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José Carlos Mariátegui, 1929

JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI

Volume I

A ALMA MATINAL
E OUTRAS ESTAÇÕES DO
HOMEM DE HOJE

A Emoção de Nosso Tempo


Esta obra está sob a Licença Creative Commons Atribuição-Atribuição-
CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0)

Tradução do espanhol Enzo Lavinsky e Luiz Messeder


Tradução do francês Pedro Corgozinho
Revisão Rômulo Radicchi e Pedro Corgozinho
Capa Thalles Arariba
Diagramação Enzo Lavinsky

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mariátegui, José Carlos, 1894-1930


A alma matinal : e outras estações do homem de
hoje : a emoção de nosso tempo : volume I / José
Carlos Mariátegui ; tradução Luiz Otávio Marazzi
Messeder , Enzo Lavinsky Matos Oliveira. --
Belo Horizonte, MG : Ed. do Autor, 2022.

Título original: El alma matinal y otras


estaciones del hombre de hoy
ISBN 978-65-00-52046-0

1. Ciências políticas 2. Subjetividade


3. Socialismo I. Messeder, Luiz Otávio Marazzi.
II. Oliveira, Enzo Lavinsky Matos. III. Título.

22-125979 CDD-320.531
Índices para catálogo sistemático:

1. Socialismo : Ciência política 320.531

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Editora Caminho do Peabiru


Belo Horizonte
Minas Gerais
peabirueditora@gmail.com
2022

https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/
deed.pt_BR
Sumário
Apresentação.................................................9

Nota da edição.............................................13

A Alma Matinal...........................................18

Duas Concepções da Vida.........................24

Homem e o Mito.........................................32

A Luta Final.................................................42

Pessimismo da Realidade e Otimismo do


Ideal...............................................................48

A Crise da Democracia...............................54

A Imaginação e o Progresso.................... 62

O Problema das Elites.................................68

A Urbe e o Campo.......................................78

Nacionalismo e Internacionalismo...........86

Anexos

Carta de Mariátegui a Samuel Glusberg.96

O Crepúsculo da civilização....................100
Aos filósofos caberá, mais tarde, codificar o
pensamento que emerja da grande gestação
multitudinária. Acaso souberam os filósofos da
decadência romana compreender a linguagem
do cristianismo? A filosofia da decadência
burguesa não pode ter melhor destino.

José Carlos Mariátegui


APRESENTAÇÃO
Mariátegui é, talvez, um dos mais influentes entre
os pensadores marxistas da contemporaneidade.
Na apresentação das ardentes letras contidas na
presente obra, até onde sabemos inédita em lín-
gua portuguesa, é necessário partir da honesta de-
fesa do legado de Mariátegui como ator político
da maior grandeza, homem de penas e espadas
devotados à causa do Comunismo que, nas suas
próprias palavras, aceitou a revolução com todos
os seus horrores. Do seu vasto pensamento teórico
ganhou evidência sua penetrante e fundamentada
análise sobre o desenvolvimento econômico, polí-
tico e social do Peru e da América Latina imortali-
zada na já clássica obra “Sete ensaios de interpreta-
ção da realidade peruana”.
Nas páginas que se seguem chama atenção, so-
bretudo, sua fé revolucionária que, atuando como
força motriz do desenvolvimento histórico, é as-
sumida por Mariátegui em toda sua radicalidade.
Não seria exagerado afirmar que a atual popula-
ridade do autor peruano no meio acadêmico se
dê em grande medida por uma interpretação um
tanto quanto enviesada que deturpa o legado des-
sa que é uma das mais importantes lideranças re-
volucionárias da América Latina, representando
Mariátegui não raramente como um infenso teóri-
co liberal burguês, quando muito reformista. Se-
ria cômico constatar como suas críticas mordazes
são particularmente duras contra o reformismo,
superando a oposição entre razão e paixão por
meio da qual se erigiu a atual vulgata científica
burguesa.
O culto à evolução, ao academicismo e a tecno-
cracia são denunciados em seus fundamentos
como instituições reacionárias de um sistema so-
cial decadente, sustentado, cada vez mais clara-
mente, pela força das baionetas. Nesse sentido, a

9
exaltação pretensamente neutra da ciência é na
perspectiva da presente “Alma Matinal” quase
um armistício, uma dissimulada carta de reden-
ção da burguesia. Seus textos são manifestos li-
terários à aurora dos novos tempos prenunciada
pelas salvas de canhões soviéticos em 1917, libelos
à ditadura do proletariado e a derrocada históri-
ca do capitalismo. Suas palavras cortantes, con-
tundentes e irônicas seguem a tradição herdada
dos clássicos. Em tudo Mariátegui se identifica ao
arquétipo marxista, desvelando verdades incon-
venientes para aqueles que insistem em tecê-lo
como um pensador pouco ortodoxo. Se para o câ-
none pós-moderno seria esse o último escrutínio
para atestar sua autenticidade, como a história e a
vida comprovam sobejamente e buscamos corro-
borar com a presente edição de “Alma Matinal e
Outras Estações do Homem de Hoje”, sua adesão
ao mito do comunismo é uma das suas caracterís-
ticas mais autênticas, senão a mais essencial qua-
lidade de Mariátegui.
Outra faceta essencial de seu pensamento revela-
da pelos presentes escritos é a defesa do marxis-
mo como uma ideologia, não apenas como exer-
cício de ciência, mas, sobretudo, como profissão
de fé. Na interpretação do autor, o marxismo só
pode ser corretamente compreendido e interpre-
tado como o espírito do futuro e não como mero
sistema de ideias. Se existe um sentido mais pro-
fundo ligando todos os textos dessa coletânea,
certamente uma de suas caraterísticas é justa-
mente conceber o socialismo como uma negação
do capitalismo em sua essência, uma refutação
profunda a todo pensamento evolucionista, con-
tra toda naturalização da exploração e opressão
e repúdio às perspectivas pessimistas e niilistas.
Não por coincidência, o interesse pelo autor é re-
vitalizado no momento mesmo em que os alicer-
ces dessa fé reacionária começam a ser abalados
por questionamentos impostos pelo próprio coti-

10
diano, na maior parte das vezes levados adiante
pela juventude. Os multitudinários e persisten-
tes protestos que se tornaram comuns por todo o
mundo pelo menos desde 2008/2009 (das velhas
“democracias” do mundo “civilizado” europeu,
às estratificadas sociedades do Oriente Médio até
às “frágeis” e jovens “democracias” na América
Latina) atestam que o prometido “fim da história”
não representou, todavia, a superação ou mesmo
supressão dos descontentamentos e do desejo de
transformação. E, talvez por isso mesmo, ler essas
páginas nos dias de hoje nos leva a refletir sobre o
espírito de nossa própria época, acerca das bases
e consequências do pensamento hegemônico da
“Nova Ordem Mundial” que pretende ter supera-
do a força imanente das utopias.
Pensada nesse contexto, pela ótica da dualidade e
oposição que encerra a visão de Mariátegui sobre
a importância do mito para a revolução social, é
que a profundidade de seu pensamento dialético
pode ser compreendida em sua essência. O cará-
ter absoluto da contradição, do conflito, com força
imperativa de lei, penetra os presentes textos do
início ao fim. Aquele que subjetivamente busca o
conforto aristocrático de seu “lugar de fala” não
poderá imergir aos sentidos mais profundos e
profundamente humanos das formulações aqui
expressas. Mariátegui em nada se identifica ideo-
logicamente com os seus detratores e, por esse
motivo, seus piores adversários são justamente
aqueles que cinicamente “defendem” o seu traba-
lho aviltando a sua essência revolucionária. Suas
palavras emergem do conflito e buscam o conflito.

11
NOTA DA EDIÇÃO
Nesse trabalho de estreia, nós, a editora Peabi-
ru, optamos por traduzir pela primeira vez em
português o conjunto dos sete primeiros textos
presentes em: “Alma Matinal y otras estaciones del
hombre de hoy”, coletânea póstuma de José Carlos
Mariátegui, mais dois anexos do autor escolhidos
por nosso corpo editorial. Assim, julgamos conve-
niente apresentá-la ao público como “Alma Mati-
nal e outras estações do homem de hoje - volume
1: a Emoção de nosso tempo”, deixando o indica-
tivo de futuros volumes. Para evitar ao máximo
qualquer enviesamento da obra de Mariátegui,
optamos, prioritariamente, por traduzi-lo direta-
mente dos datilografados originais, disponíveis
na internet através do site: Archivo José Carlos Ma-
riátegui. Alguns textos ausentes na plataforma an-
terior, foram traduzidos a partir de edição dispo-
nível no Archivo Chile.
Não pretendendo reescrever a obra do Amau-
ta, tampouco alijar suas teses de seu conteúdo,
o trabalho de tradução e edição regeu-se pelos
seguintes princípios gerais: primeiro preservar
absolutamente o conteúdo de suas teses; e se-
cundariamente, mas empregando idêntico rigor,
em preservar ao máximo possível seu estilo ca-
racterístico, ou seja, seu vocabulário, figuras de
linguagem e estrutura das frases, desde que seu
sentido não se perdesse em português. Tarefa essa
simplificada pela proximidade entre o idioma ori-
ginal do autor, castelhano, e o nosso, português,
que compartilham a ascendência latina e ibérica.
Quanto aos destaques feito pelo autor os origi-
nais, não traduzimos os trechos rasurados, visto
que reproduzi-las, ainda que tivesse uma função
de reconstrução do processo de escrita do autor,
poderia servir a embasar, com as palavras de Ma-
riátegui, posicionamentos estranhos ao seu pensa-
mento, que ele mesmo decidiu suprimir em seus

