuro me


tomou, assombrando-me com a presença de Elisa no canto, seu corpo atraente
e sua personalidade forte. Mas ao invés de querer tocar nela e experimentar
de seus sabores, a vontade que me ninou foi aquela de garantir a sua paz. Que
ela ficasse onde quisesse, sem ser perturbada, e fosse feliz. E se me quisesse
por perto, seríamos os dois felizes assim.

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19 - Elisa

Acordei várias vezes durante a noite, e em todas elas pensei em tirar o


colchão do quarto e ir dormir em outro lugar. Ícaro dormia com sua
respiração pesada na cama. Em parte eu o invejava pelo sono tranquilo, em
parte ele me assustava com seu potencial destrutivo. Eu não tinha medo dele,
mas se me surpreendesse, eu não teria como me defender.
Aquela era a minha cicatriz. Em meu coração, eu sabia que ele tinha
aprendido a lição, e duvidava que ele fosse cometer o mesmo erro
novamente. Ele não era uma pessoa ruim, não era possível que fosse. Por
outro lado, bastou cruzar a linha uma vez, quando eu começava a me
acostumar com ele, para que a barreira se reerguesse entre nós.
O sol do começo de primavera deu as caras pelas cortinas da janela. Foi o
meu sinal, o chamariz para o meu despertar definitivo. Levantei-me do
colchão em silêncio, e nas pontas dos pés eu saí do quarto. Ícaro repousava
com o rosto contorcido sobre o travesseiro, vestindo uma camiseta leve. Pela
primeira vez desde que nos vimos, dormiu com o peito coberto.
Lavei-me no banheiro do dormitório, peguei a minha muda de roupa no
vestiário ao lado, e me vesti para o trabalho. No refeitório, alguns
companheiros da frente de consertos de estradas já se servia, enquanto outros
chegavam depois de mim. Fiz meu prato e me sentei junto de Jones.
— E aí, algum susto nessa noite? — ele disse, segurando um sanduíche com
as duas mãos.
— Nada, ficou tudo na paz. Conversei com ele antes de dormirmos, e acho
que ele entendeu. — Eu sacudi a cabeça, talhando um pedaço de batata-doce
cozida.
— Se ele tivesse colocado as mãos em você de novo, estávamos aqui
prontos pra expulsar ele da vila. Ele e todos os outros.
— É, mas não precisou, ainda bem. Deixa eles aqui. Quem sabe eles tomam
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jeito.
— Você tem fé demais nesse povo.
A mesa se encheu com a nossa equipe, repleta de novas pessoas levando os
assuntos em outras direções. Jones se assegurou de que eu estava bem, depois
de eu ter passado a noite no mesmo cômodo de Ícaro, e se permitiu levar pela
conversa. Comemos falando sobre o dia bonito e seco, e sobre as estradas que
ficariam sob nossos cuidados naquele dia.
Ao terminarmos, lavamos e organizamos nossos talheres, e fomos em bando
até a Praça dos Veículos. No meio do caminho, debaixo de uma passarela,
Penélope vinha em nossa direção. Jones revirou os olhos, inclinando o rosto
com fadiga, e engoliu em seco.
— Oi, Jones, bom-dia. — Penélope parou ao nosso lado, forçando-nos a
interromper a caminhada. — Você já comeu? Eu estava indo pra lá.
Jones me olhou com a boca retorcida. Virei-me ao resto do nosso grupo e
varri o ar com os dedos, exortando-os a seguir o rumo. — Podem ir. Depois a
gente se encontra — eu disse baixinho para eles. Nossos companheiros se
foram.
— Eu tenho que cuidar de umas tarefas agora. — Jones cruzou os braços,
erguendo o peito. Seus músculos pareciam crescer com sua postura,
transformando-se num homem ainda mais robusto e escultural. — Precisa de
ajuda em alguma coisa?
— Preciso de companhia. Acordei muito cedo hoje, sabe, e esse clima
horrível não me deixa relaxar. Fora que meu quarto anda tão sujo que não
suporto ficar lá. Eu esperava te encontrar. — Penélope se aproximou dele e
pousou a mão sobre seu forte bíceps.
— Pois encontrou. Satisfeita? — Jones riu com malícia. — Agora deixa eu
ir.
— Espera. Fica comigo. Queria conversar sobre o que eu posso fazer pra
ajudar. Eu preciso me encontrar.
— Ah, tá, aham, acredito. Isso só você pode fazer, tá bom? A não ser que
você queira vir mexer em estrada comigo, não posso te ajudar.
— Não, eu não quero me sujar. Tem que ser outra coisa.
— Boa sorte. Depois me conta o que descobriu. — Jones descruzou os
braços e se afastou dela, seguindo o caminho pela passarela.
— Você quer ajudar, Penélope? — eu disse, sentindo o coração pulsar com
sua vontade. — Eu posso tentar te ajudar nisso.
— Você vem? — Jones olhou para mim e me chamou.
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— Vou, mas pode ir. Depois eu me encontro com vocês lá na frente — eu


disse.
— Ai, então você me acompanha, Elisa? Ótimo, se o Jones ali não me quer,
paciência, eu vou adorar ter a sua companhia, amiga. — Penélope enroscou o
braço no meu e me conduziu pela passarela no sentido oposto ao de Jones,
retornando para o refeitório. Jones sacudiu a cabeça num sorriso debochado e
foi embora.
Penélope se serviu e se sentou à minha frente numa mesa da varanda,
escondendo-se do sol que irradiava luz sobre seus cabelos amarelados,
escorridos sobre seus ombros.
— Eu queria saber se sou boa pra alguma coisa, sabe, Elisa? Sou ótima para
desfilar, para posar, para tudo que envolva a minha beleza, como deve ter
notado. Mas aqui, nesse lugar... Eu fico brincando com isso, acredita?
Brincando de pensar o que eu seria se vivesse aqui. Seria como você? Todas
as mulheres são como você?
— De onde você tirou essa ideia? — eu disse. — Você conhece a Glória, e
por acaso ela não é totalmente diferente de mim?
— Ah, mas a Glória é muito parecida com você sim. Ela tem um jeito mais
delicado, eu sei, mas ela vive cheia de coisas pra fazer, e com isso acaba
perdendo um pouco de refinamento.
— Ah é? A Glória cheia de coisas pra fazer? Ela é a mais desocupada da
vila, Penélope. Ela se parece mais com você do que comigo.
— Eu não sou desocupada. Aqui, posso até ser, mas não sou. Por isso
mesmo que queria conversar com alguém sobre isso. No que eu poderia me
envolver por essas partes? Não que eu vá me envolver de verdade, sabe... É
só uma especulação, digamos assim.
— Sei... Bem, quem tem que saber disso é você. Ninguém aqui vai mandar
você fazer nada. Se está sem ideias, dá uma olhada na tabela de voluntários
no computador. Lá os Conselhos fazem os pedidos de voluntários, então se
você estiver disposta a ajudar, é só se candidatar em qualquer área. Eles vão
te ensinar o que tem que ser feito, mesmo que você não saiba o que fazer.
— É mesmo? Será que vocês estão precisando de uma designer de moda?
Digo, precisar vocês estão precisando sim, acredite em mim, mas é algo que
vocês queiram?
— Olha, aqui na vila você pode trabalhar nos vestidos de festa, se quiser.
Pode até fazer um pra mim, porque o meu já tá tão velho que precisa mesmo
de uns reparos.
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— Pra você? Nossa, isso seria muito... Err... Engraçado! — Ela bateu as
palmas com delicadeza, explodindo num sorriso carinhoso, mostrando todos
os dentes. — Talvez eu gostaria de fazer isso.
— Você sabe costurar?
— Não muito bem, mas alguém poderia fazer isso pra mim, não?
— Poderia, claro. Só que você não prefere aprender também? Assim você
ganha mais controle sobre todo o processo, e ao invés de simplesmente fazer
uma peça de roupa para alguém, você se sente fazendo arte.
— Hm, gostei disso, hein. Eu poderia inaugurar a minha grife por aqui, a
linha Penélope para roupas de festa. Você acha que eu faria sucesso?
— Acho sim. Faria alguém feliz com sua roupa, não faria? Eu confesso que
ficaria muito feliz vestindo uma roupa feita por suas próprias mãos. Quer
sucesso maior do que esse?
— Ai, você é uma fofa, Elisa. Isso me faz pensar, acredite, me faz pensar
muito.
— Quer que eu te leve ao ateliê de costura? Provavelmente não tem
ninguém trabalhando lá atualmente, com todas essas urgências da vila, mas
você pode ficar à vontade pra estudar os materiais e usar o que estiver à
disposição. Se quiser começar um projeto, é só me chamar pra tirar as
medidas.
— Sim, eu quero ir lá ver. Você me leva mesmo?
— Claro! Vai ser um prazer.
— Então tá, deixa eu só terminar aqui que nós vamos.
A melhor decisão do dia tinha sido ceder ao convite de Penélope. Naquela
conversa ela me deu a esperança de conquistar os corações de todos os
visitantes. Ao invés de retornarem para o outro lado, talvez eles nunca mais
saíssem do nosso mundo, mesmo que viajassem para casa. Talvez houvesse
mesmo esperança, e confiar em Ícaro me parecia algo possível, novamente.

Como previsto, não havia ninguém no ateliê. Tecidos enrolados nos


mostruários, mesas com máquinas de costura e incontáveis baús com trapos,
linhas e ferramentas. Manequins dispostos ao longo das paredes, alguns
trajados com vestimentas espalhafatosas e criativas, fotografias de festas e
indumentária transformada em arte. Assim que mostrei o ateliê a Penélope,
ela se cansou de mim.
— Fique à vontade por aqui, tudo bem? Quando quiser sair, apague a luz e
feche a porta — eu disse, afastando-me de Penélope.
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— Claro, claro... — Ela balbuciou com os olhos entretidos pela quantidade


de coisas à sua disposição.
Peguei o caminho para a Praça dos Veículos, prestes a montar num
quadriciclo para me juntar à minha frente de trabalhos na estrada. Mas ao
avistar a praça, um grupo de pessoas conversava de braços cruzados diante de
um trator. A face negra e reluzente de Jones se erguia sobre todas as outras,
observando-me chegar. Ele se afastou da carroceria quando me aproximei,
pôs a mão na cintura e apontou para o lado.
— Convocaram uma assembleia urgente. Começa daqui a pouco. Estava
esperando você chegar pra avisar — ele disse.
— Obrigada, eu não fiquei sabendo. Falaram sobre que assunto vamos
discutir? — A minha chegada puxou o grupo em direção ao pavilhão,
guiando todos atrás de meus passos por baixo das passarelas.
— O mesmo das últimas vezes, os visitantes. Tem que ser assembleia geral
porque eles afetam todo o mundo, senão era só resolver com os conselhos.
— É, como eu só tenho acompanhado um ou dois dos visitantes, estou
perdida em relação ao impacto deles de forma geral. Bem, vamos lá pra
saber, né.
Duas pessoas na entrada do pavilhão nos recebiam com tapinhas nas costas,
dando bom-dia e analisando cada um dos que entrava. Vigiavam os
visitantes, proibindo a entrada deles. Não me parecia justo não ter nenhum
deles conosco para apresentar sua eventual defesa, mas a verdade era que
raros se propunham a cooperar com o nosso lado e estabelecer um diálogo.
Encontrei todos os rostos conhecidos da vila, inclusive Glória. Ela deveria
ter acabado de acordar, zanzando pelo largo salão junto a uns conhecidos.
Fiquei ao lado de Jones, aguardando o começo, conversando com a equipe de
manutenção sobre as expectativas de trabalho do dia.
Quando Vinícius saiu da sala de apoio do pavilhão com as mãos erguidas
acima da cabeça e um sorriso, o burburinho das conversas cessou
paulatinamente. Ele passou pela multidão, buscando seu centro geográfico, e
quando parou, atraiu todos ao seu redor, abrindo um círculo tão largo quanto
coubessem as pessoas. Dispostos assim, todos nós da vila poderíamos encarar
uns aos outros e nos ouvir falar.
— Bem, pessoal, estamos aqui a pedido de alguns Conselhos geridos por
vocês, um pedido para repassarmos os últimos acontecimentos aqui de Água
Clara e conversarmos sobre a nossa situação. — Vinícius empossou sua voz
grave e girou em torno de si próprio para contemplar a multidão. — Janine,
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quer começar?
— Pode ser. — Janine, uma mulher de meia-idade de olhos pequenos e pele
marrom, levantou a mão e deu um passo à frente do círculo de pessoas. —
Primeira coisa, pra quem ainda não sabe, o acampamento só desabou porque
foi sabotado.
— Eita! — Laura gritou perto dela, levando a mão à boca chocada.
— É, isso mesmo, alguém foi lá e estragou tudo. Fizemos a perícia nas
estruturas e nas lonas do teto, e encontramos furos e cortes onde não deveria
acontecer por desgaste natural ou por falha de projeto. Sabotagem.
— E quem fez isso? — alguém disse.
— Ora, quem você acha? — Janine torceu a boca e cruzou os braços. — Só
pode ter sido algum desses visitantes. Eles nos expulsaram dos quartos, não
é? E ainda por cima quiseram nos ver dormindo debaixo da chuva. Quem
aqui faria algo do tipo?
— Mas você tem provas de que foram eles? — Vinícius disse, afastando-se
do meio do círculo, unindo-se à parede de pessoas.
— Evidência que ligue diretamente a algum deles, não, não temos, mas esse
foi só um dos fatores estranhos que tem acontecido desde que eles chegaram
aqui. — Janine disse.
— E isso não é nada! — Clóvis, um jovem de corpo rechonchudo, de
cavanhaque espesso e cabelos castanhos, deu um passo à frente. — Nem
precisamos falar de sabotagem pra percebermos os prejuízos que eles têm nos
causado. E essa sujeirada toda? Não incomoda vocês não?
— Pra mim tá normal... — uma voz perdida na multidão disse.
— Não, tá sujo mesmo, tá feio — outra retrucou perto de mim.
— Pois é. — Clóvis retomou a fala, erguendo as sobrancelhas com os
ombros apertados. — Basicamente eles nos deram duas escolhas: ou viver
com tudo sujo, ou não fazer nada além de limpar as cagadas que eles deixam
por aí. Nunca vi pessoas tão porcas quanto essa gente! Não limpam nada do
que usam, não se dão nem ao trabalho de guardar o que pegam. Parece que
eles sentem prazer em deixar as coisas pros outros fazerem.
— O mundo deles é esse — Janine disse, camuflada ao redor das pessoas,
cedendo o protagonismo a Clóvis. — Os outros fazem tudo pra eles. Eles
mesmos não fazem nada. Preguiça total.
— E antes fossem só preguiçosos! — Alaís levantou um dedo atrás de um
senhor de idade, e passou à sua frente para se mostrar a nós. — Quantos aqui
estiveram lá nas Terras Comunais pra conseguir mais comida? Uma semana
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de trabalho em outro lugar pra tentar garantir um estoque mais seguro pra
gente. Esse povo do outro lado come igual bicho. E o pior, eles não sentem a
menor vergonha em desperdiçar. Vem cá, me diz aí qualquer um de vocês,
vai dizer que nunca viram algum deles fazer um pratão, depois pegar só um
pedacinho de alguma coisa e jogar tudo fora depois?
— Por isso que o mundo deles é o inferno que é! — alguém disse no
círculo.
— São crianças em corpo de adultos — outro sussurrou perto de mim,
causando risadinhas ao redor.
— Pior ainda! — Zezinho saltou à frente de todos, aproximando-se do
centro. — Já tentaram conversar com eles? Em toda a minha vida, nunca me
deparei com pessoas tão desagradáveis. Achei que o esnobismo estivesse
extinto, mas não, ele segue firme e forte nos corações dessas pessoas. Tentam
disfarçar, é claro, eles não são bestas, só que cada frase deles tá cheia de
sarcasmo. Eles acham que a gente aqui é burro, que não percebe o que eles
fazem, e não percebem que eles é que estão fazendo papel de ridículo.
— Recebemos eles aqui na vila, abrimos os braços para acolhê-los, com
festa e com tudo... — Janine disse, sacudindo a cabeça. — Pra no fim das
contas, eles esgotarem nossos estoques, sujarem tudo, e ainda por cima nos
tratarem como idiotas.
— Eu acho que eles têm que sair daqui! Já deu — Zezinho disse,
arremessando os braços magrelos para todos os lados.
— É, eles que entrem naquele barco e vão embora! — Clóvis disse.
— Isso aí, basta desses folgados! — Janine disse.
Glória assistia à discussão empalidecida, sua boca tremendo a cada ataque
aos visitantes. Ela amava Cássio, ela o queria por perto, e o furor da
assembleia a paralisou. Seus olhos se encontraram com os meus, e a energia
que já me balançava por dentro, pensando em quanto Ícaro foi capaz de
mudar, no que Penélope demonstrava para mim, a energia contagiou minhas
pernas e me jogou para a frente do círculo.
— Eles merecem uma chance! — eu disse, olhando para o teto distante,
ignorando a queimação de minhas orelhas. — Eu mostrei o nosso mundo para
um visitante, eu o fiz experimentar o nosso ritmo de vida, e ele me
acompanhou, e ele mudou. Não deixou de ser quem é, e talvez nem queira
mais saber de nós, mas pelo menos aprendeu a cuidar das coisas por um
momento. Isso teve um impacto, quer ele queira, quer não. E não fui a única a
afetar um visitante assim.
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Todos se calaram para me ouvir. Aglomeravam-se ao meu redor como uma


