Você está na página 1de 244

Formação territorial

do Brasil
Francielly Naves Fagundes

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Explicar a disponibilização espacial do território.


>> Descrever os domínios socionaturais brasileiros.
>> Reconhecer a economia política do espaço.

Introdução
Neste capítulo, você vai estudar a formação do Brasil a partir da chegada dos
colonizadores portugueses, com foco na questão das terras e na ação política
e administrativa. Você vai ler sobre o papel dos colonizadores, bandeirantes e
jesuítas, bem como sobre impactos e formas de exploração de indígenas e negros.
Além disso, vai conhecer a organização administrativa do território via capitanias
hereditárias e sesmarias, a organização produtiva, social e de trabalho no período
dos ciclos econômicos (açúcar, ouro, café e borracha) e a organização relativa a
elementos naturais (relevo, clima, vegetação e hidrografia).
Ao longo do capítulo, você ainda vai estudar os domínios geobotânicos (tropical,
campestre e equatorial) e os domínios morfoclimáticos (amazônico, cerrado, mares
de morros, caatinga, araucária e pradarias). Ademais, vai ler sobre a questão da
renda da terra diferencial como fator determinante das formas de utilização e
ocupação do território nacional.
2 Formação territorial do Brasil

Uso e ocupação do território brasileiro


Quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 1500, grupos étnicos indígenas
já ocupavam o território do País. Por séculos, as terras brasileiras foram uti-
lizadas pelos indígenas, o que se modificou com a chegada dos portugueses,
que tomaram posse do território.
A coroa portuguesa e os portugueses enviados para colonizar o Brasil
adotaram um modelo de colonização de exploração (de terras, recursos
naturais e mão de obra), visando a direcionar produtos para a metrópole. Ao
chegar aqui, os colonos portugueses encontraram um território “[...] povoado
por uma diversidade de tribos indígenas cuja soma chega a uma população
de mais de cinco milhões de habitantes. Espaço e força de trabalho aí estão
reunidos [...]” (MOREIRA, 2011, p. 11).
Os portugueses, os bandeirantes (homens que exploravam e penetra-
vam as terras) e os religiosos jesuítas foram agentes que por cerca de três
séculos interviram no País e alteraram as formas de uso e ocupação do
território brasileiro, bem como a vida dos indígenas que já residiam nesse
território. Veja:

Os três primeiros séculos serão dedicados a essa tarefa de disponibilização, re-


alizada por intermédio de uma ação simultânea de expropriação e realocação
territorial das tribos indígenas. A expropriação será a tarefa dos bandeirantes. A
realocação, dos jesuítas. Disponibilizado, o espaço pode agora ser ocupado pelo
colono. E a população indígena dele despojada, usada como força de trabalho
(MOREIRA, 2011, p. 11–12).

A organização do território brasileiro ocorreu inicialmente por meio das


capitanias hereditárias. As capitanias eram uma forma de distribuição de
terras imposta pelos colonizadores. As faixas de terra eram destinadas aos
donatários e repassadas por hereditariedade (na família, de pais para filhos).
Cada donatário deveria administrar e proteger as terras recebidas e responder
às imposições do rei de Portugal. Atente ao seguinte:

As capitanias hereditárias foram a primeira medida real de colonização tomada


pelos portugueses em relação ao Brasil. Com as capitanias, foi implantado um
sistema de divisão administrativa por ordem do rei português D. João III, em 1534.
A América Portuguesa foi dividida em 15 faixas de terra, e a administração dessas
terras foi entregue aos donatários. As capitanias existiram no Brasil durante
séculos, mas, a partir de 1548, uma nova forma de administrar o Brasil foi criada
(SILVA, 2020, documento on-line).
Formação territorial do Brasil 3

Na Figura 1, a seguir, veja as capitanias hereditárias e os seus respec-


tivos donatários, isto é, os europeus que receberam faixas de terra para
administrar.

Figura 1. Capitanias hereditárias do Brasil Colônia.


Fonte: Albuquerque, Reis e Carvalho (1996 apud PERON, 2020, documento on-line).

Outra forma de organização do espaço geográfico do País — nesse caso,


de distribuição das terras brasileiras — foram as sesmarias. As sesmarias
foram criadas como um meio de implantar práticas de agricultura e povoar
as novas terras da coroa portuguesa. Veja a definição de sesmaria:

Sesmaria era um lote de terras distribuído a um beneficiário, em nome do rei de Portu-


gal, com o objetivo de cultivar terras virgens. Originada como medida administrativa nos
períodos finais da Idade Média em Portugal, a concessão de sesmarias foi largamente
4 Formação territorial do Brasil

utilizada no período colonial brasileiro. Iniciada com a constituição das capitanias


hereditárias em 1534, a concessão de sesmarias foi abolida apenas quando houve
o processo de independência, em 1822. A origem das sesmarias esteve relacionada
com as terras comunais existentes no reino português e com a forma de distribuição
delas entre os habitantes das comunidades rurais (PINTO, 2020, documento on-line).

De acordo com Théry e Mello-Théry (2005), os ciclos econômicos do


Brasil permitiram o povoamento do território. Para os autores, o processo
de interiorização do País (a colonização ficou muito tempo restrita às
faixas litorâneas) deu-se por meio dos diferentes ciclos econômicos.
Afinal, tais ciclos desencadearam a exploração de regiões até então
não ocupadas.
Iniciava-se, assim, a formação de um Brasil “arquipélago”, com uma
espécie de mosaico de regiões autônomas. Formava-se um país de di-
ferenças regionais, com uma série de ciclos econômicos em regiões
distintas. Cada tipo de produção afetou uma região diferente do País,
permitindo novos povoamentos (chamados de “interiorização”) (THÉRY;
MELLO-THÉRY, 2005).
Até o século XVII, predominou o ciclo econômico do açúcar, restrito às áreas
territoriais do litoral onde se cultivava a cana-de-açúcar e se produzia o açúcar
em engenhos. Depois, iniciou-se um processo de interiorização, povoamento
e expansão para Minas Gerais, com a descoberta de ouro. O ciclo econômico
do ouro começou no final do século XVII (THÉRY; MELLO-THÉRY, 2005).
A mineração em Minas Gerais impulsionou a mudança da capital do Brasil
Colônia. A capital, que antes era Salvador, passou a ser o Rio de Janeiro. Com
essa mudança, o centro econômico, que era restrito ao litoral nordestino,
deslocou-se para o centro-sul brasileiro. Isso intensificou o processo de
interiorização do Brasil; formaram-se vilas e, consequentemente, cidades
polos de mineração.
Em seguida, teve início o ciclo econômico do café, nos séculos XIX e XX.
Nesse ciclo, São Paulo ganha destaque. No estado, o café desenvolveu-se
magnificamente sobretudo no Vale do Paraíba Paulista, adaptando-se
bem à terra roxa. Nesse período, o cultivo do café utilizava mão de obra
assalariada (não mais servil e pouco qualificada), constituída no início prin-
cipalmente de imigrantes custeados pelos fazendeiros paulistas (THÉRY;
MELLO-THÉRY, 2005).
Outro ciclo econômico e produtivo que contribuiu para modelar o território
brasileiro foi o da borracha, no início do século XX, na região da Amazônia.
Ademais, destaca-se a pecuária, que contribuiu mais do que o ouro para
Formação territorial do Brasil 5

dilatar o espaço brasileiro. A produção pecuária se estendeu até depois do


período do ouro, criando estradas e pontos de apoio estáveis.
Destacam-se ainda a atuação dos bandeirantes (bandeirantismo) e dos
missionários jesuítas (aldeamentos) e a expansão da agropecuária no pro-
cesso de interiorização do País. No entanto, esses processos acarretaram
impactos sociais e ameaças aos povos originários indígenas, bem como aos
povos e comunidades afrodescendentes. Devido aos modelos econômicos
e de trabalho vigentes, esses povos foram capturados, escravizados e em
alguns casos mortos e extintos.
Portanto, a distribuição de terras por capitanias hereditárias e sesmarias
e os ciclos econômicos influenciaram a formação territorial do país. Entre
as consequências desses processos, destacam-se a economia e a política
latifundiárias (em que prevalecem as grandes propriedades rurais), a con-
centração fundiária e a desigualdade social rural.

Quer aprender mais sobre as expedições dos bandeirantes pelo


interior do Brasil? Assista ao quarto episódio de Entradas e Bandeiras,
da TV Brasil. Esse episódio está disponível on-line; para encontrá-lo, utilize o
seu site de buscas favorito.

Ocupação do território socionatural


brasileiro
Nos períodos colonial e monárquico, a matriz espacial de organização do
território brasileiro considerou formas de utilização e ocupação baseadas nos
recursos da natureza. Segundo Moreira (2011), a priori os colonos portugueses
organizaram o território a partir de características socionaturais denominadas
“faixas geobotânicas”. A seguir, veja quais são essas faixas.

„„ Costeira (litoral): vegetação de mata tropical.


„„ Interiorana (interior): vegetação de mata campestre.
„„ Setentrional (Região Norte): vegetação de mata equatorial.

Na Figura 2, veja os domínios geobotânicos brasileiros e a sua represen-


tação cartográfica.
6 Formação territorial do Brasil

Figura 2. Domínios geobotânicos do Brasil.


Fonte: Becker e Egler (2006 apud MOREIRA, 2011, p. 9).

Nos domínios geobotânicos, instalam-se as formas de produção do setor


primário da economia (agricultura, pecuária e extrativismo). Os colonizadores
portugueses tinham como objetivo implantar práticas de uma agricultura de
monocultura baseada no sistema de plantation, com o objetivo de comercia-
lizar essa produção agrícola e direcioná-la à metrópole portuguesa (relação
colônia–metrópole). A lavoura se instala em áreas de mata tropical litorânea.
Por sua vez, a pecuária se instala em áreas de mata campestre do interior.
Já o extrativismo se instala em áreas de mata equatorial ao norte do País
(MOREIRA, 2011). Considere o seguinte:

A entrada do colono português com seu modo de vida de monocultor e mercantil-


-exportador por essas três faixas, embora quase numa reprodução do modo
de ocupação indígena, com a lavoura ocupando as áreas de mata do litoral e a
pecuária, as de formação aberta campestre da hinterlândia, além do extrativis-
mo, as da mata equatorial, gera um novo tipo de enraizamento, movimentando
socioambientalmente o quadro de integração da natureza sob novos modos de
interligação e arranjo (MOREIRA, 2011, p. 19).
Formação territorial do Brasil 7

No Quadro 1, veja uma síntese das principais características físicas e


naturais das três faixas geobotânicas.

Quadro 1. Principais características físicas e naturais das faixas geobotânicas

Domínio
geobotânico Características

Mata tropical „„ Floresta latifoliada, úmida, densa e fechada


„„ Árvores de grande porte (20 a 30 metros de altura), caules
grossos e poucos galhos
„„ Árvores de porte médio e arbustos, como palmeiras, cipós e
lianas
„„ Plantas herbáceas, gramíneas e vegetais de pequeno porte
„„ Terreno montanhoso, acidentado, encostas inclinadas
„„ Ventos quentes e úmidos, elevada incidência de chuvas
„„ Mata perene das encostas litorâneas — mata semidecídua
das áreas planálticas — mata decídua da Bacia Paranaica

Mata „„ Caatinga: planalto nordestino. Semiaridez, matas secas com


campestre vegetação de aspecto diferenciado (por exemplo: cactáceas,
bromeliáceas, herbáceas, arbustos e árvores baixas). Solo
pedregoso.
„„ Cerrado: planalto central. Campo cerrado com vegetação
aberta. Relevo com topo plano e extenso das chapadas. Área
central da faixa interiorana nas regiões de Minas Gerais,
Goiás e Mato Grosso.
„„ Campos limpos: planalto e coxilhas do Sul. Áreas baixas da
campanha gaúcha. Mata de araucária (por exemplo, pinheiros).
Área do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná.

Mata „„ Floresta latifoliada, típica da latitude equatorial (próxima à


equatorial linha do Equador), densa e fechada
„„ Árvores de grande porte (até 40 metros de altura); arbustos
e subarbustos, como cipó, liana, epífita, sapopemba, igapó
„„ Solo raso e pobre, com camada de húmus frágil e pouco
espessa, proveniente da decomposição dos restos da
própria floresta, entre 20 cm e 2 metros de profundidade,
com areia e argila
„„ Solos mais férteis em áreas de mata de várzea (às margens
de rios e alagadas na época das cheias)
„„ Área da Amazônia

Fonte: Adaptado de Moreira (2011).

Segundo Gomes (1988), o arranjo e a organização espacial se dão em decorrên-


cia do modo de vida e copertencimento de grupos étnicos indígenas como o tupi
(agricultura, lavoura de mandioca), os gês (coleta e caça), o caribe e o aruaque. Na
faixa da mata atlântica, habitam as tribos indígenas tupis; na faixa da vegetação
8 Formação territorial do Brasil

campestre, habitam as tribos indígenas gê; já na faixa da mata equatorial, habitam


as outras tribos indígenas, como caribe e aruaque (GOMES, 1988).
Posteriormente, uma nova forma de organização do território se inicia, conside-
rando não apenas a distribuição espacial das tribos indígenas e as faixas geobotâ-
nicas, mas também questões de clima (tipos de clima, massas de ar, temperatura,
regime de chuvas), relevo e bacias hidrográficas. Os novos ocupantes atuam

[...] substituindo pelo seu modo mercantil de ocupação espaços cultural e ambien-
talmente enraizados nos modos de vida comunitários das tribos indígenas, numa
modalidade de relação que mantenha a complexidade de integração morfoestrutu-
ral e edafomorfoclimática que cada faixa geobotânica envolve (MOREIRA, 2011, p. 17).

Para definir os domínios morfoclimáticos do Brasil, Ab’Sáber (2003) con-


siderou elementos naturais (relevo, clima, vegetação e hidrografia) e suas
relações e interações nas paisagens. Veja:

[...] domínio morfoclimático e fitogeográfico [é] um conjunto espacial de certa or-


dem de grandeza territorial — de centenas de milhares a milhares de quilômetros
quadrados de área — onde haja um esquema coerente de feições de relevo, tipos
de solos, formas de vegetação e condições climático-hidrológicas. Tais domínios
espaciais, de feições paisagísticas, de certa dimensão e arranjo, em que as condições
fisiográficas e biogeográficas formam um complexo relativamente homogêneo e
extensivo (AB’SÁBER, 2003, p. 11–12).

Na Figura 3, veja os domínios morfoclimáticos do País. São eles: amazônico,


cerrado, mares de morros, caatinga, araucária e pradarias. Além disso, há
faixas de transição não diferenciadas em suas características.

Figura 3. Domínios morfoclimáticos do Brasil.


Fonte: Ab’Sáber (2003 apud RICO, 2017, documento on-line).
Formação territorial do Brasil 9

Moreira (2011) destaca que a organização no território e o arranjo espacial


dos indígenas e dos colonos apresentam relação de correspondência com os
domínios morfoclimáticos. O autor ainda afirma que a faixa de mata atlântica
de ocupação tupi e de prática da lavoura agrícola no Brasil Colônia corresponde
ao domínio de mares de morros. Por sua vez, a faixa de mata campestre de
ocupação tapuia e prática pastoril corresponde aos domínios da caatinga,
do cerrado, de araucárias e de pradarias. Por fim, a mata equatorial, ocupada
por várias tribos e marcada pela prática do extrativismo, corresponde ao
domínio amazônico. Veja:

E que em si embutem tanto o modo indígena quanto o colonial de arranjo espa-


cial numa relação de correspondência em que o domínio dos “mares de morros”
florestados da faixa atlântica é o da área de ocupação tupi e da lavoura colonial;
os domínios das depressões interplanálticas e semiáridas das caatingas do Nor-
deste, dos chapadões centrais recobertos dos cerrados, cerradões e campestres
e das coxilhas subtropicais com formação mista das pradarias são os da ocupação
tapuia e pastoril; e o domínio das terras florestadas da Amazônia, o da ocupação
das múltiplas tribos e extrativismo (MOREIRA, 2011, p. 17).

Portanto, a formação territorial do País se deu a partir de formas de uso


e ocupação que consideraram questões socionaturais.

Para conhecer melhor os domínios morfoclimáticos do Brasil, confira


o oitavo episódio do programa Intérpretes do Brasil, da TV Brasil,
com o renomado geógrafo brasileiro Aziz Ab’Sáber. Esse episódio está disponível
on-line; para encontrá-lo, utilize o seu site de buscas favorito.

Questões econômicas e políticas na


formação territorial do Brasil
A lei do arranjo espacial é aquela que melhor contemple fatores como locali-
zação e fertilidade do solo. Essa é uma combinação perfeita (solo e localiza-
ção), denominada “renda diferencial”. Há locais em que se busca compensar
a pobreza edáfica (referente aos solos) com uma excelente e privilegiada
localização geográfica, como a litorânea (área portuária e estratégica para
o escoamento da produção) (MOREIRA, 2011).
A renda diferencial, segundo Oliveira (2007), é aquela que independe da
aplicação de capital. Ela decorre do tipo de solo e da fertilidade natural dos
10 Formação territorial do Brasil

solos, que acarreta maior produtividade. Nesse contexto, a fertilidade natural


dos solos, a localização das terras (devido à valorização das terras pelo mercado
naquela localidade) e o transporte (devido a despesas com frete) são conside-
rados fatores territoriais importantes. (OLIVEIRA 2007). Considere o seguinte:

A renda diferencial I causada pela diferença da fertilidade natural dos solos exis-
tentes no país é, portanto, resultado da posse de uma força natural que foi mono-
polizada. [...] Assim a desigualdade natural dos diferentes tipos de solos permite
a aqueles que detêm os solos mais férteis a possibilidade de auferirem renda da
terra diferencial I de forma permanente, evidentemente, desde que este solo esteja
produzindo (OLIVEIRA, 2007, p. 45).

Atente também ao seguinte:

A localização das terras como fonte formadora da renda da terra diferencial I


também será analisada a partir da premissa de que iguais quantidades de capital
aplicadas em terras diferentes, mas com áreas iguais, produzem resultados desi-
guais. [...] [Isso] quando não ocorre a alta dos preços de mercado, mas aparece um
aumento na eficiência dos meios de transportes (OLIVEIRA, 2007, p. 48).

A ocupação do território no Brasil Colônia ocorreu inicialmente nas se-


guintes capitanias da Região Nordeste: São Vicente, Bahia e Pernambuco. Tal
ocupação envolveu a instalação de canaviais (lavouras de cana-de-açúcar) e
engenhos de cana-de-açúcar em áreas de várzeas de rio (onde os solos são
férteis para a prática da agricultura) e áreas próximas de zonas portuárias
(para escoamento da produção e do extrativismo e exploração das riquezas
das terras) (MOREIRA, 2011). Veja:

Na Bahia e em Pernambuco, onde com o tempo a economia canavieira se concen-


tra, frente o fracasso da experiência vicentina, a altíssima fertilidade do massapê
compensa o problema da localização, cada vez mais interiorizada, resolvendo-se o
problema com a abertura de portos à beira do rio e chamando para aí a localização
do canavial e do engenho. O tempo foi afastando, todavia, os centros de produção
dessa combinação solo–localização apropriada, num adentramento vale acima,
rio adentro, de custos crescentes (MOREIRA, 2011, p. 41).

Com a migração da Região Nordeste para a Região Sudeste, a relação entre


localização e fertilidade dos solos também influenciou a lavoura de café:

Com o tempo, assim como na área canavieira dos solos de massapê da zona da mata
nordestina, a renda diferencial puxa a monocultura para localizações distantes e
solos menos férteis, a lei do rendimento decrescente empurrando a cafeicultura
para localizações e solos cada vez mais distantes da costa e custos cada vez mais
altos (MOREIRA, 2011, p. 41).
Formação territorial do Brasil 11

Portanto, o processo de formação, ocupação e uso do território brasileiro


perpassou ciclos produtivos e econômicos. Nesse processo, a localização
das atividades produtivas se deu a partir de interesses dos colonizadores na
extração de recursos da natureza e na exploração de sujeitos sociais (como os
indígenas e os negros). Além disso, ela foi influenciada por leis espaciais de
localização de atividades produtivas (considerando fatores como qualidade
e fertilidades das terras, deslocamento dos produtos e distância de centros
consumidores) e pela lógica do valor e da reprodução social, que gerou im-
pactos duradouros na sociedade e nos territórios.

Referências
AB’SÁBER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
GOMES, M. P. Os índios e o Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988.
MOREIRA, R. Sociedade e espaço geográfico no Brasil: constituição e problemas de
relação. São Paulo: Contexto, 2011.
OLIVEIRA, A. U. Renda da terra. In: OLIVEIRA, A. U. Modo capitalista de produção, agri-
cultura e reforma agrária. São Paulo: FFLCH, 2007. cap. 6. Disponível em: http://gesp.
fflch.usp.br/sites/gesp.fflch.usp.br/files/modo_capitalista.pdf. Acesso em: 17 jan. 2021.
PERON, A. C. As capitanias hereditárias e o governo-geral no Brasil colonial. [2020].
Disponível em: https://cursoenemgratuito.com.br/capitanias-hereditarias-e-governo-
-geral/. Acesso em: 20 jan. 2021.
PINTO, T. S. O que é sesmaria? [2020]. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.
br/o-que-e/historia/o-que-e-sesmaria.htm. Acesso em: 17 jan. 2021.
RICO, N. F. Domínios morfoclimáticos e as formações vegetais do Brasil. 2017. Disponível
em: https://docplayer.com.br/55283284-Dominios-morfoclimaticos-e-as-formacoes-
-vegetais-do-brasil.html. Acesso em: 20 jan. 2021.
SILVA, D. N. Capitanias hereditárias. [2020]. Disponível em: https://brasilescola.uol.
com.br/historiab/capitanias-hereditarias.htm. Acesso em: 17 jan. 2021.
THÉRY, H.; MELLO-THÉRY, N. A. Gênese e malhas do território. In: THÉRY, H.; MELLO-THÉRY,
N. A. Atlas do Brasil: disparidades e dinâmicas do território. São Paulo: EdUSP, 2005.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
A construção imaginária
das identidades nacionais
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

n Definir o conceito de identidade nacional.


n Analisar como esse conceito se manifesta na história da literatura
brasileira.
n Contrastar diferentes discussões sobre a identidade em obras literárias
distintas.

Introdução
Quando conversa com alguém sobre sua nacionalidade, você auto-
maticamente oferece informações acerca de seu país de origem. Essas
informações criam sentidos sobre quem você é. A ideia de nacionalidade
retoma uma outra muito importante para o que você vai estudar neste
texto, a de nação. É a partir das culturas das nações que as identidades
nacionais são construídas. Nesse sentido, se as identidades nacionais
são construções que surgem do imaginário das pessoas, não podem
ser entendidas como um todo unificado e estável. Neste texto, você vai
entender como funcionam as identidades nacionais e analisar como a
literatura brasileira contribui para essa discussão.

Identidade, nação e narração


Você já deve ter ouvido falar que os ingleses são pontuais, que os alemães
são disciplinados e que os brasileiros são alegres e festivos. Isso ocorre por-
que estamos habituados a relacionar características de personalidade aos
países a que as pessoas pertencem. No entanto, as identidades nacionais não
são herdadas como parte de nossa genética, não nascem conosco, conforme
explica o sociólogo Stuart Hall. Da mesma forma, não podem ser tidas como

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 53 09/06/2017 15:01:43


54 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

uma essência, ou seja, como traços definitivos. As identidades nacionais são


narrativas constituídas por outras tantas narrativas sobre uma nação. Essas
narrativas contam histórias reais ou fictícias, idealizadas ou críticas, sobre
o passado, o presente ou o futuro da nação, assim emprestando sentidos à
sua definição. Elas percorrem os mais variados meios: mitologia, literatura,
artes visuais, música, cinema, anedotas, histórias populares, etc. Mas, afinal,
o que é uma nação?
Um estudioso chamado Ernest Renan propôs pensar justamente sobre esse
questionamento em uma conferência proferida em 1882. Ele, já nessa época,
apresentou a ideia de nação como uma construção que está sujeita à vontade
do homem (RENAN, 1999). A nação envolve sacrifícios que os indivíduos
fazem ou estão dispostos a fazer por consentimento. A maioria das nações
passou a ser unificada depois de um violento processo de conquistas. Por isso,
de acordo com Renan, é necessário esquecer a violência que envolve essas
origens para criar um sentimento de lealdade em relação à nação a fim de
que os sujeitos queiram se sentir parte dela. Nesse sentido, você pode pensar
que a nação, de uma forma mais ampla, é um grande sistema de represen-
tação de uma cultura, isto é, é o que é narrado sobre determinados povos,
são os sentidos construídos acerca do que é ser inglês, alemão e brasileiro,
por exemplo.
Você pode entender as culturas nacionais, então, como discursos que,
criando sentidos sobre a nação, constroem também identidades com as quais
você é capaz de se identificar. Nesse âmbito, as identidades nacionais consti-
tuem “comunidades imaginadas”, como destaca Benedict Anderson (2008).
Sendo assim, o que há de diferente entre as nações seria a forma como elas
são imaginadas.

Você conhece o conceito de discurso? Um importante teórico que tratou desse


conceito é Michel Foucault (2010). Ele explica que o discurso não é só o que
manifesta o desejo, mas também o que é objeto desse desejo. Sendo assim, ele
envolve poder. As culturas nacionais são entendidas como discursos não porque
elas determinam o que uma identidade ou uma nação realmente é, mas o que se
deseja contar sobre determinada identidade ou nação. Nesse sentido, os discursos
sempre vão evidenciar uma perspectiva que, é claro, serve a interesses de quem
os detém.

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 54 09/06/2017 15:01:43


A construção imaginária das identidades nacionais 55

A repetição de narrações sobre o passado de uma nação cria a ideia do


que se chama tradição. A partir de um mito de origem, isto é, uma narrativa
sobre como começou a nação, uma série de atributos é idealizada como
pertencendo a todos os cidadãos do lugar, desde os heróis desse passado
idealizado até os cidadãos do presente. Dessa forma, a tradição pretende
conectar nossas vidas a um passado comum, criando a sensação de que
todos os indivíduos de uma nação descendem de uma mesma origem.
Temos a tendência a pensar nessas tradições como muito antigas, porque as
narrativas mitológicas as colocam como pertencendo a um passado remoto
e original. Contudo, toda narração de um passado é composta a partir do
presente. Assim, muitas das tradições são recentes e obedecem a diversos
interesses contemporâneos. Por isso, os historiadores Eric Hobsbawm e
Terence Ranger (1984) se referiram a esse tema com a expressão “a invenção
das tradições”.
Você deve ter em mente, portanto, que as identidades nacionais são
construções culturais. Sustentadas por narrativas que criam tradições, elas
pertencem ao âmbito do discurso e estão sujeitas às mutações da história.
É preciso, no entanto, tomar cuidado, pois isso não significa afirmar que
elas não são reais. Como produtos da cultura do homem, são, sim, reais.
O que você deve perceber é que elas não existem desde sempre ou estão
impressas nos nossos genes. Como construção, elas são criadas e trans-
formadas na sociedade.

Identidade nacional: o caso da literatura


brasileira
A literatura é um dos meios pelos quais circulam as narrativas que formam
a ideia da identidade de uma nação. Como você percebeu na discussão
anterior, não há uma essência que predefi na o que signifique ser inglês,
alemão ou brasileiro. Como fenômeno da modernidade ocidental, a identi-
dade nacional é uma construção histórica, o que significa dizer que ela é
mutável ao longo do tempo. Dessa forma, “O que é ser brasileiro?” é uma
pergunta para a qual não há uma resposta defi nitiva. Ao longo da história
da literatura brasileira, diversas obras formularam (de forma mais ou menos
direta) respostas para ela. Como bem destaca a teórica comparatista Tania
Franco Carvalhal (1997), nenhuma dessas respostas é mais verdadeira que
a outra. Todas elas são verdadeiras no sentido de serem construções que
determinado autor ou autora, pertencente a seu tempo e a sua cultura, ela-

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 55 09/06/2017 15:01:43


56 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

borou. Nesse sentido, para Carvalhal (1997), o que importa é a comparação


dessas versões para que se possa perceber a heterogeneidade escondida na
pretensa homogeneidade da nação. Para fazer esse exercício de reflexão,
você conhecerá alguns dos diversos textos significativos sobre a literatura
brasileira e a identidade nacional.

O brasileiro como o bom selvagem


Começamos por um dos textos mais importantes da história do Brasil: a carta
escrita pelo escrivão oficial da embarcação de Pedro Álvarez Cabral, Pero
Vaz de Caminha (1500). A função de Caminha era redigir ao rei de Portugal,
D. Manuel I, um documento compartilhando as principais descobertas dos
navegantes na então chamada Terra de Vera Cruz. Imagine você o desafio do
escritor português. Em 1500, sem os recursos tecnológicos de que dispomos
hoje (internet, filmagem, fotografia, etc), ele teria que explicar como era um
local completamente desconhecido aos olhos portugueses: seus habitantes, seus
hábitos, sua vegetação, seus animais. Dessa maneira, para dar uma forma ao
desconhecido, Caminha recorreu ao imaginário europeu do paraíso perdido.
Desde o período medieval, os europeus imaginavam existir locais ideais, de
clima ameno, natureza exuberante e alimentação abundante para além de onde
seus mapas poderiam definir. Portanto, quando o português tenta descrever o
completo desconhecido, ele precisa se apegar a algo conhecido para formular
sua compreensão. O mito do paraíso perdido surge então como moldura que
dá forma ao que Caminha descreve.
Dessa forma, a carta é marcada pelo tom de espanto com a exuberância
natural do território encontrado. É como se Caminha descrevesse um paraíso
que os portugueses acharam por recompensa de suas aventuras marítimas.
Como consequência, os habitantes locais também são descritos como parte
desse paraíso a que os portugueses teriam direito. Os índios são vistos como
extremamente ingênuos, bons e gentis – sobretudo a partir do momento em
que presenteiam os portugueses com um carregamento de madeira. As índias,
por sua vez, descritas a partir do maravilhamento do olhar masculino euro-
peu, são vistas como corpos à disposição dos navegantes. Como conclusão,
Caminha recomenda ao rei que salve a alma dessa gente. Ou seja, diante do
olhar desbravador lusitano, os índios que darão origem ao ser brasileiro são
descritos como bons selvagens: servis, sem maldade e necessitados do que
os europeus denominavam civilização (seu próprio sistema de crenças, sejam
elas religiosas, científicas ou culturais). Criava-se assim o precedente para a
colonização.

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 56 09/06/2017 15:01:43


A construção imaginária das identidades nacionais 57

A carta de Pero Vaz de Caminha (1500) está disponível


online, em domínio público. Você pode conferir no
link ou código a seguir:

<https://goo.gl/2M0RyB>

Moacir: o primeiro brasileiro


Uma obra importante que você vai conhecer também e que busca retratar o
processo de colonização do Brasil é o romance Iracema: lenda do Ceará,
publicado em 1865 por José de Alencar (1991). Pertencente à estética romântica,
Alencar não se furta das características do romantismo ao constituir em sua
narrativa um mito fundacional para o País. Dessa forma, o enredo do romance
está centrado na união amorosa idealizada entre Martin, aventureiro português,
e Iracema, índia tabajara. Da história de amor vivenciada por ambos, nasce
Moacir – o primeiro cearense ou, metonimicamente, o primeiro brasileiro.
Ao afirmar que toda essa história se passou nessa terra (referência ao Ceará
de maneira específica e ao Brasil de maneira mais ampla), Alencar fecha um
ciclo mitológico, criando desse modo um passado que dê sentido ao presente
do brasileiro, pretendendo assim caracterizá-lo como oriundo de um processo
de hibridação étnica e cultural.
No entanto, se você refletir criticamente sobre a hibridez com a qual Alencar
responde à pergunta “O que é ser brasileiro?”, pode perceber que essa união não
se dá de forma igualitária. Ao passo que Martin – homem, branco e português
– é caracterizado por sua honra, fé, valentia e lealdade (características típicas
do cavaleiro medieval europeu), Iracema – mulher e indígena – é caracteri-
zada por sua beleza física, frequentemente comparada à beleza exuberante
e exótica da flora e da fauna brasileiras (ALENCAR, 1991). Assim, é como
se o homem europeu emprestasse os atributos morais ao brasileiro, ao passo
que a mulher indígena cede os atributos físicos e representa um mero objeto
ao dispor do aventureiro (em discurso semelhante ao de Caminha). Se você
pensar em alguns episódios que compõem o romance, verá que essa assimetria
fica ainda mais clara: Iracema teve que trair sua tribo e abandonar sua cultura
para viver junto a Martin. A índia tabajara acaba inclusive morrendo para

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 57 09/06/2017 15:01:43


58 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

que Moacir cresça. Dessa forma, simbolicamente, é como se o indígena fosse


apenas um elemento de origem mítica do brasileiro. No entanto, nessa visão,
sua cultura não é decisiva para a formação da identidade. Por fim, depois
de ser educado na Europa, Moacir volta com seu pai ao Ceará para cravar o
“lenho sagrado” (cruz) e constituir a primeira cidade brasileira. Portanto, já
em Alencar é sustentado o mito da democracia racial brasileira, tão comum
em tantas narrativas até hoje, sejam elas tratados sociológicos ou propagandas
político-partidárias.

Você pode conferir o filme Iracema – uma transa amazônica, sob a direção de Jorge
Bodanzky e Orlando Senna, e comparar as duas narrativas sobre o Brasil.

Às narrativas que sustentam os grandes mitos das identidades nacio-


nais, como é o caso do mito da democracia racial brasileira, em Alencar
o teórico indiano Homi Bhabha (2013) chamou de “narrativas da nação”.
Essas narrativas acabam por idealizar um passado para construir a ideia
do “muitos em um”. No caso do romance de Alencar, é como se todos os
brasileiros pudessem ser representados como descendentes de Moacir. No
entanto, as histórias do cotidiano de pessoas às margens da nação acabam
por confrontar as grandes histórias que pretendem contar sua origem. Dessa
forma, mulheres, negros e indígenas, por exemplo, ao relatar seu dia a dia
mostram que nem todos se encaixam no “muitos em um” que a nação pre-
tende representar. São essas narrativas das minorias que Bhabha chama de
“contranarrativas da nação”.

Uma sociedade desigual


Um dos escritores mais consagrados da literatura brasileira, Machado de
Assis, ao representar a condição de sujeitos negros em alguns de seus contos,
entra na discussão sobre a identidade nacional com algumas “contranarrativas
da nação”. Em “Pai contra mãe”, conto publicado na obra Relíquias da casa
velha, de 1906, Machado (ASSIS, 1990) contrapõe sua visão crítica, realista
e irônica ao romantismo de Alencar. O conto tem como protagonista Cândido
Neves, sujeito branco e pobre que se casa com Clara (chamam atenção aqui

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 58 09/06/2017 15:01:44


A construção imaginária das identidades nacionais 59

as palavras que remetem à cor branca no nome dos dois personagens). Com
poucas oportunidades de emprego, Neves acaba trabalhando como caçador
de recompensas: captura escravos fugidos para receber alguma bonificação
de seus senhores. No entanto, a falta de estabilidade financeira acaba fazendo
com que seja pressionado por Tia Mônica (responsável pela criação de Clara)
para que abandone o filho recém-nascido do casal na Roda dos Enjeitados.
Assim, em meio à dificuldade financeira, um quarto membro na família não
ameaçaria a sobrevivência dos outros três.
A tensão da narrativa se dá quando Neves, inconformado por ter de abrir
mão de seu filho, encontra Arminda: escrava grávida que havia fugido e pela
qual se pagaria uma grande recompensa. A narrativa chega a sugerir, inclusive,
que sua gravidez é consequência de violência sexual por parte do senhor.
Diante do conflito posto entre salvar seu filho ou o filho da escrava, Neves
opta pelo primeiro. Ao ser devolvida, Arminda é agredida e acaba abortando.
“Nem todas as crianças vingam”, desfecha ironicamente o narrador. A frase
é significativa na representação do Brasil como um país em que, apesar da
pluralidade étnica e cultural, nem todos têm direitos – inclusive à vida.

O filme Quanto vale ou é por quilo?, de Sérgio Bianchi, toma como inspiração o conto
de Machado de Assis, retomando elementos dessa narrativa e trazendo-os para a
atualidade.

Tendo sido formado por um violento processo de massacre indígena e


pelas mãos do trabalho forçado dos negros, o Brasil é retratado assim como
um país em que etnia, gênero e classe social são posições de uma violência
historicamente constituída. Cândido Neves, enquanto sujeito pobre, é redu-
zido a objeto de coerção das classes dominantes. Ele serve para garantir que
os sujeitos mais explorados desse sistema, os escravos, não se rebelem. No
entanto, a manutenção do trabalho escravo é a própria causa do desemprego
e da consequente objetificação do personagem. Fecha-se assim um ciclo que
garante a imobilidade social e a manutenção de privilégios. Dessa forma, se
pode dizer que Machado responde à pergunta “O que é ser brasileiro?” de modo
oposto a Alencar, mostrando que ser brasileiro é ser produto e produtor de
uma sociedade extremamente violenta e desigual.

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 59 09/06/2017 15:01:44


60 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

Macunaíma: o anti-herói
A questão em pauta foi tomada como ponto central de debate entre os modernis-
tas de 22. Buscando se desvencilhar da influência da literatura e da gramática
portuguesas, Oswald de Andrade passa a valorizar a fala dos sujeitos das
camadas populares do País como representativas de sua identidade e objeto
de valor poético. O cotidiano passa a ser cada vez mais significativo da nação:
Tarsila do Amaral pinta obras que retratam operários, pescadores e morros
de favelas, por exemplo.
Tarsila do Amaral não foi escritora, mas é um importante nome do mo-
dernismo brasileiro. Ela foi pintora, desenhista e tradutora. Entre suas telas
mais conhecidas estão: A Negra, Abaporu e Operários. A artista e o seu então
marido Oswald de Andrade foram os fundadores do Movimento Antropo-
fágico, e Abaporu foi o seu grande símbolo. Isso porque o título da tela tem
como significado “o homem que come carne humana”, justamente a principal
ideia que queria expressar o movimento: o desejo de engolir, deglutir tanto
as culturas europeias quanto as culturas locais e transformá-las em algo que
fosse representativo da identidade nacional.
Nesse contexto, a obra que mais se destaca na representação da identidade
nacional é Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, publicada por Mário
de Andrade em 1928. Essa obra (ANDRADE, 2008), misto de romance e
rapsódia, apresenta como protagonista o índio Macunaíma. Sem nenhum
caráter, ele retoma do romance Memórias de um sargento de milícias (1852-
3), de Manuel Antônio de Almeida (1959), a ideia do anti-herói, típica na
caracterização do brasileiro simples com traços de malandragem. Assim,
Macunaíma, “o filho da mata virgem”, é descrito na obra como feio, sapeca
e preguiçoso.
Ao se relacionar com Ci, a mãe do mato, Macunaíma recebe a mui-
raquitã, espécie de pedra-amuleto, como presente. Esta é roubada por
Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã. Dá-se início então a uma longa
peregrinação a partir da perseguição ao gigante. Essa perseguição servirá
de mote para que o protagonista percorra os mais variados cantos do País:
indo do norte ao sul do Brasil, e passando por São Paulo – importantíssima
na obra para a representação de um Brasil urbano, moderno e burocrático.
Ao longo dessa jornada, o anti-herói muda de etnia, sendo índio, negro e
branco e fazendo referência a muitos mitos indígenas e afro-brasileiros
(ANDRADE, 2008).
Dessa forma, Mário de Andrade, para responder à pergunta proposta,
retoma a questão da hibridação como elemento fundamental à constituição

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 60 09/06/2017 15:01:44


A construção imaginária das identidades nacionais 61

identitária brasileira. No entanto, o escritor modernista o faz deixando de lado


o idealismo romântico do século XIX. A relação entre as culturas europeias,
africanas e indígenas na composição nacional é vista de maneira mais crítica.
Isso ocorre, por exemplo, na passagem em que os irmãos do anti-herói, que
são indígenas, o criticam por tê-los esquecido depois que este vira branco.
Também o desenvolvimento urbano associado ao progresso do País é criticado,
como na figura burocrática de Venceslau Pietro Pietra. Ele é o grande vilão
da obra e simboliza o homem burguês médio.

O Brasil que tem fome


Por fim, você vai conhecer outra típica “contranarrativa” da nação. Trata-se
de Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado por Carolina Maria
de Jesus em 1960 (Figura 1).

Figura 1. Carolina Maria de Jesus autografando seu livro.


Fonte: Valek (2016).

Carolina vivia na hoje extinta Favela do Canindé, em São Paulo. Mãe


solteira, ela coletava lixo para posteriormente vender à reciclagem. Quarto

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 61 09/06/2017 15:01:44


62 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

de despejo (JESUS, 2007) é o conjunto de diários que a catadora manteve


de 1955 até 1960, relatando o difícil cotidiano de uma mulher negra, fa-
velada, mãe solteira, lutando incessantemente contra a fome de seus três
filhos. A riqueza de referências literárias e de recursos de linguagem fez
com que os diários passassem a ser lidos como obra literária, configurando
uma das mais comentadas obras de ficção brasileiras do século XX. No
dia 13 de maio, data da abolição da escravatura, Carolina (JESUS, 2007,
p. 31-32) comenta:

Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da


Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. [...] Que Deus
ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. Continua chovendo.
E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os
meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir
lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou
comprar arroz e linguiça [...]. Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando
eles vê as coisas de comer eles brada: – Viva a mamãe! A manifestação
agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles
querem mais comida. [...] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava
contra a escravatura atual – a fome!

Dessa forma, Quarto de despejo traz à tona um outro brasileiro que


não teve espaço nas grandes narrativas da nação: o brasileiro que tem fome.
Em um dos países que mais produz alimentos, Carolina relembra daqueles
que não têm o que comer. Em uma literatura bastante marcada por autores e
personagens brancos e de classe média, ela faz com que sujeitos periféricos
também possam se enxergar como autores e personagens. Sua linguagem,
incorreta do ponto de vista gramatical para muitos, passa então a ser vista
como mais uma forma possível de expressão literária (como idealizara
Oswald de Andrade).
Em uma literatura predominantemente masculina (seja no número de autores
ou de protagonistas), Carolina mostra o ponto de vista da mulher sobre a
nação. E ela tem o ponto de vista crítico de quem escolheu não casar para não
sofrer os abusos de um casamento predominantemente masculino – em que,
como Iracema (ALENCAR, 1991), as mulheres acabam tendo de abrir mão de
si enquanto sujeitos para constituir a tradicional família brasileira. Trata-se,
portanto, de uma resposta bastante crítica sobre “O que é ser brasileiro?”, pois
produzida pelos sujeitos que geralmente têm a voz e a cidadania negadas na
tão frágil democracia nacional.

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 62 09/06/2017 15:01:44


A construção imaginária das identidades nacionais 63

A pluralidade: os brasileiros são muitos


Para compreender a importância da literatura como meio de propagação das
narrativas que formam a identidade de uma nação, você conheceu melhor a
história da literatura brasileira. Você fez essa reflexão por meio de cinco obras:
A carta de achamento do Brasil, Iracema: lenda do Ceará, “Pai contra mãe”,
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter e Quarto de despejo: diário de uma
favelada. Cada uma das cinco responde de modo diferente à pergunta central
que guiou este texto: “O que é ser brasileiro?”. Além delas, uma variedade
muito grande de obras literárias se debruçaram sobre essa questão, trazendo
à tona novas respostas para o questionamento.
Desse modo, você deve ter percebido que o brasileiro, assim como qual-
quer cidadão de qualquer outra nacionalidade, não possui uma essência
que torne sua identidade fixa e estável. Pelo contrário, como defendem os
teóricos que refletiram sobre o tema, as identidades nacionais são móveis
e fragmentadas. Por isso, mais importante que uma versão particular sobre
a identidade nacional é a pluralidade de versões. A riqueza do Brasil, assim
como a de outras nações, está justamente nesse diálogo estabelecido ao longo
da história e para o qual as literaturas foram fundamentais. Esse diálogo é
formado por muitas vozes, sejam elas nacionais ou estrangeiras, masculinas
ou femininas, heterossexuais ou homossexuais, brancas, negras ou indígenas.
Todas elas são importantes para constituir o coro plural e positivamente
contraditório da nação. Afinal, como defendeu Arnaldo Antunes (1996) na
canção “Inclassificáveis”, “[...] aqui somos mestiços mulatos cafuzos pardos
mamelucos sararás crilouros guaranisseis e judárabes [...]”.

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 63 09/06/2017 15:01:44


66 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

ALENCAR, J. Iracema. 24. ed. São Paulo: Ática, 1991. (Bom Livro). Disponível em: <https://
goo.gl/TZJCJI>. Acesso em: 13 abr. 2017.
ALMEIDA, M. A. Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro: Pongetti, 1959.
ANDERSON, B. R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008.
ANDRADE, M. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Agir, 2008.
ANTUNES, A. Inclassificáveis. In: ANTUNES, A. O silêncio. Los Angeles: Ariola Records,
1996. 1 CD.
ASSIS, M. Pai contra mãe. In: ASSIS, M. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Garnier,
1990. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245.
pdf>. Acesso em: 13 abr. 2017.
BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
CAMINHA, P. V. A carta. Belém: Unama, 1500. Disponível em: <http://www.dominio-
publico.gov.br/download/texto/ua000283.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2017.
CARVALHAL, T. F. A nação em questão: uma leitura comparatista. In: SCHMIDT, R. T.
Nações/narrações: nossas histórias e estórias. Porto Alegre: ABEA, 1997.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 20. ed. São Paulo: Loyola, 2010.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1984.
(Pensamento Crítico, v.55).
JESUS, C. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2007.
RENAN, E. O que é uma nação. Caligrama, Belo Horizonte, n. 4, p. 139-180, 1999.
VALEK, A. Carolina Maria de Jesus, a catadora de letras. CartaCapital, São Paulo, 15
mar. 2016. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/cultura/carolina-maria-
-de-jesus-a-catadora-de-letras>. Acesso em: 27 abr. 2017.

Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 66 09/06/2017 15:01:45


Culturas afro-brasileira
e indígena na sociedade
brasileira contemporânea
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Reconhecer as influências africanas e indígenas na constituição da


cultura brasileira.
 Analisar as representações dos africanos e indígenas na literatura
brasileira.
 Discutir sobre estratégias de desconstrução de estereótipos e precon-
ceitos em relação a africanos e indígenas no Brasil contemporâneo.

Introdução
Neste capítulo, você vai ver como se deu o processo de conquista do
território brasileiro. Antes da chegada dos portugueses, em 1500, esta
terra não era isolada nem desabitada; muito pelo contrário, era dispu-
tada por diversos povos nativos, que foram denominados “índios” pelos
portugueses.
O século XVI foi marcado por um choque cultural sem proporções na
história da humanidade, pois colocou em lados opostos grupos com cul-
turas e visões de mundo antagônicas. Portugueses e indígenas possuíam
entendimentos distintos em relação à riqueza, à utilização da terra, ao
trabalho, às relações pessoais, à organização social, etc. Esse caldo cultural
“engrossa” mais quando um novo elemento entra em cena, o africano.
Como você vai ver, aspectos culturais de origem africana e indígena
contribuíram para a formação do Brasil. Apesar da violência à qual os
indígenas e africanos foram historicamente submetidos, eles consegui-
ram burlar as regras estabelecidas e sobreviver, mesclando sua cultura à
cultura dominante e tornando o Brasil, ao contrário do que pretendiam
os colonizadores portugueses, um país plural.
2 Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea

Colonização do Brasil:
táticas de resistência cultural
O processo de conquista e colonização das terras brasileiras pelos portugueses
se inseriu na lógica da expansão ultramarina europeia, iniciada no século XV
pelos reinos ibéricos de Portugal e Espanha e difundido, posteriormente, para
as demais nações daquele continente. De maneira geral, esses reinos busca-
ram expandir o seu território conquistando novos mercados consumidores,
obtendo recursos naturais e eliminando outros povos que se opuseram aos
seus objetivos. Esse empreendimento colocou em contato visões de mundo
antagônicas que dificilmente poderiam conviver de maneira pacífica, uma
vez que o modelo colonizador utilizado pelos europeus determinava apenas
um padrão de comportamento, o proposto pelos próprios colonizadores, que
deveria ser seguido à risca pelos colonizados. Isso traz à tona a violência que
todo processo de colonização possui em sua essência: a eliminação do outro,
seja física, simbólica ou culturalmente.
Certeau (2009), em A Invenção do Cotidiano, analisou como o ser humano
consegue criar um modelo de comportamento denominado por ele de “arte
de fazer”. Fugindo dos padrões e regras impostos pelo modelo dominante,
os indivíduos inventam o seu cotidiano criando, de maneira sutil, diversas
“táticas” de resistência e sobrevivência, de modo que códigos e objetos são
alterados em seu benefício. Essa noção é de suma importância para que você
possa compreender como se deu a permanência de características culturais
de africanos e indígenas na cultura brasileira.

Michel de Certeau foi um erudito francês que nasceu em Chambéry em 1925. Sua
formação abrengeu os campos da filosofia, das letras clássicas, da história e da teologia.
Nas suas pesquisas, ele utilizou métodos da antropologia, da linguística e da psicanálise.
Na obra A Invenção do Cotidiano, Certeau (2009) desenvolve duas noções para analisar
a sociedade. A primeira delas é denominada “estratégia”, que é o modelo dominante,
criado pelos grupos sociais que ocupam o topo da sociedade; esse modelo serve
como padrão. Do outro lado, existem as táticas, ações criadas intencionalmente pelos
grupos dominados para burlar a ordem existente. São modelos próprios de ações que,
de maneira astuciosa, enfrentam o padrão vigente sem, no entanto, comprometer ou
destruir a sua existência.
Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea 3

Essa questão evidencia as condições nas quais a nação brasileira foi for-
jada. Estava em jogo um projeto político criado pela coroa portuguesa, que
deveria ser levado a cabo por indivíduos que vinham para a terra brasilis
em busca de fama e riqueza, incentivados pela notícia de que ouro e prata
haviam sido encontrados pela coroa espanhola no mesmo continente. Apesar
de ser pioneiro no processo das grandes navegações, o reino de Portugal não
possuía condições materiais suficientes para efetivar a conquista e a posse
do território. Além disso, havia total desconhecimento da fauna e da flora da
região, uma vez que o litoral brasileiro é formado por aproximadamente 7.300
km de extensão, habitados então por povos distintos.

Os indígenas sob o olhar europeu:


entre o bom e o mau selvagem
A expansão ultramarina levou os europeus ao encontro de um continente
até então desconhecido por eles: a América. Da mesma maneira, houve um
conhecimento das populações nativas dessa região, que, apesar de possuírem
características heterogêneas entre si, se assemelhavam por se diferenciarem
física e culturalmente dos europeus. No aspecto cultural, é emblemática a
percepção das diferenças na organização social, a qual diferia bastante dos
modelos preconizados pelas sociedades europeias.

Pero de Magalhães de Gândavo foi um historiador, gramático e cronista português


que esteve no Brasil no início do século XVI. Ao escrever História da Província de Santa
Cruz que vulgarmente chamamos Brasil, em 1576, ele deixa claro que os portugueses,
e europeus de maneira geral, percebiam as suas diferenças em relação à população
indígena. Leia o trecho a seguir e reflita sobre a impossibilidade da compreensão do
outro por parte dos portugueses: “A língua de que usam toda pela costa é uma [...]
Carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna
de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei: e desta maneira vivem
desordenadamente [...]” (GÂNDAVO, 1576, fl. 33v).
4 Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea

A percepção das diferenças entre indígenas e europeus suscita um debate


acerca da humanidade daqueles. Os portugueses se questionavam sobre a
existência da alma indígena e sobre a possível conversão dos índios. Sobre
essa questão, veja o que afirma Laplantine (2007, p. 37–38):

A grande questão que é então colocada, e que nasce desse primeiro confronto
visual com a alteridade, é a seguinte: aqueles que acabaram de ser descobertos
pertencem à humanidade? O critério essencial para saber se convém atribuir-
-lhes um estatuto humano é, nessa época, religioso: o selvagem tem uma alma?
O pecado original também lhes diz respeito?

O olhar europeu sobre a população nativa cria dois modelos que servem
de explicação para a percepção a respeito dos indígenas durante o processo
de colonização. Esses arquétipos inserem grupos inteiros sob uma mesma
denominação, estabelecendo modelos de ação perante a população nativa.
São eles: o “bom selvagem” e o “mau selvagem”. A definição de mau
selvagem recai sobre aqueles indivíduos que possuem estas três caracterís-
ticas: “estar nu ou vestido de peles de animais” (aparência física); “comer
carne crua/canibalismo” (comportamentos alimentares); “falar uma língua
ininteligível” (inteligência, a partir da linguagem) (LAPLANTINE, 2007).
Na Figura 1, a seguir, você pode observar dois quadros pintados pelo
holandês Albert Eckhout, que esteve no Brasil entre os anos de 1637 e
1644. Neles, é possível identificar a oposição entre o “bom” e o “mau”
selvagem. A mulher tupi é representada sob o viés maternal. Ela carrega
a vida ao segurar seu filho no colo, eliminando qualquer possibilidade
de ameaça. Além disso, transporta um recipiente com água e uma cesta
com produtos manufaturados e veste uma saia branca (inserida no seu
vestuário pelos colonizadores). Na paisagem, é possível identificar três
características que fazem menção à colonização europeia nos trópicos:
a bananeira, planta introduzida no Brasil pelos portugueses; a paisagem
colonial, com a plantação de cana-de-açúcar; e a casa-grande no engenho.
Em contrapartida, a mulher tapuia carrega a morte, um cesto com uma
perna decepada. Na sua mão direita, ela segura a mão de outro indivíduo,
remetendo à prática do canibalismo. Está nua, mesmo que parcilamente
coberta por folhas, e calça sandálias de fibras vegetais. Já a paisagem re-
presenta a cena de guerreiros armados, ao fundo, demonstrando a condição
natural dessa sociedade sem contato com os “civilizadores” europeus.
Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea 5

Figura 1. (a) Mulher Tupi e (b) Mulher Tapuia, óleo sobre tela, de Albert Eckhout, 1641.
Fonte: Fonte: Chicangana-Bayona (2008, p. 606–607).

Esses olhares criados sobre a população nativa demonstram tanto o po-


sicionamento dos nativos em relação aos europeus quanto o modo como
estes últimos perceberam as trocas culturais entre os povos. De um lado,
posicionam-se aqueles que lutaram contra o invasor, mantendo suas práticas
religiosas e culturais e abertamente inimigos do europeu (maus selvagens). Do
outro lado, figuram aqueles grupos que aceitaram determinados aspectos da
colonização, como roupas, língua e religião, submetendo-se ao poder colonial,
mas, apesar disso, não conseguindo tratamento igualitário (bons selvagens).

Índios e negros na literatura brasileira


Na literatura brasileira, há representações de índios e negros que expõem muito
mais a visão do autor do que necessariamente aquilo que ele deseja representar.
Tais obras ganham notoriedade por dois aspectos que se relacionam entre si.
6 Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea

O primeiro deles é a amplitude de leitores que são capturados pelas páginas dos
romances, sendo mais fácil um leitor conhecer uma obra de ficção do que um
livro acadêmico. Já o segundo é o fato de que, embora sejam obras de ficção,
elas possuem em comum a semelhança com a realidade, o que traz à tona a
possibilidade de serem analisadas sob a óptica da verossimilhança. Afinal,
em determinada medida, tais obras lançam uma luz sobre a sociedade na qual
estão inseridas, demonstrando os medos, anseios e pensamentos de uma época.
Conforme destaca Chartier (2010, p. 21), “As obras de ficção, ao menos
alguma delas, e a memória, seja ela coletiva ou individual, também conferem
uma presença ao passado, às vezes ou amiúde mais poderosa do que a que
estabelecem os livros de história [...]”. Tendo como base esse pressuposto, a
seguir você vai ver como a ficção criou representações e perfis para africanos
escravizados e índios na sociedade brasileira. Você também vai verificar
como esses lugares comuns foram sendo considerados pela sociedade como
definidores de comportamento da população afrodescendente e indígena no
Brasil, sendo retroalimentados por outras mídias, como novelas e filmes.

Coragem, nobreza e solidariedade: a poesia indianista


Gonçalves Dias foi o poeta que deu início à idealização do indígena na litera-
tura brasileira. Na corrente do Romantismo, o nativo é associado à coragem,
à compaixão, à bondade, à nobreza e à solidariedade, da mesma forma que
os cavaleiros medievais no imaginário europeu. Autor de diversos poemas
indianistas, como I-Juca-Pirama, Marabá e Canção do Tamoio, Gonçalves
Dias reflete a percepção sobre os indígenas no Brasil enquanto um ideal
distante, que não pode mais ser alcançado.
I-Juca-Pirama (“aquele que deve morrer”), escrito em 1851, é considerado
a obra máxima do autor. Ela conta a história de um nobre índio tupi que, após
ser derrotado, torna-se prisioneiro de outra tribo, os timbira. O guerreiro tupi
encontra o seu pai com saúde debilitada, pois está velho e doente, então toma
uma decisão inusitada, pedindo ao chefe timbira que o deixe voltar para a
sua tribo para cuidar do progenitor. Porém, na cultura indígena, esse ato é
interpretado como covardia. É isso o que pensa o seu pai quando o guerreiro
retorna à tribo para informar a sua decisão. O pai recebe o filho com desprezo
e indignação, afinal este humilhou não só a si, mas a toda a sua geração.
Então, para provar o seu valor e recuperar a sua honra, o guerreiro decide ir
lutar sozinho contra os inimigos. Após vários combates, a vitória é obtida e o
chefe da tribo timbira encerra a luta. O pai reconhece o valor do filho, digno
de ser chamado novamente de tupi.
Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea 7

Veja os trechos a seguir, retirados de I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. No Canto IV, é


possível perceber a identificação do personagem:

Meu canto de morte, Guerreiros ouvi: sou filho das selvas, nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo da tribo Tupi. Da tribo pujante, que agora anda errante
por fado inconstante, guerreiros, nasci: sou bravo, sou forte, sou filho do
Norte; meu canto de morte, Guerreiros, ouvi (DIAS, 1851, canto IV).

No Canto VIII, há a reação do pai ao descobrir que, após o seu filho ser preso, chorou
pedindo para não morrer:

Tu choraste na presença da morte? Na presença de estranhos choraste?


Não descende o cobarde do forte, pois choraste, meu filho não és! Possas
tu, descendente maldito de uma tribo de nobres guerreiros, implorando
cruéis forasteiros, seres presa de vis Aimorés (DIAS, 1851, canto VIII).

Por fim, no Canto X, há a redenção do indígena, que é rememorada por um velho


timbira que relata o heroísmo dele, servindo de modelo para os mais jovens: “Um
velho Timbira coberto de glória, guardou a memória do moço guerreiro, do velho
Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava do que ele contava, dizia prudente:
‘meninos, eu vi!’”.

Em outro poema, Canção do Tamoio, um guerreiro da tribo tamoio explica ao


seu filho recém-nascido qual é o seu papel no mundo, como ele deve se comportar
frente aos perigos da vida. Ou seja, o pai informa ao filho que tipo de comporta-
mento é esperado que ele exerça, não só pelo seu pai, mas por todos os membros
da tribo tamoio e dos outros povos que vierem a ter contato com eles. Veja:

I. Não chores meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar. A
vida é combate, que os fracos abate, que os fortes, os bravos só pode exaltar.
II. Um dia vivemos! O homem que é forte não tema da morte; só teme fugir;
no arco que entesa tem certa uma presa, quer seja tapuia, condor ou tapir.
III. O forte, o cobarde, seus feitos inveja de o ver na peleja garboso e feroz; e os
tímidos velhos nos graves conselhos, curvadas as frontes, escutam-lhe a voz!
IV. Domina, se vive. Se morre, descansa dos seus na lembrança, na voz do porvir.
Não cures da vida! Sê bravo, sê forte! Não fujas da morte, que a morte há de vir! [...]
XI. E cai como o tronco do raio tocado, partido, rojado por larga extensão; assim
morre o forte! No passo da morte triunfa, conquista mais alto brasão (DIAS, 1852).
8 Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea

Veja outras obras que abordam a população indígena:


 José de Alencar: O Guarani, Iracema e Ubirajara
 Gonçalves de Magalhães: A Confederação dos Tamoios
 Gonçalves Dias: I-Juca-Pirama, Canção do Tamoio, Marabá, Leito de Folhas Verdes,
Canto do Piaga

Outro exemplo das obras indianistas de Gonçalves Dias é Marabá. O termo


que dá título à obra é de origem tupi e significa “de mistura”. Nesse poema,
Gonçalves Dias expõe o dilema de uma índia mestiça que é recusada pelos
índios guerreiros justamente por sua condição. A personagem Marabá possui
olhos com “cor das safiras”, rosto “da alvura dos lírios” e “loiros cabelos”,
porém não consegue encontrar um guerreiro que a deseje, terminando por viver
“[...] sozinha, chorando mesquinha, que sou Marabá!” (DIAS, 1968, p. 325).
Essas representações da população indígena presentes nas obras literárias
criam um ideal que se encaixa em um perfil de guerreiros honrados. Assim,
impossibilita-se outra manifestação cultural e psicológica. Além disso, entra
em cena a crença em um tipo indígena preso no passado, que não conseguiu
acompanhar o desenvolvimento da civilização brasileira.

A escravidão no Brasil: denúncias e crueldade


No ano de 1869, Joaquim Manuel Macedo publica um romance intitulado As
Vítimas-Algozes: Quadros da Escravidão, uma obra de literatura que propõe
uma espécie de denúncia contra a escravidão praticada no Brasil. Seu autor
era um emancipacionista convicto e defende, utilizando diversos argumentos,
o fim da escravidão, pois para ele “A escravidão gasta, caleja, petrifica, mata
o coração do homem escravo [...]” (MACEDO, 1869, p. 53).
O romance narra a história de três escravizados, todos com características
que têm o objetivo de demonstrar como a sociedade era afetada pela escravi-
dão. São eles: Simeão, o crioulo; Pai-Raiol, o feiticeiro; e Lucinda, a mucama.
Apesar de ser uma obra de ficção, o autor deixa claro o seu papel de denúncia,
na medida em que os textos escritos são “[...] romances sem atavios, contos
sem fantasias poéticas, tristes histórias passadas aos nossos olhos, e a que não
poderá negar-se o vosso testemunho [...]” (MACEDO, 1869, p. 1).
Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea 9

A construção da argumentação de Macedo (1869) é baseada na ideia de


que a escravidão era um atraso econômico, uma ideia inaceitável em um país
que deveria passar por um processo de modernização, deixando de ser agrí-
cola. Além disso, o autor defende uma linha de pensamento que demonstra a
crueldade desse sistema: a escravidão era um veneno e criava inimigos dentro
de casa. Isso mostra que Macedo (1869) entende o escravo como o verda-
deiro inimigo, pois é corrompido pelo sistema e simultaneamente corrompe
a sociedade. Para o autor, o Brasil deveria acabar com a escravidão, não por
humanidade, mas para se livrar dos incômodos desse sistema, incluindo aí a
população afrodescendente.
Uma das personagens principais da obra de Macedo (1869, p. 157) é a
mucama Lucinda, “Uma escrava mucama da menina que em breve ia ser
moça!”. A menina chama-se Cândida e acaba de completar 11 anos de idade,
ganhando como presente, uma prática comum do Brasil oitocentista, uma
jovem mucama, Lucinda. No desenrolar da trama, o problema surge a partir
do momento em que a mucama Lucinda, corrupta e imoral, começa a fazer
parte do cotidiano da doce e angelical Cândida.
O uso de adjetivos para definir os comportamentos da mucama e da menina
é intencional por parte do autor; de um lado, há uma pessoa corrupta e imoral;
do outro, alguém doce e angelical. O contato entre elas cria uma rachadura no
comportamento que era esperado para uma moça que faria parte da sociedade.
Após várias conversas, a mucama percebe que a menina é ingênua e começa
a questionar seus conhecimentos sobre “ser moça” e “casamento”, maculando
assim sua pureza inicial. Segundo o autor, a escrava Lucinda, que em momento
algum demonstra inocência em suas atitudes, envenena a alma de Cândida
com as “explicações necessariamente imorais” (MACEDO, 1869).
Com essa narrativa, o autor tem por objetivo criar uma dicotomia entre as
protagonistas, Cândida e Lucinda. A primeira é uma menina branca, ingênua
e pura que é corrompida pela segunda, uma escrava negra e promíscua. Essa
dinâmica torna a sinhazinha “escrava da sua escrava” (MACEDO, 1869),
uma vez que desperta nela um desejo que não poderia ser conhecido naquele
momento e que só foi possível graças à convivência degenerante.
Para o autor emancipacionista, um dos piores males que a escravidão gerava
era o da convivência entre inimigos naturais, ou seja, senhores e escravos.
Segundo ele, “O escravo é necessariamente mau e inimigo do seu senhor. A
madre-fera escravidão faz perversa, e vos cerca de inimigos [...]” (MACEDO,
1869, p. 29). Essa ideia é percebida quando, ao explicar a transgressão do
caráter de Cândida por Lucinda, o autor afirma que “[...] a ideia do casamento
10 Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea

atirada ali de mistura com a de moça feita confundiu ainda mais a pobre e
curiosa menina abandonada à companhia da mulher escrava [...]” (MACEDO,
1869, p. 172). Novamente, percebe-se a suposta depravação que a escravidão
trazia para os brancos. Era por meio do “abandono à companhia da mulher
escrava” que as sinhazinhas e a sociedade branca em geral eram corrompidas
aos poucos pelos negros escravizados.

Devido a relatos de viajantes estrangeiros e às condições precárias e desumanas


da escravidão, imaginou-se que era impossível a formação de núcleos familiares
por pessoas escravizadas. Entretanto, esse posicionamento está sendo revisto pela
historiografia. Obras como Na senzala, uma flor, do historiador norte-americano Robert
W. Slenes, buscam trazer à luz histórias de vidas de pessoas escravizadas que, lutando
contra todas as condições da época, conseguiram formar famílias e buscar auxílio para
sobreviver em uma sociedade que agia de forma violenta e arbitrária.