12
datilografados; e mantemos os poucos grifados
presentes nos datilografados.
Assim, as raras substituições de palavras e expres-
sões por outras, que não são suas traduções exa-
tas, são decorrentes de palavras castelhanas que
não possuem tradução exata para o português.
Essas palavras foram criteriosamente adaptadas e
substituídas por aquelas que preservariam o sen-
tido e estilo das originais. São acompanhadas do
verbete original em itálico entre colchetes com no-
tas de rodapé explicando seu sentido.
Por exemplo, no texto “Duas Concepções de Vida”
diz-se “O porrete [cachiporra] não deve ser empre-
gado senão em caso extremo.” e em sua nota de
rodapé apresentou-se o sentido da palavra cachi-
porra sem tradução exata para o português, que
pode significar toda sorte de armas de combate
próximo de tipo contundente (isso é, desprovida
de lâmina), como cassetetes e tonfas empregados
por guardas patrimoniais e clavas e maças medie-
vais. Entendendo o sentido que o autor pretendia
empregar para cachiporra era conotativo, referente
a repressão política havíamos a opção de substi-
tuir cachiporra por “repressão política” ou “perse-
guição política” e, ainda que preservando o sen-
tido, modificando o estilo mais informal adotado
pelo autor; ou buscar o termo correlato mais pró-
ximo o possível de cachiporra em português que
pudesse ser empregado no mesmo sentido cono-
tativo, dessa forma optamos pelo “porrete”. Ain-
da assim, mantivemos a palavra original ali para
que o leitor saiba qual foi o termo escolhido pelo
autor. Eis uma ilustração da metodologia que uti-
lizamos ao longo do trabalho.
Noutras situações nos defrontamos com expres-
sões e palavras, que embora possuam tradução
direta para o português, em nosso idioma são pa-
lavras raramente empregadas ou mesmo arcaís-

13
mos. Nesses casos mantivemos a palavra original,
mas devidamente sinalizada com uma nota de ro-
dapé com um significado ou um sinônimo mais
inteligível.
Trechos e palavras de autores mencionados em
outros idiomas que não o castelhano, mantidas
por Mariátegui em seu idioma original, geral-
mente em francês, língua culta daquele tempo,
mas também em latim e alemão, não foram tra-
duzidos no corpo do texto. Entendemos que se o
autor não julgou necessário traduzir esses trechos
seria justificado em três razões: 1) o fato de ser
desnecessário por se de amplo conhecimento pú-
blico, independente de ter sido escrito em língua
estrangeira; 2) o fato de que na tradução poder-
-se-ia perder em parte o sentido da frase; 3) pela
questão estética que, se traduzida, se perderia no
processo. Assim tais palavras ou trechos apenas
foram destacados em itálico e, para o entendimen-
to do leitor que desconhece tais idiomas, também
destacados em notas de rodapé. Estas, no caso,
sempre são identificadas em seu início com o idio-
ma do trecho em parêntesis e, em seguida, com
a tradução. Por exemplo, em “Duas Concepções
de Vida”, temos a seguinte oração: “vivre avec dou-
ceur”; em sua nota de rodapé pontuamos: “(fran-
cês) viver com doçura”.
Entendendo que os artigos presentes neste tomo
foram escritos há pouco menos de um século, op-
tamos, para facilitar o entendimento do leitor, por
fazer breves notas de rodapé esclarecendo-o acer-
ca das inúmeras personalidades, organizações,
obras e costumes referidos em seus textos pouco
conhecidos na atualidade. Opção também toma-
da pelos editores passados dessa obra através de
notas de rodapé e índice onomásticos. Apesar
da existência de notas e índices onomásticos em
quase todas as edições castelhanas de Mariátegui,
essas não foram aproveitadas e todas as notas de

14
rodapé presentes são originais desta edição.
Sobre os dois anexos ao fim do livro, a Carta à Sa-
muel Glusberg datada do dia 30 de abril de 1927
e o Crepúsculo da Civilização, texto publicado na
revista Variedades em 1922, ambos de Mariátegui,
julgamos convenientes apresentá-los nessa edição
para ajudar na compreensão do leitor do homem
e do contexto no qual ele escreveu suas linhas. No
primeiro anexo, curto, temos a afirmação de Ma-
riátegui e de seus princípios; enquanto no segun-
do temos a explicação mais detalhada, na visão de
Mariátegui, da crise na Europa que sucedeu a Pri-
meira Guerra Mundial e que serviu de base mate-
rial para as transformações espirituais abordadas
nos textos de Alma Matinal.

15
A ALMA
MATINAL
3 de fevereiro de 1928
Todos sabem que a Revolução adiantou os re-
lógios da Rússia soviética na estação estival. A
Europa ocidental adotou também o horário de
verão, depois da guerra. Mas o fez somente por
economia de luz. Faltava nessa medida de crise
e carestia, toda convicção matutina. A burguesia,
grande e média, seguia frequentando o tabarin1. A
civilização capitalista acendia todas as suas luzes
de noite, ainda que fosse clandestinamente. A este
período correspondem a voga do dancing e de
Paul Morand2.
Mas com Paul Morand já havia sido[quedado] li-
cenciado o crepúsculo. Paul Morand representava
a moda da noite. Seus romances nos levavam por
uma Europa noturna, iluminada por uma perene
luz artificial. E o nome que mais legitimamente
preside a noite da decadência pós-bélica não é o
de Morand, mas sim o de Proust. Marcel Proust3
inaugurou com sua literatura uma noite fatigada,
elegante, metropolitana, licenciosa, da qual o oci-
dente capitalista ainda não sai. Proust era o tres-
noitador fino, ambíguo e pulcro que se despede às
duas da manhã, antes que os casais estejam em-
briagados e cometam excessos de mau gosto.
Retirou-se da “soirée”4 da decadência quando ain-

1 Aqui se refere ao cabaré Bal Tabarin que existia em Paris


de 1904 até 1953.
2 Intelectual, diplomata e escritor de Paris de espírito notur-
no e cosmopolita, viveu e cresceu entre a alta sociedade, mais
tarde se tornou apoiador do nazismo. Em seus textos escreve
sobre a noite parisiense e com seus personagens retrata com
precisão, uma das poucas qualidades redentoras de sua lite-
ratura, o clima do ocidente.
3 Importante autor francês, escreveu “Em busca do tempo
perdido”, longo romance de muitos volumes. É considerado
o primeiro grande clássico do século XX e um dos maiores
livros da literatura universal.
4 (Francês). Eventos noturnos, como festas, jantares, encon-
tros ou outros que aconteçam depois que escurece.

17
da não haviam chegado o charleston5, nem Jose-
phine Baker6. À Paul Morand, diplomático e demi-
-mondain7, coube somente introduzir-nos na noite
pós-proustiana.
A moda do crepúsculo pertenceu à moda finis-
secular e decadente do pré-guerra. Seus gran-
des pontífices foram Anatole France8 e Gabriel
D’Annunzio9.
O velho Anatole sobressaiu no gênero dos cre-
púsculos clássicos e arqueológicos: crepúsculo de
Alexandria, de Siracusa, de Roma, de Florença,
economicamente conhecidos nos volumes das bi-
bliotecas oficiais e em viagens de turista moroso
que não esquece nunca suas malas no trem e que
tem previstas todas as estações e hotéis de seu iti-
nerário. Na hora do tramonto10, sempre discreto,
sem excessivos rubores nem escandalosas nuvens,
era quando monsieur Bergeret gostava de aguçar
suas ironias. Essas ironias que há dez anos nos en-
5 Dança da década de 1920 nomeada com base na cidade de
Charleston nos EUA. Muito popular nos cabarés e na França
de modo geral dos anos de 1925 a 1927.
6 Atriz e dançarina estadunidense, fez sucesso com sua dan-
ça erótica onde aparecia quase nua.
7 Palavra em francês usada para designar prostitutas e mu-
lheres sustentadas por homens ricos, geralmente parisienses.
8 Escritor francês renomado, vencedor do Prêmio Nobel de
Literatura em 1921. Politicamente se destacou por apoiar a
Revolução Russa e o Partido Comunista da França no fim de
sua vida. Apresentava posições reclamadas por todo o espec-
tro político, Mariátegui o descreve como “tendo nascido mui-
to tarde para abraçar os mitos burgueses, mas muito cedo
para renegá-los plenamente”.
9 Poeta e dramaturgo italiano encarnava o estilo de “fin de
siécle”. Associado ao decadentismo, vivia um estilo de vida
aventureiro.
10 Relativo ao verbo tramontar. Analogia. Palavra de origem
hispânica também presente na língua portuguesa. Sua etimo-
logia remete ao movimento do pôr do Sol, que se esconde
por detrás dos montes. No verbete do Dicionário Aurélio,
versão digital, lê-se: “Esconder-se (o Sol) além dos montes,
transmontar”.

