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Dialética dos Cartazes

Contraponto discursivo entre duas manifestações urbanas relativas ao


segundo mandato da ex-presidente brasileira Dilma Rousseff

Pablo Ferreira

Nota prévia

Nunes (2013, p. 67) indica que o termo “marcha” carece de uma


acepção estabilizada, a julgar pelos distintos significados que lhe conferem os
dicionários de Língua Portuguesa. Em função disso, podemos aferir que o
termo está desde sempre afetado pela polissemia, motivo pelo qual nem
mesmo o dicionário – manual responsável, segundo Mattoso Camara (1986, p.
96), pelo “registro metódico de formas linguísticas ou DIÇÕES, devidamente
explicadas” – logra estabelecer-lhe uma definição, como tal, rígida.

Ante essa conjuntura, resta-nos conceber “marcha” enquanto


manifestação urbana, pública e coletiva cujo propósito é efetuar um movimento,
de caráter lato sensu político – necessariamente comprometido com
reivindicações.

Com base nesse conceito, analisaremos neste trabalho o modo como


duas marchas urbanas dialogam dialeticamente, tomando em consideração
que ambas pertencem o mesmo contexto sócio-histórico e de produção
discursiva. No desdobramento da análise, pretendemos demonstrar como os
dizeres de dois cartazes, cada um exibido em uma das manifestações em
causa, expressam a ideologia partidária e a formação discursiva dos sujeitos
participantes.

Contextualização e descrição do corpus

Em março de 2015, cerca de dois meses antes de o Senado aprovar a


abertura do processo de impeachment contra a então presidente Dilma
Rousseff (acusada de infringir a lei orçamentária e a lei de improbidade
administrativa durante seu mandato), as ruas de São Paulo, à semelhança de
outras inúmeras localidades do País, sediaram manifestações a favor e contra
o governo presidido de Dilma, filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT). A

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imprensa nacional, mediante os mais diversos órgãos de informação, registrou
as manifestações de maior notoriedade, comprovando uma verdadeira cisão
partidária no Brasil.

No site da BBC BRASIL1, encontramos alguns registros dos protestos


acima relatados; o site reuniu quinze frases exibidas tanto pelos manifestantes
favoráveis ao governo quanto pelos opositores, além de expor algumas
imagens ilustrativas, conforme é o caso das seguintes:

(1)

1
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/03/150315_cartazes_protestos_pai. Consultado
em 11 de maio de 2017. As imagens foram ligeiramente modificadas, isto é, parte delas foi
recortada e neste trabalho aparecem formatadas, tudo para adequá-las a ele.

2
(2)

As imagens são duas fotografias. A primeira registra manifestantes que


se posicionaram a favor de Dilma Rousseff, e a segunda, manifestantes que se
posicionaram contra ela e a favor, por conseguinte, ao seu impeachment. As
cores que cada grupo elegeu para as roupas – vermelho e azul e amarelo –
não são gratuitas, na medida em que simbolizam a escolha partidária dos
sujeitos. Entretanto, porque nosso objetivo sequer perpassa uma análise
semiológica, as imagens, na sua integridade, têm aqui uma relevância
secundária. Para as pretensões deste trabalho, somente os cartazes, com seus
respectivos dizeres, têm relevância precípua.

Na imagem (1), o manifestante exibe no seu cartaz este enunciado:


“Odeia o Brasil? Vá prá Miami lavar privada!”. A seu turno, na imagem (2), o
cartaz exibido pelo manifestante expõe o seguinte enunciado: “Prefiro lavar
privada em Miami a passar fome em Cuba!”. É nítida a relação, primeiro,
dialógica e, segundo, dialética entre os dois enunciados, fator que, por si, já
nos obriga a desconsiderar a intervenção da casualidade ou da coincidência no

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processo discursivo. Com efeito, o que corrobora semelhante desconsideração
é justamente o contexto de produção dos enunciados, visto que o primeiro foi
utilizado no protesto do dia 13 de março de 2015, enquanto o segundo foi
utilizado no protesto opositor organizado no dia 15 de março do mesmo ano.
Ou seja, apenas dois dias separam os dois protestos, significando que,
sobretudo em virtude da sua contraposição partidária, é natural que ocorresse
entre os grupos toda sorte de alusões recíprocas, ora ultrajosas, ora
repreensivas, ora impugnantes. A rigor, não poderia ser diferente, tendo em
vista que a situação discursiva do nosso corpus pertence à modalidade estrita,
isto é, que “compreende as circunstancias da enunciação, o aqui e o agora do
contexto” (ORLANDI, 2010, p. 15).