Essa percepção negativa sobre as consequências que a presença dos escra-


vizados tinha no cotidiano da população não se resumiu às escravas mucamas,
estendendo-se a outro personagem de As Vítimas Algozes, Simeão, um crioulo,
o qual também é afetado psicologicamente pela ação degenerativa da escravi-
dão. O fato de o indivíduo ser um escravo alterava a sua percepção emocional:
Simeão não possuía a capacidade de amar, já que a escravidão o degradava e
arrancava toda e qualquer forma de sentimento puro. Veja:

O escravo não amava, não amou Florinda; mas em sua mente audaz, em seus
instintos escandalosos, revoltantemente ultrajadores e licenciosos, lembrou,
contemplando a senhora-moça, o que lembrava aproximando-se da negra
fácil, da escrava desmoralizada que lhe agradava e não fugia a seus ignóbios
afagos (MACEDO, 1869, p. 51).

As denúncias da escravidão presentes na obra de Macedo (1869) também


são estendidas aos escravizados, daí o título da obra, Vítimas Algozes. A ideia
é que aqueles que sofrem a violência da escravidão reproduzem essa mesma
Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea 11

violência na sociedade, tornando-se também algozes. Esse pensamento deve


ser dimensionado, pois cria uma espécie de amenização da escravidão desen-
volvida no Brasil, uma vez que retira parte da culpa dos próprios senhores de
escravos, já que estes também se tornam vítimas do processo.
Em uma perspectiva diferente, outro autor que também contesta a escravidão
desenvolvida no Brasil é Machado de Assis. Ao contrário do que acontece
no caso de outros autores da sua época, como o próprio Macedo (1869), as
denúncias de Machado de Assis são explícitas e o caráter cruel e violento da
escravidão é denunciado em suas páginas.

Após 18 anos da abolição da escravidão, que ocorreu em 13 de maio de 1888, Machado


de Assis publica o conto “Pai contra Mãe”, presente na obra Relíquias da Casa Velha, de
1906. No conto, a violência da escravidão é mostrada quando um caçador de escravos,
chamado Cândido Neves, passa por um dilema ético e moral: para conseguir dinheiro
para cuidar da sua família, deve ir atrás de uma escrava que está grávida, correndo o
risco de fazê-la abortar o bebê. Acesse o link a seguir para ler o conto.

https://qrgo.page.link/sa6tv

As várias faces da escravidão são mostradas por Machado de Assis nas


suas obras. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, Prudêncio, um
antigo escravo do protagonista, é visto no cais do Valongo impondo sua fúria
a outro indivíduo, também negro, porém seu escravo. Essa violência era uma
reação à condição de vida imposta ao indivíduo escravizado:

Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas


— transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio
na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém,
que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar,
folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desban-
cava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que
de mim recebera (ASSIS, 1881, p. 76).
12 Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea

Outro autor que também viveu e escreveu sobre o século XIX no Brasil,
enfocando o tema da escravidão, foi Castro Alves, conhecido como “o
poeta dos escravos”. Ele faleceu com apenas 24 anos, sem ver a abolição
da escravidão nem a publicação da sua obra máxima, Navio negreiro, de
1880. Nessa obra, ficam evidentes os horrores da escravidão e as condições
desumanas do transporte marítimo dos “tumbeiros”, termo que designava
popularmente os navios que transportavam os escravizados na travessia
transatlântica. Como o índice de mortandade era elevado, a comparação
com tumbas era evidente.
A obra é dividida em partes (cantos): (1) a descrição do belo natural,
a exuberância da natureza brasileira; (2) a descrição do belo humano, a
valorização dos marinheiros dos diferentes países; (3) a indignação ao ver
o que se passa no interior do navio, a estupefação; (4) a descrição dos hor-
rores cometidos contra os escravos; (5) a comparação da vida pregressa dos
negros com o horror do momento; e (6) a crítica ao Brasil, por se beneficiar
da infame escravidão.

Por uma educação antirracista


Uma educação antirracista nas escolas deve contemplar a identidade e a história
dos indivíduos e dos respectivos grupos que frequentam o ambiente escolar.
Para que esse processo seja de fato efetivado, a escola deve repensar a sua
estrutura, ampliando a definição de currículo, avaliação e material didático e
as formas de ação entre corpo docente e corpo discente.
Geralmente, o debate sobre o racismo e as formas de combatê-lo vêm à tona
apenas nas datas de 19 de abril, para a população indígena, e 13 de maio e 20
de novembro, para os afrodescendentes. Esses marcos simbólicos, caso não
sejam devidamente problematizados, podem servir para reproduzir estereótipos
e reforçar visões negativas sobre as populações, transformando a escola em um
ambiente hostil para determinados grupos e anulando a sua função social de
aparelho que possibilita o acesso à cidadania e a emancipação dos indivíduos.
Ao analisar as ações dos movimentos sociais na busca por uma sociedade
mais justa e igualitária, percebe-se que a legislação avançou, possibilitando a
materialização de um aparato legal que diminua e iniba a prática de racismo
em território nacional. Sobre essa questão, Sousa (2005, p. 110–111) destaca
o seguinte:
Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea 13

Dizem até que falar de racismo é invenção do negro complexado, que tem ver-
gonha da própria origem. Felizmente esta cultura do silenciamento está sendo
superada, um resultado de décadas de lutas do movimento negro organizado
por todo este país e que vem obtendo importantes conquistas, inclusive no
campo legal, como, por exemplo: o art. 5º da Constituição Federal de 1988,
que torna “a prática do racismo crime inafiançável e imprescritível”; a lei
3.198/2000, que institui o “Estatuto da Igualdade Racial”; a lei 10.639/2003,
que torna obrigatório incluir nos currículos escolares a “história e cultura
afro-brasileira”. Isso demonstra que avanços estão sendo conquistados, apesar
de ainda termos muito a buscar.

Soma-se a essa trajetória de luta antirracista a promulgação da Lei nº 11.645,


de 10 de março de 2008. Ela modifica a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003,
e amplia a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e
indígena na educação básica do País.

No link a seguir, confira o aparato legal que tornou possível o ensino da história e da
cultura indígena e afro-brasileira nas escolas do País.

https://qrgo.page.link/zuKnW

Racismo: identificar e combater


Gilberto Freyre, na sua obra máxima Casa-Grande & Senzala, de 1933, foi
o responsável por criar um mito que até hoje ecoa na sociedade brasileira, a
ideia de democracia racial. De acordo com esse autor, que era pernambucano
e descendente de antigos senhores de engenho da região, o Brasil seria a
“mais perfeita democracia racial do mundo”, pois o português teria criado
nos trópicos uma sociedade em que os preconceitos de raça ou cor teriam sido
diluídos na mistura entre brancos, negros e índios. Assim, teria forjado um
ambiente propício para o desenvolvimento de uma sociedade em que a prática
de racismo era inexistente, modelo bem diferente do de outras sociedades, como
os Estados Unidos da América, onde houve luta por direitos civis, segregação
e ação de grupos racistas como a Ku Klux Klan.
14 Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea

Esse mito começou a ser combatido nos anos 1950, pela chamada “escola
de sociologia paulista”. Autores como Florestan Fernandes e Fernando Hen-
rique Cardoso questionaram a existência de uma democracia racial no Brasil
e passaram a denunciar as condições nas quais a população negra brasileira
estava inserida, configurando, portanto, a primeira crítica contudente a Freyre
e revelando o racismo na sociedade brasileira após a abolição da escravidão.

O Geledés (Instituto da Mulher Negra) explica como o mito da democracia racial está
presente na sociedade brasileira. Confira no link a seguir.

https://qrgo.page.link/AHgV6

A negação do racismo no Brasil reforça a ideia de que no País as condições


de vida e as oportunidades são iguais para todos, independentemente da cor de
pele, visão que não reflete a realidade. Em uma análise sobre o perfil étnico
do Brasil e o seu reflexo nas condições econômicas, o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2018) constatou que, em média, os brasileiros
brancos possuem salários maiores, sofrem menos com desemprego e possuem
maior acesso ao nível superior. Essa situação reflete o processo histórico
iniciado pela colonização portuguesa e atinge principalmente os grupos que
foram historicamente afastados das classes dominantes.

Negros e indígenas no Brasil hoje


Ao combater o racismo no ambiente escolar, a escola cumpre a sua função so-
cial. Nesse processo, os professores são peças fundamentais dessa engrenagem.
Identificar o racismo, compreender as suas consequências para a formação do
alunado e o seu consequente exercício de cidadania, reconhecer a presença
de estereótipos, bem como a ausência de embasamento durante a formação
inicial e continuada dos professores, é o caminho a ser seguido para, enfim,
ter uma educação antirracista.
Sobre essa questão, Gomes (2009, p. 57) afirma o seguinte: “[...] somos
desafiados a realizar uma mudança epistemológica, no campo da formação de
professores(as) no Brasil, que vá além das velhas dicotomias entre o escolar e
Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea 15

o não escolar, o político e o cultural, o instituído e o instituinte, ainda presente


em vários currículos e práticas de formação de professores [...]”.
Ao longo da história do Brasil, os grupos de indivíduos não brancos, como
negros e indígenas, criaram diversas táticas para burlar a ordem vigente e
realizar suas práticas culturais sem que fossem punidos pelo poder colonial
estabelecido. Essas astúcias foram materializadas em diversos aspectos da
vida cotidiana desses indivíduos, inclusive na esfera religiosa, com a criação
de irmandades religiosas de negros e pardos, em que as divindades e os orixás
africanos foram assimilados ao culto aos santos católicos. No campo cultural,
destaca-se a prática da capoeira, uma mistura de luta com dança, inicialmente
proibida e, posteriormente, alçada à condição de patrimônio histórico e cultural
nacional. Aspectos linguísticos também foram afetados, como o vocabulário,
que amenizou o português europeu, desenvolvendo uma nova linguagem mais
branda, com a repetição de sílabas.
Os aspectos da cultura africana foram ressignificados no Brasil, adqui-
rindo outras roupagens, repletas de herança, memória e resistência étnica
e cultural. No campo do sagrado, as religiões afro-brasileiras se materia-
lizaram como práticas de fé. Nesse contexto, destacam-se as irmandades
negras, associadas ao catolicismo; a umbanda, associada ao espiritismo;
o candomblé; o culto dos orixás; o tambor de mina (Maranhão); e o culto
congo-angolano (Rio de Janeiro e Bahia). A interação étnica e cultural no
Brasil foi tão intensa que surgiram também cultos afro-indígenas, como os
candomblés de caboclo (Bahia), jurema (Paraíba e Pernambuco), barba-soeira
(Amazônia e Pará) e terecô (Maranhão), popularmente denominados de
catimbó, macumba e canjerê.
Os folguedos dos reis negros, também conhecidos como festas do rosário,
são manifestações culturais que demonstram a forte presença da cultura
africana no Brasil. Essas manifestações culturais têm origem nas irmandades
religiosas de escravizados, quando os irmãos em um ato de fé elegiam um
rei que era conhecido pelos membros da irmandade e tinha sua autoridade
validada inclusive pelos colonizadores, mostrando como a vida social durante
a escravidão era complexa. No Brasil, essas denominações mudaram, depen-
dendo do local de origem, entretanto guardam semelhanças entre si.
Lutas por posse e manutenção das terras, seja por comunidades tradicionais
indígenas ou comunidades remanescentes de quilombos, refletem a disputa
pelo acesso à terra no Brasil, que ficou restrito a pequenos grupos com capital
necessário e que herdaram a posse da terra dos antigos senhores da região.
Todas essas questões evidenciam a luta pela sobrevivência de negros e indí-
genas no Brasil de hoje.
16 Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea

Assim, a resistência de índios e negros não terminou; ela não ficou restrita
ao passado, mas continua viva, existindo no Brasil contemporâneo. Enquanto
houver uma sociedade racista, que busca eliminar os indivíduos que agem de
modo diferente da classe dominante, a luta antirracista é necessária.

As histórias em quadrinhos são uma forma de literatura que pode contribuir para
aproximar os alunos da cultura afro-brasileira. A seguir, confira uma seleção de obras.
 André Diniz: Chico Rei (2007) e O Quilombo Orum Aiê (2010)
 Marcelo D’Salete: Cumbe (2013) e Angola Janga (2016)
 Amaro Braga, Danielle Jaimes e Roberta Cirne: AfroHQ: História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana em Quadrinhos (2010)
 Alexandre Miranda Silva: Orixá: Do Orum ao Ayê (2011)

ASSIS, M. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS, M. Obra completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1881.
ASSIS, M. Pai contra mãe. In: ASSIS, M. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1888.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.
htm. Acesso em: 19 ago. 2019.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. (Artes de Fazer, v. 1).
CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
CHICANGANA-BAYONA, Y. A. Os Tupis e os Tapuias de Eckhout: O declínio da imagem
renascentista do índio. Varia História, Belo Horizonte, v. 24, n. 40, p. 591–612, 2008.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/vh/v24n40/16.pdf. Acesso em: 19 ago. 2019.
Culturas afro-brasileira e indígena na sociedade brasileira contemporânea 17

DIAS, G. Canção do Tamoio. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, [1852].


DIAS, G. I-Juca-Pirama. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1851.
DIAS, G. Marabá. [S. l.: s. n.], 1968.
GÂNDAVO, P. M. História da província Santa Cruz que vulgarmente chamamos Brasil.
Lisboa: Antônio Gonçalves, 1576.
GOMES, N. L. Diversidade étnico-racial: por um projeto educativo emancipatório. In:
FERREIRA, R. F. Afro-descendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC, 2009.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: PNAD contínua. Mercado
de trabalho brasileiro: 4º trimestre de 2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/08933e7cc5
26e2f4c3b6a97cd58029a6.pdf. Acesso em: 20 ago. 2019.
LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007.
MACEDO, J. M. As vítimas-algozes: quadros da escravidão. [S. l.: s. n.], 1869.
SOUSA, F. M. N. Linguagens escolares e reprodução do preconceito. In: BRASIL. Minis-
tério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: Ministério
da Educação, 2005. (Coleção Educação para Todos).

Leituras recomendadas
BENJAMIN, R. E. C. A África está em nós: história e cultura afro-brasileira. João Pessoa:
Grafset, 2004.
FAUSTO, C. Os índios antes do Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
FONSECA, M. V.; SILVA, C. M. N.; FERNANDES, A. B. (org.). Relações étnico-raciais e educação
no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.
MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
NASCIMENTO, A. Democracia racial: mito ou realidade? 1977. Disponível em: https://
www.geledes.org.br/democracia-racial-mito-ou-realidade/. Acesso em: 19 ago. 2019.
PROUS, A. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006.
Formação
sociocultural
do Brasil I
Aline Michele Nascimento Augustinho

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

• Reconhecer a realidade social e cultural do Brasil.


• Explicar os efeitos da ocupação e colonização brasileira.
• Valorizar as diferentes manifestações culturais de etnias e raças.

Introdução
Neste capítulo, você vai compreender quais foram as origens da formação da
sociedade brasileira contemporânea, retomando a premissa da organização
colonial e as dinâmicas estabelecidas entre os povos colonizadores, os povos
e sociedades que já existiam no território brasileiro e os povos que mais tarde
foram trazidos — forçados ou de forma livre.
Vai compreender também que as relações sociais foram determinadas pelo
tipo de organização econômica estabelecida, e, por isso, a utilização de mão de
obra escravizada teve grande influência nas manifestações simbólicas e culturais
da sociedade em formação, especialmente nas relações familiares afetivas que
se constituam entre cuidadores negros e as crianças brancas.
Por fim, verá que houve e há resistência de diferentes composições étnicas,
especialmente negra e indígena, ao longo de todo o processo de constituição da
sociedade brasileira contemporânea, identificando a importância de reconhecer
2 Formação sociocultural do Brasil I

as dinâmicas de poder e de classe na manutenção de privilégios que afastam as


elites das bases das pirâmides sociais.

Origens socioculturais do Brasil


O Brasil republicano foi simbolicamente desenhado como uma nação miscige-
nada, formada por várias culturas que não apenas conviveriam pacificamente,
mas que também contribuíram para a formação de uma cultura e de uma
identidade nacionais exclusivas do Brasil. Porém, nas reflexões acadêmicas
e sociais que se realizam, ao olhar para as culturas que formam a identidade
brasileira é possível identificar as falácias no discurso da miscigenação pacífica
e integradora. Muito embora seja verdade que a identidade nacional e os
elementos culturais que a permeiam — como a música, as artes, o idioma, a
culinária, as tradições, religiões, costumes e comportamentos sociais — sejam
de fato produto da interação de culturas de diferentes origens, especialmente
de povos indígenas, povos negros e povos europeus, não é mais possível que
no século XXI se reproduza a ideia da miscigenação sem a reflexão da violência
estrutural resultante das relações de poder entre esses povos.
A reflexão sobre essas relações de poder, além de oferecer melhor compre-
ensão sobre a história do país, pode ainda contribuir para políticas públicas
de reparação de violências e injustiças, reorganizando as dinâmicas sociais
contemporâneas e ajustando os espaços e acessos de povos de diferentes
origens aos itens de bem-estar social e à efetivação da cidadania, como assim
define a Constituição Federal de 1988.
Para compreender como se constitui a realidade social e cultural do Bra-
sil contemporâneo, com suas possibilidades, desafios e a necessidade de
resgates históricos, é necessário antes retomar as origens dessa sociedade.
Retomar o processo de colonização é fundamental, mas, para compreender
a formação de nossa identidade brasileira contemporânea, é preciso retomar
o contexto de formação da república brasileira.
É na formação do Estado-nação republicano, no final do século XIX, que
surgiu a necessidade de criação de um elemento simbólico que levasse os
sujeitos à validar a noção de pertencimento à nação. A noção de pertenci-
mento é um dado simbólico que influencia a formação da identidade dos
sujeitos, associando tais identidades aos laços sociais constituídos em sua
formação como um sujeito que pertence a determinada cultura, que pertence
a determinado país.
A noção de pertencimento foi intencionalmente desenvolvida no Brasil
republicano especialmente por meio da educação pública, a fim de difundir
Formação sociocultural do Brasil I 3

o conceito de identidade nacional — e esse pressuposto tinha um objetivo


político: o fim do Império. Nesse sentido, o exílio do imperador Dom Pedro
II não foi um ato de ruptura popular com o absolutismo, como aconteceu na
Europa dos séculos XVIII e XIX. Pelo contrário, o imperador Dom Pedro II era
benquisto pelos brasileiros de classes mais baixas, que não participaram do
movimento golpista que levou à constituição da República.
Assim, a construção da sensação de pertencimento ajudava a formar e
legitimar a identidade nacional, e essa identidade, por sua vez, estreitaria
os laços do povo com o novo Estado e sua forma de organização e governo,
prevenindo movimentos separatistas, mantendo unido o território vasto do
antigo Império e salientando a unidade nacional frente a possíveis ameaças
externas.
Naquele momento, no final do século XIX, a constituição da República
buscava criar a imagem de um país moderno e economicamente alinhado às
principais potências capitalistas mundiais — Estados Unidos e França. Para
isso, os ideais de liberdade, igualdade e participação que permearam as
revoluções burguesas nesses dois países precisavam ser aqui reproduzidas,
com a transição da forma do Estado monárquico para o republicano.
Assim, buscou-se criar elementos simbólicos que afastassem a memória
social dos contextos de colonização e da égide da monarquia portuguesa
como expressões de dominação europeia — muito embora o país fosse inde-
pendente desde 1822, os laços com a coroa portuguesa não foram cortados,
mesmo que a monarquia brasileira se mostrasse mais conectada ao Brasil
que às memórias das cortes europeias.
Na busca pela criação de uma identidade nacional que se descolasse das
memórias coloniais e do impacto da dominação cultural, política e econômica,
as dinâmicas de poder entre as culturas que formariam o povo e a identidade
culturais brasileiras foram moldadas para salientar uma espécie de simbiose
entre diferentes culturas, apagando um histórico de dominação e violência.
Assim, surgiu a noção de que povo brasileiro, miscigenado entre povos
negros, brancos e indígenas, convivia em paz com as diferentes origens
que formariam uma só cultura, diversificada, única e sobretudo pacífica e
integrada.
Desse modo, a identidade nacional e a noção de pertencimento foram
estabelecidas no início do século XX, resultando na manutenção de violências
estruturais e simbólicas de povos durante a colonização, com a valorização da
influência dos povos europeus, sem, no entanto, que se admitisse a existência
do racismo, levando à formação do mito da igualdade racial.
4 Formação sociocultural do Brasil I

De acordo com o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes (1978), a socie-


dade brasileira do século XX foi pautada no mito da igualdade entre todos seus
componentes étnicos, o que, segundo sua perspectiva, seria uma inverdade,
já que as relações raciais coloniais mantiveram os traços de segregação e
violência na constituição da divisão social do trabalho capitalista no Brasil
do século XX. Nesse âmbito, os negros seguiram marginalizados nas dinâ-
micas sociais com as elites, tendo acesso restrito ao trabalho e à educação
e reproduzindo dispositivos que impediam sua autonomia.
No próximo tópico, você verá como se deu o reconhecimento dos povos
nativos e das sociedades já estabelecidas no território que se tornaria o
Brasil no contexto da colonização.

Ocupação e colonização brasileira


Consideradas as interações múltiplas e a intenção sociopolítica na criação do
conceito de identidade nacional e da noção de pertencimento para o fortale-
cimento e legitimação da República, chega o momento de uma reflexão que
retoma pontos históricos ainda mais longínquos: o processo de colonização.
Afinal, é a partir desse processo que o Brasil se torna um Estado, com
uma sociedade que submete às regras legais e de conduta centrais. Isso,
porém, não significa que uma sociedade com cultura, condutas e hábitos
particulares se estabelece apenas com a colonização. Antes da ocupação do
território brasileiro pelos portugueses, a região era habitada por diferentes
povos indígenas, que mantinham dinâmicas internas específicas de auxílio
mútuo ou de belicosidade, de trocas comerciais e disputas territoriais.
Assim, é preciso ressaltar que sociedades nativas, indígenas, ocupavam
o território brasileiro antes da chegada e da posterior ocupação forçada
dos portugueses. Aliás, esses povos nativos mantinham contato e trocas
comerciais e culturais por toda a América do Sul, estabelecendo diálogos
com grandes impérios nativos como os Incas, na região do Peru, até os Maias,
na América Central.
Uma das provas dessas dinâmicas é o Caminho de Peabiru, uma trilha de
cerca de 3 mil quilômetros de extensão, em muitas partes pavimentada com
pedras, que ligava o litoral de São Paulo, na região de São Vicente, à região
de Cuzco, no Peru, coração do Império Inca antes da invasão e colonização
espanhola naquela região (Figura 1).
Formação sociocultural do Brasil I 5

Figura 1. Trajetória pré-colombiana do Caminho de Peabiru, do litoral de São Paulo até a


região de Cuzco, capital do antigo Império Inca, no Peru.
Fonte: Colavite e Barros (2009, p. 89).

A trilha apresentava centenas de “ramais”, pequenas trilhas anexas que


ligavam a trilha central a aldeias e comunidades, de modo que o Caminho de
Peabiru se configurava como instrumento de comunicação e troca comercial
local e intercontinental, mesmo considerando a multiplicidade de etnias,
idiomas e culturas indígenas nativas ao longo do trajeto.
Apenas com o reconhecimento do Caminho de Peabiru já é possível refletir
sobre pontos importantes do processo de formação cultural da sociedade
brasileira: em primeiro plano, havia sociedades plenamente estabelecidas
num território que foi invadido por um povo colonizador, que tomou para si
as terras e suas riquezas.
Nesse contexto, houve um processo de imposição pela força, de modo
que o povo colonizador, os portugueses, pudesse subjugar os povos nativos,
6 Formação sociocultural do Brasil I

forçando-os ao trabalho segundo sua definição, invadindo e destruindo


vilarejos, raptando crianças para a formação católica forçada — desse modo
aprenderiam o idioma do colonizador, seus valores morais por meio da religião,
e poderiam ser mais facilmente controlados, afastados de sua cultura nativa.
Os primeiros 60 anos de colonização, concentrados nas regiões de São
Vicente, sul da Bahia e Recife, foram orientados à exploração de bens já
disponíveis, como o pau-brasil, enquanto testes de adaptabilidade do solo
para o plantio de cana-de-açúcar e cacau eram realizados. Nesse contexto, a
mão de obra indígena, também escravizada, era a utilizada. Os portugueses
estabeleceram-se como senhores da terra ocupada, legalizando a ocupação
com outros europeus, os espanhóis, com os quais dividiram as porções con-
tinentais a serem exploradas.
De modos diversos, os dois povos colonizadores buscaram anular as or-
ganizações sociais já estabelecidas no período pré-ocupação, e isso significa
não apenas a imposição de violência e exploração de mão de obra escravizada,
mas o apagamento de itens simbólicos, como fortificações, estruturas urbanas,
templos e totens religiosos, além do impedimento da comunicação entre as
comunidades, o que dificultava — mas não impedia — a resistência nativa.
Há dois fatores nesse processo que levaram os portugueses a inserirem
a mão de obra de povos negros escravizados no Brasil: em primeiro lugar,
a adaptação da cana-de-açúcar ao clima e ao solo do nordeste brasileiro. A
criação de engenhos exigia conhecimento técnico que os nativos indígenas
não possuíam e relutavam em aplicar. No entanto, tanto Portugal quanto
Espanha, Holanda, Inglaterra e França já haviam utilizado mão de obra de
povos africanos escravizados em plantios na América Central.
A experiência anterior de escravização levou os colonizadores a iniciarem
a forçada diáspora africana para o Brasil, cumprindo a necessidade de criar,
expandir e movimentar os engenhos de cana-de-açúcar. Essa ação teve ainda
cunho político: com o território do nordeste tendo sua população ampliada e
atividades comerciais mais ativas, mantinha-se afastada a ameaça de invasão
holandesa, intenção que permaneceu ativa até o século XVIII.
O segundo fator foi a necessidade de ocupação territorial continental, ou
seja, a expansão das atividades para além da faixa costeira. Essa necessidade
surgiu já no século XVII, quando o sucesso na exploração de ouro e minerais
preciosos na porção continental ocupada pela Espanha levou os portugueses
a temerem que a exploração espanhola ultrapassasse os limites acordados,
além da perspectiva de encontrar ouro em abundância mais ao interior do
continente.
Formação sociocultural do Brasil I 7

Assim, em busca de minas e veios de ouro iniciou-se a expansão territorial


e a ocupação por meio da composição de vilarejos e cidades em torno de
regiões com veios e minas de ouro na região sudeste. Como as incursões
exploratórias não permitiam lutar com indígenas, ocupar espaços e formar
vilarejos sem os retornos financeiros esperados, a mão de obra de povos
negros foi inserida já no processo de exploração do território.

Com a paulatina ocupação do litoral brasileiro principalmente pelos colonizadores


portugueses, para além de tentativas de ocupação francesa e holandesa, acarre-
taram-se imensos prejuízos para os inúmeros grupos étnicos, que se destacavam
por sua diversidade linguística, religiosa e cultural, e que foram progressivamente
reduzidos ou, em muitos casos, até mesmo dizimados. Com o tempo, os atos de
violência perpetrados pelos invasores de Pindorama também passaram a ter
como alvo diversas etnias africanas que foram sequestradas de seus respectivos
territórios de origem, para serem então comercializadas e exploradas no Brasil
Colônia de forma inumana (ROMÃO, 2018, documento on-line).

Ao longo do tempo, com a expansão territorial e a consolidação dos vilare-


jos e expansão da população portuguesa chegada para explorar o território,
crescia também a presença de escravizados negros, ao passo que diminuía
a de povos nativos, mortos pela recusa a ceder território ou pela recusa à
escravização.
A ocupação inicial do território brasileiro oferece então a composição social
da nova colônia: no topo da pirâmide social, nobres e ricos comerciantes. Na
base, os povos explorados: povos negros e indígenas escravizados. Havia
também pessoas brancas não nobres, que partiam de Portugal em busca
de oportunidades no Novo Mundo, mas que viam-se sem lócus, sem espaço
social a ser ocupado na ausência de titulação aristocrática, grandes posses ou
carreira militar. Essas pessoas, no entanto, foram importantes para estruturar
os vilarejos e o processo de ocupação territorial.
Se por um lado observaram-se formas de controle e imposição do poderio
do colonizador, por meio da violência e da catequese (imposição religiosa,
fonte do apagamento cultural nativo), observou-se no Brasil Colônia também o
processo de resistência que levaria a importantes núcleos da cultura nacional:
a formação dos quilombos.
Os quilombos eram territórios social, política, econômica e militarmente
organizados, que recebiam povos negros e também indígenas que fugiam da
condição de escravidão. Tais territórios promoviam a autossustentabilidade, já
que não podiam expor sua localização, sobretudo quando especializavam-se
na insurgência e no enfrentamento do poder dos colonizadores. Havia, porém,
8 Formação sociocultural do Brasil I

aqueles que atuavam também no comércio, com os excedentes produzidos


e artesanatos.
Tereza de Benguela é um exemplo de líder quilombola que orientava sua
microssociedade, o Quilombo de Cariterê, ao comércio, mas também à ativi-
dade bélica. Segundo Anal de Vila Bela do ano de 1770, no atual Mato Grosso:

Governava esse quilombo a modo de parlamento, tendo para o conselho uma


casa destinada, para a qual, em dias assinalados de todas as semanas, entrava os
deputados, sendo o de maior autoridade, tipo por conselheiro, José Piolho, escravo
da herança do defunto Antônio Pacheco de Morais, Isso faziam, tanto que eram
chamados pela rainha, que era a que presidia e que naquele negral Senado se
assentava, e se executava à risca, sem apelação nem agravo (FUNDAÇÃO CULTURAL
PALMARES, 2017, documento on-line).

Uma das táticas de apagamento da cultura nativa indígena e so-


breposição forçada da cultura colonizadora era a disseminação
da ideia de inferioridade artística ou intelectual e de inverdade associada às
religiões indígenas. Assim, ao mesmo tempo em que se disseminava a noção
de superioridade cultural das sociedades europeias, atribuía-se as ações de
violência e até extermínio à ideia de auxílio no desenvolvimento, ou seja, de que
os europeus estariam ajudando os nativos a conhecerem culturas mais eficien-
tes, mais desenvolvidas e superiores. Essa ideia parte da violência simbólica,
mas concretiza-se em violência real, e fez parte do itinerário do desenrolar da
sociedade brasileira republicana, com a noção de marginalização atribuída às
expressões culturais e religiosas de matrizes indígenas e africanas (CARNEIRO,
2020).

Colonização e relações de poder


O processo de colonização determinou um padrão de relacionamentos sociais
em que havia dinâmicas de poder estabelecidas entre dominadores e domina-
dos: colonizadores, brancos europeus, determinaram a língua, a religião e as
formas de organização social que regrariam as condutas coletivas, como na
formação de famílias ou exercício do trabalho. O que surgiu, com isso, segundo
Darcy Ribeiro (2016, p. 19–20), foi um povo ao mesmo tempo novo e velho:

Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas
matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética
e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo
porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano
Formação sociocultural do Brasil I 9

diferente de quantos existam. Povo novo, ainda, porque é um novo modelo de


estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização socioe-
conômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada
ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade
de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros.
Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como
um implante ultramarino da expansão europeia que não existe para si mesmo,
mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial
de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta
no país ou importa.
A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes da versão
lusitana da tradição civilizatória europeia ocidental, diferenciadas por coloridos
herdados dos índios americanos e dos negros africanos. O Brasil emerge, assim,
como um renovo mutante, remarcado de características próprias, mas atado
genesicamente à matriz portuguesa, cujas potencialidades insuspeitadas de ser
e de crescer só aqui se realizariam plenamente.

Tais dinâmicas de poder influenciariam também a formação das iden-


tidades dos diferentes povos que compunham a sociedade brasileira nos
contextos da colonização e também dos dois períodos imperiais, até 1889. Isso
porque “[...] a identidade é uma categoria social discursivamente construída,
expressa e percebida por diferentes linguagens: escritas, corporais, gestu-
ais, imagéticas, midiáticas” (MORENO, 2014, documento on-line), ou seja, a
identidade é construída e percebida pelos sujeitos à medida que as práticas
e comportamentos a ela associados são reproduzidos.

Mais incisivamente do que a noção de cultura, a identidade implica a produção


de discursos portadores de signos de identificação. Nem sempre um grupo com
uma cultura em comum percebe-se, denomina-se, reconhece-se ou é objeto de
discursos identitários. A identidade estaria ligada, desta forma, à representação
da cultura de um ou mais grupos humanos (MORENO, 2014, documento on-line).

Por isso, as dinâmicas das relações de poder são tão relevantes na for-
mação das identidades: ao reafirmar e reproduzir lugares e condutas onde
há privilegiados e oprimidos, cria-se a referência do pertencimento, o que
pode dificultar ações de resistência.
No Brasil, foi especialmente no trabalho doméstico e na relação estreita
entre trabalhadoras negras e as famílias brancas que se operou a reprodução
do lócus social pautado nas relações de poder coloniais. De acordo com Eneida
Gaspar (2008), na língua e nos laços, as dinâmicas entre culturas que formam
costumes novos e desenvolvem novas formações culturais podem ser vistas
nas relações coloniais e pós-coloniais entre mulheres negras cuidadoras de
crianças brancas, como você pode ver na cantiga “Neném bagunceiro”:
10 Formação sociocultural do Brasil I

Neném faz lambança comendo canjica.


Babá se enquizila e dá um chilique:
— Moleque sapeca! Não faça bagunça!
Nenê, encabulado, funga, faz dendo...
Babá engambela, faz um cafuné:
— Nana, nenê, que a Cuca já vem...
Nenê esquece a fuzarca... bambeia... e cochila... (GASPAR, 2008, p. 21).

Tais relações, repetidas em diversas unidades familiares por reproduzirem


um padrão de dominação social, terminam exacerbando as unidades fami-
liares e reproduzidas, fazendo parte do contexto cultural. No poema acima,
para além das relações de cuidado entre a mulher e a criança cuidada, há a
reprodução de palavras de origem banto, como “neném”, “cafuné”, “lambança”,
que terminaram como parte da língua falada, o português do Brasil.

Cultura imaterial
A diáspora africana no Brasil causada pela escravização de povos negros
influencia a formação da cultura brasileira, imprimindo impactos na cultura
imaterial, incluindo o idioma, as religiões, a culinária, a música, mas também
influencia os sentidos dados à essas expressões imateriais.
Esses povos não aceitavam a condição da escravidão, e a partir do sé-
culo XVI, fugindo dos engenhos e das fazendas escravistas, desenvolveram
comunidades específicas onde pudessem viver em liberdade e onde suas
tradições e saberes ancestrais pudessem ser protegidos e transmitidos aos
descendentes. Observe o poema a seguir:

Batuca o bumbo,
sacoleja o caxixi,
cutuca a cuíca,
toca marimba e ganzá.
Desencabula,
saçarica na catira,
ginga no samba,
no fandango e carimbo (GASPAR, 2008, p. 21).

Esse texto utiliza palavras de origem africana, trazidas ao Brasil por meio
dos povos escravizados, que terminaram se tornando parte integrante do
idioma, mas não apenas suas palavras e sentidos, como também aquilo que
descrevem: a música, o ritmo e as manifestações culturais, provas da influência
dos povos escravizados na formação da cultura imaterial nacional, como nos
ritmos da catira, do samba, do carimbó e do fandango. Perceba que cada uma
Formação sociocultural do Brasil I 11

dessas expressões musicais se atrela a uma região específica do Brasil (o


samba ao Sudeste, o fandango ao Sul, a catira ao Centro-Oeste e o carimbó
ao Norte e Nordeste), mas são todas influenciadas pela perspectiva cultural,
simbólica e linguística banto, povo africano escravizado e concentrado no
Brasil especialmente na região do Rio de Janeiro.
A sociedade brasileira multiétnica projeta nas expressões culturais tanto
as origens dos povos quanto o produto das dinâmicas entre eles: dinâmicas
de poder, de assimilação ou de confluência. O território do país era ocupado
por nativos de diferentes etnias, formando milhares de microssociedades,
mas que podem ser identificados por meio de quatro troncos linguísticos, que
denotam coesão sociocultural entre si: nas faixas litorâneas, tupis-guaranis;
na porção centro-oeste e do Planalto Central, macro-jê/tapuias; na região
amazônica, dois troncos, aruaques e caraíbas (karib).
Entre os povos negros escravizados, houve maior diversidade étnica
entre o sudeste e o nordeste, sendo trazidos forçadamente povos bantos
do Congo, Angola e Moçambique, para o Rio de Janeiro, Minas e São Paulo,
enquanto povos sudaneses originários de Costa de Marfim e Nigéria foram
levados às lavouras do nordeste, especialmente à Bahia. Foram trazidos ao
Brasil aproximadamente 4 milhões de pessoas africanas até o século XIX
(FLORENTINO, 1995).

Você sabia que as comunidades e sociedades indígenas pré-colom-


bianas, ou seja, que antecederam a ocupação colonial pela invasão
de povos europeus no território, eram organizadas e possuíam delimitações
específicas para centros comerciais, centros militares e centros religiosos? O
processo de colonização buscou apagar as marcas dessas populações, atri-
buindo-lhes uma imagem de desorganização e ausência de desenvolvimento
artístico e cultural, o que os primeiros antropólogos chamavam de “primitivas”.
Hoje, sabe-se que o conceito de primitivo é etnocêntrico, ou seja, considera uma
cultura como centralizadora para análises comparativas. Saiba mais sobre essa
reflexão no artigo “Urbanismo mesoamericano pré-colombiano: Teotihuacán”
(BERNARDES, 2008).
12 Formação sociocultural do Brasil I

Diferentes manifestações culturais:


identidades coletivas e identidades
ancestrais
Os diferentes povos que formaram a sociedade brasileira não dispunham dos
mesmos privilégios e acessos a itens de conforto, bem-estar e segurança, e
tampouco a um processo de legitimação, configuração reforçada e continua-
mente reproduzida principalmente por meio das relações trabalhistas, que
marginalizavam os povos negros e anulavam os povos indígenas.
Com a intensificação do processo de industrialização e expansão da
urbanização no século XX, especialmente em capitais como São Paulo e Rio
de Janeiro, a configuração espacial das cidades passou também a reproduzir
as dinâmicas e relações de poder que centralizam os brancos e marginalizam
os não brancos. Vejamos o trecho a seguir sobre o espaço urbano da cidade
de São Paulo na metade do século XIX:

[...] as ruas, alamedas e praças da cidade, todas as suas áreas de circulação e


reunião pública, estavam de posse dos escravos (que constituíam mais de 1/4
da população) e de homens livres humildes: tropeiros, vendeiros, lavradores. As
famílias patriarcais viviam retiradas em seus sobrados. Não tinham pontos diários
de reunião em público, nem passeios, nem centros de lojas, nem restaurantes
elegantes (MORSE, 1970, p. 62).

Essa reflexão percebe a ocupação dos espaços públicos pela população


racial e economicamente marginalizada, o que, em tese, impedia a ocupação
desses espaços pelas famílias patriarcais, pelas representantes das elites
e do statu quo vigente.
Essa percepção levou às reformas higienistas nos espaços urbanos em
São Paulo e no Rio de Janeiro, que construíram praças, alamedas e passeios
públicos a serem ocupados pelas elites em seu trânsito e lazer, numa tentativa
de assemelhar as capitais brasileiras às capitais europeias, especialmente à
Paris, símbolo da modernidade e da elegância associadas à riqueza capitalista
emergente.
Como um Estado que procurava modernizar-se e criar uma nova identi-
dade nacional, a remodelação do espaço público fazia parte do processo. No
entanto, a sociedade não foi interpretada como miscigenada e plural, embora
única, como a premissa nacionalista divulgava: trabalhadores, escravizados
e ex-escravizados eram retirados à força dos espaços públicos e até presos
quando não cumpriam a ordem de abandonar os espaços destinados às
“famílias tradicionais”.
Formação sociocultural do Brasil I 13

O entorno das praças e passeios públicos também foi afetado pelo projeto
higienista urbano, demolindo moradias simples e levando à formação das
favelas e cortiços às margens das cidades. As músicas e expressões artísticas
de origem negra, como a capoeira e o samba, foram por décadas proibidas
em espaços públicos e associados à “vadiagem”, punidos com prisão.

Do período higienista até a década de 1930, o samba, ritmo criado


por povos negros e associado à cultura brasileira como característica
nacional, foi considerado vadiagem e punido com até 30 dias de prisão. Você
pode saber mais sobre esse contexto na matéria “Carnaval 2020: quando tocar
samba dava cadeia no Brasil” (CARNAVAL..., 2020).

O samba continuou sendo tocado e vivido para além das áreas centrais das
cidades remodeladas, como uma forma de resistência cultural que salientava
a formação de microssociedades com identidades particulares e conectadas
à ancestralidade. Assim, a ideia de possível homogeneidade que criou uma
só cultura com o processo de miscigenação não existia de fato.
Assim como a música, o sincretismo religioso pode ser visto como uma
forma de resistência e sobrevivência à marginalização e à violência com que
as manifestações religiosas de matriz africana, especialmente, mas também
indígena, foram reprimidas. Roger Bastide (2001) pontua sobre as diferentes
nações, ou etnias, de povos negros que formaram novas comunidades no Brasil
a partir dos sujeitos escravizados, mesclando crenças e ritos já praticados, mas
associando suas divindades às divindades católicas, aceitas pela elite branca:

Os candomblés pertencem a ‘nações’ diversas e perpetuam, portanto, tradições


diferentes: angola, congo, jeje (isto é, euê), nagô (termo com que os franceses
designavam todos os negros de fala ioruba), da Costa dos Escravos), queto, ijexá. É
possível distinguir essas ‘nações’ umas das outras pela maneira de tocar o tambor
(seja com a mão, seja com as varetas), pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas
vestes litúrgicas, algumas vezes pelos nomes das divindades, e enfim por certos
traços do ritual. Todavia, a influência dos iorubás domina sem contestação o con-
junto das seitas africanas, impondo seus deuses, a estrutura de suas cerimônias
e sua metafísica aos daomeanos, aos bantos (BASTIDE, 2001, p. 29).

O sincretismo resultou em diferentes expressões religiosas, sendo o can-


domblé uma das mais proeminentes e que mais tarde terminou ganhando fiéis
brancos e partícipes da elite. Não se trata de assimilação ou de aculturação;
nesse caso, quando uma cultura dominante (por questões políticas ou eco-
nômicas) é pouco a pouco absorvida por outra, passando a ter novos valores
14 Formação sociocultural do Brasil I

e expressões da cultura assimilante, o sincretismo foi na verdade um projeto


de resistência para a manutenção do culto a divindades de matriz africana.
E essa escolha pode ter sido também reflexo da violência com que os colo-
nizadores portugueses impuseram o catolicismo aos indígenas, especialmente
por meio das missões jesuítas nas regiões sul, sudeste e amazônica, quando
não apenas as crenças religiosas eram forçadamente trocadas por aquelas
ditas como “verdadeiras”, mas para professá-las, era necessário adotar o
idioma, as vestimentas, os hábitos alimentares e sociais dos colonizadores,
despindo os povos indígenas de suas características socioculturais.
De acordo com Darcy Ribeiro (2016), para além da formação triplo-étnica
da sociedade brasileira entre brancos, negros e indígenas, que por si só con-
tribui para a heterogeneidade cultural, há ainda as diferenças internas entre
cada um desses povos, dadas as múltiplas sociedades indígenas, diferentes
nacionalidades e etnias de povos negros e diferentes nacionalidades de povos
brancos que, chegando após a colonização, puderam atrelar-se aos privilégios
sociais e econômicos associados à elite dominante, como os italianos que
chegaram ao Brasil durante o ciclo do café. Por isso, Ribeiro (2016) sustenta
que até há uma unidade cultural e simbólica que forma a cultura e a ideia de
nacionalidade brasileiras, mas nela não há uniformidade, sendo as diferenças
influenciadas por três elementos principais.
O primeiro deles, segundo Ribeiro (2016), é a ecologia (ambiente). De fato,
os fatores ambientais geoclimáticos afetaram, em conjunto com as culturas
ancestrais dos povos que chegaram durante a colonização, a formação de
culturas locais, que se ligavam com expressões mais amplas e gerais, mas
revelavam peculiaridades advindas dos diálogos diretos dos sujeitos com
seus ambientes.
O segundo elemento é a economia — nesse caso, o autor pondera sobre
dois níveis: quais tipos de vínculo os povos tinham com a economia (escravi-
zados, assalariados, nobres, mercadores) e a condição brasileira de colônia
de exploração e em transição para uma economia capitalista autônoma, mas
periférica. A construção do país como Estado capitalista a partir do século
XIX tem impacto direto na formação sociocultural, derivada das formas de
organização social do trabalho. Um exemplo é a escolha de trazer imigrantes
europeus como trabalhadores assalariados para as lavouras paulistas, sem
a integração econômica dos povos negros após a abolição da escravatura.
Por fim, o terceiro elemento a influenciar diferenças é a imigração não
negra, que especialmente a partir do século XVIII trouxe ao Brasil grandes
contingentes de povos europeus, árabes e asiáticos, concentrados em regiões
específicas do país. Assim, essas novas imigrações associadas a fatores
Formação sociocultural do Brasil I 15

como a economia (e suas relações de trabalho) e a influência geoclimática


terminaram por criar expressões socioculturais, nas palavras de Ribeiro
(2016), “abrasileiradas”. Isso significa que não houve aculturação, mas um
processo de assimilação que nem absorveu a nova cultura por completo e
nem a apagou, criando uma composição híbrida.
Esses três fatores viriam a formar as expressões tipicamente brasileiras
influenciadas por povos não nativos, “[...] como sertanejos do Nordeste, ca-
boclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e centro do país,
gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros,
nipo-brasileiros” (RIBEIRO, 2016, p. 20).
A unicidade não homogênea da composição sociocultural brasileira seria
marcada, portanto, tanto pelo que os brasileiros têm em comum quanto
pelas suas diferenças advindas de “[...] adaptações regionais ou funcionais,
ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma
ou outra parcela da população” (RIBEIRO, 2016, p. 20).

A partir da promulgação da Constituição de 1988, diversas formas


de organização para horizontalização do diálogo e participação
democrática entre Estado e sociedade civil foram determinadas, incluindo
processos de descentralização administrativa, como conselhos de justiça e
fóruns. Dois exemplos de organizações importantes na luta pela equidade social
na sociedade brasileira contemporânea são o Fórum Nacional de Lideranças
Indígenas e o Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI). Por sua
vez, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) mantém Comissões para Igualdade
Racial em cada unidade federativa, promovendo o cumprimento das práticas
de equidade descritas na Constituição nos processos legislativos.

No Brasil, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-


lios (PNAD) de 2019 (IBGE, 2019), 42,7% dos brasileiros se declararam brancos,
46,8% pardos, 9,4% pretos e 1,1% amarelo ou indígena. Dessa forma, 57,3%, a
maioria dos brasileiros, entende-se como não branca, colocando em xeque
a noção de minoria étnica não branca criada pela centralização colonizadora
europeia, que manteve a população branca nas elites, com o passar do tempo
e as diferentes formas de Estado e movimentações do tecido social. Mesmo
que não pertençam às elites econômicas, no Brasil as populações brancas
terminam por sentir com menor intensidade a exclusão capitalista e têm
maior acessos a itens de bem-estar social, mobilidade social e efetividade
da cidadania (Figura 2).
16 Formação sociocultural do Brasil I

Figura 2. Composição social brasileira segundo a raça.


Fonte: IBGE (2019, documento on-line).

Esse reconhecimento é necessário para que se compreenda como o pas-


sado e as relações de dominação e poder influenciam as dinâmicas sociais
contemporâneas, especialmente aquelas nos espaços educacionais e de
trabalho. No entanto, isso não elimina as facetas reais de integração entre
as culturas que modelam a sociedade brasileira contemporânea, sobretudo
por meio do idioma, da culinária e da música.

A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado


numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes dife-
renciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de
sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua
múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais,
culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de
autonomia frente à nação. As únicas exceções são algumas microetnias tribais que
sobreviveram como ilhas, cercadas pela população brasileira. Ou que, vivendo para
além das fronteiras da civilização, conservam sua identidade étnica. São tão peque-
nas, porém, que qualquer que seja seu destino já não podem afetar à macroetnia
em que estão contidas. O que tenham os brasileiros de singular em relação aos
portugueses decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes
indígenas e africanas; da proporção particular em que elas se congregaram no
Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos
objetivos de produção que as engajou e reuniu (RIBEIRO, 2016, p. 21).

A sociedade multiétnica não homogênea, mas em unicidade, como pontua


Ribeiro, exprime suas relações sociais e a interpretação das manifestações
culturais e simbólicas na contemporaneidade por meio das dinâmicas de
classe e poder orientadas pelo capitalismo periférico, dependente e neo-
liberal. De acordo com Florestan Fernandes (1978), portanto, a sociedade
Formação sociocultural do Brasil I 17

brasileira organiza suas relações sociais por meio das relações de poder
advindas da estratificação social, das associações entre classe e poder, já que
os trabalhadores estariam sujeitos à lógica e ao projeto político das elites.
Porém, as relações de poder entre as classes no Brasil seriam, segundo esse
sociólogo, produto direto das relações raciais determinadas pelo processo
de colonização.

A luta dos povos indígenas na resistência à ditadura militar ocor-


rida entre 1964 e 1985 se deu em um contexto em que a cultura, a
identidade e as religiões indígenas foram ameaçadas de forma violenta por um
modo de organização social em que a elite estruturalmente branca impunha,
dessa vez segundo intenções e valores políticos, a sua própria visão de mundo.
Para saber mais, acesse o site Memórias da Ditadura, verbete “Repressão e
resistência”, subverbete “Indígenas”.

Assim, compreender as dinâmicas socioculturais no Brasil é um trabalho


em dois níveis, que têm características próprias, mas que nesse contexto não
se separam, porque foram forjados segundo a mesma lógica: as relações de
classe e as relações raciais exprimem um modelo capitalista de exploração
racista.
A noção de pertencimento e a identidade nacional foram legitimadas com
o passar do tempo no país. No entanto, é preciso ter em mente a inexistência
da homogeneidade cultural que seria produto da pretensa igualdade racial,
comprovadamente uma falácia no Brasil, ainda que atualmente haja muito
trabalho de grupos transversais na defesa de plataformas e políticas públicas
que assegurem a equidade social.

As marcas do racismo estrutural permanecem reproduzidas na so-


ciedade contemporânea brasileira, uma vez que as contribuições dos
povos negros parecem validadas pelas elites somente — e momentaneamente
— quando sobressaem-se em manifestações artísticas ou esportivas, relegando
à população preta brasileira os maiores índices de encarceramento, os maiores
índices de violência obstétrica e os menores índices de acesso à educação
superior. Reconhecer a violência escravocrata e, a partir de tal reconhecimento,
desenvolver políticas públicas de reparação pode ser um caminho para que se
alcance a equidade étnica na sociedade brasileira.
Na letra da canção “Identidade”, de autoria do sambista Jorge Aragão, você
pode observar um reflexo claro da segregação, do racismo estrutural e da
violência simbólica expressas na marginalização de pessoas negras quando têm
18 Formação sociocultural do Brasil I

de utilizar elevadores de serviço ao invés do social, uma separação tipicamente


brasileira:
Se preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade
Elevador é quase um templo
Exemplo pra minar teu sono
Sai desse compromisso
Não vai no de serviço
Se o social tem dono, não vai
Quem cede a vez não quer vitória
Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história (ARAGÃO, 2021, documento on-line).

Referências
ARAGÃO, J. Identidade. In: LETRAS. [S. l.: s. n.], 2021. Disponível em: https://www.letras.
mus.br/jorge-aragao/77012/. Acesso em: 31 ago. 2021.
BASTIDE, R. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BERNARDES, A. G. M. Urbanismo mesoamericano pré-colombiano: Teotihuacán. 2008.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) — Universidade de Brasília, Brasília,
2008. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/11291/1/2008_An-
dreaGoncalvesMoreiraBernardes.pdf. Acesso em: 31 ago. 2021.
CARNAVAL 2020: quando tocar samba dava cadeia no Brasil. BBC News Brasil, 21 fev.
2020. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/arte-e-cultura/carnaval-2020-
-quando-tocar-samba-dava-cadeia-no-brasil,f4e5777d6b8e6820648c338bb1485afe-
p9f6bszg.html. Acesso em: 31 ago. 2021.
CARNEIRO, B. A cultura negra para além da escravidão. In: COMBATE racismo ambiental.
[S. l.: s. n.], 2020. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2020/04/23/a-cultura-
-negra-para-alem-da-escravidao. Acesso em: 31 ago. 2021.
COLAVITE, A. P.; BARROS, M. V. F. Geoprocessamento aplicado a estudos do Caminho de
Peabiru. Revista da ANPEGE, v. 5, p. 86–105, 2009. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.
br/index.php/anpege/article/view/6590/3590. Acesso em: 31 ago. 2021.
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Tereza de Benguela, a Rainha Tereza. Brasília: Fun-
dação Cultural Palmares, 2017. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=46450.
Acesso em: 31 ago. 2021.
GASPAR, E. Falando banto. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
IBGE. Desigualdades sociais por cor e raça no Brasil. Estudos e Pesquisas: informação
demográfica e socioeconômica n. 41, p. 1–12, 2019. Disponível em: https://biblioteca.
ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 31 ago. 2021.
FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978.
FLORENTINO, M. G. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África
e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
Formação sociocultural do Brasil I 19

ROMÃO, T. L. C. Sicretismo religioso como estratégia de sobrevivência transnacional


e translacional: divindades africanas e santos católicos. Trabalhos em Linguística
Aplicada, n. 57.1, p. 353–381, jan./abr. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
tla/a/BYNWpsPRxzMYh4gGGCwH5Vk/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 31 ago. 2021.
MORSE, R. Formação Histórica de São Paulo: da comunidade a metrópole. 3. ed. São
Paulo: Difusão Européia de Livro, 1970.
MORENO, J. C. Revisitando o conceito de identidade nacional. In: RODRIGUES, C. C.; LUCA,
T. R.; GUIMARÃES, V. (org.). Identidades brasileiras: composições e recomposições. São
Paulo: Editora UNESP; Cultura Acadêmica, 2014. p. 7–29. Disponível em: http://books.
scielo.org/id/h5jt2/pdf/rodrigues-9788579835155-03.pdf. Acesso em: 31 ago. 2021.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Global
Editora, 2016.

Leituras recomendadas
AQUINO, M. A.; SANTANA, V. A. Entre a informação e o conhecimento, imbricam-se tensas
relações para inclusão de negros na sociedade contemporânea. Pesquisa Brasileira
em Ciência da Informação e Biblioteconomia, v. 6, n. 1, p. 41–51, 2012. Disponível em:
http://www.brapci.inf.br/_repositorio/2011/07/pdf_640b99a40d_0017677.pdf. Acesso
em: 31 ago. 2021.
BRASIL. Fundação Nacional do Índio. 6º Fórum Nacional de Lideranças Indígenas.
Brasília: FUNAI, [2021?]. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/comuni-
cacao/galeria-de-imagens/2806-6-forum-nacional-de-liderancas-indigenas. Acesso
em: 31 ago. 2021.
CARVALHO, S. Os povos da América Latina Antes da invasão Europeia. Dossiê Terra
indígena, [202-?]. Disponível em: http://fundacaoarapora.org.br/moitara/wp-content/
uploads/2017/05/V3-49-54-OS-POVOS-DA-AM%C3%89RICA-ANTES-DA-INVAS%C3%83O-
-EUROP%C3%89IA.pdf. Acesso em: 31 ago. 2021.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD). Características
gerais dos domicílios e dos moradores 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101707_informativo.pdf. Acesso
em: 31 ago. 2021.
JESUS, C. M. de. Quarto de despejo. São Paulo:‫ ‏‬Ática, 2021.
MEMÓRIAS DA DITADURA. Indígenas. [S. l.: s. n., 202-?]. Disponível em: http://memo-
riasdaditadura.org.br/indigenas/. Acesso em: 31 ago. 2021.
OLIVEIRA, R. F. de O.; PARAÍSO, M. H. B. Tecendo memórias: identidade e resistência
indígena no Planalto da Conquista nos fins do século XX e princípios do século XXI.
Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiros, ano 1, n. 2, p. 1–20,
2011. Disponível em: http://uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/uploads/20170427132808.
pdf. Acesso em: 31 ago. 2021.
ORDEM DOS AVOGADOS DO BRASIL. Comissões: igualdade racial. São Paulo: OAB/
SP, 2021. Disponível em: https://www.oabsp.org.br/comissoes2010/igualdade-racial.
Acesso em: 31 ago. 2021.
SANTOS, M. A. Contribuição do Negro para a cultura brasileira. RTES: Temas em Educação
e Saúde, v. 12, n. 2, p. 217–229, 2016. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/
tes/article/download/10229/6668. Acesso em: 31 ago. 2021.
20 Formação sociocultural do Brasil I

SOCIEDADES indígenas brasileiras no século XVI. Rio de Janeiro: Multirio, [202-?]. Disponí-
vel em: http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo01/soc_indigenas.html#imagem2-
13-amp.html. Acesso em: 31 ago. 2021.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 107

A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX 1

Rafael de Bivar Marquese

RESUMO

O artigo examina as relações entre o tráfico negreiro transatlân-


tico para o Brasil, os padrões de alforria e a criação de oportunidades para a resistência escrava coletiva (formação de
quilombos e revoltas em larga escala), do final do século XVII à primeira metade do século XIX. Valendo-se das propo-
sições teóricas de Patterson e Kopytoff, sugere uma interpretação para o sentido sistêmico do escravismo brasileiro na
longa duração, sem dissociar a condição escrava da condição liberta, nem o tráfico das manumissões.

PALAVRAS-CHAVE: escravidão; história do Brasil; tráfico negreiro;


alforrias; resistência escrava.

SUMMARY

The article examines the relationships between the transa-


tlantic slave trade for Brazil, manumissions patterns and the creation of opportunities for collective slave resistance
(formation of maroons communities and large revolts), from the end of the XVIIth century to the first half of the XIXth
century. Based on the theoretical propositions of Patterson and Kopytoff, it suggests an interpretation for the Brazilian
slave system in the long duration without dissociating the slave condition from the freedman one and the slave trade
from the manumissions.

KEYWORDS: slavery; Brazilian history; transatlantic slave trade;


manumissions; slave resistance.

O ENIGMA DE PALMARES

[1] Texto originalmente apresen- A Guerra dos Palmares foi um dos episódios de resistên-
tado ao I Encontro entre Historiado-
res Colombianos e Brasileiros, pro-
cia escrava mais notáveis na história da escravidão do Novo Mundo.
movido pelo Ibraco em Bogotá, Ainda que as estimativas das fontes coevas e dos historiadores sobre o
Colômbia,em agosto de 2005. número total de habitantes divirjam bastante — de um mínimo de 6 mil
a um máximo de 30 mil pessoas –,não há como negar que as comunida-
des palmarinas, dada a extensão territorial e a quantidade de escravos
fugitivos que acolheram, tornaram-se o maior quilombo na história da
América portuguesa. Suas origens datam do início do século XVII, mas
sua formação como grande núcleo quilombola se deu apenas no con-
texto da invasão holandesa de Pernambuco,quando diversos escravos se
aproveitaram das desordens militares e fugiram para o sul da capitania.

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 107


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 108

As comunidades rebeldes que então se organizaram resistiram a diver-


sas incursões da Companhia das Índias Ocidentais e, após a expulsão
dos holandeses,a ataques das tropas luso-brasileiras.
Nas décadas de 1670 e 1680, os africanos, crioulos e descendentes
alojados em Palmares eram vistos pelas autoridades metropolitanas
como “holandeses de outra cor”, por conta da ameaça que representa-
vam à ordem colonial portuguesa na América.Sua derrota pela força das
armas só ocorreu em meados da década seguinte,após um conflito secu-
lar com dois dos maiores poderes coloniais europeus do mundo
moderno. Antes da revolução escrava de São Domingos (1791-1804) e
das grandes revoltas abolicionistas do Caribe inglês no primeiro terço
do século XIX, o episódio de Palmares só teve equivalente na I Guerra
Maroonda Jamaica (1655-1739) e na Guerra dos Saramaca no Suriname
(1685-1762). Nesses dois casos, entretanto, os quilombolas consegui-
ram vencer as tropas repressoras, forçando autoridades e senhores a
reconhecerem a liberdade dos grupos revoltosos2. [2] Sobre Palmares, ver, de Décio
A história da derrota do grande quilombo palmarino deu origem a Freitas:Palmares, a guerra dos escravos.
Rio de Janeiro: Graal, 1990 (1a ed.
um enigma que há certo tempo chama a atenção dos especialistas em 1971) e República de Palmares. Pesquisa
escravidão brasileira:por que não houve outros Palmares na história do e comentários em documentos históricos
do século XVII. Maceió: Editora da
Brasil? O ponto é importante,pois a atividade quilombola se ampliou no Ufal, 2004. Sobre a resistência
século XVIII, com o aumento do volume do tráfico negreiro transatlân- escrava no Caribe inglês e francês e no
Suriname, ver Patterson, Orlando.
tico e a formação dos núcleos mineratórios no interior do território, “Slavery and slave revolts: a socio-
assumindo diferentes modalidades de norte a sul da América portu- historical analysis of the First
guesa. Afora as numerosas comunidades quilombolas, de dimensões e Maroon War, 1655-1740”. Social and
Economic Studies, vol. 19, no 3, set.
duração variáveis, o Brasil viu aparecer no início do século XIX outra 1970; Craton, Michael. Testing the
forma de resistência escrava coletiva, presente no Caribe inglês havia chains. Resistance to slavery in the Bri-
tish West Indies. Ithaca: Cornell Uni-
bom tempo:o ciclo de revoltas africanas que agitou o Recôncavo Baiano versity Press, 1982; Price, Richard.
entre 1807 e 18353. First-Time. The historical vision of an
Afro-American people. Baltimore: The
A resposta que os historiadores forneceram ao enigma aponta para a Johns Hopkins University Press,
mudança na legislação escravista portuguesa. Após Palmares, dizem 1983; Dubois, Laurent. Avengers of the
eles, houve uma progressiva especificação das funções do capitão-do- New World. The story of the Haitian
revolution. Cambridge, MA: Belknap
mato — responsável legal nas diferentes localidades da América portu- Press,2004.
guesa pela captura de escravos fugitivos — e delimitação, nas letras da
lei, do que seria uma comunidade quilombola. A institucionalização da [3] Sobre a atividade quilombola em
Minas Gerais, ver Guimarães, Carlos
figura do capitão-do-mato e a definição de quilombo como qualquer Magno. Uma negação da ordem escra-
ajuntamento composto de alguns poucos escravos fugitivos teriam vista. Quilombos em Minas Gerais no
século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988;
tolhido, já no nascedouro, a formação de comunidades rebeldes com as sobre o ciclo de revoltas na Bahia, ver
proporções de Palmares 4. Creio, no entanto, ser possível avançar outra Reis, João José. Rebelião escrava no
explicação, que — sem negar a fornecida pelos historiadores que trata- brasil. A história do levante dos malês em
1835. Ed. revista. São Paulo: Compa-
ram do assunto — recorre à configuração que o escravismo brasileiro nhia das Letras,2003.
adquiriu a partir do final do século XVII.
O objetivo deste ensaio é justamente entender por que não houve [4] Essa é a explicação proposta por
Stuart Schwartz,que encontrou largo
outros Palmares na história do Brasil. Para tanto, concentrarei minha desenvolvimento no trabalho de Sil-
atenção nas relações entre tráfico negreiro transatlântico, alforrias e via Lara. Ver, respectivamente desses
dois historiadores, os ensaios “Re-
criação de oportunidades para a resistência escrava coletiva (como a pensando Palmares: resistência es-
formação de quilombos e as revoltas em larga escala),do final do século crava na Colônia”. In: Escravos, rocei-

108 A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL ❙❙ Rafael de Bivar Marquese


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 109

ros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001, e XVII à primeira metade do século XIX. A idéia é de que eventos como
“Do singular ao plural: Palmares,
capitães-do-mato e o governo dos
Palmares, a Guerra Maroon jamaicana ou a campanha dos Saramaca
escravos”. In: Reis, João José & Go- estiveram diretamente ligados à configuração de determinado tipo de
mes, Flávio dos Santos (orgs.). Liber- sistema escravista,que denominarei “escravismo de plantation”.Nesse
dade por um fio. História dos quilombos
no Brasil. São Paulo: Companhia das sistema,a produção econômica se concentrava em um único produto e
Letras,1996. o quadro social era marcado por desbalanço demográfico entre brancos
livres e escravos negros, amplo predomínio de africanos nas escrava-
rias, poucas oportunidades para a obtenção de alforria e altas taxas de
absenteísmo senhorial.
Um sistema escravista dessa natureza, típico das colônias caribe-
nhas inglesas e francesas do século XVIII,e cujas características básicas
tiveram desenvolvimento apenas parcial na América portuguesa da pri-
meira metade do século XVII, não mais encontrou espaço nos dois
séculos subseqüentes da história do Brasil. Com a mineração, essa
mudança de fundo no caráter do escravismo brasileiro apenas se acen-
tuou. A instituição se difundiu social e espacialmente, com a dissemi-
nação da posse de escravos pelo tecido social e a criação de hierarquias
étnicas e culturais bastante complexas. Antigas áreas de plantation,
como a Zona da Mata pernambucana e o Recôncavo Baiano, mesmo
mantendo a produção escravista açucareira, verificaram igualmente
[5] A idéia que subjaz a essa diferen- essas transformações5.
ciação deriva em parte da proposta de A partir de fim do século XVII, o sistema escravista brasileiro pas-
Robin Blackburn para a contraposição
entre “escravidão barroca” e “escravi- sou a escorar-se em uma estreita articulação entre tráfico transatlân-
dão moderna”. Ver The making of New tico de escravos bastante volumoso e número constante de alforrias.
World slavery. From the Baroque to the
Modern, 1492-1800. Londres: Verso, Nessa equação, era possível aumentar a intensidade do tráfico, com a
1997.Blackburn,no entanto,não levou introdução de grandes quantidades de africanos escravizados, sem
em devida conta a inserção das regiões
de “escravismo barroco” na moderni-
colocar em risco a ordem social escravista. Logo após a derrota de Pal-
dade, dentro da lógica do mercado mares, reduziram-se substancialmente as oportunidades de sucesso
mundial.Ver,a respeito,as críticas per- para as revoltas escravas e os grandes quilombos no Brasil. Não por
tinentes de Stuart Schwartz em “-
Review of the Making of New World Sla- acaso, com exceção de uma breve ocasião na década de 1670, ainda no
very: From the Baroque to the Modern, curso da Guerra dos Palmares,as autoridades coloniais portuguesas e
1492-1800, by Robin Blackburn”. In:
William and Mary Quarterly, série 3,vol. os representantes imperiais brasileiros sempre se recusaram a nego-
LV,no 3,jul.1998. ciar com revoltosos e quilombolas.Essa posição política,que traduzia
o quadro das relações de força entre senhores e escravos no Brasil,teve
como contraponto a atitude de ingleses e holandeses,forçados a reco-
nhecer em tratados de paz as conquistas que Maroon e Saramaca obti-
veram em campo de batalha.
É importante salientar que faz pelo menos três décadas os historia-
dores têm anotado a relação estreita que houve na história do Brasil entre
[6] Ver, a respeito, os seguintes tra-
balhos:Schwartz,Stuart.“Alforria na
o volume do tráfico negreiro transatlântico e as altas taxas de alforrias6.
Bahia, 1684-1745”. In: Escravos, rocei- O que falta, acredito, é fornecer um enquadramento teórico mais subs-
ros e rebeldes, pp. 165-212; Slenes, tantivo para essa articulação,relacionando-a ao limitado campo de pos-
Robert.The demography and economics
of Brazilian slavery: 1850-1888. Tese de sibilidades de sucesso para a resistência escrava coletiva no Brasil.
doutorado em História. Stanford: Valendo-me dos estudos disponíveis, procurarei ler os resultados à
Stanford University, 1976; Alencas-
tro, Luiz Felipe de. “La traite négrière luz das proposições teóricas de Orlando Patterson e Igor Kopytoff, que
et l’unité nationale brésilienne”. não secionam a experiência do escravo da experiência do forro; ambos

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 109


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 110

encaram a escravização, a situação de escravidão e a manumissão como Revue Française d’Histoire d’Outre-
Mer, nos 244-245, 1979; Eisenberg,
partes de um mesmo processo institucional.De acordo com a sugestiva Peter. “Ficando livre: as alforrias em
formulação de Kopytoff, Campinas no século XIX”. In: Ho-
mens esquecidos. Escravos e trabalhado-
res livres no Brasil, séculos XVIII e XIX.
a escravidão não deve ser definida como um status,mas sim como um processo Campinas: Editora da Unicamp,
de transformação de status que pode prolongar-se uma vida inteira e inclusive 1989; Karash, Mary. A vida dos escra-
vos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São
estender-se para as gerações seguintes.O escravo começa como um estrangeiro Paulo: Companhia das Letras, 2000;
[outsider] social e passa por um processo para se tornar um membro [insi- Mattos, Hebe Maria. “A escravidão
der].Um indivíduo,despido de sua identidade social prévia,é colocado à mar- moderna nos quadros do Império
português: o Antigo Regime em pers-
gem de um novo grupo social que lhe dá uma nova identidade social. A estra- pectiva atlântica”. In: Bicalho, M. F.;
neidade [outsidedness],então,é sociológica e não étnica 7. Gouvêa, M. de F. & Fragoso, João
(orgs.) Antigo Regime nos Trópicos. A
dinâmica imperial portuguesa (séculos
Com base nessa proposição, tentarei sugerir um esquema interpre- XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2001; Florentino, Ma-
tativo para o sentido sistêmico do escravismo brasileiro na longa dura- nolo. “De escravos, forros e fujões no
ção, sem dissociar a condição escrava da condição liberta e o tráfico Rio de Janeiro Imperial”.Revista USP.
negreiro das alforrias.Como em todo ensaio,há sempre o risco derivado Dossiê Brasil Imperial, no 58, jul.-
ago.2003.
do alto grau de generalização,afora o fato de esse sentido sistêmico não
ter sido de todo claro aos contemporâneos.A tomada de consciência do [7] Kopytoff, Igor. “Slavery”. Annual
Review of Anthropology, vol.11, 1982,
processo institucional do escravismo brasileiro ocorreu apenas no início pp. 221-22. Ver também Patterson,
do século XIX, mais especificamente no contexto da independência, Orlando. Slavery and social death. A
comparative study. Cambridge, Mass.:
tanto pelos viajantes estrangeiros que então percorriam o território bra- Harvard University Press,1982.
sileiro como, sobretudo, pelos construtores do Império do Brasil. Tal é
meu ponto de chegada.Noutros termos,pretendo demonstrar que a per-
cepção da experiência histórica colonial,que combinava tráfico negreiro
e alforrias,teve papel importante para definir o porvir da escravidão nos
quadros do Estado nacional brasileiro.