18
cantavam por serem afiadas e sutis e que agora
nos aborrecem com sua monótona incredulidade
e com seu fastidioso ceticismo.
D’Annunzio era mais fastuoso e teatral e também
mais variado em seus crepúsculos de Veneza va-
gamente wagnerianos11, com a torre de São Jorge
Maior de um lado, saboreados no terraço do Ho-
tel Danieli por amantes inevitavelmente célebres,
aninhados no mesmo quarto onde cobiçaram seu
famoso amor, sob antigos e recamados cobertores,
George Sand12 e Alfred de Musset13; crepúsculos
abruzeses14 deliberadamente rústicos e agrestes,
com bodes, pastores, cabras, fogueiras, queijos,
figos e um incesto de tragedia grega; crepúscu-
los do Adriático com barcas pescadoras, praias
lúbricas, céus patéticos e fedor[tufo] afrodisíaco;
crepúsculos semi-orientais, semi-bizantinos de
Ravenna e de Rimini, com virgens apaixonadas
de tranças inverossímeis e flutuantes e um ligei-
ro sabor de ostra perlífera; crepúsculos romanos,
transtiberinos, declamatórios, olímpicos, goza-
dos na colina do Janiculum, refrescados pela água
paula15 que cai em taças de mármore antigo, com
reminiscências do sonho de Cipião16 e dos discur-
sos de Cola di Rienzo17; crepúsculos de Quinto al
11 Referente a Richard Wagner, músico erudito alemão filia-
do ao romantismo, ao antissemitismo e ao militarismo.
12 Escritora francesa da época do romantismo, uma das es-
critoras mais populares da Europa em seu tempo.
13 Um dos poetas mais populares do período do romantis-
mo. Francês, parisiense. Levava uma vida de “devassidão
elegante” marcada por seu affair com George Sand
14 Referente a Abruzos, região no centro da Itália banhada
pelo mar Adriático
15 Água da “Fonte da água paula” localizada no Monte Janí-
culo, na Itália
16 Cipião, o Africano. General e cônsul da República Roma-
na responsável pela conquista da África - por isso chamado
de o Africano - durante a Segunda Guerra Púnica travada
com Cartago.
17 Político romano e grande orador. Defendia a abolição do

19
Mare, heroicos, republicanos garibaldinos, retó-
ricos, um pouco marinheiros, digníssimos ape-
sar da vizinhança comprometedora do Portofino
Kulm18 e da perspectiva equívoca de Montecarlo.
D’Annunzio esgotou em sua obra, magnificamen-
te crepuscular, todas as cores, todos os desmaios,
todas as ambiguidades do ocaso.
Concluído o período dannunziano e anatoliano –
que na Espanha, a não ser pelas sonatas do gran-
de Valle Inclán, não deixaria mais rastros que os
sonetos de Villaespesa, os romances do Marquês
de Hoyos e Vinent19 e as falsas gemas orientais de
Tórtola Valencia – desembarcou em uma estação
ferroviária de Madrid, com uma única mala na
mão, passageiro de terceira classe, Ramón Gómez
de la Serna, descobridor da alba.
Sua descoberta era um pouco prematura. Mas é
necessário que toda descoberta verdadeira o seja.
Proust com seu smoking severo e uma pérola no
peito, brando, tácito, pálido, presidia invisível a
maior noite europeia, – noite um tanto boreal por
ser prolongada, – de extremos prazeres e terríveis
presságios, ninada pelo fogo das metralhadoras
de Noske20 em Berlim e das granadas fascistas nos
caminhos da planície lombarda e romana e dos
Montes Apeninos.
Agora, ainda que reste nela muito da noite de
Charlotemburgo e da noite de Dublin, a Europa
quer se salvar, a Europa não quer morrer, embora
seja a Europa burguesa, cansada de seus prazeres
poder papal e a unificação da Itália.
18 Hotel muito conhecido na Itália. Durante a Belle Époque
foi um dos hotéis mais populares do mundo.
19 Escritor espanhol de pouca notoriedade associado à cor-
rente do decadentismo.
20 Político social-democrata alemão, serviu como Ministro
da defesa da Alemanha de Weimar entre 1919-1920, sendo
responsável pela repressão aos comunistas alemães durante
a revolução de 1918-1919.

20
noturnos, suspira porque logo vem a alba. Musso-
lini, manda para cama a Itália às 10 da noite, fecha
cabarés, proíbe o charleston. Seu ideal é uma Itá-
lia provinciana, madrugadora, camponesa, livre
de doçura[molicie] e de artifícios urbanos, com
muitos rústicos filhos em seu grande colo. Por
sua ordem, como nos tempos de Virgílio, os poe-
tas cantam ao campo, à semeadura, à colheita. E a
burguesia francesa, a que ama a tradição e o traba-
lho, burguesia laboriosa, econômica, mensurada,
continente – não malthusiana –, reclama também
em sua casa o horário fascista e sonha com um
ditador de virtudes romanas e gênio napoleônico
que cultive durante as férias seu trigal e seu vi-
nhedo. Ouça como adverte Lucien Romier à Fran-
ça notívaga: “É grave que um povo se entregue
aos prazeres da noite, não pelo mal que encon-
tram nisto os dadores de sermão[sermoneador]. É
grave como indicador de que tal povo perde seus
dias. Se tu queres crescer e prosperar, ó francês!
Acorda-te de que a virilidade do homem se afirma
no triunfo matinal. É na hora da alba que vem o
invasor, perseguido pelo sol nascente.”
Não é provável que Lucien Romier saberá renun-
ciar à noite. Pertence a uma burguesia, clarividen-
te em sua ruína, que se dá conta de que o homem
novo é o homem matinal.

21
DUAS
CONCEPÇÕES
DE VIDA
3 de janeiro de 1925
A guerra mundial não apenas modificou e fratu-
rou a economia e a política do Ocidente. Modi-
ficou e fraturou, também, sua mentalidade e seu
espírito. As consequências econômicas, definidas
e precisadas por John Maynard Keynes21, não são
mais evidentes nem sensíveis que as consequên-
cias espirituais e psicológicas. Os políticos, os
estadistas, encontrarão, talvez, através de uma
série de experimentos, uma fórmula e um méto-
do para resolver as primeiras; mas não acharão,
seguramente, uma teoria e uma prática adequa-
das para anular as segundas. Mais provável, me
parece, que devam acomodar seus programas à
pressão da atmosfera espiritual, de cuja influência
seu trabalho não pode escapar. O que diferencia
os homens desta época, não é tão somente a dou-
trina, mas sobretudo o sentimento. Duas opostas
concepções da vida, uma pré-bélica, outra pós-bé-
lica, impedem a inteligência de homens que, apa-
rentemente, servem ao mesmo interesse histórico,
eis aqui o conflito central da crise contemporânea.
Os evolucionistas, historicistas, racionalistas,
uniam, nos tempos pré-bélicos, acima das frontei-
ras políticas e sociais, as duas classes antagônicas.
O bem-estar material, a potência física das urbes
haviam engendrado um respeito supersticioso
pela ideia do progresso. A humanidade parecia
ter encontrado uma via definitiva. Conservado-
res e revolucionários aceitavam, praticamente, as
consequências da tese evolucionista. Uns e outros
coincidiam na mesma adesão à ideia de progresso
e na mesma aversão à violência.
Não faltavam homens a quem esta chata e cômo-
da filosofia não lograva seduzir nem captar. Geor-

21 Economista burguês britânico de grande repercussão no


século XX. Criticou o Tratado de Versalhes em seu aspecto
econômico e o laissez-faire, apregoando uma abordagem
mais interventora do estado na economia.