Cumpre, doravante, analisar o corpus minuciosamente, para


averiguarmos as relações de sentido que unem os dois enunciados e como
eles, contextualizados em uma contingência política, operam como discursos,
inescapavelmente ideológicos.

Análise do corpus: sintaxe e semântica do discurso

Fiorin (1998, p. 17) observa que o discurso, da mesma forma que a


frase, não é “um amontoados de palavras”, mas constitui-se segundo
determinadas regras. Logo, o discurso pressupõe uma estrutura, característica
que lhe infunde uma ordem lógica, responsável por torná-lo inteligível. A
estrutura se compõe de dois elementos: a sintaxe e a semântica, que devem
ser diferençadas no ensejo da análise discursiva.

A sintaxe, na definição da Gramática Normativa, descreve as regras sob


cujo intermédio as palavras se combinam para formar frases. Eis por que a
análise sintática “examina a estrutura do período, divide e classifica as orações
que o constituem e reconhece a função sintática dos termos da oração”
(CEGALLA, 2008, p. 319). Ao contrário da sintaxe gramatical, a sintaxe
discursiva transcende, sem descartá-lo, o simples exame do sintagma,
porquanto “pertence a ela”, entre outros, “um procedimento como a introdução
ou não da primeira pessoa no discurso” (FIORIN, 1998, p. 17). Ao passo que o
emprego da primeira pessoa cria o efeito de subjetividade, a renúncia ao seu
emprego cria o efeito de objetividade. A sintaxe discursiva consiste, portanto,

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no campo da manipulação consciente, linguisticamente caracterizada pela
estratégia argumentativa.

No respeitante à semântica discursiva, ela compreende os conteúdos


contidos na moldura sintática, de maneira que lhe pertencem a voz discursiva e
os seus dizeres.

À luz desses pressupostos, Fiorin (1998, p. 18) pondera que, se a


sintaxe discursiva usufrui de certa autonomia com respeito às formações
sociais, a semântica lhes é mais dependente.

Embora a formação ideológica seja apreensível principalmente pelo


substrato semântico, este é indissociável da linguagem, necessita dela para ser
expresso, o que obriga o analista de discurso a migrar, em sua análise, do
sintático para o semântico, para concluir, afinal, a formação discursiva (FD) dos
sujeitos.

No cartaz da imagem (1), lemos: “Odeia o Brasil? Vá prá Miami lavar


privada!”. Se recorrermos à memória da configuração dos protestos
reivindicativos, constataremos que no discurso desse cartaz sobressai a
coesão com o estilo convencional dos dizeres e palavras de ordem das
marchas urbanas, pois nele não consta o uso de primeira pessoa, de forma que
acabou produzindo, fortuitamente, um efeito de objetividade, que integra, no
nível mais abstrato, o primeiro procedimento argumentativo do discurso.

O procedimento argumentativo adquire maior intensidade no plano


sintático. O segmento inicial é uma oração interrogativa, que, pelo seu cunho
interpelativo, conduz o enunciatário a atentar para o texto, que lhe foi
destinado. A interpelação, nesse caso, já pressupõe que o enunciatário odeia o
Brasil. Em que se fundamenta o alegado ódio? Com toda evidência, no fato de
o enunciatário – leitor implícito e não empírico (FIORIN, 1990, p. 56) –
corresponder à imagem que o enunciador constrói acerca do sujeito
manifestante que se opôs ao governo de Dilma Rousseff. Ora, se para o
enunciador a presidência de Rousseff é irrespondivelmente vantajosa, opor-se
a ela equivale, nos limites do silogismo pelo qual ele ordena seu raciocínio, a

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almejar o desmantelamento dos órgãos jurídicos que asseguram a ordem e o
bem-estar nacionais.

O segmento concludente é aduzido em uma oração imperativa,


exprimindo, pois, uma ordem. No intuito de conferir a essa ordem um ânimo
tanto inexorável quanto agressivo, o enunciador utilizou-se da exclamação,
que, considerando as duas categorias elucidadas por Coelho (1976, p. 137), se
opõe aos sinais de pontuação lógicos e pertence aos afetivos, cuja eloquência
decorre, em maior grau, do apelo às emoções do enunciatário, seja para
comovê-lo, seja para acuá-lo.