ESCRAVISMO DE PLANTATION

Nos séculos que se seguiram ao colapso do Império romano,a escra-


vidão não desapareceu por completo na Europa ocidental e mediterrâ-
nea. No entanto, no decorrer da Baixa Idade Média, a escravidão como
sistema de trabalho deixou de existir no Ocidente europeu,excetuando-
se os países do Mediterrâneo, isto é, das penínsulas Ibérica e Itálica.
Mesmo aí, ela foi, nos séculos XIV e XV, tão-somente uma instituição
urbana,com importância limitada no conjunto da economia;o emprego
em larga escala de cativos na produção agrícola havia se tornado residual
nestas últimas regiões.A recriação do escravismo,com o emprego mas-
sivo de escravos nas tarefas agrícolas, seria realizada por portugueses e
espanhóis só após a segunda metade do século XV,com a introdução da
produção açucareira nas ilhas atlânticas orientais (Canárias, Madeira,
São Tomé),e,no século XVI,com a colonização da América8. [8] Cf.Miller,Joseph C.“O Atlântico
Baseada na experiência acumulada com o fabrico do produto nas escravista: açúcar, escravos e enge-
nhos”. Afro-Ásia,nos 19-20,1997.
ilhas da Madeira e de São Tomé,a Coroa portuguesa procurou estimular
a construção de unidades açucareiras no Brasil desde a década de 1530.
Mas, até os anos 1570, os colonos encontraram grandes dificuldades

110 A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL ❙❙ Rafael de Bivar Marquese


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 111

para fundar em bases sólidas uma rede de engenhos no litoral,como pro-


blemas com o recrutamento da mão-de-obra e falta de capitais para
financiar a montagem dos engenhos.Ao serem superadas tais dificulda-
des, com atrelamento da produção brasileira aos centros mercantis do
Norte da Europa e articulação do tráfico de escravos entre África e Brasil,
tornou-se viável o arranque definitivo da indústria de açúcar escravista
da América portuguesa,o que ocorreu entre 1580 e 1620,quando o cres-
cimento acelerado da produção brasileira ultrapassou todas as outras
regiões abastecedoras do mercado europeu.
Cabem aqui algumas palavras sobre o papel que o tráfico transatlân-
tico de africanos desempenhou no deslanche da produção açucareira
brasileira. A mão-de-obra empregada na montagem dos engenhos de
açúcar no Brasil foi predominantemente indígena.Uma parte dos índios
(recrutados em aldeamentos jesuíticos no litoral) trabalhava sob regime
de assalariamento,mas a maioria era submetida à escravidão.Os primei-
ros escravos africanos começaram a ser importados em meados do
século XVI; seu emprego nos engenhos brasileiros, contudo, ocorria
basicamente nas atividades especializadas. Por esse motivo, eram bem
mais caros que os indígenas: um escravo africano custava, na segunda
metade do século XVI, cerca de três vezes mais que um escravo índio.
Após 1560, com a ocorrência de várias epidemias no litoral brasileiro
(como sarampo e varíola),os escravos índios passaram a morrer em pro-
porções alarmantes, o que exigia reposição constante da força de traba-
lho nos engenhos.Na década seguinte,em resposta à pressão dos jesuí-
tas, a Coroa portuguesa promulgou leis que coibiam de forma parcial a
escravização de índios.Ao mesmo tempo,os portugueses aprimoravam
o funcionamento do tráfico negreiro transatlântico, sobretudo após a
conquista definitiva de Angola em fins do século XVI. Os números do
tráfico bem o demonstram:entre 1576 e 1600,desembarcaram em por-
tos brasileiros cerca de 40 mil africanos escravizados; no quarto de
século seguinte (1601-1625),esse volume mais que triplicou,passando
para cerca de 150 mil os africanos aportados como escravos na América
portuguesa, a maior parte deles destinada a trabalhos em canaviais e
[9] Cf. Schwartz, Stuart. Segredos in- engenhos de açúcar 9.
ternos. Engenhos e escravos na sociedade O sucesso da produção escravista de açúcar da América portuguesa
colonial, 1550-1835. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1988, pp. 22-73; logo atraiu a atenção dos demais poderes coloniais europeus. Já em fim
Alencastro, Luiz Felipe de. O trato dos do século XVI, era crescente o envolvimento de negociantes ingleses e
viventes. Formação do Brasil no Atlân-
tico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: holandeses no comércio açucareiro entre Brasil e Europa. As invasões
Companhia das Letras, 2000, p. 69. holandesas da Bahia (1624) e Pernambuco (1630) foram em grande
Todos os dados sobre o tráfico transa-
tlântico de africanos para o Brasil
parte motivadas pelo dinamismo da economia açucareira dessas capita-
doravante citados foram retirados nias. Os membros e acionistas da Companhia das Índias Ocidentais
dessa fonte. holandesa (WIC),contudo,na época em que comandaram a invasão das
regiões produtoras de açúcar no Brasil, desconheciam por completo os
segredos da produção do artigo, que se resumiam basicamente a três
aspectos:as técnicas de processamento da cana-de-açúcar,as técnicas de
administração dos escravos e a organização do tráfico negreiro transa-

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 111


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 112

tlântico.Cedo os invasores perceberam a estreita relação geoeconômica


que havia entre a África e as regiões de plantation escravista na América.
De nada valeriam as possessões brasileiras se não se conquistassem os
pontos que forneciam escravos do outro lado do Atlântico. Por esse
motivo, sob o comando de Maurício de Nassau, a WIC promoveu em
1638 a conquista do entreposto português de São Jorge da Mina e em
1641 a invasão de Angola10. [10] Cf. Alencastro, O trato dos viven-
tes, pp.188-246; Marquese, Rafael de
O domínio holandês em Pernambuco durou pouco. Em 1645, eclo- Bivar. Administração & escravidão.
diu a revolta dos colonos luso-brasileiros,que levaria à expulsão defini- Idéias sobre a gestão da agricultura
tiva dos holandeses da América portuguesa em 1654; antes disso, em escravista brasileira. São Paulo: Huci-
tec, 1999, pp. 42-49; Puntoni, Pedro.
1648, os colonos luso-brasileiros do Rio de Janeiro se responsabiliza- A mísera sorte. A escravidão africana no
ram diretamente pela expulsão dos holandeses de Angola. Com o fra- Brasil holandês e as guerras do tráfico no
Atlântico Sul, 1621-1648. São Paulo:
casso da experiência brasileira e angolana, a WIC deixou de priorizar a Hucitec,1999.
produção de açúcar e passou a direcionar-se para a compra do produto
obtido em regiões que não estavam sob seu comando direto.Nesse sen-
tido, os comerciantes holandeses procuraram estimular os colonos
ingleses e franceses do Caribe a produzir açúcar.Ainda durante a ocupa-
ção do Brasil, na segunda metade da década de 1640, os mercadores
holandeses transmitiram as técnicas dos engenhos brasileiros aos colo-
nos ingleses de Barbados e aos franceses da Martinica e Guadalupe,além
de abastecê-los com escravos trazidos dos entrepostos da WIC no golfo
da Guiné.A partir da década de 1660,a produção de açúcar com mão-de-
obra escrava nas ilhas inglesas e francesas verificou crescimento notável,
além de os mercadores desses dois países passarem a envolver-se direta-
mente no tráfico negreiro transatlântico. No começo do século XVIII, a
paisagem física e humana do Caribe havia se modificado completa-
mente:as ilhas converteram-se em imensos canaviais e a população tor-
nou-se esmagadoramente negra,quase toda ela escravizada11. [11] Cf.Emmer,P.C.“The Dutch and
No curso das guerras contra os holandeses no Atlântico Sul,o abas- the making of the second atlantic
system”. In: Solow, B. (org.). Slavery
tecimento de escravos aos engenhos brasileiros diminuiu de forma sen- and the rise of the Atlantic System.
sível. Se, entre 1601 e 1625, haviam sido introduzidos cerca de 150 mil Cambridge: Cambridge University
Press, 1991.
africanos escravizados na América portuguesa, no quarto de século
seguinte esse volume se reduziu para apenas 50 mil. De todo modo, a
invasão holandesa de Pernambuco e os conflitos que se seguiram contra
os colonos luso-brasileiros abriram boas oportunidades de resistência
aos escravos que haviam desembarcado em grande número no primeiro
quarto do século XVII. Não por acaso, o aporte cultural decisivo para a
configuração política do reino “neoafricano” de Palmares foi fornecido
pelos grupos humanos originários do Centro-Sul da África,exatamente
a zona em que os traficantes portugueses mais operaram a partir de fim
do século XVI 12. [12] Cf. Schwartz, “Repensando Pal-
A dimensão e a força do quilombo de Palmares se explicam não ape- mares”,pp.244-55.

nas pela conjuntura do conflito imperial entre portugueses e holande-


ses, mas pela própria demografia da região das plantations açucareiras
pernambucanas. Qualquer assertiva categórica sobre a composição da
população colonial antes do século XVIII é perigosa, mas creio que não

112 A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL ❙❙ Rafael de Bivar Marquese


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 113

há riscos em afirmar que quando os holandeses invadiram a capitania de


Pernambuco, os escravos negros predominavam em termos numéricos
sobre a população branca — e mesmo sobre os indígenas “domestica-
dos”.Pode-se afirmar também,com base nos poucos dados disponíveis,
que a população negra livre era relativamente diminuta. Tratava-se,
enfim,de um quadro demográfico bastante propício à eclosão de movi-
mentos coletivos de resistência escrava,como a experiência posterior do
Caribe inglês bem o demonstraria.
Após a expulsão dos holandeses, as tropas luso-brasileiras se
encarregaram do combate sem trégua aos palmarinos. O grande pro-
blema a ser enfrentado pelos colonos, no entanto, encontrava-se na
esfera econômica. A rápida montagem do complexo açucareiro escra-
vista nas Antilhas a partir da década de 1650 logo trouxe forte impacto
negativo para a economia açucareira na América portuguesa. O cresci-
mento das produções inglesa e francesa no Caribe derrubou o preço do
açúcar nos mercados europeus, ao mesmo tempo que a demanda por
trabalhadores negros nas plantations antilhanas aumentou os preços
dos escravos no litoral africano. Além disso, os senhores de engenho
luso-brasileiros tiveram que enfrentar outros dois problemas. Em pri-
meiro lugar,devido às políticas mercantilistas adotadas pela Inglaterra
e pela França na segunda metade do século XVII, que procuravam esti-
mular a produção antilhana garantindo-lhe proteções monopolistas,o
açúcar brasileiro foi praticamente excluído desses dois mercados euro-
peus. Em segundo lugar, entre 1640 e 1668, Portugal travou uma dura
guerra contra a Espanha em prol da independência,no exato momento
em que o “Império da Pimenta” oriental entrava em colapso. Na
segunda metade do século XVII,as possessões do Novo Mundo se tor-
naram o sustentáculo econômico de Portugal. Uma tributação pesada
sobre o açúcar brasileiro foi criada então para dar conta dos gastos com
a diplomacia e a defesa do Reino.
Tais atribulações não impediram a sobrevivência da economia açu-
careira na América portuguesa.Em que pesem a desorganização trazida
pelas guerras do Atlântico Sul entre as décadas de 1620 e 1650,a elevada
taxação pós-1650,a concorrência antilhana e a restrição do acesso a cer-
tos mercados europeus,os senhores de engenho luso-brasileiros conse-
guiram manter a produção de açúcar em patamares estáveis.Para tanto,
foi vital a consolidação do sistema atlântico bipolar unindo a África aos
portos brasileiros, assegurada pela reconquista de Angola em 1648. Na
segunda metade do século XVII, foram introduzidos cerca de 360 mil
africanos escravizados no Brasil.Tal sistema,ao garantir um fluxo contí-
nuo de escravos a baixo custo para os engenhos brasileiros, viabilizou a
atividade econômica açucareira da Colônia em uma conjuntura interna-
cional bastante adversa.
Algumas evidências sugerem que, naquele período conturbado da
economia açucareira, as alforrias ganharam impulso. É certo que a
manumissão de escravos se fez presente na Colônia desde os primeiros

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 113


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 114

anos. No entanto, a existência de documentação seriada da prática ape-


nas na segunda metade do século XVII talvez indique que ela tenha se
disseminado só após essa época. Na historiografia da escravidão brasi-
leira,um dos primeiros estudos feitos sobre o tema tratou exatamente da
Bahia — ao lado de Pernambuco,o centro da economia açucareira colo-
nial — entre 1684 e 1745. O pesquisador Stuart Schwartz registrou e
analisou uma série de práticas relacionadas à manumissão, as quais
depois se repetiriam em diferentes tempos e espaços na América portu-
guesa e no Império do Brasil. Dentre as mais de mil cartas de alforrias
examinadas pelo autor,houve uma proporção constante de duas mulhe-
res libertadas para cada homem.Dado o amplo predomínio numérico de
homens no tráfico transatlântico e na própria composição das escrava-
rias, escreve Schwartz, “as mulheres obtinham liberdade numa propor-
ção muito maior do que as expectativas estatísticas”. Igualmente privi-
legiados do ponto de vista estatístico foram os escravos nascidos no
Brasil, isto é, os crioulos e, sobretudo, os pardos: este grupo constituiu
69% do universo das alforrias, contra apenas 31% de africanos liberta-
dos.Houve,por fim,grande proporção de crianças e adolescentes meno-
res de 14 anos entre os alforriados. A tendência predominante de alfor-
riar mulheres escravas em idade fértil, conclui Schwartz, comprometeu
as possibilidades de reprodução demográfica auto-sustentável da escra-
vidão brasileira, o que acabou por acentuar o papel estrutural do tráfico
negreiro transatlântico para repor a força de trabalho escrava13. [13] Cf. Schwartz, “Alforria na Bahia,
1684-1745”,pp.165-212.

MINERAÇÃO

Esse padrão demográfico se consolidou com as descobertas aurífe-


ras na virada do século XVII para o XVIII, ampliando-se geografica-
mente.A atração que a possibilidade de enriquecimento rápido exerceu
sobre a população metropolitana e colonial foi imensa,levando grandes
contingentes humanos a se transferirem para a nova região das minas.
Esse afluxo constituiu, nos termos de uma especialista, “a primeira
grande migração maciça na história demográfica brasileira”14. Afora o [14] Marcílio, Maria Luiza. “A popu-
lação do Brasil colonial”. In: Bethell,
deslocamento interno na Colônia, as minas atraíram para o Brasil um Leslie (org.). História da América
quantidade ainda maior de imigrantes portugueses, calculada em cerca Latina. Vol. 2: América Latina Colo-
de 400 mil indivíduos durante todo o século XVIII. A grande onda nial. São Paulo: Edusp/Funag, 1999,
p.321.
migratória para a região,contudo,foi compulsória.O volume do tráfico
transatlântico de escravos para a América portuguesa,que já era o maior
do Novo Mundo, duplicou na primeira metade do Setecentos. Entre
1701 e 1720,desembarcaram nos portos brasileiros cerca de 292 mil afri-
canos escravizados,em sua maioria destinados às minas de ouro.Entre
1720 e 1741, novo aumento: 312,4 mil indivíduos. Nas duas décadas
seguintes, o tráfico atingiu seu pico máximo: 354 mil africanos escravi-
zados foram introduzidos na América portuguesa entre 1741 e 1760.
O enorme avanço territorial e demográfico da colonização portu-
guesa na América ocorrido no século XVIII se fez acompanhar por um

114 A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL ❙❙ Rafael de Bivar Marquese


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 115

aumento correspondente das tensões econômicas, sociais e políticas.


No caso específico de Minas Gerais, capitania criada em 1720, o pro-
cesso tumultuário de ocupação de seu território se traduziu no aguça-
mento dos conflitos: carência alimentar, que provocou fomes terríveis
nos primeiros anos e a que se sucederam ações especulativas no abaste-
cimento de gêneros de primeira necessidade para a região;embates entre
os primeiros descobridores-povoadores (paulistas) e os adventícios,
tanto da Colônia como do Reino,que explodiram na Guerra dos Emboa-
bas;esforços da Coroa para impor seu poder na região,com a criação de
vilas e a instalação de um aparato burocrático, acompanhados em con-
trapartida por resistência aguda dos colonos a tal política de normatiza-
[15] Para uma visão de conjunto,ver o ção15.Para nossos fins,no entanto,interessa ressaltar outro tipo de con-
trabalho de síntese de Souza, Laura flito social, expresso nas fugas, na formação de quilombos e em planos
de Mello & Bicalho, Maria Fernanda.
1680-1720. O império deste mundo. São mais amplos de levante escravo.
Paulo:Companhia das Letras,2000. Com efeito, diversos autores apontam que, dadas as condições par-
ticulares da atividade mineratória,os escravos tiveram aí maiores opor-
tunidades para exercer sua autonomia e resistir ao controle senhorial.A
dispersão espacial das lavras auríferas,a possibilidade de os trabalhado-
res se apropriarem de parte dos resultados da extração ou o próprio con-
trole que detinham sobre o processo de trabalho (como no caso notório
dos pretos-minas, reputados como grande mineradores no período)
ampliaram sobremaneira a autonomia escrava. Por essas razões, os
senhores recorreram com freqüência a meios não coercitivos para garan-
tir a regularidade da extração, o que, por sua vez, facilitou o acúmulo de
[16] Dentre esses estudos, veja-se numerário e a compra da alforria pelos cativos16.
com proveito Vallejos, Julio Pinto. A existência de canais para o exercício da autonomia escrava não sig-
“Slave control and slave resistance in
colonial Minas Gerais, 1700-1750”. nificou tão somente acomodação com os poderes senhoriais, mas tam-
Journal of Latin American Studies, bém maiores possibilidades para a resistência.Quanto ao último ponto,
vol.17,no 1,maio 1985.
os historiadores registram a presença de um grande número de quilom-
bos em Minas Gerais, os quais, repetidas vezes, mantiveram intensas
trocas econômicas com a sociedade que os circundava. João José Reis
indica que essa multiplicação da atividade quilombola pode ter sido
decorrência da própria sanha repressora da metrópole,pois a “definição
mesquinha” de quilombo

como o ajuntamento de cinco ou mais negros fugidos arranchados em sítios des-


povoados [...],concebida para melhor controlar as fugas,terminou por agigan-
[17] Reis, João José. “Quilombos e tar o fenômeno aos olhos de seus contemporâneos e de estudiosos posteriores 17.
revoltas escravas no Brasil”. Revista
USP. Dossiê Povo Negro — 300 anos.
no 28,dez.1995-fev.1996,p.18. Correta ou não a avaliação,o certo é que,dentre a miríade de peque-
nos ajuntamentos de fugitivos,houve pelo menos dois grandes quilom-
bos em Minas Gerais, cuja população atingiu a casa do milhar: o Qui-
lombo do Ambrósio,derrotado em 1746,e o Quilombo Grande,vencido
em 1759. Afora esses dois exemplos, os pesquisadores identificaram
ainda três planos de levante escravos (1711,1719 e 1756),todos desbara-
tados antes que eclodissem.

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 115


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 116

A questão formulada no início do ensaio volta aqui: diante desse


quadro social explosivo, com amplo predomínio numérico da popula-
ção negra sobre a população branca, por que não houve nada similar a
Palmares em Minas Gerais? A pergunta é ainda mais intrigante se lem-
brarmos que o exemplo dos palmarinos rondou a cabeça das autorida-
des públicas mineiras por toda a primeira metade do século XVIII. As
advertências feitas em 1718 pelo conde de Assumar ao rei d. João V são
famosas:segundo o governador da então capitania de São Paulo e Minas
do Ouro, o combate aos quilombolas era assunto de fundamental rele-
vância, pois dele poderia “depender a conservação ou ruína deste país
[...] porque vejo mui inclinada a negraria deste governo a termos aqui
algo semelhante aos Palmares de Pernambuco”18. [18] Apud Lara, Silvia. “Do singular
Como já vimos, a resposta corrente é de que uma dura legislação ao plural: Palmares, capitães-do-
mato e o governo dos escravos”,p.90.
repressiva,somada à institucionalização da figura do capitão-do-mato,
impediu a eclosão de novos Palmares na América portuguesa. Alguns
historiadores, no entanto, apresentam explicação alternativa. Donald
Ramos, por exemplo, sugere que a própria proliferação de pequenas
comunidades fugitivas em Minas Gerais serviu para esvaziar o poder de
contestação ao sistema escravista. O comércio ativo que muitos desses
pequenos quilombos estabeleceram com a sociedade mineratória indi-
caria que eles representaram antes uma “válvula de escape” do que uma
oposição frontal ao sistema escravista19. O que mais nos interessa na [19] Cf. Ramos, Donald. “O quilom-
bo e o sistema escravista em Minas
argumentação de Ramos, contudo, é sua lembrança de que as alforrias Gerais do século XVIII”.In:Reis,João
desempenharam papel análogo como esteio da ordem social escravista. José & Gomes, Flávio dos Santos
De fato, a prática da manumissão encontrou enorme difusão na (orgs.). Liberdade por um fio. História
dos quilombos no Brasil. São Paulo:
América portuguesa a partir do século XVIII.Não por acaso,uma parcela Companhia das Letras,1996.
substantiva dos estudos sobre o assunto tratam de Minas Gerais nesse
período.Diante da impossibilidade de passar em revista todos os traba-
lhos disponíveis ou mesmo os mais relevantes,o sumário dos resultados
apresentado recentemente por John Russell-Wood é bastante útil.Dois
pontos particularizaram a experiência mineira no conjunto da América
portuguesa:em primeiro lugar,a tendência a libertar-se mais no período
de apogeu (primeira metade do século XVIII) do que no período de retra-
ção da atividade aurífera;em segundo lugar,a presença mais freqüente da
coartação como mecanismo de libertação dos escravos, isto é, do paga-
mento da carta de alforria pelo escravo em parcelas periódicas.Em tudo
o mais que diz respeito à prática da manumissão,resume Russell-Wood,
os estudos sobre as minas setecentistas

concordam que as mulheres eram preferidas aos homens,os mulatos aos negros,
os nascidos no Brasil aos nascidos na África,os escravos urbanos aos das regiões
rurais e que muitos senhores preferiam alforriar bebês em vez de adultos20. [20] Russell-Wood, A. J. R. Escravos e
libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira,2005,p.315.
As alforrias em Minas Gerais, enfim, em linhas gerais reiteraram o
modelo que Stuart Schwartz encontrou para a Bahia já em fim do século
XVII.Esse padrão obedeceu a uma norma básica:quanto mais afastados

116 A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL ❙❙ Rafael de Bivar Marquese


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 117

da experiência do tráfico negreiro transatlântico,maiores seriam as pos-


sibilidades de os escravos e as escravas ganharem alforria;o homem afri-
cano, predominante nos tumbeiros, dificilmente a obteria, mas seus
descendentes,em uma ou mais gerações,sim.

O SISTEMA BRASILEIRO

No fim do século XVIII e início do XIX, a América portuguesa con-


tava com uma configuração demográfica ímpar no quadro das socieda-
des coloniais do Novo Mundo. Para compreendê-la devidamente, vale
dar uma olhada a vôo de pássaro nas demais colônias européias de então.
As diversas ilhas açucareiras do Caribe inglês e francês, em que
pesem as variações, apresentaram durante todo o século XVIII desba-
lanço enorme entre a quantidade de brancos e escravos negros.O predo-
mínio numérico dos últimos foi esmagador, mesmo em colônias com
maior número relativo de colonos de origem européia.Esse foi o caso de
Barbados,que,durante o Setecentos,teve sempre cerca de quatro escra-
vos negros para cada branco.Já em colônias como São Domingos,às vés-
peras da revolução a proporção era de quinze escravos para cada branco.
Tampouco o número de negros e mulatos livres chegou a equipar-se com
o de escravos.Em São Domingos,esses grupos — que seriam decisivos
para o início da revolução que acabou por levar ao término da escravidão
e do domínio francês — não somavam mais do que 30 mil indivíduos,
número equivalente ao da população branca. Na Jamaica, a proporção
[21] Cf.Watts,David.Las Indias Occi- era ainda menor21.
dentales. Modalidades de desarrollo,
cultura y cambio medioambiental desde
As colônias do Sul da América inglesa continental e,posteriomente,
1492. Madri: Alianza Editoral, 1992, os estados do Sul da República norte-americana, constituíram a outra
pp.355-70. sociedade escravista do Novo Mundo que teve caráter birracial. Se lá a
quantidade de negros e mulatos livres era tão reduzida em termos rela-
tivos como no Caribe inglês e francês,havia porém equilíbrio demográ-
fico entre a comunidade branca e a comunidade negra escravizada.
Por fim, a América espanhola exibia a maior variedade demográfica
entre as colônias européias,contando no entanto com o aporte decisivo,
nas colônias continentais, do elemento indígena. A concentração da
escravidão negra em cidades ou enclaves (como a região de Caracas, a
região de Chocó, a costa de Lima) não permite caracterizar a sociedade
[22] Sobre a escravidão na América colonial espanhola como genuinamente escravista22.
inglesa continental e na América
espanhola,ver Blackburn,The making
A América portuguesa, pelo contrário, constituía uma sociedade
of New World slavery,pp.457-508. desse tipo,mas algo distinta do que se observava no Caribe inglês e fran-
cês e no Sul dos Estados Unidos. O que a diferenciava era justamente
uma considerável população livre negra ou mestiça descendente de afri-
canos,a qual vivia lado a lado com uma quantidade substantiva de bran-
cos,e uma maioria escravizada,composta em sua maioria de africanos e
um número menor de crioulos e pardos nascidos na América. Em que
pesem as variações de capitania a capitania (no extremo norte e no
extremo sul,por exemplo,havia predomínio indígena) e as imprecisões

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 117


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 118

dos dados demográficos disponíveis,a população colonial brasileira no


início do século XIX guardava as seguintes proporções:28% de brancos,
27,8% de negros e mulatos livres,38,5% de negros e mulatos escraviza-
dos,5,7% de índios23. [23] Cf. Marcílio, “A população do
Brasil colonial”.
A gênese dessa grande população livre negra e mulata se deu,funda-
mentalmente, pela dinâmica do tráfico transatlântico de escravos aco-
plada à dinâmica da alforria.A escravização dos africanos,seu transporte
para o Brasil,as atividades que aqui desempenharam como escravos (em
geral, nas tarefas rurais e urbanas que não exigiam qualificação), a
recomposição dos laços familiares e culturais,a produção de descenden-
tes, que, em uma ou mais geração, certamente obteriam a liberdade via
manumissão: todos esses movimentos e outros mais podem ser tidos
como parte de um processo institucional em larga escala de transforma-
ção de status,tal como propuseram Patterson e Kopytoff.
Luiz Felipe de Alencastro percebeu com rara felicidade esse movi-
mento na conclusão de seu O trato dos viventes, ao examinar o que deno-
mina de a “invenção do mulato”. Segundo ele, as práticas de favoreci-
mento dos mulatos na América portuguesa podem ser observadas em
medidas como:emprego mais freqüente desse grupo em trabalhos qua-
lificados,uso militar em tropas auxiliares,e sobretudo,privilegiamento
no ato da manumissão. A esse quadro, Alencastro contrapõe a situação
na África portuguesa, onde os mulatos foram desde cedo equiparados
aos negros.Em seus termos,

houve no Brasil um processo específico que transformou a miscigenação —


simples resultado demográfico de uma relação de dominação e de exploração
— na mestiçagem,processo social complexo dando lugar a uma sociedade plu-
rirracial. O fato de esse processo ter se estratificado e, eventualmente, ter sido
ideologizado, e até sensualizado, não se resolve na ocultação de sua violência
intrínseca,parte consubstancial da sociedade brasileira:em última instância,
há mulatos no Brasil e não há mulatos em Angola porque aqui havia a opres-
são sistêmica do escravismo colonial,e lá não24. [24] Alencastro, O trato dos viventes,
p. 353.

Resumindo:para garantir a reprodução da sociedade escravista bra-


sileira no tempo,fundada na introdução incessante de estrangeiros,era
fundamental criar mecanismos de segurança que pudessem evitar um
quadro social tenso como o do Caribe inglês e francês ou mesmo o de
Pernambuco no século XVII. A libertação gradativa dos descendentes
dos africanos escravizados — não mais estrangeiros, mas sim brasilei-
ros — constituiu o principal desses meios.A prova definitiva da validade
dessa equação é a associação de negros e mulatos libertos e livres com o
sistema escravista:o grande anseio econômico e social desses grupos era
exatamente a aquisição de escravos,ou seja,tornar-se senhor.
Diversos trabalhos recentes documentam a prática bastante
comum de negros e mulatos livres, libertos e mesmos escravos serem
donos de escravos.Por conta da dinâmica do tráfico para o Brasil,o mais

118 A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL ❙❙ Rafael de Bivar Marquese


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 119

volumoso na história do comércio negreiro transatlântico, o africano


[25] Cf. Florentino, Manolo. Em cos-
tas negras. Uma história do tráfico
escravizado era uma mercadoria socialmente barata25.Foi isso que per-
atlântico de escravos entre a África e o mitiu odisseminar da escravidão pelo tecido social brasileiro, mar-
Rio de Janeiro (séculos XVII e XIX). Rio cando a particularidade desse sistema escravista. Essa mecânica, por
de Janeiro:Arquivo Nacional,1995.
sua vez, teve peso decisivo para a configuração econômica igualmente
ímpar da América portuguesa.
Como há muito é consenso na historiografia brasileira, a partir do
século XVIII,com o impacto da mineração,houve grande diversificação
na economia colonial. Antes de mais nada, pelo aparecimento de uma
produção ativa voltada ao abastecimento do mercado interno, como a
pecuária no Rio Grande do Sul e no vale do São Francisco, ou a produ-
ção de mantimentos na própria capitania de Minas, em São Paulo e no
Rio de Janeiro. O surgimento de vários núcleos urbanos em Minas
Gerais,e mesmo o crescimento de antigas cidades como Rio de Janeiro
e Salvador, também ativaram a economia interna. A produção de
tabaco,no Recôncavo Baiano,foi outra atividade que recebeu impulso,
pois se tratava de uma mercadoria central para a aquisição de cativos na
Costa da Mina, especialmente valorizados nas zonas mineradoras. E,
por último,não se pode esquecer que os enclaves de plantations açuca-
reiras no Recôncavo Baiano, na Zona da Mata pernambucana e em
Campos dos Goitacazes mantiveram sua vitalidade ao longo do século,
a despeito da competição antilhana, que havia excluído seus produto-
res dos mercados inglês e francês.
O que importa para esta análise é o fato de todas essas atividades
— rurais e urbanas — terem se baseado na escravidão,com uma estru-
tura de posse dos escravos que os distribuía por diferentes faixas de
riqueza, sem concentrá-los apenas nas mãos dos senhores mais capi-
talizados ou mesmo dos proprietários brancos. A América portu-
guesa,portanto,combinava com essas diferentes operações econômi-
cas o leque das formas de exploração do trabalho escravo presentes no
Novo Mundo: a mineração e a escravidão urbana da América espa-
nhola,as plantations escravistas do Caribe,a produção de mantimen-
tos da região de Chesapeake.
Poder-se-ia argumentar que era igualmente essa a configuração
econômica da América espanhola, que tinha na região de Caracas, por
exemplo, um escravismo de plantation. Há que se lembrar, contudo,
três diferenças básicas entre uma e outra.Em primeiro lugar,o peso eco-
nômico decisivo da população indígena nas áreas centrais da América
espanhola,contraposto à generalização do trabalho escravo na América
portuguesa. Em segundo lugar, a ausência de integração econômica
entre as colônias da América espanhola: a despeito da profunda cisão
entre o vale Amazônico e o restante da Colônia, a mineração permitiu,
na América portuguesa,uma integração econômica nada desprezível —
ante os meios de transporte do período –, do Rio Grande do Sul a Per-
nambuco. Terceiro, e mais importante, para a reprodução ampliada da
economia, o tráfico negreiro transatlântico teve papel crucial na Amé-

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 119


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 120

rica portuguesa.Há,neste ponto,uma distinção substantiva em relação


às colônias inglesas e francesas:lá,o tráfico negreiro sempre foi contro-
lado a partir das respectivas metrópoles; na América portuguesa, pelo
contrário, desde o século XVII, o tráfico foi gerido diretamente a partir
dos portos brasileiros, isto é, os grandes traficantes que garantiam a
reprodução do sistema escravista estavam sediados em Recife, Salva-
dor e Rio de Janeiro,e não em Lisboa.
A crise da mineração e a expansão da agroexportação escravista na
passagem do século XVIII para o XIX — com o surgimento de novas áreas
produtoras,como Maranhão (com o algodão) e o oeste de São Paulo (com
o açúcar) — e a recuperação de antigas áreas produtoras, como Pernam-
buco,Bahia e Rio de Janeiro,não romperam com o sentido sistêmico que
o escravismo brasileiro adquirira no século precedente. Muito pelo con-
trário, pois foi exatamente aquela configuração social e econômica que
forneceu as bases para a pronta resposta dos produtores escravistas da
América portuguesa às novas condições favoráveis do mercado mundial.
Para os fins deste ensaio, interessa examinar o caso da resposta dos
baianos, de grande relevo para a linha central de sua argumentação. A
revolução escrava de São Domingos na década de 1790 trouxe modifica-
ções profundas nos quadros da produção de açúcar nas Américas.Antes
dessa data, a colônia francesa respondia por cerca de 30% da produção
mundial total de açúcar e era a maior produtora mundial de café.Com o
levante dos escravos,a partir de 1791,a produção açucareira e cafeeira de
São Domingos entrou em colapso, abrindo enormes possibilidades
para a produção desses gêneros em outras colônias nas Américas,a que
se deve somar o aumento da demanda por gêneros tropicais nos países
em processo de industrialização.Em vista dessa nova conjuntura,o trá-
fico negreiro transatlântico para a Bahia se acelerou para atender à
demanda do setor açucareiro por novos trabalhadores. A reativação da
agroexportação no Recôncavo Baiano se fez acompanhar pela ampliação
do cultivo de mantimentos nas paróquias que não eram adequadas ao
plantio da cana e que também empregavam em larga escala a mão-de-
obra escrava. A própria cidade de Salvador viu sua população ampliar,
com o conseqüente aumento no número de cativos26. [26] Cf.Barickman,B.J.Um contrapon-
to baiano. Açúcar, fumo, mandioca e
Desde fim do século XVII,a zona de eleição do tráfico transatlântico escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio
de escravos para Bahia era a Costa da Mina,ainda que parte dos trafican- de Janeiro:Civilização Brasileira,2003.
tes operasse também em Angola. Na virada do século XVIII para o XIX,
aumentou muito a oferta de cativos na Costa da Mina aos comerciantes
baianos, por duas razões: primeiro, os traficantes ingleses e franceses
deixaram de operar na área, devido ao fim do tráfico para suas colônias;
segundo, as guerras intestinas na região, derivadas da jihad promovida
por Usman dan Fodio, produziram grande quantidade de cativos, dos
quais parte substancial foi direcionada à Bahia.
Esses grupos egressos da Costa da Mina,sob diferentes identidades
(Nagô, Hauçá, Jeje, Tapa), promoveram o maior ciclo de revoltas escra-
vas africanas de que se tem notícia na história do Brasil. O caráter de

120 A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL ❙❙ Rafael de Bivar Marquese


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 121

resistência sistêmica à escravidão só teve equivalente, antes, na Guerra


dos Palmares e,depois,no movimento abolicionista da década de 1880.
Com efeito,entre 1807 e 1835,a Bahia viveu um período de rebeliões con-
tínuas dos escravos africanos, cujo ápice foi a Revolta dos Malês, “le-
[27] Reis, João José. Rebelião escrava vante de escravos urbanos mais sério ocorrido nas Américas”27.
no Brasil, p. 9.
No que resultou todo esse movimento de resistência? O ciclo de
revoltas africanas que a Bahia vivenciou entre 1807 e 1835 não teve
nenhum efeito cumulativo para colocar em xeque a ordem escravista
brasileira; ao contrário, portanto, do ciclo de levantes escravos ocorrido
no mesmo período no Caribe inglês. O contexto atlântico mais amplo
ajuda a compreender a dimensão real dos levantes baianos. As revoltas
de 1816 (Barbados), 1823 (Demerara) e 1831 (Jamaica) foram decisivas
para impulsionar a campanha contra a escravidão negra no Império
inglês. Por sua vez, a resistência escrava na década de 1880, fundamen-
tal para o processo de abolição do cativeiro no Império do Brasil,não se
valeu da experiência histórica da onda de levantes africanos que a Bahia
vivenciou entre 1807 e 1835. Em uma frase: essas revoltas, apesar de
sérias e violentas,não abalaram a ordem escravista brasileira.
A chave para compreender esse fracasso reside exatamente nas cliva-
gens que separavam de forma radical os africanos escravizados de seus des-
cendentes — negros e mulatos — nascidos no Brasil. Não houve partici-
pação destes últimos grupos nos levantes comandados pelos africanos
escravizados na Bahia.Muito pelo contrário,como esclarece João José Reis:

mulatos,cabras e crioulos forneciam o grosso dos homens empregados no con-


trole e repressão aos africanos.Eram eles que faziam o trabalho sujo dos bran-
cos de manter a ordem nas fontes,praças e ruas de Salvador,invadir e destruir
terreiros religiosos nos subúrbios, perseguir escravos fugitivos através da pro-
[28] Reis,op cit., p.322. víncia e debelar rebeliões escravas onde quer que aparecessem28.

O comprometimento social dos crioulos e mulatos — sobretudo


quando livres e libertos — com a instituição da escravidão,e não apenas
o comprometimento dos senhores brancos,foi o elemento decisivo que
garantiu a segurança do sistema escravista brasileiro.

IDEOLOGIA E ESTADO NACIONAL

A blindagem criada por tal configuração sistêmica impediu não só a


repetição de Palmares, mas, acima de tudo, qualquer chance de uma
revolução escrava como a de São Domingos vir a ocorrer no Brasil. No
século XIX, já no período do Estado nacional, esse quadro social escra-
vista interno altamente estável permitiu a expansão inaudita do tráfico
negreiro transatlântico — nas letras da lei, proibido desde 1831 — e do
próprio escravismo brasileiro.No período de quarenta anos compreen-
dido entre a vinda da família real para o Brasil (1808) e o fim definitivo
do tráfico, em 1850, foi introduzido mais de 1,4 milhão de cativos no

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 121


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 122

Império, ou seja, cerca de 40% de todos os africanos desembarcados


como escravos em três séculos da história do Brasil. Nesse sentido, as
mudanças que se operaram no escravismo brasileiro oitocentista, em
especial o incrível arranque da cafeicultura no vale do Paraíba, que rapi-
damente converteu o Brasil no maior produtor mundial do artigo, con-
tou com práticas arraigadas de longa duração,que possibilitavam intro-
duzir enormes massas de estrangeiros escravizados sem colocar em
risco a segurança interna dessa sociedade.
No século XIX,a maior ameaça ao escravismo brasileiro veio de fora,
ou seja, da pressão antiescravista inglesa29. Não por acaso, a resposta [29] Cf. Needell, Jeffrey. “The aboli-
tion of the Brazilian slave trade in
ideológica que os senhores e políticos brasileiros deram à ação diplomá- 1850: historiography, slave agency
tica e militar inglesa recorreu, entre outros pontos, à própria lógica de and statesmanship”. Journal of Latin
funcionamento sistêmico da escravidão brasileira. Ao fazê-lo, inverte- American Studies, vol. 33, no 4, nov.
2001.
ram a visão ideológica que foi predominante na Colônia. Com efeito,
salvo um ou outro caso, as autoridades metropolitanas sediadas na
América portuguesa sempre entenderam que o setor de homens negros
e mulatos livres representava mais risco do que segurança à ordem colo-
nial30.Em outras palavras,a maioria dos dirigentes metropolitanos não [30] Para esta visão ideológica, ver os
tinha consciência do processo institucional do escravismo brasileiro. trabalhos de Sousa, Laura de Mello.
Desclassificados do ouro. A pobreza
Essa visão começou a modificar-se no início do século XIX,de início mineira no século XVIII. Rio de Janeiro:
pela pena dos viajantes europeus que então passaram a percorrer ou Graal,1983,e Lara,Silvia H.Fragmen-
tos setecentistas. Escravidão, cultura e
morar no Brasil.O inglês Henry Koster,por exemplo,senhor de escravos poder na América portuguesa. Tese de
em Pernambuco na segunda década do Oitocentos,não deixou de obser- livre-docência. Campinas: IFCH/
Unicamp,2004.
var a facilidade com que escravos crioulos e mulatos obtinham a alforria
no Brasil, contrastando-a com as dificuldades encontradas pelos escra-
vos do Caribe inglês31.Reside aí,nos relatos de viajantes europeus,a ori- [31] Cf.Koster,Henry.Viagens ao Nor-
deste do Brasil. Recife: Fundação Joa-
gem da imagem da escravidão brasileira — e mesmo ibérica — como quim Nabuco/Editora Massangana,
mais “benigna” do que a escravidão anglo-saxônica. 2002, capítulos XVIII e XIX, 2 vols.
Rapidamente o tema foi instrumentalizado pelos construtores do (1a ed.1816).

Estado nacional brasileiro.A visão de que os libertos e seus descenden-


tes eram aliados, e não inimigos dos senhores de escravos brasileiros,
apareceu em 1822,nos debates das Cortes de Lisboa,quando se definiu
o caminho da independência do Brasil.Naquela ocasião,ao discutir com
parlamentares portugueses os critérios de cidadania e participação polí-
tica a serem adotados pela futura Constituição, o deputado pelo Rio de
Janeiro Custódio Gonçalves Ledo afirmou:

não há razão alguma para privar os libertos deste direito [de voto]. Há mui-
tos libertos no Brasil, que hoje interessam muito à sociedade, e têm grandes
ramos de indústria; muitos têm famílias; por isso seria a maior injustiça pri- [32] Apud Berbel, Márcia Regina &
var estes cidadãos de poderem votar,e até poderia dizer que é agravar muito o Marquese,Rafael de Bivar.“A escravi-
mal da escravidão32. dão nas experiências constitucionais
ibéricas, 1810-1824”. Texto apresen-
tado ao Seminário Internacional Bra-
A definição de cidadania defendida por Custódio Ledo em Portugal sil, de um Império a Outro (1750-
1850) (Departamento de História,
cristalizou-se na Constituição Política do Império do Brasil.Conforme o USP, set. 2005). Disponível em
artigo 6,parágrafo 1 da Constituição de 1824,os libertos,desde que nas- www.estadonacional.usp.br.

122 A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL ❙❙ Rafael de Bivar Marquese


08_Marquese.qxd 4/6/06 7:32 AM Page 123

cidos no Brasil,eram considerados cidadãos brasileiros.Portanto,apenas


os libertos africanos eram excluídos do corpo social da nação.Essa norma
constitucional,por sua vez,franqueava aos libertos brasileiros a participa-
ção no processo eleitoral: de acordo com os artigos 90 a 95, desde que
possuíssem renda líquida anual de cem mil-réis,esses ex-escravos pode-
riam votar nas eleições primárias, que escolhiam os membros dos colé-
gios eleitorais provinciais,mas não poderiam participar destes últimos;já
os ingênuos, isto é, os filhos dos libertos (tanto dos africanos como dos
brasileiros), poderiam igualmente votar e ser votados nos colégios eleito-
rais provinciais,desde que cumprissem os critérios censitários.
Tratava-se,enfim,de uma definição de cidadania bastante inclusiva.
O parágrafo constitucional acabou virando peça da propaganda de
defesa do tráfico negreiro transatlântico para o Brasil, no contexto do
acirramento das pressões inglesas. Em 1838, José Carneiro da Silva,
futuro visconde de Araruama,destacado político conservador,defendeu
a anulação da lei de 1831 e a legalização do tráfico negreiro com base jus-
tamente na experiência histórica do escravismo brasileiro:

Tenho visto escravos senhores de escravos, com plantações, criações de gado


vacum e cavalar,e finalmente com um pecúlio vasto e rendoso.Tenho visto mui-
tos escravos libertarem-se,tornarem-se grandes proprietários,serem soldados,
chegarem a oficiais de patente,e servirem outros empregos públicos que são tão
úteis ao Estado.
Quantos e quantos oficiais de ofícios e mesmo de outras ordens mais superiores
que,noutro tempo,foram escravos e hoje vivem com suas famílias,cooperando
para o bem do Estado nas obras e empregos em que são ocupados,aumentando
[33] Cf. Marquese, Rafael de Bivar & a população e o esplendor da nação,que os tem naturalizado! 33
Parron, Tâmis Peixoto. “Azeredo
Coutinho, Visconde de Araruama e a
Memória sobre o comércio dos escravos No século XX,essa experiência se tornou tema caro à historiografia.
de 1838”. Revista de História, vol.152, Basta lembrar as teses de Gilberto Freyre e Frank Tannenbaum sobre o
1o semestre 2005,p.122.
caráter supostamente benigno da escravidão brasileira,que logo se con-
verteram em ideologia da democracia racial. Não cabe aqui jogar mais
terra sobre esse caixão.O que não se pode nunca esquecer,entretanto,é
que toda essa equação deitou raízes na maior migração compulsória do
Recebido para publicação mundo moderno — um verdadeiro crime contra a humanidade, apesar
em 17 de janeiro de 2006. das reticências atuais de países como Portugal,Inglaterra e Holanda em
NOVOS ESTUDOS classificá-la como tal.
CEBRAP
74,março 2006
pp. 107-123 Rafael de Bivar Marquese é professor no Departamento de História da USP.

NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 123


PATRIARCADO, SOCIEDADE
E PATRIMONIALISMO

Neuma Aguiar

Resumo. Neste texto pesquisamos o significado do conceito de


patriarcado no Pensamento Social Brasileiro. Observamos como
o sistema de dominação é concebido de forma ampla e que
incorpora as dimensões da sexualidade, da reprodução e da
relação entre homens e mulheres no contexto de um sistema
escravista. Nas sociedades onde o público se destaca do privado,
sustentamos que as relações de gênero continuam patriarcais;
no âmbito das sociedades patrimoniais, a intimidade entre público
e privado também não resultou em uma maior participação
política ou econômica das mulheres nessa esfera pela própria
origem patriarcal do estamento burocrático no contexto de um
patrimonialismo patriarcal.
Palavras-chave: Brasil, patriarcado, patrimonialismo, femi-
nismo, teoria.

Patriarcado é um dos conceitos que vem despertando grande produção


na literatura intelectual feminista recente e que também tem ocupado
um lugar central no pensamento social brasileiro. Os debates
intelectuais sobre esse tema, em cada uma dessas tradições analíticas,
pouco se cruzam, dada a marginalidade conferida ao pensa-
mento feminista nas Ciências Sociais no Brasil e a negligência do
pensamento feminista local em esmiuçar os pressupostos teóricos
clássicos ou aplicados à situação local para o estudo das relações
entre homens e mulheres. Esse descaso impede que se examine em
_____________________
Neuma Aguiar é professora da Universidade Federal de Minas Gerais.
304 Neuma Aguiar

que medida as análises efetuadas por autores brasileiros possibilitam


interpretar a condição social das mulheres, da mesma forma como
eles são adequados a interpretar a situação dos homens. O presente
texto busca comunicar essas duas vertentes de pensamento, possibi-
litando efetuar esse intercurso.
Raimundo Faoro, figura central nesse debate, vem argumentando
que o patriarcado brasileiro cedeu lugar a um Estado Patrimonialista,
observando que, ao contrário de vários países de origem anglo-saxã
e sistema liberal de governo, o modelo de organização política, seguido
pelo Brasil, se pauta pela dominação do público sobre o privado. Com
isto Faoro se rebela contra o argumento de que uma das principais
instituições sociais brasileiras, independentes do Estado, é a família,
conforme as interpretações de Silvio Romero, Nísia Floresta, Oliveira
Vianna, Gilberto Freyre, Joaquim Nabuco, Sérgio Buarque de Holanda
e Antônio Cândido, entre outros. Esses últimos vêm analisando o
patriarcado como uma herança do sistema escravista. Na literatura
liberal anglo-saxã, o rompimento com a analogia entre sistema familiar
e sistema de governo, em moldes patriarcais, ocorre com a proposta
de uma nova interpretação do sistema político, baseada na capacidade
de uso da razão dos cidadãos adultos que se organizam e negociam
suas demandas públicas. Essa nova teoria política recusa os princípios
absolutistas de poder das monarquias tradicionais, construindo,
alternativamente, a idéia de uma sociedade civil que se governa a si
própria, sem a tutela de um patriarca. Com essa recusa da analogia
entre família e poder político, a esfera pública se distingue da privada.
Como Faoro parte do princípio que herdamos uma tradição onde o
público predomina sobre o privado, ele critica a noção de patriarcado
como forma de organização privada que se apropriaria do domínio
público. Uma sociedade baseada em uma instituição extremamente
poderosa como a família contrariaria a visão dessa predominância do
público sobre o privado, pois dessa forma o privado teria prioridade
sobre o público.
O argumento de Faoro é extremamente persuasivo no que se
refere à preponderância do Estado sobre a Economia. Porém, encontro
dificuldades na subsunção da família no âmbito do Estado, um
argumento que foi pouco desenvolvido pelo autor. Olhando para a
produção que discute a dominação do âmbito doméstico pelo Estado,
observamos que essa subserviência da família à instância pública
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 305

é por vezes lembrada na literatura sobre totalitarismo. Quando a


dominação do Estado sobre a ordem privada não é total, como no
caso do Brasil, falta ampliar a linha de argumentação, apresentando
de forma persuasiva a relação entre família e sistema patrimonial.
Dentre os estudos de patrimonialismo que constroem essa relação,
destacamos apenas o que ressalta a política de alianças da realeza por
intermédio de casamentos (Adams, 1994), tema este que não foi
desenvolvido pela literatura nacional.
Na literatura feminista internacional, a discussão sobre o patriar-
cado tem indicado a existência desse fenômeno quando existe uma
ausência de regulação da esfera privada em situações onde há um
notável desequilíbrio de poder dentro dessa instância. A presença de
violência doméstica, por exemplo, evidencia que a separação entre
público e privado se deu de forma tão ampla que ocorrem situações
de dependência no interior do espaço familiar, particularmente das
mulheres com relação aos homens. Nesse caso, as instituições políticas
ignoram essa situação que permanece à margem do sistema normativo.
O patriarcado é um sistema de poder análogo ao escravismo, observa
Carole Pateman (1988). Esse diagnóstico gera uma série de demandas
normativas críticas de correção das situações de arbítrio de poder
dentro do espaço familiar e para além do mesmo.
No caso brasileiro, Faoro argumenta que o estamento burocrático
gera uma legislação sobre a esfera privada. Porém, essa perspectiva
não explica os casos de dominação arbitrária no interior da esfera
familiar, como a obrigatoriedade, da parte das mulheres, de manter
relações sexuais com os maridos, decorrentes de uma obrigação de
atender aos desejos masculinos, independentemente das circunstâncias,
e de sua própria vontade. A violência contra mulheres e a impunidade,
como legítima defesa da honra masculina, consiste em outra indicação
de relações patriarcais. Essas situações de arbítrio de poder na família
foram amplamente documentadas pelo pensamento social brasileiro.
Recupero em seguida as perspectivas sobre o patriarcado que foram
desenvolvidas pelo pensamento social brasileiro, procurando observar
como os teóricos identificam o fenômeno, uma vez que essa discussão
contribui para a análise de relações de poder que ficaram fora do
alcance do Estado.
Curiosamente, muitas teóricas feministas brasileiras e latino-
americanas rejeitam o conceito de patriarcado, o que examino mais
306 Neuma Aguiar

adiante. Sugere-se, no final do texto, que uma dupla linha de investigação


que analise simultaneamente o patrimonialismo e o patriarcado, a
exemplo do que foi efetuado pela Escola Paulista de Sociologia, possa
dar conta da importância que o patriarcado possui para a análise das
relações familiares no Brasil. Em outras palavras, a relação entre Eco-
nomia e Estado é pouco adequada para expressar a relação entre
Família e Estado. A visão de Faoro, a priori, não concede espaço
para a análise da sociedade, sua dinâmica, assimetrias e desigualdades.

Antecedentes
Encontro em Silvio Romero o primeiro autor a discorrer sobre o
patriarcalismo no pensamento social brasileiro. Utilizando uma
perspectiva da Escola de Le Play, Romero estabelece uma tipologia
para classificar as famílias brasileiras em quatro categorias analíticas:
patriarcal, quasi-patriarcal, tronco e instável. A primeira é composta
pelo pai com sua família e as famílias de seus filhos que coabitam em
uma extensão ilimitada de terras; a segunda é uma família patriarcal
de menor porte, o que decorre da limitação de terras, tendo a família
que se subdividir, procurando novos recursos para a sua manutenção
econômica; a terceira equivaleria à classificação atual de família
nuclear, pois seus membros são mais individualistas, e os filhos procuram
construir o próprio espaço de habitação, destacando-se dos pais; o
último tipo é uma negação da família. Romero procura, então, relacionar
as características ecológico-regionais do país com os tipos de socia-
bilidade familiar preponderantes em cada contexto, buscando elucidar
as formas de subsistência empreendidas por cada modalidade de
organização social, ensejando esclarecer, no enunciado de Antônio
Cândido, a adaptabilidade do povo brasileiro ao meio, situando, no
processo, a questão da mestiçagem no Brasil. Não entrarei na questão
racial tal como desenvolvida por Romero, tema que por si só mereceria
um texto. Indico apenas que a questão é posteriormente retomada e
modificada por Gilberto Freyre em sua análise do patriarcado brasileiro.
O empreendimento de Romero é por ele defendido como sendo uma
alternativa às visões românticas de sociedade então dominantes na
literatura brasileira, pois o autor propõe que as formas de expressão
literária se vinculem às variedades de experiências sociais existentes
no Brasil. O método tem parentesco com o positivismo. Todavia,
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 307

o autor preconiza um tipo de apreensão da sociedade brasileira por


meio de outra corrente sociológica francesa, evitando assim qualquer
aproximação de sua proposta com o enfoque de Comte ou de seus
discípulos. Embora proveniente do campo literário, Romero, na
observação de Antônio Cândido, procura oferecer uma base sócio-
científica à cultura brasileira. A influência de Sílvio Romero, segundo
uma observação de Antônio Paim, é passível de apreensão pelas
referências bibliográficas efetuadas por Oliveira Vianna, uma vez que
sua proposta de trabalho foi totalmente cumprida por este último autor.
Usando as mesmas perspectivas teóricas da escola de Le Play, Oliveira
Vianna analisa os clãs patriarcais como sendo constituídos por uma
família estendida (incluindo parentes consangüíneos, por afinidade civil,
religiosa e por adoção) chefiada por um patriarca – um grande
proprietário de terras – circundado por uma massa de aparentados, e/
ou de outros dependentes sem laços de parentesco. Essa população é
composta por pequenos proprietários e camponeses, com seus
familiares, que encontram proteção no clã, formando com ele uma
comunidade de sentimentos. Essas localidades são, basicamente, ilhas
autônomas de prosperidade que tudo fabricam, atraindo os despossuídos
em busca de apoio político e de recursos.
Nísia Floresta aponta para a falta de acesso das mulheres à
educação, a postos de trabalho e aos cargos públicos como indicações
de uma injustiça dos homens, como denominou o sistema patriarcal.
Já a análise de Oliveira Vianna diz respeito ao alto sentimento
de comunidade, interno ao clã patriarcal, e à ausência de laços de
solidariedade entre clãs. As redes assim criadas, organizadas com
base em imensa distância social entre patriarca e dependentes, são
o resultado da ausência de alternativas políticas ao sistema familiar
predominante na sociedade agrária. Para obter garantias o povo-
massa adere ao senhor, em busca de proteção social. No caso, ine-
xistem instituições democráticas e predominam demandas de
tratamento especial pelos chefes políticos que competem por favores.
Oliveira Vianna critica a proposta liberal de descentralização política
ao argumentar que, nas condições institucionais brasileiras, o
liberalismo político representaria exatamente a preponderância do
poder local, sem garantias ao povo-massa que permaneceria
vulnerável ao poder dos clãs patriarcais. As mulheres seriam parte
dessa massa popular que aderiria ao poder, no vazio decorrente da
308 Neuma Aguiar

inexistência de instituições políticas. Vianna é criticado por Faoro ao


conceder demasiada ênfase à autonomia e à prosperidade da ordem
privada do latifúndio, em detrimento de um exame do papel do Estado
Nacional no sistema de poder. Porém, é injusto com o conjunto da
obra de Vianna ao negligenciar a discussão que este último entabula
sobre o lugar da monarquia no jogo político dos clãs patriarcais e das
propostas normativas subseqüentes que desenvolve sobre o corpo-
rativismo. Os dois autores divergem exatamente quanto ao lugar do
Estado centralizador no desenvolvimento nacional.
Os princípios comunitários da ordem patriarcal, endossados por
Vianna, não são enfatizados apenas pela escola de sociologia
francesa. Eles são também objeto de interesse pela sociologia alemã.
Tönnies os destaca quando contrasta os princípios hierárquicos,
afetivos e arbitrários que regem as comunidades, com os princípios
societários, impessoais e contratuais que predominam no meio
urbano-industrial. Vianna, contudo, estava, mais atento em sua obra
para as contribuições francesas.
Um dos autores que mais se detém na análise do patriarcado é
Gilberto Freyre. Independentemente das relações entre a organização
do grupo doméstico e a forma de dominação estatal, o autor mostra que
o patriarcalismo estabeleceu-se no Brasil como uma estratégia da
colonização portuguesa. As bases institucionais dessa dominação são o
grupo doméstico rural e o regime da escravidão. A estratégia patriarcal
consiste em uma política de população de um espaço territorial de grandes
dimensões, com carência de povoadores e de mão-de-obra para gerar
riquezas. A dominação se exerce com homens utilizando sua sexuali-
dade como recurso para aumentar a população escrava. A relação entre
homens e mulheres ocorre pelo arbítrio masculino no uso do sexo. Apesar
do emprego que Gilberto Freyre faz da religião em sua análise da ordem
na casa-grande e nos sobrados, o patriarcado não se efetua pela
dominação religiosa, a não ser pela influência que esta exerce nas
relações familiares dentro do grupo doméstico. O poder da religiosidade
aparece limitado para conter a liberdade sexual masculina e o abuso
sexual da mão-de-obra escrava. Para Freyre, portanto, esse abuso
consiste na própria essência do patriarcado. Padres portugueses por
vezes abandonam o ascetismo religioso e aderem ao patriarcado, observa
Freyre (1973, p. 447), que deixa de ser, assim, em contraste com a
perspectiva weberiana, uma forma de racionalidade instituída pelo
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 309

sistema religioso, para ser uma forma de racionalidade econômica e


demográfica, estratégia de povoamento e aliciamento de mão-de-obra,
estabelecida no processo de colonização portuguesa. Já dois outros
autores, que se inspiraram em Freyre, destacam a importância da religião
na contenção dos costumes (Azevedo, 1949, p. 69-71; Duarte, 1966, p.
76-77), o que para Freyre viria apenas subseqüentemente com o processo
de urbanização.
A originalidade da concepção de Freyre pode ser compreendida
tomando as análises elaboradas por Weber (1964, p. 223-245) sobre
patriarcalismo e religião como base de comparação. Nesse momento
do texto, faço um pequeno desvio da exposição sobre o conceito de
patriarcado no pensamento social brasileiro apenas para destacar a
análise de Freyre das teses weberianas sobre esse tipo ideal de forma
de dominação. Weber ressalta que os sistemas religiosos estabelecem
uma relação íntima entre sociedade, sexualidade e erotismo, porquanto
eles são também sistemas de controle da sexualidade e da reprodução.
Associando sexualidade com práticas mágicas e com o comportamento
religioso comunal, Weber observa, ainda, que tanto as religiões místicas,
quanto as ascéticas, são hostis à sexualidade, apresentando-lhe satis-
fações substitutivas. A castidade é religiosamente vista como um tipo
de comportamento que possibilita o desenvolvimento de qualidades
carismáticas, dificultando que os sacerdotes tenham filhos e impedindo
que os bens acumulados pela Igreja sejam transferidos por herança.
A religião, portanto, procura eliminar o lado erótico da natureza humana,
vetando socialmente tudo o que considera como sendo orgia sexual,
quando enfatiza a abstinência como forma mística de alcançar a salva-
ção, propondo, também, a evitação das emoções características do
ato sexual e recomendando sua substituição pelo ascetismo vigilante,
autocontrole e planejamento metódico da vida. A religião, portanto,
enquanto substituta da magia, racionaliza o comportamento social pela
regulação da sexualidade. Sistemas de crenças de natureza religiosa
que não enfatizam a salvação por estarem mais vinculadas à vida
neste mundo também se endereçam à sexualidade, podendo ser hostis
às mulheres como nos casos do budismo e do confucionismo (Weber,
1964, p. 264).
A religião elimina as relações sexuais livres no interesse da
regulação e legitimação do casamento (Weber, 1964, p. 237-238). Para
que este controle social se efetue as mulheres são assemelhadas, pelos
310 Neuma Aguiar

sistemas religiosos, às criaturas irracionais (ou de difícil autocontrole,


isto é, com grande capacidade de ocasionar o descontrole, ou como
seres capazes de causar emoção em quem as circunda, inclusive pelos
desejos que podem despertar (Weber, 1964, p. 238). A contenção
desses sentimentos muitas vezes se estabelece pela instituição de regras
sobre as vestimentas, normatizando que sejam cobertas as partes do
corpo feminino que podem suscitar desejos nos homens. Além disso,
se por um lado a religião enfatiza o exercício da sexualidade dentro do
casamento para o conjunto da população, ela prescreve, também, o
ascetismo religioso com abstenção sexual pelos sacerdotes. O sistema
religioso, portanto, é dominado por homens que estabelecem práticas
de controle da sexualidade voltadas para a interdição do acesso e até
mesmo da visão do corpo feminino. Portanto, os sacerdotes no Brasil,
que, segundo Freyre, caem no patriarcado, distanciam-se das formas
de racionalidade religiosa que controlam o comportamento sexual dos
sacerdotes ou do conjunto da população. Antônio Cândido, que segue
a análise de Freyre neste ponto, excetua dessas práticas libidinosas
apenas os jesuítas que se esforçam por regularizar as uniões e conter
a licenciosidade.
Na análise de Freyre sobre os sistemas de dominação, não há
brechas para rebeliões, porém o exame de arquivos históricos
documenta recusas da mão-de-obra escrava em dar a luz aos filhos
do estupro. Estes arquivos mereceriam uma atenção cuidadosa na
análise crítica do patriarcado. O caráter dessa resistência é indicado
por Joaquim Nabuco (1988), cabendo aqui introduzir algumas das
questões levantadas por este outro pernambucano na análise do
patriarcado brasileiro.
A Igreja, por intermédio dos conventos, é a principal proprietária
de escravos. Em função disso, Nabuco demonstra como nos EE.UU.
a religião se torna a campeã dos direitos civis, lugar institucional em
que se refugia a população negra. No caso do Brasil, esta nega os
sacramentos aos escravos. Na ausência de racionalização das relações
sociais pelo caminho religioso, os escravos se vêem lançados à
promiscuidade e à magia, aponta o autor. O que Nabuco caracteriza
como uma forma de primitivismo pode ser compreendida como uma
resistência das mulheres à escravidão, rejeitando serem usadas como
aparelho reprodutivo pelos senhores de terra. As mulheres (Nabuco,
1988, p.38) usam ervas daninhas e venenos, matando o feto no ventre,
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 311

enterrando-o no mato. O autor interpreta o fato como uma ausência


de sentimentos religiosos e atribui tal prática à falta de instrução e não
como uma forma de resistência à dominação. Observa também que o
feto era de propriedade do senhor, estando condenado à escravidão.
O estado de gravidez, todavia, não isenta a escrava de prestar serviços
forçados. A paternidade inexiste, observa Nabuco, pois a família é
negada, e a escrava está sujeita à luxúria dos brancos. A amamentação
realiza-se conjuntamente com os trabalhos cativos. Aos cinco anos a
criança já começa a trabalhar para obter hábitos servis (Nabuco, 1988,
p.50), sendo recebida como alguém que aumenta o patrimônio do
senhor. A escrava jovem, diz ele, é tornada pública, isto é, um joguete
de instintos (Nabuco, 1988, p.51). Castigos, açoites, marcas com ferros
denotam a violência das relações sociais predominantes, além do abuso
sexual contra as escravas. Com a descrição destas práticas, o autor
destaca a questão moral da corrosão dos costumes pelo ataque ao
direito familiar, destituindo a dignidade da mãe pela violação de sua
honra e separação de seus filhos, pela negação da paternidade e pela
predominância do concubinato.
Formas de exercício da dominação doméstica são transformadas
durante o processo de urbanização (Freyre, 1951 e 1973; Araújo, 1994).
Esta questão é trabalhada por Holanda (1971, p.113-125) quando propõe
que o crescimento urbano suplanta o patriarcalismo agrário, dando
margem ao aparecimento de um sistema peculiar de serviço público,
efetuando uma confusão dos domínios público e privado.
Antônio Cândido, um estudioso da obra de Silvio Romero, analisa
a composição e as transformações da família patriarcal no Brasil.
Esta compreende, de início, um núcleo central composto por um casal
com seus filhos legítimos. Na periferia, encontram-se as concubinas,
filhos ilegítimos, escravos e agregados. A autoridade paterna é quase
ilimitada, incluindo o direito sobre a vida dos filhos que vivem na casa
dos pais, ou em casas por ele concedidas. O autor (Cândido, 1951,
p.293-294) analisa a presença de filhos ilegítimos desde o início da
colonização portuguesa, quando há grave desequilíbrio entre os sexos.
Os portugueses mesclam-se com as filhas de chefes indígenas em
uma política de alianças destinada a manter a paz social. Por outro
lado, a mistura étnica e a baixa densidade da população contribuem
para que a bastardia seja comum, mantendo-se ao lado do núcleo
312 Neuma Aguiar

familiar. Mesmo depois que as proporções de homens e mulheres


tornam-se mais paritárias, os concubinatos continuam a ocorrer.
Antônio Cândido retrata os papéis familiares como comple-
mentares, embora indicando a presença latente de conflitos, pois os
casamentos são arranjados e a satisfação sexual é procurada fora da
instituição. Filhos bastardos, dependendo do arbítrio dos pais, são
legitimamente reconhecidos e dotados de herança. Isto é aceito pela
esposa quando os filhos do marido nascem antes do seu casamento
(situação que se contrasta com a apontada por Weber, que observou
como as mulheres, para além da tese de Engels, investiram no casa-
mento monogâmico como estratégia de defesa do patrimônio de seus
filhos). Nas cidades, algumas características do sistema patriarcal são
preservadas, embora, com as separações e maior liberdade sexual
para as mulheres, o domínio patriarcal se atenue. Um duplo padrão de
moralidade passa a existir, com permissividade para a poliginia e
interdições para a poliandria.