23
ge Sorel22 denunciava, por exemplo, as ilusões do
progresso. Dom Miguel de Unamuno23 pregava
o quixotismo24. Porém, a maioria dos europeus
haviam perdido o gosto pelas aventuras e pelos
mitos heroicos. A democracia conseguia o favor
das massas socialistas e sindicais, satisfeitas com
suas fáceis conquistas graduais, orgulhosas de
suas cooperativas, de sua organização, de suas
“casas do povo” e de sua burocracia. Os capitães
e os oradores da luta de classes gozavam de uma
popularidade, sem riscos, que acalentava [adorme-
cía] em suas almas toda veleidade revolucionária.
A burguesia se deixava conduzir por líderes inte-
ligentes e progressistas que, convencidos da esto-
lidez e da imprudência de uma política de perse-
guição das ideias e dos homens do proletariado
preferiram uma política destinada a domesticá-
-los e abrandá-los com sagazes transações.
Um humor decadente e esteticista se difundia, su-
tilmente, nos estratos superiores da sociedade. O
crítico italiano Adriano Tilgher25, em um de seus
mais notáveis ensaios, define assim a última ge-

22 Teórico socialista francês de trajetória e concepções ecléti-


cas que ao longo de sua vida tendeu entre o socialismo mar-
xista e o sindicalismo revolucionário. Sua produção teórica se
caracterizou pela aversão ao positivismo e ao racionalismo,
se opunha também ao parlamentarismo e à democracia bur-
guesa. Formulou o conceito de mito político apropriado por
Mariátegui.
23 Intelectual espanhol expoente da corrente de pensamento
do existencialismo cristão. Em 1936, meses antes de sua mor-
te, fez um discurso em defesa da universidade e contrapondo
a posição do facismo espanhol publicamente, foi preso e pas-
sou o resto de seus dias em prisão domiciliar
24 Relativo a “Dom Quixote de La Mancha”, personagem de
Miguel Cervantes. A característica central do personagem é
sua vontade de viver uma vida cavalheiresca e heroica, bus-
cando sempre causas nobres e aventuras, e por isso, se envol-
vendo em confusões.
25 Crítico e filósofo italiano. Grande defensor de Pirandello,
a cujo triunfo contribuiu. Em 1925 foi um dos signatários do
manifesto dos intelectuais antifascistas

24
ração da burguesia parisiense: “Produto de uma
civilização, muitas vezes secular, saturada de ex-
periência e de reflexão analítica e introspectiva,
artificial e livresca, a essa geração crescida antes
da guerra coube viver em um mundo que pare-
cia consolidado para sempre e assegurado contra
toda possibilidade de mudança. E neste mundo se
adaptou sem esforço. Geração toda nervos e cé-
rebro, desgastados e cansados pela grande fadiga
de seus genitores, não suportava os esforços tena-
zes, as tensões prolongadas, as sacudidas bruscas,
os rumores fortes, as luzes vivas, o ar livre e agita-
do; amava a penumbra e os crepúsculos, as luzes
doces e discretas, os sons apagados e distantes, os
movimentos mensurados e regulares. O ideal des-
sa geração era viver docemente”
Quando a atmosfera da Europa, próxima da guer-
ra, se carregou demasiadamente de eletricidade,
os nervos desta geração, sensual, elegante e hipe-
restésica, sofreram um raro mal estar e uma es-
tranha nostalgia. Um pouco entediados de “vivre
avec douceur”26, se estremeceram com um apetite
mórbido, com um desejo enfermo. Reclamaram,
quase com ansiedade, quase com impaciência, a
guerra. A guerra não aparecia como uma tragédia,
como um cataclismo, mas sim como um esporte,
como um alcalóide ou como um espetáculo. Oh!
a guerra, como em uma novela de Jean Bernier27,
essa gente a pressentia e a augurava28, “elle serait
très chic la guerre”29.
26 (Francês)”Viver com doçura ou com tranquilidade”. Dou-
ceur , além do significado de doçura, possui o sentido cono-
tativo de tranquilidade.
27 Escritor e jornalista francês marcado por sua experiência
no front. Escreveu vários livros retratando fielmente a guer-
ra.
28 Está relacionado aos áugures, sacerdotes romanos que in-
terpretavam a vontade dos deuses por meio do voo dos pás-
saros, assim indicando os presságios.
29 (Francês) ”Ela seria muito chique, a guerra.”

25
Porém a guerra não correspondeu a essa previ-
são frívola e estúpida. A guerra não quis ser tão
medíocre. Paris sentiu, em suas entranhas, a garra
do drama bélico. A Europa conflagrada, lacerada,
mudou de mentalidade e de psicologia.
Todas as energias românticas do homem ociden-
tal, anestesiadas por muitos lustros de paz con-
fortável e farta [pingüe], renasceram tempestuosas
e prepotentes. Ressuscitou o culto da violência.
A Revolução Russa insuflou na doutrina socia-
lista um ânimo guerreiro e místico. E ao fenôme-
no bolchevique, seguiu-se o fenômeno fascista.
Bolcheviques e fascistas não se pareciam com os
revolucionários e conservadores pré-bélicos. Ca-
reciam da antiga superstição do progresso. Eram
testemunhas conscientes e inconscientes de que
a guerra havia demonstrado à humanidade que
ainda podiam suceder feitos superiores à previsão
da Ciência e também feitos contrários ao interesse
da Civilização.
A burguesia, assustada pela violência bolchevi-
que, apelou à violência fascista. Confiava muito
pouco em que suas forças legais bastassem para
defendê-la dos assaltos da revolução. Mas, pouco
a pouco, apareceu logo em seu ânimo, a nostalgia
da crassa tranquilidade pré-bélica. Esta vida de
alta tensão a desgosta e a fadiga. A velha buro-
cracia socialista e sindical compartilha desta nos-
talgia. Por que não voltar – se pergunta – ao bom
tempo pré-bélico? Um mesmo sentimento da vida
vincula e acorda espiritualmente a esses setores
da burguesia e do proletariado que trabalham em
parceria limitada, por desqualificar, ao mesmo
tempo, o método bolchevique e o método fascis-
ta. Na Itália, este episódio da crise contemporâ-
nea tem os mais nítidos e precisos contornos. Lá, a
velha guarda burguesa abandonou o fascismo. E
se arranjou no campo da democracia com a velha
guarda socialista. O programa de toda essa gen-

26
te se condensa em uma só palavra: normalização.
A normalização seria a volta à vida tranquila, ao
despejo ou o sepultamento de todo o romantismo,
de todo heroísmo, de todo quixotismo de direita e
de esquerda. Nada de regressar, com os fascistas,
ao Medievo. Nada de avançar, com os bolchevi-
ques, à Utopia.
O fascismo fala uma linguagem beligerante e vio-
lenta que alarma aqueles que não ambicionam,
senão, a normalização. Mussolini30, em um discur-
so, disse: “Não vale a pena viver como homens
e como partido e sobretudo não valeria a pena
chamar-se fascista, se não se soubesse que se está
em meio à tormenta. Qualquer um é capaz de na-
vegar em mar de bonança, quando os ventos in-
flam as velas, quando não há ondas ou ciclones. O
belo, o grande; e queira-se dizer o heróico é nave-
gar quando a tempestade se enfurece. Um filósofo
alemão31 dizia: viva perigosamente. Eu gostaria
que esta fosse a palavra de ordem do jovem fas-
cismo italiano: viver perigosamente. Isso signifi-
ca estar pronto para tudo, a qualquer sacrifício,
a qualquer perigo, a qualquer ação, quando se
trate de defender a pátria e o fascismo”. O fascis-
mo não concebe a contra-revolução como um em-
preendimento vulgar ou policial, senão como um
empreendimento épico e heróico. Tese excessiva,
tese incandescente, tese exorbitante para a velha
burguesia, que não quer absolutamente ir tão lon-

30 Elaborador do fascismo, chefe do Partido Nacional Fas-


cista, chefe de governo e de estado de facto da Itália. Foi
membro do Partido Socialista Italiano entre 1901 e 1914, rom-
pendo com este em razão de sua adesão ao social-chauvinis-
mo, materializada no apoio à entrada da Itália na Primeira
Guerra Mundial. Nos anos seguintes organizou as “Fascio
d’Azione Rivoluzionaria”(1914-1919) e “Fasces de Combate
Italianas” (1919-1921), donde se originou o termo fascismo e
a ideologia fascista gestou-se, a partir do social-chauvinismo.
Morreu executado por partigiani (guerrilheiros) antifascistas
enquanto tentava fugir da Itália em 1945.
31 Nietzsche em Gaia Ciência.

27
ge. Que se detenha e se frustre a revolução, claro,
mas se possível com boas maneiras. O porrete [ca-
chiporra] não deve ser empregado senão em caso
extremo. E não há que tocar, em nenhum caso, a
Constituição e o Parlamento. A velha burguesia
anseia viver doce e parlamentarmente. “Livre e
tranquilamente” escrevia polemizando com Mus-
solini, o “Il Corriere della Sera32” de Milão. Porém
um e outro à termo designam o mesmo anseio.
Os revolucionários, como os fascistas, se propõem,
por sua vez, a viver perigosamente. Nos revolu-
cionários, como nos fascistas, se adverte análogo
impulso romântico, análogo humor quixotesco.
A nova humanidade, em suas duas expressões an-
titéticas, acusa uma nova intuição da vida. Essa
intuição da vida, não se manifesta, exclusivamen-
te, na prosa beligerante dos políticos. Em uma das
divagações de Luís Bello encontro a seguinte frase:
“Convém corrigir Descartes: combato, logo existo”.
A correção resulta, na verdade, oportuna. A fórmu-
la filosófica de uma idade racionalista tinha que ser
“Penso, logo existo”. Porém, a essa idade românti-
ca, revolucionária, quixotesca, já não lhe serve mais
a mesma fórmula. A vida, mais que pensamento,
quer ser hoje ação, isto é, combate. O homem con-
temporâneo tem necessidade de fé. E a única fé que
pode ocupar seu eu profundo é a fé combativa. Não
voltarão, quem sabe até quando, os tempos de viver
com doçura. A doce vida pré-bélica não gerou se-
não ceticismo e niilismo. E da crise deste ceticismo
e deste niilismo, nasce a bruta [ruda], a forte, a pe-
remptória necessidade de uma fé e de um mito que
mova os homens a viver perigosamente.