tempestade a caminho do pavilhão, nuvens negras cobrindo o céu, água à
espera da precipitação.
— Eles têm defeitos, eles vêm de um mundo horrível, eu sei — continuei a
dizer. — Mas eles podem mudar. Vamos dar mais uma chance. Com nosso
amor, nós podemos trazê-los para o nosso lado. Não seria melhor vencermos
a guerra assim? Sem sangue, sem violência?
— São eles que querem o nosso sangue, Elisa — Vinícius disse, quebrando
o silêncio da multidão.
— E não seria melhor se quisessem o nosso amor, ao invés disso? Hoje nós
temos a força pra isso. Nós não precisamos vencê-los por armas. Podemos
conquistá-los para sempre.
— Então você quer que os aguentemos mais um tempo por aqui?
— Sim. Pelo nosso bem, pelo bem deles. Mais uma semana, pelo menos.
As pessoas cruzaram os braços, murmuraram, soltaram bafos de zombaria
ou admiração. Divididos, eles se juntaram em pequenos grupos e
conversaram. Durou pouco tempo, até que alguns entre eles se reuniram em
grupos menores e chegaram a um veredito. Vinícius ouviu a palavra e a
repetiu para que todos ouvissem.
— Mais uma semana. Depois disso, tchau pra eles.

A vida só de trabalho é a ruína. Esse foi o alerta dos nossos antepassados, a


razão pela qual lutaram para dividir o mundo, e mesmo com tantos avisos, era
esse o risco que me assolava. Ícaro veio em tempo de me tirar de meu ritmo,
mas veio junto a uma caravana dedicada ao abuso. Antes que ele pudesse me
ajudar, ele precisava da ajuda de todos nós da vila. O resultado, se ele se
dispusesse a nos ouvir, seria um ser humano cheio de riqueza, sem nenhum
centavo do dinheiro de seu mundo.
Glória me encontrou conforme a multidão se dispersava no pavilhão, um rio
de gente fluindo de volta para as atividades do cotidiano. Jones seguia
comigo, no meio do nosso grupo de trabalho.
— Adorei o que você falou! — Glória disse, apegando-se ao meu braço. —
Se eles tivessem expulsado os visitantes agora, eu não teria nem como me
despedir de vocês.
Jones olhou torto para ela, mantendo os passos controlados de sua marcha.
— Você se despedir de nós? Você não quer dizer se despedir deles? O
Cássio iria embora, eu sei, e você ficaria com saudades — eu disse.
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— Não, Elisa. Eu daria um jeito de ir embora com eles. Eu não conseguiria


mais ser feliz por aqui sem os meus amigos do outro lado.
— Peraí, e quando eles saírem daqui a uma semana? Você pretende ir? —
Arregalei os olhos, chocada ao ouvir Glória falando em nos deixar, ao mesmo
tempo me dando conta de que Ícaro também iria embora naquele tempo, e
sua ausência seria um baque pesado em meu coração.
— Sim. Mas até lá nós teremos a chance de fazer uma despedida. Obrigada
por isso, Elisa! — Ela me beijou o rosto e deu um salto para longe de mim,
evitando ouvir a minha reprovação.
— Espera... ei... calma aí... — Ergui a mão em sua direção e parei ao lado
de Jones. — Ela tá louca.
— Não aprendeu nada com os estrangeiros. Enganaram ela direitinho. —
Jones disse, sacudindo a cabeça.
— Nós não podemos deixar isso acontecer! Se ela for para o outro lado,
pode nunca mais voltar.
— Ela não vai, fica tranquila. Vamos conversar com ela, e impedi-la de
partir, se for o caso.
— À força? Isso seria terrível. De que adianta ela ficar aqui à contragosto?
— Isso é só uma fase, uma ilusão dela. No fundo, você sabe que faremos o
bem a ela se a forçarmos a ficar aqui. O outro lado não é um bom lugar pra
ela.
De coração acelerado, fechei-me em meus pensamentos, acompanhando
Jones até a passarela sem perceber para onde eu ia. Ao me dar conta do meu
destino, mais um dia reparando os estragos da chuva, emergiu em meu peito a
imagem de Ícaro arrependido. Uma semana para nos despedirmos, e eu
precisava perdoá-lo.
— Vai na frente — eu disse a Jones, atravessando o jardim ao lado da
passarela. — Me lembrei de uma coisa que preciso resolver antes de ir. Eu
encontro vocês lá na estrada.
Meu amigo acenou com a cabeça e rumou junto ao grupo à Praça de
Veículos. Passei entre flores e poças d'água em direção ao dormitório. Ícaro
ainda estava dormindo quando me levantei, e provavelmente ainda estaria. Eu
ensaiava a conversa em minha cabeça, eu lhe daria um voto de confiança,
ouvindo dele sobre o que pretendia fazer para me tranquilizar de que não
repetiria certas atitudes.
Abri a porta e me deparei com um quarto vazio. A cama arrumada, o cobre-
leito liso, impecável, os lençóis dentro do armário, dobrados como novos.
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Janela entreaberta, sol entrando, vento soprando. Meu colchão alinhado no


canto, meu travesseiro guardado no armário, junto ao meu cobertor. Ele me
demonstrava, sim, ele se comprometia a mim, ele que antes sequer limpava
os sapatos ao entrar, que se jogava sobre a cama com a lama dos pés, que não
sabia segurar uma vassoura. Tudo isso para me levar para a cama? De novo?
Eu seria mais cautelosa, mas ele já era outro, ele já cedia ao meu mundo.
Amolecia meu coração, unia-se a mim num mundo em que tanto eu quanto
ele nos responsabilizávamos pela vida um do outro, dois iguais eliminando as
divisões, juntando as peças num mundo único.
Certamente ele estaria no refeitório, tomando seu café da manhã. Corri para
lá com um sorriso no rosto, pronta para lhe dar um abraço. Encontrei o vazio
mais uma vez, os braços gélidos do vácuo. Mesas e cadeiras desocupadas, a
mesa de buffet coberta e abandonada. Duas pessoas comiam na varanda, uma
de frente para a outra, conversando. Dois estrangeiros.
Aproximei—me deles, de olhos fixos em seus gestos, e parei ao seu lado
em silêncio. Detestava interromper as conversas dos outros, e minha presença
ali marcava minha intenção sem sombra de dúvidas. Quando se calaram e me
olharam, apoiei as mãos na mesa.
— Vocês sabem onde posso encontrar o Ícaro?
Eles se entreolharam, apertando as sobrancelhas. — Hm... Não. Faz tempo
que não o vejo — um deles disse.
— É, ele quase não fica mais entre nós — o outro disse.
Mordi os lábios e acenei com a cabeça. Em que outro lugar ele poderia
estar? Rodei pelos prédios comunitários, do Centro de Convivência ao setor
de Serviços Gerais, sem nenhum sinal de Ícaro. Além daqueles dois do
refeitório, não encontrei outros visitantes, o que me levou a pensar que eles
estivessem reunidos em algum lugar. No barco? Por que não? O lugar de
onde saíram, um pedaço de seu mundo ali entre nós.
Fui ao porto e cumprimentei Laura no café das docas. Ela limpava as
cadeiras enquanto preparava uma tapioca recheada para um conhecido nosso.
— Você viu alguma atividade ali no barco? — eu disse.
— Olha, o de sempre. Rosilda, Bernadete e o capitão. Por quê? Tá
procurando alguma coisa?
— Ícaro. Não consigo encontrá-lo.
— Talvez ele tenha saído pra caminhar por aí. Depois ele aparece.
Mas eu precisava tirar a dúvida. Subi a rampa do barco, retornando ao
convés dos meus primeiros encontros com ele. Rosilda fechou o rosto ao me
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ver, balançando as mãos em minha direção, como se me expulsasse.


— Proibido entrar aqui, por favor. Não me faça chamar o capitão, viu — ela
disse.
— Ué, por que não posso entrar? Você viu o Ícaro? Ele está aqui?
— O barco é propriedade dos patrões, e eles me pediram para manter a
ordem. Saia, por favor. Você não vai encontrar ninguém aqui.
Ela me empurrou gentilmente, fazendo pressão em meus braços com seu
corpo maciço. — Rosilda, pra que isso? Essa é a vida que você quer levar
mesmo? Desce desse barco, junte-se a nós. Nunca mais vai precisar cumprir
as ordens de ninguém.
— Não me venha com esse papo. Eu não caio na lábia dos vagabundos. Dá
licença, por favor. Tudo o que você precisar resolver, resolva com os
senhores que estão aí na vila. Nenhum deles ficou aqui.
Eu poderia derrubá-la, eu poderia vencê-la, mas a que custo? Deixei-me
conduzir para fora do barco. O gosto amargo da proibição, um gosto raro em
nosso mundo, onde tudo era acessível, tudo aberto e livre, aquele gosto me
tirou a energia da busca. Laura estava certa. Ícaro logo apareceria. Deveria ter
ido fazer uma caminhada ou algo do tipo. Eu é que estava ansiosa demais
para vê-lo, depois de tê-lo tratado com tanta frieza. Voltei à Praça dos
Veículos, montei num quadriciclo e parti para a minha frente de trabalho.

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20 - Ícaro

O rio estava prenhe, remexendo-se com sementes e folhas. Sua água clara
abria o fundo aos meus olhos, peixes cinzentos ou alaranjados, crescendo e
diminuindo conforme as ondulações da correnteza. O sol penetrava no corpo
cristalino do rio e o fecundava com vida e beleza.
O sabor do vinho se sobrepunha ao cheiro das águas. Revirei a minha taça,
chacoalhando o gole que me restava, e respirei com reverência a essência
amarga de uvas fermentadas sob meu nariz. De lábios recostados nas bordas
da taça, virei a bebida à minha boca. Encharquei toda a minha carne com o
vinho, usando a língua de espátula, uma esponja de sabores.
Um vento suave expulsava o calor de meu peito, balançava meus cabelos.
Sentado à beira o rio, numa espreguiçadeira sob um guarda-sol, pus a taça na
bandeja do chão. Bastou um olhar para que Bernadete me visse e viesse de
prontidão até mim. Abaixou-se para pegar o que deixei.
— Obrigado, Bernadete. Traga-me o melhor queijo que você tiver.
— Sim, senhor. — Ela assentiu com a cabeça e se virou de imediato para
me servir.
Tiraram ela do barco e a colocaram na mansão antiga à beira do rio de
águas cristalinas, aonde Glória nos havia levado em nosso primeiro dia na
vila. Junto a ela, trouxeram-me também, e não me deixavam sair. Oliseu dizia
que eu precisava me desintoxicar do ambiente da vila, pois aquilo me afetava
demais. De certo modo, concordei, e permiti ser levado de bom-grado.
Bernadete me trazia um pedaço de queijo num prato. Uniformizada, de
avental branco sobre vestido preto, servindo-me diante de uma mansão como
as melhores casas de meu mundo, minha mente se confundiu. De repente, eu
me senti de volta à vida, como se toda a experiência com Elisa não tivesse
sido nada além de um sonho esquisito.
— Chame Oliseu para mim, Bernadete. Diga-o que o aguardo aqui mesmo.
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— Sim, senhor. — Isso era tudo o que ela ousava dizer diante de nós, e de
fato não havia nada mais a ser dito. Seu papel era nos obedecer, e isso ela
fazia com reverência.
— Outra coisa. Traga uma cadeira para ele. Ele não pode se sentar no chão,
não é?
— Não, senhor.
O velho prazer da minha superioridade retornava ao meu sangue,
inebriando-me de poder. Era fácil retornar ao papel de senhor, recebendo
tudo de mão beijada, satisfazendo qualquer desejo com o estalar dos dedos.
Difícil era o caminho inverso, aquele que Elisa tentava fazer comigo, o
caminho da pobreza, do homem comum, num mundo desprovido de
hierarquias. Em parte, um alívio por ter sido levado à mansão. Ali, eu poderia
voltar a ser quem eu era, interrompendo a minha metamorfose.
Bernadete arrastou uma espreguiçadeira até o meu lado. Oliseu a
acompanhava atrás, em passadas lentas, aguardando-a terminar o serviço. De
cadeira posta ao chão, ele se sentou e afastou nossa empregada com um gesto
das mãos. Ela assentiu à ordem e partiu, retornando à porta da varanda, ao
longe, esperando nova chamada.
— Isso sim que é vida, hein — Oliseu disse, cruzando as pernas, juntando
as mãos atrás da cabeça.
— Sempre foi a vida. Só quando nos afastamos de algo é que percebemos o
quanto era bom, não é? — Eu cortei um pedaço do meu queijo e dei uma
pequena mordida.
— Correto. Bom ver você retornar à sua lucidez. Estava ficando
preocupado.
— Vocês fizeram bem em me sequestrar.
Oliseu riu. — Sequestrar? Boa forma de colocar essa sua estadia aqui. Tá
com saudades da sua Elisa?
Curti o sabor do queijo, de olhos fixos nas águas claras do rio. Eu não
queria me lembrar dela, aquela mulher que me evitava por eu não ter me
curvado o bastante diante dela. — Você se lembra do nosso tour no Báltico?
Depois da corrida?
— Ô se não lembro! Três dias sumido no mar, todo o mundo achando que
você tinha se perdido, já tinha até helicóptero saindo pra te procurar.
— Três loiraças, rapaz. Uma pra cada dia. Se dependesse delas, eu tinha
ficado ainda mais tempo no mar. Até pensei em procurá-las depois pra fazer a
vontade delas, mas então me lembrei que não eram tão imperdíveis assim e
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desanimei com a ideia.