O Debate de Faoro com Antônio Cândido


e Sérgio Buarque de Holanda
Para Raimundo Faoro, a principal característica da colonização portu-
guesa consiste na forma de dominação estabelecida pelo governo central
na condução das iniciativas empresariais, inibindo qualquer tentativa de
desenvolvimento autônomo pelas unidades econômicas. Isso, aponta
Faoro, representa um contraste com a organização econômica do
feudalismo, cuja característica primordial é a da descentralização. Na
Inglaterra, uma ilha mais afastada das ameaças de invasão pelos povos
vizinhos, predomina um sistema econômico descentralizado. Tal não é o
caso de Portugal em que o Estado absolutista é também um Estado
patrimonial. As atividades empresariais, independentes do governo
central, aponta o autor, são pesadamente taxadas.
Como o império português se organiza com base em instituições
militares que iniciam guerras para a ampliação do domínio, o rei de
Portugal procura obter fundos para remunerar seus soldados, vencer
batalhas e conquistar novos territórios. O soberano, portanto, não é
apenas o chefe administrativo, mas, também, o principal empreendedor
econômico. Para manter a posição, o soberano necessita fundar
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 313

cidades e oferecer incentivos aos que lá vão residir, estabelecendo


tarifas protecionistas.
A economia independente que se desenvolve em plantações
de finalidades comerciais, com base escravista, objeto das análises de
Gilberto Freyre, é a forma que se adequa ao tipo de estratégia admi-
nistrativa empregada no processo de colonização. A transferência da
coroa portuguesa para o Brasil acentua a tendência centralizadora e,
embora até possam ocorrer iniciativas de caráter liberal, a ordem
patrimonial é predominante.
Em texto da revista da USP (Faoro, 1993) dedicado à discussão do
liberalismo no Brasil, Raimundo Faoro se insurge contra um comentário
de Antônio Cândido que atribui ao autor de Raízes do Brasil, em prefácio
à segunda edição desse livro, o primeiro emprego dos conceitos de
patrimonialismo e de burocracia, segundo uma acepção weberiana.
Dessa maneira, delineia-se, com o comentário, uma possível convergência
entre as análises do próprio Faoro e as de Holanda, ao apontar que
ambos empregam o mesmo tipo de conceito, tendo sofrido a mesma
influência teórica. Faoro, todavia, advoga para si o mais autêntico uso
do conceito de patrimonialismo, apontando para duas interpretações que
preponderavam na análise da formação do Estado Nacional, até o
aparecimento de seu texto Os Donos do Poder, que mudaria o rumo
das interpretações sociopolíticas do Brasil. Faoro aponta que a perspectiva
de Holanda está bem mais próxima da de Gilberto Freyre e de Oliveira
Vianna sobre o patriarcado do que da sua própria que originara a
interpretação do Estado brasileiro como um Estado Patrimonial. Isto
porque, justifica Faoro, as relações patrimoniais desintegram o patriar-
calismo puro, pois a organização doméstica que se reproduz na ordem
política o faz dentro de um quadro burocrático-administrativo. Como
derivação da organização doméstica, enfatiza o autor, o patrimonialismo
se aproxima do patriarcado, se destacando também, por outro lado, da
burocracia impessoal, produto da transformação do feudalismo em
capitalismo, uma vez que o funcionário burocrático-patrimonial considera
o cargo como direito pessoal e não como posição associada a normas
objetivas e impessoais. De fato, o poder patriarcal é caracterizado por
Max Weber (1947, p. 346) como sendo um sistema de normas baseado
na tradição. Assim, as decisões são tomadas sempre de um mesmo
modo. Outro elemento básico da autoridade patriarcal é a obediência ao
senhor, além da que é devotada à tradição. A modalidade, por excelência,
314 Neuma Aguiar

da relação de dominação inquestionável é a do poder patriarcal, uma


vez que não há possibilidade de que a autoridade paterna seja
questionada por intermédio da justiça. Todavia, o sistema patriarcal
pode constranger o senhor a tratar seus súditos de forma protetora, o
que o distingue das relações que ocorrem com a exploração racional
da força de trabalho sob o sistema capitalista. Faoro contrasta sua
interpretação da autoridade no sistema patrimonial, ao observar que o
cargo burocrático não é visto como um direito pessoal do burocrata,
e sim como direito pessoal do senhor.
As relações de poder na dominação patriarcal fundamentam-
se na autoridade pessoal. Weber (1947, p. 396) contrasta esta forma
de poder com a que ocorre nas sociedades capitalistas, quando o
processo de racionalização, resultante do desenvolvimento da ciência
e da tecnologia, dá origem a um sistema de normas abstratas e
impessoais, sob as quais os funcionários das burocracias se organi-
zam. Essas normas estabelecem que a pessoa no poder possui auto-
ridade legítima para acionar regras em circunstâncias determinadas
(Weber, 1978, p. 1006). Já no sistema patriarcal, a autoridade é
garantida pela sujeição pessoal.
A análise de Holanda, adverte Faoro, estaria mais próxima do
conceito de patriarcado do que de patrimonialismo, porque o que
o primeiro produz na esfera política é a noção de que o quadro
administrativo é um prolongamento da família. Nesse ponto, Faoro
lembra que essa é a mesma análise elaborada por Oliveira Vianna
quando este último cunhou o conceito de clã patriarcal em Populações
Meridionais no Brasil, obra também amplamente usada por Gilberto
Freyre em Casa-Grande e Senzala. Tudo o que se avança com esta
visão da dominação patriarcal no contexto doméstico, critica Faoro, é
a perspectiva política de um mandonismo, de um sultanismo, ou de
uma oligarquia cujo poder não pode ser limitado. Já o liberalismo,
observa o mesmo autor, se expressa constitucionalmente, enquanto
no patrimonialismo estamental a oposição ao poder central só é possível
porque os corpos intermediários entre governantes e governados lhe
fazem resistência, ainda que por meios não constitucionais, podendo,
ainda, se desenvolver um sistema de justiça, ainda que incipiente. Resta,
no entanto, desenvolver a noção desse sistema normativo incipiente,
uma vez que a impunidade por ocasião da violência doméstica é de
fácil contastação na sociedade brasileira.
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 315

Uma crítica parecida com essa é expressa por Florestan Fernandes


quando aponta que aqueles mesmos autores não situam a dominação
patriarcal em um contexto sócio-histórico mais amplo, por um processo
de redução do macro ao micro, ponto ao qual retornarei mais adiante.
Aponto, neste momento, apenas, que Faoro também contrapõe sua
tese sobre o patrimonialismo com a da emergência da sociedade de
classes pelo advento do capitalismo, adotada por alguns autores
marxistas. Exemplo desta perspectiva se apresentaria pelas teses de
Caio Prado Jr. que enfatizam no processo de colonização portuguesa
a presença de um capitalismo mercantil, originando a burguesia na
sociedade de classes. Faoro, no entanto, observa como Caio Prado Jr.
aos poucos vai se rendendo à evidência de que o capitalismo brasileiro
possui características peculiares, consistindo, muito mais em uma forma
de capitalismo político. Neste, as empresas capitalistas são dependentes
do setor público, em contraste com um capitalismo destacado do
Estado, o que ocorre na situação clássica. O autor ressalta, com esta
observação, que no patrimonialismo o poder público comanda o aparato
burocrático, as forças militares e a economia.
A sociedade civil é tutelada pelo Estado. Os elementos que
compreendem o setor privado (família e economia) são comandados
pelo setor público, reafirma Faoro, ao contrário das teses de Freyre,
Holanda ou Vianna, em que são as instituições privadas as que
comandam o setor público. Embora as duas visões enunciem a
perspectiva de que o público e o privado se imiscuam, as teses são
discordantes quanto ao elemento dominante na relação entre os dois
setores. O contraste entre estas teses é retomado recentemente por
Ângela Alonso (1996). Ela observa que, para Faoro, durante o
processo de colonização (ao qual acrescentamos que até mesmo
antes deste processo, e, acentuadamente, depois da vinda da coroa
para o Brasil), um estamento teria se apropriado do Estado,
provocando o seu crescimento descomunal, o que teria vitimado o
país, quando uma parte desta sociedade passa a dominá-la com o
predomínio do público sobre o privado.
Ângela Alonso (1996) também destaca que o raciocínio de Sérgio
Buarque de Holanda é o inverso daquele efetuado por Faoro. O
patriarcalismo aparece como herança rural e o Estado patrimonial
paulatinamente se edifica aprisionado nas teias familiares, isto é, o
público permanece prisioneiro do âmbito privado.
316 Neuma Aguiar

A meu ver, tanto Holanda quanto Faoro efetuam leituras


adequadas de Weber, não existindo, portanto, uma versão mais correta
do que a outra. Quando ambos procuram aplicar as teses weberianas
ao Brasil, cada qual destaca elementos particulares de sua vasta obra.
Naturalmente nenhuma teoria incorpora a totalidade do contexto social
que o analista deseja explicar. Há sempre dimensões que escapam à
visão teórica, particularmente quando se trata de tipos ideais. Este é o
lado profícuo da aventura científica, deparar-se com o que não se
encaixa nas interpretações dominantes, fazendo a Sociologia avançar.
Faoro, por exemplo, ao observar que o estamento burocrático se
apropria do Estado, não elabora a teia de vínculos particularistas que
reúnem soberano e funcionários estamentais, uma perspectiva
amplamente desenvolvida por Weber. Isto porque, sendo o patrimo-
nialismo baseado em privilégios, as alianças familiares que se
constituem por meio de casamentos e uniões, fazem parte do processo
político de manutenção desses benefícios (Adams, 1994).
O patrimonialismo é uma transformação do patriarcado pelo
processo de diferenciação, que se constrói a partir das relações de
dependência entre o senhor e seus familiares, ou entre o soberano e
os funcionários burocrático-estamentais. Isto ocorre em contraste
com o feudalismo, que se organiza a partir de uma associação entre
iguais. O patrimonialismo se caracteriza pela subordinação dos
funcionários despossuídos ao senhor. A relação é semelhante à de
escravidão, também assemelhada por Weber à devoção familiar. Foi
a associação entre patrimonialismo e escravidão que levou Buarque
de Holanda a aplicar o conceito com relação ao Brasil e a destacar
a abolição da escravatura como um dos principais fatores explicativos
do processo de mudança na sociedade brasileira. O autor também
enumera que o ingresso em uma nova ordem urbana dilui a formação
rural que lhe antecede. Holanda adota assim a postura de que o
processo de diferenciação segundo o eixo urbano/rural explica a
transformação do patriarcado. Porém, cabe apontar nesse ponto que
Faoro usa as passagens patriarcado/patrimonialismo/capitalismo
do Estado dentro de uma perspectiva histórico-evolucionista, esque-
cendo-se de que o conceito de patriarcado é empregado por Weber
para analisar diferentes sociedades em distintos momentos históricos.
Este é o caso, por exemplo, de sua análise sobre as relações patriar-
cais a leste de Elba, na Alemanha, referindo-se às condições locais
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 317

para a mudança do sistema capitalista. A análise de Weber evoca em


muitos momentos as acepções de Oliveira Vianna, Freyre e Holanda,
quando o autor observa a presença de relações comunais nas ações
econômicas tradicionais, orientadas pelos senhores de terra para a
manutenção de sua posição social. Estas ações, portanto, não estão
primordialmente voltadas para a acumulação capitalista. O interesse,
contudo, paulatinamente se sobrepõe à comunidade, e o rompimento
da estabilidade nas relações sociais acaba provocando a miséria e a
migração. Isto é possível enunciar no contexto de sua obra, porque o
conceito de patriarcado não se encontra no mesmo nível que os demais,
como os de feudalismo ou patrimonialismo. Por outro lado, a cons-
tituição do Estado ou do sistema capitalista não representa a derrocada
da família. As teses weberianas não advogam esta situação e sim o
estabelecimento paulatino de normas, regulamentos e relações que se
apresentam no espaço societário de forma distinta das que predominam
no contexto familiar.
Como na visão weberiana o sistema jurídico vai se destacando e
diferenciando do arbítrio do pai-de-família, resta uma questão não
discutida por Faoro. Com a nova ordem patrimonial, como o conjunto
de normas jurídicas repercute no interior do espaço doméstico, quem
julga os conflitos: o pai ou o juiz patrimonialmente designado? Como
se dá a interação entre esses corpos intermediários de poder e a
família? Que tipos de casos jurídicos emergem? Como são avaliados
e implementados? Pela análise de Faoro, uma vez que o patrimonialismo
se estabelece parece que não apenas a sociedade civil se lhe atrela,
mas a sociedade dele, também, fica cativa. Pela equação sociedade
civil/sociedade, esta última deixa de ser objeto de interesse analítico e
as formas de organização da vida social desaparecem, obscurecidas
pelo único interesse analítico no âmbito do Estado. O problema teórico
refere-se a como essa dependência do contexto doméstico do Estado
afeta o grau de arbítrio do chefe-do-domicílio, até então preponderante
na família. Como as regras codificadas a partir da tradição se impõem
na vida cotidiana, regulando, por exemplo, a violência doméstica. Sabe-
se que no patriarcado, o pai-de-família detém prerrogativas de vida e
morte sobre os familiares. Como fica esse poder ante o patrimo-
nialismo? Como o poder público patrimonial, enunciando uma questão
exemplar, se debruça sobre a escravidão?
318 Neuma Aguiar

Um segundo ponto refere-se ao fato de que a relação entre família


e Estado faz parte da teoria sobre a democracia liberal. No caso
brasileiro, a teoria do patriarcado tem servido para a análise das
relações de dominação que antecederam a emergência do sistema
capitalista. Como relação de poder, teóricos do liberalismo desenvolvem
esta perspectiva para discutir formas alternativas de resolução de
conflitos e de desenvolvimento do processo decisório na relação entre
Estado e Sociedade Civil. A família patriarcal e o modelo de relações
políticas derivado da família estão no cerne dessa questão. Ao poder
absoluto do rei, argumentam os adversários do patriarcado que todo
sujeito adulto não mais necessita ser governado por uma autoridade
que se assemelha à do pai de família. Se mesmo nas sociedades que
separam o contexto privado do sistema de governo, e o primeiro se
sobrepõe ao último, discute-se a noção das relações arbitrárias, como
se dá, no contexto privado, a relação entre família e burocracia estatal
quando o governo prepondera sobre o privado e o sistema jurídico não
está constitucionalmente instituído?
Para Faoro parece que o contraste entre a família como institui-
ção privada e o poder estatal exercido pelo soberano apenas se coloca
a partir da transformação do feudalismo em capitalismo. Porém, se o
patriarcado é o princípio sob o qual o patrimonialismo se forma, é
necessário incluir na análise a relação do patrimonialismo com a família,
a não ser que a centralização governamental seja de tal forma idealizada
que nada existe fora do domínio público. Nesse caso, as instituições
externas ao governo centralizador deixam de ser objeto de interesse
analítico e desaparecem.

Uma Outra Leitura sobre Patriarcado e Estado


Patrimonial: Florestan Fernandes e a Escola Paulista
Florestan Fernandes adota um modelo interpretativo assentado em
duas tradições analíticas quando estuda os processos de transformação
da sociedade patriarcal no Brasil, elaborando uma fusão dos enfoques
marxista e weberiano, o que lhe valeria a caracterização por Barbara
Freitag de adepto da teoria crítica, a exemplo dos protagonistas da
escola de Frankfurt. Assim, Fernandes discute a colonização portu-
guesa no contexto do desenvolvimento de um complexo Estado
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 319

Patrimonial. A dominação se exerce no Brasil mediante as concessões


de sesmarias, o que se traduziria nas doações efetuadas pela coroa a
um estamento administrativo. Isto representa a concentração da
propriedade ou posse da terra nas mãos de alguns, e a exclusão
da massa da população que não tinha acesso aos postos burocráticos.
A escravidão representa o esteio dessa sociedade, pois ela é a
semente da acumulação capitalista. A sociedade senhorial não se per-
petua nem sufoca as atividades privadas, pois o excedente econômico
é extraído pela coroa, permanecendo, assim, com a parte do leão.
Florestan Fernandes concorda com a tese de Faoro segundo a
qual Vianna, Freyre e Holanda vêem o setor doméstico como domi-
nante, porém, em lugar de atribuir-lhes uma concepção de feudalismo,
mais claramente enunciada por Vianna, aponta que as análises
elaboradas por aqueles autores da organização patriarcal da sociedade
carecem de um contexto sócio-histórico. Florestan Fernandes,
Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni e Heleieth Saffiotti, traçam,
então, um eixo de interpretação da sociedade brasileira com grande
impacto, tomando a sociedade escravista do tempo do Império, como
ponto de partida histórico, classificando-a simultaneamente como
escravocrata e senhorial. Eles não cometem o mesmo equívoco de
Faoro que consiste em considerar a sociedade civil como estando a
reboque do Estado, embora advirtam que isto até ocorre para uma das
parcelas da burguesia nascente que se diferencia da camada senhorial.
Por outro lado, eles observam que o Estamento burocrático no estado
Patrimonial possui uma relação distinta da escravidão clássica para
com a coroa. Algumas das funções estamentais são efetuadas pela
escravidão que se superpõe, na visão de Fernandes, à sociedade
senhorial. A escravidão é distinta da que serviu de base para que
Weber analisasse as suas bases jurídicas. Os escravos não são um
botim de guerra, mas constituem uma mercadoria. Portanto, ao Estado
Patrimonial se sobrepõe a sociedade de classes.
Florestan utiliza, então, três conceitos de estratificação: classe,
estamento e casta, pois os negros na sociedade brasileira, para o autor,
constituem uma casta. Os escravos, segundo Fernandes, não são uma
classe, mas os agentes sociais responsáveis pela produção
e acumulação primitivas, sob o capitalismo mercantil. Por outro lado,
eles assumem funções que deveriam ser exercidas pela esfera
320 Neuma Aguiar

estamental, sob o Estado Patrimonial. Os escravos, todavia, são alie-


nados do sistema de benefícios patrimoniais, como seriam subseqüente-
mente marginalizados pela ordem competitiva da sociedade de classes.
Florestan utiliza aqui o conceito weberiano de casta, transplantando-o
culturalmente, para indicar a condição dos negros, diferenciando-a do
estamento ou da classe. Saffioti adota esse mesmo conceito, não sem
uma certa desconfiança, pois a autora aponta que o processo de
miscigenação racial indica a existência de um intercurso social entre
brancos e negros, o que seria interditado numa sociedade de castas.
A miscigenação consiste em uma possibilidade de ascensão social,
afirma Saffioti seguindo os passos de Antônio Cândido, na medida em
que o arbítrio da camada senhorial o viabilize, indiferenciando filhos e
filhas legítimos dos ilegítimos. Essa capacidade de arbítrio nas relações
de poder é objeto do interesse de Fernando Henrique Cardoso que
retrata a violência no sistema de mando do Rio Grande do Sul (Cardoso,
1962, p.83-84; 102-119). O arbítrio ocorre pelo processo de regressão
do patrimonialismo estatal ao patrimonialismo patriarcal. Cardoso
observa que os cargos são distribuídos como prebendas típicas, porém
como os direitos e deveres dos cargos numa sociedade em formação
ainda não tinham sido estabelecidos, preponderam os costumes
patriarcais sem os limites estipulados pela tradição. Isto porque,
questiona Cardoso, como é possível falar-se em tradição em um país
novo como o Brasil? Portanto, em lugar de regras codificadas na
punição de crimes, no âmbito jurídico, predomina a impunidade. Heleith
Saffioti endossa a visão de Cardoso ao observar que a vastidão da
colônia e as dificuldades de comunicação dificultam a fiscalização dos
funcionários patrimoniais que esbarram na existência de uma
dominação patriarcal de origem local. A partir do século XIX, indica
Saffioti, estaria consolidado o poder dos chefes de parentela, levando
o Estado patrimonial a se assentar muito mais num tipo de
patrimonialismo patriarcal do que em um patrimonialismo estamental.
Essa forma de organização de poder, em visão totalmente oposta à de
Faoro, se apresenta com alto grau de compatibilidade com o
desenvolvimento do capitalismo, uma vez que a exploração lucrativa
da propriedade territorial levaria a um processo de acumulação que se
tornaria incompatível com a estrutura da sociedade colonial de caráter
estamental. Florestan todavia aponta que as várias burguesias que se
formam em torno da plantação e das cidades já nascem débeis. Em
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 321

lugar de forjarem instituições próprias, elas procuram exercer pressão


e influência sobre o Estado, formando o que o autor denomina de
consolidação conservadora. Esta é o resultado da moldagem da
mentalidade burguesa pelas oligarquias tradicionais. Dessa forma, as
velhas estruturas se vêem restauradas.
Saffioti ao desenvolver o tema do patrimonialismo patriarcal, toma
dois eixos de análise: (1) a situação das mulheres brancas e das negras,
no sistema senhorial, bem como a transformação que ocorre em sua
posição decorrente da abolição da escravatura; (2) o processo de
diferenciação, segundo os eixos: urbano/industrial e nordeste/sul,
quando aquela autora atenta para o lugar que o sistema de educação
nele detém. A reclusão doméstica se abranda com o ambiente das
cidades, embora as mulheres brancas fiquem à margem do movimento
abolicionista. No meio rural, persistem os códigos de comportamento da
sociedade patriarcal com a reclusão das mulheres no âmbito doméstico.
Porém, entre a desorganização da família estendida e o predomínio da
família nuclear encontra-se ampla gama de experiências. A prepotência
do pai-de-família vai dando lugar à função econômica de provedor.
Saffioti mais recentemente aponta para um grande conjunto de
contribuições na literatura feminista internacional que retoma a relação
entre capitalismo e patriarcado, quando reafirma sua visão, tal como a
defendida por Florestan Fernandes, que existe uma simbiose entre
patriarcado, racismo e capitalismo (Saffioti, 1992, p.194-195). A autora
advoga a importância de se lidar simultaneamente com as noções de
dominação e exploração, na análise da dimensão de gênero nos
fenômenos sociais. As questões debatidas na análise de Saffioti, no
entanto, remetem-se bem mais à exploração do que à dominação. Várias
discussões sobre este ponto foram detalhadas na literatura, dizendo
respeito à associação entre a situação doméstica (no casamento ou
derivada de emprego neste âmbito) e a de exército industrial de reserva.
Em lugar de situar as mulheres casadas como uma reserva para o sistema
capitalista, caberia observar como no espaço doméstico, pela domi-
nação patriarcal, as mulheres prestam serviços aos homens, pois o
ingresso em atividades capitalistas não elimina o trabalho doméstico.
Os dois âmbitos, portanto, se condicionam. Outras discussões do
trabalho de Saffioti, bastante revistas na literatura, dizem respeito ao
impacto das crises econômicas na condição de trabalho das mulheres
e à marginalização das mulheres pela introdução de tecnologias
322 Neuma Aguiar

avançadas no processo de desenvolvimento socioeconômico, questões


às quais não retornarei, restringindo-me à discussão do patriarcado.
Embora Saffioti reafirme a importância do processo de urbanização
na diluição do patriarcado, sua análise apresenta uma grande novidade.
A industrialização que emerge com a ordem capitalista resulta no
aumento das disparidades sociais entre homens e mulheres. Maria
Valéria Junho Pena aponta que Saffioti neste caso sofre a influência
de Engels. Quando a propriedade privada se sobrepõe, a monogamia
e o direito paterno também passam a predominar, aumentando as
disparidades sociais entre homens e mulheres.
Castro e Lavinas (1992, p.236-238) colocam o conceito de patriar-
cado como paradigmático nos estudos sobre mulheres e trabalho, porém
não indicam outras contribuições brasileiras além das efetuadas por
Saffioti. Em textos mais recentes, esta última autora passa a apontar
a importância da dimensão de gênero como nova proposta teórica
para os estudos de mulheres e, em seu trabalho sobre violência contra
as mulheres, a autora nesse particular estudo não faz referência à
matriz do patriarcado, embora seja essa uma das perspectivas que
constituem palco das discussões feministas sobre a questão da violência
(Walby, 1990). Recentemente, todavia, Saffioti retorna ao tema. A
escola de Florestan Fernandes, na qual incluímos Heleieth Saffioti, faz
uso de uma combinação da teoria do patriarcado com a de classes
sociais. A fusão dessas duas vertentes analíticas, no entanto, é revista
pela literatura feminista internacional. Quando o patriarcado é
compreendido como uma dimensão do sistema capitalista, diz-se que
o enfoque é dual. Saffioti, da mesma forma que Fernandes, situa o
patriarcado como um antecedente do capitalismo, procurando efetuar
um enfoque histórico e assim evitar o dualismo. Fernandes, no entanto,
aponta para o caráter dúbio do desenrolar histórico do processo
brasileiro, quando a burguesia nacional apresenta um desenvolvimento
limitado pelo capitalismo global, agindo freqüentemente como estamento
e não como classe. O conceito de patriarcado tem sido usado na
literatura feminista internacional para significar as relações de poder
entre homens e mulheres. As mulheres são subordinadas aos homens
no sistema patriarcal. A combinação com a teoria marxista ocorre
para construir uma base material para essas relações de poder. Nesse
ponto, Hartmann (1981, p.1-42) fala da parceria entre o sistema
capitalista e o patriarcado, observando, no entanto, que a incorporação
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 323

das relações de dominação patriarcais no sistema capitalista tem


resultado em um casamento infeliz entre feminismo e marxismo, pois
as relações econômicas sempre constituem o fator principal de
explicação. O objetivo da autora, contudo, é o de explicar as diferenças
salariais entre homens e mulheres, observando que os salários
masculinos são maiores do que os femininos porque incorporam a
subsistência familiar, isto é, a manutenção dos filhos, inclusive a das
esposas. Já dos salários femininos são subtraídos esses recursos.
Capitalistas-patriarcas adotam essa norma estabelecendo um sistema
diferencial de remuneração do trabalho para homens e mulheres. Este
sistema de dominação garante o exercício das atividades domésticas
pelas mulheres. Silvia Walby (1990) também procura explicar tanto as
relações domésticas no casamento quanto as de trabalho remunerado
na esfera capitalista com o conceito de patriarcado. Para esta, é o
sistema capitalista que produz a cisão entre a residência e as atividades
remuneradas originando uma nova situação de dependência para as
mulheres. Essa nova forma de arranjo social, aponta Walby (1990),
propicia o surgimento de uma também nova modalidade de patriarcado.
Porém, a tese da criação do patriarcado pelo sistema capitalista é
uma visão que torna obscura as análises desenvolvidas no Brasil sobre
a emergência de um patriarcalismo agrário e escravista. As formas
de dominação patriarcal, no entanto, se alteram no decorrer da história
aponta Walby (1990). Cabe portanto analisar como o patriarcado
agrário e escravista se transforma, resultando em novas formas de
dominação patriarcal ante a presença de um capitalismo privado, em
sua forma econômica clássica, sob a dominância estatal. Em qualquer
dessas modalidades, ocorre um processo de diferenciação que
hipoteticamente resulta na criação de um estamento que se interporia
entre a autoridade do mandatário e a posição dos demais membros da
sociedade. Observe-se, outrossim, que a proposição de que o capita-
lismo gera uma nova forma de patriarcado não deve ser contrastada
apenas com a produção brasileira sobre o tema, analisada mais acima,
e que prevê a erosão do patriarcado com o desenvolvimento urbano-
industrial, ou com a emergência de um estamento burocrático, mas
também com a própria perspectiva de Max Weber, uma vez que este
último observou que um dos efeitos dos processos de racionalização e
burocratização, característicos do sistema capitalista, é o da corrosão
do patriarcado. A análise desenvolvida pela teoria feminista, portanto,
324 Neuma Aguiar

entra em conflito com esta visão, pois os laços de dependência na


esfera doméstica se acentuam com o desenvolvimento do capitalismo
e/ou do Estado e da burocracia estamental.
O duplo enfoque analítico do público e do privado, do âmbito
doméstico e do trabalho remunerado, pode explicar como o desen-
volvimento da racionalidade societária no contexto do Estado ou
das relações de trabalho capitalistas não resulta na superação do
patriarcado. Formas particularistas continuam a rebaixar os salários
femininos, a incluir as mulheres em um número restrito de ocupações
e a negar-lhes acesso a funções de poder, apesar de importantes
mudanças culturais. Talvez por isto, algumas autoras como Elizabeth
Souza-Lobo apresentem objeções ao conceito de patriarcado. Ela cita
a problematização efetuada por Sheyla Rowbotham que rejeita o
conceito de patriarcado como estrutura universal e historicamente
invariante das relações entre homens e mulheres. Ações políticas não
poderiam mudar essa estrutura. Além disso, para o pensamento social
brasileiro, o patriarcado está associado a condições de vida pré-
capitalistas. Souza-Lobo defende, então, o uso do conceito de gênero
como uma categoria analítica, propondo que este deva ser empregado
em lugar de patriarcado, na medida em que o novo conceito comporta
a variabilidade histórica das relações entre homens e mulheres. Embora
essas relações possam ser hierárquicas, em um dado momento histórico,
elas também podem tornar-se igualitárias. Teresita de Barbieri também
segue essa mesma pauta analítica, recusando o conceito de patriarcado
em favor do conceito de gênero. A opção pelo conceito de gênero,
todavia, pode levar à perda do contexto histórico, restringindo-se a
uma atenção exclusiva para com a dimensão microssociológica. Na
retomada recente do conceito de patriarcado na literatura internacional,
postula-se que é perfeitamente possível empregar os dois conceitos,
de gênero e de patriarcado, observando-se, quanto ao primeiro, que
ele possui conotações que não estão presentes no último. Quanto ao
patriarcado e o seu lugar na história, observa-se que a diferentes
momentos históricos corresponderiam distintas formas de organização
patriarcal, sendo este um fenômeno variável. A tarefa acadêmica reside
exatamente em analisar essa variabilidade histórica (Walby, 1990).
Já Carole Pateman (1988) tem uma visão bem distinta dessa. Ela
rejeita gênero em favor de patriarcado, observando que este último
conceito está muito mais ancorado na tradição das ciências humanas.
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 325

A autora busca, então, examinar em que momento de sua construção


teórica, a discussão do patriarcado não se adequa à análise das
condições de vida das mulheres. Revendo autores como Locke e
Maine, Pateman observa que o patriarcalismo, na teoria política clássica,
se opõe ao contratualismo (Maine, 1970). Qual a conseqüência,
pergunta a autora, de analisar as relações conjugais como um contrato
sexual? Mesmo que preponderem relações contratuais, na vida social,
observa a autora, há situações arbitrárias nas relações conjugais que
permanecem acima das elaborações jurídicas, uma vez que estas foram
separadas pelo código liberal como pertinentes ao âmbito privado. As
mudanças na organização do Estado não representam uma transfor-
mação automática do sistema jurídico ou dos códigos culturais que
regem as relações entre homens e mulheres. Além disso, quando se
estabelece um contrato entre membros de uma sociedade que detinham
anteriormente posições de desigualdade, a relação assimétrica não é
atenuada pelo pacto que as partes constituem entre si. A predominância
de relações contratuais, portanto, é insuficiente para fazer cessar o
patriarcado. A autora confirma as previsões estabelecidas por Zillah
Eisenstein (1981) que anunciara um futuro radical para as feministas
liberais quando estas se deparassem com os limites do liberalismo
político para modificar o sistema de dominação patriarcal. Sylvia Walby
(1992) propõe, então, analisar o desenvolvimento de duas formas de
patriarcado: uma privada, baseada nos grupos domésticos, no âmbito
do domicílio, e uma pública, correspondente à emergência do Estado.
A autora propõe que o patriarcado público se endereça a várias
dimensões além das diferenças no trabalho remunerado, incluindo-se
a sexualidade, a violência e o Estado.
Walby (1990, p.19) endossa uma visão de Carole Pateman (1988)
sobre as análises clássicas do patriarcado, observando que essa literatura
tem estado mais voltada para o estudo da relação entre homens de
gerações diferentes do que da relação entre homens e mulheres. Ela
estende esta observação para a teoria weberiana, o que considero
inadequado. Demonstrei acima que em suas tipificações do patriarcado
Weber discute explicitamente a situação das mulheres. Pela pesquisa
com autores clássicos do pensamento social brasileiro empreendida acima
essa crítica também não é pertinente.
Uma importante contribuição para a análise do patriarcado a partir
do contexto brasileiro é oferecida por Jeni Vaitsman (1994). A autora
326 Neuma Aguiar

examina criticamente o sistema de classificação das famílias que as


diferencia entre patriarcal ou extensa e nuclear ou burguesa, apontando
que a família burguesa, de fato, é uma família patriarcal. Com a
separação entre casa e trabalho, inaugura-se a divisão do sexual e do
trabalho, com especialização das funções de provisão da casa e de
cuidados com os filhos. O processo de modernização brasileiro, por-
tanto, inaugura uma nova modalidade de patriarcado. A concepção de
uma família patriarcal burguesa, portanto, permite explicar porque o
desenvolvimento capitalista e a industrialização geram iniqüidades de
gênero. Transformações sociais em ampla escala, incluindo-se nestas
o processo de urbanização, têm sido apontadas como responsáveis
pela criação de novos conceitos de intimidade e de esfera doméstica.
Todavia, a divisão sexual também é recurso de sustentação de
hierarquia no contexto privado. Desde a abolição da escravatura, boa
parte da população negra migrou para as cidades, numa situação
caracterizada por grande desequilíbrio entre os sexos, baixa taxa de
nupcialidade e alta taxa de nascimentos ilegítimos, alta proporção
de solteiros e baixo número de famílias com casamento regularizado,
quando a união consensual sem legitimação jurídica consiste em um
padrão de comportamento comum. Ao lado de famílias nucleares
regularmente constituídas, encontra-se grande proporção de domicílios
com uniões consensuais, isto é, com relações conjugais não contratuais.
Chegamos, portanto a uma nova concepção de patriarcado para a
análise da sociedade brasileira.
Elizabeth Dória Bilac levanta a questão da família patriarcal e do
concubinato remetendo a uma discussão que se iniciara com Antônio
Cândido, tendo continuado com as análises de Florestan Fernandes e
de Heleieth Saffioti, sobre a predominância de relações legítimas
sancionadas pelo casamento para uma parcela da sociedade e de
relações ilegítimas para outra camada social. A autora (Doria Bilac,
1996) examina a situação das uniões consensuais, observando a
crescente procura da justiça comum, em casos de separação,
principalmente quando estas ocorrem no bojo de uniões consensuais.
O direito, afirma a autora, vem se tornando mais difícil de ser burlado,
a tal ponto que os homens nunca foram tão responsáveis pela sua
reprodução biológica. Com o avanço da Ciência e com as possibilidades
de atribuição de paternidade que dantes não existiam, criam-se novas
concepções sobre a relação entre público e privado, em conjunto com
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 327

outros temas, colocando outros desafios para o sistema jurídico e


deixando antever novas possibilidades de alteração e mudança dos
sistemas patriarcais.
O retorno à literatura clássica possibilitou, à luz da literatura
feminista, observar a construção do conceito de patriarcado pelo
pensamento social brasileiro e as modificações que nele vem sendo
introduzidas em suas conotações. No texto, pesquisamos o significado
do conceito de patriarcado no pensamento social brasileiro, suas
conotações e discussões em torno do tema. Observamos como o
sistema de dominação é concebido de forma ampla e que este incorpora
as dimensões da sexualidade, da reprodução e da relação entre homens
e mulheres no contexto de um sistema escravista. Observamos que
uma atenção orientada exclusivamente para o âmbito da economia ou
do sistema político perde de vista as relações hierárquicas no contexto
doméstico. Se mesmo nas sociedades onde o público se destaca do
privado as relações de gênero continuam patriarcais, no âmbito das
sociedades patrimoniais a intimidade entre público e privado não
resultou em uma maior participação política ou econômica das mulheres
nessa esfera pela própria origem patriarcal do estamento burocrático
no contexto de um patrimonialismo patriarcal. As assimetrias de poder
nas relações entre homens e mulheres com o desenvolvimento da
Ciência e do Sistema Jurídico podem ser transformadas historicamente,
mas a análise do patriarcalismo no Brasil e em outros contextos pode
documentar os obstáculos e avanços no desenvolvimento da sociedade.
328 Neuma Aguiar

Abstract. In this text we search the meaning of the patriarchate


concept in the Brazilian Social Thought. We observe how the
dominance system is conceived in a wide form that incorporates
the dimensions of sexuality, of reproduction and of the relationship
between men and women in the context of a slavery system. We
sustain that, if even in the societies where the public differs from
the private, the gender relations remain patriarchal, in the scope
of the patrimonial societies the involvement between public and
private did not result in a larger political or economic participation
of the women in this sphere for the own patriarchal origin of the
bureaucracy in the context of a patriarchal patrimonialism.

Resumé. L’article examine le concept de patriarcat dans la pensée


social brésiliene. On observe qui le systéme de domination
incorpore les dimensions de la sexualité e des relations entre les
genres dans le contexte de l’ésclavage. On defand qui dans les
societés patriominalistes la indifférenciation entre les ordres
publique e privées ne conduit pas a une plus grande participation
politique ou économique des femmes.

Referências Bibiográficas
ADAMS, Julia (1994). “The familial state; elite family practices and
state-making in the early modern Netherlands”. Theory and
Society, 23/24, August.
AGARWALA, Bina (org.) (1988). Structures of patriarchy: the state,
the community and the household. New Delhi: Indian
Association for Women’s Studies.
AGUIAR, Neuma (org.) (1984). A mulher na força de trabalho na
América Latina. Rio de Janeiro: Vozes.
A ZEVEDO , Fernando de (1949). Canaviais e engenhos na vida
política do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos.
BUTLER, Melissa A (1978). “Early liberal roots of feminism: John Locke
and the attack on patriarchy”. American Political Science
Review, n.º 72.
COWARD , Rosalind (1983). Patriarchal precedents: sexuality and
social relations. Londres: Routledge and Kegan Paul.
Patriarcado, sociedade e patrimonialismo 329

C ROMPTON , Rosemary (1993). Class and stratification: an


introduction to current debates. Cambridge: Polity Press.
CROMPTON, Rosemary, MANN, Michael (eds.) (1994). Gender and
stratification. Cambridge: The Polity Press.
DORIA BILAC, Elizabeth (1996). “Mãe certa, pai incerto: da construção
social à normatização jurídica da paternidade e da filiação”.
Trabalho apresentado ao XX Encontro Anual da ANPOCS,
96GTO821.DOC.
DUARTE, Nestor (1966). A ordem privada e a organização política
nacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
EISENSTEIN, Zillah (1979). Capitalist patriarchy and the case for
socialist feminism. New York: Monthly Review Press.
______________ (1981). The radical future of liberal feminism.
New York: Longman.
FAORO, Raimundo (1958). Os donos do poder. Porto Alegre: Globo.
______________ (1993). “A aventura liberal numa ordem patri-
monialista. Dossiê liberalismo, neoliberalismo”. Revista da
USP, n.º 17, março-maio.
HARTMANN, Heidi (1981). “The unhappy marriage of marxism and
feminism: towards a more progressive union”. Women and
Revolution: A Discussion of the Unhappy Marriage of
Marxism and Feminism, Lydia Sargent (ed.) p. 1-41.
LAND, H. (1980). “The Family Wage”. Feminist Review, n.º 6, p. 55-77.
LOCKE, John (1967). Two treatises of government. Organizada por
P. Laslett. Cambridge: Cambridge University Press.
MAINE , Henry Summer (1970). Ancient law. Gloucester, Mass.:
Peter Smith.
PATEMAN, Carole (1988). The sexual contract. Stanford, California:
Stanford University Press.
______________ (1989). The disorder of women: democracy,
feminism and political theory. Stanford, California: Stanford
University Press.
SAVAGE, Mike e WITZ, Ann.(orgs). Gender and bureaucracy. Oxford:
Blackwell Publishers
330 Neuma Aguiar

SHANLEY, Lindon e PATEMAN, Carole (1989). Feminist interpretations


and political theory. The Pennsylvania State University Press.
VAITSMAN, Jeni (1994). Flexíveis e plurais: identidade, casamento
e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de
Janeiro: Rocco.
VIANNA, Oliveira (1938). Populações meridionais do Brasil. São
Paulo: Companhia Editora Nacional.
______________ (1955). Instituições políticas brasileiras. Rio
de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.
WALBY, Silvia (1990). Theorizing patriarchy. Oxford: Brasil Blackwell.
W EBER , Max (1947). The theory of social and economic
organization. Organizada por T. Parsons. Glencoe-Ill: The
Free Press e The Falcon Wing Press.
______________ (1964). Sociology of religion. Boston: Beacon Press.
______________ (1978). Economy and society. Organizada por
Guenther Roth e Claus Wittich. Berkeley: The University
of California Press, 2 vols.
______________ (1961). General economic history. New York:
Collier Books.
WITZ, Ann (1992). Professions and patriarchy. Londres e New
York: Routledge.
Literatura popular e
identidade cultural
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
„„ Apontar os mecanismos envolvidos na formação da identidade
cultural.
„„ Demonstrar a importância da literatura popular na formação da
identidade cultural.
„„ Identificar, na literatura popular, as marcas da identidade cultural.

Introdução
Quando usamos o termo “popular” associado à literatura, estamos
nos referindo a um conjunto de produções literárias com característi-
cas bem específicas e com uma ampla significação. O que entende-
mos por “povo” é extremamente importante para estudar a literatura
popular. No entanto, o fundamental é que a literatura, juntamente
com outras expressões artísticas populares, faz parte de um imenso
patrimônio cultural, que representa nossa identidade e evidencia um
importante senso de pertencimento. Neste texto, você vai conhecer
um pouco mais sobre a relação entre a literatura popular e a identi-
dade cultural.

Cultura e identidade cultural


Você já sabe que o homem é, por natureza, um ser social, um produto cultural.
Mas o que isso quer dizer?
Durante muito tempo, a ideia de cultura e identidade esteve associada a
uma visão nacionalista – cultura brasileira, identidade brasileira, povo brasi-
leiro e, por extensão, uma literatura popular brasileira. Tal abordagem chegou
até a despertar um senso de patriotismo (valorizar e exaltar o que é nacional).
Além disso, chamou a atenção para a importância de estudar melhor aquilo
que pertence ao país, em vez de buscar imitar modelos. Em contrapartida,
tal enfoque apresenta alguns riscos, em especial o risco de homogeneizar ou
simplificar conceitos como cultura, identidade e até de nação. Também pode

Literatura_popular_U3_C08.indd 92 21/09/2016 16:28:04


Literatura popular e identidade cultural 93

levar a desconsiderar algumas práticas por não se enquadrarem numa defi-


nição restrita de cultura ou povo.
Desde o início do século XIX, quando essas visão nacionalista ganhou
força, até os dias de hoje, ampliaram-se bastante esses conceitos. Quando
atualmente tratamos do assunto, devemos considerar uma série de questões,
como, por exemplo, a diversidade cultural e a importância de haver espaço
para todo tipo de expressão cultural, sem que alguém ou alguma instituição
imponha parâmetros ou delimitações a isso.
Quanto à literatura, sabemos que ela é produto do seu meio – mesmo que
um autor crie uma história que se passe em época diferente da sua ou mesmo
em outro planeta, ainda assim, aspectos de seu contexto cultural estarão evi-
denciados.
Na literatura popular, porém, esse processo se dá de um modo mais parti-
cularizado. A literatura, assim como a música, a pintura, a escultura, a dança,
as festas e outros expressões populares, são produzidas e divulgadas a partir
de um vínculo cultural e identitário bem significativo.
Inicialmente, essas manifestações artísticas tinham vínculo com rituais
e crenças compartilhados por certos grupos. Aos poucos, modificaram-se e
ampliaram-se, tornando-se produtos estéticos, com fins de entretenimento.
Contudo, conservam resquícios dessas práticas.

Figura 1. Festa de São João.


Fonte: Bricolage/Shutterstock.com

Literatura_popular_U3_C08.indd 93 21/09/2016 16:28:04


94 Literatura popular

A cultura popular conserva uma relação muito estreita com os hábitos


de vida, com crenças e valores. Você percebe isso nos contos, nos folhetos
de cordel, na música, nas festas. Veja, por exemplo, que as comemorações
juninas celebram a vida do homem sertanejo e suas atividades diárias. A festa
é recheada de simbologias e significações.
A cultura popular está associada a essas relações de trabalho e vida sim-
ples, a um tempo em que as relações se davam por meio da presença, do con-
tato olho no olho. Os códigos de conduta e os ensinamentos eram transmitidos
através da palavra, a qual tinha força de lei.
De certa forma, há um conservadorismo nesse processo. Como práticas
sagradas, elas tendem a se reproduzir mais ou menos preservando as formas
originais (daí os resquícios dos rituais). Não significa que essas práticas cultu-
rais não se atualizem e se adaptem às naturais transformações do mundo. Isso
acontece, sim. Por isso é que a cultura popular é complexa e rica de significa-
ções e ainda hoje tem razão de existir.
E também, por estabelecerem um vínculo cultural, não precisamos temer
que vão desaparecer diante de novos hábitos e tecnologias. Elas se adaptam
(ainda que em um processo mais lento). Se não forem mais significativas,
essas práticas culturais desaparecem ou são substituídas naturalmente.
Para estudar os produtos dessa cultura – como a literatura popular –, é
preciso reconhecer as várias marcas de tempos passados e modos de vida que
se transformam. Mais do que isso: qualquer produção literária popular reflete
os interesses e os valores desse grupo, atende a certa expectativa.
A aceitação, o reconhecimento e a reprodução dessas produções literárias
se dão em um processo de identificação cultural, reforçando as marcas de
uma coletividade, atendendo a uma necessidade de pertencimento, de vín-
culo, tão indispensável em nossas relações sociais.

Diversidade cultural
Diversidade cultural é um conceito relativamente recente, como são re-
centes as leis que determinam promover e valorizar a diversidade cul-
tural. Com isso, a cultura popular e suas manifestações ganham amparo e in-
centivo, um meio de fazer com que chegue a mais pessoas e seja reconhecida
como parte da nossa identidade.
Isso tem relevância porque, por muito tempo, o mais valorizado era a cul-
tura “estrangeira”. No século XIX, por exemplo, quando o Brasil ainda era

Literatura_popular_U3_C08.indd 94 21/09/2016 16:28:04


Literatura popular e identidade cultural 95

colônia de Portugal, difundia-se a ideia de que a cultura boa e de prestígio


era a europeia e que a “boa formação” só poderia vir dos livros e do domínio
da arte erudita – ópera, orquestra, teatro, literatura. Por extensão, a cultura
popular era desprestigiada, considerada coisa de pobre e iletrado.
A diversidade cultural sempre existiu, mas, em algumas épocas, essa mes-
tiçagem era vista como algo negativo. Valorizava-se a pureza da raça e a
fidelidade e processos estéticos padronizados.

No final do século XIX, houve, no mundo todo, um importante avanço das ciências natu-
rais, com descobertas significativas e uma valorização do olhar cientificista. Teorias como
o evolucionismo de Charles Darwin e o determinismo de Hippolyte Taine defendiam a
importância da adaptação do homem ao meio, destacavam as reações instintivas e indi-
cavam que a genética tinha grande interferência nesse processo. Daí interpretações um
tanto equivocadas que priorizavam a importância de uma pureza de raça

Figura 2. Evolucionismo.
Fonte: williammpark/Shutterstock.com

O brasileiro, sob essa perspectiva, era visto como mais fraco, mas susce-
tível (física e moralmente), porque produto de uma diversidade, diversidade
essa que ainda contava com a influência africana, também menosprezada.
E a literatura? Bem, a literatura erudita, de alguma forma, submeteu-se a
essa perspectiva, e isso se deu de duas formas – menosprezando o elemento

Literatura_popular_U3_C08.indd 95 21/09/2016 16:28:04


96 Literatura popular

local e valorizando a imitação de modelos europeus ou olhando para o ele-


mento nacional como algo exótico e frágil.
A literatura popular, como produto de uma coletividade, fica alheia a tudo
isso. Porém, são os estudiosos que vão olhar para ela de um modo diferente,
com consequências importantes. As manifestações literárias populares serão
classificadas a partir das influências raciais e culturais, o que é uma forma
bem simplista de análise, ainda que condizente com o pensamento do período.
Como uma influência do Romantismo, que valorizava o saber do povo,
houve um interesse pelo estudo das produções populares. Mais tarde, no final
do século XIX, sob o viés cientificista, essas produções continuaram a ser
estudadas e classificadas.
Sílvio Romero, um pesquisador dessa época, publicou uma recolha de
contos (Contos populares do Brasil, de 1897), os quais foram divididos em
três categorias – contos de origem europeia, contos de origem indígena e
contos de origem africana e mestiça. Essa divisão é condizente com esse
olhar determinista da época. Ao fazer essa divisão, podemos perceber o que
o pesquisador considera como elementos constituintes da cultura brasileira.
Os contos de origem europeia são aqueles que envolvem elementos má-
gicos, reis e príncipes. Os contos de origem indígena são as histórias de ani-
mais (não aparecem indígenas!) e os contos de origem africana e mestiça com-
preendem também histórias de animais (em especial, o macaco) e facécias,
ou seja, histórias que provocam riso, expondo personagens bobos, pregui-
çosos, ladrões, o que é um indicativo do que se pensava em relação ao povo
de origem mestiça. Vejamos um exemplo deste último ponto.

O NEGRO PACHOLA

Havia uma senhora de engenho casada e sem filhos. Adoecen-


do o marido e morrendo, ficou em lugar dele um preto africano,
chamado Pai José. Assim que Pai José ouviu dizer que ia governar
o engenho, ficou muito orgulhoso.
Logo que foi distribuir o serviço com os outros ne-
gros, passou ordem a eles que, de ora em diante, não o
tratassem mais por Pai José, e sim Sinhô Moço Cazuza.
Os negros lhe obedeceram. E, quando o viam, diziam: “A
bença, Sinhô Moço Cazuza.” O negro, muito concha, respondia:
“Bênção de Deus.”

Literatura_popular_U3_C08.indd 96 21/09/2016 16:28:04


Literatura popular e identidade cultural 97

Não ficou só aí o orgulho do negro. Quando chegou à casa,


disse para a senhora: “Meu sinhá, quando Sinhô Moço Cazuza
chegava em casa cansado, meu sinhá não mandava logo botar
banho para ele? Pois eu também quer.” A senhora, coitada, não
teve outro remédio senão mandar botar banho para Pai José.
Não satisfeito ainda, disse o negro: “Meu sinhá, não mandava
mulatinha esfregar costa de meu sinhô? Pois eu também quer.” A
senhora mandou a mulatinha esfregar as costas de Pai José. Este
ainda continuou: “E meu sinhá não dava camisa gomada pra meu
sinhô vestir? Pai José também quer.” A pobre mulher foi buscar
uma camisa engomada, deu a Pai José para vestir. E, vendo que
devia acabar com as pacholices daquele negro, falou com dois
criados, muniu-se de dois bons chicotes e mandou-os esconde-
rem-se no quarto. Esperou que o negro pedisse mais alguma coi-
sa. E não tardou que ele dissesse: “Meu sinhá, quando meu sinhô
acabava de tomar banho e de vestir a camisa grosmada, ia para o
quarto pra meu sinhá catar piolho nele? Pai José também quer.”
A moça não teve dúvida. Mandou-o entrar para o quarto e deu
ordem aos criados que empurrassem o chicote.
Se ela bem ordenou, melhor executaram os criados. Pai José apa-
nhou tanto que escapou de morrer.
No outro dia, bem cedo, o negro foi para a roça ainda muito ma-
goado das pancadas. E, quando os negros o saudaram: “A ben-
ça, Sinhô Moço Cazuza”, ele muito zangado respondeu: “Cazu-
za, não, eu sou Pai José.” E deu ordem para o tratarem pelo seu
próprio nome. Os negros muito admirados ficaram sem saber a
causa daquela mudança.
Nunca mais Pai José pediu banho, nem camisa engomada, nem
à senhora para catar piolhos.
(ROMERO, 1985, p. 194)

Literatura_popular_U3_C08.indd 97 21/09/2016 16:28:04


98 Literatura popular

O conto mostra as relações sociais de poder e dominação, através da lição


dada ao “pai José”. Mostra também a vida nos engenhos, a escravidão e al-
gumas práticas cotidianas. Na moral do conto, percebe-se certa visão precon-
ceituosa e a valorização dos brancos, em detrimentos dos negros.
Leia a análise da literatura popular feita pelo próprio Sílvio Romero, à
época:

As relações da raça superior com as duas inferiores tiveram dois


aspectos principais: a) relações meramente externas, em que os
portugueses não poderiam, como civilizados, modificar sua vida
intelectual que tendia a prevalecer e só poderiam contrair um ou
outro hábito, e empregar um ou outro utensílio na vida cotidiana
ordinária; b) relações de sangue, tendentes a modificar as três ra-
ças e a formar o mestiço.
(ROMERO, 1985, p. 16)

través dela, notamos o reconhecimento de um multiculturalismo brasi-


leiro, representado pelo mestiço, mas, ao mesmo tempo, uma noção que su-
pervaloriza uma cultura em detrimento de outras, consideradas inferiores e
desprovidas de “civilidade”.
Felizmente, o que era considerado uma fraqueza – a mestiçagem – foi
sendo percebido como uma riqueza, uma fonte inesgotável de criação, desper-
tando interesses legítimos em termos de estudos, especialmente a partir dos
anos 1920, com o Modernismo brasileiro.
Atualmente, a diversidade cultural é mais valorizada, porque há um
maior reconhecimento da complexidade de elementos e influências em
nosso meio. Até mesmo os Parâmetros Curriculares Nacionais, um do-
cumento que normatiza o ensino no Brasil, reforça a importância de co-
nhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro.
Algumas leis preveem o ensino da cultura afro-brasileira e o contato com
as culturas indígenas, em uma tentativa de nos reconhecermos como pro-
duto de uma sociedade que valoriza a liberdade de criação e de expressão
cultural.

Literatura_popular_U3_C08.indd 98 21/09/2016 16:28:04


Literatura popular e identidade cultural 99

O contador de histórias – um mediador


da cultura
Para deixar mais clara a relação entre a cultura e a literatura popular,
vamos analisar agora um aspecto essencial na literatura – o contador de his-
tórias, ou cantador, ou poeta.
Como dissemos anteriormente, a literatura popular conserva resquí-
cios de rituais, que celebravam momentos importantes da vida em comu-
nidade – colheitas, nascimentos, conquistas e até tragédias. Desde tempos
imemoriais, as comunidades mais primitivas se organizavam em torno
de líderes, responsáveis pelos ensinamentos e pela ordem. Em geral, esse
papel era ocupado pelos mais velhos – os sacerdotes, os xamãs. Essas
figuras estabeleciam uma ligação entre o sagrado e o cotidiano. Eram de-
tentores do poder da palavra.
Como sabemos, a literatura popular tem como suas bases a oralidade, daí
o impacto da voz, daquilo que é proferido como valor-verdade.
A partir desse conceito, podemos relacionar a função do xamã com a do
poeta popular, que domina um código social, que conhece o seu grupo, que
recorre à palavra para divulgar e transmitir os saberes de seu grupo. Ele faz a
mediação entre a cultura e as pessoas, através da literatura.
É por isso que, nas histórias populares, comumente percebemos o narrador
se colocar como testemunha dos fatos, para reforçar a importância do que está
sendo apresentado. Ao contar uma história, faz isso levando em consideração
seu papel de mediador da cultura, o que exige conhecimento e experiência,
mas também sensibilidade, para atingir seu interlocutor. Torna-se, de certa
forma, a memória vida de sua cultura.
Observe os exemplos a seguir, que evidenciam o papel do contador de
histórias como um transmissor da cultura.

Literatura_popular_U3_C08.indd 99 21/09/2016 16:28:04


100 Literatura popular

EXEMPLO 1 – O BOI LEIÇÃO


Informante: José Maria de Melo, Alagoas
E no dia do casamento houve uma festa tão grande que abalou todo o pessoal da
redondeza. Dançou-se sete dias com sete noites “encastoados”. Naquele tempo eu
ainda era solteiro, e meti-me no meio e dancei tanto que quase me acabo!… A festa
só acabou no fim do sétimo dia; assim mesmo porque os dedos do tocador de harmô-
nico, de tão inchados que estavam de tocar, não podiam mais arrastar o fole.
(CASCUDO, 2003, p. 184)

EXEMPLO 2 – LAMPEÃO ARREPENDIDO DA VIDA DE CANGACEIRO


Autoria: Laurindo Gomes Maciel
Virgolino Lampeão
Se achar meu verso ruim
Deus queira que o Governo
Brevemente dê-lhe fim
Falei somente a verdade
Lampeão por caridade
Não tenha queixa de mim.

Terminei caro leitor


O verso de Lampeão
Descrevi divinamente
O que ele fez no sertão
Nada mais tenho a dizer,
Quando Lampeão morrer
Faço outra narração.
(PROENÇA, 1986, p. 375)

Literatura_popular_U3_C08.indd 100 21/09/2016 16:28:04


Literatura popular e identidade cultural 101

EXEMPLO 3 – MINHOCÃO
Entrevistado: Vadô
Outro dia, foi dois dia de festa, dois dia de festa. Dois, três dia que nós ia embora pra
buscar padre que tinha lá, pra nós fazer essa brincadeira. Não, mas diz que é, eu tô
falando pro senhor, é realidade! O que eu falo o senhor escreve, eu assino. Então, o
senhor vê como é. Então tá.
Bandeira ficava quadro, cinco dia. Comia capivara, peixe, o que tiver, né? Ah! Nesse
tempo, mandioca tinha todo dia na beira do rio aí. Passava aquela lancha aí, a Cabuxio,
a Panamericana, tudo. No tempo que matava capivara, sabe? Matava jacaré. [...]
Aí, nós tomando umas pinga e tal... Aí o companheiro falou:
– Ah! Rapaz, eu tô cum uma fome muito forte! Eu vou matar uma capivara!
Falei:
– Vamos, eu vou cum vocês.
Outro falou:
– Eu também vou! Vamos caçar aí, matar umas capivara aí, lontra, qualquer coisa, né?
E eu tava enjoado dos remédio e bem passado da bebida. Pegamos essa canoa.
Aaooô rapaz! [...]
E esse rapaz caçava, esse que num quis pegar a bandeira, caçava também. Foi e
atirou nesse bicho. Mas atirou: pá! [...]
Aí o pessoal me disseram:
– Cê sabe o que que é? Esse é o bicho que ele atirou. Esse é o minhocão.
(FERNANDES, 2002, p. 168-169)

No Exemplo 1, temos um trecho de um conto coletado por Câmara Cas-


cudo. Trata-se do final da história. Em primeira pessoa, o narrador, para le-
gitimar o teor do narrado, coloca-se como testemunha e descreve detalhes da
festa em comemoração ao final feliz.
No Exemplo 2, o final de um folheto de cordel. Como é muito comum
nesse gênero literário, as últimas estrofes fazem referência ao interlocutor,
motivando-o a comprar o folheto. Neste caso, em particular, o poeta dirige-
-se, primeiramente, a Lampeão, receoso do impacto da narrativa; em seguida,
dirige-se ao leitor, atestando seu conhecimento sobre o assunto e prometendo
tornar a versejar sobre o tema.
No Exemplo 3, temos a transcrição de um depoimento de um pantaneiro
sobre sua vida de vaqueiro. No trecho, fica evidente a preocupação em ga-
rantir a veracidade do narrado (como nos outros dois exemplos) a partir da
legitimação da própria palavra (“O que eu falo o senhor escreve, eu assino”).

Literatura_popular_U3_C08.indd 101 21/09/2016 16:28:04


102 Literatura popular

Também podemos conhecer mais sobre a vida no Pantanal, os hábitos e o


imaginário – como o Minhocão, a cobra que, em noites de lua cheia, suga o
sangue das pessoas.
Nos três casos, há um comprometimento de quem conta com aquilo que
é contado, evidenciando domínio do contexto onde se desenvolve a história.
Através de seu relato, temos as explicações e as informações sobre as práticas
culturais, sobre os modos de relacionar o cotidiano ao discurso literário.
Os textos populares estão repletos de exemplos de modos de ser e de
pensar. Conhecer a literatura popular, entre muitas vantagens, permite co-
nhecermos expressões culturais e, mais do que isso, estreita nossos vínculos
identitários, porque nos reconhecemos nessas histórias.

CASCUDO, L. da C. Contos tradicionais do Brasil. 13. ed. São Paulo: Global, 2003.

FERNANDES, F. A. G. Entre histórias e tererés: o ouvir da literatura pantaneira. São Paulo:


EDUNESP, 2002.

JOLLES, A. Formas simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, con-
to, chiste. São Paulo: Cultrix, 1975.

MEYER, M. (Org.). Autores de cordel: literatura comentada. São Paulo: Abril Educação,
1980.

PROENÇA, M. C. Literatura popular em verso (antologia). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/


EDUSP, 1986.

ROMERO, S. Contos populares do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1985.

Leituras recomendadas
BERND, Z.; UTÉZA, F. (Orgs.) Produção literária e identidades culturais: estudos de literatura
comparada. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1997.

ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. São Paulo: Papirus, 1998.

