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Para Bourdieu (2012, p. 18), “o mundo social constrói o corpo como realidade
sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes”, de
modo a aplicá-las a todas as coisas do mundo. Nesse sentido, durante muitos anos,
a diferença biológica entre o homem e a mulher foi vista como uma justificativa
natural para as distinções socialmente construídas entre os gêneros, especialmente
no que se refere à divisão social do trabalho. A construção e a validação da ordem
masculina dominante ocorreram através da legitimação de uma relação de
dominação inscrita “em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma
construção social naturalizada” (BOURDIEU, 2012, p. 33). Portanto, o fundamento
aparentemente objetivo para a divisão das atividades, segundo a oposição entre o
masculino e o feminino, inscreve-se na subjetividade.
Por fim, o Estado veio para ratificar e reforçar a ordem masculina dominante
do âmbito privado para o público, de modo que as instituições regulamentadoras
tinham poder de intervir na organização familiar. As leis sempre submetiam as
mulheres à autoridade de um homem, sendo primeiro o pai quando solteiras, na
ausência deste, os irmãos, tios ou primos, e quando casadas, ao marido. Dentre
essas leis que subjugavam as mulheres, havia uma que permitia ao marido aplicar
castigos corporais à mulher, sendo abolida somente após a implantação do regime
republicano no Brasil, com o decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890. Nessa
perspectiva, a família patriarcal era “o princípio e modelo da ordem social como
ordem moral, fundamentada na preeminência absoluta dos homens em relação às
mulheres, dos adultos sobre as crianças” (BOURDIEU, 2012, p. 105).
— Mas reflita, Emília. A que nos levará esse amor? —Não sei!...
respondeu-me com indefinível candura. O que sei é que te amo!... Tu não
és só o árbitro supremo de minha alma, és o motor de minha vida, meu
pensamento e minha vontade. És tu que deves pensar e querer por mim...
Eu?... Eu te pertenço; sou uma cousa tua. Podes conservá-la ou destrui-la;
podes fazer dela tua mulher ou tua escrava!... É o teu direito e o meu
destino. Só o que tu não podes em mim, é fazer que eu não te ame!
(ALENCAR, 2013, p. 97).
Por outro lado, havia nos romances a figuração de mulheres que, de algum
modo, transgrediram o papel socialmente imposto a elas. Contudo, o desfecho
dessas personagens femininas é totalmente distinto das protagonistas que seguiram
os padrões da época. Em Lucíola (1862), de José de Alencar, a protagonista é
apresentada como o anjo decaído, portanto, possuindo uma dupla natureza: “Essa
mulher ou é um demônio de malícia, ou um anjo que passou pelo mundo sem roçar
as suas asas brancas!” (ALENCAR, 2014, p. 153).
Valéria Augusti (2006, p. 92) também afirma que “a crítica literária que nos
jornais se debruçou sobre o romance atribuiu-lhe um destino popular e uma função
instrutiva e moralizadora”. Esses discursos moralizantes, em sua maioria, eram
direcionados às mulheres. Augusti (2006, p. 92) pontua que romances que
apresentavam em seu enredo “intrigas amorosas, às quais, se acreditava,
ameaçavam as mulheres, oferecendo-lhes modelos de conduta considerados
indesejáveis e tomando-lhes o tempo que poderia ser ocupado com conhecimentos
e tarefas mais úteis”, eram desvalorizados pela crítica literária. Para Verona (2013),
pode-se afirmar que:
Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. [...] — Ia, enfim, ter ela
própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! [...]
Havia tudo — a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações
do perigo! [...] quem sabe como seria dentro? Lembrava-lhe um romance de
Paulo Féval em que o herói, poeta e duque, forra de cetins e tapeçarias o
interior de uma choça; encontra ali a sua amante; [...] Conhecia o gosto de
Basílio — e o Paraíso decerto era como no romance de Paulo Féval.
[...]Imaginava Basílio esperando-a estendido num divã de seda. (QUEIROZ,
2015, p. 178-179).
A ilusão dissipa-se:
Nesse sentido, Elisa Verona afirma que os romancistas ficavam entre o gosto
do público, que apreciava histórias de adultério e mulheres desonradas, e as
exigências da crítica, que, na maioria das vezes, defendia um papel moralizante
para o romance. Assim, os discursos de alguns romancistas, em torno da
imoralidade que os romances poderiam propagar, eram moderados e não
direcionados ao gênero literário como um todo, mas a algumas de suas
manifestações. Joaquim Norberto Sousa e Silva ao comentar, na revista
Guanabara, em março de 1855, sobre o romance Vicentina (1853), de Joaquim
Manoel Macedo, tem o cuidado de pontuar a dignidade literária de sua obra:
Por outro lado, esse discurso também foi usado como argumento para que as
mulheres tivessem acesso à educação, pois “era vista como chave para o
progresso” (DUARTE, 2017, p. 24). Em 1872, “o Brasil tinha 81,43% da sua
população livre analfabeta; e apenas 19,85% entre os homens e 11,5% entre as
mulheres eram alfabetizados” (DUARTE, 2017, p. 24). Nessa perspectiva, era
conveniente para o desenvolvimento do país a entrada das mulheres nas escolas.
Em 1881, quando o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro permitiu a entrada de
mulheres em seus cursos, houve a publicação de mais de cem artigos – no livro A
Poliantéia – com opiniões sobre a educação feminina. Segundo Emília da Costa, a
maior parte desses textos que defendiam a educação para as mulheres tinham
como fundamento a necessidade de prepará-las para “educar o homem para a
grandeza da nação” (COSTA, 1999, p. 521), inclusive, as únicas quatro mulheres
que deram sua opinião também utilizaram o mesmo argumento. Desse modo, o
discurso de valorização da maternidade estava associado à formação de uma
identidade nacional ideal, por isso a figura da mulher passa a ser importante para
preparação do futuro cidadão da pátria.