— Elas eram de onde?
— Filhas de banqueiros. Falavam inglês bem, pareciam até inglesas. Mas
acho que seus pais faliram na última crise, e devem até ter se casado com
outros pra se salvarem.
— Não seria uma má ideia. Por acaso você não tem desejo por elas ainda
não, né?
— Até parece. Só lembrei disso por causa do sumiço. Hoje em dia nenhuma
das três me despertaria interesse.
— Seu caso com a realeza tá mexendo com a cabeça, né, safado? Quer virar
príncipe, tô vendo, e quem sabe rei um dia.
Sua sugestão me divertiu, forçando-me a um riso contido. — É só isso que
falta pra eu ter tudo na vida, né? Não vou negar que estou pensando nisso.
— Pensando no quê, Ícaro? — Penélope chegou às nossas costas,
abaixando-se sob o guarda-sol para nos encarar.
— Ô, Penélope, que susto — Oliseu disse. — Pede a Bernadete pra te trazer
uma cadeira também. Senta aqui com a gente.
— Bernadette! Cadeira. — Ela estalou os dedos para a empregada, olhou
com o rosto fechado, zangado, e balançou a cabeça. — Essa folgada... Estava
vendo eu em pé aqui, e não mexeu um dedo pra me trazer a cadeira. Tem que
falar tudo pra essa gente.
— Estávamos falando sobre mulheres — Oliseu disse.
— Ah, então pode parar. Detesto esse assunto, e o Ícaro está aqui pra se
esquecer de mulher. — Penélope manteve os olhos fixos em Bernadete,
acompanhando sua chegada com mãos na cintura.
— Mas mulher é a alegria do homem, e o Ícaro sabe disso mais do que
ninguém — Oliseu disse. — Ele quer ser rei agora.
— Rei das mulheres? Ele já não era mais ou menos isso? — Penélope se
sentou na cadeira trazida por Bernadete. — Traz outro guarda-sol. Estou
muito exposta aqui — ela murmurou para a empregada.
— Quer ser rei da Inglaterra!
— Ah... A princesa Kate. Se minha opinião vale de alguma coisa, Ícaro,
você vale mais do que ela. Além de ser mais rico, você vem de uma família
muito menos decadente.
— Concordo. Nisso eu concordo — Oliseu disse. — Mas se for assim, não
tem ninguém no mundo boa o bastante pra ele.
— Bem, eu acho que tem. — Penélope revirou os olhos, abanando-se com
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as mãos. — Se ele aceitar minhas sugestões, poderia fazer um ótimo par com
uma certa pessoa. — Penélope ergueu a mão para Bernadete, antes que ela se
fosse. — Bernadete, quero o almoço em duas horas. Você vai nos servir aqui
mesmo. Vá ver se está tudo em ordem, pois não quero mais um de seus
imprevistos desagradáveis.
— Sim, madame.
— Vocês dois têm de parar de bancar os cupidos — eu disse, retomando a
palavra após ter sido feito de fofoca. — Tenho meus próprios planos.
— Acontece que se nós o deixarmos com seus planos, você fica louco e cai
de amores por uma pobretona da vila. Daqui a pouco nem vai querer voltar
conosco! — Penélope disse.
— Acima de tudo, Penélope, eu sou um colecionador. Gosto de
experimentar novos sabores. Nunca tinha provado o gosto de uma mulher
pobre, então minha coleção estava incompleta.
— E está completa agora? Está satisfeito?
— Nunca estará completa.
— É, he he, só quando você virar rei, não é? — Oliseu bateu o braço no
meu, rindo com malícia. — Você sabe que a princesa Kate morre de amores
por você, não sabe? Tem que aproveitar, não é qualquer um que tem esse
acesso à família real.
— Isso é pouco pra ele, eu já disse. Ele merece mais, merece mulheres com
personalidade mais forte do que aquela paspalha sem sal. Só porque tem
sangue azul ela acha que pode alguma coisa, mas é tonta como a Bernadete.
Enquanto eles insistiam em decidir sobre a minha vida, o rio de águas claras
corria à minha frente, impregnado de vida e frescor, e minha mente se
dividia. Levada para longe pelas memórias evocadas, ao mesmo tempo ela
fincava raízes naquela terra de Elisa.

Por duas noites, dormi na mansão afastada da vila, escondido por Penélope
e Oliseu. Eles se retiravam para os dormitórios na vila todos os dias de noite,
para que não levantassem suspeitas sobre um grupo de visitantes
desaparecidos. Deixavam-me aos cuidados de Bernadete, seguros de que com
uma empregada à minha disposição, eu não teria por que fraquejar
novamente e voltar para o ritmo de vida imposto por Elisa.
Naquela mansão eu me sentia em casa. Banheiros individuais, suítes,
varandas, salas e um quintal grande e exclusivo. Após a janta, sozinho, eu
dispensava Bernadete de seus serviços e me punha à beira do rio para
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apreciar a noite. Trouxe um tablet do barco, repleto de filmes, e nas horas de


solidão eu o conectava na tomada e me perdia na cultura do meu lado do
mundo. Era como se eu tivesse partido em retiro para recarregar as baterias,
um retiro que poderia ser realizado em qualquer parte do mundo.
Três dias após o meu sumiço da vila, Otávio, um dos nativos que costumava
tomar conta da mansão, resolveu aparecer logo cedo. Ao me ver, abriu os
braços num largo sorriso.
— Ô, rapaz, então é aqui que você tá! — Ele deu um tapinha em meu
ombro. — A Elisa tá te procurando igual uma louca lá no centro. Seus
amigos falaram que você tinha saído por aí pra ficar quieto num canto.
— Eles não estavam mentindo. Eu queria me afastar um pouco do ritmo de
lá. Aquilo não estava me fazendo bem.
— E como não? Ah, foi por causa daquela noite com a Elisa, né? Pois é,
fiquei sabendo... Fez uma cagada das grandes, hein. Mas você tá arrependido,
não está? Isso que importa. É só não fazer de novo. Tudo o mundo erra, fazer
o quê, né, você não é o único.
Em poucas frases, Otávio tirou o tapete em baixo de mim e me fez tombar
no chão novamente. Aquele sorriso generoso, aquela compreensão, o perdão,
aquelas eram as grandes coisas do mundo, os tesouros mais preciosos. Tão
preciosos que eu não os encontrava do outro lado.
— É, eu sei — eu disse. — Mas tudo bem. Não estou com pressa, então
passar alguns dias aqui tem me feito bem. Depois eu volto e vejo como vai
ficar a vida.
— Só lembrando que vocês tê só mais quatro dias pra ficar aqui, hein. Foi
decidido em assembleia isso, não sei se te contaram.
— Quatro dias? Que história é essa? Não me contaram nada.
— Ué, que estranho, você tá aqui sozinho esse tempo todo? Nós íamos
expulsar vocês há três dias atrás, mas a Elisa os defendeu na frente de todo o
mundo, e resolvemos dar mais uma semana pra vocês. Como já se passaram
três dias, restam quatro, não?
Eu tinha apenas mais quatro dias ali? Eu não fazia mais planos de partida.
Por mais que eu tivesse vindo à vila como líder da missão, aos poucos deixei
escapar esse papel, e ao invés de agir como o cabeça por trás de tudo, tornei-
me o último a saber dos planos. Meu desejo secreto era ficar por lá até que
algo me tirasse à força, mas quatro dias era um tempo curto demais.
Quando Oliseu e Penélope chegaram à mansão em um buggy, depararam-se
com Otávio e deduziram tudo. Deram ordens de serviço a Bernadete,
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levaram-me para um canto afastado de Otávio, cumprimentando-o com


sorrisos largos e falsos, e me informaram do paradeiro da missão.
— Penélope e eu vamos nos encontrar com os outros e começar a colocar o
plano em prática — Oliseu disse. — O prazo é curto, então temos de agir
logo.
— Vocês estão malucos! Isso não vai funcionar. Eles vão nos matar. — Eu
sacudi a cabeça com veemência.
— Não vão desconfiar de nada. São uns patetas, incapazes de bater em
alguém. — Penélope segurou meu braço e me encarou fundo nos olhos. —
No máximo vão fazer uma petição exigindo nossa retirada, a qual nós vamos
ignorar. Esse prazo deles não significa nada.
— Então pra que a pressa? Por que não adiar o plano, por que não fazer
algo mais sutil? — eu disse.
— Porque nunca se sabe. Já estamos cansados de brincar, e agora é hora de
mostrar a que viemos — ela disse.
— Por via das dúvidas, Ícaro, nós precisamos que você vá até o barco e veja
com o capitão como está a rota de fuga, e como andam as nossas provisões.
Bernadete vai junto, e ela e Rosilda podem negociar novos mantimentos com
a vila.
— Posso sair do cativeiro então? — Sorri com o canto da boca,
maliciosamente.
— Deve. Agora é hora de agirmos.
Pouco me importei em ser feito de subalterno. Diante da minha partida
iminente, minha única certeza era a de que em pouco tempo minha vida
mudaria radicalmente. Acatei a sugestão de Oliseu e parti com eles e
Bernadete dentro do buggy em direção à vila.
Uma vez de volta à Praça dos Veículos, tomei o caminho do porto, levando
a nossa empregada atrás de mim enquanto Oliseu e Penélope se dividiam em
busca dos nossos companheiros. Subi a rampa, recebido por Rosilda.
Verifiquei os depósitos acompanhado das duas, e as despachei para o
refeitório da vila para que fossem atrás de renovar nossos estoques.
— Se estranharem alguma coisa, digam que estamos nos preparando para a
partida daqui a quatro dias.
— Sim, senhor.
Procurei o capitão para repassar com ele as condições do barco e verificar o
plano de partida. Ele me ouviu com atenção, assegurando-me da condição
impecável de funcionamento do veículo. Tudo estava em perfeita ordem.
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— O senhor ou algum outro conseguiria conduzir o barco em meu lugar? —


ele disse.
Cerrei a testa num estranhamento de sua pergunta. — Talvez. Mas o que
isso envolve o plano?
— Nada, nada, perdão. Estamos prontos.
— Você já deve estar cansado de ficar aqui nesse lugar, não? Calma que
isso já vai acabar. Vamos voltar à nossa realidade, e sua vida vai voltar a ter
emoção. — Dei um tapa em suas costas, num sorriso amigável.
— É... Vai voltar... O senhor sabia que eu não pisei nem uma vez fora daqui
do porto? Só fui uma vez tomar um café ali com a moça, e nada mais.
— É mesmo, capitão? Bem, alguém tinha de ficar aqui zelando pelo barco.
— Sim, sim, claro. Eu só me pergunto, sabe... Eu só me pergunto se o que
me disseram sobre a vila é verdade. As histórias me parecem boas demais pra
serem verdadeiras.
— Ah é? Tipo o quê? Eu estive por lá um bom tempo, e posso te responder
o que quer saber.
— Bem, é verdade que eles não usam dinheiro? E que não têm chefes,
presidentes, nem nada do tipo?
Pausei por um momento, encarando os olhos trementes do capitão. Uma
pressão em seu peito o empurrava para baixo, reduzindo-o diante de mim,
mas uma centelha de esperança mantinha seu rosto virado ao meu.
— Sim, é isso mesmo.
— E como é que eles conseguem viver? Digo, como é que esse lugar ainda
não foi pelos ares? Por que eu não estou vendo o caos pelas janelas?
— Porque isso daqui é uma espécie utopia, capitão. Ela não deveria ser
possível. Se é, é porque tem alguma coisa errada, e nós viemos aqui
justamente por causa disso, não é?
— Pra encontrarmos essa coisa errada?
— Ou sermos a coisa errada.
— Entendo. Mas, perdão, senhor, eu não acredito nisso. Preciso ver com
meus próprios olhos.
— Se é o que você quer, vá lá ver. E não precisa voltar mais. Se você sair
desse barco, ficará lá para sempre. Eu piloto esse barco, ou o Oliseu. Nós não
precisamos de você aqui. Você é que precisa de nós.
— Sim, senhor, entendi.
Ele engoliu em seco, bebendo minhas palavras como se ingerisse o veneno
de uma condenação. Soubesse ele, porém, que eu não o ameaçava, talvez
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sorrisse e me abraçasse em agradecimento. Se ele descesse à vila e se


integrasse aos nativos, seria livre como nunca antes.