ZUMTHOR, P. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Literatura_popular_U3_C08.indd 102 21/09/2016 16:28:05


O processo
migratório como
fator social e
econômico
Eduardo Pacheco Freitas

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Identificar os elementos históricos que levaram ao processo migratório


no Brasil.
>> Analisar a influência da migração na dinâmica econômica e política do Brasil.
>> Reconhecer a importância da migração para a formação social e cultural
do Brasil.

Introdução
Além de ser um país de imigrantes estrangeiros, o Brasil também é um país de
relevante migração interna. A partir da segunda metade do século XX, o País
experimentou grandes fluxos migratórios, que ocorreram sobretudo da região
Nordeste em direção à Sudeste. Esse movimento de grandes contingentes teve
as suas origens históricas na pobreza das regiões originárias dos migrantes, que
funcionou como fator de expulsão destes de suas terras natais. Como fator de
atração ao Sudeste, houve o grande desenvolvimento econômico pelo qual essa
região passou, com a industrialização e a construção de rodovias, que facilitaram
a migração.
2 O processo migratório como fator social e econômico

Desse modo, o País teve diversas esferas de sua sociedade influenciadas


pelos movimentos de migração. A política, a cultura e a economia brasileiras têm,
em suas expressões atuais, a marca do trabalho e da presença dos migrantes.
Portanto, pode-se afirmar que o Brasil, como o conhecemos, não seria o mesmo
sem os fluxos migratórios que ocorreram no século passado.
Neste capítulo, você estudará sobre as origens históricas da migração no
Brasil. Além disso, verá uma análise da migração sob o ponto de vista econômico e
político. Por fim, você conhecerá o papel relevante dos migrantes para a formação
sociocultural brasileira.

Origens do processo migratório brasileiro


Nos últimos 60 anos, o Brasil experimentou um grande fluxo migratório interno.
Os movimentos migratórios estão profundamente conectados ao processo
de urbanização crescente que o País viveu no período e à redistribuição da
população brasileira no espaço do território nacional. Embora os fluxos mi-
gratórios ocorram no País desde o século XIX, é a partir da segunda metade
do século XX que eles irão se intensificar e se tornar um fenômeno bastante
considerável (BAENINGER, 2012).
A cada ciclo econômico verificado nos últimos dois séculos, houve formas
migratórias diferentes: ao longo do século XIX, a migração esteve vinculada
à produção cafeeira; da última década do século XIX até 1930, os migrantes
buscavam inserção em um novo sistema cafeeiro e na industrialização inci-
piente; entre os anos de 1940 e 1950, houve a integração do mercado interno
e um maior desenvolvimento regional, sobretudo na região Sudeste, que
passou a atrair cada vez mais migrantes (BAENINGER, 2012).
De 1950 a 2000, ocorreu a internacionalização da economia brasileira,
somada a um ritmo de urbanização jamais visto no País, sendo esse fenô-
meno diretamente relacionado aos fluxos migratórios da região Nordeste
em direção à Sudeste. Na década de 1980, esse fluxo migratório diminuiu
consideravelmente, ganhando novo fôlego apenas no século XXI. Neste ca-
pítulo, trataremos exclusivamente do período considerado mais relevante e
com maiores impactos na sociedade brasileira, que corresponde justamente
à segunda metade do século XX (BAENINGER, 2012).
A partir da década de 1950, a principal causa para a migração interna
foram os desiquilíbrios na distribuição regional da riqueza. As regiões Norte e
Nordeste apresentaram, historicamente, uma menor participação na riqueza
do Brasil, além de serem regiões negligenciadas em amplo aspecto pelo poder
central que se encontrava no sul do País. Além disso, a necessidade cada vez
O processo migratório como fator social e econômico 3

maior de mão de obra não qualificada para a indústria e para a construção


civil contribuiu sobremaneira para a atração de migrantes das regiões Norte e,
principalmente, Nordeste em direção às regiões Sudeste e Sul (SINGER, 1980).
Portanto, qualquer abordagem sobre os fenômenos migratórios deve
ser realizada a partir da perspectiva histórico-estrutural, buscando-se
compreender os fenômenos e processos que condicionaram as decisões
dos migrantes de partirem em busca de novas oportunidades. Para melhor
compreensão, deve-se considerar também a conjuntura internacional, em
que as massas se deslocam em função do capital. Nesse sentido, Singer
(1980, p. 80) afirma que:

Como qualquer outro fenômeno social de grande significado na vida das nações,
as migrações internas são sempre historicamente condicionadas, sendo o resul-
tado de um processo global de mudança, do qual elas não devem ser separadas.
Encontrar, portanto, os limites da configuração histórica que dão sentido a um
determinado fluxo migratório é o primeiro passo para o seu estudo.

No caso do Brasil, a origem das migrações está estreitamente relacionada


com a economia, visto que, enquanto país inserido na periferia do sistema
capitalista mundial, ele tem suas esferas econômicas, políticas e sociais
profundamente afetadas pelo contexto internacional. O fenômeno migratório,
como parte da sociedade, não poderia deixar de ser influenciado também
pelas movimentações do capital mundial. Quando se inicia um grande fluxo
de migrantes das regiões mais ao norte do País em direção às regiões ao
sul, este se dá sobretudo pelas grandes transformações econômicas pelas
quais o País passava, em um momento em que deixava de ser um país rural
e passava a ser um país urbano (SINGER, 1980).

Na região Nordeste, a década de 1950 foi marcada por um processo


constante de crescimento demográfico, que desencadeou graves
problemas em termos sociais e políticos. Ao mesmo tempo, havia uma espécie
de insatisfação popular com as condições de vida locais, ao passo que se vis-
lumbrava uma certa opulência (se comparada à vida miserável no Nordeste)
no Sudeste, região mais desenvolvida do País. Houve tentativas de fixar os
nordestinos em sua terra, por meio da criação de associações camponesas,
que lutavam contra os latifúndios e buscavam promover o acesso à terra para
os pobres. Contudo, a crise não foi solucionada, e políticas que incentivaram
a migração foram implementadas, contribuindo para os fluxos migratórios em
direção à região Sudeste e conformando uma situação dual no País, em que o
campo é atrasado e o espaço urbano é desenvolvido (RUA, 2003).
4 O processo migratório como fator social e econômico

Nesse contexto, o Brasil mudava — embora em dimensão reduzida — a


sua participação no cenário internacional, tornando-se exportador de pro-
dutos industrializados. Essa nova condição, ligada ao desenvolvimento das
indústrias, sobretudo no estado de São Paulo, contribuiu de alguma forma
para as migrações. Entretanto, o grande motor a colocar em marcha os fluxos
migratórios da região Nordeste, sem sombra de dúvida, foi a criação de um
mercado interno, no qual surgiram bens de consumo fabricados no próprio
País, como uma linha variada de eletrodomésticos e, muito importante, um
parque automobilístico, implantado durante o governo de Juscelino Kubitschek
(1956–1961). Essa nova matriz industrial instalada no País exigia mão de obra de
maneira crescente, funcionando como um fator de atração dos migrantes, que,
em suas regiões de origem, enfrentavam fatores de expulsão (DRAIBE, 1985).

Um dos paradigmas explicativos dos movimentos migratórios é o


modelo “repulsão/atração”, segundo o qual “no centro dos processos
migratórios, se encontra a decisão de um agente racional que, na posse de
informação sobre as características relativas das regiões A e B, e de dados
contextuais respeitantes à sua situação individual e grupal, decide pela perma-
nência ou pela migração” (PEIXOTO, 2004, p. 5). Em outras palavras, a migração
só pode ocorrer na convergência de processos complementares: as condições
adversas na região de origem (dificuldades/repulsão) e o vislumbre de melhores
condições em outro local (oportunidades/atração).

No entanto, outras transformações da sociedade brasileira serviram


como atração para os migrantes a partir da década de 1950. Naquele período,
sobretudo no governo de Juscelino Kubistchek (JK), uma nova doutrina eco-
nômica tomou conta do País: o nacional-desenvolvimentismo. A partir dessa
doutrina, JK foi eleito, prometendo intervir fortemente na economia, com o
objetivo de modernizar o País. A sua base foi o conhecido Plano de Metas,
que propunha soluções para as áreas da indústria, do campo, da energia, da
educação, entre outras. O slogan de JK foi “50 anos em 5”, afirmando que o
Brasil experimentaria um avanço rápido como nunca visto em sua história.
O maior símbolo da administração de JK foi a construção de Brasília, uma
representação do novo país, industrializado e cosmopolita, que ele pretendia
inaugurar (BIELSCHOWSKY, 2007).
A construção de Brasília, iniciada em 1956, exerceu uma forte atração
sobre os migrantes do norte e, principalmente, do Nordeste e do estado de
Goiás. Os candangos, como ficaram conhecidos os migrantes-operários que
construíram Brasília, chegaram a somar mais de 60 mil indivíduos no auge das
O processo migratório como fator social e econômico 5

obras. Para acomodar esse enorme contingente de pessoas, as construtoras


levantaram grandes acampamentos, que, na prática, funcionavam como
pequenas cidades (REIS JÚNIOR, 2008).
Inicialmente, o maior número de migrantes veio de Goiás, segundo o censo
realizado em 1957, que apontou como oriundos desse estado 3.152 migrantes.
Entretanto, a partir de 1958, uma grande seca na região Nordeste promoveu o
deslocamento de 4 mil flagelados em direção aos canteiros de obras da nova
capital. Ainda assim, no ano de 1958, os operários goianos compunham 52%
da população da Cidade Livre (Figura 1), acampamento que reunia a maior
parte dos candangos. Portanto, tem-se dois fatores principais na formação
do perfil do migrante que construiu Brasília: a proximidade geográfica (Goiás)
e as dificuldades econômicos advindas das secas que assolavam a região
Nordeste (REIS JÚNIOR, 2008).

Figura 1. Cidade Livre (1959), a maior cidade dos candangos, que abrigou dezenas de milhares
de migrantes-operários durante a construção de Brasília.
Fonte: Núcleo... (2020, documento on-line).
6 O processo migratório como fator social e econômico

Influências da migração sobre a economia e


a política brasileiras
A partir de 1930, as migrações internas brasileiras passaram a desempenhar um
papel de destaque na recomposição espacial do Brasil. Como visto, os fluxos
migratórios tinham relação com as atividades de produção mais expressivas
de cada época histórica. Nas primeiras décadas do século XX, a atividade
econômica primária brasileira estava no campo, contudo, ao longo do século,
houve a transposição do centro da economia, que ficava no campo, para as
cidades e suas indústrias, comércios e serviços (MATA, 1973).
Portanto, o fenômeno de migração desse período foi caracterizado, muitas
vezes, como êxodo rural, já que houve um deslocamento massivo de cam-
poneses para as cidades em busca de trabalho e melhores oportunidades.
Entre 1940 e 1970, por exemplo, enquanto a taxa da população rural crescia a
1,8%, nas áreas urbanas, o crescimento populacional era de 4,8%. Em suma,
um dos principais resultados da migração interna brasileira foi o inchaço das
grandes cidades do País, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro (MATA, 1973).
No século XX, o Brasil modernizou a sua economia e, como não poderia
deixar de ser, atrelada a essa nova dinâmica, a sociedade e a política se trans-
formaram. Em decorrência da demanda por mão de obra nas indústrias, que
surgiam em velocidade cada vez mais acelerada, principalmente na década
de 1950, em função do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, houve
a atração de migrantes da região Nordeste.
Todavia, não foi somente para o trabalho na indústria que essas pessoas se
deslocaram dentro do Brasil rumo à região Sudeste. À época, o Brasil passou
a apostar fortemente no modelo de transporte estadunidense, deixando de
lado as ferrovias e as hidrovias e investindo na construção de milhares de
quilômetros de estradas, pontes e rodovias por todo o país (FREITAS, 2017).
Desse modo, dois aspectos que se complementam podem ser destacados:
primeiro, a transformação econômica nos campos da indústria e dos trans-
portes, que funcionou como elemento de atração para os migrantes; segundo,
as próprias rodovias e pontes construídas pela mão de obra dos migrantes
facilitaram ainda mais o deslocamento destes para as regiões Sul e Sudeste.
Assim, o Brasil se tornava um país em que as distâncias eram diminuídas
a cada dia, promovendo uma grande transformação social devido à nova
infraestrutura de transportes (FREITAS, 2017).
Trata-se, pois, de uma relação dialética: à medida que a economia se
desenvolvia, os migrantes desenvolviam a economia com sua força de tra-
balho. Daí a centralidade dos migrantes da região Nordeste no dinamismo da
O processo migratório como fator social e econômico 7

economia brasileira do século XX. Portanto, não é possível analisar aquele


período sem que os trabalhadores oriundos de outras regiões do Brasil — e
suas realizações no Sudeste — sejam levados em consideração.

É evidente que a maior parte dos trabalhadores migrados da região


Nordeste para a Sudeste encontrou condições de vida tão ou mais
adversas que aquelas existentes em seus estados de origem. Um importante
fato econômico envolvendo os migrantes é chamado pela sociologia de cor-
reias transmissoras. Na prática, isso significa que os migrantes fogem de um
contexto de subemprego/desemprego de suas regiões originárias para, na
maioria das vezes, encontrar a mesma condição nas metrópoles para as quais
se transplantaram (FERREIRA, 1986).

O campo político também foi significativamente influenciado pela presença


dos migrantes. A sobreposição dos ambientes públicos urbanos, onde viviam
a maior parte dos imigrantes, e o âmbito privado do trabalho forneceram todo
tipo de combustível para a construção de identidades de classe, consciência
da condição de migrante, bem como para a formação de movimentos sociais,
sindicais e políticos característicos da periferia do capitalismo mundial. Aliás,
os migrantes, como afirma o cientista social Nozaki (2009, p. 305), situam-se
“nas periferias da periferia do capitalismo”.
No século XX, os migrantes, principalmente os nordestinos, ajudaram a
criar a classe operária brasileira, que atuou nas indústrias de base, petro-
química, siderúrgica e automobilística. Em virtude de sofrerem com baixas
remunerações, os trabalhadores se organizaram contra essas condições de
trabalho, fundando alguns dos maiores sindicatos do País. Essas organizações,
compostas em maior parte por migrantes ou filhos destes, foram respon-
sáveis por buscar, no campo político, o cumprimento das suas demandas.
Instrumentos como a greve foram particularmente importantes para que as
categorias de trabalhadores conseguissem impor a sua vontade e obter mais
direitos e melhores salários.
O período que vai de 1964 até meados da década de 1980 foi muito compli-
cado para os grupos que exigiam direitos e democracia. No entanto, é nesse
período que grupos políticos e sindicais despontam no cenário político do
País, como o Partido dos Trabalhadores (PT), criado em 1982, tendo um dos
seus maiores expoentes o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, um migrante
pernambucano que chegou a São Paulo vindo em um caminhão pau-de-arara
(Figura 2). Lula ainda estaria no centro das atenções ao liderar o grande ciclo
de greves dos metalúrgicos do ABC paulista, ocorrido entre 1978 e 1980 (Figura
3), já no ocaso da ditadura civil-militar.
8 O processo migratório como fator social e econômico

Figura 2. O caminhão pau-de-arara é um meio de transporte irregular utilizado durante décadas


no transporte de migrantes saídos da região Nordeste em direção a São Paulo. Como se vê
na imagem, é um veículo sem qualquer tipo de conforto ou segurança para os passageiros.
Fonte: Campanato (2006, documento on-line).

Figura 3. O futuro presidente Lula, migrante e então sindicalista, discursa para uma multidão
de operários grevistas, em 1979.
Fonte: Piccino (1979, documento on-line).

Outra grande liderança política de origem migrante é Luiza Erundina,


nascida no estado da Paraíba, que viria a se tornar a primeira prefeita de
São Paulo, a maior cidade da América Latina. Desde a juventude, Erundina
foi militante política, atuando na defesa da reforma agrária em seu estado
O processo migratório como fator social e econômico 9

natal, no interior de movimentos católicos. Formada em Serviço Social pela


Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Erundina também se tornaria uma
das fundadoras do PT, junto a Lula. O PT, no contexto da redemocratização,
tornou-se um sinal de esperança para a democracia brasileira, que renascia
(ERUNDINA; JINKINGS; PERICÁS, 2020).
Como visto, a migração no século XX, sobretudo em sua segunda metade,
moldou a face do Brasil em diversos aspectos. Além da influência dos mi-
grantes sobre a economia, desenvolvida a partir da sua força de trabalho,
houve o aparecimento de lideranças políticas importantes e que mudaram
a história do Brasil nas últimas décadas. Desse modo, pode-se concluir que,
sem o fenômeno migratório – em particular o nordestino –, o Brasil seria um
país com uma versão bastante diversa da atual.

Migração e formação sociocultural


brasileira
O Brasil é um país eminentemente urbano, porém essa nem sempre foi a reali-
dade nacional. Foi somente a partir da década de 1950 que ocorreu uma virada na
composição da população brasileira no que se refere ao binômio rural/urbano.
Naquele período, as cidades passaram a exercer uma forte atração sobre os
migrantes, que incharam o uso do espaço urbano e contribuíram para a criação
das regiões conturbadas e metropolitanas. Segundo o Censo de 2010, 84,35%
da população brasileira vivia em cidades, e esse número não para de crescer,
muitas vezes por conta dos fluxos migratórios, que continuam a enviar pessoas
das regiões mais pobres do País — frequentemente rurais — para os grandes
núcleos urbanos (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010).
A migração interna brasileira foi um dos fenômenos mais importantes para
a transformação do Brasil de um país rural para um país urbano. Portanto,
esse fato está profundamente conectado à criação não somente de uma
sociedade urbana, mas também de uma cultura urbana. Conforme Gonçalves
(2001, p. 174):

De acordo com os censos do IBGE, na década de 1960, 13 milhões de pessoas


trocaram o campo pela cidade; nos dez anos seguintes, esse número se elevou
para 15,5 milhões. Tudo indica que desde 1970, quando a população rural passou
a ser minoritária, até os dias de hoje, mais de 40 milhões de brasileiros migraram
do campo para a zona urbana. Se levarmos em conta que a região Sudeste con-
centra, sozinha, 72.282.411 habitantes, ou seja, 42,6% da população do país, e tem
um percentual de urbanização da ordem de 90,52%, fica ainda mais evidente o
crescimento da cidade em detrimento do campo.
10 O processo migratório como fator social e econômico

Os números mencionados são impressionantes e dão a dimensão do tama-


nho da migração interna que ocorreu no Brasil na segunda metade do século
XX. Esses movimentos foram tão expressivos, que se tornaram responsáveis
por modificar amplamente as características socioculturais do País. De uma
sociedade mais engessada e tradicional, fundada no campo, o Brasil passou
a ser uma nação mais dinâmica e com acelerado ritmo de transformações
culturais e sociais, frutos obtidos diretamente da transposição de populações
inteiras das áreas rurais e do sertão para os perímetros urbanos brasileiros.
O caso do estado de São Paulo é particularmente interessante, pois esse
estado concentra 1/5 da população brasileira, do qual 1/3 se encontra apenas
na capital do estado. Ao lado do Rio de Janeiro, São Paulo é a região do País
que mais recebeu migrantes nas últimas décadas, recebendo, assim, uma
forte influência das culturas originais dos migrantes. Desde expressões
linguísticas, passando por pratos típicos que caíram no gosto popular até a
música, a contribuição dos migrantes se revela significativa, amalgamando
culturas diferentes, das mais diversas regiões do Brasil (em particular do
Nordeste), formando um caldeirão cultural na megalópole paulista.

Para abordar corretamente o problema da formação sociocultural


brasileira a partir das migrações, deve-se pensar sob a perspectiva
das relações entre território e identidade cultural. Afinal, o território (no qual
o migrante se estabelece) assume relevância para a formação e a afirmação de
identidades e pertencimento. Para Jorge (2010, p. 240) a identidade é “resultado
de um trabalho permanente de renovável construção social e política”, porém
ela também tem origem “geográfica, que leva em conta a extrema mobilidade
dos agentes sociais”. Dessa forma, o espaço físico onde o indivíduo vive é o elo
comum que conduz à identificação dos sujeitos com o ambiente que ocupam.
Assim, as identidades seriam fixadas no território naquilo que o autor qualifica
de identidades socioespaciais, isto é, identificações individuais e culturais que
integram um grupo em um determinado espaço.

Em contrapartida, em vez de influir com a sua própria cultura na nova terra,


pode ocorrer o processo de desterritorialização do migrante. Esse processo
pode ser descrito brevemente como uma quebra de vínculos com um território
originário. Para as classes superiores e abastadas, a desterritorialização não
costuma ser algo nocivo, tratando-se de uma multiterritorialidade segura
e opcional. Contudo, para os mais pobres (maior parte dos migrantes), a
desterritorialização se manifesta frequentemente de maneira coercitiva,
oriunda de opções exíguas para a sobrevivência individual ou familiar, muito
comum nos casos dos refugiados. Catástrofes climáticas, guerras, disputas
O processo migratório como fator social e econômico 11

de fronteira e questões étnicas são as causas mais comuns para a produção


de populações refugiadas, que perdem o vínculo com o território original,
sendo sempre estrangeiros mesmo onde têm a possibilidade de se assentar
(HAESBAERT, 1995).
A migração também pode desencadear o processo de desterritorialização
em dois aspectos principais. Em primeiro lugar, o migrante pode assumir — de
maneira voluntária, como estratégia de sobrevivência em um novo meio —
valores e práticas comuns ao novo território que habita. Em segundo lugar,
a adoção dos novos costumes e o rechaço da sua cultura anterior podem ser
constituídos por meio de elementos coercitivos, como o constrangimento
social pela utilização de palavras ou expressões típicas de sua região de
origem, que soam “exóticas” em sua nova realidade social (HAESBAERT, 1995).

Das produções culturais humanas, o cinema é uma das mais rele-


vantes para a compreensão da vida em sociedade e dos dilemas e
sonhos dos seres humanos. Diversos filmes brasileiros já trataram da questão
dos migrantes, mostrando as suas lutas e dificuldades na nova vida longe da
sua terra natal. O filme O homem que virou suco, de 1981, roteirizado e dirigido
por João Batista de Andrade, retrata a vida de Deraldo (interpretado por José
Dumont), um poeta popular e migrante recém-chegado a São Paulo, onde tenta
se adaptar a uma realidade muito diferente da que estava habituado e, ao
mesmo tempo, tenta sobreviver da venda de folhetos com suas poesias. Em
2015, o filme entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos
os tempos (DIB, 2015).

Outro impacto dos migrantes na sociedade, sobretudo nas grandes cidades


brasileiras, foi o da “favelização”. As periferias das cidades se tornaram o des-
tino de grande parte dos migrantes, em sua grande maioria direcionados para
trabalhos que exigem pouca escolaridade. Em geral, as mulheres ocuparam
os empregos domésticos, como faxineiras, diaristas ou babás. Já os homens,
em sua maioria, foram para a construção civil e para os serviços braçais.
Portanto, o sonho do migrante de encontrar condições de vida melhores
nas cidades da região Sudeste, na maioria dos casos, não se concretizou. O
trabalho se mostrou árduo e mal remunerado, e a habitação se manifestou
longe das áreas mais nobres das cidades e com falta de saneamento básico
(GALHARDO, 2007).
Não é à toa que grande parte da cultura desenvolvida pelos migrantes a
partir dessa realidade — principalmente no cancioneiro popular — manifeste
a saudade e a intenção de retorno à terra de origem, como pode ser obser-
12 O processo migratório como fator social e econômico

vado na obra do conhecido cantor e compositor Luiz Gonzaga. Conforme o


pesquisador José Cunha Lima:

Ao analisar a musicografia produzida por Luiz Gonzaga, logo observo que a saudade
é um tema renitente e presente na vida do migrante e do sertanejo que fica espe-
rando a notícia do parente que se foi em busca de melhores condições de vida, ou
esperando pelo retorno, mas até o regresso é obra da saudade (LIMA, 2011, p. 47).

Neste capítulo, você viu como o Brasil se formou econômica, política e


culturalmente a partir da segunda metade do século XX com a presença e o
trabalho dos migrantes. Os fluxos migratórios, originados principalmente na
região Nordeste, tendo como destino o Sudeste brasileiro, estão relacionados
à grande desigualdade entre as regiões. Enquanto o Nordeste, pobre, serviu
como fator de expulsão de muitos de seus habitantes, o Sudeste, econo-
micamente mais desenvolvido, atraiu levas e levas de migrantes ao longo
das décadas. Desse modo, diversos aspectos da sociedade brasileira foram
moldados a partir desse processo migratório, tanto nas regiões de origem
quanto nas regiões de chegada.

Referências
BAENINGER, R. Rotatividade migratória: um novo olhar para as migrações internas
no Brasil. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 20, n. 39,
p. 77–100, jul./dez. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
abstract&pid=S1980-85852012000200005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em:
22 nov. 2020.
BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvol-
vimento. 4. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007. 480 p.
CAMPANATO, V. Pau de arara usado no transporte ilegal de trabalhadores. Wikipedia,
San Francisco, 9 dez. 2006. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pau_de_arara_
(transporte)#/media/Ficheiro:Caraubasdopiaui10122006-2.jpg. Acesso em: 22 nov. 2020.
DIB, A. Abraccine organiza ranking dos 100 melhores filmes brasileiros. Associação
Brasileira de Críticos de Cinema, [S. l.], 27 nov. 2015. Disponível em: https://abraccine.
org/2015/11/27/abraccine-organiza-ranking-dos-100-melhores-filmes-brasileiros/.
Acesso em: 21 nov. 2020.
DRAIBE, S. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do estado e as
alternativas da industrialização no Brasil (1930-1960). Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1985.
399 p. (Coleção Estudos Brasileiros, 84).
ERUNDINA, L.; JINKINGS, I.; PERICÁS, L. B. Socialista, feminista e nordestina: a primeira
prefeita da maior capital do Brasil. Jacobin Brasil, [S. l.], 13 nov. 2020. Disponível em:
https://jacobin.com.br/2020/11/socialista-feminista-e-nordestina-a-primeira-prefeita-
-da-maior-capital-do-brasil/. Acesso em: 22 nov. 2020.
O processo migratório como fator social e econômico 13

FERREIRA, A. Migrações internas e subdesenvolvimento: uma discussão. Revista de


Economia Política, São Paulo, v. 6, n. 21, p. 98–124, jan./mar. 1986. Disponível em: https://
rep.org.br/rep/index.php/journal/article/view/1783 . Acesso em: 22 nov. 2020.
FREITAS, E. P. Da era das barcas à era das pontes: os debates em torno da construção
da Travessia Régis Bittencourt/Ponte do Guaíba (1955-1958). Orientador: Luis Carlos dos
Passos Martins. 2017. 154 f. Dissertação (Mestrado em História, área de concentração
História das Sociedades Ibéricas e Americanas) – Escola de Humanidades, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. Disponível em: http://
tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/7345. Acesso em: 22 nov. 2020.
GALHARDO, S. Os conterrâneos nordestinos na metrópole de São Paulo: seus símbolos,
sua memória e seus mitos. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINA-
RES EM CULTURA, 3., 2007, Salvador. Anais [...]. Salvador: Faculdade de Comunicação,
Universidade Federal da Bahia, 2007. p. 1–16. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/
enecult2007/SoledadGalhardo.pdf. Acesso em: 22 nov. 2020.
GONÇALVES, A. J. Migrações internas: evoluções e desafios. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 15, n. 43, p. 173–184, set./dez. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142001000300014&lng=pt&nrm=iso&tln
g=pt. Acesso em: 22 nov. 2020.
HAESBAERT, R. A desterritorialização: entre as redes e os aglomerados de exclusão. In:
CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (org.). Geografia: conceitos e temas. 5. ed.,
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 165-206.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2010: população do Brasil
é de 190.732.694 pessoas. IBGE, Rio de Janeiro, 29 nov. 2010. Disponível em: https://
censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?view=noticia&id=3&idnoticia=1766&busc
a=1&t=censo-2010-populacao-brasil-190-732-694-pessoas. Acesso em: 22 nov. 2020.
JORGE, R. R. Território, identidade e desenvolvimento: uma outra leitura dos arranjos
produtivos locais de serviços no rural. Orientador: Júlio Cesar Suzuki. 2010. 304 f.
Tese (Doutorado em Geografia) – Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível
em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-04022010-140724/pt-br.php.
Acesso em: 22 nov. 2020.
LIMA, J. C. “Saudade o meu remédio é cantar”: um estudo sobre a saudade na música de
Luiz Gonzaga. Orientadora: Mariângela de Vasconcelos Nunes. 2011. 70 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Especialização em História Cultural) – Departamento de História
Cultural, Universidade Estadual da Paraíba, Guarabira, 2011. Disponível em: https://
dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/123456789/1655. Acesso em: 22 nov. 2020.
MATA, M. Urbanização e migrações internas. Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio
de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 715–746, out. 1973. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.
br/bitstream/11058/6758/1/PPE_v3_n3_Urbaniza%c3%a7%c3%a3o.pdf. Acesso em:
22 nov. 2020.
NOZAKI, W. V. Resenha: “Paulo Fontes, um nordeste em São Paulo: trabalhadores
migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966)”. Tempo Social – revista de sociologia
da USP, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 305–319, nov. 2009. Disponível em: https://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702009000200015&lng=pt&nrm=iso&t
lng=pt. Acesso em: 22 nov. 2020.
NÚCLEO Bandeirante. In: WIKIPEDIA: a enciclopédia livre. [San Francisco: Wikimedia
Foundation, 2020]. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Laparotomia. Acesso
em: 22 nov. 2020.
14 O processo migratório como fator social e econômico

PEIXOTO, J. As teorias explicativas das migrações: teorias micro e macrossociológicas.


SOCIUS Working Papers, Lisboa, v. 12, n. 11, p. 1–36, nov. 2004. Disponível em: https://
socius.rc.iseg.ulisboa.pt/publicacoes/wp/wp200411.pdf. Acesso em: 22 nov. 2020.
PICCINO, A. C. Luiz Inácio Lula da Silva discursando em uma greve de metalúrgicos
do ABC Paulista, em maio de 1979. Wikipedia, San Francisco, 27 dez. 2017. Disponível
em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Luiz_In%C3%A1cio_Lula_da_Silva_discur-
sando_em_uma_greve_de_metal%C3%BArgicos_do_ABC_Paulista,_em_maio_de_1979.
png. Acesso em: 22 nov. 2020.
REIS JÚNIOR, R. L. Cidade, trabalho e memória: os trabalhadores da construção de
Brasília (1956-1960). Orientadora: Magda de Almeida Neves. 2008. 110 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2008. Disponível em: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Cienc-
Sociais_ReisRL_1.pdf. Acesso em: 22 nov. 2020.
RUA, J. População e cidadania. In: CASTROGIOVANNI, A. C. et al. (org.). Geografia em sala
de aula: práticas e reflexões. 4. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p. 99–118.
SINGER, P. Migrações internas: considerações teóricas sobre seu estudo. In: MOURA,
H. A. (coord.). Migração interna: textos escolhidos. Fortaleza: Banco do Nordeste;
Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste, 1980. t. 1, p. 211–244. (Estudos
econômicos e sociais, 4).

Leitura recomendada
BRUMES, K. R.; SILVA, M. A migração sob diversos contextos. Boletim de Geografia,
Maringá, v. 29, n. 1, p. 123–133, 2011. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.
php/BolGeogr/article/view/10183. Acesso em: 22 nov. 2020.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
As primeiras
manifestações
sociais e políticas
no Brasil
Ana Carolina Machado de Souza

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Identificar os elementos históricos (da Europa e da América) que fomentaram


as primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil Colônia.
>> Descrever a influência europeia e dos Estados Unidos na fundamentação
ideológica das manifestações sociais e políticas no Brasil Colônia.
>> Reconhecer o papel das manifestações sociais e políticas no Brasil colonial
na posterior independência do País.

Introdução
Por muitos anos, foi cultivada a ideia de que o Brasil era um país pacífico, e de que
suas revoltas e movimentos sociais não causaram grandes distúrbios, como uma
guerra civil. Contudo, a historiografia passou a enfatizar que os diversos conflitos
desencadeados ao longo de nossa história e como o governo da época lidou com
eles deveriam ser analisados como períodos de profunda turbulência política e
social. A organização da sociedade em prol de um objetivo em comum, seja em
âmbito local ou federal, demonstram insatisfações e a necessidade de mudança.
Desde a chegada dos portugueses, a sociedade brasileira foi formada a partir
de conflitos. Houve as guerras contra os nativos, contra os invasores e aquelas
2 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

contra o sistema estabelecido. As revoltas nativistas e separatistas duraram mais


de um século, causando um sensível impacto no governo colonial. Assim, neste
capítulo, vamos tratar das manifestações sociais e políticas do Brasil colonial,
com ênfase nas mudanças intelectuais causadas pelo Iluminismo.

O Iluminismo e suas ramificações


O Iluminismo foi um movimento filosófico e intelectual que nasceu na Europa
no final do século XVIII, mas essa cronologia é debatida. Alguns argumentam
que os ideais iluministas são oriundos do Renascimento Cultural e da Revo-
lução Científica dos séculos XVI e XVII. O questionamento e o protagonismo
do pensamento racional revolucionaram a metodologia científica, isto é,
contribuíram para o surgimento de uma nova forma de enxergar o mundo. O
Iluminismo é entendido como herdeiro dessa tradição — portanto, definir uma
origem é tarefa ingrata. Contudo, é comum dizer que essa filosofia começou
na França, no ano de 1715, quando morreu o Rei Luís XIV (1638–1715), que se
tornou o símbolo do Absolutismo no País.

Muito do que se ensina sobre o Absolutismo nas aulas escolares


de história é proveniente da experiência francesa, principalmente
sobre Luís XIV. Conhecido como “Rei-Sol”, ele conseguiu pacificar as relações
diplomáticas com a Espanha, dando espaço para o desenvolvimento do regime
absolutista. Ele se tornou rei em 1643, mas apenas em 1660 assumiu o trono
de fato. Em seu reinado, o Estado foi centralizado totalmente, aumentando
os gastos, modelo administrativo que se mostrou ineficaz (ANDERSON, 2004).

Características gerais
A França, no século XVIII, vivia um regime centralizador que custava muito aos
cofres públicos. A Revolução Francesa, em 1789, foi o rompimento político e
econômico com aquilo que os próprios revolucionários batizaram como “Antigo
Regime”. Seu nascimento se relaciona com a contestação das desigualdades
corroboradas pela maneira como o governo era conduzido. A Revolução foi um
movimento complexo, maior do que as caudas econômicas e políticas óbvias
que se obtêm ao se analisar seu contexto. O historiador François Furet (1989)
defende que foi um acontecimento dinâmico, embasado, inclusive, em antigas
mobilizações contra os governos de épocas anteriores. Porém, o movimento
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 3

de 1789 persistiu e definiu a nacionalidade do País. O que interessa aqui,


contudo, é que a Revolução foi profundamente impactada pelo Iluminismo.
O culto à razão impulsionou os revolucionários franceses. O Terceiro Es-
tado, grupo hierarquicamente marginalizado pela política francesa, era muito
diverso e compunha mais de 70% da população total. Nele, encontravam-se
artesãos, profissionais liberais, pobres, miseráveis, bem como intelectuais e
burgueses. Ou seja, uma parte tinha contato e/ou participava das mudanças
filosóficas que ocorriam há décadas.
Alguns nomes como François-Marie Arouet (1694–1778), conhecido pelo
pseudônimo Voltaire, e Charles-Louis de Secondat (1689–1755), o Barão de
Montesquieu, criticavam abertamente o governo francês. O primeiro, por
exemplo, exaltava a tradição política da Inglaterra (notória inimiga da França),
que, em 1688, viveu a Revolução Gloriosa e adotou a Monarquia Constitucional,
mudando seu sistema político para o Parlamentarismo. Esse movimento
inglês os ajudou a se recompor de todas as disputas dinásticas, conseguindo
financiar desenvolvimentos tecnológicos como a Revolução Industrial de
1760. Além disso, na Reforma Anglicana de 1534, a Igreja Católica perdeu a
hegemonia e a Igreja da Inglaterra se tornou subordinada ao Estado. Essa
característica era exaltada por Voltaire e outros, pois, na França, vivia-se o
chamado “direito divino dos reis”, segundo o qual os monarcas eram consi-
derados enviados por Deus para ocupar seus cargos.

Em 1734, Voltaire publicou as Cartas filosóficas, em que discutiu as


ideias de liberdade política e tolerância religiosa. Devido ao conteúdo,
foram censuradas pelo Estado francês. Já Montesquieu escreveu Do espírito
das leis, em 1748, no qual remodelou o sistema político do País, sugerindo
mudanças na Monarquia. Ficou conhecido por criar a divisão dos três poderes
(Executivo, Legislativo e Judiciário) para que a política se desenvolvesse de
forma mais satisfatória.

Em linhas gerais, pode-se definir o Iluminismo como um movimento que


possuía alguns conceitos característicos que inspiraram as organizações e os
intelectuais a repensarem desde pesquisas científicas até os sistemas políticos
e econômicos. No caso, as ideias recorrentes eram racionalismo, progresso,
liberdade e igualdade, sendo que os dois últimos merecem nossa atenção.
Antes de tudo, é importante entender que conceitos e ideias também têm
seus contextos. Quando se argumentava a favor da liberdade no século XVIII,
fazia-se de acordo com as circunstâncias da época, totalmente diferentes
das de hoje, século XXI. O primeiro passo para compreender seu significado,
4 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

então, é definir que ele é ramificado. O Iluminismo se relacionava ao fim do


Absolutismo, a uma maior limitação do poder real e à influência de outras
classes sociais na política. Ademais, existia a questão da liberdade econô-
mica, que buscava menos intervenção do Estado na economia, a base do
liberalismo econômico. Porém, ela não atingia a todos pessoalmente, assim
como a igualdade.
Com relação à política, a igualdade não se relacionava à imposição de
um sistema democrático, por exemplo. Na França, parte dos revolucionários
do Terceiro Estado queriam aumentar sua mobilidade social e acabar com
os privilégios da nobreza, mas isso não significava que todos alcançariam
uma melhor posição hierárquica na sociedade. A burguesia procurava repre-
sentação política, mas não queria que pobres e miseráveis estivessem na
mesma posição. Os filósofos também não apontavam a igualdade universal
e irrestrita. Porém, foram essas ideias que viajaram dentro da França e entre
tantos outros países, abrindo espaço para o questionamento do status quo,
e isso influenciou o cenário português.

Portugal e o Marquês de Pombal


Portugal foi um dos primeiros países europeus a consolidar o Absolutismo.
Ainda no século XIV, a Dinastia de Avis assumiu o trono, centralizando o
poder político que, mesmo com a União Ibérica (1580–1640), não sofreu a
fragmentação de seu território. Diferentemente de como ocorria na França,
não existia a ideia de “direito divino”, mas o monarca português era muito
popular perante o povo. Como seu Absolutismo teve início antes do que o
de muitos países, começou a Expansão Marítima pela circunavegação do
território africano. A intenção era descobrir novas rotas para as Índias, onde
eram retiradas as especiarias comercializadas na Europa. Nesse processo,
a chegada à América e o início da colonização do Brasil foram fundamentais
para o desenvolvimento do Mercantilismo.
No século XVIII, o Absolutismo entrou em crise em vários países, mas com
menor intensidade em Portugal. Apesar disso, o Iluminismo chegara com
força. Em 1750, quem assumiu o trono foi D. José I (1714–1777), mas seu governo
foi marcado pelo primeiro-ministro que ele mesmo nomeou. Sebastião José
de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1699–1782), foi embaixador na
Inglaterra (1739–1743) e na Áustria (1745–1750), e foi essa experiência que o
ajudou na condução da política internacional e nas mudanças que ocorriam
internamente.
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 5

Desde o Tratado de Methuen (ou Tratado de Pães e Vinhos), de 1703, Portugal


estabelecera uma relação econômica desfavorável com os ingleses devido
aos profundos problemas financeiros que o País vivia. A preocupação residia
na obsolescência da infraestrutura tecnológica portuguesa. Se, no início da
Era Moderna, os lusitanos eram o mais avançados nas técnicas marítimas
e cientificas, no século XVIII, estavam em desvantagem se comparados a
outras nações.
Esses eram os problemas que Pombal enfrentava logo de início, então
sua intenção era reestruturar a administração pública, mas sem modificar
o sistema, que deveria continuar absolutista. O primeiro-ministro se tornou
um dos principais déspotas esclarecidos da Europa, e o Iluminismo era a
corrente filosóficas que embasava os novos tempos.

Ainda que muitos iluministas criticassem o Antigo Regime, a filosofia


foi utilizada por monarcas que buscavam a modernização racional
de seus reinos, mas sem mudança estrutural do sistema. Foram os chamados
déspotas esclarecidos, que queriam reformas na Corte e no próprio governo,
sobretudo no que dizia respeito à arrecadação de impostos. Alguns nomes
conhecidos foram Pedro, o Grande (1672–1725) e Catarina II, a Grande (1762–1796),
da Rússia; Frederico II, o Grande (1740–1786), da Prússia; e próprio Marquês de
Pombal (FLORENZANO, 1981).

No meio do processo de reformas, em 1755, Portugal sofreu um dos piores


terremotos de sua história, devastando a capital, Lisboa. Pombal, então, deu
início à reconstrução a partir dos ideais iluministas, sobretudo da raciona-
lidade. Tornou-se o símbolo de um país renovado e moderno, mas trouxe
diversas consequências para o Brasil, já que a reestruturação não foi barata.
Dessa forma, a cobrança de impostos aumentou consideravelmente, ainda
mais com o êxito da mineração no Sudeste da colônia. Taxas como o quinto
e a derrama atingiam os mineradores e foram estopins para o surgimento
de várias revoltas. A Igreja e a educação foram, da mesma maneira, afetadas
pelas reformas pombalinas. O ensino era coordenado pelos religiosos que se
estabeleceram na colônia, e a administração portuguesa decidiu centralizar
e expulsar os jesuítas de todo o território, o que aconteceu com a Lei de 3
de setembro de 1759. A partir disso, os bens eclesiásticos foram confiscados
em nome do Estado, que também aumentou o controle dos governos locais
com a proibição da escravidão indígena, em 1757, finalizando processos de
recrutamento de mão de obra, por exemplo.
6 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

Esses movimentos influenciaram diretamente o andamento das relações


sociais na colônia, o que abordaremos mais adiante neste capítulo. Além das
reformas de Pombal, o Iluminismo influenciou movimentos revolucionários
fora da Europa, como nos Estados Unidos.

A Revolução Americana (1776)


O processo de independência dos Estados Unidos estava diretamente rela-
cionado a sua colonização. As primeiras tentativas de ocupação do território
americano aconteceram no século XVI, mas foi somente no século XVII que
os ingleses conseguiram se estabelecer. Eles não foram os únicos, já que os
franceses também construíram espaços coloniais, mas, ao longo do tempo,
perderam a hegemonia. Em 1607, foi fundada Jamestown, na Virgínia, consi-
derada a primeira colônia. Após tentativas frustradas, a Virginia Company
bancou a ida e a permanência de colonos no intuito de explorarem a terra
em busca de ouro e de pedras preciosas, como aconteceu com a Espanha.
Observa-se, desde o início, que houve uma grande diferença entre os
projetos coloniais português e inglês, sendo que este se baseava na iniciativa
privada com apoio do Estado. Já a proposta lusitana era conduzida pela coroa,
inclusive as pessoas que migraram para o Brasil foram indicadas e escolhidas
para assumirem posições estratégicas na administração colonial. No caso
britânico, a viagem para a América era uma forma de endividados tentarem
uma nova vida, além de ser o destino de condenados da Justiça, em uma
forma de punição. O controle estatal sobre a colonização não era tão forte
quanto no Brasil, permitindo que os colonos americanos conseguissem se
instalar e construir um aparato governamental comunitário e mais livre das
amarras da Metrópole. Ainda pagavam impostos e taxas, mas a fiscalização
era própria. Contudo, essa situação mudou no século XVIII.
A Inglaterra passara por duas revoluções, a Puritana (1640–1648) e a Glo-
riosa (1688), a partir das quais o sistema político mudou e alcançou maior
estabilidade interna. Além disso, nessa época, as primeiras elites burguesas
surgiram e a Revolução Industrial (1760) ajudou a consolidar a busca por
mercado consumidor. Os olhares da coroa inglesa se voltaram para a América,
dessa vez em busca de maior controle estatal.
Foram vários os movimentos políticos que provocaram problemas na
relação entre colonos e Metrópole. Primeiramente, a Guerra dos Sete Anos
(1756–1763), entre a Inglaterra e a França, ocorrida em território americano,
sobre a posse das terras ao Norte das 13 colônias, onde hoje é o Canadá. Os
gastos foram altos e, para custeá-los, os impostos aumentaram. Em 1764,
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 7

foi estabelecida a Lei do Açúcar, que taxava o melaço usado rotineiramente,


afetando o cotidiano colonial. Em 1765, foi aprovada a Lei do Selo, que obrigava
a compra de um selo real para outorga de qualquer tipo de documento oficial.
Ademais, em 1773, a Inglaterra concedeu, à Companhia Inglesa das Índias, o
monopólio do comércio do chá, prejudicando os americanos que plantavam
e impostavam o produto.
A reação dos colonos foi se reunir e contestar os movimentos da Metrópole.
Muitos dos políticos locais, apoiados por parte da população, passaram a
considerar a necessidade de ficar independente.

Os americanos passaram a questionar a falta de representatividade


no Parlamento Inglês. Eles acreditavam que não deveriam seguir
as leis inglesas se não tinham participação no debate político. Começou, por-
tanto, o movimento No taxation without representation (“nenhum imposto sem
representação”), a partir do qual pressionavam a Inglaterra, que, para evitar
uma revolta, revogou a Lei dos Selos. Porém, outros impostos foram criados,
inclusive sobre o chá (HEALE, 1991).

Cada vez mais os americanos mostravam seu descontentamento, e o


Iluminismo foi a filosofia que ajudou a fomentar uma nova visão sobre o
que deveriam ser. Leandro Karnal (2010) argumenta que uma das maiores
influências foi de um autor anterior ao século XVIII, John Locke (1632–1704),
um dos primeiros a criticar a estrutura absolutista inglesa, e suas ideias se
relacionavam diretamente à Revolução Gloriosa e ao início do Parlamenta-
rismo na Inglaterra.
Um dos episódios mais conhecidos foi a Festa do Chá de Boston, em 1773,
quando grupos vestidos de nativos-americanos despejaram a carga de chá
no mar. A Inglaterra decidiu recrudescer o regime e as punições após o ato e
estabeleceu, em 1774, as Leis Intoleráveis, a partir das quais passou a substituir
funcionários públicos (escolhidos por colonos) por ingleses ou por apoiadores
do governo régio. A elite colonial se reuniu na Filadélfia para discutir esse
movimento metropolitano, o que ficou conhecido como “Primeiro Congresso
Continental”, quando as 13 colônias se uniram em prol de uma ideia, de um
desejo em comum. Os primeiros acordos acerca de uma possível independência
foram apresentados, mas não foram assinados ali. As reivindicações ao trono
inglês eram maior liberdade dentro das colônias e o fim dos impostos e da
repressão por causa da fiscalização, mas não foram atendidas.
Em 1776 ocorreu o Segundo Congresso Continental, e foi nele que redigiram
a Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América, estabelecendo a
8 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

independência a partir do dia 4 de julho daquele ano. A Inglaterra não aceitou


o movimento e deu início à Guerra de Independência, que os americanos
nomearam como “Revolução Americana”. Ela durou até 1783, com a derrota
dos ingleses após a ajuda dos franceses e de alguns nativos, consolidada
com a assinatura do Tratado de Paris, que era o conhecimento da emanci-
pação. Os conceitos de liberdade e de igualdade permearam a ideologia por
trás da Revolução. A própria Constituição, aprovada em 1787, estabelecia o
poder tripartite definido por Montesquieu, e a política era descentralizada.
Esse movimento influenciou diretamente a Revolução Francesa, de 1789, e o
restante da América. Como diz Karnal (2010, p. 94–95):

Para o resto da América, os Estados Unidos serviriam como exemplo. Uma inde-
pendência concreta e possível passou a ser o grande modelo para as colônias
ibéricas que desejavam separar-se das metrópoles. Os princípios iluministas, que
também influenciavam a América ibérica, demonstraram ser aplicáveis em termos
concretos. Soberania popular, resistência à tirania, fim do pacto colonial; tudo isso
os Estados Unidos mostravam às outras colônias com seu feito.

Revoltas nativistas
Manifestações políticas e sociais brasileiras ocorreram durante todo o período
colonial. A Revolta dos Beckman (1684), a Guerra dos Emboabas (1707–1709), a
Guerra dos Mascates (1710–1711) e a Revolta Filipe dos Santos, ou Revolta de
Vila Rica (1720), correspondem às chamadas revoltas nativistas. Apesar do
nome, elas não buscavam a independência. Cada uma possui sua especifici-
dade, mas a reivindicação em comum era o fim dos impostos, da corrupção
e da opressão feita nos (e pelos) políticos locais.

Revolta dos Beckman (1684)


A região do Maranhão e do Grão-Pará teve uma colonização diferenciada em
comparação às províncias do Nordeste e do Sudeste. Em 1782, foi criada a
Companhia do Comércio do Maranhão, na tentativa de fortalecer a posição
dos colonos na região. O monopólio comercial dos produtos explorados ali
centralizaria os lucros e ajudaria no crescimento da elite local, que tinha o
apoio da Metrópole. A partir disso, procuraram instalar de vez a mão de obra
escravizada, que era muito lucrativa para o próprio Estado português. Por-
tanto, a instalação da Companhia mudou a estrutura geral daquela sociedade.
Os produtores e comerciantes locais, apesar de se beneficiarem de algumas
medidas da nova instituição, perderam boa parte da autonomia. A proibição
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 9

do uso de mão de obra indígena escravizada atingiu diretamente aqueles que


não podiam pagar pelos negros. Apesar disso, é preciso ter em mente que
esse período foi bastante instável na colônia como um todo, pois o ciclo do
açúcar estava em decadência e muitos colonos do litoral se aventuraram pelo
interior na intenção de conseguirem novas terras e produtos para o comércio.
Essa realidade atingiu o povo que já residia no estado do Maranhão e do
Grão Pará. A Companhia de Comércio prometeu que intermediaria na questão
dos negros escravizados e financiaria uma média de 500 pessoas por ano,
as distribuindo entre aqueles que necessitavam de trabalhadores. Porém, o
não cumprimento desse acordo foi o estopim para a Revolta dos Beckman.
Tomás e Manuel Beckman eram irmãos, produtores locais e se tornaram os
líderes do movimento contra a Companhia. Os amotinados tomaram a sede
da instituição, destituíram os diretores e começaram um governo paralelo
na cidade, a chamada Junta Geral do Governo. Esse governo provisório teve
a duração de um ano, sempre com muitos conflitos entre os metropolitanos
e os rebeldes. Para retomar o controle da situação, Portugal enviou reforço
militar, ocasionando o aprisionamento de alguns líderes. Tomás Beckman foi,
então, transferido para Lisboa e prometeu lealdade à coroa. Dessa forma,
estabeleceu-se que o conflito tinha raiz nos problemas locais. Ele ficou preso
em Pernambuco até sua morte, pois foi proibido de voltar ao Maranhão. Já
seu irmão foi condenado à forca junto de nomes como Jorge de Sampaio e
Carvalho, sentença assinada pelo governador.

Guerra dos Emboabas (1707–1709)


Foi um dos primeiros conflitos motivados pelo ouro encontrado nas Minas
Gerais (que era parte de São Paulo e do Rio de Janeiro) e ocorreu entre os
bandeirantes paulistas e os emboabas, os estrangeiros que migravam para
explorarem a região.

O bandeirismo começou ao mesmo tempo que o processo de colo-


nização, na tentativa de explorar o território. Algumas bandeiras
tinham a missão de sequestrar os indígenas para escravizá-los: foram as cha-
madas “bandeiras de apresamento”. Já as “bandeiras de prospecção” tinham a
função de encontrar metais preciosos. As expedições adentraram pelo território,
cruzando os limites do Tratado de Tordesilhas, que se tornava obsoleto a cada
momento (MONTEIRO, 1994).
10 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

Com a possibilidade de exploração da terra, Portugal aumentou o con-


trole, sobretudo com a imposição de novos impostos. Em Minas Gerais, a
situação ficou cada vez mais insustentável, segundo a população local. Eles
passaram a enfrentar não só o arrocho econômico, mas também o aumento
da fiscalização, com mais autoridades políticas sendo enviadas para atuar
na região. Vale destacar que as Minas Gerais só passaram a existir no século
XVIII. Até então, havia as províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro, sendo
que os paulistas queriam o controle das minas, mas se tornaram minorias
pelos emboabas. Em 1707, grupos armados de “estrangeiros” proliferaram,
deixando a situação ainda mais tensa.
Um dos líderes dos emboabas foi Bento Coutinho, que conseguiu a hege-
monia na região por mais de um ano. Cada vez mais os paulistas perdiam o
controle econômico e político. Por exemplo, um dos governadores nomeados
era um emboaba, Manuel Nunes Viana. Porém, a coroa decidiu intervir antes
que o movimento crescesse e se tornasse mais perigoso politicamente. Em
1709, foi criada a Capitania Real das Minas Gerais, independente das jurisdi-
ções paulista e carioca.
O foco se voltou para o Sudeste, mesmo que a capital da colônia ainda
fosse Salvador. Com essa nova unidade política e administrativa, Portugal
conseguiria organizar uma arrecadação de impostos mais eficiente, bem como
uma fiscalização que funcionasse. Foi nesse momento que foram instituídas
Vila Rica (atual Ouro Preto), Vila de Nossa Senhora do Carmo (atual Mariana)
e Vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, pontos nevrálgicos para a
exploração dos metais. Com a intervenção política, também foi estabelecida
a guarda militarizada, que abafou os conflitos entre paulistas e os migrantes,
que se tornaram residentes na nova capitania. Dessa forma, a guerra foi
neutralizada, e os bandeirantes de São Paulo, sobretudo, decidiram adentrar
ainda mais a Oeste, criando aldeias e vilas no que hoje são Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul e Goiás.
Enquanto, no Sudeste, novas possibilidade econômicas eram exploradas,
o litoral sofria com a queda constante dos preços e da demanda pelo açúcar,
atingindo todo o ciclo social e urbano.

Guerra dos Mascates (1710–1711)


Pernambuco foi a capitania mais rica da colônia até o século XIX, e essa im-
portância era reconhecida pelos colonos locais, sobretudo pela elite política,
que utilizava esse prestígio para reivindicar mais autonomia. Além disso, a
região foi dominada pelos holandeses no século XVII, e, mesmo com todo o
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 11

processo de guerra e expulsão dos invasores, conseguiu se desenvolver. O


comércio e a agricultura davam, à capitania, sobretudo Recife, um terreno
fértil para o surgimento de organizações sociais que queriam mudanças
políticas que os favorecessem. Ao lado da cidade, ficava Olinda, a “capital do
açúcar”, que mais se desenvolveu com o cultivo da cana e que, no início do
século XVIII, passava por uma profunda crise. Segundo Lisboa (2011, p. 25–26):

A luta contra os holandeses havia criado uma série de novos impostos para sus-
tentar a guerra. criou-se o “donativo do açúcar”, imposto que era cobrado sobre
o comércio e a produção do açúcar, e que constituía o principal recurso nas fi-
nanças da Restauração. [...] Com o fim da guerra, as novas taxações continuaram
a ser cobradas, já que a Coroa não queria dispensar essa nova receita fiscal [...].
Some-se a isso os antigos impostos donatariais que, mesmo com a incorporação
da capitania à Coroa, eram ainda cobrados gerando insatisfação por parte dos
moradores de Olinda.

Enquanto era dominante, Olinda controlava a política local, inclusive de


Recife. Quanto esta prosperou por causa do comércio com outras nações,
sobretudo Portugal, a elite mercantil queria autonomia. Essa burguesia
nascente foi chamada de “mascates” pela tradicional cena olindense, que
não aceitava a busca pela autonomia dos vizinhos. Além disso, Olinda era
mais beneficiada pela administração política, pois as obras estruturais e o
peso das decisões políticas eram maiores e constantes ali.
Já Recife se modernizara com a invasão holandesa, pois eles estimularam
o comércio com a França, a África, as colônias do Caribe, entre outras na-
ções. Para tentar mudar a situação, os mascates se organizaram e pediram
a municipalização, que foi atendida em 1709 com a criação da vila de Santo
Antônio do Recife. Foi o início da revolta armada capitaneada por grupos de
Olinda, insatisfeitos com a decisão metropolitana. Entre 1710 e 1711, vários
ataques foram realizados por partidários das duas causas.
Portugal, novamente, interveio, mantendo a autonomia de Recife e confis-
cando bens da elite olindense que instigou a crise, mas os perdoou três anos
depois. Pernambuco, durante o século XVIII, não conseguiu se recuperar, e o
tratamento dado pelos portugueses ajudou a semear o sentimento antilusi-
tano, que será explorado nas revoltas separatistas posteriores.

Revolta Filipe dos Santos, ou Revolta de Vila Rica


(1720)
Como Portugal dependia cada vez mais da arrecadação de impostos para
manter os custos do Estado, era fundamental otimizar a coleta dos impostos
12 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

e evitar fraudes. Em 1720, Vila Rica recebeu a primeira Casa de Fundição, local
onde o ouro era fundido em barras para facilitar o transporte e o comércio
do metal. Para a população local, esse era mais um entrave português, que
criava mais obstáculos e diminuía a margem de lucro.

Eentre as mais variadas taxas, o quinto correspondia à cobrança


de 20% do ouro extraído na colônia e vigorava desde o século XVI,
quando se estabeleceram as capitanias hereditárias. Apesar de explorarem a
terra e minerarem desde 1590, foi no século XVIII que a cobrança do quinto se
tornou uma prática mais controlada. Para evitar o contrabando, que era alto,
obrigaram os mineradores a utilizar as Casas de Fundição da coroa, assim
garantiriam o pagamento da taxa (BOXER, 1969).

Com a maior intervenção da Metrópole, o povo decidiu se amotinar.


Filipe dos Santos (1680–1720) era um português que se instalara no Brasil
e que acabou por liderar a desobediência civil. Vale ressaltar que a elite local
controlava o comportamento contrário aos agentes régios. O governador
Conde de Assumar (1688–1756) foi nomeado em 1717 na tentativa de se impor
perante os políticos da terra. Ele atuou nas negociações com os revoltosos, que
reivindicavam o fim das Casas de Fundição e um maior relaxamento da carga
tributária. Em contrapartida, os representantes da coroa pediam uma taxa
extra, de 30 arrobas de ouro anuais, para que as casas fossem inutilizadas.
Outra linha de frente era política. Rezende (2015) descreve que Assumar
utilizou sua posição para manipular as eleições nas Câmaras Municipais de
Vila Rica e das adjacências. A ideia era preencher os cargos públicos com
simpatizantes da coroa. Houve, portanto, um enfrentamento também no
âmbito político, que ajudou no estabelecimento da repressão à Revolta. O
acordo não durou, e a instabilidade na região de manteve. Os líderes foram
presos e Filipe dos Santos foi assassinado em praça pública, prática comum
pelo governo português. Foi o fim dessa revolta, mas o início de muitas outras.

Revoltas separatistas
A grande diferença entre os conflitos nativistas e separatistas foi ideológica.
Estes queriam a independência, o fim do subjugo do estado português ante a
colônia, e o Iluminismo foi a base teórica fundamental para que os articula-
dores delineassem esse processo. As revoltas mais conhecidas e trabalhados
pela historiografia foram a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana
(1798) e a Revolução Pernambucana (1817), três regiões muito importantes
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 13

para o desenvolvimento econômico e social do País. Contudo, assim como


outras nações, no século XVIII, Portugal passou a ter problemas financeiros.
A manutenção da máquina pública absolutista custava muito, exigindo o
aumento exponencial de impostos. Nessa época, o açúcar brasileiro estava em
decadência, pois enfrentava a concorrência das Antilhas, mas a descoberta
de ouro e de pedras preciosas nas Minas Gerais foi vista como um bom sinal.
Apesar disso, os impostos eram considerados abusivos pelos colonos, o que
ajudou na organização de movimentos contestatórios.

Inconfidência Mineira (1789)


É considerada um dos movimentos separatistas mais importantes da história
brasileira. A influência do Iluminismo francês e o exemplo da Revolução
Americana foram fundamentais para a organização social e as reivindicações
contra o Estado português.

A Inconfidência Mineira foi utilizada pelos republicanos nos séculos


XIX e XX como exemplo de revolta contra o sistema monárquico,
que comandou o País desde 1500. Com dificuldades de consolidar a própria
República, foram criadas narrativas a partir dos eventos passados para se
estabelecer a ideia de heroísmo, por exemplo. Foi nesse momento que figuras
como Tiradentes (1746–1792), Joaquim José da Silva Xavier, até então obscuras
e pouco estudadas, ganharam notoriedade (CARVALHO, 2017).

A Inconfidência foi, majoritariamente, formada por membros da elite


mineira, que há décadas entravam em conflito com o poder régio. Membros
do clero, proprietários rurais, mineiros que enriqueceram com o ouro, poetas
e literatos, além de militares, concordavam que a dominação portuguesa su-
focava a pauta local, mas não tinham um pensamento unânime. Por exemplo,
alguns queriam, de fato, a separação, enquanto outros queriam a deposição do
governador e de políticos leais à coroa. Como argumenta Maxwell (2001, p. 151):

O programa da inconfidência refletia as compulsões imediatas e específicas que


tinham alienado completamente os magnatas mineiros da coroa, forçando-os no
rumo da revolução. Também refletia a presença entre eles de hábeis e preparados
magistrados, advogados e padres obrigados à reavaliação das relações coloniais
por outros motivos. E que se inspiravam no exemplo da América do Norte, nas
constituições dos Estados da União Americana e na obra do abade Raynal. Das
informações fragmentárias que restaram evidencia-se um perfil sumário de seus
propósitos. A capital da república deveria ser São João d‘El Rey, decisão que es-
pelhava as mudanças demográficas que se verificavam na capitania. Seria criada
14 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

uma casa da moeda e a taxa de câmbio fixada em 1$500 réis por oitava de ouro.
Esta medida tinha por fim acabar com a escassez crônica de moeda circulante na
capitania, em parte causada pela alvará de dezembro de 1750 que fixara a taxa
de 1$200 réis por oitava para Minas, enquanto a taxa vigorante por toda a parte
era de 1$500 réis.

Desde 1702, a coroa aumentara o controle na região de Vila Rica, sobretudo


com a criação da Intendência de Minas que, basicamente, fiscalizava e recebia
os impostos. Em 1720, a Casa de Fundição foi um dos estopins para a Revolta
de Filipe dos Santos. Para piorar o relacionamento entre colonos, em 1751,
foi anunciada mais uma taxa, a derrama, que criava um valor mínimo a ser
pago pelo quinto, ou seja, atingia, principalmente, que não conseguia minerar
o suficiente para lucrar mesmo pagando o imposto. Seriam cobradas 100
arrobas anuais ou 1500 quilos de ouro, sendo que o governo tinha a liberdade
de confiscar bens daqueles que não honrassem o compromisso.
Esse foi um dos principais motivos para essa mobilização em específico.
Apesar do anúncio, seu estabelecimento não foi imediato, causando mais
especulação e dando tempo de os locais se agruparem e se organizarem. Em
1755, após o terremoto de Lisboa, a coroa precisava, urgentemente, de fundos
e, em 1763, instituiu a derrama. Nesse mesmo período, já ficara constatado
que a quantidade de ouro no Brasil não era abundante como nas colônias
espanholas. Mesmo assim, tanto Portugal quanto os políticos locais inves-
tiam na exploração da terra, sendo que estes se encontravam cada vez mais
endividados.
Apenas em 1788 o grupo se organizou a ponto de tentar destituir o go-
verno. O ideal era de liberdade, mas que não se ampliava ao nível social, com
os negros ainda mantidos como escravos, por exemplo. Conforme o dia da
derrama, no início de 1789, chegava, o clima em Vila Rica ficava mais violento.
O governador percebia a movimentação e começava a reprimir qualquer ati-
tude suspeita, assim como confiscar livros e panfletos. Além disso, algumas
medidas foram instituídas. Primeiramente, anistiaram as dívidas, uma das
principais prerrogativas dos inconfidentes, e cancelaram a cobrança dos
impostos. Com isso, alguns dos manifestantes decidiram não continuar com
o plano de tomada de poder e traíram seus companheiros, caso de Joaquim
Silvério dos Reis (1756–1819). O resultado foi a prisão de mais de 30 líderes,
sendo alguns exilados e outros mortos em praça pública. Apesar do esforço
não ter atingido seu objetivo, o imaginário da Inconfidência serviu de exemplo
para outras manifestações que tiveram espaço nessa época.
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 15

Conjuração Baiana (1798)


Diferentemente das Minas Gerais, o movimento baiano ocorreu em um local
que estava em plena decadência. Em 1763, a capital da colônia foi transferida
para o Rio de Janeiro, concretizando a ideia de que o Nordeste deixara de
ser o principal eixo econômico e político do Brasil. A manifestação surgida
na Bahia foi profundamente influenciada pelos ideais iluministas, sobretudo
com a queda do Antigo Regime francês, em 1789, mais um exemplo, além da
Revolução Americana, de 1776, de que a situação política estava mudando.
Havia, também, a consolidação do impacto da Revolução Industrial, de 1760,
que obrigou os países a criarem alternativas para o Mercantilismo.
O ponto específico e particular das reivindicações da Conjuração Baiana
foi a escravidão. Até então, a situação dos negros sequestrados na África e
transformados em escravos no Brasil havia sido pouco discutida em nível
institucional. Apesar das revoltas promovidas por eles mesmos, e com o
surgimento dos quilombos e dos focos de resistência, nada foi feito no âmbito
político e legislativo para mudar o status dessas pessoas.

O tráfico era muito lucrativo para a elite colonial, pois movimentava


o comércio e a venda dos africanos escravizados, muitas vezes o
principal sustento de famílias inteiras (LARA, 1986).