32 (Italiano) “O Correio da Noite”. Jornal italiano fundado


em 1876 e que ainda hoje é o de maior circulação no país.

28
29
HOMEM E O
MITO
16 de janeiro de 1925
I
Todas as pesquisas da inteligência contempo-
rânea sobre a crise mundial desembocam nesta
unânime conclusão: a civilização burguesa sofre
da ausência de um mito, de uma fé, de uma espe-
rança. Ausência que é a expressão de sua falên-
cia material. A experiência racionalista teve esta
paradoxal eficácia de conduzir a humanidade à
triste convicção de que a Razão não pode dar-lhe
nenhum caminho. O racionalismo não serviu se-
não para desacreditar a razão. À ideia de liberda-
de, disse Mussolini, foi morta pelos demagogos.
Mais exato é, sem dúvida, que à ideia Razão a
matou os racionalistas. A Razão extirpou da alma
da civilização burguesa os resíduos de seus anti-
gos mitos. O homem ocidental colocou, durante
algum tempo, no retábulo dos deuses mortos a
Razão e a Ciência. Entretanto, nem a Razão nem a
Ciência podem ser um mito. Nem a Razão e nem
a Ciência podem satisfazer toda a necessidade de
infinito que há no homem. A própria Razão encar-
regou-se de demonstrar aos homens que ela não
lhes basta. Que somente o Mito possui a preciosa
virtude de preencher seu eu profundo.
A Razão e a Ciência corroeram e dissolveram o
prestígio das antigas religiões. Eucken33, em seu li-
vro sobre o sentido e o valor da vida, explica clara
e certeiramente o mecanismo deste trabalho dis-
solvente. As criações da ciência deram ao homem
uma sensação nova de sua potência. O homem,
antes intimidado ante o sobrenatural, descobriu
logo um exorbitante poder para corrigir e retificar
a Natureza. Esta sensação desalojou de sua alma
as raízes da velha metafísica.
33 Renomado filósofo alemão, ganhador do Nobel de Lite-
ratura em 1908. Foi professor em diversas universidades na
Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Atuou em diferentes
áreas como filologia clássica e história antiga, mas suas prin-
cipais pesquisas estiveram voltadas aos aspectos filosóficos
da teologia.

31
Mas o homem, como a filosofia o define, é um ani-
mal metafísico. Não se vive fecundamente sem
uma concepção metafísica da vida. O mito move
o homem na história. Sem um mito a existência do
homem não tem nenhum sentido histórico. A his-
tória, fazem-na os homens possuídos e ilumina-
dos por uma crença superior, por uma esperança
sobre-humana, os demais homens são o coro anô-
nimo do drama. A crise da civilização burguesa
mostrou-se evidente desde o instante em que esta
civilização constatou a carência de um mito. Re-
nan34 destacava melancolicamente, em tempos de
orgulhoso positivismo, a decadência da religião e
inquietava-se pelo porvenir da civilização euro-
péia. “As pessoas religiosas – escrevia – vivem de
uma sombra. De quê se viverá depois de nós?” A
desolada interrogação aguarda uma resposta ain-
da.
A civilização burguesa caiu no ceticismo. A guer-
ra pareceu reanimar os mitos da revolução libe-
ral: a Liberdade, a Democracia, a Paz. Mas a bur-
guesia aliada os sacrificou, em seguida, aos seus
interesses e aos seus rancores na Conferência de
Versalhes35. O rejuvenescimento desses mitos ser-
34 Escritor, filósofo, teólogo, filólogo e historiador francês.
Com uma formação inicialmente eclesiástica possui uma ex-
tensa produção voltada a história do cristianismo por meio
da qual rejeita os preceitos metafísicos da escolástica e a exe-
gese da Bíblia. Seguindo a tradição dos estudos que no século
XIX buscavam uma explicação materialista para a história da
religião, é criticado por apresentar um culto quase místico à
“ciência positiva”.

35 Tratado de paz assinado em 1919 pelas potências euro-


peias que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial.
Firmado em Paris após seis meses de negociação, resultou na
continuação do armistício de novembro de 1918, em Com-
piègne, que tinha posto um fim aos confrontos. O principal
ponto do tratado determinava que a Alemanha aceitasse to-
das as responsabilidades por causar a guerra e que fizesse
reparações a um certo número de nações da Tríplice Entente
(Inglaterra, Rússia e França). Os termos impostos à Alema-

32
viu, entretanto, para que a revolução liberal se
realizasse plenamente na Europa. Sua invocação
condenou à morte os resquícios de feudalidade e
de absolutismo que ainda sobreviviam na Euro-
pa Central, na Rússia e na Turquia. E, sobretudo,
a guerra provou uma vez mais, de forma cabal e
trágica, o valor do mito. Os povos responsáveis
pela vitória foram os povos capazes de um mito
multitudinário.
II
O homem contemporâneo sente a peremptória
necessidade de um mito. O ceticismo é infecundo
e o homem não se conforma com a infecundidade.
Uma exasperada e às vezes impotente “vontade
de crer”, tão aguda no homem pós-bélico, era já
intensa e categórica no homem pré-bélico. Um
poema de Henry Frank, “A Dança diante da arca”
é o documento que tenho mais à mão a respei-
to do estado de ânimo da literatura dos últimos
anos pré-bélicos. Neste poema pulsa uma grande
e profunda emoção. Por isto, sobretudo, quero ci-
tá-lo. Henry Frank nos diz da sua profunda “von-
tade de crer”. Israelita, trata, primeiro, de acender
em sua alma a fé no deus de Israel. O intento é
vão. As palavras do Deus de seus pais soam es-
tranhas nesta época. O poeta não as compreende.
Declara-se surdo a seu sentido. Homem moderno,
o verbo do Sinai36 não pode captá-lo. A fé morta
não é capaz de ressuscitar. Pesam sobre ela vinte
séculos. “Israel morreu por haver dado um Deus
ao mundo”. A voz do mundo moderno propõe
seu mito fictício e precário: a Razão. Mas Henry
nha incluíam a perda de uma parte de seu território para um
número de nações fronteiriças, de todas as colônias em ou-
tros continentes, uma restrição ao tamanho do seu exército,
além do pagamento de indenização pelos prejuízos causados
durante a guerra.
36 Relativo ao Monte Sinai, localizado no Egito, é conside-
rado uma região sagrada pelo judaismo, cristianismo e isla-
mismo.

33
Frank não pode aceitá-lo. “A Razão – diz – a razão
não é o universo”.
“La raison sans Dieu c’est la chambre sans
lampe.”37
O poeta parte em busca de Deus. Tem urgência
em satisfazer sua sede de infinito e de eternida-
de. Mas a peregrinação é infrutífera. O peregrino
queria contentar-se com a ilusão cotidiana. “Ah!
sache franchement saisir de tout moment – la fuyante
fumée et le suc éphemère”38. Finalmente acredita que
“a verdade é o entusiasmo sem esperança”. O ho-
mem traz sua verdade em si mesmo.
“Si l’Arche est vide où tu pensais trouver la loi, rien
n’est réel que ta danse.”39
III
Os filósofos nos trazem uma verdade análoga à
dos poetas. A filosofia contemporânea varreu o
medíocre edifício positivista. Esclareceu e demar-
cou os modestos confins da razão. E formulou as
atuais teorias do Mito e da Ação. Inútil é, segundo
estas teorias, procurar uma verdade absoluta. A
verdade de hoje não será a verdade de amanhã.
Uma verdade é válida apenas para uma época.
Contentemo-nos com uma verdade relativa.
Mas esta linguagem relativista não é acessível,
não é inteligível para o vulgo. O vulgo não sutili-
za tanto. O homem resiste a seguir uma verdade
enquanto não a crê absoluta e suprema. É em vão
recomendar-lhe a excelência da fé, do mito e da
ação. É preciso propor-lhe uma fé, um mito e uma
ação. Onde encontrar o mito capaz de reanimar

37 (Francês) “A razão sem Deus é o quarto sem lâmpada.”


38 (Francês) “Ah! saiba agarrar francamente, a qualquer mo-
mento, a evasiva fumaça e o suco efêmero”
39 (Francês) “Se está vazia a Arca onde pensavas encontrar a
lei, nada é real além de tua dança.”