O clima ficou estranho entre meus companheiros da vila. Encontrávamo-


nos pelas passarelas ou pelos prédios comuns, e nossos olhares nos acusavam
uma cumplicidade suspeita. No fundo, todos nos reconhecíamos como
culpados de algo, embora poucos soubessem nomear aquele peso. Se algum
nativo desconfiasse de algo, nada do que fizéssemos os dissuadiria, e ao
contrário do que pensavam Oliseu e Penélope, eu acreditava que eles eram
capazes de muita coisa para nos impedir.
Perambulei durante o dia pela biblioteca e pelo Centro de Convivência. A
ansiedade me tomava ao pensar no risco de encontrar Elisa, mas do modo
como eu a conhecia, eu tinha a certeza de encontrá-la apenas à noite. Minha
partida já estava marcada, fosse no quarto dia a partir dali, ou em menos
tempo, e a angústia que me atormentava era o que fazer com meus
sentimentos por ela. No fundo, minha única certeza era a de querê-la ao meu
lado, mas para qual vida levar, eu não sabia. Se eu ficasse ali, abriria mão de
toda a minha fortuna no outro lado. Se ela fosse comigo, ela é que abriria
mão de toda a sua fortuna.
Fui ao refeitório jantar, na chegada da noite. Sentei-me com Oliseu e
Penélope, comendo com eles em silêncio. A tempestade se aproximava, e
antes dela a calmaria fazia a entrada. Terminamos com calma, e os dois
partiram com um sorriso e nada mais. Fiquei a sós na mesa à espera de Elisa.
Ela chegou horas depois, quando eu já me preparava para desistir da espera
e aguardá-la no quarto. Abriu a boca num deslumbramento contido,
apertando as mãos à frente do corpo, sem saber o que fazer. Olhou baixo,
olhou meu rosto, alternou-se entre o chão e meus lábios. Levantei-me diante
de sua aproximação, fiquei de pé à espera de sua reação.
A um passo de mim, ela abriu os braços e me envolveu com seu perfume
suave. Juntei-me a ela no abraço, fechando seu corpo em meu peito,
abaixando a boca sobre seus cabelos molhados. Ela se soltou de mim, olhou
para a mesa e viu meu prato vazio.
— Estava me esperando? — ela disse.
— Sim. Vai lá preparar seu prato e senta aqui comigo.
Ela assentiu com a cabeça e foi à mesa de buffet, virando-se para mim a
cada novo ingrediente escolhido. Sentei-me e a acompanhei de longe em sua
preparação, perdido na beleza de sua blusa amarela de mangas curtas e sua
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bermuda, roupa leve que me deixava à mostra as curvas de suas pernas e as


linhas suaves de seus braços. Veio em minha direção, presenteando-me com a
visão de sua boca larga. Fantasiei um beijo, de coração apertado. Meu prazo
ali estava para acabar, e eu precisava me curar de sua presença.
— Por que você sumiu? Eu te assustei tanto assim? — ela disse, sentando-
se na cadeira à minha frente.
— Ora, queria que eu pensasse o quê? Você passou a me evitar. Facilitei o
seu trabalho, não?
— Entendo, mas acabou dificultando. Eu queria te encontrar antes, porque
eu te perdoo. Naquele dia também eu estava estressada, peço desculpas. Tudo
contribuiu pra aquilo.
— É isso? Estamos resolvidos?
— Temos que ver, não? Por um lado foi bom passarmos um tempo
afastados, por outro foi ruim porque eu não tinha como saber o que você
pensava. Aonde você esteve, falando nisso?
— Na mansão à beira-rio. Onde Glória nos levou uma vez.
— Ah, sim, faz todo o sentido. Mas seus amigos me diziam que você estava
no barco, e no barco a Rosilda dizia que não tinha ninguém lá.
— É, eles queriam que eu sumisse daqui alguns dias também. Estavam com
medo de me perderem para o seu mundo.
Seus olhos se acenderam, arregalados. — E existe essa possibilidade?
— Não mais. Cheguei a duvidar de mim mesmo algumas vezes, mas agora
sei onde é o meu lugar. Afinal, tenho de ir embora em quatro dias, não é?
Não é que vocês tenham me dado escolha.
— Se você quiser, Ícaro, é só dizer que quer ficar aqui conosco. Vamos
aceitá-lo de braços abertos. Quem quiser ficar, oferecemos o mesmo.
— É, você diz isso porque está repetindo o mantra dos seus ideais. Mas no
fundo você sabe que não é bem assim. Veja esse prato aqui na minha frente,
por exemplo.
— O que tem ele?
— Está aqui há horas já, desde que terminei de comer. E não pretendo lavá-
lo. Vai ficar aqui. E lá no quarto também, eu deixei minha roupa suja em
cima da cama, e não pretendo levá-la para lavar tão cedo.
— Isso te faz sentir melhor?
— Isso me faz sentir livre, Elisa. Não quero fazer essas coisas chatas, ainda
não entendeu?
— Mas nós sempre fazemos isso juntos. É chato fazer isso comigo? Achei
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que conversando e brincando, você nem se importasse.


— Eu sei... E é verdade, com companhia fica melhor. Só que se eu sempre
precisar de você ao meu lado para cuidar desse tipo de coisas, bem... então eu
sempre precisaria ter você comigo.
— E isso seria ruim?
— Não se eu soubesse como lidar com você. Somos de mundos opostos,
Elisa. Eu sempre vou ter medo de te machucar.
— Engraçado, eu não tenho esse medo de te machucar, já reparou? Porque
eu te acho forte.
— Não me achava criança? O que mudou?
— Uma criança forte — ela disse, rindo com os olhos baixos. — Eu sei que
você vai aguentar o tranco se eu te machucar. O seu problema é que você não
me acha capaz do mesmo. Você não acha que eu seja forte.
— Elisa... Você é a mulher mais... Mais poderosa que eu já conheci. Eu não
te acho fraca, nunca te achei.
— Então me demonstre.
— Você explodiu comigo uma vez, me evitou. Não, eu não quero isso.
— Você me machucou, é verdade. Mas eu resisti, e estou aqui resolvendo o
nosso caso. Você aprendeu um limite novo, e vai respeitá-lo, não vai?
— Vou. Com toda a certeza, Elisa, eu vou.
— Então pronto. Assim como eu aprendi um limite seu também. Se não
quiser lavar os pratos, não lave. Se quiser dormir com roupa suja, durma. Vi
do que você é capaz, e sei que você tem o seu próprio tempo. Eu te quero por
perto, seja como você for. Só peço que reflita sobre sua relação com o
mundo. Quem você quer ser diante dos outros? Lembre-se, aqui você pode
escolher o que quiser.
Apoiei os cotovelos sobre a mesa e abaixei a cabeça. Nenhum de meus
pensamentos tinha poder contra ela, contra o mundo que ela me oferecia, um
mundo além das barreiras, ela e eu numa terra de liberdade, onde o dinheiro
não existia, e o filho do bilionário podia lavar pratos e limpar banheiros e ser
feliz para todo o sempre.
Deixei o prato sujo em minha mesa quando Elisa terminou. Ela estremeceu,
coçando-se com a vontade de pegar o que larguei e lavar tudo junto, mas
resistiu à tentação. Minha sujeira precisava ficar à mostra para que eu
avaliasse o meu papel diante dos outros, e por se recusar a fazer o meu
trabalho por mim, ela marcou a ferro em meu coração a vontade de
contribuir. Eu nunca mais deixaria um prato por lavar.
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Demos uma volta na praça à beira-rio, onde ela me contou sobre seus
últimos trabalhos no reparo de estradas, e me recitou uma poesia que um de
seus colegas compôs sobre a tempestade. Cansada, ela fez força para manter
as pálpebras abertas, até que me pediu licença para ir dormir. Fui junto a ela,
sem ter o que fazer, e entramos juntos no quarto do dormitório.
Ela vestiu a camisola, ignorando minha presença. Apagou a luz, pegou
minha mão e me guiou à cama. Sentamo-nos na beirada, procurando o brilho
fraco de nossos olhos, reluzindo o claro fraco e azulado da janela coberta. Ela
encostou o rosto no meu, beijando-me de lábios fechados. Boca macia,
quente, gostosa. Olhos fechados, respiração interrompida.
— Tudo bem se dormirmos juntos hoje? Mas só dormir, nada mais, por
favor. Estou muito cansada, mas quero ficar com você.
— Claro, Elisa, claro que sim. Você precisa descansar.
Ela se virou de lado. Estendi o lençol sobre ela e me coloquei debaixo dos
panos, abraçando-a por trás. Beijei sua bochecha, disse-lhe boa noite, e
repousei a cabeça sobre o travesseiro, sentindo o cheiro de seus cabelos.
Dormimos abraçados, apesar de minha mente agitada, preocupado como eu
estava com a nova tempestade a caminho.
De repente, no meio da madrugada, um alarme de incêndio tocou na vila.
Uma sirene escandalosa, violenta, arremessou seu som pela janela e nos
despertou num susto traumatizante. Eletrizada, Elisa apertou minha mão.
— Fogo!

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21 - Elisa

O alarme de incêndio chacoalhou minha cabeça. Acordei no susto e respirei


fundo, buscando na memória os procedimentos de emergência. Molhei o
rosto na pia para descolar as minhas pálpebras, troquei de roupa e puxei Ícaro
para fora da cama.
— Nós temos de ir até o fogo — eu disse.
— Mas não é perigoso? — Ele me segurou no lugar, levando-me de volta
ao colchão.
— Eu faço parte da brigada de incêndios, então preciso ir. E sem saber o
que está acontecendo, não posso te deixar aqui sozinho. Vem comigo e
vamos ver o que está acontecendo.
— Tá, deixa eu me vestir melhor.
Ele apenas vestiu uma camisa e trocou de bermuda, correndo atrás de mim
enquanto eu deixava o quarto rumo ao corredor. Nossos vizinhos abriam suas
portas e lotavam os espaços. Empurrei-os para o lado, reconhecendo alguns
companheiros da brigada, e acenei para eles.
Corri para fora do dormitório, saindo do caminho da passarela coberta, no
meio do jardim. Olhei no céu ao redor em busca da claridade do fogo, de
algum sinal de fumaça, mas a escuridão da madrugada escondia tudo. Na
parede do dormitório, tirei um telefone do gancho e digitei o código de
monitoração de emergências. O atendente automático me indicou falha de
comunicação com os silos da vila.
Uma explosão ressoou pelos céus do lado de fora. Um frio gélido percorreu
minha espinha, arregalando meus olhos. Vinha do direção dos silos, do lugar
mais precioso da nossa vila, onde mantínhamos nossos grãos estocados. Corri
pelas passarelas até perder o fôlego, ouvindo o estalar do fogo cada vez mais
próximo.
Ao sair do prédio do refeitório, atravessei a passarela por entre a barreira
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verde que separava a área de estocagem do resto da vila. Uma clareira se


abria, ocupada por estruturas cilíndricas altas, três módulos afastados uns dos
outros, servidos por uma estrada asfaltada e uma estação de trens de carga. A
noite se pintou em amarelo, os prédios de estocagem se tornaram tochas
acesas por um incêndio que não deveria acontecer num local tão bem
preparado para o trato com acidentes.
— Jones, Otacílio, Nanda, Bianca, e quem mais estiver por aí — eu disse,
dirigindo-me ao fluxo de pessoas que chegavam à cena atrás de mim. —
Vamos pegar nossas vestes, e tem como alguém trazer o carro? Vou desligar
a energia e preparar os registros.
— Eu trago o carro — Jones disse. — Mas toma cuidado, Elisa. Se
mantenha distante, porque alguma coisa tá explodindo lá dentro.
Assenti ao seu conselho com o polegar erguido, dirigindo-me de imediato à
casa de máquinas na borda da enorme clareira aonde se assentavam nossos
silos. Ícaro ficou com a multidão que assistia à distância ao incêndio, fixando
os olhos assustados na minha caminhada tão próxima do fogo.
Abri a porta com força, desliguei a chave geral de energia, e chequei os
registros d'água para me certificar de que estivessem operantes. Voltei à
passarela que levava até o refeitório, encontrei um dos hidrantes ao redor dos
silos, e girei a manivela que liberava sua água ao chão. Fechei-a novamente e
olhei para as chamas.
Os três silos ardiam em seu interior. A pressão dos gases deve ter se
acumulado até forçar a explosão do teto, por onde saía a fumaça de todos
eles. Mas eles tinham um sistema de isolamento, tinham saídas de ar, sistema
anti-incêndio. Nunca tivemos acidente com eles, justamente por se tratarem
de peças tão delicadas para a nossa sobrevivência. Era lá que mantínhamos os
grãos que recebíamos de outras localidades, arroz, milho, feijão, grãos que
não conseguíamos plantar em nossa região, e que constituíam uma boa parte
da nossa alimentação.
Tudo perdido. Por mais que apagássemos o fogo, não haveria como salvar
mais nada, porque a própria água que usaríamos seria a ruína de tudo.
Lutaríamos contra o incêndio para não deixar que se alastrasse, e para ver se
conseguiríamos salvar pelo menos parte da estrutura. Caso contrário, com
uma vila já tão abarrotada de serviços por fazer, por conta da tempestade, por
conta dos visitantes, teríamos de parar tudo para reconstruir os silos, o que
nos custaria recursos preciosos, e tempo, o mais importante de tudo.
A angústia perfurava meu peito e me apertava a ponto de me trazer lágrimas
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aos olhos. Ícaro me encarava com o medo profundo de alguém que parecia
ter apenas descoberto a fragilidade da vida, congelado em sua posição ao lado
dos outros. Segurei o choro, balançando os braços e as pernas em preparação
para o combate, vestindo a manta antifogo que haviam trazido para mim.
O carro chegou na estrada de carga, descendo Jones de lá com uma primeira
mangueira enrolada numa roda. Trouxe-a até nós, engatou-a no hidrante e fez
o teste. A pressão o empurrou para atrás no esguichar de água, fazendo-o
sorrir com o poder em suas mãos. Tomei dele a mangueira, empurrando-o
para atrás.
— Vá vestir a sua manta!
— Tá! Mas deixa os outros pegarem as mangueiras. Você tem de esperar a
nossa formação pra agir. Não vá bancar a heroína.
— Eu só quero evitar o pior. Se um desses prédios desabar, já era tudo.
Ícaro levou as mãos à cabeça, abrindo a boca com os olhos arregalados de
medo, brilhando no amarelo das chamas. O calor ardia em meu rosto,
deformava os fios do meu cabelo. Um companheiro da brigada colocou um
capacete em minha cabeça, e correu ao carro em busca de sua mangueira. O
desespero me tomava, me fazia esquecer dos procedimentos básicos e me
colocava em risco.
Nós sete da brigada de incêndio avançamos rumo ao fogo, dois para cada
silo, e eu alternando entre cada um. As chapas de aço cobrindo os enormes
cilindros perdiam o brilho no avanço das chamas, rangendo com a dilatação
do calor e dos gases. Banhamos a parte externa de cada um, mas o fogo vinha
de dentro, e por mais que resfriássemos os silos, os grãos ardiam no interior e
serviam de combustível.
A água precisava entrar pelos buracos do teto por onde saíam as chamas.
Não tínhamos caminhões de combate com escadas ou torres na vila, por não
contarmos com estruturas altas e porque os silos contavam com chuveiros
internos que por algum motivo não funcionaram. Da distância em que eu
estava, a água da mangueira não tinha força para chegar até o topo.
Aproximei-me do silo central para reduzir o ângulo e tentar direcionar o
meu jato d'água sobre o fogo no teto. Um companheiro mantinha seu fluxo
sobre as paredes metálicas, e no lado oposto uma outra combatente buscava
resfriar a todo custo o inferno à nossa frente.
De repente, um grito tomou os ares acima do incêndio, um grito de
desespero e fuga. No silo sob meus cuidados, a junta entre duas chapas se
partiu numa explosão de fumaça em alta pressão, explodindo em grãos e
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cinzas quentes. Fechei os olhos e protegi os olhos com as mãos, e quando


olhei ao redor atrás de meus companheiros, todos corriam para longe dali.
Alguém puxou minha mangueira e me derrubou ao chão. Jones, ao longe,
tentava me tirar do local de risco usando a mangueira como corda, mas puxou
com tanta força que a mangueira se soltou de minhas mãos e foi parar longe
do meu alcance. Meu capacete se desprendeu de meu crânio, por eu não ter
me lembrado de fixá-lo, e por isso machuquei a cabeça ao cair sobre o
concreto do chão, zonza de dor e desorientada debaixo da luz das chamas e
de seu calor penetrante.
— Elisa! — Jones gritou ao longe.
Uma força me ergueu do chão, um par de braços apoiado em minhas costas
e minhas pernas, levando-me para o alto fora de meu controle. Abri os olhos
e me deparei com o rosto suado de Ícaro sofrendo com o calor do fogo,
carregando-me de volta à multidão sem manta antifogo, sem capacete, sem
medo. Atrás dele, o silo ardia e gemia. O teto tombou sobre as paredes
partidas, jogou peso sobre a fissura e rasgou toda a estrutura.
Sementes em chamas caíram no chão de concreto, jorrando de um silo que
entrava em colapso e desabava sobre nós. Ícaro correu até a multidão e me
manteve nos braços, virando-se para o silo para ver o estrago. A equipe de
combate ao fogo retornou ao local antes que a poeira abaixasse, mirando a
água nos grãos feitos de cinzas. Ícaro me abraçou e me abaixou ao chão
lentamente.