O Iluminismo auxiliou no questionamento da moral escravista e a indus-


trialização trazia um elemento prático: a necessidade de mercado consumidor.
Os abolicionistas começaram a se manifestar e embasar suas ideias a partir
desses elementos. Além disso, outro exemplo revolucionário surgiu nesse
contexto. A Revolução Haitiana (1791–1804) provocou a independência da
ilha, que foi tomada pelos negros até então subjugados. Inspiração para
aqueles que questionavam o sistema colonial, esse evento causou temor nas
metrópoles europeias e nas elites coloniais que exploravam os trabalhadores
africanos à exaustão. A primeira medida portuguesa foi, dessa forma, censurar
a circulação de obras iluministas e das que aludissem aos acontecimentos
nos Estados Unidos, na França e no Haiti. Contudo, o contrabando se tornou
prática comum, mostrando que a proibição cultural nunca deu certo em
nenhum contexto.
A rebelião baiana, ocorrida em Salvador, foi organizada por alguns mem-
bros da elite, mas tinha um caráter notadamente popular, diferentemente da
Inconfidência. Negros alforriados, abolicionistas, comerciantes e pequenos
16 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

proprietários foram os principais articuladores do movimento, que buscava


o fim do sistema colonial e, consequentemente, da escravidão. Os líderes
mais conhecidos foram João de Deus Nascimento (1771–1799), Manuel Faustino
dos Santos (1775–1799) e Luiz Gonzaga das Virgens (1761-1799), e eles constru-
íram alianças com membros da maçonaria e políticos como Cipriano Barata
(1762–1838). As reuniões aconteciam na Academia Brasílica dos Acadêmicos
Renascidos, que foi criada em 1759. Porém, uma similaridade com outras
revoltas separatistas era a pluralidade de ideais, já que alguns proprietários
de terras, por exemplo, não queriam o fim da escravidão.
Em 1792, os conjurados começaram a expressar suas insatisfações e a
divulgar, pela cidade, o movimento, que inclusive debatia a manutenção do
sistema monárquico. Eles espalhavam folhetos pelas ruas, em uma alusão
aos revolucionários franceses que arrebatavam apoiadores com a panfleta-
gem. Conforme o clima se acirrava, as divergências internas aumentavam,
causando o rompimento entre a aula popular e a elite. Dessa forma, em
1798, os principais líderes do povo foram presos e alguns foram enforcados
publicamente para servirem de exemplos.

Revolução Pernambucana (1817)


Outra revolta que ocorreu em Pernambuco foi o movimento revolucionário
do século XIX, um dos mais importantes e impactantes para o processo de
independência de 1822. Esse movimento ocorreu porque o governo colonial
percebeu a fragmentação política, e a atuação da elite pernambucana causou
medo na Coroa. Os oitocentos começaram com a vinda da Família Real e da
Corte em 1808, fugindo da expansão napoleônica. A Abertura dos portos
às nações amigas e a assinatura do Tratado de aliança e amizade, em 1810,
expandiram as opções comerciais da colônia, aumentando os lucros de parte
da elite mercantil. Contudo, o Sudeste experienciou essa mudança de forma
mais latente do que o Nordeste, ainda que Pernambuco se mantivesse como a
capitania mais lucrativa mesmo com a crise do açúcar. Ou seja, o desprestígio
era mais político do que econômico, acirrando o sentimento antinacional.
Assim como na Bahia, havia diversidade entre os participantes do movi-
mento pernambucano; porém, eles possuíam um elemento identitário muito
forte: a busca pela emancipação da província, isto é, não queriam o fim do
sistema colonial no País todo, mas se tornar uma nação. A região questio-
nava a dominação portuguesa desde a expulsão dos holandeses no século
XVII, quando Recife se tornou a cidade mercantil mais importante do Brasil.
Portanto, o movimento foi mais coeso do que os anteriores observados aqui.
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 17

Havia alguns grupos hegemônicos, mas vários membros da hierarquia social


faziam parte do movimento, sendo que os principais líderes foram o religioso
Frei Caneca (1779–1825), o juiz Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva (1773–1845), Domingos Teotônio Jorge (?–1817), entre outros. Inclusive,
o clero passou a discutir os ideais de liberdade e igualdade do Iluminismo,
demonstrando a influência do pensamento. A grande diferença em relação à
Inconfidência e à Conjuração Baiana foi a efetividade do movimento. Ele saiu
da teoria e se expandiu para outros estados. Paraíba, Rio Grande do Norte
e Alagoas aderiram à causa independentista, causando o receio da Coroa, já
que o sentimento antilusitano crescia.
Em 6 de março de 1817, os revolucionários mataram o comandante por-
tuguês Manoel Joaquim Barbosa de Castro, que foi designado pelo governo
régio local para prender os líderes da Revolução. A revolta se generalizou
e o governo foi deposto, dando início ao Governo Provisório e às Leis Or-
gânicas, o sistema administrativo-legislativo criado pelos revolucionários.
As principais medidas eram o republicanismo, com a divisão dos poderes à
la Montesquieu, a liberdade de imprensa e religiosa e a igualdade, menos
relacionada à escravidão.
A capital não aceitou a contestação, e o governo revolucionário durou
cerca de 70 dias. A repressão foi muito violenta, e o poder central foi res-
taurado em 19 de maio de 1817. Alguns dos presos políticos foram mortos
e esquartejados, mas o impacto do movimento foi inegável. As províncias
questionavam o domínio português a ponto de a Família Real considerar
proclamar a independência para não perder o controle do Brasil.
A história brasileira é permeada por momentos de instabilidade política
e social que foram fundamentais para a nossa formação como sociedade. Do
século XVI até o século XIX, o País viveu revoltas cujo objetivo era o rearranjo
da estrutura colonial local e outras que queriam a emancipação ou da colô-
nia ou do Império. Além disso, na base do sistema estava a escravidão, que
transformou profundamente a noção de hierarquia social, além da cultura.
Vale destacar que, apesar das diferentes naturezas de cada uma das
revoltas, o tratamento foi o mesmo: violenta repressão do governo vigente.
Esse detalhe corrobora a ideia que se tornou frequente nos estudos sobre o
Brasil, que é classificá-lo como um país belicoso. Na década de 1930, Sérgio
Buarque de Holanda escreveu o clássico Raízes do Brasil, no qual desen-
volveu o conceito de “homem cordial”, tendo como base a história colonial
brasileira. A “cordialidade” é um disfarce para as dificuldades sociais vividas
pelo brasileiro, que não consegue, por consequência, estabelecer um plano
político democrático, por confundir o limiar entre público e privado. Apesar
18 As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil

disso, ainda se manteve, no senso comum, a ideia de que o Brasil é um país


pacífico, o que pode ser contestado pela regularidade dos conflitos discutidos
neste capítulo.

Referências
ANDERSON, P. Linhagens do estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004.
BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
CARVALHO, J. M. de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2017.
FLORENZANO, M. As revoluções burguesas. São Paulo: Brasiliense, 1981.
FURET, F. Pensando a revolução francesa. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
HEALE, M.J. A revolução norte-americana. São Paulo: Ática, 1991.
KARNAL, L. (org.). História dos Estados Unidos. São Paulo: Contexto, 2010.
LARA, S. H. Campos da violência: escravos e senhores da capitania do Rio de Janeiro
(1750–1808). São Paulo: Paz e Terra, 1988.
LISBOA, B. A. V. Uma elite em crise: a açucarocracia de Pernambuco e a Câmara Municipal
de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII. 2011. 229 f. Dissertação (Mestrado)
— Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2011.
MAXWELL, K. A devassa da devassa: inconfidência Mineira — Brasil e Portugal (1750–
1808). São Paulo: Paz e Terra, 2001.
MONTEIRO, J. M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
REZENDE, L. A. O. A Câmara Municipal de Vila Rica e a consolidação das elites locais,
1711–1736. 2015. 390 f. Dissertação (Mestrado) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

Leituras recomendadas
CASSIRER, E. A filosofia do iluminismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. (Coleção
Repertórios).
FAUSTO, B. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. (Didática, 1).
ISRAEL, J. “Iluminismo radical”: periférico, substancial ou a face principal do iluminismo
transatlântico (1650–1850). Diametros, nº 40, p. 73–98, jun. 2014.
MAXWELL, K. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
MELLO, E. C. de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascate, Pernambuco, 1666–1715.
São Paulo: Editora 34, 2003.
SCHWARCZ, L. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
As primeiras manifestações sociais e políticas no Brasil 19

SOUZA, L. de M. Cláudio Manoel da Costa: o letrado dividido. São Paulo: Companhia


das Letras, 2011.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
Classe trabalhadora
brasileira
Ana Carolina Machado de Souza

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Identificar os principais grupos étnicos que foram inseridos no território


nacional brasileiro por meio de incentivos governamentais e por acordos
diplomáticos entre os países envolvidos.
>> Avaliar os efeitos da diversidade imigratória na formação da política, da
economia e da sociedade brasileira.
>> Relacionar os efeitos da imigração de exploração com a relação de trabalho
que foi constituída pelos brasileiros ao longo da sua história.

Introdução
O processo imigratório brasileiro como política de Estado teve início no século
XIX. Desde a chegada da Família Real, em 1808, foram tomadas medidas no intuito
de modernizar a colônia, na qual a escravidão era a principal, mas não única,
forma de trabalho para a manutenção da economia agroexportadora. Também
existiam trabalhadores livres e serviços públicos, mas eles não movimentavam
as contas públicas.
No próprio século XIX, mudanças profundas surgiram como consequência
dos movimentos revolucionários do final do século XVIII — e no Brasil não foi
diferente. O questionamento sobre a viabilidade, a longo prazo, da escravidão
mobilizou a criação dos primeiros projetos imigratórios visando à inserção da
mão de obra livre no País.
Neste capítulo, você poderá aprender a respeito da história da imigração no
Brasil, com foco sobre a formação de uma nova classe trabalhadora e a importância
2 Classe trabalhadora brasileira

disso para a nossa formação política, social e econômica. Ademais, você poderá
compreender o impacto que a imigração teve sobre o movimento abolicionista, as
mudanças legislativas e o desenvolvimento do pensamento eugenista no Brasil.

Os projetos de imigração
Antes de o governo sancionar a vinda de imigrantes para trabalharem nas
lavouras, grupos de estrangeiros chegavam ao Brasil desde o início do sé-
culo XIX. Quando a corte se estabeleceu no Rio de Janeiro, em 1808, missões
científicas foram autorizadas para dar seguimento a estudos sobre a fauna,
a flora e as sociedades brasileiras.

As missões artísticas e científicas tinham como objetivo a coleta de


informações sobre a natureza e o passado colonial. Em 1816, ocorreu
a Missão Artística Francesa, muito conhecida pelas imagens feitas pelo francês
Jean-Baptiste Debret (1768–1848). Em 1817, teve início a Missão Austríaca, cujos
cientistas faziam parte da comitiva da arquiduquesa Leopoldina (1797–1826),
que vinha ao Brasil para se casar com D. Pedro I (1798–1834).
A viagem de Jean-Baptiste Debret ao Brasil é retratada no livro J.-B. Debret,
historiador e pintor. A viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816–1839), de
Valéria Lima.

Em 1818, D. João VI (1767–1826) assinou uma Carta Régia, na qual aceitava


a vinda de um grupo de suíços para o estado do Rio de Janeiro. Eles se esta-
beleceram na atual região de Friburgo, assim nomeada em homenagem ao
cantão de onde vieram. No documento, o rei atestava a boa relação diplomática
com a Confederação Suíça e garantia às famílias que aqui se instalariam o
recebimento de terras doadas pelo Estado para cultivarem e se estabele-
cerem. Esse foi um núcleo voltado totalmente para a ocupação territorial e
para a diplomacia. Tal medida não se sustentou nem foi repetida, e a própria
instabilidade política do Brasil auxiliou para que esse fosse o resultado.
O século XIX foi muito tumultuoso no Brasil. Além das questões políticas,
como a Independência, a Regência e os reinados de D. Pedro I e D. Pedro II,
vários conflitos aconteceram em todas as regiões. Essas instabilidades cau-
saram uma profunda crise política e econômica, que teve como uma de suas
consequências diretas a dificuldade de se definir uma identidade nacional.
O Primeiro Reinado (1822–1831) manteve o que havia sido feito anterior-
mente, visando ao povoamento de locais estratégicos para o governo. Um bom
exemplo é o Sul do País, onde as disputas territoriais com os países vizinhos
Classe trabalhadora brasileira 3

— alguns em processo de emancipação — eram um problema crescente. Em


1825, por exemplo, teve início a Guerra Cisplatina (1825–1827), uma disputa
contra a Argentina por causa da região uruguaia, chamada Cisplatina. Núcleos
coloniais como o de São Leopoldo, o de Três Forquilhas e o de São Pedro de
Alcântara de Torres, todos no Rio Grande do Sul, não tinham o objetivo de
contribuir para os latifúndios cafeeiros e eram financiados com verba federal.
Esse direcionamento foi questionado pelos fazendeiros paulistas e cariocas,
que queriam maior auxílio por parte do governo (HOLANDA, 2004).
Da década de 1830 em diante, o cultivo de café começou a crescer no Su-
deste. A elite agrária, por um lado, reivindicava auxílios econômicos, enquanto,
por outro, criticava o processo imigratório, que não havia atingido resultados
expressivos até então. Emília Viotti da Costa (1999) relata como o Império
decidiu, em 1827, encaminhar alguns estrangeiros para São Paulo, na tentativa
de expandir o programa; porém, essa medida também não rendeu frutos.
Em 1830, foi aprovada uma nova Lei do Orçamento, que reformulou as
despesas do Império. Um dos gastos que foram cortados se relacionava
à imigração outorgada na Carta de 1818. Apesar das mudanças políticas e
orçamentárias, nessa época o trabalho ainda se mantinha majoritariamente
escravo. Foi apenas na década de 1840 que as políticas imigratórias foram
postas em prática.

Colônia de Parceria
Em 1847, teve início o modelo de Colônia de Parceria, criado a partir do in-
centivo estatal e da iniciativa privada. Nele, eram prometidas terras para
os estrangeiros, que poderiam quitar o financiamento a partir da venda
dos produtos cultivados. Essa “parceria” entre latifundiários e imigrantes
seria o primeiro passo para a expansão do trabalho em massa. Porém, na
prática, havia muitas exigências para poucos benefícios. Toque de recolher,
restrição de mobilidade, não acesso à terra própria, além dos custos abusivos
do deslocamento suscitaram o descontentamento dos europeus. Como diz
Souza (2012, p. 87):

Embora o sistema de parceria tenha sofrido alterações significativas em seus


mecanismos ao longo do tempo pode-se dizer que seu cerne permaneceu prati-
camente o mesmo ao longo das mais de três décadas em que foi empregado. Seus
principais componentes referiam-se ao: (i) endividamento do imigrante por meio de
pagamento de passagens e de adiantamentos para sua manutenção nos primeiros
anos; (ii) divisão (meação) dos resultados econômicos entre o fazendeiro e o colono.
4 Classe trabalhadora brasileira

Nesse caso, observa-se um choque cultural entre diferentes formas de


se entender e praticar o trabalho. Os fazendeiros tratavam os estrangeiros
com desconfiança e rigor, causando problemas para a efetividade de todo
o sistema. Até que, em 1856, ocorreu um motim na propriedade do senador
Nicolau Campos Vergueiro (1778–1859), que, segundo Boris Fausto (2002), foi
fundamental para o fim do processo de parceria.
Foi somente nos anos 1870 que a imigração se estabeleceu como uma polí-
tica de estado para a substituição da mão de obra escravizada. As mudanças,
nesse caso, eram profundas. As discussões acerca da abolição se tornaram
frequentes, e a pressão externa para que o tráfico acabasse aumentava.
Nesse sentido, aprovou-se em 1831 uma lei proibitiva, mas ela nunca foi
aplicada de fato.
Os maiores interessados nessa mudança eram os ingleses, que pressio-
navam. No entanto, o número de negros sequestrados e deslocados para
o Brasil continuava crescendo, acompanhando o ritmo de surgimento das
fazendas de café. Então, em 1845, o Parlamento Britânico assinou o Slave Trade
Suppression Act — que conhecemos como Lei Bill Aberdeen —, que autorizava
a interferência direta em navios negreiros não apenas em mar aberto, mas
também em águas brasileiras. A medida dos ingleses impactou diretamente
o Brasil, que, mesmo contestando tal decisão, mudou a própria legislação.
Em 1850, foram assinadas a Lei de Terras e a Lei Eusébio de Queirós, que
atingiram a política trabalhista brasileira. A última regulava o fim do tráfico,
e, dessa vez, com um sistema punitivo que ajudou na queda vertiginosa do
número de africanos trazidos compulsoriamente. Já a primeira regimentava
a questão da posse de terras, dificultando o acesso da população brasileira
à terra, o que provocou uma maior concentração fundiária. Esse cenário
impulsionou a decisão dos fazendeiros de aprovarem a vinda de mão de
obra estrangeira livre.

Imigração subvencionada
Em 1871, foi aprovada a Lei do Ventre Livre, que promulgava a liberdade a
todos os filhos de escravos nascidos depois do dia 28 de setembro. Houve
uma generosa indenização aos proprietários escravistas que alforriaram as
crianças, os quais, além disso, poderiam, por lei, utilizá-las como mão de obra
até os seus 21 anos. Dessa forma, havia dinheiro para que os latifundiários
pudessem financiar parcialmente os imigrantes.
No mesmo ano, São Paulo aprovou a vinda de estrangeiros com verba
provincial e federal. O estado providenciava o deslocamento até as fazendas
Classe trabalhadora brasileira 5

de café, e os contratantes eram responsáveis pela burocracia e por qualquer


treinamento necessário. Ainda em 1871, foi criada em São Paulo a Associação
Auxiliadora da Colonização, um órgão que mediava a relação entre os fazen-
deiros e o Governo. Tendo sido uma das primeiras, essa associação abriu
espaço para muitas outras do tipo. No caso paulista, hospedarias foram
criadas para receber os europeus, que passavam por exames e, se preciso,
eram encaminhados para algum tipo de quarentena. Em 1884, o valor dos
escravos subiu — pois havia diminuído a quantidade de mão de obra disponível
—, causando mais interesse por parte da elite. Desse momento em diante, a
política imigratória se estabeleceu (LIMA, 2017).
É importante destacar que, assim como outras medidas implementadas
no Brasil, não houve homogeneidade na imigração. A esse respeito, Sílvia
Lara (1998, p. 28–29), recorrendo a citações de Almada (1984), diz:

Tão importante quanto a cristalização dos termos constituintes da “teoria da


substituição” foi o fato de que os estudos empíricos a este respeito incidiram
quase sempre sobre São Paulo, acarretando que a assim entendida “experiência
paulista das fazendas de café” se configurasse como um paradigma explicativo
de todo o processo, em todo o Brasil. vários estudos regionais já demonstraram
claramente como, em outras regiões, a questão se colocava de modo diverso, com
o aproveitamento do “elemento nacional”. [...] na Zona da Mata mineira, por exem-
plo, os fazendeiros preferiram realizar contratos de parceria com trabalhadores
residentes, recorrendo ao assalariamento temporário de migrantes sazonais vindos
de outras regiões do Estado. No Espírito Santo, somente os fazendeiros mais ricos
recorreram à imigração. A maioria acabou optando por “‘contratados’ por um ano,
por ‘camaradas’ pagos por mês, ou, mais ainda, por ‘jornaleiros’, pagos por dia”.

Ou seja, não se pode perder de vista que a experiência imigratória foi


diversa, assim como o processo de abolição. É por isso que se tornam im-
portantes estudos regionais que agreguem mais informações acerca dos
eventos localizados.

Grupos imigratórios
O Brasil recebeu pessoas de muitas nacionalidades desde a colonização.
Espanhóis, portugueses, holandeses, franceses circulavam pela colônia muito
antes da chegada da Família Real. Mesmo com as políticas de imigração, esses
grupos mantiveram o deslocamento para a América; porém, eles deixaram de
ser os únicos. No século XIX, o maior contingente de imigrantes era da Itália;
depois, da Alemanha; e, depois, da Síria e do Líbano. Foram esses os princi-
pais beneficiados com o programa de busca de trabalhadores assalariados e
6 Classe trabalhadora brasileira

livres. Já no período republicano, em 1908, os japoneses aportaram no Brasil,


formando a maior comunidade nipônica fora do Japão. Outros grupos, como
chineses, sul-americanos (bolivianos e venezuelanos) e haitianos também
se estabeleceram no País, mas em condições diferentes das dos citados
anteriormente.
Em 1930, após a tomada de poder por parte da Aliança Liberal, Getúlio
Vargas (1882–1854) assinou o Decreto nº 19.482, que limitava indiretamente
a entrada de estrangeiros no País. Segundo Endrica Geraldo (2009), a medida
restringia também a contratação de mão de obra estrangeira por parte dos
empregadores, que eram obrigados a ter pelo menos 2/3 das vagas preen-
chidas por brasileiros. É a partir desse momento que ocorre uma mudança
significativa na formação da classe trabalhadora do Brasil, que passa a ob-
servar e enfatizar os domiciliados e natos no País, devido ao fim da entrada
incessante de imigrantes.

Alemães e italianos
Tanto a Alemanha quanto a Itália só se tornaram países em 1871. Até então,
havia disputas de poder entre o Império Austro-Húngaro e a Prússia, no caso
dos alemães, e entre diversos governos que ocupavam a Península Itálica.
Isso demonstra que ambos passaram por profunda instabilidade política e
econômica, inclusive após a unificação.
No caso da imigração alemã, os primeiros grupos rumaram para o Brasil
ainda na década de 1820. Nessa época, a expansão napoleônica e o cresci-
mento da influência comercial e industrial inglesa pressionavam sobretudo
a Prússia, maior reino da região. Os alemães buscavam, além disso, o desen-
volvimento econômico e a modernização do estado, sendo que a participação
na colonização da África e da Ásia era uma meta dentro desse processo. A
maioria dos imigrantes alemães que vieram para o Brasil se estabeleceu
no Sul, que manteve os incentivos mesmo com a Lei do Orçamento de 1830.
Segundo Magalhães (1993, p. 14):

Para contornar a oposição que lhe faziam as elites brasileiras, o governo imperial
transferiu, por meio de um Ato Adicional em 1824, aos poderes provinciais a inicia-
tiva de fomentar a imigração por conta própria. Nas décadas que se sucederiam,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul passariam a contar com um conjunto de leis
que favoreciam a vinda de trabalhadores estrangeiros para seus territórios, em
caráter oficial.
Classe trabalhadora brasileira 7

A maioria das colônias dos 119.300 alemães que chegaram ao Brasil de 1820
a 1909 foi construída no atual Rio Grande do Sul (MAGALHÃES, 1993). Desse
modo, a identidade sulista está intimamente conectada à chegada desses
grupos, que tinham o objetivo de ocupar o espaço e consolidar a fronteira
brasileira. Os índios e os brasileiros nativos não eram reconhecidos, assim,
como parte do projeto de povoamento. Dentro dessa mentalidade cresce a
ideia de uma política eugenista, que teve seu início marcado pela tentativa
de “branqueamento” da população brasileira (SANTOS, 2017, p. 236).
Os italianos, por sua vez, chegaram massivamente após 1870. Apesar de
muitos terem partido para os Estados Unidos, a propaganda promovida pelo
Império brasileiro, com a ajuda dos fazendeiros de café, chamou a atenção
principalmente da população camponesa. Entre 1884 e 1923, cerca de 1.331.158
de italianos migraram para o Brasil, sendo Rio Grande do Sul, Santa Catarina
e São Paulo os estados que mais os receberam (IBGE, 2000). Na província
paulista, o crescimento do número de italianos foi exponencial. A maioria
deles se destinou à lavoura, mas as condições de trabalho não haviam mu-
dado tanto em relação às primeiras experiências. Outros se instalaram em
cidades maiores, como São Paulo, as quais ainda não tinham se modernizado
e estruturado, causando, por exemplo, o surgimento de moradias precárias
(COSTA, 1999).
Em 1889, o governo italiano promoveu sanções temporárias para o projeto
de imigração brasileiro por causa dos problemas nos trabalhos disponibi-
lizados. A repreensão se tornou medida legislativa com o Decreto Prinetti,
assinado em 1902, que proibia a imigração subsidiada. Segundo Hutter (1987,
p. 63):

O Decreto Prinetti, contrariamente ao que se diz, não foi uma medida tomada contra
o Brasil, nem mesmo contra a emigração italiana para cá. Apenas proibia a vinda
de emigrantes italianos com passagens gratuitas. Era livre a vinda de cidadãos
que tivessem meios e se dispusessem a emigrar para o Brasil. O decreto não fazia
mais do que determinar a suspensão de uma licença especial concedida a algumas
companhias de navegação para transportar, gratuitamente, emigrantes italianos
para o Brasil. Proibia, também, que gentes recrutassem, na Itália, emigrantes,
destinando-os ao Brasil.

Entre 1886 e 1888, o Brasil recebeu mais de 80 mil italianos, que esta-
beleceram aqui suas identidades e particularidades sociais e, desse modo,
exerceram influência sobre o desenvolvimento cultural tanto da região Sul
quanto de São Paulo. É importante destacar que muitos dos imigrantes re-
tornaram à sua terra natal: dos 1.895.000 que aportaram em Santos entre
1892 e 1930, cerca de 1.017.000 deixaram o Brasil. Contudo, o impacto desse
8 Classe trabalhadora brasileira

deslocamento foi fundamental para se entender a construção da ideia de


classe trabalhadora, que será discutida mais à frente.

Japoneses e outros grupos


Em 18 de junho de 1908, aportou em Santos o navio Kasato Maru, transpor-
tando cerca de 781 japoneses, que se destinaram às lavouras de café paulistas
(Figura 1). Porém, essa não foi a primeira vez que japoneses vieram para o
Brasil. Desde meados do século XIX, um grande número de pessoas emigrou
do Japão com a intenção de se estabelecer em locais como os Estados Unidos
— principalmente no Havaí — e em outros países latino-americanos (SILVA,
2017). Essas iniciativas migrantes eram apoiadas pelo governo japonês, que,
com isso, objetivava contornar os problemas econômicos enfrentados pelo
país e o superpovoamento das ilhas. Foi, então, a partir de 1880 que políticos
japoneses começaram a viajar ao Brasil para inspecionar as condições de
trabalho oferecidas pelo País. Após concordarem com as medidas estabele-
cidas aqui, a imigração foi liberada. De início, as tentativas individuais foram
incentivadas, mas tiveram pouco impacto no cenário brasileiro. Apenas em
1908, com a revalorização do preço do café e a necessidade de suprir a falta
de mão de obra italiana — decrescente desde o Decreto Prinetti —, a vinda
dos japoneses se tornou parte da política subvencionada (SUZUKI, 1995).
Classe trabalhadora brasileira 9

Figura 1. Primeira página da lista de passageiros do Kasato Maru.


Fonte: Pacific Steam Navigation Company (1908, documento on-line).
10 Classe trabalhadora brasileira

A imigração subvencionada foi a realidade brasileira até 1924, mas há


um fator interessante nesse processo. O privilégio estava, sempre, com os
europeus, isto é, enquanto italianos, alemães, suíços, etc. decidissem migrar
para o Brasil, o subsídio iria para eles. No entanto, embora fosse reparável a
xenofobia contra os orientais, a vinda de japoneses para o Brasil continuou.
Entre a Primeira Guerra Mundial (1914–1918) e a Segunda Guerra Mundial
(1939–1945), cerca de 130 mil japoneses se instalaram no País (IBGE, 2000),
sobretudo no interior de São Paulo e no Paraná.

No século XIX, a questão da eugenia se tornou parte da discussão — e


da prática — intelectual brasileira e europeia. O “darwinismo social” e
as intenções civilizatórias embasaram a vinda dos europeus, que foi justificada
como parte da necessidade de “branquear a população”. Porém, os discursos
nacionalistas também exerceram influência sobre as políticas proibitivas. Um
exemplo disso foi Oliveira Vianna (1883–1951), jurista e sociólogo fluminense
que influenciou diretamente na construção da legislação trabalhista, inclusive
nos decretos e nas leis que barraram paulatinamente a imigração por motivos
nacionalistas e xenofóbicos.
Você pode encontrar mais detalhes sobre esse assunto na obra O charme da
ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil
(2005), de Maria Stella Martins Bresciani.

Durante a Era Vargas, como visto, a subvenção foi cortada, tornando a


imigração uma iniciativa individual e privada. Porém, a influência japonesa
se manteve, sobretudo na questão tecnológica. Mesmo com a derrota sofrida
na Segunda Guerra Mundial e os ataques nucleares às cidades de Hiroshima e
Nagasaki, o Japão conseguiu se reorganizar economicamente e criou empresas
de ponta, como a Panasonic, a Toyota, a Honda e a Nissan, que construíram
sedes no Brasil a partir da década de 1950 (GÓES, ASSUMPÇÃO; SANCHEZ,
2020). Vale destacar que, a partir do período Vargas, notoriamente naciona-
lista, as primeiras indústrias eletroeletrônicas e automobilísticas passaram
a se instalar por aqui, mas foi apenas nos anos 1960 que as multinacionais
receberam incentivos do Estado para escolherem o Brasil.
Outros grupos, como os sírio-libaneses, imigraram para o Brasil na in-
tenção de escapar da instabilidade política, que é contínua na região do
Oriente Médio. A maioria desses grupos se manteve nas grandes cidades
brasileiras, dando início a comércios locais, ou, com a mesma finalidade,
viajaram como mascates para o interior. Embora São Paulo tenha recebido a
maior parte desse contingente, estudos recentes tentam mapear e rastrear
a sua interiorização, estabelecendo a sua importância cultural, social e po-
Classe trabalhadora brasileira 11

lítica em distintos locais. Diferentemente dos grupos anteriores a eles, os


sírio-libaneses não foram subsidiados, pois outros tipos de relações foram
instaurados. De acordo com Truzzi (2019, p. 3):

O papel das redes migratórias formadas tanto por parentes quanto por conterrâneos
foi muito importante. [...] Aos poucos, na terra de origem formou-se de certo modo
uma cultura migratória, pelo menos em parte responsável por mobilizar contin-
gentes expressivos em direção à “América”, onde quer que fosse compreendida.
De fato, a acolhida por redes foi muito comum e bastante importante, pois, desse
modo, o grosso dos imigrantes não chegava aqui sem nenhuma referência.

Apesar da forte influência cultural no Brasil, a população sírio-libanesa


imigrou de forma particular, sem incentivo estatal. Isso corrobora a ideia de
predileção por imigrantes brancos e europeus para ocupar o território bra-
sileiro. O negro, apesar de livre no século XX, sofria sanções sociais só pelo
fato de ser descendente de escravos. A partir do momento em que o sistema
escravista foi destituído formalmente, não houve um programa governa-
mental que visasse à inserção dessas pessoas no mercado de trabalho mais
qualificado. Eles continuaram a exercer funções mal remuneradas e tinham o
acesso à educação dificultado pelas necessidades de sobrevivência. As taxas
de analfabetismo eram altas e as condições de moradia não eram as ideais,
causando um efeito bola de neve na constituição das classes econômicas
brasileiras. Além disso, o próprio brasileiro nativo foi preterido pelo Estado
quando se buscaram imigrantes para ocupar territórios com alto risco de
invasão estrangeira.
Esses pontos de vista foram desenvolvidos durante décadas pela his-
toriografia, que só começou a discutir o papel dos pobres, dos negros e de
outras minorias a partir da década de 1970. Até então, os grandes modelos
explicativos privilegiavam as análises macro, silenciando as memórias de
grupos inteiros. E isso não foi diferente com a análise da classe trabalhadora.

As questões da classe trabalhadora


A formação da classe trabalhadora é um dos temas mais debatidos na histo-
riografia nacional. Uma das características apontadas por esta é que, durante
muito tempo, se considerou “classe trabalhadora” aqueles que imigraram
para o Brasil. Brasileiros, índios, negros escravizados (ou libertos) não eram
conhecidos como parte da mão de obra que havia auxiliado na construção do
País. Isso se dá porque se estabeleceu que o estudo sobre o trabalho estava
12 Classe trabalhadora brasileira

relacionado ao operariado, e pouco se discutia as relações construídas na


lavoura, por exemplo. Como diz Cláudio Batalha (2000, p. 7):

A imagem mais corrente do operariado na Primeira República é a do italiano


anarquista. Caricata, ela reúne dois componentes fundamentais: por um lado, a
associação automática entre trabalhador e imigrante — este, por sua vez, reduzi-
do ao italiano; por outro, a atribuição de um ideário único, o anarquismo, àquele
movimento histórico.

A experiência dos trabalhadores brasileiros é plural, e essa abordagem


restritiva já foi contestada pelos historiadores. Ela surgiu a partir de ideali-
zações acerca do que era o trabalhador, o imigrante e o cidadão.

A história da historiografia brasileira analisa, entre várias temáticas,


o surgimento da área de História Social do Trabalho, que aborda a
macro perspectiva sobre o contexto das políticas relacionadas ao trabalho,
assim como o ponto de vista micro, de trabalhadores que fizeram parte dessa
construção.
Para melhor compreender a complexidade desse campo de estudos, leia A
Justiça do Trabalho e sua história (2013), livro organizado por Ângela de Castro
Gomes e Fernando Teixeira da Silva, e A história do trabalho: um olhar sobre os
anos 1990 (2002), de autoria de Claudio H. M. Batalha.

Correntes ideológicas como o Anarquismo, o Socialismo e o Comunismo


surgiram na Europa, durante o século XIX, a partir da crítica ao Capitalismo. Era
um momento de crise social intensa, sobretudo por conta das modificações
causadas pela Revolução Industrial, em 1760, e pelos seus desdobramen-
tos no século seguinte. Pessoas como Saint-Simon (1760–1825) e Proudhon
(1804–1865) discutiam a exploração do trabalho e criavam suas próprias
respostas, teóricas e/ou práticas, para que a situação mudasse (BATALHA,
2000). Porém, o filósofo mais conhecido e influente desse período foi Karl
Marx (1818–1883), que se aprofundou na análise sobre o Capitalismo e apre-
sentou soluções para superá-lo. Essa tendência, que embasou movimentos
revolucionários e trabalhistas na Europa, também viajou para o Brasil com os
europeus. Segundo Batalha (2000, p. 37–38), a organização dos trabalhadores,
independentemente da ideologia, estava relacionada aos maus tratos e à
pouca regulamentação das atividades:
Classe trabalhadora brasileira 13

A República trouxe inicialmente esperança, que logo deu lugar à decepção, àqueles
que buscavam obter a regulamentação do trabalho e a garantia de direitos políticos
e sociais através da organização dos trabalhadores. Mesmo a parca legislação
aprovada visando à melhoria das condições de trabalho — como o decreto 1.313
de 1891 regulamentando o trabalho de menores nas fábricas do Distrito Federal —
ficou só no papel, pela falta de vontade política e de uma estrutura de fiscalização
para seu cumprimento.

O que a historiografia fez foi marginalizar os trabalhadores brasileiros


ao transformar as associações de imigrantes em protagonistas nas ações
afirmativas e contestatórias sobre a realidade trabalhista. Autores da pri-
meira metade do século XX pouco analisavam os eventos do seu presente,
e um exemplo disso foi a greve geral de 1917, que só ganhou destaque após
os anos 1970.

A greve geral de 1917 aconteceu na cidade de São Paulo e é conhecida


como uma das principais mobilizações sociais da Primeira República,
tendo ocorrido no governo de Venceslau Brás (1914–1918). Nessa época, o trabalho
no Brasil não era regulamentado, ou seja, eram os contratantes que estipulavam
as regras. Então, devido à insalubridade e à falta de direitos básicos, operários
do setor têxtil, entre os quais havia muitas mulheres e crianças, decidiram se
organizar.
O motim teve início no Cotonifício Crespi, no bairro da Mooca, após os em-
presários terem se recusado a melhorar as condições de trabalho, imposto um
terceiro turno de produção e não terem aumentado os salários. Em seguida,
outras indústrias aderiram à greve — que havia começado com 400 pessoas se
recusando a trabalhar —, causando um dos maiores movimentos organizados
no Brasil até então.
Para expandir o assunto, você pode ler o artigo “A greve geral de 1917 em
São Paulo e a imigração italiana: novas perspectivas” (2009), de Luigi Biondi.

Devido à falta de atenção aos movimentos dos trabalhadores, quem contou


essa história, de início, foram os próprios militantes, que produziam análises
e interpretações acerca das ações realizadas naquela época. Dessa forma,
levantaram a sua voz face a uma produção historiográfica que privilegiava
outras perspectivas. Contudo, foi apenas a partir da década de 1970 que
ganharam espaço novas abordagens — que incluíram as minorias históricas.
A população negra, por exemplo, era pouco citada até os anos 1930, quando
estudos clássicos como os de Gilberto Freyre (1900–1987), Sérgio Buarque de
Holanda (1902–1982) e Caio Prado Júnior (1907–1990) começaram a discutir
a importância dessa população para a formação da sociedade brasileira.
Mesmo assim, esses estudos tinham um viés macro, não apontando as par-
14 Classe trabalhadora brasileira

ticularidades do processo de escravidão e das suas consequências para o


presente. Freyre, aliás, ajudou a cunhar o conceito de democracia racial, que
até hoje traz problemas para a compreensão do racismo estrutural brasileiro.
A década de 1970 é um marco na historiografia, visto que muitas trans-
formações importantes ocorreram na época. Enquanto a História Cultural
era delineada a partir do desenvolvimento da Escola dos Annales, surgida
em 1927, e da inserção de disciplinas como Antropologia e Linguística, a
História do Trabalho sofria influência dos estudos sociais, da micro-história
e do questionamento sobre o marxismo ortodoxo. Nos anos 1960, surgiu
na Inglaterra a New Left Review, revista acadêmica que deu espaço a novas
formas de pensamento para além da estrutura fixa criada a partir da teoria
de Marx. Um dos principais representantes dessa mudança foi E. P. Thomp-
son (1924–1993), que ajudou no estabelecimento da ideia “a história vista de
baixo”, a qual destacava a memória do operário e da cultura de classe a que
ele pertencia. O foco analítico mudou, e o autor consolidou esse campo de
estudo em 1963 com a publicação de A formação da classe operária inglesa,
que marcou os estudos do trabalho no Brasil.
Por meio da leitura de processos judiciais e das memórias passadas, além
da busca por evidências nos mais variados arquivos, os historiadores passaram
a escrever sobre os trabalhadores e analisar as suas experiências. Foi a partir
disso que se instituiu e compreendeu a amplitude da classe trabalhadora
brasileira, que ia muito além da história imigrante.
É importante apontar que trabalhadores e operários, apesar de serem usa-
dos como sinônimos, conceitualmente são diferentes. Esse paradoxo reside no
fato de que os operários são os trabalhadores que surgiram com a Revolução
Industrial, tendo, portanto, qualificações e necessidades específicas. No caso
do Brasil, essa mudança ocorreu no final do século XIX, pois, embora seja
um país agrário-exportador por essência — e assim tenha permanecido por
muito tempo ao longo do século XX —, houve a necessidade de diversificar
a economia. A centralização econômica ocorreu no Sudeste, principalmente
em São Paulo e Minas Gerais, região que, com o dinheiro do café, passou a
se modernizar e industrializar. Alinhada a esse cenário, a classe operária se
desenvolvia. Muitos imigrantes vieram nas décadas de 1910 e 1920 para suprir
a necessidade de mão de obra. Contudo, houve muita migração interna, com
a saída de brasileiros de várias regiões com destino a São Paulo, o que em 10
anos mudou a situação dos operários, com os europeus se tornando minorias.
Ao longo de toda a sua história, o Brasil experienciou conflitos motivados
pelos abusos no trabalho. Assim, outra ideia que se coloca é expandir o con-
ceito de trabalhadores para o período colonial, pois boa parte da produção
Classe trabalhadora brasileira 15

historiográfica enfatizava os acontecimentos da Primeira República e da Era


Vargas. As revoltas nativistas nos séculos XVII e XVIII, por exemplo, reivindica-
vam melhores condições de trabalho para os colonos, que eram explorados
e não possuíam poder ou representatividade política. Isso também ocorreu
com as revoltas separatistas do século XVIII, que visavam à emancipação. Já
no período independente, as revoltas regenciais buscavam a separação de
algumas regiões, ou contestavam as políticas restritivas em relação ao uso
de mão de obra, como na Cabanagem. Tanto a escravidão quanto o trabalho
livre eram políticas de trabalho que se baseavam na exploração, e, até a
aprovação da Legislação Trabalhista, em 1943, a situação pouco mudou.

Referências
BATALHA, C. H. M. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Zahar,
2000.
COSTA, E. V. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Editora UNESP,
1999.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002.
GERALDO, E. O combate contra os “quistos étnicos”: identidade, assimilação e política
imigratória no Estado Novo. LOCUS: revista de história, v. 15, n. 1, 2009. Disponível em:
https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/31799. Acesso em: 18 nov. 2020.
GÓES, A. D. T.; ASSUMPÇÃO, T. A. A.; SANCHEZ, R. B. A contribuição tecnológica dos
imigrantes japoneses para o Brasil. Brasil para Todos, v. 8, n. 1, p. 5–12, 2020. Disponível
em: https://ojs.eniac.com.br/index.php/Anais_Sem_Int_Etn_Racial/article/view/699/
pdf. Acesso em: 18 nov. 2020.
HOLANDA, S. B. (org.). História geral da civilização brasileira - O Brasil monárquico:
reações e transações. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2004. v. 5, t. 2.
HUTTER, L. M. Imigração italiana: aspectos gerais do processo imigratório. Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 27, p. 59–73, 1987. Disponível em: https://www.
revistas.usp.br/rieb/article/view/69906. Acesso em: 18 nov. 2020.
IBGE. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. Disponível em: https://
brasil500anos.ibge.gov.br/estatisticas-do-povoamento/imigracao-por-nacionali-
dade-1884-1933. Acesso em: 18 nov. 2020.
LARA, S. H. Escravidão, Cidadania e História do Trabalho no Brasil. Projeto História, v.
16, p. 25–38, 1998. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/11185.
Acesso em: 18 nov. 2020.
LIMA, A. B. A imigração para o Império do Brasil: um olhar sobre os discursos acerca dos
imigrantes estrangeiros no século XIX. Revista Acadêmica Licencia&acturas, v. 5, n. 2, p.
26–36, 2017. Disponível em: http://www.ieduc.org.br/ojs/index.php/licenciaeacturas/
article/view/155. Acesso em: 18 nov. 2020.
MAGALHÃES, M. D. B. Alemanha, mãe-pátria distante: utopia pangermanista no sul do
Brasil. 1993. 327 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas,
16 Classe trabalhadora brasileira

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 1993. Disponível em: http://
www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279984. Acesso em: 18 nov. 2020.
PACIFIC STEAM NAVIGATION COMPANY. Lista de Passageiros do Kasato Maru. 1908. In:
WIKIPEDIA. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lista_de_Passa-
geiros_do_Kasato_Maru.jpg. Acesso em: 18 nov. 2020.
SANTOS, M. O. Reescrevendo a história: imigrantes italianos, colonos alemães, por-
tugueses e a população brasileira no sul do Brasil. Revista Tempo e Argumento, v. 9,
n. 20, p. 230–246, 2017. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/tempo/
article/view/2175180309202017230. Acesso em: 18 nov. 2020.
SILVA, D. A. Japoneses no Brasil: uma análise histórica. In: BUENO, A. et al. (orgs.). Vários
Orientes. Rio de Janeiro: Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017.
SOUZA, B. G. W. Imigração alemã e mercado de trabalho na cafeicultura paulista – um
estudo quantitativo dos contratos de parceria. História Econômica & História de
Empresas, v. 15, n. 2, p. 81–109, 2012. Disponível em: https://www.hehe.org.br/index.
php/rabphe/article/view/232. Acesso em: 18 nov. 2020.
SUZUKI, T. A imigração japonesa no Brasil. Revista de Estudos Brasileiros, n. 39, p.
59–65, 1995. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/72056.
Acesso em: 18 nov. 2020.
TRUZZI, O. Sírios e libaneses no oeste paulista – décadas de 1880 a 1950. Revista
Brasileira de Estudos de População, v. 36, p. 1–27, 2019. Disponível em: https://www.
rebep.org.br/revista/article/view/1373/1012. Acesso em: 18 nov. 2020.

Leituras recomendadas
ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
BATALHA, C. H. M. A história do trabalho: um olhar sobre os anos 1990. História, n. 21,
p. 73–87, 2002.
BATALHA, C. H. M. Identidade da classe operária no Brasil (1880–1920): Atipicidade ou
Legitimidade? Revista Brasileira de História, v. 12, n. 23-24, p. 111–124, 1992. Disponível em:
http://encontro2012.mg.anpuh.org/resources/download/1245325050_ARQUIVO_clau-
diobatalha.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020.
BATALHA, C. H. M. Sociedade de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX: algumas
reflexões em torna da formação da classe operária. Cadernos AEL, v. 6, n. 10-11, p.
41–67, 2010. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ael/article/
view/2478. Acesso em: 18 nov. 2020.
BIONDI, L. A greve geral de 1917 em São Paulo e a imigração italiana: novas perspectivas.
Cadernos AEL, v. 15, n. 27, p. 264–308, 2009. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.
br/ojs/index.php/ael/article/view/2577/1987. Acesso em: 17 nov. 2020.
BRESCIANI, M. S. M. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna
entre intérpretes do Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.
FERRERAS, N. História e Trabalho: Entre a Renovação e a Nostalgia. Revista Trajetos,
v. 1, n. 2, p. 1–13, 2002. Disponível em: http://www.revistatrajetos.ufc.br/index.php/
Trajetos/article/view/53. Acesso em: 18 nov. 2020.
Classe trabalhadora brasileira 17

GOMES, Â. C.; SILVA, F. (org.). A Justiça do Trabalho e sua história. Campinas: Ed. Uni-
camp, 2013.
GONÇALVES, P. C. Escravos e imigrantes são o que importam: fornecimento e controle
da mão-de-obra para a economia agroexportadora Oitocentista. Almanack, n. 17, p.
307–361, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/alm/n17/2236-4633-alm-17-307.
pdf. Acesso em: 18 nov. 2020.
HALL, M. M. Reformadores de classe média no Império Brasileiro: a Sociedade Central
de Imigração. Revista de História, v. 53, n. 27, p. 148–160, 1976.
LESSER, J. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela
etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2001.
LIMA, Valéria. J.-B. Debret, historiador e pintor. A viagem pitoresca e histórica ao Brasil
(1816–1839). Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
PETERSEN, S. Repensar a História do Trabalho. Espaço plural, v. 17, n. 34, p. 13–36, 2016.
Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/14945.
Acesso em: 18 nov. 2020.
SEYFERTH, G. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, n. 53, p.
117–149, 2002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192.
Acesso em: 18 nov. 2020.
SILVA, R. R. Imprimindo a resistência: a imprensa anarquista e a repressão política em
São Paulo (1930–1945). 2005. 193 f. Dissertação (Mestrado em História). Campinas: Uni-
camp, 2005. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281753/1/
Silva_RodrigoRosada_M.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
A presença dos
imigrantes e a
formação da classe
trabalhadora
no Brasil
Eduardo Pacheco Freitas

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Descrever a política brasileira que estimulou a imigração de europeus.


>> Avaliar os efeitos dessa imigração sobre a política, a economia e a sociedade
brasileira.
>> Identificar as mudanças sociais decorrentes da chegada de imigrantes no
século XX.

Introdução
Entre os séculos XIX e XX, o Brasil recebeu um dos maiores fluxos imigratórios
da história humana. Nesse período, imigrantes vindos de todos os continentes
chegaram ao País e construíram suas vidas, formando a classe trabalhadora
moderna brasileira. Contudo, esse processo não foi isento de contradições, já
que, por um lado, a vinda dos imigrantes contribuiu para o desenvolvimento
econômico e social do Brasil, mas, por outro, empurrou a população negra para
uma marginalidade cada vez maior no pós-abolição.
2 A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil

Estudar a história da imigração brasileira e da formação da força de traba-


lho do País em um momento em que ele se industrializava é fundamental para
compreender os aspectos do Brasil contemporâneo, tais como a influência das
diversas culturas estrangeiras, as raízes da desigualdade social e a participação
de descendentes de imigrantes na construção do Brasil da atualidade.
Neste capítulo, você conhecerá a política brasileira em relação aos imigrantes
nos séculos XIX e XX. Além disso, conhecerá os efeitos da imigração sobre elementos
diversos da sociedade brasileira. Por fim, você verá quais transformações sociais
ocorreram a partir da chegada dos imigrantes.

A imigração europeia no Brasil


A questão da imigração do Brasil remonta ao período colonial, tendo as suas
origens em 1808, quando D. João VI, manifestando uma grande preocupação
em ocupar o território brasileiro, permitiu que imigrantes de outros países
que não Portugal pudessem vir e se estabelecer no Brasil (VIEIRA, 2007).
Mais adiante, ainda no século XIX, dois discursos principais caracterizaram
o debate sobre a imigração no Brasil. O primeiro deles girava em torno do
suposto avanço civilizatório que o Brasil perceberia com a vinda dos imigrantes
europeus para o País. É importante destacar que a escravidão africana ainda
vigorava no País, porém as elites proprietárias já elaboravam ideias sobre a
substituição da mão de obra escrava por trabalhadores livres. Desse modo, o
imigrante europeu serviria a dois propósitos: ocupar, na cadeia produtiva, o
espaço que era dos escravos; e promover o embranquecimento da população
brasileira (MENEZES, 2014).
Já o segundo ponto remete a uma questão de soberania nacional, pois havia
a preocupação de que um excesso de população estrangeira, que poderia
não ser leal ao imperador brasileiro, provocaria um grave risco de invasão e
ocupação por potências estrangeiras. Desse modo, diversos políticos defen-
deram a criação de uma legislação restritiva ao ingresso e à permanência de
imigrantes no território brasileiro. De qualquer forma, a verdade é que, da
segunda metade do século XIX em diante, grandes contingentes de imigrantes
chegaram ao País, promovendo grandes transformações sociais, políticas e
econômicas. Esses fluxos migratórios inseriram o Brasil em uma dinâmica
mundial de deslocamentos de populações, característica fundamental da
expansão do capitalismo no século XIX (MENEZES, 2014).
A historiadora Martha Victor Vieira chama a atenção para as relações entre
a imigração europeia no Brasil e a construção do Brasil enquanto nação:
A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil 3

O processo de construção do Estado no Brasil oitocentista envolveu uma ampla


discussão sobre as medidas políticas e jurídicas a serem adotadas para promover,
gradativamente, a substituição do trabalho compulsório para o trabalho livre.
Dentre tais medidas constava o incentivo para a vinda de imigrantes europeus,
que considerados como agentes civilizadores deveriam ser os instrumentos para
incrementar o progresso e o desenvolvimento do país (VIEIRA, 2007, p. 1).

Como visto, no Brasil, o século XIX é marcado por anseios de construção


de uma identidade nacional que, em grande medida, buscava esconder a
grande população negra do País e investir na vinda de imigrantes brancos.
Desde o início daquele século, essa tendência já se demonstrava. Logo após
a Proclamação da Independência, D. Pedro I encomendou a Georg Anton von
Schäffer, mais conhecido como Major Schäffer, uma obra de propaganda
do Brasil para ser divulgada na Europa como estímulo à vinda de imigran-
tes. Foi assim que o Major Schäffer escreveu o livro O Brasil como Império
independente: analisado sob o aspecto histórico, mercantilístico e político,
que serviu como um importante instrumento para convencer camponeses
alemães a atravessaram o Atlântico em busca de uma vida melhor no Brasil
(SCHÄFFER, 2007).
Como um dos resultados trágicos dessa política, observou-se a marginali-
zação cada vez maior dos negros no pós-abolição. Embora livres, as pessoas
negras viram as melhores oportunidades de trabalho serem reservadas
aos imigrantes, que, em grande parte das vezes, também recebiam terras
e subsídios, algo que não ocorreu com os ex-escravos. Portanto, é correto
afirmar que, se, por um lado, a imigração trouxe benefícios para o País,
ela também contribuiu para a desigualdade social que afeta sobretudo a
população negra brasileira.
Até o momento em que o Brasil se tornou uma nação independente (1822),
não havia um fluxo constante de imigrantes para o País. Essa situação começou
a mudar justamente pela intenção de D. Pedro I de prover o grande e desocu-
pado território nacional de imigrantes europeus. Foi por meio do trabalho do
Major Schäffer que o intento do imperador passou a ser realizado. Conforme
Rodrigo Trespach, “com o livro de Schäffer circulando entre cientistas, nobres
e empresários entusiastas, a população foi abastecida com a publicação de
folhetins ou cartas explicativas, que passaram a circular em todas as aldeias
onde os agentes atuavam” (TRESPACH, 2019, p. 106).
Desse modo, a propaganda encomendada pelo imperador animou a imi-
gração de alemães para o Brasil. Esse movimento teve origem com a primeira
colônia germânica em território brasileiro, na região da atual cidade de São
Leopoldo, no Rio Grande do Sul, fundada em 1824 e composta por menos
4 A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil

de 40 imigrantes no início (TRESPACH, 2019). Entretanto, a colônia se tornou


tremendamente exitosa. Isso porque, no final da década de 1820, o número
de 40 colonos originais saltou para 5 mil (TRAMONTINI, 2000). De acordo com
Vieira (2007), foi crucial para o sucesso da empreitada imigratória o foco da
propaganda do governo nos seguintes tópicos: “facilidade de acesso à terra,
liberdade religiosa, cidadania brasileira, enfim, melhores condições de vida
e de trabalho” (VIEIRA, 2007, p. 4). Para uma população que frequentemente
sofria com guerras religiosas, dificuldade de acesso à terra para plantar e a
fome, o Brasil se apresentava como uma terra magnífica (SCHÄFFER, 2007).

Embora a historiografia reconheça que a aposta, por parte do go-


verno brasileiro, na vinda de imigrantes ao longo do século XIX possa
ser situada como uma tentativa de substituição da mão de obra escrava pelo
trabalhador livre, ainda houve um longo caminho até a abolição da escravatura,
que ocorreu somente no final do século. Portanto, é lícito considerar que os
colonos brancos e livres também se valeram do trabalho do africano escravizado.
Durante muito tempo, houve uma historiografia com tendências a amenizar
a escravidão do sul do Brasil e a negar que os colonos alemães possuíssem
escravos. Todavia, nas últimas décadas, historiadores têm descoberto uma vasta
documentação (cartas, registros policiais, processos judiciais, requerimentos,
etc.) que comprovam que grande parte dos colonos alemães do Rio Grande do
Sul eram proprietários de escravos (TRAMONTINI, 2000).

A vinda de imigrantes se intensificou após a Independência e, especial-


mente, após a promulgação da Constituição de 1824. Até então, a cidadania
brasileira era vedada aos estrangeiros. Com a nova Carta Constitucional, a
restrição deixou de existir, colaborando para que se iniciasse um fluxo migra-
tório da Europa para o Brasil. Para viabilizar o enraizamento dos imigrantes na
nova terra, durante todo o Primeiro Reinado, foram expedidas as chamadas
cartas de naturalização, que tornavam os imigrantes cidadãos brasileiros.
Contudo, em muitos casos, essas cartas, emitidas por meio de resoluções
especiais do governo, eram intermediadas por senadores e deputados, que
garantiam o encaminhamento das solicitações dos imigrantes ao parlamento,
favorecendo, assim, amigos ou parentes vindos de outros países (VIEIRA, 2007).
Na década de 1840, o caráter duplo da política para a imigração (a “civili-
zação” e o “embranquecimento” do país via colonos europeus, por um lado,
e a mão de obra substitutiva da escravidão, por outro) passou a se chocar,
revelando grandes contradições no meio político e entre as classes proprie-
tárias. A questão é que, ao se discutir sobre qual política imigratória deveria
vigorar no Brasil, estava-se, ao mesmo tempo, discutindo quais estrangeiros
A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil 5

seriam beneficiados com a cidadania brasileira e qual nova sociedade seria


desenhada a partir disso. Nesse contexto, temas como raça e nacionalidade
adquiriram um aspecto central nas discussões, que passavam pelo projeto
de construção de um Estado brasileiro (VIEIRA, 2007).
De acordo com Menezes (2014, p. 74), “no contexto dessa polarização, foram
concentradas em um polo formações discursivas que defendiam o incentivo
à imigração — basicamente a imigração europeia — entendida como único
caminho possível para o alcance de patamares de progresso e de civilização”.
Somada a isso, havia uma tese corrente, não só em nível internacional, mas
também dentro do Brasil, em que o colonizador português, o primeiro a se
estabelecer na região, era visto como representativo do “atraso” e do “imobi-
lismo” (MENEZES, 2014, p. 75) que faziam do Brasil um país pouco desenvolvido.
Em contrapartida, os imigrantes vindos de outras regiões da Europa eram
vistos como promotores do progresso, principalmente os que vinham das
regiões que constituiriam a futura Alemanha (até 1871, a Alemanha não era um
país unificado). Essa divisão nada mais era do que uma reprodução de uma
divisão já existente na Europa, em que os povos anglo-saxões e germânicos
eram vistos como superiores aos povos latinos, que ocupavam um lugar se-
cundário no imaginário do desenvolvimento industrial e econômico do século
XIX (MENEZES, 2014). É importante destacar que essas ideias contribuíram
sobremaneira para o fomento das políticas de imigração que favoreceram a
vinda de alemães para o Brasil.
Assim como os imigrantes alemães, que receberam crédito, ferramentas e
terras para se estabelecerem no Brasil, a imigração italiana — mais tardia —
foi subvencionada, durante muitas décadas (1870–1930). O auxílio pecuniário
para que italianos se deslocassem para o Brasil se manifestou de diversas
formas: alojamento, financiamento de passagens e garantia de trabalho no
campo. Além do mais, as subvenções eram fornecidas para famílias inteiras,
fato que colaborou para a decisão de muitos imigrantes virem para o Brasil,
já que não precisariam abandonar suas famílias (HUTTER, 1987).
A grande maioria dos italianos que vieram para o Brasil tinham origem
na região do Vêneto. Os primeiros imigrantes foram enviados para o sul do
Brasil, sobretudo para a Serra Gaúcha. Nessa região, foram fundadas as
primeiras colônias, que dariam origem às atuais cidades de Garibaldi, Bento
Gonçalves e Caxias do Sul (Figura 1). A formação dessas colônias data de 1875,
e os italianos ali estabelecidos passaram a cultivar uva e a trabalhar com a
produção de vinho. No mesmo ano, novas colônias foram criadas em Santa
Catarina e no Paraná (HUTTER, 1987).
6 A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil

Figura 1. Colonos italianos em Caxias do Sul, região da Serra Gaúcha, em 1904. Os italianos
formaram o maior contingente de imigrantes no Brasil, influenciando significativamente a
sociedade brasileira com sua cultura.
Fonte: Mancuso (1904, documento on-line).

A região Sul recebeu os primeiros colonos, mas foi a região Sudeste (prin-
cipalmente São Paulo) que recebeu o maior número de imigrantes italianos.
Enquanto no Sul os colonos se especializaram no ramo viticultor, os imigrantes
estabelecidos na região Sudeste atuaram basicamente nas grandes planta-
ções de café; naquele momento o grande produto brasileiro de exportação e
carro-chefe da economia nacional. Dessa configuração inicial, muitos italianos
conseguiram acumular algum capital, que logo foi investido em terras. Outros
abandonaram o campo e rumaram para as cidades, sobretudo São Paulo,
para trabalharem nas indústrias, que se tornavam cada vez mais numerosas
(HUTTER, 1987).
O café e a industrialização brasileira são as expressões econômicas mais
importantes das últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. É
precisamente nesse contexto que a imigração italiana se situou. As ideias de
embranquecimento da população brasileira ainda estavam vivas, e a vinda
de mão de obra livre e branca atendeu à necessidade de trabalhadores nas
lavouras de café, onde o trabalho dos negros libertos não era bem-vindo.
Portanto, o Estado brasileiro se viu pressionado a fornecer subsídios para
A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil 7

os imigrantes italianos. Formou-se, então, um verdadeiro negócio em torno


da vinda dos imigrantes, em que companhias de navegação aliciavam os
colonos, tendo em vista o pagamento da passagem realizado pelo governo
brasileiro (HUTTER, 1987).
Contudo, com a crise do café, na virada do século XIX para o XX, somada
às duras condições de trabalho e de moradia encontradas pelos imigrantes
no Brasil, houve a intervenção do governo italiano no sentido de coibir a
emigração de seus cidadãos. É nesse contexto que se promulga o chamado
Decreto Prinetti, em março de 1902, elaborado pelo governo da Itália para
proibir a imigração subvencionada pelo Brasil. Como resultado, a imigração
italiana despencou, tornando-se inferior à de espanhóis e portugueses, ao
passo que a subvenção continuou existindo para outros povos, como os
japoneses, por exemplo (HUTTER, 1987).

Em síntese, pode-se afirmar que o movimento imigratório do século


XIX se divide em dois momentos principais. No primeiro, ocorrido
no início daquele século, houve o deslocamento de alemães e italianos para a
região Sul do Brasil, em um tipo de colonização voltada para o povoamento e
baseada na pequena propriedade. Já a partir da segunda metade do século XIX,
os imigrantes se dirigiram à região Oeste paulista para trabalhar nas grandes
lavouras de café, bem como para os centros urbanos, onde atuaram como
operários (PATARRA; FERNANDES, 2011).

Efeitos econômicos, políticos e sociais da


imigração
Como visto na seção anterior, a imigração europeia no Brasil ajudou a delinear
um novo país. O Brasil, até então, tinha a sua base social assentada sobre
portugueses (e seus descendentes), povos indígenas e africanos escraviza-
dos. Além disso, o País já era composto por uma grande população mestiça,
fenômeno que persiste até os dias atuais. No entanto, novos ingredientes
foram acrescentados a esse grande caldeirão étnico e cultural com a vinda
de alemães e de italianos. Com esses novos elementos, o Brasil ganhou
novos contornos, que influenciaram a economia, a política e a sociedade
como um todo.
Durante vários séculos, o Brasil foi um país que teve no trabalho escravo
a base de sua economia. Dessa forma, todo o restante da sociedade, em suas
expressões ideológicas e políticas, foi estruturado a partir do fato de que a
8 A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil

grande parte da população brasileira era escravizada. Esse sistema apresenta


repercussões até a atualidade, seja por meio do racismo, seja por meio do viés
autoritário da sociedade brasileira, ou então por meio da grande desigualdade
social, que atinge, em particular, a população negra descendente de escravos.
Portanto, a vinda de imigrantes destinados ao trabalho livre no campo ou na
indústria, bem como a formação de uma classe de pequenos proprietários
rurais, imprimiu novas características à formação socioeconômica brasileira.
Para melhor compreensão do impacto dos novos grupos sociais formados
a partir da imigração, deve-se considerar alguns números que revelam uma
forte “europeização” de algumas regiões do Brasil, sobretudo a região Sul.
Entre os anos de 1875 e 1894, quase 80 mil imigrantes italianos chegaram ao
País. Destes, apenas 16% se fixaram no sul, porém, no início dos anos 1920,
o número da população italiana no Rio Grande do Sul havia dado um salto
impressionante: no ano de 1920, havia entre 900 mil e 1 milhão de imigrantes
e/ou pessoas de ascendência italiana na região. Esse número correspondia
a 41,5% da população do estado, que, naquele momento, era de 2.226.000
habitantes. Em outras palavras, os italianos representavam quase a metade
da população do Rio Grande do Sul (LIA; RADÜNZ, 2016). Os dados referentes
aos imigrantes alemães também são importantes. Somados aos 41,5% de
italianos no início da década de 1920, os alemães representavam 17% da
população gaúcha. Esse número subiu para 21,6% na metade do século XX
(LIA; RADÜNZ, 2016).
De posse desses dados, pode-se concluir que as imigrações alemã e italiana
afetaram de maneira particular as regiões Sudeste e Sul, com um impacto mais
expressivo nesta última. Portanto, a economia e a sociedade dessas áreas
do Brasil foram profundamente afetadas pela presença dos imigrantes e por
suas formas de trabalho. Com o processo de imigração, houve o encontro de
dois modelos econômicos diferentes: “o latifúndio escravista e as áreas de
colonização com minifúndio, policultura e mão de obra familiar. Essa distinção
da estrutura produtiva oitocentista marcou o desenvolvimento econômico
do Brasil meridional e explica as diferenças regionais contemporâneas” (LIA;
RADÜNZ, 2016, p. 259), com o norte do estado do Rio Grande Sul apresentando
maior avanço (área de imigração e de pequenas propriedades rurais) e o sul
latifundiário e escravista apresentando menor desenvolvimento.
Em São Paulo, a significativa presença de italianos e, em menor número,
de imigrantes espanhóis causou um grande impacto em termos sociais e
políticos. Grande parte dos imigrantes vindos da Itália e da Espanha no final
do século XIX e início do século XX fugiam das condições políticas hostis em
seus países. Isso ocorria principalmente com aqueles indivíduos pertencen-
A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil 9

tes a grupos políticos vinculados ao socialismo e, no caso da Espanha, ao


anarquismo. Portanto, à medida que esses imigrantes chegavam ao Brasil,
traziam na bagagem suas ideologias e, como membros do proletariado, ini-
ciavam movimentos que lutavam por melhores salários, melhores condições
de trabalho e de combate à exploração do trabalho infantil. É importante
destacar que o grande fluxo de imigrantes italianos e espanhóis em direção
ao estado de São Paulo coincidiu, em determinado momento, com um surto de
industrialização naquela região, sobretudo na capital paulista (BIONDI, 2010b).
O ano de 1917 foi particularmente importante no âmbito da organização da
classe trabalhadora em todo o mundo. Na Rússia, a autocracia tricentenária
dos Romanov foi derrubada, dando lugar ao governo dos bolcheviques, que
realizaram a primeira revolução de cunho marxista da história. Essa movi-
mentação também foi sentida no Brasil, com a Greve Geral de 1917, que atingiu
diversas capitais brasileiras. Em São Paulo, as ideias anarquistas e socialistas
trazidas pelos imigrantes estiveram na base dessa paralisação, que chegou
a atingir, no período de um mês e meio, 50 mil operários (BIONDI, 2010a).
O ponto inicial da Greve foi o Cotonifício Crespi, uma indústria do ramo
têxtil. Inicialmente, 400 operários dessa empresa decidiram entrar em greve,
uma vez que a diretoria da fábrica se recusara a dar um aumento de 15 a 20%
nos salários. Além disso, os trabalhadores exigiam a abolição do trabalho
à noite. Aquilo que começou como uma simples greve, localizada em uma
única indústria, rapidamente se espalhou, promovendo a maior paralisação
já vista até então (BIONDI, 2010a). Um dado muito importante desse evento
histórico diz respeito à composição social dos empregados do Cotonifício
Crispi, então uma das maiores fábricas brasileiras: aproximadamente, 75% dos
seus empregados eram italianos. Essa informação nos permite compreender
como foi possível que os trabalhadores se organizassem a ponto de iniciar
uma greve que paralisaria dezenas de milhares de pessoas.
Os índices de analfabetismo no Brasil eram muito altos no início do século
XX, pois somente 10 a 20% da população era alfabetizada. Em contrapartida,
os operários vindos da Europa eram, em sua grande maioria, alfabetizados.
Essa diferença de formação permitiu que os operários imigrantes fossem
capazes de organizar congressos, publicar jornais e panfletos, facilitando,
assim, a organização do proletariado paulista em torno de uma causa comum
(BIONDI, 2010a).
10 A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil

Além dos alemães e italianos, que representaram o mais importante


contingente de imigrantes no Brasil (ao menos do ponto de vista de impacto
cultural), outros povos se deslocaram para o País no século XX. Em 1908,
por exemplo, iniciou-se a imigração japonesa no Brasil. Nas décadas que se
seguiram, em torno de 240 mil japoneses se estabeleceram no País, formando,
assim, 4% dos imigrantes que foram introduzidos no Brasil desde o século
XIX. A imigração japonesa foi reforçada quando o governo italiano adotou
políticas que proibiam a subvenção por parte do governo brasileiro para
imigrantes da Itália. Além disso, as condições precárias de vida nas fazendas
desestimulou a continuidade do fluxo de imigrantes italianos em direção
ao Brasil (SUZUKI, 1995). Dessa forma, houve o deslocamento dos recursos
destinados à promoção da imigração para a população japonesa desejosa
de se estabelecer em terras brasileiras.
Nesse contexto, também se tornou relevante a luta dos sindicatos de
operários nos Estados Unidos contra a imigração japonesa, considerada uma
ameaça aos empregos dos trabalhadores estadunidenses. Como a superação
da crise do café no Brasil, no final do século XIX, havia uma grande demanda
por mão de obra, que já não era mais suprida por imigrantes europeus. Desse
modo, essa junção de fatores possibilitou que a companhia de imigração
japonesa encontrasse no Brasil um novo mercado, inaugurado em 18 de
junho de 1908, com a primeira leva de imigrantes japoneses (SUZUKI, 1995).
De acordo com a pesquisadora Teiiti Suzuki, especializada na imigração
nipônica, esta pode ser categorizada para fins didáticos em três fases prin-
cipais, conforme o Quadro 1, a seguir.
A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil 11

Quadro 1. Fases da imigração japonesa no Brasil

Fase Características

1ª Fase: 1908—1924 As passagens eram pagas pelo governo de São


Paulo, embora com oscilações. Quando o fluxo de
europeus aumentava, o subsídio era suspenso.
Quando escasseava, era retomado. Nessa fase, 31
mil japoneses chegaram ao Brasil (13% do total).