Urge notar que o segmento “Vá prá Miami lavar privada!” é composto por
dois sintagmas nominais, sendo que o núcleo do primeiro, “Miami”, concorre
semanticamente para a apreensão dos sentidos encerrados no discurso
integral. O substantivo “Miami” refere, evidentemente, a uma instância extra-
verbal. Trata-se da mais populosa cidade do estado norte-americano da
Flórida. É massivamente frequentada por turistas de toda parte do mundo. Tais
explicações são satisfatórias a título de informação sobre a instância aludida,
mas muito pouco contribuem para a análise. Por isso, precisamos situar-nos
quanto às relações de sentido gestadas entre Miami e Brasil no exato contexto
do discurso.

Decerto os sujeitos que se manifestaram, no dia 13 de março de 2015, a


favor do governo Dilma Rousseff são partidários da esquerda política. O EUA,
país ao qual pertence à cidade de Miami, é a maior potência econômica do
mundo, deliberadamente capitalista na economia e historicamente direitista na
ética. Nada mais natural que a nação norte-americana seja concebida como
inimiga (rival, na melhor hipótese, quando política externa e democracia
procedem com êxito) pela esquerda mundial. Além disso, Miami, a exemplo de
outras cidades norte-americanas, costuma acolher mão-de-obra. Portanto, no
discurso “Odeia o Brasil? Vá prá Miami lavar privada!”, o sentido consiste em
que os opositores, filiados à direita brasileira, na medida em que se opunham à
gestão de Rousseff, deveriam imigrar para o EUA, a grande potência
capitalista, não para prosperarem como quereriam mas para serem submetidos
a profissões subalternas e humilhantes, mais graves, segundo o raciocínio dos

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sujeitos da esquerda, do que o mercado de trabalho nacional durante a
presidência da presidente petista.

Ao examinarmos a hierarquia subjacente ao discurso, obtemos um


padrão:

BRASIL MIAMI
>
País presidido pela Cidade dos EUA, maior
esquerda potência capitalista
mundial

Isto é, Brasil – símbolo discursivo da esquerda – sobranceia Miami – símbolo


discursivo e circunstancial da direita. A valoração dos elementos
hierarquizados revela a formação discursiva (FD) do manifestante pró-Dilma
Rousseff. Mas não seria possível chegar à valoração e à FD antes de
procedermos às etapas anteriores da análise, entre as quais merece ênfase o
contexto de produção. Não embalde, Indursky declara sobre a FD:

Uma FD não é atemporal. Ela determina uma regularidade própria a


processos temporais, estabelece articulação entre diferentes séries
de acontecimentos discursivos, transformações, mutações e
processos, constituindo um esquema de correspondência entre
diferentes séries temporais […] (1997, p. 31).

Como o discurso do cartaz (2) foi estruturado em função do (1), sua


análise requer menor detalhamento. Entre os dois discursos há uma relação
dialógica – porque (2) responde a (1) – e dialética2 - porque nesse “diálogo”
funda-se uma notória contenda ideológica.

Em “Prefiro lavar privada em Miami a passar fome em Cuba” ocorre uma


reação responsiva ao discurso anterior. A atitude não resulta eventual porque a
sintaxe discursiva patenteia o seu caráter reativo, confirmado, empiricamente,
pela coincidência cronológica das duas manifestações e confirmado pela
coincidência contextual de ambas.

2
Dialética, aqui, deve ser compreendida não no seu sentido eminentemente filosófico, e sim
como choque de ideias e posições contrárias. Para o conhecimento das variações que o termo
sofre segundo o contexto, ver Santos (1964, p. 551).

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Nesse discurso existem divergências sutis com relação ao anterior, no
nível sintático. Se no cartaz (1) a escrita adota o estilo coloquial – típico das
marchas urbanas –, apreensível pela síncope da preposição (“pra” em vez de
“para”) seguida de um defeito, normativamente falando, de notação léxica,
como se nota pela acentuação aguda na mesma preposição (“prá”), no cartaz
(2), malgrado a simplicidade do enunciado, a escrita mantém-se nas regras da
GN. Isso aconteceu possivelmente porque o marxismo cultural, ideologia dos
manifestantes favoráveis a Rousseff, apregoa o nivelamento da cultura popular
à cultura erudita, acareada como aparelho ideológico da classe dominante.
Ademais, ao contrário de (1), em (2) é criado um efeito de subjetividade, devido
ao uso da primeira pessoal do singular, conquanto em condição elíptica ([Eu]
“prefiro”). Esse fator surge nas marchas urbanas, ao que Nunes atesta, como
marca da “individuação do sujeito na formulação dos cartazes” (2013, p. 73),
mas, para nós, nos discursos em exame, esse efeito de subjetividade provém,
sobretudo, da identificação do enunciatário de (1) com a ofensiva que este lhe
dispensa, o que justifica uma postura “subjetiva” no momento da reação,
quando esse enunciatário se transmuta em enunciador (naturalmente, de um
discurso coletivo).