A dor de minha cabeça não me incomodava. Minha dor maior vinha do


perigo corrido, da minha quase morte. Não fosse por Ícaro, será que eu teria
me levantado a tempo de correr do desabamento? Meus pensamentos
latejavam, meu corpo tremia de medo. Meus companheiros da brigada
avançavam sobre o fogo com coragem, energizados com o desastre, e assim
que pus os dois pés no chão, tirei o cabelo da frente dos olhos para voltar à
ação.
Dei um passo acelerado rumo ao pátio dos silos, de olho na mangueira que
eu tinha largado no chão. Ícaro segurou minha mão e me puxou para si,
envolvendo-me em seu peito. Esforcei-me para sair, debatendo-me entre seus
braços, mas não tinha forças para superá-lo.
— Você ficou louca? Fica aqui, já chega, já se arriscou demais por um dia!
— Ele gritou em meus ouvidos, seu tom de voz alterado com uma raiva que
eu ainda não tinha visto nele.
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— E deixar eles se arriscarem sozinhos? Eu preciso ir! — Eu apertei as


sobrancelhas, apoiando as duas mãos em seu peito, pronta para me afastar.
— Não, você vai ficar aqui. Não vou te largar enquanto esse fogo não se
apagar.
— Eu vou ficar bem, eu vou tomar cuidado.
— Você vai ficar aqui. Eu não posso te perder, Elisa.
Sua boca tremia, afetando sua voz. Ele estava emocionado, seus nervos à
flor da pele tanto quanto os meus. Virei o rosto para o fogo, espremida entre
os braços de Ícaro. Jones e os outros tinham controlado o fogo do silo central,
aquele que havia desmoronado, e dois membros da brigada começavam a
abafar o incêndio das outras torres.
Uniram-se no silo mais promissor, seis mangueiras direcionadas às suas
paredes em brasa, água penetrando pelos buracos de sua estrutura. Um
voluntário pousou a mão em meu ombro, pediu emprestada a minha manta.
Ícaro retirou-a de mim antes que eu pensasse no que fazer, e despiu-me da
função na brigada de incêndio pelo resto da noite. O voluntário se uniu aos
outros seis com o meu material, e tão logo controlaram as chamas do silo
lateral, partiram para o outro.
Nós, voluntários, não tínhamos organizado nenhum treinamento de
bombeiros. No máximo já havíamos cuidado de fogo nos prédios baixos, mas
uma estrutura tão grandiosa como a dos silos foi projetada para não precisar
de nossa intervenção. Os passos rápidos e tropeçados de Jones sobre o
concreto evidenciavam nosso despreparo, o medo generalizado. Não foi à-toa
que ele puxou minha mangueira com tanta força e me fez cair ao chão. No
fundo, ele agiu sem pensar, como um tolo, e provavelmente se remoía por
dentro enquanto tinha de combater o fogo.
O céu preto engolia a fumaça negra das chamas extintas. Sementes
carbonizadas jorravam pelas frestas dos silos arrombados, uma chuva de
cinzas caía sobre nós. O cheiro soprava para o sentido oposto de onde
assistíamos a ação, mas parte dele invadia nossas narinas e nos enojava.
Cheiro de ebulição e desperdício.
À medida que o fogo se apagava no interior dos silos restantes, escorria
pelo chão um rio de água preta. As paredes metálicas e fragilizadas lutavam
para conter a água dos grãos, vazando pelo chão, pelas juntas de cada chapa.
Tudo perdido, toda a produção de meses, a nossa cota trimestral.
Tendo derrotado o fogo, os membros da brigada voltaram ao carro na
estrada. Jones veio até nós, erguendo as mãos, empurrando-nos para atrás.
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Era melhor não nos aproximarmos do local.


Ele me viu nos braços de Ícaro, mordeu os beiços e abriu os braços para me
abraçar. Passei dos braços de um homem ao outro, envolta por palavras de
arrependimento.
— Elisa, perdão... Que burrada que eu fiz, que desastre — Jones disse. —
Na hora eu não pensei, eu fugi com tanto medo que não parei pra planejar
melhor alguma coisa. Te puxei e achei que você fosse se agarrar, mas deu
tudo errado. Eu só queria te tirar de lá.
— Tudo bem, já passou. Você me pegou de surpresa, por isso eu caí. Nós
somos uns patetas mesmo, não somos?
— Somos, somos sim... Que bom que você está bem, que bom, que bom. —
Ele me beijou o rosto, apertou minha nuca contra seu ombro. Deu-me espaço
para respirar, encarou Ícaro de frente, com os olhos arredios. — Cara, muito
obrigado por ter ido até ela. Não é qualquer um que faria isso.
— Eu nunca fiz algo assim. Vendo vocês atuando contra o fogo, acho que
eu me empolguei também. Queria ajudar.
— Você ajudou. Achei que vocês do outro lado não fossem capazes disso.
— Jones acariciou meu ombro, abaixou a cabeça e me deixou a sós com
Ícaro. Ele retirou sua manta e foi atrás de água para limpar seu rosto.
O desastre culminou em três silos arruinados, num fogaréu de madrugada, e
um estrangeiro se envolvendo no caso como um nativo. Afastei-me de Ícaro,
para a borda da passarela, onde não havia ninguém e onde a luz dos postes
quase não chegava. Sentei-me sobre o calçamento, e desabei a chorar.
Soluços tomaram meu peito, chacoalhando-me sob o peso da noite,
expulsando lágrimas de meus olhos como se buscasse me liberar das toxinas
da tormenta.
Ícaro se sentou ao meu lado. Envolveu-me com um dos braços, puxou-me
para cima dele. Recostei em seu ombro, cobrindo o rosto com as mãos. Uma
confusão de sentimentos me engasgava, tudo querendo sair de mim ao
mesmo tempo. Um monstro, uma angústia terrível me assaltava, a visão de
vidas arruinadas.
— Eu não aguento isso... — eu disse, soluçando. — É muita coisa...
— Shh, calma, calma, tudo tem solução. — Ícaro acariciou meu cabelo,
beijando-me a testa. — Pode chorar, você precisa disso.
Chorei. Raras eram as vezes em que eu me entregava assim às lágrimas,
preferindo me segurar até o limite, encarando a vida com otimismo, com
coragem. O medo era uma presença estranha em minha vida, pois quando
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vinha, não era à-toa.


— Tudo destruído... Agora vamos ter de... — Funguei com força. — Agora
temos de reconstruir, e ainda faltam as estradas, e as limpezas, e tantas
coisas... Isso tá me sufocando. Nós não vamos dar conta a tempo. — Mais
calma, eu virei meus olhos vermelhos ao rosto de Ícaro.
— Posso sugerir uma coisa? Estive pensando nisso ultimamente, mas me
faltava coragem. — Ícaro escondeu o rosto entre as sombras de nossa solidão
à beira da passarela.
— Diga, eu preciso de qualquer ideia, qualquer coisa.
— Venha comigo para o outro lado. Lá você não precisa se preocupar com
reconstruir nada. É só usufruir.
— Ai, Ícaro... Isso não. — Eu revirei o rosto, encostando a bochecha em
seu ombro.
— Isso sim. Pense nisso. Lá você pode trabalhar e conseguir dinheiro para
comprar coisas que nunca acabam. Não tem de se preocupar com nada além
do seu próprio trabalho. Cada um cuida de sua parte, e no final tudo dá certo.
— E como é que isso seria? Eu iria pra lá sem nada, sem dinheiro, sem um
lugar pra ficar... Isso não vai dar certo.
— Lá você vai ter paz. Você pode ficar comigo, pode morar na minha casa,
não precisa se preocupar com nada mais. Chega de tanto trabalho. Vem viver
como eu vivo.
— E como você vive?
— Sem preocupações. Só faço o que eu quiser fazer.
— É porque alguém trabalha pra você. Alguém faz as coisas que você não
faz. Eu seria apenas mais uma dessas pessoas pra você por lá.
— Não, você não precisaria fazer nada! Seria o seu momento de curtir a
vida. Pra sempre.
— Só porque você me daria isso, com seu dinheiro. Essa seria a minha
escravidão. Então não, prefiro as dificuldades da liberdade do que as doçuras
da servidão.
— Você seria igual a mim. Eu e você, juntos, sem nada dessa bagunça... Por
favor, Elisa. Venha comigo.
— No outro lado vocês não acreditam em igualdade. Senão ninguém seria
chefe de nada.
Ele resmungou algo que não consegui entender, abaixando a cabeça num
sinal de frustração. Por um segundo, considerei a sua proposta e tentei me
imaginar no outro lado. Uma vida com Ícaro e sua fortuna, tudo o que eu
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quisesse em minhas mãos, com todo o tempo do mundo. No estado em que


eu estava, cansada dos desastres acumulados, a proposta era ruim mas tinha
seu charme. Se pelo menos por um momento eu pudesse fugir de tudo, talvez
a fuga me permitiria um pouco de paz.
— Cansadinhos? — Laura disse, chegando num salto atrás de nós, na
surdina.
Virei-me a ela num pulo contido, sentada na beirada da passarela. O óleo de
seu rosto refletia a luz fraca dos postes, ainda carregando um certo brilho das
chamas, como se a memória do incêndio contaminasse tudo ao meu redor.
Ela sorria sem mostrar os dentes, de sobrancelhas levantadas e olhos bem
abertos. Deu um passo ao meu lado e se colocou à nossa frente.
— Você tava chorando, Elisa? Quando vi sua cara, achei que você
precisava de um momento pra descarregar as emoções, mas como o Ícaro
veio te acudir, te deixei com ele. — Laura abriu os braços para os lados e deu
de ombros. — Agora me diz o que está havendo, pra eu entender melhor
como posso te ajudar.
— Foi esse monte de acontecimentos, Laurinha, um bolo de coisas. Tanta
coisa pra fazer, você sabe que isso me sufoca. Ainda por cima tem esse fogo
agora. Ele destruiu tudo. — Eu balancei a cabeça, girando a mão pelo ar com
o cotovelo apoiado em meu joelho.
— Ah, perdemos os silos, mas é só fazer outros. Material não falta, e nem
gente pra ajudar. Não é um foguinho desses que vai nos derrubar, né? Um
incêndio assim tem até beleza, vai dizer que não achou isso também? As
cores vivas, o calor, o heroísmo... Tá certo que você quase morreu, só que foi
um quase, então vamos trabalhar com os fatos, apenas com os fatos, e o fato é
que ocorreu um acidente que iluminou nosso belo céu noturno.
— Ai, Laura, só você mesmo... — Eu ri para dentro de mim, sacudindo o
rosto.
— E pensa em como vai ser incrível o esforço para reconstruir! Nós vamos
pedir voluntários de outras vilas e comunas, e o clima daqui vai ser ótimo
com gente de outros lugares. Os grãos perdidos nós podemos recuperar
pedindo envio de emergência para os outros lugares. Vão adorar dividir
conosco, você sabe disso, mesmo que sobre menos para cada um. Fica
tranquila, tudo tem solução.
— Sim, você tem razão. — Eu esfreguei o olho na manga da blusa,
contagiando-me com o sorriso de Laura. — Dessa vez vamos fazer um
projeto com ainda menos risco de incêndio, com ainda mais tecnologia, e
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nossa vila vai ser melhor por conta disso, é mesmo.


— Ei, gente, vamos pensar direito, por favor — Ícaro disse. — Vocês
acabaram de perder o depósito de grãos da vila. É a comida de vocês, isso é
coisa grave. Venham comigo para o outro lado, todos vocês daqui. Aqui não
tem mais estrutura pra abrigar uma comunidade.
— Eu hein, que ideia é essa? E perder a chance de reconstruir? Fugir só por
causa de um desastre? Moço, aqui a gente não foge não, sabia? — Laura se
aproximou de Ícaro, apoiando as mãos na cintura. — Aqui a gente bate de
frente. Sabe por quê? Porque nunca estamos sozinhos. Todo o mundo sempre
ajuda.
— Mesmo se vocês tivessem perdido tudo? Vocês nunca vão largar mão do
mundo de vocês, por mais miserável que ele se torne? — Ícaro insistiu,
engolindo em seco, como se duvidasse ele mesmo de suas palavras.
— Ele nunca vai ser miserável se mantivermos a cabeça erguida diante dos
outros. Aqui ninguém é dono de nada — Laura disse.
— Tudo bem, mas eu estou preocupado com vocês. Tanto esforço só para
se manterem vivos, e parece que nunca vão conseguir aproveitar a vida de
verdade.
— Você tá falando da Elisa, né? Porque euzinha aqui aproveito a vida a
cada segundo, a cada respiração que eu dou. Olha que respiro bonito esse,
olha que graciosidade, que energia! — Laura virou o rosto para o céu, estufou
o peito e juntou as mãos no peito, deslizando-as pelo ar conforme ele saía de
seus pulmões. — Viu? Aproveitar a vida é viver todos os momentos bem. A
Elisa é que precisa parar de se preocupar tanto com as coisas. Mas ela é uma
exceção. Se você não tivesse ficado tão grudado nela o tempo todo, teria nos
conhecido melhor.
— Eu só estou oferecendo uma oportunidade de salvar vocês. Ao invés de
ficarem esperando a ajuda dos outros, por que não aceitar a ajuda que eu
ofereço? — Ícaro disse.
Apertei o braço de Ícaro, chamando sua atenção para mim e disse: — Nós é
que vamos nos salvar, você entende? Não quem vem de fora.