2ª Fase: 1924–1941 A partir de 1924, o subsídio do transporte passou


a ser concedido pelo Japão. Assim, o afluxo de
imigrantes tornou-se ininterrupto, chegando
somente na década de 1930 quase 45% do total dos
imigrantes que vieram ao longo de todo o século
XX para o País. Em toda a segunda fase, 158 mil
japoneses (67% do afluxo total) chegaram ao Brasil.
Em 1941, com o ataque japonês a Pearl Harbor e a
subsequente declaração de guerra por parte dos
Estados Unidos, a imigração foi encerrada.

3ª Fase: a partir de 1952 Com a imigração reiniciada a partir de 1952, com


um pequeno contingente, chegaram ao Brasil,
desse ano até meados da década de 1970, 46
mil pessoas, correspondendo a 20% do total de
imigrantes japoneses no País. Em 1958, em função
do cinquentenário da imigração japonesa, foi
realizado um censo, com o objetivo de determinar
o tamanho da comunidade nipônica no Brasil. O
resultado mostrou que existiam 430 mil pessoas
entre imigrantes e seus descendentes.

Fonte: Adaptado de Suzuki (1995).

Muitos judeus também vieram para o Brasil no início do século XX. De


acordo com Lesser (1995, p. 40, 41 e 44 apud CRUZ, 2009, p. 227):

[...] as colônias agrícolas foram o primeiro passo na direção de uma emigração regu-
lar e organizada de judeus para o Brasil. Como eram vítimas da política czarista de
“russificação” e fugiam da perseguição cotidiana, aceitavam a agricultura, na qual
tinham pouca ou nenhuma experiência, apenas como uma condição para sua fuga.

Por muitos séculos vitimados pelo antissemitismo, a maior parte dos judeus
vivia em condições muito difíceis em seus países de origem, na Europa. Com
frequência, eles precisavam fugir, devido aos pogroms, isto é, as persegui-
ções sistemáticas organizadas, muitas vezes, pelos governos locais, como
era frequente ocorrer na Rússia czarista. Dessa forma, a imigração, embora
12 A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil

para lugares desconhecidos e para o trabalho no campo, se mostrava como


uma alternativa à violência à qual eram vítimas. Na maior parte da Europa,
os judeus era proibidos de possuírem terras, de modo que o trabalho rural
era pouco usual entre a comunidade judaica. No entanto, as primeiras levas
de judeus que chegaram ao Brasil foram encaminhadas para esse tipo de
trabalho (GUTFREIND, 2010).
Em quase a sua totalidade, os judeus imigrantes vieram do Leste Europeu,
patrocinados pela Jewish Colonization Association (JCA), organização que
atuou no início do século XX e conseguiu imigrar milhares de pessoas para os
Estados Unidos, Argentina e Rio Grande do Sul. Em 1904, foi criada a colônia
Philippson, a primeira colônia judaica do Brasil, localizada no interior do
Rio Grande do Sul, 25 km distante da cidade de Santa Maria. A maior parte
dos imigrantes dessa colônia veio da Bessarábia, província que fazia parte
do Império Russo e que sofria com frequentes pogroms (GUTFREIND, 2010).
Em relação ao antissemitismo no Brasil, há dois momentos a se distinguir.
Inicialmente, a vinda dos imigrantes judeus era vista como parte da solução
para o branqueamento da população brasileira, questão de fundo do processo
de imigração. Entretanto, durante a Era Vargas, houve uma certa ascensão
do antissemitismo, tendo em vista diversos intelectuais do período que
demonstraram ideias contrárias à vinda de judeus para País. O sociólogo
Bernardo Sorj (2008) discute essa questão nos seguintes termos:

[...] na medida em que os judeus são aceitos como parte da raça branca — o que só
foi questionado por alguns intelectuais brasileiros associados a ideologia fascista
nas décadas de 20 e 30 – eles passam a ser parte da solução, e não um problema.
Neste caso, embora a sociedade brasileira seja racista, antinegra, esse racismo
não atingiria outras etnias, como os judeus (SORJ, 2008, p. 4–5).

Como conclusão, o autor defende que a imigração judaica no Brasil foi


exitosa, particularmente no que diz respeito à integração dos imigrantes na so-
ciedade brasileira. Atualmente, assim como ocorre com a colônia japonesa em
São Paulo (no bairro da Liberdade), existem “bairros étnicos” historicamente
judaicos, como o bairro Bom Fim, em Porto Alegre. Além disso, há inúmeras
associações e escolas judaicas em várias cidades brasileiras, atestando a
importante contribuição da comunidade judaica para a sociedade brasileira.

Imigrantes e mudanças sociais


Como visto, diversos grupos de imigrantes chegaram ao Brasil no período que
abrange desde as últimas décadas do século XIX até as primeiras décadas do
A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil 13

século XX. Italianos, alemães, espanhóis, japoneses e judeus representam


alguns dos principais povos a chegarem ao Brasil, correspondendo a 80% do
total de imigrantes. Contudo, estes não foram os únicos. O Brasil também
recebeu importantes contingentes de imigrantes árabes, turcos, libaneses,
ucranianos, poloneses e até mesmo imigrantes de países da América Latina,
como bolivianos e, mais recentemente, haitianos. Da África, na época con-
temporânea, também vieram indivíduos de Angola e de Moçambique, países
lusófonos (HERMANN, 2000).
É evidente que esses grupos, de maneira isolada ou somada, provocaram
transformações na sociedade brasileira, principalmente no que tange à cultura,
à língua e aos costumes. Como visto, a política e as lutas sociais também foram
influenciadas, sobretudo no período de industrialização brasileira no início
do século XX, quando italianos e espanhóis, ideologicamente alinhados ao
anarquismo, ao anarcossindicalismo e ao socialismo, organizaram grandes
greves que paralisaram milhares de trabalhadores. Além disso, a presença
dos imigrantes, além de contribuir para a formação da classe trabalhadora
brasileira, revela aspectos relacionados com a integração social e cultural,
nem sempre tranquila (HERMANN, 2000).
Entre 1889 e 1930, ou seja, no período da Primeira República, o Brasil
percebeu expressivos fluxos imigratórios. Nas primeiras décadas da Re-
pública, entraram no País aproximadamente 3,5 milhões de estrangeiros,
correspondendo a 65% de todos os imigrantes que entraram no País desde
a Independência até os anos 1960. Alguns dados nos possibilitam conhecer a
composição étnica desses imigrantes. No período mencionado, os imigrantes
se dividiram em: 35% de italianos, 28% de portugueses e 14% de espanhóis.
Ou seja, 80% dos imigrantes que entraram no Brasil entre 1889 e 1930 tinham
as suas origens na Itália, em Portugal ou na Espanha. Alemães e japoneses,
por sua vez, representavam 4 e 3%, respectivamente.
De acordo com Biondi (2010b, p. 8):

As cidades brasileiras do Sul e Sudeste, algumas mais, outras menos, refletiram essa
revolução étnico-demográfica desde os primeiros anos da República, tornando-
-se locais fundamentais de experiências transculturais cosmopolitas e centros
agregadores de cada grupo étnico e nacional imigrado no país.

Portanto, as transformações ocorridas na sociedade brasileira com o


advento da imigração se manifestaram em diversas esferas. O encontro de
diferentes culturas, as novas línguas, as novas sociabilidades e as novas com-
posições étnicas contribuíam para tornar o Brasil o país que conhecemos hoje.
14 A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil

Na década de 1920, os habitantes da capital paulista eram compostos por


aproximadamente 67% de imigrantes e descendentes de primeira geração. No
período imediatamente anterior, ou seja, nos anos 1910, essa taxa era de 50%
da população total. Ou seja, em pouco mais de 10 anos, ocorreu um grande
salto no número de imigrantes ou descendentes diretos que ainda mantinham
a cultura e o idioma dos pais. No Rio de Janeiro, nesse mesmo período, a
população imigrante estava na casa dos 25%. Em Porto Alegre, os imigrantes
somavam 12% da população. Mesmo nas regiões Norte e Nordeste, menos
impactadas pelo processo imigratório da Primeira República, a população
de imigrantes somava 4% (BIONDI, 2010b).
De modo evidente, tamanha presença estrangeira em solo nacional pro-
vocou diversos embates étnicos, embora não no mesmo nível ocorrido nos
Estados Unidos, onde verdadeiras guerras campais ocorreram. As origens
comuns e latinas dos três principais grupos de imigrantes serviram como
atenuante para os conflitos, que, contudo, acabavam ocorrendo, tanto entre
esses grupos quanto em relação ao governo brasileiro. Apesar de serem o
grupo que mais compartilhava aspectos culturais com o Brasil, os portugueses
foram, muitas vezes, confrontados pela população e pelas elites brasileiras.
Em particular, foram importantes os conflitos entre a população afro-brasileira
e os imigrantes, sobretudo na questão do trabalho, pois havia uma disputa
entre esses dois grupos sociais pelas oportunidades de emprego nas grandes
cidades (BIONDI, 2010b).
Nas regiões urbanizadas, como na cidade de São Paulo, havia o predomínio
de brancos, relativizando-se, assim, os conflitos inter-raciais (embora sem
eliminar o racismo), que muitas vezes escondiam outros conflitos, como os
políticos e de classe. De qualquer forma, essas disputas não se restringiram
à oposição entre imigrantes e brasileiros. As rusgas ocorriam também inter-
namente, por meio de divisões trazidas da Europa, em geral relacionadas
às diferentes regiões de um mesmo país do qual os imigrantes vieram. Nas
cidades, o componente “classe” também apresentava relevância nos conflitos
entre imigrantes:

Na imigração urbana havia todo tipo de estratificação social interna nos grupos imi-
grados: ao lado de empresários, comerciantes e profissionais liberais estrangeiros
bem-sucedidos, havia seus patrícios operários, artesãos, vendedores ambulantes.
Entre os primeiros, não poucos foram os que chegaram como trabalhadores urbanos
ou até rurais, mas a maioria geralmente chegava ao Brasil com capitais ou como
técnicos e administradores de firmas, ou ainda como membros de sólidas redes
comerciais, procurando uma ascensão social e uma consolidação maior que não
lhe eram possíveis no país de origem (BIONDI, 2010b, p. 9).
A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil 15

Dessa forma, a imigração italiana, em particular, trazia a sua própria dinâ-


mica de luta de classes para o ambiente brasileiro, provocando transformações
nessa sociedade. Para se ter uma ideia do tamanho dessa interferência, no
ano de 1920, aproximadamente 2/3 das empresas no estado de São Paulo
eram pertencentes a estrangeiros. Os estabelecimentos pertenciam, em sua
maioria, desde o início do fluxo migratório, a portugueses, alemães e sírio-
-libaneses. Com a chegada dos italianos, surgiram grandes grupos industriais,
pertencentes às famílias Matarazzo, Siciliano e Crespi, sendo esta última a
fábrica na qual os operários iniciaram a Greve Geral de 1917 (HERMANN, 2000).
A presença dos imigrantes também se manifestou fortemente entre as
lideranças políticas e sindicais, contribuindo sobremaneira para a formação
de classes operárias locais. Além disso, a publicação de jornais de caráter
anarquista e socialista, em língua estrangeira, tornou-se uma prática comum
entre esses grupos, preocupando o governo brasileiro (Figura 2). Assim, em
1907, foi promulgada a Lei de Expulsão de Estrangeiros, visando a coibir esse
tipo de iniciativa considerada subversiva, por meio da prisão e da deportação
de líderes sindicais estrangeiros (HERMANN, 2000).

Figura 2. Após iniciar como um instrumento revolucionário, a imprensa italiana em São Paulo
tornou-se convencional, atingindo grandes tiragens e, inclusive, publicando anúncios de
grandes indústrias pertencentes a imigrantes italianos. No detalhe da primeira página do
jornal Il Pasquino, de 22 de maio de 1915, observa-se um anúncio das indústrias Matarazzo.
Fonte: Il Pasquino (1915, documento on-line).

Neste capítulo, você conheceu a política brasileira em relação à imigração.


Inicialmente, houve um grande estímulo, por meio de uma política sintonizada
com o racialismo da época, que pregava o “branqueamento” da população
brasileira. Já no século XX, embora a imigração ainda fosse estimulada por
parte do governo, distúrbios causados por imigrantes urbanos, que lutavam
16 A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil

por direitos trabalhistas, fizeram o País aprovar uma legislação visando à


expulsão dos líderes políticos e sindicais dos trabalhadores imigrantes. Você
também viu como a presença dos imigrantes alterou o panorama nacional,
por meio da chegada de novas ideias e sociabilidades, que influenciaram o
desenvolvimento da sociedade brasileira.

Referências
BIONDI, L. Greve geral de 1917 em São Paulo. In: DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO DA
PRIMEIRA REPÚBLICA. Rio de Janeiro; São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2010a. 6 p.
Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/
GREVE%20GERAL%20DE%201917%20EM%20S%C3%83O%20PAULO.pdf. Acesso em:
19 nov. 2020.
BIONDI, L. Imigração. In: DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO DA PRIMEIRA REPÚBLICA. Rio
de Janeiro; São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2010b. 11 p. Disponível em: https://cpdoc.
fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/IMIGRA%C3%87%C3%83O.pdf.
Acesso em: 19 nov. 2020.
CRUZ, N. R. A imigração judaica no Brasil e o anti-semitismo no discurso das elites. Política
& Sociedade, Florianópolis, v. 8, n. 15, p. 225–250, out. 2009. Disponível em: https://cpdoc.
fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/IMIGRA%C3%87%C3%83O.pdf.
Acesso em: 19 nov. 2020.
GUTFREIND, I. Imigração judaica no Rio Grande do Sul: pogroms na terra gaúcha?
WebMosaica – revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, Porto Alegre, v. 2,
n. 1, p. 84–91, jan./jun. 2010. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/
view/15547. Acesso em: 19 nov. 2020.
HERMANN, J. Cenário do encontro de povos: a construção do território. In: BRASIL: 500
anos de povoamento. Brasília: IBGE, 2000. p. 17–33. Disponível em: https://biblioteca.
ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv6687.pdf. Acesso em: 19 nov. 2020.
HUTTER, L. M. Imigração italiana: aspectos gerais do processo imigratório. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 27, p. 59–73, 1987. Disponível em: http://
www.periodicos.usp.br/rieb/article/view/69906. Acesso em: 19 nov. 2020.
IL PASQUINO Coloniale, S. Paolo, v. 8, n. 406, p. 1, 22 maggio 1915. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=359670&pagfis=11. Acesso em:
19 nov. 2020.
LIA, C. F.; RADÜNZ, R. Os processos imigratórios dos séculos XIX e XX: diálogos entre o
saber acadêmico e a Educação Básica. Educar em Revista, Curitiba, v. 32, n. 61, p. 257–272,
jul./set. 2016. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/educar/article/view/46330. Acesso
em: 19 nov. 2020.
MANCUSO, D. Colonos expõem seus produtos em Caxias do Sul. Arquivo Histórico Muni-
cipal João Spadari Adami, Caxias do Sul, 1904. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/
wiki/Imigra%C3%A7%C3%A3o_italiana_no_Brasil#/media/Ficheiro:Colonos-caxienses.
jpg. Acesso em: 19 nov. 2020.
MENEZES, L. M. Imigração europeia no Brasil: discursos, prática e representações
(1870-1930). Latinidade, Rio de Janeiro, v. 3, p. 73–84, 2014.
A presença dos imigrantes e a formação da classe trabalhadora no Brasil 17

PATARRA, N. L.; FERNANDES, D. Brasil: país de imigração? Revista Internacional em


Língua Portuguesa: Migrações, Lisboa, v. 3, n. 24, p. 65–96, 2011. Disponível em: http://
aulp.org/wp-content/uploads/2019/01/RILP24.pdf. Acesso em: 19 nov. 2020.
SCHÄFFER, G. A. O Brasil como império independente: analisado sob o aspecto histórico,
mercantilístico e político – 1824. Santa Maria: UFSM, 2007. 368 p.
SORJ, B. Sociabilidade brasileira e identidade judaica: as origens de uma cultura não
antissemita. In: SORJ, B. (org.). Identidades judaicas no Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. p. 3–24. Disponível em: http://
centroedelstein.org.br/PDF/sociabilidadebrasileiraeidentidadejudaica.pdf. Acesso
em: 19 nov. 2020.
SUZUKI, T. A imigração japonesa no Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,
São Paulo, n. 39, p. 57–65, 1995. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/
view/72056. Acesso em: 19 nov. 2020.
TRAMONTINI, M. J. A escravidão na colônia alemã de São Leopoldo na primeira metade
do séc. XIX. In: JORNADAS DE HISTÓRIA REGIONAL COMPARADA, 1., 2000, Porto Alegre.
Anais [...]. Porto Alegre: IPEA; PUC; FEE, 2000. p. 1–17. Disponível em: http://cdn.fee.tche.
br/jornadas/1/s5a3.pdf. Acesso em: 19 nov. 2020.
TRESPACH, R. 1824: como os alemães vieram parar no Brasil, criaram as primeiras colô-
nias, participaram do surgimento da igreja protestante e de um plano para assassinar
D. Pedro I. São Paulo: LeYa, 2019. 368 p.
VIEIRA, M. V. Construção do Estado, Política Imigratória e Cidadania. In: SIMPÓSIO NACIO-
NAL DE HISTÓRIA, 24., 2007, São Leopoldo. Anais [...]. São Leopoldo: Anpuh, 2007. p. 1–8.
Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/anpuhnacional/S.24/
ANPUH.S24.0103.pdf. Acesso em: 19 nov. 2020.

Leituras recomendadas
CORNELSEN, E. Infância e espacialização do bairro judeu nos romances Bom Retiro, de
Eliezer Levin e A Guerra no Bom Fim, de Moacyr Scliar. Revista do Centro de Estudos
Portugueses, Belo Horizonte, v. 26, n. 35, p. 97–106, jan./jun. 2006. Disponível em:
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/view/6650. Acesso em:
19 nov. 2020.
SANTOS, M. O. Reescrevendo a história: imigrantes italianos, colonos alemães, portugue-
ses e a população brasileira no sul do Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis,
v. 9, n. 20, p. 230–246, jan./abr. 2017. Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.
php/tempo/article/view/2175180309202017230. Acesso em: 19 nov. 2020.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
O desenvolvimento
urbano no Brasil
entre 1945 e 1964
Simone da Silva Viana

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Identificar os fatores que colaboraram para a industrialização e a urbanização


no Brasil a partir do governo de Eurico Gaspar Dutra.
>> Avaliar os efeitos da urbanização e os impactos no quadro econômico bra-
sileiro.
>> Relacionar as mudanças ocorridas no âmbito social a partir do governo de
Juscelino Kubitschek.

Introdução
O processo de urbanização no Brasil entre 1945 e 1964 implementou importantes
centros urbanos, principalmente na região Sudeste do país, visando a ampliar a
diversificação da economia e o desenvolvimento da indústria e do comércio. A
sociedade brasileira se modernizava rapidamente, apresentando um crescimento
urbano e populacional que trazia consigo muitos problemas e desigualdades
sociais. Estas suscitaram insatisfações e oposição ao governo.
Nesse contexto, o populismo se desenvolveu e consolidou a política de massas,
que buscava conduzir o trabalhador, manipulando suas aspirações e atendendo
aos interesses das classes dominantes. O projeto desenvolvimentista com base
na industrialização avançou. Porém, o endividamento externo cresceu e implicou
em uma grande dependência econômica do capital estrangeiro, impactando o
2 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

quadro econômico brasileiro e o modo de vida dos indivíduos. Apesar do quadro


de modernização e urbanização, o país não conseguia resolver os problemas
sociais latentes, como a pauperização e a desigualdade social.
Neste capítulo, você vai compreender o processo de desenvolvimento industrial
atrelado à urbanização. Esse processo foi lento e gradual, com implementações
de políticas liberais e neoliberais aliadas aos interesses norte-americanos, que
acentuaram o vínculo de dependência econômica e profundas crises políticas e
sociais latentes até os dias atuais. A indústria passou a ser a atividade econômica
mais dinâmica. Porém, a urbanização não alcançou todas as regiões do país, que
ainda hoje apresentam enormes desigualdades e sofrem com a destituição de
direitos, a precarização do trabalho e a carência de uma política urbana eficaz.
A partir dessa perspectiva, você vai apreender o contexto histórico em que se
desenvolveram a industrialização e a urbanização do Brasil nos governos de Eurico
Gaspar Dutra (1946-1951), Getúlio Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956-
1961), Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964). Sob essa ótica, você vai poder
analisar e pensar sobre a capacidade da sociedade brasileira de se reinventar e
se reorganizar na luta pela cidadania e pela sobrevivência diante do caos.

A industrialização e a urbanização no Brasil


a partir do governo de Eurico Gaspar Dutra
O período de 1945 a 1964 foi denominado pelos historiadores como período
republicano populista. Nesse momento, o que estava em pauta era a demo-
cracia, o avanço industrial e urbano, a modernização, a consolidação das
indústrias e das massas populares nas grandes cidades e a pressão externa
do capital monopolista na economia capitalista nacional.
No processo de industrialização brasileira nesse período, nota-se uma
grande influência da corrente de pensamento nacionalista, com base em
uma industrialização comandada pela burguesia e pelo capital nacionais,
oportunizando também o apoio do capital estrangeiro para impulsionar a
modernização tão sonhada pela sociedade brasileira. Assim sendo, é impor-
tante ressaltar a análise de Bauman (2001) acerca da modernidade:

A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática


da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e
mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como
eram ao longo dos séculos pré-modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente
distinguíveis da experiência vivida, presos numa estável e aparentemente invul-
nerável correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história, tem
história por causa de sua ‘capacidade de carga’, perpetuamente em expansão — o
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 3

alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permitem ‘passar’,


‘atravessar’, ‘cobrir’ — ou conquistar (BAUMAN, 2001, p. 16).

Diante dessa reflexão, os estudiosos acerca do assunto compreenderam


que a década de 1950 foi a consolidação dos avanços tecnológicos. Tais avan-
ços intensificaram a produção e a exploração do trabalho, as resistências e
as mobilizações sociais, a expansão dos mercados e do consumo, a criação
artística e o engajamento político, a transformação das paisagens e das
relações humanas, perpetuamente em expansão.
Segundo os historiadores Cardoso e Vainfas (1997), ao longo da história
da sociedade brasileira, a economia se deslocou do setor agrícola para o
setor industrial, em um processo lento e gradual. Atualmente, nota-se que
esses dois setores da economia ainda possuem uma grande relevância para a
economia brasileira, apesar de várias transformações tecnológicas. O avanço
das indústrias e do trabalho fabril e urbano não findou o trabalho rural — este
caminhou lado a lado com o desenvolvimento industrial.
O desenvolvimento urbano foi consolidado no Brasil a partir de 1945,
atrelado a uma política industrial que não estava preocupada com a realidade
nacional. A preocupação era implementar políticas que garantissem o aumento
da produção em curto espaço de tempo, além de maior poder de compra dos
indivíduos, com estratégias de linha de crédito e abertura de crediários nas
atividades comerciais, leis trabalhistas e organização sindical, e abertura da
economia aos investidores estrangeiros.
No governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), houve uma oscilação en-
tre os que defendiam um projeto nacionalista e aqueles que defendiam
uma abertura ao capital estrangeiro. Várias medidas políticas e econômicas
foram tomadas para facilitar a entrada dos produtos industrializados norte-
-americanos, fazendo parte da política de alinhamento entre o Brasil e os
Estados Unidos no contexto da Guerra Fria.
A Constituição de 18 de setembro de 1946 apresentou inúmeras medidas
importantes na consolidação da democracia no país. Dentre tantas medidas,
algumas favoreceram diretamente o desenvolvimento industrial e urbano
do país (Figura 1), como: aumento de poder dos estados e autonomia dos
municípios, defesa da propriedade privada, sustentação de uma política
econômica liberal e não intervenção do Estado na economia. Foram medidas
que favoreceram diretamente a ação do capital estrangeiro, porém, não sig-
nificaram grande repercussão no desenvolvimento industrial do país, apesar
da entrada de diversas empresas estrangeiras, que passaram a concorrer
com a produção nacional.
4 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

Figura 1. Desenvolvimento industrial e urbano no governo Dutra: inauguração da Via Dutra,


em 1951, retrato da política desenvolvimentista e populista do Brasil a favor do avanço
industrial e urbano.
Fonte: Stoodi (2020, documento on-line).

Getúlio Vargas continuava sendo uma figura política importante para o


Brasil. Nas eleições para presidente em 1950, foi eleito novamente. Iniciava
no país a Nova Era Vargas (1951-1954). A sociedade brasileira esperava, com
isso, a retomada do crescimento industrial e o controle das massas urbanas.
Procurando retomar o nacionalismo e o intervencionismo no Estado brasi-
leiro, Vargas incentivou indústrias petroquímicas, siderúrgicas, de energia e
técnicas agrícolas. Liderou a campanha “O petróleo é nosso”, criando a estatal
Petrobrás na exploração e refino do petróleo no Brasil e implementando uma
política populista, que se intensificava devido ao seu caráter nacionalista
de governar.
O nacionalismo de Vargas e a sua aproximação com o operariado geravam
insatisfações dos empresários nacionais e estrangeiros, aumentando a opo-
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 5

sição ao seu governo. Sua política protecionista entrava em conflito com os


interesses do capital estrangeiro, que encontrou na burguesia nacional um
forte apoio contra as medidas políticas e econômicas elaboradas por Vargas,
principalmente no que se referia ao apoio dado aos trabalhadores, como a
elevação do salário mínimo.
À medida que perdia o apoio dos setores dominantes, Vargas buscava o
apoio dos trabalhadores, adotando políticas trabalhistas. Mesmo assim não
conseguiu o apoio total dos trabalhadores, que reivindicavam, por meio de
greves e movimentos, melhores condições de trabalho e aumento do salário.
Em agosto de 1954, com tantas oposições e manifestações de vários setores
da sociedade contra o seu governo, e se recusando a aceitar a renúncia ou
o afastamento do cargo de Presidente da República, Vargas se suicidou. A
partir daí, ocorreram rearranjos políticos e econômicos nas eleições para
presidente da República.
No ano de 1956, o Brasil nomeava um novo presidente: Juscelino Kubitschek
(1956-1961), também conhecido como JK. Seu programa de governo, denomi-
nado de Plano de Metas, priorizava investimentos em energia, transporte,
alimentação, indústria de base e educação. JK consolidou o desenvolvimento
do capitalismo nacional associado ao capital estrangeiro, baseado na indus-
trialização acelerada de bens duráveis e semiduráveis, na expansão de obras
públicas e na construção da nova capital brasileira: Brasília.
Segundo os historiadores contemporâneos Cardoso e Vainfas (1997), o
governo populista se mostrava em desajuste com os interesses capitalistas
associados ao capital estrangeiro, o País se endividava, e as multinacionais
levavam seus lucros exorbitantes para o seu país de origem. As cidades cres-
ciam, juntamente com os problemas sociais e urbanos nas áreas de moradia,
mobilidade urbana, emprego, saúde e educação. Foi um período de largo
crescimento industrial, que ocasionou a migração de nordestinos para as
regiões Sudeste e Centro-Oeste em grande número, aumentando ainda mais
a pobreza, a exclusão social e as vulnerabilidades sociais no espaço urbano.
Em contrapartida, houve o fortalecimento da camada média no país,
criando na sociedade uma mentalidade desenvolvimentista, despertando as
potencialidades que o país poderia oferecer e incentivando o alto nível de
consumo. Os bons resultados do Plano de Metas não impediram, nos espaços
urbanos, principalmente, a existência de muitos focos de conflitos sociais,
manifestações e greves realizadas por trabalhadores.
Os “50 anos em 5” promovidos por JK foram possíveis devido aos inves-
timentos do capital estrangeiro, gerando altas dívidas e dependência eco-
nômica, principalmente com os Estados Unidos. Tratava-se de uma situação
6 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

em que o grande capital monopolista, em escala internacional, acelerava


as economias periféricas ao grande capital mundial, no contexto da Guerra
Fria. Houve a promoção de um intenso crescimento industrial, que não solu-
cionava os problemas sociais no campo e na cidade, e a miserabilidade era
favorável para o oferecimento de mão de obra barata e a grande reserva
dela em território nacional.
Segundo Prado Jr. (2000), acerca da política desenvolvimentista no Brasil,
na década de 1950, o governo de JK terminou e deixou o país submetido a uma
grave crise econômica, sendo cenário para a campanha partidária de Jânio
Quadros. Este se presentava com um discurso agressivo, que prometia varrer
a corrupção e as mazelas da sociedade brasileira, prometendo justiça social
e moralização nacional. Assim, obteve uma vitória histórica no país. Jânio
Quadros precisava de um programa político eficaz para resolver os proble-
mas deixados por JK, como inflação, dívida externa, pobreza e instabilidade
social. Ao longo do seu governo, ele se utilizou de uma política autoritária,
que interferia diretamente no modo de vida das pessoas, com reformas de
princípios e fundamentos morais.
Jânio Quadros comandou o país por pouco tempo, devido às medidas
tomadas por ele, como restrição ao crédito e congelamento parcial dos sa-
lários, aproximação econômica com a Argentina e intenção de criar um bloco
independente na América Latina. Acabou gerando muitas oposições ao seu
governo, tanto pelos brasileiros como pelos norte-americanos. Buscando
aproximação com os países socialistas, no contexto da Guerra Fria, acabou
sendo acusado de inimigo do país e comunista, intensificando as pressões
internas e externas ao seu governo, o que o levou a renunciar.
Após a renúncia de Jânio Quadros, os militares não aceitaram a posse
do vice-presidente, João Goulart (conhecido como Jango) — acusavam-no
de comunista. Daí, a solução encontrada pelas forças conservadoras foi
implementar o parlamentarismo, para diminuir o poder de Jango. De 1961
até janeiro de 1963, o país foi governado de forma parlamentar. Porém, Jango
realizou um plebiscito, que fazia retornar o regime presidencialista. Era o
último e mais conturbado dos governos presidenciais da democracia popu-
lista, dominado pelos interesses das oligarquias, das elites financeiras e do
capitalismo internacional.
Jango elaborou uma Reforma de Base, que daria condições para o país
ter uma reforma agrária, universitária, eleitoral e urbana. Esse projeto era
audacioso e era contra os interesses burgueses aliados ao capital estrangeiro.
Em um cenário de profundas crises sociais, urbanas, rurais e econômicas,
o país diminuía os investimentos e se afundava em dívidas. Nas cidades, o
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 7

aprofundamento da política de massas ameaçava o populismo, a burguesia


e a camada média, que viam com pavor o aprofundamento de tendências de
esquerda e comunistas no país.
Enfim, controlar a inflação e a crise econômica e política e garantir o de-
senvolvimento industrial era algo impossível de se resolver na década de 1960.
Em 31 de março de 1964, o cenário para a intervenção militar se consolidava.
Terminava o período populista da história do Brasil e se instalava o regime
ditatorial, encerrando, assim, o projeto nacionalista do desenvolvimento
industrial brasileiro.

A história da industrialização e da urbanização está atrelada à injus-


tiça e à vivência nas camadas populares. Nesse sentido, é importante
ressaltar que, no contexto de 1945 a 1964, a cultura e a política se interligavam.
A cultura era vista como um instrumento de transformação, uma visão ambígua
da sociedade que lutava pela politização dos indivíduos e pelo exercício da
cidadania por meio da arte, do cinema, da música, da poesia e da literatura. O
objetivo era revelar ao indivíduo a sua realidade, por meio da desconstrução das
ideologias impostas pelo grande capital. O resultado foi um clima de conflitos
e confrontos, mesmo diante de uma política autoritária e de um nacionalismo
exacerbado. Tratava-se da contestação à prosperidade que só beneficiava uma
minoria, do inconformismo com as relações comerciais e a dependência ao
capital estrangeiro, da crítica à sociedade de consumo, da busca pela liberdade
contra a alienação.
Para saber mais sobre esse assunto, leia o artigo “O Brasil de JK > Sociedade
e cultura nos anos 1950”, de Mônica Almeida Kornis, disponível no site do Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação
Getúlio Vargas.

Os efeitos da urbanização e os impactos no


quadro econômico brasileiro
O mundo se modifica diariamente. Espaços geográficos, populações, costumes
e sistemas socioeconômicos são continuamente alterados, em um movi-
mento constante causado pela modernização e pela renovação. É importante
ressaltar que o desenvolvimento industrial provoca efeitos e impactos na
sociedade, nas relações de trabalho, na integração cultural e social e nos
espaços urbanos e rurais. Sob essa ótica, é importante compreender que a
urbanização e a industrialização, no contexto de 1945 a 1964, mudaram hábitos
cotidianos, comportamentos e valores e transformaram o espaço urbano em
8 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

todos os aspectos — político, econômico, cultural e social —, impactando o


desenvolvimento e a construção do homem contemporâneo.
Durante a década de 1950, com o avanço da industrialização, as grandes
cidades, principalmente da região Sudeste, receberam a implantação de
multinacionais responsáveis pela produção de diversos bens de consumo e
de veículos, que consolidaram transformações importantes nos processos
de urbanização e política econômica do país. A sociedade e a economia se
reinventavam, reproduzindo as características mais evidentes dessas orga-
nizações, como a divisão social e a exploração do trabalho. As conquistas
de direitos políticos e, ao mesmo tempo, as restrições de direitos sociais, a
heterogeneidade e a desigualdade social foram marcantes no processo de
industrialização ocorrido no Brasil de 1945 a 1964.
Segundo Prado Jr. (2000), nas grandes cidades, observou-se a amplia-
ção da pobreza, a deterioração das condições ocupacionais e o aumento
das vulnerabilidades sociais, do desemprego e da instabilidade econômica.
Tais fatores causaram efeitos devastadores na política urbana brasileira. A
estrutura industrial com base nos interesses do capital estrangeiro não pos-
sibilitou o enfrentamento de problemas internos, como a pobreza nas áreas
rurais, o que levou à migração de milhares de trabalhadores para os grandes
centros urbanos em busca de emprego e renda. Essa migração resultou em
uma grande reserva de mão de obra barata que se amontoou nas cidades,
aprofundando as desigualdades sociais no país. A precariedade e a incerteza
se tornaram elementos cotidianos na vida dos migrantes e trabalhadores
das grandes cidades.
O progresso trazido com a industrialização não resolvia os problemas
sociais, como a miséria, a violência, o desemprego, as migrações e a criminali-
dade. O homem pobre urbano estava fortemente marcado pelas condições do
sistema econômico instituído. Por mais que as cidades oferecessem maiores
possibilidades de emprego, isso não era suficiente para atender a toda a
demanda. Ao mesmo tempo que se propagava a ideia de uma vida melhor nos
centros urbanos, a realidade era bastante perversa. Os postos de trabalho
eram muito volúveis, com pagamento de salários muito baixos, e a cidade
não oportunizava para a maioria dos trabalhadores serviços básicos como
saúde, educação e saneamento básico.
As condições de vida da maioria dos trabalhadores nos grandes centros
urbanos desde 1945, estendendo-se até os dias atuais, são precárias, sub-
-humanas, miseráveis. De fato, trabalho e dinheiro não são acessíveis a todos.
A exclusão dos direitos e a política econômica direcionada ao longo da história
para beneficiar a elite nacional e estrangeira favoreceram a consolidação
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 9

de uma urbanização ineficaz, com sérios problemas na infraestrutura e na


conjuntura das cidades.
Assim, entre 1945 e 1964, as cidades se transformaram para assegurar o
desenvolvimento econômico. O espaço físico se descaracterizou, e as an-
tigas moradias deram lugar a habitações coletivas e centros comerciais.
As favelas e a periferia cresceram na mesma intensidade (Figura 2); novos
bairros distinguiam os moradores de acordo com sua renda e seu status.
Nesse contexto, o planejamento urbano se fazia necessário e urgente para
reorganizar o espaço público e o privado, além de oportunizar uma melhor
infraestrutura para atender à instalação de inúmeras fábricas e indústrias. As
cidades adquiriram um ritmo cada vez mais acelerado de produção e de vida.

Figura 2. Efeitos e impactos da urbanização: registro de favelas que compunham o cenário


do Rio de Janeiro na década de 1960.
Fonte: Museu da Vida (2018, documento on-line).

Segundo Ianni (1996), as cidades são complexos laboratórios das relações


sociais. Ao mesmo tempo que são o lugar privilegiado das indústrias, são
também o lugar da tirania e da opressão. Para o autor,

A ‘cidade’ pode ser realidade e metáfora, significando simultaneamente mercado,


comércio, indústria, banco, capital produtivo, capital especulativo, tecnologia,
força de trabalho, divisão do trabalho social, planejamento, competição, lucro,
qualidade total; compreendendo grupos e classes sociais, sindicatos e partidos
políticos, movimentos sociais e correntes de opinião pública, tensões sociais e
lutas políticas, assembleias, greves, revoltas, revoluções, pode significar liberdade,
igualdade e contrato, tanto quanto alienação e emancipação, tirania e democracia.
Na cidade desenvolvem-se as mais diversas formas de sociabilidade e múltiplas
10 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

criações culturais, inclusive artísticas, científicas e filosóficas. E tudo isso pode


irradiar-se pelo mundo agrário, tanto impregnando-se de suas criações como
fertilizando-as (IANNI, 1996, p. 54–55).

É importante ressaltar a análise realizada por Ianni (1996), quando este


se refere ao desenvolvimento das cidades e às contradições que elas de-
senvolveram. Isso porque, paralelamente ao desenvolvimento econômico e
urbano do país, acelerado na década de 1950, surgiram inúmeros contrastes
e confrontos a serem resolvidos nas estruturas urbanas, verificados ainda
hoje. Muitos deles só serão solucionados a partir da tomada de consciência
política por parte dos indivíduos, de uma ação organizada de mobilização
social que se posicione contra a ordem estabelecida, em prol de mudanças
nas implementações políticas espaciais, econômicas e sociais urbanas.
Outro efeito do desenvolvimento industrial urbano, apontado por Prado
Jr. (2000), foi a substituição de vagões e ferrovias por carros e rodovias. A
rede ferroviária foi abandonada, porém, seu custo era muito mais baixo do
que o da rede rodoviária, tanto para o cidadão quanto para o Estado. Foram
medidas tomadas para atender ao capital estrangeiro, abrindo totalmente
a economia e o mercado para as indústrias automobilísticas e petrolíferas,
estimulando, assim, diversas atividades afins, como das indústrias mecânica,
eletrônica, química e outras.
É evidente que a indústria automobilística criou inúmeros postos de empre-
gos. Porém, o país não tinha infraestrutura para atender a esse investimento.
Para construir rodovias, por exemplo, deixou de financiar hospitais, escolas
e rede de saneamento para a população. O governo priorizou políticas de
transporte individual em vez do coletivo, para, assim, aumentar as vendas
de carros no território nacional.
Constatou-se também, com a industrialização, a facilidade de acesso aos
bens de consumo, principalmente nas cidades. Nos governos de JK, Jânio
Quadros e Jango, apesar dos problemas ocasionados pela dependência ao
capital estrangeiro, foi notável o aumento de consumo de bens duráveis e
semiduráveis por parte da população, acarretando mudanças no seu modo
de vida. Por exemplo: ao adquirir uma televisão, obtinha-se acesso a um novo
meio de comunicação, que informava, oferecia lazer, influenciava e direcionava
o cidadão em suas escolhas e seus comportamentos.
Segundo Fausto (1985), é importante acentuar que nenhum dos gover-
nantes, nesse contexto de 1945 a 1964, tinha interesse em desenvolver uma
industrialização e urbanização que acarretasse a modificação da estrutura
socioeconômica do país. Isso porque o lucro e a modernidade faziam parte
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 11

de um interesse nacional que consolidava as desigualdades da economia


brasileira. O Estado assumiu a liderança no processo de industrialização,
associou-se à iniciativa privada e proporcionou ampla liberdade para a im-
plantação de investimentos estrangeiros no país, principalmente na região
Sudeste, no eixo São Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte. Ainda, estabeleceu
políticas educacionais, principalmente nos grandes centros urbanos, obje-
tivando a formação de mão de obra semiqualificada por meio dos cursos
técnicos, para garantir mão de obra barata que atendesse ao grande capital.
Na verdade, a desigualdade, a dominação e as injustiças sociais não foram
oriundas do desenvolvimento industrial e urbano do país — elas sempre
estiveram presentes na história da sociedade brasileira. Muitos de nossos
problemas sociais são oriundos de sistemas políticos excludentes, negligentes
e autoritários, que destituíram, ao longo do processo histórico, o cidadão de
seus direitos.
As grandes cidades brasileiras, no contexto de 1945 a 1964, apresentaram
grandes contrastes sociais, efeitos da desproporção e das injustiças na
distribuição de riquezas socialmente produzidas, da violação dos direitos
e dos impactos causados pelo desenvolvimento econômico brasileiro. As
camadas altas e médias da cidade definiram a padronização do consumo, de
acordo com as propagandas e os comerciais divulgados pela imprensa. Novos
produtos criavam novos hábitos no cotidiano das famílias, despertando uma
extrema necessidade de consumo de tais produtos.
Pode-se dizer que a apropriação capitalista no espaço urbano e a utilização
deste como mercadoria delimita o lugar de cada indivíduo na cidade. Aqueles
que não possuem poder aquisitivo habitam áreas marginais, excludentes,
periféricas. Dessa forma, as cidades se expandem de forma desigual, gerando,
a partir daí, muitas contradições, ambiguidades e miserabilidades que o
grande capital não consegue reverter. O grande entrave à urbanização por
meio de um modelo sustentável é a ausência de implementação de políticas
públicas eficazes, que garantam seguridade e melhores condições de vida
para os habitantes dos grandes centros urbanos. São inúmeras as questões
não resolvidas na governabilidade do espaço urbano, relacionadas a aspec-
tos como moradia, transporte coletivo, saúde, educação, lazer, entre tantos
outros aspectos que se deterioram a cada dia, causando prejuízos enormes
na vida urbana.
O desenvolvimento econômico e urbano gerou frustrações e carências para
a sociedade brasileira, que ainda luta contra as segregações e as precariedades
causadas por ele. O modelo de urbanização acelerada, desordenada e exclu-
dente viabilizado desde 1945 resultou em fortes indicadores de destituição
12 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

de direitos sociais, dependência do capital estrangeiro, exploração de mão


de obra e matéria-prima barata e precarização do trabalho e da vida humana.
Porém, é imprescindível reconhecer também os avanços obtidos no espaço
urbano com as implementações tecnológicas, que transformaram o modo de
vida das pessoas, e a inserção ao mundo moderno e pós-moderno. Dentre
esses avanços, destacam-se a luta pelo exercício da cidadania, o papel da
mulher no mercado de trabalho e na organização espacial urbana, as políticas
sociais e públicas, que intensificaram a organização de movimentos sociais,
e a democratização da educação. Enfim, são diversos avanços que entram
em confronto com os retrocessos da realidade social brasileira.

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, um plano de ação


da Organização das Nações Unidas que aponta 17 objetivos para o
desenvolvimento sustentável, sugere muitas transformações no espaço urbano.
Por exemplo, o Objetivo 11, intitulado “Cidades e Comunidades Sustentáveis”,
objetiva tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros,
resilientes e sustentáveis. Para saber mais, acesse o site da Agenda 2030 e
consulte o Objetivo 11.

As mudanças ocorridas no âmbito social a


partir do governo de Juscelino Kubitschek
No contexto do governo de JK (Figura 3), de 1956 a 1961, vários aspectos da
questão social acentuaram a gravidade das demandas oriundas do sistema
econômico capitalista. O desenvolvimento era a ideologia da época, e o
Estado cada vez mais ampliava a sua participação na economia e reforçava
as alianças nacionais e internacionais, propagando as ideias do patriotismo e
da cooperação internacional. Outro aspecto importante do desenvolvimento
urbano nesse contexto foi a formação de uma grande reserva de mão de
obra nas cidades, acelerando o processo de empobrecimento das classes
populares e a marginalização da população desempregada.
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 13

Figura 3. O presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira se dirige para o palanque do Palácio


da Alvorada, em 1960, em Brasília, no Distrito Federal. Ao mesmo tempo que ocorria a política
desenvolvimentista no país, evidenciava-se um aumento da miséria e da desigualdade social.
Fonte: Paraná (2020, documento on-line).

Durante o governo JK, a sociedade brasileira presenciou a estabilidade


da política desenvolvimentista. Simultaneamente, a população assistiu a
várias manifestações e rebeliões realizadas por trabalhadores e desempre-
gados em busca de melhorias e direitos e contra a abertura desenfreada ao
capital estrangeiro e a exploração da mão de obra. Decorreram daí inúmeras
mudanças no âmbito social do país.
Segundo Guimarães (2005, p. 48–49), acerca da política desenvolvimentista:

A estratégia desenvolvimentista inicia sua argumentação afirmando que a demanda


e o consumo de produtos primários nos centros mais desenvolvidos não acompa-
nham proporcionalmente o crescimento da renda, enquanto aqueles bens estão
sujeitos a flutuações de preços súbitas e amplas, o que afeta a capacidade nacional
de importar e portanto de investir, inclusive na infra-estrutura, com graves reper-
cussões sobre o nível interno de emprego e renda e a estabilidade social do país.
14 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

O Plano de Metas elaborado no governo de JK significou uma maior diver-


sificação de bens de consumo duráveis, o que acarretou mudanças sociais
e culturais significativas no cotidiano da sociedade brasileira, consolidando
uma realidade política, social, econômica e cultural baseada nas influências
estrangeiras. Dessa forma, desenraizaram-se progressivamente as manifes-
tações culturais e peculiares da nação, ao mesmo tempo que se propagou a
estratégia desenvolvimentista no sistema econômico brasileiro.
Durante o governo JK, o Congresso assegurava a legitimação das políticas
públicas elaboradas pelo Presidente, funcionando como um canal de circu-
lação de demandas setoriais dos grupos sociais, principalmente de apoio ao
governo. Foram utilizados o clientelismo e o empreguismo como moeda de
troca com os sindicatos. Dessa maneira, neutralizavam-se as resistências
populares contra o alto custo de vida e a presença do capital estrangeiro.
Nota-se um caráter liberal democrático nas ações políticas consolidadas
no contexto da década de 1950, que determinava as bases e as propostas do
Plano de Metas, dinamizando o processo de industrialização e transformação
capitalista. Isso ocorria diante de um cenário de desemprego e pauperização,
um acelerado processo migratório e um aumento da violência, das tensões
e das fragmentações no âmbito social, que contradiziam o discurso desen-
volvimentista na prática. É importante destacar a ressalva de Guimarães
(2005, p. 168):

[...] é preciso notar que, em diversos momentos da história da formação indus-


trial brasileira, a ação do Estado, construindo as bases físicas para a atuação do
capital privado nacional ou estrangeiro — tais como a infra-estrutura de energia
e de comunicações —, ou implementando políticas regulatórias das atividades do
capital , foi decisiva para superar estrangulamentos localizados, ou para dotar a
economia daquela base indispensável ao seu desenvolvimento continuado e ao
alcance de níveis mais elevados de sofisticação e competitividade.

Cabe acrescentar que o grande contingente de mão de obra barata foi


fundamental para o país ser atraente para o capital estrangeiro. Pode-se
dizer ainda que esse contingente foi fundamental no processo industrial
urbano. Projetar no país “50 anos em 5” foi uma prática audaciosa, apoiada
no grande capital monopolista. No âmbito social, o governo JK não promoveu
alteração na correlação de forças entre as classes dominantes e manteve as
contradições do desenvolvimento, em que a miséria permitia o fornecimento
de mão de obra barata para a dinamização industrial.
O Programa de Metas do governo objetivava 31 metas, distribuídas em
seis grandes grupos: Energia, Transporte, Alimentação, Indústrias de Base,
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 15

Educação e Construção de Brasília. Com investimentos em obras públicas e


entrada de indústrias estrangeiras, o Programa de Metas fazia aumentar o
quantitativo de vagas de emprego. É importante ressaltar a análise de Lafer
(2002, p. 47) acerca do Plano de Metas:

O Programa de Metas ia ao encontro do estilo conciliatório das elites. Nesse sentido,


cumpre salientar a importância do plano como um conceito político, decorrente da
visão que Kubitschek tinha — e defendia — do futuro, compatível com as condições
vigentes de participação política e, portanto, com os interesses dos atores rele-
vantes no sistema político. Como conceito político, um plano representa, de fato,
não apenas aspectos da experiência real de determinados grupos, mas também
a visão e as expectativas de um futuro no qual acreditam. Portanto, a decisão de
planejar, pela primeira vez proposta em uma campanha eleitoral, consistiu em
uma tentativa de reduzir a incerteza sobre as novas políticas, na medida em que
a visão do futuro não revelava, de antemão, incompatibilidade entre as aspirações
das massas (expansão das oportunidades de emprego) e das elites (tradicional
estilo conciliatório).

Porém, a acelerada entrada de migrantes na região Sudeste, em busca de


melhorias de vida, fugindo da miséria e do atraso regional das demais regiões,
em destaque o Nordeste, diminuía as oportunidades de geração de renda.
Isso porque as cidades não conseguiam promover a quantidade necessária
de ofertas de emprego. O sucesso do Programa de Metas não solucionou as
contradições e ambiguidades do sistema capitalista liberal — por exemplo,
não impediu o movimento operário e as greves, o aumento das disparidades
regionais simultaneamente ao desenvolvimento industrial, a manutenção
e o crescimento da miséria e as desigualdades sociais nos espaços rural e
urbano. O governo não conseguia gerar tantos empregos nos setores secun-
dários e terciários para atender a toda a demanda. Assim, o desequilíbrio era
evidente no espaço urbano, com a construção de favelas lado a lado com as
mansões burguesas.
Segundo Ianni (1979), o governo JK marcou um período de transição, saindo
de uma política prioritariamente nacionalista do governo Vargas para adotar
o desenvolvimentismo pautado em uma relação de dependência e associação
com o capital externo. Nesse sentido, o progresso econômico desejado por
Kubitschek não defendia a ideia de autonomia. Ao contrário, previa que a
industrialização só se efetivaria, de fato, com a entrada de investimento
privado, principalmente estrangeiro. Partindo desse argumento, Ianni (1979)
afirma que o vínculo com o nacionalismo “[...] era apenas e exclusivamente
ideológico e tático. Era muito mais uma concessão às forças políticas com
16 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

as quais Kubitschek teve de jogar” (IANNI, 1979, p. 186). A Figura 4 mostra o


planejamento dos investimentos do governo JK.

Figura 4. Previsão de "tempos" no plano de investimentos do governo Juscelino Kubitschek.


Fonte: Silva (2020, documento on-line).

Ao longo dos anos seguintes, segundo Fausto (1985), a crise brasileira


aumentou e afetou todas as esferas da sociedade — econômica, política,
social e cultural. O discurso desenvolvimentista se desgastou e perdeu seu
teor populista. As intensas mobilizações social, política e popular propaga-
ram ideias revolucionárias e um profundo descontentamento com a ordem
estabelecida. Muitas foram as críticas ao governo JK e às políticas desen-
volvimentistas que propagaram um crescimento econômico vinculado ao
capital estrangeiro. O golpe de 1964 esmagou as forças populares e manteve
o modelo de desenvolvimento industrial instituído por JK, com algumas
alterações, para a retomada do crescimento econômico no país frente a um
cenário de crise e recessão.
No que se refere ao âmbito social, as perdas salariais e trabalhistas foram
altíssimas, aprofundando as disparidades sociais e aumentando os índices de
mortalidade e miserabilidade, empobrecimento dos trabalhadores e privação
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 17

de seus direitos básicos. Tais problemas percorreram todo o século XX e ainda


perduram no século XXI. Houve o fortalecimento de uma segregação espacial e
social nas cidades brasileiras, juntamente com a crise urbana, fomentada pelo
desemprego, pela miserabilidade, pela violência e pela desregulamentação
dos direitos e serviços básicos.
Para sanar essas problemáticas, faz-se necessário regulamentar políticas
sociais eficazes que possam oportunizar melhores condições de vida para os
cidadãos, seja no espaço urbano ou rural. Como afirma Faleiros (1991, p. 8):

As políticas sociais no Brasil estão relacionadas diretamente às condições viven-


ciadas pelo País em níveis econômico, político e social. São vistas como mecanis-
mos de manutenção da força de trabalho, em alguns momentos, em outros como
conquistas dos trabalhadores, ou como doação das elites dominantes, e ainda
como instrumento de garantia do aumento da riqueza ou dos direitos do cidadão.

O momento histórico é de reinvenção, reorganização, reestruturação da


sociedade brasileira e de todo o seu sistema político-econômico. O enfren-
tamento à realidade perversa do capitalismo se fortalece juntamente com
as ações de cidadania, a implementação de políticas públicas eficazes, as
mobilizações e as tomadas de consciência política e social, em prol de um
desenvolvimento sustentável e humano.
Segundo Faleiros (1991), as políticas sociais devem ser entendidas como
produto histórico concreto a partir do contexto da estrutura capitalista.

As políticas sociais são formas de manutenção da força de trabalho econômica


e politicamente articuladas para não afetar o processo de exploração capitalista
e dentro do processo de hegemonia e contra hegemonia da luta de classes. (FA-
LEIROS, 1991, p. 45).
[...] as políticas sociais, apesar de aparecerem como compensações isoladas para
cada caso, constituem um sistema político de mediações que visam à articulação
de diferentes formas de reprodução das relações de exploração e dominação da
força de trabalho entre si, com o processo de acumulação e com as forças políticas
em presença (FALEIROS, 1991, p. 80).

Acerca desse assunto, pode-se ressaltar também a questão do desenvol-


vimento urbano industrial. No cenário brasileiro, ao longo da história, esse
desenvolvimento foi desigual, com formas tipicamente capitalistas atuando
juntamente com as formas tradicionais de expropriação e espoliação da
acumulação primitiva, a partir de um modelo de modernização conservadora
e de um desenvolvimento desigual, dependente e periférico do capitalismo.
Visto que o crescimento econômico é uma das condições necessárias para a
resolução dos problemas que se arrastam na história do país, tanto no espaço
18 O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964

urbano quanto no rural, fazem-se necessárias inúmeras implementações de


políticas sociais e públicas em todas as estruturas da sociedade, como na
saúde, na educação, na habitação etc. É necessário ainda o investimento em
novas perspectivas de retomada dos direitos sociais e trabalhistas.

Referências
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
FALEIROS, V. de P. A política social do Estado capitalista: as funções da previdência e
da assistência sociais. São Paulo: Cortez, 1991.
FAUSTO, B. (org.). História geral da civilização brasileira. 4. ed. São Paulo: Difel, 1985a.
Tomo 3, v. 1.
FAUSTO, B. (org.). História geral da civilização brasileira. 3. ed. São Paulo: Difel, 1985b.
Tomo 3, v. 2.
GUIMARÃES, S. P. Desafios brasileiros na era dos gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto,
2005.
IANNI, O. A era do globalismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
IANNI, O. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930/1970). Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1979.
LAFER, C. JK e o Programa de Metas (1956-1961): processo de planejamento e sistema
político no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
MUSEU DA VIDA. Exposição "O Rio que se queria negar", que reúne imagens de favelas
cariocas captadas por Anthony Leeds, está em cartaz em Nilópolis. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2018. Disponível em: http://www.museudavida.fiocruz.br/index.php/ultima-
-semana-para-conferir-exposicao-o-rio-que-se-queria-negar-que-reune-imagens-de-
-favelas-cariocas-captadas-por-anthony-leeds#.X8tW8GhKhPZ. Acesso em: 5 dez. 2020.
PARANÁ. Governo do Estado. Museu Oscar Niemeyer abre exposição sobre as origens
do fotojornalismo no Brasil. Curitiba: Agência de Notícias do Paraná, 2020. Disponível
em: http://www.aen.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=224144&evento=39
893#menu-galeria. Acesso em: 5 dez. 2020.
PLATAFORMA AGENDA 2030. Objetivo 11: cidades e comunidades sustentáveis. Brasília:
PNUD, IPEA, 2020. Disponível em: http://www.agenda2030.org.br/ods/11/. Acesso em:
5 dez. 2020.
PRADO JR, C. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000.
SILVA, S. B. da. O governo de Juscelino Kubitschek. Rio de Janeiro: FGV, 2020. Disponí-
vel em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Economia/PlanodeMetas.
Acesso em: 5 dez. 2020.
STOODI. Resumo de Governo Dutra: história. São Paulo: Stoodi, 2020. Disponível em:
https://www.stoodi.com.br/resumos/historia/governo-dutra/. Acesso em: 5 dez. 2020.
O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 19

Leituras recomendadas
HOBSBAWM, E. A era dos extremos: 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
KOWARICK, L. O preço do progresso: crescimento econômico, pauperização e espoliação
urbana. In: MOISÉS, J. A. et al. Cidade, povo e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
v. 5. (Coleção CEDEC/PAZ E TERRA). p. 30–48.
LE GOFF, J. História e memória. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2012.
LEITE, C.; AWAD, J. di C. M. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes: desenvolvimento
sustentável num planeta urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012.
ROSE, J. F. P. A cidade em harmonia: o que a ciência moderna, civilizações antigas e a
natureza humana nos ensinam sobre o futuro da vida urbana. Porto Alegre: Bookman,
2019.
SANTOS, W. G. dos. O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira.
Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
SKIDMORE, T. E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-1964). São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
SOUZA, N. O planejamento econômico no Brasil: considerações críticas. Revista de Ad-
ministração Pública, v. 46, n. 6, p. 1671–1720, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/
S0034-76122012000600012. Acesso em: 5 dez. 2020.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
Sistemas políticos
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever o surgimento dos sistemas políticos de governo no Brasil.


 Analisar as formas de exercício de poder: autoritárias, republicanas,
democráticas e anarquistas.
 Definir o papel da sociologia no estudo dos fenômenos políticos que
resultam das diferentes formas de exercício de poder.

Introdução
Neste capítulo, você vai estudar o sistema político brasileiro desde a fundação
do Estado Nacional, conhecendo as características dos governos ao longo
dos anos. Além disso, você vai ver as definições das principais formas de
exercício de poder: democracia, republicanismo, anarquismo e autoritarismo.
Por fim, você vai verificar como a sociologia analisou as relações de
poder no Estado e em outras esferas da sociedade, considerando as
mudanças sociais e a participação política da sociedade civil na tomada
de decisões sobre questões coletivas.

Sistemas políticos de governo no Brasil


Os sistemas políticos são um conjunto de instituições e processos políticos que
se articulam e atuam no exercício do poder estatal (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 1998). Já os sistemas de governo abrangem mais especificamente a
relação entre os três poderes: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário.
O Brasil é uma república federativa composta por 26 estados e um distrito
federal. Cada estado possui certa autonomia e leis específicas, mas é subordi-
nado à Constituição Federal de 1988. O Estado é caracterizado como Estado
Democrático de Direito, prezando pela soberania popular e pela cidadania. O
Brasil, desde que se tornou um Estado-nação, ao declarar independência de
2 Sistemas políticos

Portugal, oscilou entre períodos democráticos e períodos autoritários, com


duas ditaduras em sua história. Veja, a seguir, como o Estado se organizou e
como o poder foi exercido em diferentes regimes políticos.

Império (1822–1889)
Com a declaração da independência e o estabelecimento de um Estado Nacional,
o Brasil continuou a ser governado por membros da monarquia portuguesa que
se tornaram imperadores do País. Em 1824, foi criada a primeira constituição
da Nação, que assegurou a manutenção do poder estabelecido e os interesses
dos proprietários de terras.
A escravidão e o latifúndio eram o centro da economia nacional, e o Estado
não promoveu mudanças radicais no que diz respeito aos direitos da população.
A participação política (tanto para votar como para se candidatar) era permitida
apenas aos latifundiários e donos de escravos que tinham recursos financeiros
para pagar (voto censitário). Como você pode imaginar, poucos indivíduos
atendiam aos requisitos para a participação na política e na tomada de decisões.

República Velha (1889–1930)


Com a proclamação da República e o fim do regime monárquico, o Brasil
passou a ser regido por uma constituição republicana (a partir de 1891). O
voto não era secreto e era permitido somente aos homens acima de 21 anos.
Mulheres e analfabetos (maioria da população), soldados e sacerdotes também
estavam impedidos de votar, de modo que mesmo num regime republicano
o voto era para poucos.
Esse contexto possibilitou o domínio dos fazendeiros durante as eleições,
pois as oligarquias estaduais se organizavam para fiscalizar os votos “pro-
metidos”. Essa dinâmica ficou conhecida como “voto de cabresto”, uma das
principais características da política nesse período (LEAL, 1986). Apesar da
abolição da escravatura, a limitação de direitos civis dificultou a conquista de
direitos sociais e de um Estado que garantisse a igualdade a toda a população.
Sistemas políticos 3

A expressão “voto de cabresto” é utilizada para designar o modo como os coronéis


orientavam os votos do eleitorado no início da República. Poder público e chefes locais
trocavam favores, de modo que os representantes locais assegurassem os votos no
candidato escolhido. Assim, nas áreas rurais e depois também nas urbanas, o voto era dado
em troca de favores como cargos públicos, por meio de ameaças ou por vínculos afetivos.

Era Vargas (1930–1945)


O governo do presidente Getúlio Vargas se iniciou com a Revolução de 1930. Ele
trouxe avanços como a Constituição de 1934, que assegurava direitos políticos para
a população e permitia o voto feminino (analfabetos permaneciam impedidos).
Pautado no populismo e na propaganda nacionalista, o governo de Vargas
buscou enfraquecer o poder das oligarquias cafeeiras e se centralizar no Exe-
cutivo. Além disso, o Estado investiu no desenvolvimento da indústria nacional
— por exemplo, com a criação da Petrobrás. No entanto, em 1937, iniciou-se
a ditadura do Estado Novo, tirando o poder das instituições e centralizando
as decisões políticas nas mãos do presidente até 1945.

República Populista (1945–1964)


Durante o período da República Populista, o Estado voltou a reconhecer direitos
políticos como o voto. Além disso, os representantes da população voltaram a
ser eleitos pelo voto popular. A transferência da capital do País para Brasília e
as reformas de base (reforma universitária, reforma agrária, reforma política)
prometidas pelo presidente João Goulart acirraram as tensões políticas. Os
setores conservadores da sociedade, influenciados pelo contexto internacional
de disputas entre governos capitalistas e governos socialistas, articularam uma
reação para impedir um possível mandato de orientação comunista no Brasil.
Deu-se início, em 1964, por meio de um golpe de Estado que impediu o presidente
eleito João Goulart de concluir o seu mandato, a uma ditadura militar no Brasil.
4 Sistemas políticos

Ditadura Militar (1964–1985)


Ainda num regime republicano, a Ditadura Militar concentrou o poder nas mãos
do Executivo. O Congresso Nacional foi fechado e o governo foi marcado pela
perseguição a seus opositores, bem como pela censura à liberdade de expressão.
Generais do Exército assumiram a presidência da República e muitos opo-
sitores foram obrigados a se exilar. A tortura foi prática recorrente como meio
de desmantelar organizações políticas de orientações políticas distintas daquela
do governo. Os únicos partidos políticos com permissão de funcionamento
eram o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora
Nacional (Arena), emulando uma democracia que na prática não existia, pois
as eleições eram manipuladas.