34
espiritualmente a ordem que tramonta?
A pergunta exaspera a anarquia intelectual, a
anarquia espiritual da civilização burguesa. Al-
gumas almas lutam por restaurar o Medievo e o
ideal católico. Outras trabalham por um retorno
ao Renascimento e ao ideal clássico. O fascismo,
pela boca de seus teóricos, atribui-se uma mentali-
dade medieval e católica, crê representar o espíri-
to da Contrarreforma, ainda que, por outra parte,
pretenda encarnar a ideia da Nação, ideia tipica-
mente liberal. A teorização parece satisfazer-se
[complacerse] com a invenção dos mais apurados
sofismas. Mas todos os intentos de ressuscitar mi-
tos pretéritos resultam, em seguida, destinados ao
fracasso. Cada época quer ter uma intuição pró-
pria do mundo. Nada mais estéril que pretender
reanimar um mito extinto. Jean R. Bloch40, num ar-
tigo publicado recentemente na revista “Europe”,
escreve, a este respeito, palavras de profunda ver-
dade. Na catedral de Chartres ouviu a voz mara-
vilhosamente crédula da longínqua Idade Média.
Mas adverte quanto e como essa voz é estranha
às preocupações desta época. “Seria uma loucura
– escreve – pensar que a mesma fé repetiria o mes-
mo milagre. Buscai ao vosso redor, em alguma
parte, uma mística nova, ativa, suscetível de mila-
gres, apta a encher de esperança aos desgraçados,
a suscitar mártires e a transformar o mundo com
promessas de bondade e de virtude. Quando a ti-
veres encontrado, designado, nomeado, não serás
absolutamente o mesmo homem”.
Ortega y Gasset41 fala da “alma desencantada”.
40 Crítico literário, romancista e dramaturgo francês. Foi
membro do Partido Comunista e participou da Primeira
Guerra Mundial.
41 Filósofo, ensaísta, jornalista e ativista político é um dos
mais influentes pensadores da contemporaneidade, consi-
derado por muitos o maior filósofo espanhol do século XX.
Dentre suas contribuições destaca-se as investigações acerca
da historicidade que, se afastando dos cânones do marxismo,

35
Romain Rolland42 fala da “alma encantada”. Qual
dos dois tem razão? Ambas almas coexistem. A
“alma desencantada” de Ortega y Gasset é a alma
da decadente civilização burguesa. A “alma en-
cantada” de Romain Rolland é a alma dos forja-
dores da nova civilização. Ortega y Gasset vê ape-
nas o ocaso, o crepúsculo, der Untergang43. Romain
Rolland vê o orto, a alba, der Aufgang44. O que mais
nítida e claramente diferencia, nesta época, a bur-
guesia e o proletariado é o mito. A burguesia já
não tem mito algum. Tornou-se incrédula, cética
e niilista. O mito liberal renascentista envelheceu
demasiadamente. O proletariado tem um mito: a
revolução social. Em direção a esse mito move-se
com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega,
o proletariado afirma. A inteligência burguesa
entretém-se numa crítica racionalista do método,
da teoria e da técnica dos revolucionários. Que
incompreensão! A força dos revolucionários não
está na sua ciência, está em sua fé, em sua paixão,
em sua vontade. É uma força religiosa, mística,
espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucio-
nária, como afirmei num artigo sobre Gandhi, é
uma emoção religiosa. Os motivos religiosos des-
locaram-se do céu para a terra. Não são divinos,
são humanos, são sociais.
Há algum tempo que se constata o caráter reli-
gioso, místico e metafísico do socialismo. George
Sorel, um dos mais altos representantes do pensa-
evolucionismo e positivismo, busca suplantar o que conside-
ra o esgotamento da metafísica e do idealismo. Nesse senti-
do, se aproxima ideologicamente da fenomenologia e exis-
tencialismo de Martin Heidegger, seu contemporâneo.
42 Foi um renomado literato francês, laureado com o Nobel
de Literatura no ano de 1915. Destacado escritor democráti-
co, sua arte de cunho Realista Social demarcava com a arte
dos boulevards parisienses à qual rechaçava. Foi contra a
guerra e o nacionalismo que tomavam conta de sua época,
antifascista e simpático ao socialismo.
43 (Alemão) A queda
44 (Alemão) O nascer

36
mento francês do século XX, dizia em suas Refle-
xões sobre a violência: “Encontrou-se uma analogia
entre a religião e o socialismo revolucionário, que se
propõe a preparação e ainda a reconstrução do indiví-
duo para uma obra gigantesca. Mas Bergson nos en-
sinou que não somente a religião pode ocupar a região
do eu profundo, os mitos revolucionários podem tam-
bém ocupá-la com o mesmo título”. Renan, como o
mesmo Sorel lembra, referia-se à fé religiosa dos
socialistas, constatando sua inexpugnabilidade a
todo desalento.
“A cada experiência frustrada, recomeçam. Não en-
contraram a solução: a encontrarão. Jamais os assalta
a ideia de que a solução não exista. Eis aí sua força”.
A mesma filosofia que nos ensina a necessidade do
mito e da fé, resulta incapaz geralmente de com-
preender a fé e o mito dos novos tempos. “Miséria
da filosofia45”, como dizia Marx. Os profissionais
da Inteligência não encontrarão o caminho da fé,
as multidões o encontrarão. Aos filósofos caberá,
mais tarde, codificar o pensamento que emerja da
grande gestação multitudinária. Acaso souberam
os filósofos da decadência romana compreender
a linguagem do cristianismo? A filosofia da deca-
dência burguesa não pode ter melhor destino.

45 O livro “Miséria da Filosofia – resposta à Filosofia da mi-


séria do Sr. Proudhon” foi publicado em 1847 em resposta
a obra “Filosofia da Miséria” do então influente pensador e
dirigente socialista francês Proudhon. Nessa obra, escrita a
quatro mãos com Engels, o marxismo começa a aparecer sis-
tematizado em suas bases econômicas e filosóficas. Por meio
de um pensamento arguto e linguagem irônica, os funda-
dores do socialismo científico demarcam posição contra as
concepções reformistas de fundo metafísico hegemônicas no
movimento operário à época.

37
A LUTA FINAL
20 de março de 1925
I
Madeleine Marx46, uma das mulheres de letras
mais inquietas e mais modernas da França con-
temporânea, reuniu suas impressões da Rússia
em um livro que leva este título C’est la lutte fina-
le… A frase do canto de Eugène Pottier47 adquire
relevância histórica. “É a luta final!”
O proletariado russo saúda a revolução com este
grito que é o grito ecumênico do proletariado
mundial. Grito multitudinário de combate e es-
perança que Madeleine Marx ouviu nas ruas de
Moscou e que eu ouvi nas ruas de Roma, de Mi-
lão, de Berlim, de París, de Viena e de Lima. Toda
a emoção de uma época está contida nele. As mul-
tidões revolucionárias creem travar a luta final.
Travam-na verdadeiramente? Para as céticas
criaturas da velha ordem esta luta final é somen-
te uma ilusão. Para os fervorosos combatentes
da nova ordem é uma realidade. Au dessus de la
mêlée48, uma nova e sagaz filosofia da história nos
propõe outro conceito: ilusão e realidade. A luta
final da estrofe de Eugène Pottier é, ao mesmo
tempo, uma realidade e uma ilusão.
Trata-se, efetivamente, da luta final de uma épo-
ca e de uma classe. O progresso – ou o processo
humano – se cumpre por etapas. Por conseguin-
te, a humanidade tem perenemente a necessidade
46 Jornalista, escritora e militante comunista na década de
1920. Ao retornar de uma visita à Rússia em 1920 escreveu
o livro citado relatando entusiasticamente a experiência do
socialismo. Em 1925 foi expulsa do Partido Comunista da
França por ter aderido ao trotskismo.
47 Operário e poeta francês, foi combatente da Comuna de
Paris. Autor da letra de “A Internacional”.
48 (Francês) “acima da luta”. A expressão foi cunhada no tí-
tulo do livro homônimo de Romain Rolland, publicado em
1914. No livro o autor critica a guerra e o “nacionalismo” dos
intelectuais da época que do alto de suas torres de marfim
conclamavam à guerra imperialista.

39
de se sentir próxima a uma meta. A meta de hoje
seguramente não será a meta de amanhã; mas,
para a teoria humana em marcha, é a meta final.
O messiânico milênio não virá nunca. O homem
chega apenas para partir de novo. Não pode, no
entanto, prescindir da crença de que a nova jor-
nada é a jornada definitiva. Nenhuma revolução
prevê a revolução que virá depois, ainda que em
suas entranhas porte seu gérmen. Para o homem,
como sujeito da história, não existe senão sua pró-
pria e pessoal realidade. Não lhe interessa a luta
abstratamente, mas sim, sua luta concretamente.
O proletariado revolucionário, portanto, vive a
realidade de uma luta final. A humanidade, no
entanto, sob um ponto de vista abstrato, vive a
ilusão de uma luta final.
II
A revolução francesa teve a mesma ideia de sua
magnitude. Seus homens acreditaram também
inaugurar uma nova era. A Convenção49 quis gra-
var para sempre na história, o começo do milênio
republicano. Pensou que a era cristã e o calendá-
rio gregoriano não podiam conter a República.
O hino da revolução saudou o amanhecer de um
novo dia: le jour de gloire est arrivé50. A república
individualista e jacobina aparecia como o supre-
mo desideratum51 da humanidade. A revolução se
sentia definitiva e insuperável. Era a luta final. A
luta final pela Liberdade, pela Igualdade e pela
Fraternidade.
Menos de um século e meio bastou para que este
49 Regime da burguesia radical durante a Revolução Fran-
cesa (1792-1795). Aboliu a monarquia, o calendário gregoria-
no e estabeleceu o Regime do Terror contra os reacionários
franceses.
50 (Francês) “o dia da glória chegou”. Trecho de A Marselhe-
sa, hino da França, previamente canção revolucionária canta-
da pelos soldados na Revolução Francesa.
51 (Latim) “algo desejado” ou “objeto de desejo”.