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22 - Ícaro

Que noite exaustiva! Nunca precisei acordar de madrugada para acompanhar


algum problema, a não ser nas raras vezes em que passei mal e precisei de
cuidados. Ouvir aquele alarme de incêndio ecoando por toda a região, ver o
clarão do fogo na noite, sentir o calor das chamas queimando minha pele,
todo aquele clima de desespero me tomou o coração. De uma hora para a
outra, tudo o que eu tinha de mais precioso na vida ficou evidente. Meu
dinheiro e meu nome empalideceram perto de Elisa e do tipo de liberdade que
ela me oferecia.
O incêndio estava controlado, e todos concordaram em esperar até o dia
raiar para cuidar das ruínas. Sujos como estávamos por conta das cinzas
esvoaçantes e da própria fuligem pelo ar, Elisa e eu fomos à casa de banhos
tomar uma ducha. Eu a conduzi com o braço envolto em suas costas, ela
abraçada em mim com a cabeça encostada em meu ombro. Seu rosto se
contorcia num misto de expressões, ora a dor se mostrando através de olhos
apertados, ora a sonolência relaxando-os.
A água me lavou num frescor familiar, a água que me banhava há semanas,
o rio de Água Clara conduzido pelo encanamento até meu corpo. Ensaboei-
me com pressa, querendo mais algumas horas de sono, querendo terminar
antes de Elisa, para não fazê-la esperar. Vesti-me e me sentei do lado de fora.
Quando ela veio até mim, de cabelos molhados, secando-os com uma toalha,
sem palavras nós fomos juntos até o quarto e nos deitamos lado a lado na
cama. Eu a acolhi em meu peito, cobri seu ouvido com minha mão, beijei sua
testa e fechei os olhos. Adormecemos enquanto a escuridão ainda dominava o
mundo.
Quando despertei, Elisa sacudia levemente o meu peito. O sol clareava a
cortina da janela, marcando a vitória do dia sobre a noite. Ela se levantou da
cama, lavou o rosto inchado, olhos vermelhos e olheiras marcadas, e não
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precisou dizer nada para que eu entendesse o que nos esperava no dia. Saí do
colchão, espreguiçando-me de pé, dobrei os lençóis com ajuda de Elisa,
joguei água no meu rosto e, antes que eu me desse conta, Elisa penteava
meus cabelos de frente para o espelho.
No refeitório, encontramos uma mesa de buffet mais simples do que o
normal, provida de torradas e algumas geleias ou patês, acompanhada de
ovos cozidos. Elisa apertou os olhos com desconfiança, correndo as pupilas
de um canto ao outro do ambiente.
— Não tiveram tempo de preparar tudo hoje. Estamos todos cansados, eu
acho — ela disse.
— Tudo bem. Pelo menos temos o que comer. — Eu acariciei as costas
dela, saboreando o sorriso que despertei nela.
— É, isso é muito bom. Mas amanhã deve voltar ao normal.
As mesas se enchiam de pessoas à medida que saíam dos quartos. Uma
parcela delas parecia não ter dormido desde o incêndio da madrugada,
conversando com tanta energia que certamente já tinham planos para lidar
com os novos problemas.
Elisa balançava o pé incessantemente, piscava sem parar, engolia após
mastigar pouco. Virava os olhos de um canto ao outro do refeitório,
analisando todas as pessoas. Inquieta, ela comia à minha frente como se não
houvesse tempo a perder.
Ao longo da passarela, uma mulher esbelta caminhava até nós trajando um
vestido leve de verão, azulado e com um laço sobre o peito. Penélope. Ela me
viu junto a Elisa e mostrou os dentes num largo sorriso, de olhos ardentes e
passos pesados, chacoalhando a saia.
— Elisa, minha cara, eu estou tão triste com o que aconteceu hoje à noite —
Penélope disse, repousando a mão sobre o ombro de Elisa. — Vocês já têm
uma vida tão sofrida por aqui, e ainda por cima uma coisa dessas... Tomara
que isso não afete muito a rotina da vila.
— Nós vamos dar um jeito. Se quiser ajudar, vai ser bem-vinda. — Elisa
segurou um pedaço de pão e encarou Penélope com os beiços partidos.
— Acho melhor não. Afinal, vamos embora em poucos dias, não vamos? Se
ficássemos mais tempo, quem sabe eu pensaria em ajudar.
— Você nunca pensaria nisso — eu disse, fechando a cara diante do
sarcasmo de Penélope. — Está doida pra sair daqui.
— E você não? — ela disse, erguendo as sobrancelhas.
Calei-me antes que dissesse algo que me complicasse diante de Elisa. Eu
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era cúmplice de assuntos que precisavam ser deixados para atrás, assuntos
que me envergonhavam e que se sobrepunham às minhas vontades.
— Bem, eu vou comer um pouco da ração que colocaram para comermos
hoje, e vejo que vocês já estão terminando, então tenham um bom dia, tudo
bem? — Penélope saiu de perto, torcendo a boca para a mesa de buffet.
— Tudo bem com você? — Eu me virei a Elisa, antes que ela terminasse de
comer o último pedaço da refeição.
— Claro. Você vem comigo plantar batatas?
— O trabalho hoje é com a terra, então? Achei que fosse ajudar a limpar os
silos.
— Nós perdemos muita comida, Ícaro. Temos de nos certificar de que
teremos o que comer.
Tão logo limpamos nossos pratos e escovamos os dentes, fomos juntos à
Praça dos Veículos. Montamos num quadriciclo disponível e dirigimos até o
Posto do Monte. Um outro voluntário já preparava o terreno para um
conjunto de ramas de batata-doce e batata-inglesa. Após cumprimentá-lo,
Elisa calçou uma bota na casa de apoio, deu uma olhada no planejamento
daquela região agrícola, e pegou um carrinho de mão com ramas para
começar o trabalho.
Eu a ajudei com a enxada, alternando com ela cada parte das tarefas, sem
que ela tivesse me pedido qualquer cooperação. Dentro de mim, algo me
afastava da minha vida no outro lado, de tudo o que meu papel naquele
mundo representava. A vila passava por problemas, grande parte deles
causados pela presença de minha gente por lá, e eu me sentia muito
mesquinho em deixar tudo nas costas de Elisa e de seus companheiros.
— Tô com uma dor de cabeça bem ruinzinha — Elisa disse, debaixo do sol,
fungando o nariz. — Uma sensação de sufocamento também, sabe.
— Será que ficou resfriada? Sua imunidade deve ter baixado depois desses
dias. Você anda muito ansiosa, e isso é ruim pra saúde. — Eu repeti apenas o
que minhas babás me disseram ao longo da vida, lamentando não poder
ajudar mais.
— É, né, faria sentido. Pra ser sincera, eu não tô bem.
— Então larga tudo, Elisa, vai descansar.
— Não, eu tenho de ajudar. Vai passar, você vai ver.
— Nada disso. — Agarrei seu pulso, encarando-a fundo nos olhos. —
Precisa de repouso. Lá na casa tem cama, não tem? Deita lá um pouquinho,
descansa, bebe água. Eu vou com você.
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Eu me preparava para insistir, esperando sua réplica, ela que nunca acatava
minhas sugestões sem debate. Mas respirou fundo e balançou a cabeça,
olhando baixo, retirando as luvas grossas. Conduzi-a pela terra até a casa de
apoio, levei-a ao segundo andar, onde colchões e redes disputavam o terraço
envidraçado. Ela se deitou no chão com o rosto coberto por uma mão,
fechando os olhos.
Procurei na cozinha algo para lhe preparar, mas só encontrei comida
enlatada e água. Enchi um copo e o levei para ela. Elisa bebeu um gole e
escondeu seu sorriso.
— E as batatas? — ela disse.
— Pode deixar que eu cuido disso. Vi você trabalhando nelas, e acho que
consigo fazer igual. Não vai ficar perfeito, mas vou tentar.
— Você vai conseguir. Obrigada, Ícaro. Tô precisando mesmo de um
descanso maior hoje.
— Você está ficando doente, Elisa. Só isso pra te fazer ficar quieta um
pouco, não?
Voltei ao terreno onde Elisa havia deixado o carrinho de mão, e cavuquei o
resto da nossa cota. O outro voluntário que trabalhava no lugar me deu uma
mão quando tive dúvidas, e corrigiu meu trabalho com tanta boa vontade que
não me importei com as sugestões. No fundo, ele queria apenas me ajudar.
Almocei ali mesmo, na casa, retirando uma refeição improvisada na lata
para Elisa e eu. O voluntário retornou à vila, perguntou se não queríamos
alguma coisa. Disse que não, que eu queria apenas comer e cuidar de Elisa.
Mas no segundo andar, ela não estava mais deitada. Encontrei-a de frente ao
computador, lendo uma página de texto do Fórum Geral.
— Ei, você tem que descansar — eu disse, pousando as mãos em seus
ombros.
— Mas eu estou descansando. — Ela se virou para mim com os olhos
culpados, como uma criança negociando a traquinagem.
— Deita, Elisa, deita. Trouxe algumas coisas pra você comer. Vamos lá,
descansa, pelo menos por hoje.
Ela inclinou o rosto, retorceu os lábios e desligou a tela do computador. Fez
como eu sugeri e se abandonou aos meus cuidados.

Arrumei a cozinha quando terminamos de comer, dei baixa no sistema


online sobre os enlatados que comemos, e voltei ao segundo andar para me
certificar de que Elisa descansava. Ela se sentou em uma poltrona reclinada,
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fechou os olhos, e sua pele estremeceu.


— Tô com frio... Você também tá sentindo? — ela disse baixinho, num
murmúrio frágil.
— Acho que você tá ficando com febre. Deixa eu ver. — Encostei a mão
em sua testa, mas não me parecia mais quente do que o normal. — Vou pegar
um cobertor pra você, tá bom?
Ela balançou a cabeça levemente para cima e para baixo, fechando os
braços sobre o peito. Num quartinho do terraço, vi um baú com peças de
roupa e lençóis. Guardados há não se sabia quanto tempo, eu receava me
deparar com tecidos empoeirados, algo que fosse piorar a fraqueza cada vez
mais pronunciada de Elisa, mas a vedação do baú era impecável.
Cobri minha companheira com um lençol grosso, embrulhando-a por todos
os lados, deixando só sua cabeça à mostra. Seus pretos cabelos escorriam
sobre as orelhas, aquecendo metade de sua cabeça, e para esquentar seu rosto,
dei-lhe um beijo na bochecha. Ela abriu os olhos para me agraciar com um
sorriso, e voltou a fechá-los para descansar.
Tendo ela ali, quieta em seu canto, repousando, sentei-me na mesa do
computador para passar o tempo. As páginas abertas do Fórum Geral, aquelas
que Elisa tentava ler antes de eu chegar, falavam sobre as investigações do
incêndio nos silos de Água Clara. A notícia corria por toda a Federação, e a
desconfiança de nossa presença já se manifestava de forma generalizada.
Nada daquilo me surpreendia. Restava-me apenas lamentar.
Elisa dormiu por uma hora e acordou com os olhos vermelhos. Mexeu-se na
poltrona para recolocar as pernas no chão, abrindo o lençol. Ouvindo-a
gemer, corri para seu lado.
— Minha cabeça tá doendo. A gente precisa voltar para a vila. É melhor eu
passar no posto de saúde.
— Tudo bem, você aguenta a viagem?
— Aguento sim. É só ir devagar.
Procurei um casaco no baú de roupas, coloquei-o sobre Elisa, caindo largo e
macio sobre ela, e a levei até o nosso quadriciclo. Ela se agarrou às minhas
costas, deitando o rosto sobre mim. Eu não a conseguia ver, mas tinha a
certeza de que apertava os olhos para suportar as dores.
Acelerei apenas o bastante para deixarmos a casa de apoio, e assim que
chegamos à estrada, mantive um ritmo lento e constante. Ela se remexia sobre
o assento, puxando e apertando meu peito, lutando para encontrar uma
posição mais confortável. Mas no estado em que ela estava, sofrendo dos
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primeiros sintomas de um resfriado, ou de uma crise alérgica, ou de


ansiedade, eu não sabia ainda, a única posição possível era aquela deitada
sobre uma cama.
Ao nos aproximarmos do centro da vila, Elisa ergueu um dedo à minha
frente, apontando uma outra estrada. Acreditando que se tratasse de um
atalho, eu acatei a sua sugestão, seguindo uma estrada de mão dupla entre a
mata do cinturão verde de Água Clara. Uma estrada de ferro nos encontrou,
margeando o caminho asfaltado, e quando eu menos esperava, saímos ao lado
da estação de carga, de frente aos silos destruídos na noite.
Dois enormes cilindros marcados pelo preto das chamas, seus metais
corroídos e distorcidos pelo fogo. Cinzas espalhadas por todo o pátio,
enegrecendo a paisagem. Grãos carbonizados derramados sobre o chão,
chapas retorcidas sangrando a podridão cuspida pelo incêndio. Uma
escavadeira retirava o grosso dos detritos e os carregava na caçamba de um
caminhão.
Virei-me para trás, buscando os olhos de Elisa, e os encontrei perdidos,
avermelhados, tristes. Tirei o quadriciclo dali, retornando pelo mesmo
caminho, sem protesto de minha passageira. Entrei na vila, parei na Praça dos
Veículos. Ajudei Elisa a sair da garupa, apoiei-a em meus braços e a levei até
o posto de saúde pelas passarelas cobertas.
A equipe de saúde a acolheu com um abraço, levando-a para um quarto
escuro e silencioso. Inspecionaram-na, questionaram-na sobre os sintomas, e
discutiram entre si as possíveis causas. Imunidade baixa, estresse e ansiedade.
Ela precisava de repouso e de medicação leve.
Fiquei com ela no quarto por um tempo. Sentado na poltrona do
acompanhante, no breu do quarto silencioso, iluminado por um abajur
amarelado no canto do cômodo, o sono me tomou as pálpebras. Ouvindo o
ressoar tranquilo do sono de Elisa na cama, deixei-me levar pelo cansaço e
adormeci.
Despertei sem noção de tempo, sem saber se dez minutos ou duas horas
haviam se passado. Elisa ainda dormia, em paz. Uma voluntária da saúde
entrou no quarto para conferir seu estado, acariciando seus cabelos.
Percebendo-me desperto, veio até mim e sussurrou em meu ouvido: — Fiquei
à vontade para cuidar de outras coisas, tudo bem? Estamos aqui cuidando
dela. Ela vai ficar boa logo.
Eu não queria deixá-la, mas ao mesmo tempo acordei com uma grande
irritação. Ver Elisa sofrendo daquela forma com suas preocupações, ver o
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estrago causado pelo incêndio, tudo aquilo fazia meu sangue ferver. Eu era o
chefe da missão do outro lado, eu era o culpado de tudo. Mas eu não queria
aquela culpa, eu abdicava de tudo.
Deixei Elisa aos cuidados da equipe de saúde, planejando um retorno em
breve. Parti em busca de Penélope e Oliseu, e ao perceber que o sol se
preparava para se por no horizonte, perambulei por toda a vila até encontrá-
los. Eles passeavam pela praça à beira-rio, nas imediações do porto, rodeados
por outros de nossos amigos. Riam juntos, apartando-se dos nativos.
Receberam-me com frieza, dirigindo-me olhares fechados, desconfiados.
Calaram-se, alguns mantendo os sorrisos maliciosos. Penélope se pôs à frente
do grupo, aguardando-me chegar.
— Ora, se não é o nosso herói — ela disse, estufando o peito, girando o
pulso na altura dos ombros.
— Estão felizes agora? — Bati o pé no chão, interrompendo meus passos.
— Sempre felizes, meu caro. Tivemos uma noite iluminada, não tivemos,
meus amigos? — Penélope olhou para atrás, colhendo risadas das pessoas.
— Que superioridade moral vocês esperam conseguir depois de uma coisa
dessas? Destruição, pura e simples. Poderia ter morrido alguém! — eu disse.
— Mas não morreu. Você estava lá para salvá-la. Não está feliz em ser
herói?
— Vocês não se arrependem? Nem um pouco?
— Arrepender de quê? Eles também vivem destruindo tudo no nosso lado.
O que fizemos aqui não foi nada.
— Cale a boca! Quando é que eles colocaram fogo em algum lugar nosso?
Quando é que se divertiram com a morte de alguém? Nunca!
— Ué, não estou te entendendo, Ícaro. Por acaso você não veio aqui
justamente para isso? Amarelou, é? Aquela idiota fez de você um covardão,
não é? Hm, acho que agora entendi.
— Eu tô aqui na frente de vocês, dando esporro em vocês. Sozinho, eu
contra todos. Isso é covardia pra você?
— Pra mim você tá só fugindo da raia. Tem as mãos tão sujas quanto as
nossas, querido. Ou vai dizer que a sua pobretona não vai desconfiar do seu
envolvimento nisso tudo? Você pertence ao nosso lado, e não ao deles. Você
não nasceu pra ser pobre, ao contrário desse povo. Aceite isso. — Penélope
segurou meu braço, arrastando-me para si.
Desfiz-me de sua pegada, afastando-me do grupo. — Eu não nasci pra ser
pobre, você tá certa. Por isso eu não volto mais pro outro lado.
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Marchei para longe deles, ao som de risadas debochadas, de palavras feias


ditas junto ao meu nome. Mesmo com todo o dinheiro que eles tinham, com
toda a influência de seus nomes, a presença deles não me oferecia mais nada
de bom. Tendo Elisa passando mal no quarto escuro, eu não queria receber
nada de ninguém, eu não pensava mais no que poderiam fazer por mim. Eu
queria apenas me doar, oferecer, de uma vez por todas, tudo o que eu tinha.
Meu tempo, minha dedicação, meu amor. Minha vida, meu bem mais
precioso, para alguém. Para Elisa.