O sujeito manifestante que se opôs ao governo petista é partidário da


direita nacional, ao menos no concernente à fração majoritária dos indivíduos
que integraram a manifestação. Daí o ânimo declarativo do cartaz (2), em que
“Miami” é agregada ao discurso para confrontar “Cuba”. Assim, a FD do sujeito
anti-governo fá-lo preferir o trabalho subalterno na cidade norte-americana a
sofrer inanição no país comunista, presidido por Fidel Castro de 1976 a 2008 e,
depois, por seu irmão Raul Castro, cuja posse ocorreu em 2008 e ainda vigora.
A referência disfórica a Cuba tem origem no fato de Fidel Castro, após a vitória
da revolução cubana, ter exercido o poder sob um regime autoritário e
ditatorial. Consoante afirmam estudiosos como José Hildebrando Dacanal e
diversos cubanos imigrados por alvitre, o controle do Estado sobre o povo
cubano – por exemplo, a proibição da iniciativa privada – acabou gerando no
país mazelas incomensuráveis, das quais a mais alarmante é a fome, visto que
o país controla a quantidade de donativos que as pessoas podem adquirir

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mensalmente e graças à redução do salário mínimo ao equivalente a 24
dólares.

Seja como for, a hierarquia subjacente ao discurso do segundo cartaz


assenta-se na superposição do menos disfórico (lavar privada em Miami) ao
mais disfórico (passar fome em Cuba). Semelhando o discurso antagônico,
recebe pontuação afetiva, peculiar às palavras de ordem e aos slogans
ideológicos, dada a sua finalidade de conferir nuance emocional ao ato racional
em que consiste a marcha urbana.

Considerações finais

Nosso propósito, no presente trabalho, orbitou em torno das formações


discursivas dos enunciados que compuseram nosso corpus, para
demonstrarmos como as ideologias se confrontam no espaço discursivo.
Porquanto este, no nosso caso, consiste na marcha urbana, a política acabou
obtendo um papel central nas FDs dos sujeitos participantes. Razão pela qual
tivemos de mencionar, forçosamente, a filiação partidária dos sujeitos, a qual,
se por um lado era evidente, por outro lado não explicitava os elementos,
digamos, “simbólicos” por trás da sua composição. Essa ambiguidade
apriorística liga-se ao fato de a FD ser, por definição, “essencialmente lacunar
em função do sistema de formação de suas estratégias, podendo ser
individualizada através desse sistema” (INDURSKY, 1997, p. 31).

No que diz respeito à materialidade do objeto discursivo, ele consistiu,


em vista do próprio contexto, no cartaz (fisicamente modificado, para semelhar
placas rígidas, mas mantendo sua essência histórica), suporte principal na
veiculação de slogans, palavras de ordem, etc., nos movimentos de cunho
político. De resto, cabe realçar que a marcha urbana, movimento coletivo
característico da democracia, sempre produz uma cadeia inumerável de
relações de sentido no espaço citadino, permitindo tangermos, dessa maneira,
as formações ideológicas subjacentes, o que, em dada proporção, tentamos
realizar aqui, através da análise minuciosa do corpus, embora limitados ao
espaço físico deste texto. Daí suas inevitáveis lacunas.

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Referências bibliográficas

CAMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de linguística e gramática. 13 ed.


Petrópolis: Vozes, 1986.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 48


ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura e linguagem. 2 ed. São Paulo: Edições


Quíron Limitada, 1976.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 6 ed. São Paulo: Ática, 1998.

_______________. Elementos de análise do discurso. 2 ed. São Paulo:


Contexto, 1990.

INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas, SP:


UNICAMP, 1997.

NUNES, José Horta. Marchas urbanas: das redes sociais ao acontecimento. In:
PETRI, Verli; DIAS, Cristiane (Orgs.). Análise do discurso em perspectiva:
teoria, método e análise. Santa Maria: Editora da UFSM, 2013.

ORLANDI, Eni P.; LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy (Orgs.). Discurso e


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SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de filosofia e ciências culturais. São


Paulo: Logos, 1964.

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