40
mito envelhecesse. A Marselhesa deixou de ser
um canto revolucionário. O “dia de glória” per-
deu seu prestígio sobrenatural. Os próprios fauto-
res da democracia se mostram desencantados da
prestância do parlamento e do sufrágio universal.
Fermenta no mundo outra revolução. Um regime
coletivista pugna por substituir o regime indivi-
dualista. Os revolucionários do século vinte se
apressam a julgar sumariamente a obra dos revo-
lucionários do século dezoito.
A revolução proletária é, no entanto, uma con-
sequência da revolução burguesa. A burguesia
criou, em mais de um século de vertiginosa acu-
mulação capitalista, as condições espirituais e ma-
teriais de uma nova ordem. Dentro da revolução
francesa se aninharam as primeiras idéias socia-
listas. Logo, o industrialismo organizou gradual-
mente em suas fábricas os exércitos da revolução.
O proletariado, antes confundido com a burgue-
sia no terceiro estado52, formulou então suas rei-
vindicações de classe. O seio gordo do bem estar
capitalista alimentou o socialismo. O destino da
burguesia quis que esta abastecesse de ideias e de
homens a revolução dirigida contra seu poder.
III
A ilusão da luta final é, portanto, uma ilusão mui-
to antiga e muito moderna. A cada dois, três ou
mais séculos, esta ilusão reaparece com nome dis-
tinto. E, como agora, é sempre a realidade de uma
incontável falange humana. Possui aos homens
para renová-los. É o motor de todos os progressos.
É a estrela de todos os renascimentos. Quando a
grande ilusão tramonta é porque já se criou uma
nova realidade humana. Os homens descansam
então de sua eterna inquietude. Se encerra um ci-

52 Termo que indicava as pessoas que não faziam parte do


clero e nem da nobreza. Aqui se encaixa a maior parte da
população, burgueses, camponeses, etc.

41
clo romântico e se abre o ciclo clássico. No ciclo
clássico se desenvolve, estiliza e degenera uma
forma que, realizada plenamente, não poderá
conter em si as novas forças da vida. Só nos casos
em que sua potência criadora enerva, a vida ador-
mece, estagnada, dentro de uma forma rígida, de-
crépita, caduca. Mas este êxtase dos povos ou das
sociedades não são ilimitados. A sonolenta lagoa,
a quieta palidez, acaba por se agitar e transbordar.
A vida recupera então sua energia e seu impulso.
A Índia, a China e a Turquia contemporâneas são
um exemplo vivo e atual destes renascimentos. O
mito revolucionário sacudiu e reanimou, de for-
ma potente, esses povos em colapso.
O Oriente se desperta para a ação. A ilusão renas-
ceu em sua alma milenar.
IV
O ceticismo se contentava com contrastar a irreali-
dade das grandes ilusões humanas. O relativismo
não se conforma com o mesmo negativo e infe-
cundo resultado. Começa por ensinar que a rea-
lidade é uma ilusão; mas conclui por reconhecer
que a ilusão, é, por sua vez, uma realidade. Nega
que existam verdades absolutas; mas se dá conta
de que os homens precisam crer em suas verda-
des relativas como se fossem absolutas. Os ho-
mens necessitam de certeza. De que importa que
a certeza dos homens de hoje não seja a certeza
dos homens de amanhã? Sem um mito os homens
não podem viver fecundamente. A filosofia relati-
vista nos propõe, por conseguinte, obedecer a lei
do mito.
Pirandello53, relativista, oferece o exemplo ade-
rindo ao fascimo. O fascismo seduz a Pirandello
53 Conhecido dramaturgo italiano que recebeu o prêmio
Nobel de Literatura de 1934. Foi filiado ao partido fascista
rompendo poucos anos depois, porém, permanece como
simpatizante e apoiador.

42
porque enquanto a democracia se tornou cética e
niilista, o fascimo representa uma fé religiosa, fa-
nática, na hierarquia e na Nação. (Pirandello que é
um pequeno-burguês siciliano, carece de aptidão
psicológica para compreender e seguir o mito re-
volucionário). O literato de exasperado ceticismo
não ama, em política, a dúvida. Prefere a afirma-
ção violenta, categórica, apaixonada, brutal. A
multidão, ainda mais que o filósofo cético, ainda
mais que o filósofo relativista, não pode prescin-
dir de um mito, não pode prescindir de uma fé.
Não lhes é possível distinguir sutilmente sua ver-
dade da verdade pretérita ou futura. Para ela não
existe senão a verdade. Verdade absoluta, única,
eterna. E, conforme essa verdade, sua luta é, real-
mente, uma luta final.
O impulso vital do homem responde a todas as
interrogações da vida antes que a investigação fi-
losófica. O homem iletrado não se preocupa com
a relatividade de seu mito. Não lhe seria possível
sequer compreendê-la. Mas geralmente encontra,
melhor que o literato e que o filósofo, seu próprio
caminho. Posto que deve atuar, atua. Posto que
deve crer, crê. Posto que deve combater, combate.
Nada sabe da relativa insignificância de seu es-
forço no tempo e no espaço. Seu instinto o desvia
da dúvida estéril. Não ambiciona mais que o que
pode e o que deve ambicionar todo homem: cum-
prir bem sua jornada.

43
PESSIMISMO DA
REALIDADE E
OTIMISMO DO
IDEAL
21 de agosto de 1925
I
Me parece que José Vasconcelos54 encontrou uma
fórmula sobre pessimismo e otimismo que não
somente define o sentimento da nova geração
ibero-americana frente à crise contemporânea, se-
não que também corresponde de forma absoluta
à mentalidade e a sensibilidade de uma época na
qual, apesar da tese de Dom José Ortega y Gas-
set sobre a “alma desencantada” e “o ocaso das
revoluções”, milhões de homens trabalham com
fervor místico e uma paixão religiosa, por criar
um mundo novo. “Pessimismo da realidade, oti-
mismo do ideal”, esta é a fórmula de Vasconcelos.
“Não conformar-nos nunca, mas estar sempre
além e superiores ao instante – escreve Vasconce-
los –. Repudio da realidade e luta para destruí-la,
mas não por ausência de fé, senão que por sobra
de fé nas capacidades humanas e por convicção
firme de que nunca é permanente nem justificá-
vel o mal, e de que sempre é possível e factível
redimir, purificar, melhorar, o estado coletivo e a
consciência privada”.
A atitude do homem que se propõe corrigir a rea-
lidade é, certamente, mais otimista que pessimis-
ta. É pessimista em seu protesto e em sua conde-
nação do presente; mas é otimista quanto à sua
esperança no futuro. Todos os grandes ideais hu-
manos partiram de uma negação; mas todos têm
sido também uma afirmação. As religiões têm
representado perenemente na história esse pessi-
mismo da realidade e esse otimismo do ideal que
neste tempo nos predica o escritor mexicano.
Os que não nos contentamos com a mediocridade,
os que menos ainda não nos conformamos com
a injustiça, somos frequentemente designados
54 Político, escritor e ministro da educação mexicano. Du-
rante a Revolução Mexicana se filiou a Francisco I. Madero
contra o presidente Porfírio Díaz.

45
como pessimistas. Mas, na verdade, o pessimis-
mo domina muito menos nosso espírito que o oti-
mismo. Não acreditamos que o mundo deva ser
fatal e eternamente como é. Cremos que pode e
deve ser melhor. O otimismo que rechaçamos é
o fácil e preguiçoso otimismo panglossiano55 dos
que pensam que vivemos no melhor dos mundos
possíveis.
II
Existem dois tipos de pessimistas, assim como
existem dois tipos de otimistas. O pessimismo ex-
clusivamente negativo se limita a constatar com
um gesto de impotência e de desesperança, a mi-
séria das coisas e a vanidade dos esforços. É um
niilista que espera, melancolicamente, sua última
desilusão. O extremo limite, como dizia Artziba-
chev56. Mas este tipo de homem afortunadamente
não é comum. Pertence a uma rara casta de inte-
lectuais desencantados. Constitui, ademais, um
produto de uma época de decadência ou de um
povo em colapso.
Entre os intelectuais, não é raro um niilismo si-
mulado que lhes serve de pretexto filosófico para
evitar sua cooperação a todo grande esforço re-
novador ou para explicar seu desdém por toda
obra multitudinária. Mas o niilismo fictício desta
categoria de intelectuais não é sequer uma atitude
filosófica. Se reduz a um escondido e artificial des-
dém pelos grandes mitos humanos. É um niilismo
inconfesso que não se atreve a vir à tona na super-
fície da obra ou da vida do intelectual negativo

55 Referência ao Dr. Pangloss, personagem do conto de Vol-


taire “Cândido, ou o otimismo”, caracterizado por seu oti-
mismo fervoroso, dizia sempre que “vivemos no melhor dos
mundos possiveis”.
56 Escritor da intelligentsia russa, cuja produção literária é
caracterizada como cética e niilista. Foi um grande opositor
dos bolcheviques, chegando a sair da Rússia e imigrar para a
Polônia em 1923.