No quarto em que Elisa repousava, uma luminária clareava o quarto, uma


luz fraca no teto. Laura ocupava a poltrona na qual eu tinha dormido antes, e
conversava com sua amiga. Elisa falava devagar, com voz carregada, mas
tinha os olhos vivazes, recuperados de grande parte de sua vermelhidão. Ela
abriu um largo sorriso quando eu cheguei, e estendeu sua mão a mim.
Apertei-a, envolvendo os dedos em sua palma macia, e cumprimentei Laura
com um toque em seu ombro.
— Chegou em boa hora — Laura disse. — Estava aqui contando pra Elisa
que descobriram como o incêndio começou.
— É mesmo? — Mordi os lábios, olhando baixo, fugindo de seus olhares.
— Foi sabotagem — Elisa disse.
— Alguém foi lá e fez o serviço completo. — Laura se meteu à frente de
Elisa, cuidando de que nossa amiga não falasse muito, necessitada como
estava de repouso. — Desligaram o sistema antifogo, travaram os alarmes, e
depois tacaram fogo nos três silos ao mesmo tempo, direto nos grãos. Eu bem
que imaginava que não tinha como ser acidente.
Dei um longo suspiro, de olhos fechados, e tomei coragem. Mais cedo ou
mais tarde, elas chegariam à acusação, então que eu explicasse logo tudo.
— Foram os visitantes. Sim, foram eles — eu disse.
— Foram vocês, você quer dizer, não? Você também é um visitante —
Laura disse, dilatando as narinas, cerrando os dentes.
Elisa virou o rosto para a parede, escondendo-se de mim. Seus ombros se
apertaram, encolhendo seu corpo. Balançou a cabeça para os lados, numa
sutileza que eu só percebi porque era a reação que eu já esperava.
— Eu não queria que eles fizessem aquilo. Estão fora do meu controle, eu já
não mando mais em nada. — Abri os braços para Laura, fazendo dela a
minha interlocutora, sentindo-me culpado por levar mais aquele estresse para
Elisa.
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— Mas não foi para isso que você veio pra cá com eles? Pra sabotar? Pra
bagunçar tudo? — Laura se levantou, cruzando os braços à minha frente,
cada vez mais próxima de mim.
— Sim, quando eu não os conhecia direito. Quando eu achava que vocês
eram nossos inimigos. Quando...
— E não somos mais os seus inimigos?
— Não, não mais...
Elisa se levantou num salto da cama. Jogou o lençol sobre o colchão,
cambaleou num passo inseguro, quase caindo. Corri para seu lado, acudindo
sua queda. Ela se estabilizou e me empurrou para o lado, de rosto fixo na
porta, sem olhar para mim.
— Elisa, você ficou doida? Volta pra cama, mulher, não faz isso não! —
Laura levou as mãos ao rosto com a boca aberta, e correu atrás dela.
— Por favor, Elisa, você precisa repousar. — Eu me juntei a ela enquanto
Elisa caminhava a passos apressados pelo corredor do posto de saúde. — Eu
saio do quarto, eu fico longe de você, mas não faça isso.
Um casal da equipe que cuidava dela a encontrou pelo corredor e se pôs à
frente de sua paciente, seus olhos arregalados procurando entender entre nós
o que acontecia.
— Os visitantes provocaram o incêndio. Os visitantes! Chega! É hora de
mandar todos eles embora — Elisa disse, empurrando-os com a força que
brotava de seu coração cansado.
Abriram espaço para ela porque a revelação e a chamada à ação os seduzia.
Ela alcançou a passarela e rumou aos dormitórios com nossa pequena
comitiva atrás de si. Erguia os braços quando encontrava alguém, esbravejava
palavras de ordem e exauria sua energia a cada grito.
— Os visitantes queimaram os silos! Hora de expulsá-los! Venha comigo, e
se achar alguém por aí, traga ele para cá!
O grupo de quatro pessoas se tornou um de dez, de vinte, de quarenta. Os
visitantes perdidos que vagavam pelos corredores e salões foram convidados
a seguir nossa comitiva, vigiados por membros zangados e prontos para o
confronto. Meus antigos companheiros olhavam para mim em busca de
consolo, amedrontados com a reação da massa, e eu lhes oferecia uma cabeça
baixa e resignada.
Elisa arrastou uma multidão até a praça à beira-rio, capitaneando um grupo
que não conhecia líderes. Passando mal, enervada, cansada e decepcionada,
sua voz falava mais alto, mais urgente. Elisa ganhava no grito, ela que se
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dizia tímida, que tinha dificuldades para se expressar diante de muita gente.
Em seu caminho, encontrou Penélope, Oliseu, e quase duas dezenas de
meus antigos amigos. Reunidos cara a cara, o rosto febril de Elisa se fechou
ao se deparar com uma Penélope risonha, mulher de cabelos loiros e nariz
empinado, pernas magras à mostra e postura impecável. Mais alta do que
Elisa, mais endinheirada, mais famosa, mais bonita, Penélope dava passos
rumo ao avanço de Elisa como se fosse esmagá-la, ignorando a procissão que
a seguia.
Empurraram os visitantes que seguiam na multidão rumo ao grupo de
Penélope, para reunirem todos num só lado. Tentaram me empurrar também,
mas eu resisti e Laura ficou comigo. Ela via em meu rosto a minha
transformação, e ao debater comigo ela se aliou a mim. Fiquei na fronteira
entre um lado e o outro, ao lado de Elisa, à frente de Penélope.
— Nós lhes demos comida, abrigo, água, tempo livre... Honramos a sua
humanidade, provemos tudo o que vocês precisavam pra uma vida plena, e o
que vocês fazem? — Elisa sacudiu a cabeça ao falar alto com a voz rouca,
desgastada pela garganta que se inflamava com a febre a dor de cabeça. Seu
rosto avermelhado não se abatia. — Vocês nos sabotam! Queimam nossa
comida, destroem nosso acampamento, emporcalham tudo, cospem no prato
que lhes ofereceram. Chega! Todos vocês, fora daqui, agora. Subam naquele
maldito barco de vocês e nos deixem em paz! Todos, todos!
— Minha cara, acalme-se, por favor. — Penélope piscou os olhos numa
lentidão cruel, rindo da fúria de Elisa. — Nós ainda nem jantamos em seu
adorável refeitório. Que espécie de hospitalidade é essa que expulsa seus
visitantes de estômago vazio? Isso não se faz, convenhamos, não é, nem
mesmo num lugar como esses.
— Seja razoável, Elisa, aprenda a controlar suas emoções, mostre um pouco
mais de maturidade — Oliseu disse, cruzando os braços ao lado de Penélope,
de boca escondida debaixo das sombras de sua barba. — Nós vamos embora
no prazo que vocês nos deram, e só se quisermos.
— Nada disso, chega de conversa. Vocês não sabem dialogar, então é
impossível negociar. — Elisa se aproximou de Penélope, olho no olho. —
Saiam agora!
— Você virou a prefeita da vila agora, é? — Penélope riu de deboche,
revirando os olhos. — Achei que vocês aqui não gostassem de chefes para
nada.
Elisa se virou para a multidão atrás de si. Fixou os olhos em mim. Ergueu o
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braço e perguntou: — Quem quer eles fora daqui agora?


Todos levantaram os braços. Eu levantei o meu junto ao resto, fixando o
rosto de Elisa na direção do meu olhar. Ela se voltou ao grupo de visitantes.
— Saiam daqui, agora. — Ela falou baixo com Penélope. — Isso não é um
pedido. É uma ordem.
— Ordem? Ora, vocês não dão ordens. Aqui todos são livres para fazer o
que quiserem, não é assim? — Penélope girou em torno de si própria,
estendendo a saia de seu vestido com o rodopio. — Eu quero ficar, eu quero
jantar, tudo no meu tempo. Estamos no seu lado do mundo, não estamos?
— Estamos, e você não está sozinha. Não consegue entender a diferença?
Se não consegue viver entre nós, vá viver entre os seus. Isso é liberdade.
— Não me convenceu. — Penélope fez beiço, deu de ombros. — Vão ficar
aqui nos olhando, é? Não têm nada melhor pra fazer?
Elisa fechou os olhos numa expressão de dor, respirou fundo, passou as
costas da mão na testa suada e vermelha. Deu um passo à frente, com as mãos
posicionadas sobre Penélope, e a empurrou para atrás. O rosto de Penélope se
transfigurou, tomada de surpresa, jogada para atrás. Ela gritou e escondeu o
rosto, como se Elisa a tivesse atingido na face.
Elisa se assustou com a reação de Penélope, levando as mãos de volta à
cintura. Penélope se virou para ela com a mão na bochecha, de rosto
contorcido, repleto de dor. Oliseu correu ao seu lado, conferiu a farsa de
Penélope, virou-se para Elisa com o rosto fechado e a empurrou. Elisa caiu ao
chão, estatelando-se sobre o ladrilho da praça com uma das coxas e os
cotovelos. Apertou os olhos e rangeu os dentes, soltando um gemido.
Meu sangue ferveu. Parti para cima de Oliseu.

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23 - Elisa

Minha cabeça ardia de dor. Eu tentava resistir ao calor da cena com a raiva
que brotava dentro de mim, mas ser jogada ao chão me quebrou. Eu já me
sentia mal, e aquele agravante tornava minha situação mais complicada.
Minha coxa latejava em espasmos doloridos, irradiando ardência para todo o
meu corpo. Meu cotovelo rugia uma dor aguda, tendo tomado grande parte
do impacto.
Quando abri os olhos novamente, ouvindo gritos ao meu redor e o som de
socos, Ícaro atacava Oliseu com um golpe em sua barriga. Oliseu se recolheu,
deu um passo para trás, fugindo de um novo ataque, tirou a mão da barriga e
a usou para se defender. Escapando de Ícaro, Oliseu aproveitou o momento
para desferir uma cotovelada nele, acertando a costela de Ícaro. Mas numa
virada rápida, Ícaro desferiu um soco no rosto de Oliseu e o nocauteou.
Oliseu cambaleou até cair ao chão.
Um par de visitantes o acudiu com os olhos arregalados, erguendo-o pelos
braços de modo que ele se pusesse novamente de pé com o apoio dos dois.
Ícaro veio até mim com o rosto fechado, caminhando ileso diante de uma
paisagem humana colorida pelo choque. Ele se abaixou, pôs a mão
gentilmente em minha testa, e me levantou de uma só vez, segurando-me
num abraço. Envolvi meus braços em suas costas, pousando a cabeça em seu
peito. Fechei os olhos de novo, porque ele me protegeria.
— Eles não vão sair por bem — Ícaro disse, voltando-se às pessoas da vila
que haviam me acompanhado até a praça. — Elisa já disse o que temos de
fazer. Vocês estão em maior número. É hora de colocá-los pra fora!
A multidão passou por nós como um rio caudaloso, avançando rumo ao
grupo de visitantes numa marcha constante e vagarosa. Dezenas de olhos
fixos em menos de trinta pessoas assustadas, integrantes do outro lado do
mundo, onde tinham dinheiro e fama, mas não tinham paz, atormentados por
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uma competição interminável. Puxei Ícaro junto a eles, integrando-me à ação,