Nova República ou redemocratização (a partir de 1985)


Com o fi m do regime ditatorial, o Brasil passa por um processo de redemo-
cratização. Partidos políticos voltam a atuar e em 1988 é criada a Consti-
tuição Federal que prevalece até os dias atuais. A Carta Magna foi criada
num contexto político que visava à superação do autoritarismo e à garantia
de direitos sociais para toda a população. Nesse contexto, o presidente da
República e os representantes legislativos voltam a ser escolhidos pelo voto
popular, o Congresso volta a funcionar e os analfabetos passam a ter direito
ao voto. O Estado é colocado como o principal assegurador de direitos básicos
como saúde, educação e moradia.
Você pode considerar que, apesar de se caracterizar como um sistema po-
lítico republicano, o Brasil passou por períodos em que o Estado Democrático
de Direito não prevaleceu. Durante os seus dois regimes ditatoriais, o poder se
concentrou na presidência, e o Poder Legislativo e o Judiciário foram sufocados.

Os sistemas de governo de maior destaque são o presidencialismo e o parlamenta-


rismo. Esses são modos como o poder pode ser exercido. Nesse sentido, um regime
de organização monárquica pode exercer seu poder por meio do parlamentarismo,
como no caso do Reino Unido.
Sistemas políticos 5

Formas de exercício do poder


Como você observou, o governo de um país pode alternar diversas formas de
exercício do poder dentro de um mesmo regime. A seguir, você vai ver quatro
das principais formas de exercício de poder: autoritarismo, republicanismo,
democracia e anarquismo. Você deve considerar que, entre a definição teórica
e a política na prática, há questões particulares de cada país que assume um
tipo de regime. A democracia efetivada no Brasil possui um contexto histórico
e social distinto daquele da democracia norte-americana, por exemplo. Aqui,
você vai ver elementos fundamentais de cada modelo.
Os governos autoritários se caracterizam, de modo geral, pela despo-
litização da população, o fim da soberania popular (por meio do voto) e a
ausência de parlamento. Ainda que apresentem uma roupagem democrática,
as instituições representativas são esvaziadas e o poder político se concentra
numa pessoa ou grupo. São governos antidemocráticos, na medida em que não
permitem a livre manifestação política. Além disso, o poder não é limitado.
Atualmente, podem existir mesmo em regimes com eleições e diversos partidos
políticos. O consenso é sobreposto pela autoridade do governo, que pode se
manter utilizando instrumentos tradicionais da política, como o Exército e a
burocracia (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998).
Já os governos republicanos têm como principal característica sua estrutura
baseada no direito do povo e na soberania popular. Ao contrário dos governos
monárquicos, em que o chefe de Estado tem seu poder legitimado pela tradição
e pelo direito hereditário, na República o chefe é eleito pelo povo de modo
direito ou indireto. O governo é voltado para a coisa pública e o bem comum.
A legitimação do poder pelo voto popular e uma legislação escolhida pelo
povo por meio de um parlamento caracterizam os governos democráticos
modernos. O estabelecimento de três poderes visa a instituir um equilíbrio de
forças. O Poder Legislativo é responsável pela formulação das leis, enquanto
o Executivo se encarrega da sua aplicação.
A participação política da população se dá por meio do voto direto ou indireto,
pois todos são iguais perante a lei na escolha de seus representantes legislativos e
executivos. Os mandatos dos políticos possuem um período limitado e as eleições
são marcadas pela disputa de mais de um partido político. Uma vez que é impossível
que cada indivíduo vote diretamente em cada questão coletiva, os representantes
legislativos — eleitos pelo povo — assumem a tomada de decisão no parlamento.
6 Sistemas políticos

Cada regime democrático apresenta uma maneira de organizar seus três


poderes. No presidencialismo, o Executivo (presidente da República) e o
Legislativo são escolhidos pelo voto direito, como no caso do Brasil. Já no
parlamentarismo, os deputados são eleitos pelo voto direto e posteriormente
elegem o representante do Executivo (primeiro-ministro).

Cada país dá um peso diferente ao seu Poder Legislativo e ao seu Poder Executivo. O
Brasil tem historicamente suas decisões atreladas à figura do presidente. Já em países
como Alemanha ou Inglaterra, o parlamento possui mais destaque nas decisões.

No contexto democrático, o indivíduo assume o papel de cidadão. Assim, ele


tem o direito de participar da vida política por meio de mecanismos de participação
direta na tomada de decisões, como em plebiscitos sobre questões em comum, ou
por meio da participação em organizações que influenciam as decisões políticas.
Já o modelo anarquista apresenta uma visão política baseada na negação
de toda autoridade e na liberdade dos indivíduos. O anarquismo implica a
libertação de todo poder superior, seja ele ideológico, político, econômico ou
jurídico (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998). Veja:

A recusa do Estado por parte do Anarquismo está intimamente ligada à sua


concepção de autoridade. O Estado, em toda a sua organização de pirâmide
burocrática, é o órgão repressivo por excelência. Como tal, priva o indivíduo
de toda a liberdade, chamando unicamente para si a capacidade de agir e a
possibilidade de definir a liberdade, impondo uma série de obrigações e de com-
portamentos a que o indivíduo não pode fugir. É isto que o Anarquismo pretende
combater. Enquanto órgão de repressão, o Estado é visto pelo Anarquismo com
capacidade de intervenção global na vida do indivíduo, na sua vida econômica,
na sua existência social como também na sua capacidade de desenvolvimento
ético e independente (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 95).

Essa perspectiva parte da ideia de que toda autoridade é uma forma de


opressão, por isso há uma negação do Estado e das leis. A burocracia estatal
é fortemente criticada, mas o anarquismo vai mais além. Ele propõe que os
Sistemas políticos 7

indivíduos também se libertem do domínio religioso, que oprime por meio


de doutrinas morais, e do domínio econômico, considerando o sistema de
exploração capitalista como a perversão da liberdade humana.
Ao mesmo tempo em que o homem, no anarquismo, deve viver sem um
governo que oriente suas ações, os indivíduos devem se organizar socialmente
a partir de ações livres e autônomas. A autogestão aparece como meio de
socialização da propriedade privada e do poder político. Ou seja, o poder não
deixa de existir; ele só deixa de estar concentrado no Estado (em forma de
dominação) e passa a se expressar na maior participação de cada indivíduo
nas decisões políticas (CORRÊA, 2012).

A sociologia e o estudo da política


A sociologia política estuda os sistemas políticos, as instituições do governo,
as relações de poder que os indivíduos estabelecem entre si, a forma como uma
sociedade delibera coletivamente decisões, entre outras questões relacionadas
à dinâmica do poder e aos fenômenos políticos.
A política é uma área de conhecimento humano que surgiu na Antiguidade
Clássica. Até o século XIX, período em que as disciplinas das ciências sociais
passaram a ser divididas, a sociologia, a educação, a economia e outras ciências
estavam inseridas no pensamento político.
Na Grécia Antiga, a política era compreendida a partir das ações dos
indivíduos na pólis. Já na Idade Média, a política estava vinculada às disputas
pelo poder, às guerras e à administração dos bens comuns. A nobreza e o clero
compunham a elite social que tomava decisões. Foi só no século XIX que a
política se associou ao debate sobre constitucionalismo e Estado de Direito.

A política enquanto campo de conhecimento surgiu na Grécia entre o século V a.C.


e o nascimento de Cristo.
8 Sistemas políticos

O estudo da política pela sociologia e pela ciência política se desenvolveu


associando as relações de poder à esfera estatal. Nessa perspectiva, o Estado
e as suas instituições se tornaram o principal objeto de estudo desses campos
de conhecimento.
Mas se durante muitos anos o poder foi analisado como fenômeno indisso-
ciável do Estado, com o passar do tempo novos estudos passaram a considerar
que as relações de poder não se restringem ao contexto estatal. Assim, a política
passa a ser considerada também nas relações cotidianas, nas microesferas da
sociedade, bem como nas grandes organizações.

A sociologia e o exercício do poder


O sociólogo alemão Max Weber (1994) contribuiu com o desenvolvimento da
sociologia e da ciência política ao analisar o poder e as formas de dominação na
sociedade. O exercício do poder, para esse autor, está relacionado à capacidade
que um indivíduo/grupo tem de impor sua vontade aos outros. Já a dominação,
uma forma de expressão do poder, reside na capacidade de se exercer autoridade
sem que os dominados resistam. Quem obedece o faz acreditando ser sua própria
vontade. Weber também apresenta três tipos ideais de dominação. Veja a seguir.

 Dominação tradicional: tem como base de legitimação os costumes e as


tradições de determinada região/sociedade. Por exemplo: o patriarcalismo.
 Dominação carismática: tem como base de legitimação uma devoção
afetiva a um senhor devido às suas qualidades. Por exemplo: um líder que
é visto como herói, salvador e que tem seus apoiadores como discípulos.
 Dominação racional legal: tem como base de legitimação um estatuto, um
conjunto de regras. A obediência não se dá a um líder, e sim às normas e
leis estabelecidas. Por exemplo: burocracia e poder conferido a cada cargo.

Na prática, a dominação pode apresentar características de um ou mais tipos.


Os três conceitos são nomeados como ideais: são uma tipologia, uma ferramenta
para se analisar a complexidade da vida real e para se identificarem as nuances
da autoridade. A dominação racional legal é típica dos Estados modernos, que
têm toda a sua organização baseada na racionalidade burocrática.
Sistemas políticos 9

O Estado moderno é definido por Weber como um Estado racional que se sustenta por
meio das burocracias especializadas. O território é delimitado e a população que vive
nessa sociedade está submetida a um poder único. O Estado administra as demandas
coletivas e o bem comum.

O Estado moderno detém o monopólio do uso da força em determinado


território. Ou seja, cada Estado possui os meios e está autorizado a exercer a
violência em seus domínios. No entanto, o fato de o Estado ter esse controle
não quer dizer que o uso da violência seja necessário para que o seu poder
seja reconhecido (WEBER, 1994).
O conceito de legitimidade de Weber é a chave para se entender que nas
sociedades modernas a dominação do Estado acontece porque os indivíduos
se submetem às regras sem que o uso da força física seja necessário. O uso
potencial, e não efetivo, da violência confere legitimidade à dominação da
sociedade pelo aparelho estatal.
Assim, a noção de sistema político se refere à estabilidade do exercício
do poder em sociedades complexas por meio de mecanismos sofisticados de
dominação. Ao longo do século XX, esses mecanismos tornaram-se cada vez
mais refinados. Os estudos políticos passaram a reconhecer que as estruturas
de poder não estão apenas em órgãos do Estado, mas também em instituições
sociais. Dessa forma, reconheceram que o poder ultrapassa a esfera estatal.
O pensamento político de Weber foi fundamental para o estabelecimento
de diversas teorias políticas e de uma sociologia política que investiga, por
meio de um olhar qualitativo, o sentido das ações e as crenças que orientam
as formas de poder e dominação na vida moderna.
Os primeiros estudos sociológicos sobre política se concentravam no poder
do Estado. Ao longo do século XX, as análises sobre política consideraram
as mudanças sociais e políticas, o processo de globalização e as questões
relacionadas ao poder e às formas de governo.
Foi com o surgimento da ideia de pós-modernidade, no final do século
XX, que o Estado deixou de ser considerado o principal eixo de poder
das sociedades complexas. A sociedade passou a ser vista como uma
esfera repleta de centros de poder.
10 Sistemas políticos

Esse novo olhar sobre o poder e a política reconhece o peso da dimensão


simbólica nos processos políticos, econômicos e culturais. Em outras palavras,
a comunicação não é apenas um meio de expressão; é uma fonte de poder.
O desenvolvimento da tecnologia, de espaços virtuais, também passou a ser
considerado, visto que uma nova realidade exige novos conceitos.

As pesquisas sociológicas sobre a influência das redes sociais nos processos políticos
são um exemplo de como a teoria sociológica vem se debruçando sobre as novas
formas de se fazer política e de se exercer o poder.

Ao adotar uma visão sistêmica da política, a sociologia reconhece diversos


elementos que estão relacionados com o exercício do poder, como movimentos
não partidários, sindicatos e grupos de pressão. Os regimes democráticos dão
espaço para a manifestação política de diversos setores da sociedade, que
muitas vezes influenciam as decisões e medidas adotadas pelo Estado. Esses
setores buscam influenciar o poder público para que atenda a seus interesses
(GOZETTO, 2008). Sindicatos e algumas organizações não governamentais
(ONGs) realizam esse papel.
Entre os principais grupos de pressão, na perspectiva da sociologia política,
estão aqueles ligados à produção agrária, aos trabalhadores industriais, aos
segmentos empresariais, a questões de gênero, raça, classe, meio ambiente,
entre diversas pautas.

Além do governo, os grupos de pressão se articulam com setores do Poder Legislativo


e do Poder Judiciário, muitas vezes por meio de lobbies. O lobby consiste basicamente
na pressão em torno de um indivíduo/grupo responsável por uma decisão para que
determinados interesses sejam atendidos.
Sistemas políticos 11

Assim, a sociologia estuda temas como: fenômenos de natureza global,


o modo como as lideranças exercem sua autoridade em diversos países e a
maneira como a política é vista pelos indivíduos. Essa percepção de que o
poder e a política se fazem presentes em diversas esferas da sociedade orienta
a sociologia política a investigar quais mecanismos os indivíduos/grupos
utilizam para fazer seus interesses prevalecerem.
As formas de participação política, os movimentos sociais, os atores sociais
que se destacam na esfera política e os processos decisórios, bem como a
política e as novas formas de comunicação (as redes sociais, por exemplo), são
temas que estão na agenda de pesquisa da sociologia política contemporânea.

BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Univer-
sidade de Brasília, 1998.
CORRÊA, F. Anarquismo, poder, classe e transformação social. Em Debate, Florianópolis,
n. 8, p. 69-89, 2012.
GOZETTO, A. O. Movimentos sociais e grupos de pressão: duas formas de ação coletiva.
Revista Brasileira de Marketing, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 57-65, 2008.
LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Omega, 1986.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. 3ª ed.
Brasília: Unb, vol. 1. 1994

Leituras recomendadas
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
CESÁRIO, Paulo Silva. Redes de influência no Congresso Nacional: como se articulam os prin-
cipais grupos de interesse. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 24, n. 59, p. 109-127, 2016.
CODATO, A. N. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à demo-
cracia. Revista de Sociologoa Política, Curitiba, n. 25, p. 83-106, 2005.
A Constituição
Federal de 1988:
entre a construção
e os avanços
Caroline Silveira Bauer

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Identificar os elementos que levaram à conquista de liberdades pela


Constituinte de 1988.
>> Analisar os efeitos da liberdade no pensamento social, político e econô-
mico no Brasil, após 1988.
>> Avaliar o sentido que a liberdade tomou no Brasil atual.

Introdução
A Constituição de 1988 representa um marco importante para o processo de
transição política da ditadura para a democracia, pois significou a reconstrução
do Estado de direito. Embora muitos de seus artigos e capítulos possam ser
criticados, por reproduzirem práticas históricas de autoritarismo ou concen-
tração de poderes, foi o texto constitucional que mais assegurou direitos civis,
políticos e sociais para os brasileiros. O processo de elaboração da Constituição,
realizado por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte, também contou
com a ampla participação da população, que utilizou diferentes canais para ex-
pressar as suas expectativas e os seus desejos em relação ao teto constitucional.
2 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços

Neste capítulo, você conhecerá o processo que deu origem à elaboração


da Constituição de 1988. Além disso, conhecerá os trabalhos da Assembleia
Nacional Constituinte e o desenvolvimento destes. Por fim, você verá quais
são as liberdades democráticas asseguradas por aquela que ficou conhecida
como a Constituição Cidadã.

As lutas por uma constituinte e


uma constituição
Durante o processo de transição política da ditadura para a democracia,
diferentes atores sociais demandaram a convocação de uma constituinte,
a fim de elaborar uma nova Constituição que assegurasse a organização de
um Estado democrático, bem como os direitos civis, políticos e sociais da
população. Essa reivindicação era apresentada por diferentes movimentos,
que se organizaram ou se rearticularam na conjuntura dos anos 1970, após a
ditadura anunciar uma abertura lenta, gradual e segura.
Nos anos 1980, mais especificamente nos debates para as eleições de 1984,
o então candidato Tancredo Neves explicitou o seu compromisso, caso eleito,
pela convocação de uma constituinte para dar continuidade ao processo de
redemocratização. A proposta estava inserida em uma conjuntura de mobiliza-
ção social oriunda do movimento das Diretas Já, e foi muito bem-recebida pela
população. Mesmo com a derrota da Emenda Dante de Oliveira e a realização
de eleições presidenciais por meio do Colégio Eleitoral, setores da população
seguiram mobilizados para participar da elaboração da nova Constituição.
Com a doença e a morte de Tancredo Neves, seu vice, José Sarney, assumiu
a presidência da República, governando entre os anos de 1985 e 1989. Sarney
deu continuidade ao projeto de elaboração de um novo texto constitucional,
entretanto, seu governo foi marcado por uma grave crise econômica, o que,
muitas vezes, gerou descrédito social sobre a conclusão do processo de
transição e a aprovação de uma nova Constituição.
Do ponto de vista econômico, houve uma sucessão de planos para con-
ter a inflação e estimular o consumo. O primeiro deles, chamado de Plano
Cruzado, foi lançado em março de 1986, após o primeiro ano de governo de
Sarney acumular 220% de inflação. Tratou-se de um plano que envolveu: uma
reforma monetária, com a mudança da moeda (do cruzeiro para o cruzado);
o congelamento dos preços e dos salários por um ano, com a existência do
gatilho salarial (caso a inflação atingisse 20%, os salários aumentavam na
mesma proporção); e criou o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), como
A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 3

base para as correções monetárias de aplicações financeiras e da poupança


(FERREIRA, 2018).
Em um primeiro momento, o Plano foi um sucesso, pois conteve a in-
flação e aumentou o poder aquisitivo da população. O clima de euforia e
otimismo fez muitas pessoas passarem a se reivindicar como “fiscais do
Sarney”, monitorando o aumento de preços e denunciando as remarcações
realizadas. Como reação, os fornecedores empreenderam ações de boicote
e desabastecimento, o que fez a inflação retornar, prejudicando a execução
do plano (FERREIRA, 2018).
Após as eleições de novembro de 1986, o governo editou o Plano Cruzado
II, que liberou o preço dos produtos e dos serviços e alterou o cálculo da
inflação, que passou a ser medida a partir dos gastos de famílias com renda
de até cinco salários mínimos. Bebidas alcóolicas e cigarros tiveram seus
impostos aumentados. Com isso, houve um aumento das importações e
uma diminuição das exportações, o que levou ao esgotamento das reservas
cambiais (FERREIRA, 2018).
Menos de três meses depois, o Governo Federal decretou moratória,
suspendendo o pagamento da dívida externa. Com isso, houve um aumento
dos preços de produtos e serviços, e a inflação disparou. Em virtude das
críticas e do descontentamento da população, o então ministro Dílson
Furtado foi substituído por Luiz Carlos Bresser Pereira, em abril de 1987, o
qual implementou o Plano Bresser, que também fracassou. No final de 1987,
a inflação acumulada do ano havia atingido a marca de 366%. Em janeiro de
1988, Bresser deu lugar a Maílson da Nóbrega (FERREIRA, 2018).
Para além dos sucessivos fracassos dos planos econômicos, o governo de
José Sarney foi marcado por escândalos de corrupção. Uma Comissão Parla-
mentar de Inquérito (CPI) foi montada no Senado e, em suas investigações,
denunciou o presidente da República, ministros de Estado e outras pessoas
de utilizar critérios escusos na liberação de recursos públicos. Contudo,
a denúncia não foi levada adiante, e as acusações não foram apuradas.
De acordo com José Murilo de Carvalho:

[...] houve frustração com os governantes posteriores à democratização. A partir do


terceiro ano do governo Sarney, o desencanto começou a crescer, pois ficara claro
que a democratização não resolveria automaticamente os problemas do dia a dia
que mais afligiam o grosso da população. As velhas práticas políticas, incluindo
a corrupção, estavam todas de volta. Os políticos, os partidos, o Legislativo vol-
taram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de corruptos e voltados
unicamente para seus próprios interesses (CARVALHO, 2003, p. 203).
4 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços

A elaboração da Constituição de 1988


No dia 28 de junho de 1985, o então presidente, José Sarney, encaminhou ao
Congresso Nacional a proposta de convocação de uma constituinte. Após
longos debates sobre a composição da constituinte e sua metodologia de
trabalho, em 1º de fevereiro de 1987, iniciaram-se os trabalhos, com 559
deputados e senadores (destes, apenas 26 deputadas mulheres), divididos
em 9 comissões temáticas, cada uma com 63 membros e igual número de
suplentes, que se subdividiram em 24 subcomissões, a saber:

1. Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da


Mulher:
■■ 1a. Nacionalidade, Soberania e Relações Internacionais;
■■ 1b. Diretos Políticos, Direitos Coletivos e Garantias;
■■ 1c. Direitos e Garantias Individuais.
2. Comissão da Organização do Estado:
■■ 2a. União, Distrito Federal e Territórios;
■■ 2b. Estados;
■■ 2c. Municípios e Regiões.
3. Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo:
■■ 3a. Poder Legislativo;
■■ 3b. Poder Executivo;
■■ 3c. Poder Judiciário e do Ministério Público.
4. Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia da Instituições:
■■ 4a. Sistema Eleitoral e Partidos Políticos;
■■ 4b. Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança;
■■ 4c. Garantia da Constituição, Reformas e Emendas.
5. Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finança:
■■ 5a. Tributos, Participação e Distribuição das Receitas;
■■ 5b. Orçamento e Fiscalização Financeira;
■■ 5c. Sistema Financeiro.
6. Comissão da Ordem Econômica (não concluiu os trabalhos):
■■ 6a. Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade
do Subsolo e da Atividade Econômica;
■■ 6b. Questão Urbana e Transportes;
■■ 6c. Política Agrícola e Fundiária e Reforma Agrária.
7. Comissão da Ordem Social:
■■ 7a. Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos;
■■ 7b. Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente;
■■ 7c. Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.
A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 5

8. Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e


Tecnologia e da Comunicação:
■■ 8a. Educação, Cultura e Esportes;
■■ 8b. Ciência e Tecnologia e da Comunicação;
■■ 8c. Família, do Menor e do Idoso.
9. Comissão de Sistematização (49 membros, com igual número de
suplentes).

As presidências de comissões foram tomadas por delegados dos grupos majori-


tários de viés conservador. Além da Comissão de Sistematização, presidida pelo
senador Afonso Arinos, o Partido da Frente Liberal (PFL) ficou com a presidência
de outras sete. O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) ficou com a
relatoria de todas as comissões e com a presidência de 15 subcomissões, deixando o
PFL com cinco, e o Partido Democrático Social (PDS) e o Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) com uma cada. Aos partidos de viés progressista, restou a presidência de duas
subcomissões, que ficaram com delegados do Partido Democrático Trabalhista (PDT)
do Rio de Janeiro (da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais,
presidida pelo deputado Roberto D’Ávila, e do Poder Legislativo, presidida pelo
deputado Bocayuva Cunha). A relatoria das subcomissões que ficaram com os
partidos não conservadores foi para dois juristas: Lysâneas Maciel, do PDT-RJ, na
Subcomissão de Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias, e Plínio de
Arruda Sampaio, do Partido dos Trabalhadores (PT-SP), na Subcomissão do Poder
Judiciário e do Ministério Público (VENTURINI, 2014, p. 155–156).

Os deputados e senadores, unicameralmente, elegeram como presidente


dos trabalhos da constituinte o deputado Ulysses Guimarães, do PMDB de
São Paulo, presidente do partido de maior bancada. Segundo Venturini (2014,
p. 155):

Até o dia 19 de março, os trabalhos se voltaram à elaboração do Regimento Interno,


quando se decidiu que os senadores eleitos em 1982, cujo mandato terminaria
apenas em 1990, também seriam delegados constituintes. Foi acordado que a ANC
seria distribuída em oito comissões temáticas, divididas em três subcomissões
cada, responsáveis por debates, audiências públicas e elaboração de relatórios a
serem encaminhados para a Comissão de Sistematização, a quem cabia consolidar
o texto submetido ao plenário para votações em dois turnos.

Mas qual era a composição da Assembleia Nacional Constituinte? O Quadro 1,


a seguir, apresenta uma distribuição dos constituintes entre os partidos
políticos no início dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.
6 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços

Quadro 1. Composição das bancadas partidárias na instalação da Assembleia


Nacional Constituinte

Partido Bancada

Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) 303

Partido da Frente Liberal (PFL) 135

Partido Democrático Social (PDS) 38

Partido Democrático Trabalhista (PDT) 26

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) 18

Partido dos Trabalhadores (PT) 16

Partido Liberal (PL) 7

Partido Democrata Cristão (PDC) 6

Partido Comunista Brasileiro (PCB) 3

Partido Comunista do Brasil (PCdoB) 3

Partido Socialista Brasileiro (PSB) 2

Partido Social Cristão (PSC) 1

Partido Municipalista Brasileiro (PMB) 1

Total 559

Fonte: Adaptado de Venturini (2014).

De acordo com Venturini (2014), esses partidos formavam dois blocos


distintos: um que defendida a alteração das bases estabelecidas na ditadura,
formado por partidos autodeclarados de esquerda (PT, PCB, PSB, PCdoB e
PDT); e outro que pretendia conservar as estruturas herdadas da ditadura,
composto por PFL, PDS, PTB, PL, PDC, PSC e PMB. “O PMDB, herdeiro do MDB,
tinha um perfil bastante heterogêneo” (VENTURINI, 2014, p. 155). Contudo,
é importante destacar que, por vezes, mais que a filiação partidária, havia
outros interesses em jogo nas votações, configurando arranjos supraparti-
dários, como a existência do chamado centrão.
A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 7

O centrão configurou-se como uma reação de grupos conservadores à


atuação de políticos do campo nacional-desenvolvimentista, progressis-
tas e de esquerda, a fim de controlar a elaboração do texto constitucional.
De acordo com Fábio Venturini:

[...] em novembro de 1987 um grupo de 50 delegados leais ao presidente da república


e apoiados por Ulysses Guimarães formou o “Centro Democrático do PMDB”, o qual
se expandiu para os demais partidos governistas, formando o bloco supraparti-
dário denominado “Centrão”. Tal grupo de reação teve como finalidade reduzir a
influência progressista, tendo 203 delegados constituintes entre seus signatários
(VENTURINI, 2014, p. 157).

Com esse número de deputados e senadores, era possível facilmente


aprovar ou rejeitar determinadas matérias com votos combinados em bloco.
Além de garantir as demandas encaminhadas pelo governo e, dessa forma,
manter sob controle o processo de transição política, o centrão também foi
beneficiado pelas classes empresariais e industriais brasileiras, a fim de
garantir certos benefícios para esses setores. Conforme Venturini (2014, p. 157):

[...] para atender a demandas das burguesias, o Centrão foi alimentado por entidades
empresariais. A União Brasileira de Empresários (UBE) alugou três andares de um
hotel de luxo em Brasília para servir de centro estratégico e deliberações entre
as lideranças do bloco e representantes de mais de 600 entidades de comércio,
serviços, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), da União Democrática
Ruralista (UDR) e da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). Dentro do Con-
gresso, barrou a jornada de trabalho de 40 horas semanais (foi estabelecida em
44 h/semana), inseriu a reforma agrária no texto final de forma superficial e sem
regulamentação e barrou a regulamentação da comunicação social.

Conforme a análise de Venturini (2014), pode-se resumir as consequências


da atuação desse bloco de poder da seguinte forma:

Esse bloco suprapartidário de reação conseguiu obstruir praticamente todas


as propostas progressistas. Em atendimento a demandas diretas do Palácio do
Planalto, conquistou para o então presidente da república o mandato de cinco
anos e postergou o debate sobre o parlamentarismo para um plebiscito marcado
para o ano de 1993, em que se escolheria entre presidencialismo ou parlamenta-
rismo, república ou monarquia (vencido pelo presidencialismo e pela república).
[...] Adicionalmente, o Centrão conseguiu manter no art. 142 exatamente o mesmo
papel constitucional das Forças Armadas (garantia dos poderes constitucionais),
deixando brechas para uma intervenção militar, se necessária à garantia da lei e
da ordem. A sua atuação, usando a mudança bruta de regras quando o jogo não
estava favorável às classes burguesas, foi decisiva na manutenção do estado
autocrático herdado da ditadura (VENTURINI, 2014, p. 157).
8 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços

De acordo com Venturini (2014), a articulação de setores conservado-


res e a formação do centrão remete a práticas como a constituição
da Ação Democrática Parlamentar (ADP), que articulou políticos, empresários e
militares de oposição ao governo João Goulart e atuou no Congresso Nacional,
formando blocos conservadores e reacionários. Durante a Assembleia Nacional
Constituinte (1987–1888), o centrão, composto por políticos vinculados à ditadura,
defendeu interesses do Palácio do Planalto e interesses de classes, restringindo
o direito dos trabalhadores, em busca de um resultado conservador e reacionário.
De acordo com o autor, “aqui se pretende mostrar como na ANC uma maioria
conservadora atuou para manter os pilares estabelecidos na ditadura para
consolidação da autocracia burguesa, ação ocultada pela ênfase em dispositivos
jurídicos” (VENTURINI, 2014, p. 153).

Durante os trabalhos da ANC, estiveram em disputa diversos projetos de


futuro, evidenciados na forma de organização do Estado, na ampliação de
direitos e na busca por uma maior equidade social e de gênero. Entretanto,
como aponta Souza (2001 apud MADEIRA, 2011, p. 191), “a ANC foi marcada
por confrontos em algumas matérias, coalizões na maioria dos casos e por
adiamentos quando o consenso não podia ser alcançado. Coalizões eram feitas
e refeitas constantemente. Praticamente, para cada questão específica, um
bloco extrapartidário era constituído, o qual logo se desfazia”.
Dessa forma, ao se analisar os debates e as votações ocorridas durante
o funcionamento da ANC, deve-se ter cuidado para não partidarizar os posi-
cionamentos, pois a maioria das votações se organizou a partir de coalizões
temporárias a cada pleito (MADEIRA, 2011). De acordo com Wohnrath (2017,
p. 252):

Associado às experiências parlamentares e às composições dos espaços, o grau de


adesão às temáticas debatidas nas subcomissões permitiu conciliações ou resultou
em disputas. Se, por um lado, a organização da família atraiu os interessados pelos
assuntos morais, a estrutura econômica do País estava em jogo quando debatida
a propriedade privada. É possível estabelecer clivagens a partir dos interesses dos
parlamentares e, principalmente, de suas experiências pregressas: evangélicos
(a maioria pastores), ruralistas (ou seus apoiadores) ou favoráveis à reforma
agrária (comunistas; Pastoral da Terra) constituíam grupos bastante uniformes
quanto à luta política desempenhada na Assembleia, embora apresentassem
defesas próprias fora do Congresso, por vezes até mesmo entrando em conflito.
A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 9

A participação popular foi intensa, com o encaminhamento de milhares


de sugestões via emendas populares — eram necessárias 30 mil assinaturas
para que as propostas fossem apreciadas pela constituinte —, por meio das
audiências públicas promovidas pelas subcomissões temáticas, além da
mobilização nas ruas. Esse engajamento era fomentado por slogans como
“Constituinte sem povo não cria nada de novo” (BAUER, 2019, p. 95). Essa
pressão fez os setores progressistas se articularem nas subcomissões e
conseguirem inserir no projeto constitucional as seguintes medidas enca-
minhadas pelos movimentos populares:

[...] propostas de reforma agrária; redução da jornada de trabalho semanal; re-


visão do papel das Forças Armadas; sistema de saúde 100% público e universal;
demarcação de terras indígenas e quilombolas; garantia de direitos das crianças;
educação pública, gratuita e universal; monopólio estatal sobre a exploração e
distribuição do petróleo; monopólio nacional do subsolo; e regulamentação dos
meios de comunicação social (VENTURINI, 2014, p. 156).

Algumas dessas propostas foram aprovadas e estão garantidas hoje no


texto da Constituição de 1988.

No Brasil, das sete constituições, três foram cartas outorgadas (imperial de 1824,
do “Estado Novo”, de 1937, e a ditatorial de 1967/EC nº 1 de 1969). Das quatro
elaboradas em assembleias nacionais (1890, 1934, 1947 e 1988), apenas a de 1988
não foi invalidada por um golpe de estado e ainda está em vigor. As demais fo-
ram objeto de ações ilegais de golpistas para adequá-las a interesses de classes
dominantes. Por exemplo: o período inconstitucional de Vargas, entre 1930-1934,
o período de combate anticomunista após 1935, as tentativas de impedir posses
presidenciais em 1955 e 1961 e a imposição do parlamentarismo para limitar João
Goulart (VENTURINI, 2014, p. 154).

A aprovação do texto constitucional ocorreu no dia 22 de setembro de 1988,


e sua promulgação, em 5 de outubro de 1988. O reconhecimento e o exercício
pleno de direitos de todas as ordens, garantidos pela Constituição, fez ela
receber o nome de Constituição Cidadã (BOTELHO; SCHWARCZ, 2013, p. 21).
10 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços

A Constituição e as liberdades democráticas


Como visto, a campanha por uma constituinte inseriu-se em demandas mais
amplas, articuladas no processo de transição política, principalmente pelas
chamadas “liberdades democráticas”, que somente poderiam ser garantidas
por um texto constitucional comprometido com a democracia, e não elaborado
por uma ditadura civil-militar.
Dessa forma, a Assembleia Nacional Constituinte (1987–1988) e a promul-
gação da Constituição de 1988 representaram não somente um novo marco
jurídico, mas também um marco cronológico para o fim da ditadura instaurada
com o golpe de 31 de março de 1964. De acordo com Fernando Rocha, “a atual
Carta da República não só institui um regime político democrático, como
promove um inegável avanço no campo dos direitos e garantias fundamentais.
Os direitos humanos assumem extraordinário relevo na nova ordem constitu-
cional, sem precedentes na história do constitucionalismo brasileiro” (ROCHA,
1998, p. 111). Em outras palavras, essas proposições somente fazem sentido
se confrontadas com os fatores aos quais se opunham naquele momento:
as graves violações de direitos humanos cometidas pela ditadura civil-militar.
Entre as principais medidas instituídas pela Constituição de 1988, desta-
cam-se (CARVALHO, 2003):

„„ garantia da universalidade ao voto, tornando-o facultativo para os


analfabetos (à época, o Brasil possuía um número expressivo de pes-
soas maiores de 16 anos de idade analfabetas);
„„ voto facultativo a partir dos 16 anos e obrigatório após os 18 anos;
„„ ampliação dos direitos sociais, fixando em um salário mínimo o valor
mínimo para as aposentadorias, com pagamento de uma pensão de
um salário mínimo para todas as pessoas com deficiência e maiores
de 65 anos;
„„ criação da licença paternidade, de cinco dias;
„„ garantia ao direito de habeas data, em que qualquer pessoa pode exigir
do governo acesso às informações existentes sobre ela nos registros
públicos, mesmo as de caráter confidencial;
„„ instituição do racismo como crime inafiançável e imprescritível e da
tortura como crime inafiançável e não anistiável;
„„ proteção do Estado ao consumidor, dispositivo que foi regulamentado
na Lei de Defesa do Consumidor, de 1990.
A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 11

Esses direitos, entre muitos outros, são reflexos do compromisso


doutrinário e ideológico assumido no preâmbulo do texto constitucional,
em que se afirma que o Estado democrático de direito se destina “a assegurar
o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (ROCHA, 1998, p. 111).

No seu artigo 1º, a Carta de 1988 anuncia como princípios fundamentais do Estado
democrático de direito da República Federativa do Brasil, dentre outros, a cidadania
e a dignidade da pessoa humana (incisos II e III). Esses dois princípios irmanados
relevam que não há Estado democrático de direito sem direitos fundamentais,
assim como não existem direitos fundamentais sem democracia; em que sejam
assegurados não só os direitos civis e políticos guiados pelo princípio básico da
liberdade, mas também os chamados direitos sociais, fundados no postulado da
igualdade, sem os quais a dignidade da pessoa humana não passaria de mera
retórica. [...] A Constituição de 1988, igualmente, em seu art. 3º, pela vez primeira,
consigna os objetivos do Estado brasileiro, consistentes na construção de uma
sociedade livre, justa e solidária; na garantia do desenvolvimento nacional; na
erradicação da pobreza e da marginalização e na redução das desigualdades sociais
e regionais; e na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (ROCHA, 1998, p. 111–112).

Apesar de esses direitos civis, políticos e sociais estarem garantidos no


texto constitucional e serem apresentados como valores instituintes do Es-
tado democrático no Brasil, sabe-se que, na prática, muitos brasileiros ainda
não têm assegurados recursos para uma vida com dignidade. Nesse sentido,
deve-se problematizar a memória construída em relação à Constituição de
1988 como uma Constituição Cidadã. Conforme Venturini (2014, p. 153):

A Constituição da República Federativa do Brasil foi promulgada em 5 de outubro


de 1988, recebendo do presidente da Assembleia Nacional Constituinte (ANC),
deputado Ulysses Guimarães, o título de “Constituição Cidadã”. Desde então foi
iniciada uma construção ideológica de que o documento de 1988 foi uma conquista
democrática, como oposto de um estado ditatorial que durou 21 anos, entre 1964 e
1985. Nas últimas semanas dos trabalhos da ANC, Ulysses Guimarães procurou um
nome de impacto propagandístico. Debateu com pares três opções: “Constituição
Serenata”, comparando o “texto à letra e o som do plenário à música”, porém de
difícil compreensão à maioria da população; “Constituição Primavera”, represen-
tando a estação em que entraria em vigor e também um novo começo, mas um
nome associável à música Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré;
e “Constituição Cidadã”, um nome de consenso por representar “avanços na defesa
do cidadão”, explícitos por conta de conter os direitos e deveres do cidadão no
começo do documento.
12 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços

O autor procura problematizar, dessa forma, duas interpretações bastante


correntes em relação ao texto constitucional: primeiro, que ele foi elaborado
por um compromisso progressista dos constituintes, irmanados com os
anseios de setores mobilizados da sociedade civil, o que vimos que não é
verdade; segundo, que apenas o asseguramento de direitos na Constituição
é suficiente para que esses benefícios sejam usufruídos pelos cidadãos,
o que também sabemos que não corresponde à realidade.

Referências
BAUER, C. S. Presenças da ditadura e esperanças na Constituição: as demandas da
população sobre a prática da tortura. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 45,
n. 1, p. 91–103, jan./abr. 2019. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/
index.php/iberoamericana/article/view/31164. Acesso em: 20 nov. 2020.
BOTELHO, A.; SCHWARCZ, L. M. (org.). Cidadania, um projeto em construção: minorias,
justiça e direitos. São Paulo: Claro Enigma, 2013. 152 p. (Coleção Agenda Brasileira).
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. 236 p.
FERREIRA, J. O presidente acidental: José Sarney e a transição democrática. In: FERREIRA,
J.; DELGADO, L. A. N. (org.). O tempo da nova república: da transição democrática à crise
política de 2016: quinta república (1985-2016). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2018. p. 27–72. (Coleção O Brasil Republicano, 5).
MADEIRA, R. M. A atuação de ex-arenistas e ex-emedebistas na assembleia nacional cons-
tituinte. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 77, p. 189–204, out. 2011.
Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-
-69092011000300015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 20 nov. 2020.
ROCHA, F. L. X. Direitos fundamentais na Constituição de 88. THEMIS: Revista da Esmec,
Fortaleza, v. 1, n. 2, p. 109–123, 1998. Disponível em: http://revistathemis.tjce.jus.br/
index.php/THEMIS/article/view/393. Acesso em: 20 nov. 2020.
VENTURINI, F. A tradição golpista na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988).
Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, [S. l.], v. 9, n. 17, p. 152–159,
abr. 2014. Disponível em: http://www.verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/issue/
view/15. Acesso em: 20 nov. 2020.
WOHNRATH, V. P. Duas dinâmicas, dois resultados: a Igreja Católica na Assembleia Nacio-
nal Constituinte 1987-1988. Pro-Posições, Campinas, v. 28, n. 3, p. 242–270, set./dez. 2017.
Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0103-
-73072017000300242&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 20 nov. 2020.
A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 13

Leituras recomendadas
MICHILES, C. et al. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1989. 414 p.
MONCLAIRE, S. (coord.). A constituição desejada: SAIC: as 72.719 sugestões enviadas
pelos cidadãos brasileiros à Assembleia Nacional Constituinte. Brasília: Senado Federal,
1991. 2 v. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/512414. Acesso em:
20 nov. 2020.
PILATTI, A. A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica
e regras do jogo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. 334 p.
QUADRAT, S. V. (org.). Não foi tempo perdido: os anos 80 em debate. Rio de Janeiro:
7Letras, 2015. 420 p.
QUADRAT, S. V.; ROLLEMBERG, D. História e memória das ditaduras do século XX. Rio
de Janeiro: FGV, 2015. v. 1. 444 p.
SANTOS, C. M.; TELES, E.; TELES, J. A. (org.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça
no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. v. 2. 272 p. (Estudos Brasileiros, 43).
SANTOS, F. C. Procurando o lazer na constituinte: sua inclusão como direito social na
Constituição de 1988. Orientadora: Silvia Cristina Franco Amaral. 2011. 178 f. Dissertação
(Mestrado em Educação Física, área de concentração Educação Física e Sociedade)
–Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.
Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/274713. Acesso em:
20 nov. 2020.
SANTOS, N. N. S. A voz e a palavra do movimento negro na Assembleia Nacional Cons-
tituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. Orientadora: Marta Ro-
driguez de Assis Machado. 2015. 205 f. Dissertação (Mestrado em Direito, campo do
conhecimento Direito e Desenvolvimento, Instituições do Estado Democrático de
Direito e Desenvolvimento Político e Social) – Escola de Direito de São Paulo, Fundação
Getúlio Vargas, São Paulo, 2015. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/
handle/10438/13699. Acesso em: 20 nov. 2020.
VENTURINI, F. Da ditadura à democracia aparente: a Constituição da República Federativa
do Brasil na consolidação da autocracia burguesa (1964-1988). Orientadora: Maria Odila
Leite da Silva Dias. 2014. 344 f. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em: https://tede.pucsp.br/handle/
handle/12837. Acesso em: 20 nov. 2020.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.
A redemocratização
no Brasil
Caroline Silveira Bauer

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Identificar os fatos que levaram ao movimento Diretas Já.


>> Reconhecer os efeitos desse movimento na redemocratização no País.
>> Avaliar os efeitos do movimento na composição política do País entre 1983
e 1984.

Introdução
Os anos 1980 foram vivenciados de diferentes formas pela sociedade brasileira: se,
por um lado, foi um período de crises na economia, inflação, mudança de moeda e
planos econômicos que não funcionaram, por outro, a cultura viveu um momento
de importantes manifestações artísticas, sobretudo na música. Além disso, com
a progressiva abertura política da ditadura e o surgimento ou reorganização dos
movimentos sociais, os anos 1980 também se caracterizaram por manifestações
pela reivindicação de direitos, em uma consciência do “direito a ter direito”.
Neste capítulo, você poderá conhecer mais sobre o movimento Diretas Já, que
marcou a transição da ditadura para a democracia entre 1983 e 1984. Para tanto,
serão aqui apresentados a conjuntura da proposição e os desafios econômicos,
políticos e sociais enfrentados no início dos anos 1980. Além disso, você poderá
analisar o movimento das Diretas Já e a votação da emenda Dante Oliveira, bem
como as consequências da decisão pela manutenção das eleições indiretas para
a presidência da República.
2 A redemocratização no Brasil

O Brasil no início dos anos 1980


Em 15 de outubro de 1978, realizam-se novas eleições indiretas para o cargo
de presidente da República, as quais foram vencidas pelo general João Batista
Figueiredo, que assumiria a presidência no dia 15 de março de 1979. Figueiredo
havia sido chefe da agência do Serviço Nacional de Informação (SNI) no Rio
de Janeiro quando o órgão fora criado, em 1964.
Durante seu governo, cresceu a pressão dos setores oposicionistas, o
que obrigou o general a tomar medidas direcionadas à abertura política.
No final do seu primeiro ano de mandato, o Brasil apresentava “[...] 77% de
inflação, taxa considerada a mais alta desde 1964”; ademais, “[...] a recessão
e a política salarial, com a deliberada compressão de diferenciais de paga-
mento, tinham imposto à população, desde 1979, uma ampla perda do salário
real, contribuindo para que ela aderisse aos apelos políticos da oposição”
(FERRON, 2019, p. 147).
O historiador Vicente Santos (2015, p. 297) lembra que a abertura “lenta,
gradual e segura” proposta pelo general Ernesto Geisel quando assumiu a
presidência da República “[...] não assegurou a democratização, e, especial-
mente, frustrou os objetivos de significativos setores da sociedade civil”.

Isto foi potencializado pela crise econômica e pelas pressões sociais evidenciadas
pela reorganização do movimento estudantil, pelas greves dos metalúrgicos no
ABC, pelas atividades de entidades profissionais e pela ação da Ordem dos Advo-
gados do Brasil como defensora dos ideais democráticos (SANTOS, 2015, p. 297).

Em 28 de agosto de 1979, foi aprovada a Lei de Anistia, a partir da qual


muitas lideranças políticas exiladas puderam retornar ao Brasil e se engajar
na luta pelas liberdades democráticas. Importa lembrar que:

[...] desde a implementação da ditadura civil-militar em 1964 houve uma gradativa


restrição jurídica, política e institucional através dos Atos Institucionais e de outras
medidas, logo, o processo pela Anistia deve ser pensado como um marco na luta
pelo retorno ao Estado de Direito, pois significou a reestruturação dos direitos
civis e das liberdades individuais e possibilitou o regresso de diversas lideranças
políticas, como Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes (SANTOS, 2015, p. 298).

Em seguida, em 22 de novembro do mesmo ano, foi aprovada a nova


Lei Orgânica dos Partidos, que extinguiu a Arena e o MDB e restabeleceu
o pluripartidarismo no Brasil. No ano seguinte, aprovou-se uma emenda
constitucional que garantiu eleições diretas para governadores e extinguiu os
senadores biônicos. Diversos partidos políticos que conhecemos atualmente
A redemocratização no Brasil 3

surgiram ou ressurgiram a partir do fim do bipartidarismo da ditadura civil-


-militar. O MDB, por exemplo, transformou-se no Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB) — e, hoje em dia, adotou novamente a sigla
MDB. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que existia antes da ditadura, foi
um dos que ressurgiu. Também foram criados nessa conjuntura o Partido dos
Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Mesmo com a pressão das oposições, a ditadura manteve sob controle o
processo de transição, sobretudo no que diz respeito à realização de eleições
diretas. Em 4 de setembro de 1980, uma emenda constitucional adiou por dois
anos as eleições para o Congresso Nacional, bem como para governadores,
prefeitos, assembleias estaduais e câmaras de vereadores, prorrogando os
mandatos dos ocupantes dos cargos.

O processo de transição política encontrava resistências em deter-


minados setores das próprias Forças Armadas, descontentes com os
rumos do regime. Entre 1980 e 1981, ocorreram diversos atentados terroristas em
bancas de jornais e em organizações da sociedade civil, organizados por inte-
grantes dos órgãos de informação e repressão da ditadura. É nessa conjuntura
que se insere o atentado à bomba no estacionamento do Riocentro, onde, em
30 de abril de 1981, ocorria um show para comemorar o Dia do Trabalhador. Dois
militares planejavam colocar uma bomba no espaço, mas ela explodiu dentro
do carro em que eles estavam, matando o sargento e ferindo gravemente o
tenente. Tratava-se de uma tentativa de intimidar a sociedade civil, que voltava
a se organizar nos anos 1980 (FERRON, 2019).

Além do contexto político, importa mencionar as modificações ocorridas


desde meados da década de 1970 no âmbito social, com a reorganização da
sociedade civil e o surgimento de novos movimentos sociais. Paulatinamente,
diante da abertura política e da permissão para a atividade sindical, também
os sindicatos reaparecem como um forte ator político, marcando presença
nas greves ocorridas em 1978 no ABC Paulista em função das graves condições
econômicas e de trabalho experienciadas pelos trabalhadores durante a
ditadura (ASSIS, 2010).
Cada vez mais próxima das eleições diretas de 1982, a ditadura ainda
proibiu as coligações partidárias e estabeleceu para as eleições de 15 de
novembro de 1982 a vinculação de voto, isto é, o eleitor poderia votar apenas
em candidatos do mesmo partido para ter seu voto validado. No entanto, isso
não impediu que a oposição fosse vitoriosa nos principais estados brasileiros.
4 A redemocratização no Brasil

De acordo com Rodrigues (2003 apud NERY, 2010, p. 71):

O saldo das eleições de 1982 — as primeiras desde 1965 em que os eleitores po-
deriam votar também para eleger os governadores — dera à oposição o controle
dos principais estados da federação. [...] A bancada do PDS somou 235 deputados
e a dos partidos de oposição 244 (200 do Partido do Movimento Democrático
Brasileiro – PMDB, 23 do Partido Democrático Trabalhista – PDT, 13 do Partido
Trabalhista Brasileiro – PTB, e 8 do PT).

A mobilização social demandava também eleições diretas para a presi-


dência da República, dando início ao movimento que ficou conhecido como
“Diretas Já”, que estudaremos a seguir.

O movimento Diretas Já
Para que compreendamos o que foi o movimento Diretas Já, é importante
conhecermos a campanha, as suas formas de organização, os grupos sociais
que estiverem envolvidos nesse processo, bem como os objetivos específicos
de cada um deles a despeito da pauta que os unificava: as eleições diretas
para a presidência da República.
Em 2 de março de 1983, com o retorno das atividades do Congresso Nacional
após o recesso de início de ano, o deputado federal Dante de Oliveira, do
PMDB do Mato Grosso, apresentou um projeto de emenda constitucional que
propunha o restabelecimento das eleições diretas para a presidência da Re-
pública (FERRON, 2019). Se opunham a essa proposta o general Figueiredo, que
ocupava o cargo de presidente da República, e José Sarney, à época presidente
do PDS. O general, posteriormente, mudou de posição e passou a defender
eleições diretas para seu substituto, até que, no final de 1983, retornou à sua
ideia inicial de eleger seu sucessor por meio do colégio eleitoral (NERY, 2014).
Foi, portanto, um movimento que nasceu no âmbito da Câmara e do Se-
nado, mas ganhou os contornos de um movimento cívico-popular com a
ampliação dos debates realizada pela iniciativa “[...] de partidos políticos e
de diferentes segmentos e organizações da sociedade civil” (DELGADO, 2007
apud NERY, 2010, p. 74). Havia uma tensão nos poderes Executivo e Legislativo
quanto aos rumos do processo de transição política, e o Comitê Pró-Diretas
pressionava para “[...] o retorno ao estado democrático de direito no Brasil”
(NERY, 2010, p. 74). Dentro da esfera política, a campanha pelas diretas pode
ser considerada um movimento suprapartidário, que reuniu os partidos de
oposição à ditadura, com destaque para o PT, o PMDB e o PDT, que formaram
o Comitê Nacional Pró-Diretas, além do PCB e do PCdoB (DELGADO, 2007).
A redemocratização no Brasil 5

Em relação à sociedade civil, a mobilização foi encabeçada pela União


Nacional dos Estudantes (UNE), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), pela Coordenação Nacional da
Classe Trabalhadora (CONCLAT), pela Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) e pela Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, entre outras
entidades de outros estados (DELGADO, 2007).
De acordo com a historiadora Lucília Delgado (2007, p. 4):

O sentido republicano da campanha das “diretas já” é inequívoco. A presença de


trabalhadores, estudantes, desportistas, jornalistas, políticos, artistas, intelectuais,
clérigos e mulheres nas ruas e praças brasileiras correspondeu a um forte protesto
contra a ausência de liberdades no Brasil. Também serviu como canal de expres-
são do descontentamento com a condução da economia pelo governo militar. O
Brasil nos anos de 1980 passava por um período recessivo e inflacionário, que
corroía as condições de vida da população brasileira. Crise econômica e aspira-
ção democrática, portanto, alimentaram a campanha das diretas já. Os comícios,
marchas e passeatas transformaram-se em espetaculares festas cívicas, regadas
por esperança e enfeitadas por bandeiras multicoloridas. Foi um contexto de
confraternização republicana.

Porém, com o Congresso Nacional encampando o movimento, houve


também uma série de limitações em relação a pautas paralelas colocadas
pela sociedade civil, como a greve geral, proposta pela Central Única dos
Trabalhadores (CUT) e pelo PT. Isso porque havia um compromisso “[...] com
o projeto político de transição da ditadura civil-militar para a democracia
sem correr riscos de qualquer alteração nas estruturas sociais e, por isso,
utilizaram a maior representação no Comitê organizador para barrar a pro-
posta de greve geral” (NERY, 2010, p. 76).
Muitos autores consideram esse movimento como um marco na história
republicana brasileira, não somente por suas dimensões, mas por seu signi-
ficado duas décadas depois do golpe de 31 de março de 1964. Por isso, não
são poucos os pesquisadores que se referem ao período como “festa cívica”,
“festa democrática” ou “festa da cidadania”.
Como afirma Delgado (2007 apud NERY, 2010, p. 76):

Festa alimentada por esperança no futuro imediato e em rumos mais definitivos


para a tradicionalmente frágil democracia brasileira. Festa democrática, que
corroeu os últimos alicerces do regime autoritário. Festa que traduzia uma rara
comunhão nacional entre instituições e movimentos populares. Festa da diversidade
na unidade de propósitos. Festa republicana em um país de tradição patrimo-
nialista. Festa da cidadania em uma nação na qual usualmente se desrespeitam
os direitos básicos de seus cidadãos. Festa de projeção do futuro em um tempo
ainda encoberto por névoas.
6 A redemocratização no Brasil

A autora não deixa de destacar a existência de diferentes demandas e


interesses dos diversos setores que compunham o movimento. No entanto,
havia entre eles uma pauta simbólica de união.
As principais lideranças políticas que atuaram na campanha podem ser
identificadas na organização e apresentação dos comícios. Dentre os muitos
comícios realizados pelo Brasil entre 1983 e 1984, destacaram-se os ocorridos
em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, nos primeiros meses
de 1984.

Em todos eles os governos estaduais estiveram à frente da organização, seja pro-


duzindo materiais ou facilitando o acesso da população em geral, como foi o caso
de São Paulo, onde o governador determinou a liberação das catracas do Metrô
no dia do comício. Quem são os governadores desses estados? Franco Montoro e
Tancredo Neves, do PMDB, respectivamente governadores de São Paulo e Minas
Gerais, e Leonel Brizola, do PDT, governador do Rio de Janeiro (NERY, 2010, p. 72).

Além dessas figuras, também podemos citar como importantes lideran-


ças políticas Ulysses Guimarães, deputado pelo PMDB, e Luiz Inácio Lula da
Silva, líder do PT. Segundo Nery (2014, p. 250), a maneira de organização dos
comícios foi a mesma: “[...] os governos providenciando as condições mate-
riais; liberando o transporte público; os oradores, quase sempre os mesmos,
afinavam os discursos contra o Colégio Eleitoral e a favor da aprovação da
emenda Dante de Oliveira”.

Os comícios do movimento Diretas Já reuniram políticos de diferentes


matizes, além de muitos artistas. Osmar Santos, um dos animadores,
ficou conhecido como “locutor das Diretas”. Fafá de Belém interpretava o Hino
Nacional e a música “Menestrel das Alagoas”, composta em homenagem a
Teotônio Vilela, que, embora tenha sido um político arenista, defendia a anistia
e o retorno à democracia e, após seu falecimento, em novembro de 1983, foi
transformado em símbolo das Diretas Já (DELGADO, 2007). As palavras de ordem
mais entoadas nesses comícios eram “Presidente, quem escolhe é a gente.
Eleições Diretas Já”; “Eu quero votar pra presidente”; “Um, dois, três, quatro,
cinco, mil: queremos eleger o presidente do Brasil” (DELGADO, 2007, p. 5).
O maior comício das Diretas Já ocorreu no dia 16 de abril de 1984, no centro
de São Paulo, reunindo 1,5 milhão de pessoas, que se espalharam da Praça da
Sé ao Vale do Anhangabaú. Após a realização desse ato, o governo ditatorial,
temendo a organização da população, se utilizou de um mecanismo constitucio-
nal e decretou a adoção de medidas de emergência para vigorarem em diversas
cidades. De acordo com Nery (2014, p. 250):
A redemocratização no Brasil 7

O General Newton Cruz foi designado como executor das medidas, que proibiram
reuniões públicas, suspenderam a liberdade de reunião e associação, permitiram
intervenção em sindicatos e entidades de classe e a busca e apreensão em domicílio,
e autorizaram a censura prévia às emissoras de rádio e televisão, proibindo a
transmissão ao vivo das votações no Congresso Nacional, entre outras.

Mesmo com a mobilização parlamentar e popular, com os comícios que


reuniram milhões de brasileiros por todo o País, a emenda Dante de Oliveira
foi rejeitada na Câmara dos Deputados, que possuía maioria governista. Eram
necessários 2/3 dos votos dos deputados (320 votos), e, na contagem, 298
deputados votaram a favor; 65, contra; e três se abstiveram. Não compare-
ceram para votar 112 deputados. Com a derrota, as eleições para presidente
da República seriam realizadas de forma indireta (FERRON, 2019).

Um movimento derrotado ou vitorioso?


Como vimos anteriormente, o movimento Diretas Já tinha como demanda a
realização de eleições diretas para a presidência da República; mas, simboli-
camente, ele não se restringia apenas à garantia de plenos direitos políticos:
o movimento representava também o fim da ditadura. Entretanto, com a
derrota da emenda Dante de Oliveira, as eleições presidenciais de 1984 foram
realizadas de forma indireta, ou seja, o presidente foi escolhido por meio do
colégio eleitoral formado pelo Congresso Nacional.
Nesse sentido, as Diretas Já podem ser consideradas um movimento
derrotado, pois seu principal objetivo, as eleições diretas, não foi alcançado.
A historiadora Lucília Delgado (2007, p. 1–2) narra a frustração da população
frente à não aprovação da emenda Dante de Oliveira:

Choros, semblantes fechados, silêncios e diferentes manifestações de indignação


e de decepção foram ouvidos e vistos na madrugada do dia 26 de abril. Eram ex-
pressões do sentimento de muitos parlamentares no próprio plenário da Câmara
Federal e de populares que assistiram à sessão parlamentar nas galerias daquela
casa. Eram manifestações dos cidadãos brasileiros, que, nos bares, botequins,
residências e praças públicas, procuraram acompanhar, por meio de boletins da
imprensa, a votação da emenda “das diretas já”, uma vez que a transmissão ao
vivo foi proibida pelo Governo Federal.

As eleições foram disputadas pelo então governador de Minas Gerais,


Tancredo Neves, do PMDB, tendo como vice-presidente José Sarney, então
governador do Maranhão, como chapa oposicionista da chamada “Aliança
Democrática”, e por Paulo Maluf, do Partido Democrático Social (PDS) (NAPO-
8 A redemocratização no Brasil

LITANO, 2014). Ocorridas em 15 de janeiro de 1985, as eleições deram vitória


a Tancredo Neves, que alcançou 480 votos no colégio eleitoral, contra os 180
de Paulo Maluf (FERRON, 2019).
Pela primeira vez, um candidato da oposição ganhou as eleições, mesmo
que indiretas. Entretanto, Tancredo Neves não chegou a exercer a presidência
em função de problemas de saúde que o levaram à morte um mês após a
data da posse. Assim, a presidência foi ocupada por seu vice, José Sarney.

José Sarney, o primeiro presidente civil eleito indiretamente após


20 anos de governos militares, tem uma longa trajetória na história
política republicana brasileira. No início de 1979, ele foi indicado pelo general
Figueiredo como presidente da Arena, tendo participado diretamente de debates
como os em torno da promulgação da Lei de Anistia, do fim do bipartidarismo
e da constituição dos novos partidos políticos. Em 1980, Sarney se transformou
em presidente do PDS, partido que, no decorrer daquele ano, passou por crises
internas.
Foi a partir de sua atuação no PDS que Sarney iniciou seus contatos com
Ulysses Guimarães e com Tancredo Neves sobre os rumos da transição política.
Então, em 1984, Sarney se desligou do PDS e fechou um acordo para a candi-
datura de Tancredo Neves. Apesar disso, seu ingresso na Aliança Democrática
foi questionado por membros do PMDB, devido à sua ligação com a ditadura
civil-militar.
A convenção do PMDB, no dia 12, homologou a chapa Tancredo-Sarney, num mo-
mento em que rumores de golpe militar, alimentados pela participação popular na
campanha pelas eleições diretas, ameaçavam interromper o processo sucessório.
No dia seguinte, Sarney contornou a questão legal, filiando-se ao PMDB (DIAS;
LEMOS; CARNEIRO; 2001, documento on-line).

A despeito da continuidade de figuras políticas vinculadas à ditadura


em espaços decisórios no Executivo e no Legislativo, existe uma dimensão
do movimento Diretas Já que pode ser considerada uma vitória, justamente
pelo caráter expressivo de sua manifestação política. As Diretas Já foram um
evento que marcou o fim da ditadura, bem como a luta pela democracia e
pela ampliação dos direitos da cidadania. Tal mobilização e tais reivindicações
prosseguiram nos anos subsequentes, dessa vez pressionando o Legisla-
tivo brasileiro na elaboração da Constituição de 1988, garantindo no texto
constitucional pautas históricas dos movimentos civis e sociais brasileiros.
Segundo Assis (2010, p. 26):
A redemocratização no Brasil 9

O deputado federal Ulysses Guimarães (PMDB-SP), uma das figuras centrais do


processo — o Senhor Diretas —, constatara o fato: Vi a história brotar nas ruas e na
garganta do povo. Extremamente mobilizada, a sociedade ofereceu aos oposicionis-
tas respaldo para lutar contra a ditadura e impôs aos membros do governo e seus
partidários a constatação de uma dura realidade: a transição para a democracia
tinha que ser efetivada, ainda que a contragosto.

Essa é a mesma percepção da historiadora Lucília Delgado (2007, p. 2),


para quem “[...] a imagem das multidões lotando os espaços públicos passou
a integrar, de forma inequívoca, as páginas de nossa história e se constituiu
como marca expressiva de uma trajetória sem retorno pela reconquista da
democracia política, na década de 1980”. Sem dúvida, essa pode ser consi-
derada a dimensão vitoriosa do movimento das Diretas Já: a ampliação dos
espaços democráticos no Brasil dos anos 1980 e a mobilização de diferentes
setores da sociedade brasileira.

Referências
ASSIS, C. J. S. “Um, Dois, Três, Quatro, Cinco, Mil, Queremos Eleger o Presidente do
Brasil” - A Campanha Diretas Já e o Fim da Ditadura Militar. Cadernos De Estudos e
Pesquisas, v. 12, n. 25, p. 13–28, 2010. Disponível em: http://revista.universo.edu.br/
index.php?journal=1studospesquisa2&page=article&op=view&path%5B%5D=32&pat
h%5B%5D=26. Acesso em: 22 nov. 2020.
DELGADO, L. A. N. A Campanha das Diretas Já: narrativas e memórias. In: Simpósio Nacio-
nal de História - ANPUH, 24., 2007. Anais [...]. São Leopoldo, Unisinos, 2007. p. 1–8. Dispo-
nível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548210564_84d3
8c9cfe41bf5923ff197bcd787740.pdf. Acesso em: 22 nov. 2020.
DIAS, S.; LEMOS, R.; CARNEIRO, A. José Sarney. In: DICIONÁRIO Histórico-Biográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
FERRON, F. M. O palanque: artistas na campanha das diretas já. Pol. Cult. Rev., v. 12, n.
2, p. 145–162, 2019. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/
article/view/28930/20171. Acesso em: 22 nov. 2020.
NAPOLITANO, M. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
NERY, V. E. A campanha Diretas Já e a transição brasileira. Lutas Sociais, v. 18, n. 32, p.
240–253, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/ls/article/view/25706. Acesso
em: 22 nov. 2020.
NERY, V. E. Diretas Já: a busca pela democracia e seus limites. Lutas Sociais, São Paulo,
n. 24, p. 70–77, 2010. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/ls/article/view/18836.
Acesso em: 22 nov. 2020.
SANTOS, V. S. M. “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. O movimento político das
Diretas Já no Brasil - 1983–1984. Antíteses, v. 8, n. 15 esp., p. 294–315, 2015. Disponível
em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/21060. Acesso
em: 22 nov. 2020.
10 A redemocratização no Brasil

Leituras recomendadas
ALVAREZ, S.; DAGNINO, E.; ESCOBAR, A. (org.). Cultura e política nos movimentos sociais
latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: EdUFMG, 2000.
ARGUELHES, D. W.; SÜSSEKIND, E. P. Judicialização antes da democratização? O Supremo
Tribunal Federal e o destino da Emenda Constitucional das “Diretas Já”. Pensar-Revista
de Ciências Jurídicas, v. 23, n. 4, p. 1–16, 2018.
DELGADO, L. A. N. Diretas-Já: vozes das cidades. In: FERREIRA, J.; REIS, D. A. (org.). Revo-
lução e democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007. p. 409–427.
LEONELLI, D.; OLIVEIRA, D. Diretas já: 15 meses que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
LOPES, P. O Movimento Diretas Já e a Cobertura do Jornal Zero Hora: uma Análise a partir
da Agenda-Setting. 2007. 79 f. Monografia (Especialista em História, Comunicação e
Memória do Brasil Contemporâneo) – Universidade Feevale, Novo Hamburgo, 2007.
Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/lopes-poliana-o-movimento-directas-
-ja-e-a-cobertura-do-jornal.pdf. Acesso em: 22 nov. 2020.
RODRIGUES, A. T. Diretas já: o grito preso na garganta. São Paulo: Perseu Abramo, 2003.
RODRIGUES, M. A década de 80. Brasil: quando a multidão voltou às praças. São Paulo:
Ática, 1992.
TATAGIBA, L. 1984, 1992 e 2013. Sobre ciclos de protestos e democracia no Brasil. Política
& Sociedade, v. 13, n. 28, p. 35–62, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/
index.php/politica/article/view/2175-7984.2014v13n28p35. Acesso em: 22 nov. 2020.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.

Você também pode gostar