nem um pouco animada com a ideia de perder cada segundo daquele
momento.
Nós escurecemos a praça, nossas sombras engoliram os rostos assustados
dos visitantes. Jones empurrou Penélope com gentileza, conduzindo-a pelo
caminho até o porto, e ela não o resistiu. Deixou-se levar com os olhos
baixos, seguida por seus companheiros e por todos nós da vila. Em silêncio,
nossos corpos vazaram pelas árvores da praça, espremeram-se pelo
calçamento que se subdividia em várias trilhas.
O barco apareceu ao longe, flutuando sobre o rio, escurecido pelo desuso.
Conforme nos aproximávamos, de dentro dele saíram três pessoas.
Bernadette, Rosilda e o capitão se puseram sobre o convés, suas bocas
abertas em admiração, vislumbrando a procissão como se o último dia tivesse
chegado.
Um a um, os visitantes subiram a rampa do barco. Alguns se esconderam
nos cômodos internos, outros, como Penélope e Oliseu, se viraram para nós,
altos em seu púlpito das águas, e nos encararam mais uma vez. De nariz em
pé e punhos cerrados, Penélope ainda tinha o que dizer.
— Isso não vai ficar assim. — Ela sacudiu a cabeça, de frente para a rampa.
— O mundo vai saber o que vocês fizeram conosco. A guerra poderia acabar
de uma vez por todas, se vocês quisessem, mas preferem insistir nessa
bizarrice aqui, e por isso a guerra vai continuar. Vai continuar e se
aprofundar, até que vocês tenham senso de ridículo e voltem para lá com o
rabo entre as pernas.
— Que monte de besteiras, Penélope — Ícaro disse, apertando minha mão,
erguendo o braço para que todos percebessem quem falava. — Para pra
pensar no que você diz. Nem você acredita mais nessas coisas. Vamos, ei,
todos vocês aí do barco, por que vocês não ficam aqui? Não é um mundo
perfeito, tá, mas aqui você não precisa pensar em dinheiro, em fama, em
concorrência. Ao invés disso, você ganha todo o tempo do mundo para cuidar
de quem você ama e viver cada momento com amigos que não têm por que
mentir para você. Venham pra cá. Se quiserem nos ajudar, ninguém vai se
opor à sua estadia.
— Ora, ora, e por acaso o Ícaro fala pela vila agora? O bilionário, o sedutor,
o filhinho de papai? — Penélope riu, apertando as sobrancelhas num acesso
de irritação.
— Ele nos entendeu! — Jones disse, batendo o pé no chão antes que
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alguém intervisse. — É só isso o que a gente precisa. Tem lugar pra todo o
mundo. — Ele deu um tapinha no ombro de Ícaro, acenando para ele com a
cabeça.
— Hm, estou vendo que ele seduziu mais do que uma mulher idiota nesse
lugar, hein. Mas ninguém aqui é tão besta quanto vocês para cair na lábia
barata dele. Todos aqui...
— Com licença, madame, eu quero descer. — O capitão parou atrás dela e
pousou a mão na parte de trás de seu vestido.
— Hã? Que diabos? — Penélope fechou o rosto e se virou para o capitão,
fechando a entrada da rampa do barco com o corpo.
— Eu vou me juntar a eles. Peço com gentileza, abra caminho.
— Mas você é que vai levar esse barco! De jeito nenhum você vai embora!
Nós te pagamos pra você cumprir o seu serviço, e agora inventou de
abandonar tudo? Quem você pensa que é?
— Eu sou Nilo. Eu não quero mais ser capitão de nada. Saia do caminho
que eu quero passar.
— Não saio nada! Volta lá pra dentro. Prepare a partida! É uma ordem! —
Penélope arregalou os olhos e varreu os rostos dos companheiros sobre o
convés. Todos assustados com a multidão no porto, nem mesmo Oliseu
oferecia ajuda.
— Viu como você depende dos outros pra fazer tudo pra você, Penélope?
— Ícaro disse, rindo da cena. — Que força há nisso? Sem o poder do
dinheiro, você não é nada. É como uma criança mimada. Nilo, vem pra cá,
empurra ela pro lado. Ela não vai te impedir. Ela não pode nada aqui nesse
lado do mundo.
O capitão encarou Penélope com os lábios apertados, num leve sorriso.
Apontou para o caminho, deu um passo à frente, apoiou a mão no braço de
Penélope e fez pressão para que ela se afastasse. Ela abriu caminho a
contragosto, mas sem resistir.
Nilo desceu a rampa com seu uniforme, buscou os olhares das pessoas da
vila com as mãos entrelaçadas em frente à barriga. Acanhado, ele só relaxou
quando Laura lhe deu um tapa nas costas e o puxou para o meio da multidão
com um largo sorriso.
Ícaro me segurou pelos ombros e me virou para ele. Encarei-o com febre,
temendo suas palavras. Ele ainda poderia partir, escolher ir embora. O barco
estava para sair, e precisava de alguém para levar os passageiros.
— Elisa, você quer que eu faça parte do seu mundo? — Ele aproximou o
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rosto do meu, falando baixo.


— Eu não mando em nada. A escolha é sua... — A cabeça me doía, meus
olhos lutavam para se manter abertos. Eu precisava me deitar, mais do que
tudo, mas eu tinha de aguentar firme.
— Eu quero estar com você.
— Não pretendo sair daqui.
— Então eu quero ficar aqui.
— Fique. Eu te ajudo.
O resto, não ouvi mais. Abracei-o com força e senti meu corpo esmorecer.
Ícaro envolveu os braços sob mim e me carregou entre a multidão. Laura e
Glória me viram e nos seguiram, olhos assustados e boca aberta. As pessoas
ao lado sorriam em direção ao barco, felizes por vê-lo partir.
Deitada nos braços da paz, tendo feito tudo o que eu podia fazer para
expulsar os visitantes, eu adormeci.

Um breve sonho me tirou todo o peso do corpo. Eu carregava sacolas cheias


d'água amarradas em meus ombros, braços e cintura, equilibrando uma bacia
pesada na cabeça. Mal conseguia andar, em passos curtos e rápidos,
pendendo de um lado ao outro a cada passada. De repente, uma rajada de
vento me cortou as cordas e me liberou do peso. A água ao chão e me
molhou, mas me senti tão leve que flutuei.
Acordei. Pessoas conversavam ao meu redor, três rostos familiares
iluminados por um abajur no canto do quarto. Pararam de falar quando abri
os olhos e mexi a cabeça. Uma mão pousou em minha testa, dedos finos e
frios.
— Tá com fome? — Laura disse.
— Hm... Que horas são? — Eu pigarreei, tirando a rouquidão da voz
arranhada pela gritaria.
— Não sei, deve ser quase umas oito, né? — Ela olhou para atrás, para
Glória e Ícaro, sentados em duas cadeiras próximas à parede.
— Da noite? — Eu me espantei.
— Da manhã. Você dormiu bem nessa noite. Acho que deu pra descansar
bem, não é? — Laura disse.
— Acho que sim. Estou me sentindo melhor. — Respirei fundo, sentindo
um único incômodo em meu peito, o incômodo de ter perdido a noção do
tempo. — Mas e os visitantes? Eles foram embora mesmo?
— Foram sim, logo depois que você foi pra cama. O barco saiu do porto, e
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agora aquela área parece até meio vazia. O engraçado é que eles saíram bem
irritados, xingando todos nós até o último segundo.
— Ah, pelo menos nos deixaram, finalmente.
— Por enquanto, né. Alguns deles eu sei que um dia ainda vão voltar.
— Como assim?
— Eu vi isso nos olhos do Oliseu. Ele é obstinado demais pra aceitar uma
derrota assim. Vai querer sua vingança, ou algo do tipo. Acha isso também,
Ícaro?
— É bem provável — Ícaro disse.
— Pelo visto eles gostam de ter inimigos. Parece que nosso convívio com
eles foi em vão. — Eu balancei a cabeça, repousando a nuca em meu
travesseiro.
— Não foi não — Laura disse. — Deixa o Oliseu voltar pra cá pra você ver
se eu não dou um jeito nele. Pode vir que eu quero ver! Ninguém saiu daqui
ileso. Sem contar que conquistamos um deles para nós, não é? — Laura
sorriu para Ícaro.
— Um não, dois — Glória disse. — O Cássio também.
— Ué, ele ficou na vila? — Eu levantei o corpo da cama, virando-me para
ela.
— Infelizmente não... Os outros visitantes o arrastaram pro barco e não
deixaram ele ficar. Ele tentou fugir, mas não conseguiu. — Glória comprimiu
os lábios, segurando um tremor que ameaçava tomar seu rosto.
— Ah, que pena, Glória. Você acha que ele vai voltar?
— Ele tem que voltar! Se ele me ama de verdade, ele tem que voltar. Senão
eu vou para lá procurá-lo.
— Não, não faça isso. Você viu como essas pessoas são. Eles vão fazer gato
e sapato de você.
— E daí? Não tenho medo. O Cássio vai estar lá pra me proteger.
— Que vida é essa, mulher? Precisa de homem pra te proteger? — Laura
revirou os olhos e riu com as mãos na cintura. — Você pode mais do que
isso. Traga ele pra cá que é melhor.
Glória fungou o nariz e se calou. Passou o dedo sob os olhos, mantendo o
rosto virado para o chão. Eu mordi os lábios e suspirei, curada de minha dor
de cabeça, mas entristecida com o destino de Glória. Ícaro me observava em
silêncio, de braços cruzados, aguardando pacientemente a sua vez de receber
minha atenção.
— Meninas, vocês poderiam me dar um tempo a sós com o Ícaro? Eu e ele
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precisamos conversar umas coisas. — Eu segurei a mão de Laura com


carinho.
— Sim, claro, Elisa, vocês precisam mesmo se ajeitar. Posso ficar ouvindo
atrás da porta? — Laura disse.
— Não prefere que eu te conte tudo depois? Vou contar de um jeito bonito.
— Sorri para ela com os olhos relaxados.
— Ai, verdade, assim é muito melhor! Vamos, Glória, vem chorar no meu
ombro lá fora, vem. Se quiser me contar suas histórias, agora é a hora, porque
eu quero ouvir alguma coisa.
Laura pegou a mão de Glória e saiu do quarto com ela, fechando a porta
com uma piscada para mim. Eu ri de seu rosto amigável e me senti derreter
na cama, tomada pela alegria da amizade. Como é bom ter meus amigos por
perto! Virei-me para Ícaro, sentado na mesma posição desde que despertei, e
o admirei por alguns segundos.
— Por que você não foi embora com os visitantes? — eu disse.
— Porque eu gostei daqui. Pela primeira vez em muito tempo, eu sinto que
cresci. — Ele descruzou os braços e apoiou as mãos sobre as coxas.
— Mas você viu as nossas dificuldades. Viu que vamos ter momentos de
emergência, viu que não temos uma vida de luxos como a que você tinha por
lá. Você mesmo teve problemas pra aceitar isso. Por que, mesmo assim, não
resolveu voltar para a sua vida antiga? Não era mais fácil por lá?
— Não era. O tempo que eu ganhava sem trabalhar era o tempo que eu
perdia me desiludindo com quem só queria saber do meu dinheiro. Eu era um
nome e um poder lá. Eu não era uma pessoa de verdade, com sonhos e
fraquezas.
— Você tinha tanto dinheiro que podia ser o que quisesse. Poderia largar
tudo, ir para longe, comprar sua própria vila e viver como nós vivemos aqui.
E se desse tudo errado, era só ir para outro lugar e tentar outras coisas.
— Sim, Elisa, eu sei. — Ele se levantou da cadeira, deu de ombros,
aproximou-se da minha cama. Pegou minha mão e acariciou a minha testa. —
Mas só aqui eu estou perto de você.
— E vai abandonar toda a sua vida porque conheceu uma pessoa que te
mandou lavar as próprias cuecas?
Ele riu um riso abafado, repleto de candor em seus olhos pequenos. — Sim,
porque essa mulher me mostrou muito mais do que isso. Ela me mostrou que,
com amor, tudo fica mais fácil.
— Mas você pode amar quem você quiser do outro lado, você pode
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conhecer todas as pessoas do mundo, e...


— Mas é você quem eu amo, Elisa. Eu quero você, só você. Aqui do seu
lado, eu sinto que eu posso tudo, porque não estou mais sozinho. Isso é muito
precioso. Você continua não confiando em mim?
— Oh... — Meu coração acelerou, jorrando sangue pelo meu rosto, sangue
gostoso, quente e excitante. — Claro que eu confio, Ícaro. Você escolheu
ficar comigo. Essa foi a melhor escolha, sabia? É... uhum... Sim, porque eu
também te amo. Mas eu achava que você iria embora.
Ele acariciou meus cabelos, abaixou-se sobre mim e me beijou. Encostou os
lábios com delicadeza, apertou-os numa sugada demorada, assentando-se
num repouso perfeito sobre mim. Fechei os olhos saboreei o seu amor.
— Eu fui tão fria com você... — eu disse, recuperando-me do beijo, tão
logo ele se levantou novamente. — Por isso que tive medo.
— Fez sentido você me tratar assim. Eu também não colaborei, e você
estava estressada. Você não é uma pessoa má.
— E nem você. — Eu peguei a mão dele e a puxei aos meus lábios. Ele
esperou meu beijo e fez o mesmo nas costas de minha mão.
Ele me acariciou o rosto e os braços por alguns momentos, curtindo o meu
bem-estar. Da febre do dia anterior, ficou-me uma dorzinha nas costas e uma
sensação de náusea. Nada poderia me abater, porém, ainda mais num
momento de tanto carinho.
— Bem, eu acho melhor eu procurar alguma tarefa pra fazer aqui na vila
agora, né — Ícaro disse, balançando a cabeça com os lábios apertados. —
Vou deixar você descansando aqui e vou lá ajudar no que for possível.
— Se está atrás de alguma tarefa, eu posso sugerir uma, algo que talvez te
interesse. — Tentei falar com o rosto sério, mas minha boca se descompôs
num sorriso malicioso.
— Sim, por favor, tenho interesse sim.
— É que eu tenho uma atividade que eu gostaria de fazer com você lá no
nosso quarto, uma atividade muito gostosa e que requer muita energia, muito
esforço físico, sabe, uma atividade que só um homem vai dar conta de fazer
comigo.
Ele riu e beijou minha mão mais uma vez. — É mesmo, Elisa? Mas você
precisa de repouso, não é bom se esforçar demais assim.
— E quem disse que vou fazer esforço? Vou tomar um banho, ficar
cheirosinha, e você pode cuidar de tudo. Mas eu vou avisando que sou bem
exigente, hein.
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— Sim, eu sei disso, sei muito bem.


— É uma boa forma de ajudar a comunidade a ter mais qualidade de vida,
sabia? E então, você topa?
Ele se abaixou sobre mim, pôs a mão atrás de meu pescoço e me abraçou.
— É claro que eu topo, meu amor — Ícaro disse.

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Considerações

Após um período conturbado em minha vida, passando por uma crise de


ansiedade que me deixou cicatrizes, busquei a visão da utopia como
reconforto para o coração.
Esse é o primeiro livro de uma série que eu desejava escrever há muito
tempo. Um mundo de sonhos, sem as pressões nossas do dia a dia, com mais
amizades, mais amores, mais tempo livre. Quem nunca parou para pensar
num lugar assim?
É lá que resolvi habitar por um tempo, enquanto escrevia esse livro. O
romance de Elisa e Ícaro foi feito para servir de apoio para todas as pessoas
que desejam sonhar. Sonhar com um amor que quebra barreiras, sonhar com
um mundo melhor.
Outros livros da série estão a caminho.
• Laura e Oliseu têm um encontro marcado com o destino, e Laura mal vê a
hora de enfrentar aquele homem.
• Glória e Cássio foram separados por suas diferenças, mas Glória vai se
mostrar muito mais corajosa do que parece para se reunir com seu amado.
• Jones e Penélope vão ter seus caminhos unidos mais uma vez, e Penélope
vai ter de lidar com a vida como nunca antes teve de lidar.
Se quiser acompanhar os próximos romances da série Dois lados da paixão,
mantenha contato comigo.
Junte-se à minha página do Facebook.
Ou participe da minha lista de e-mails, para que eu possa lhe informar sobre
meus próximos lançamentos.

Agradeço por você me dar a oportunidade de partilhar meu mundo.


Como você deve saber, avaliações são um grande estímulo para os autores,
além de fazer seus livros mais bem sucedidos.

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No caso de alguém estreante como eu, é muito importante ter o meu livro
avaliado. Isso dá confiança para outros compradores experimentarem minha
história, e me dá um retorno sobre o que eu posso fazer para melhorar as
minhas próximas obras.
Por favor, considere me deixar uma avaliação honesta na Amazon.
Seu tempo e sua opinião contam muito para mim.

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