46
que se entrega a este exercício teórico como a um
vício solitário. O intelectual, niilista em privado,
costuma ser em público membro de uma associa-
ção antialcoólica ou de uma sociedade protetora
dos animais. Seu niilismo não tem por objetivo
defendê-lo e precavê-lo senão das grandes pai-
xões. Ante os pequenos ideais o falso niilista se
comporta com o mais vulgar idealismo.
III
É com os espíritos pessimistas e negativos desta
estirpe que nosso otimismo do ideal não nos con-
sente tolerar que nos confunda. As atitudes abso-
lutamente negativas são estéreis. A ação está feita
de negações e de afirmações. A nova geração em
nossa América como em todo o mundo, é, sobre-
tudo, uma geração que grita sua fé, que canta sua
esperança.
IV
Na filosofia ocidental contemporânea prevalece
um humor cético. Esta atitude filosófica, como
seus penetrantes críticos o remarcam, é um ges-
to peculiar de uma civilização em decadência. Só
em um mundo decadente aflora um sentimento
desencantado da vida. Mas nem mesmo este ce-
ticismo ou este relativismo contemporâneos tem
algum parentesco, nenhuma afinidade com o nii-
lismo barato e fictício dos impotentes nem com o
niilismo absoluto e mórbido dos suicidas e dos
loucos de Andreiev57 e Artzibachev. O pragmatis-
mo, que tão eficazmente move o homem à ação,
é no fundo uma escola relativista e cética. Hans
Vainhingher58, o autor da Philosophie der Als
Ob59 foi classificado justamente como um prag-
matista. Para este filósofo alemão [tudesco] não
57 Autor russo nascido no final do século XIX cujas obras são
caracterizadas por serem sombrias e pessimistas.
58 Filósofo alemão conhecido por ser estudioso de Kant.
59 (Alemão) “Filosofia do ‘como se’”.

47
existem verdades absolutas; mas existem verda-
des relativas que governam a vida do homem
como se fossem absolutas. “Os princípios morais
a par dos estéticos, os critérios do direito a par dos
conceitos sobre os quais labora a ciência, mesmo
os fundamentos da lógica, não possuem nenhuma
existência objetiva; são construções fictícias nos-
sas, que servem unicamente como cânones regu-
ladores de nossa ação, a qual se orienta como se
fossem verdadeiros”. Assim define a filosofia de
Vainhingher, em seu “Lineamientos de Filosofía es-
céptica”, o filósofo italiano Giuseppe Renssi60 que,
segundo vejo em uma nota bibliográfica da revis-
ta de Ortega y Gasset, começa a interessar na Es-
panha e portanto na América espanhola.
Esta filosofia, por isso, não convida a renunciar a
ação. Pretende unicamente negar o Absoluto. Mas
reconhece, na história humana, a verdade rela-
tiva, ao mito temporal de cada época, o mesmo
valor e a mesma eficácia que a uma verdade ab-
soluta e eterna. Esta filosofia proclama e confirma
a necessidade do mito e a utilidade da fé. Ainda
que logo se entretenha em pensar que todas as
verdades e todas as ficções em última análise, são
equivalentes. Einstein, relativista, se comporta na
vida como um otimista do ideal.
V
Na nova geração, arde o desejo de superar a filo-
sofia cética. Fermenta no caos contemporâneo os
materiais de uma nova mística. O mundo em ges-
tação não colocará sua esperança onde a puseram
as religiões tramontadas. “Os fortes se empenham
e lutam, – disse Vasconcelos – com o fim de ante-
cipar um tanto a obra dos céus!”. A nova geração
quer ser forte.
60 Filósofo italiano, titular da cátedra de ética na Universida-
de de Gênova. Apoiava o movimento fascista que surgia. Em
1925, ano da publicação desse texto, se opõe a Mussolini com
sua obra “Apologia dell’ateismo”.

48
49
A CRISE DA
DEMOCRACIA
14 de novembro de 1925
Os próprios fautores da democracia – o termo
“democracia” é empregado como equivalente do
termo Estado demoliberal burguês – reconhecem
a decadência deste sistema político. Concordam
que se encontra envelhecido e desgastado e acei-
tam sua reparação e compostura. Mas, a seu pa-
recer, o que está deteriorada não é a democracia
como ideia, como espírito, mas sim a democracia
como forma.
Este juízo sobre o sentido e o valor da crise da
democracia inspira-se na incorrigível tendência
a distinguir em todas as coisas corpo e espírito.
Do antigo dualismo da essência e da forma, que
conserva na maioria das inteligências seus velhos
traços clássicos, se desprendem diversas supers-
tições.
Mas uma ideia realizada não é mais válida como
ideia mas como realização. A forma não pode ser
separada, não pode ser isolada de sua essência. A
forma é a ideia realizada, a ideia atuada, a ideia
materializada. Diferenciar, independizar a ideia
da forma é um artifício e uma convenção teóri-
cos e dialéticos. Não é possível renegar a expres-
são e a corporeidade de uma ideia sem renegar
a própria ideia. A forma representa tudo o que a
ideia animadora vale prática e concretamente. Se
pudéssemos retroceder a história, constataríamos
que a repetição de um mesmo experimento políti-
co teria sempre as mesmas consequências. Retor-
nando uma ideia à sua pureza, à sua virgindade
originais, e às condições primitivas de tempo e
lugar, não daria uma segunda vez mais certo do
que deu a primeira. Uma forma política constitui,
em suma, todo o desempenho possível da ideia
que a engendrou. Tão certo é isso que o homem,
de modo prático, em religião e em política, acaba
por ignorar o que em sua igreja ou seu partido é
essencial para sentir unicamente o que é formal e
corpóreo.

51
O mesmo lhes passa aos fautores da democracia
que não querem acredita-la velha e desgastada
como ideia, mas sim, como organismo. O que es-
tes políticos defendem, realmente, é a forma pere-
cível e não o princípio imortal. A palavra demo-
cracia já não serve para designar a ideia abstrata
da democracia pura, mas sim, para designar como
digo, no início deste texto, ao Estado demoliberal
burguês. A democracia dos democratas contem-
porâneos é a democracia capitalista. É a democra-
cia-forma e não a democracia-ideia.
E esta democracia se encontra em decadência e
dissolução. O parlamento é o órgão, é o coração
da democracia. O parlamento cessou de corres-
ponder a seus fins e perdeu sua autoridade e sua
função no organismo democrático. A democracia
está morrendo de doença cardíaca.
A Reação confessa, explicitamente, seus propó-
sitos antiparlamentares. O fascismo anuncia que
não se deixará expulsar do poder por um voto do
parlamento61. O consenso da maioria parlamentar
é para o fascismo uma coisa secundária; não é uma
coisa primária. A maioria parlamentar, um artigo
de luxo; não um artigo de primeira necessidade.
O parlamento é bom se obedece; mas se protesta
o repreende. Os fascistas pretendem reformar a
carta política da Itália, adaptando-a a seus novos
usos. O fascismo se reconhece antidemocrático,
antiliberal e antiparlamentar. À fórmula jacobina
da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, opõem

61 Quando o texto foi escrito havia-se passado pouco mais


de um ano do assassinato, do deputado Giacomo Meteoti do
Partido Socialista Unitário (membro da Segunda Internacio-
nal) por grupos paramilitares fascistas. Opositor aberto do
fascismo, denunciava seu autoritarismo e, recentemente, ha-
via descoberto o conluio entre Mussolini e a petroleira esta-
dunidense Sinclair Oil. Em protesto ao assassinato do depu-
tado . Em protesto ao seu assassinato cerca de 100 deputados
resolveram boicotar as sessões do Parlamento Italiano para
privar o fascismo de sua aparência legal.

52
a fórmula fascista da hierarquia. Alguns fascistas
se entretêm em especulações teóricas, definem o
fascismo como um renascimento do espírito da
contrarreforma. Atribuem ao fascismo uma alma
medieval e católica. Ainda que Mussolini só tenha
dito que “indietro non si torna”62 os próprios fascis-
tas têm o prazer de encontrar suas origens espiri-
tuais na idade média.
O fenômeno fascista não é senão um sintoma da
situação. Desgraçadamente para o parlamento, o
fascismo não é seu único nem é sequer seu prin-
cipal inimigo. O parlamento sofre, por um lado,
os assaltos da Reação, e por outro lado, os da Re-
volução. Os reacionários e os revolucionários de
todos os climas coincidem na desqualificação da
velha democracia. Um e outro propugnam méto-
dos ditatoriais.
A teoria e a práxis de ambos os lados ofende o
pudor da Democracia, por mais que a democracia
não tenham se comportado nunca com excessiva
castidade. Mas a Democracia cede, alternativa ou
simultaneamente, a atração da direita e da esquer-
da. Não escapa a um campo de gravitação senão
para cair no outro. A rasgam duas forças antité-
ticas, dois amores antagônicos. Os homens mais
inteligentes da democracia se empenham em re-
nová-la e emenda-la. O regime democrático resul-
ta submetido a um exercício de crítica e de revisão
internas, superior a seus anos e a suas mazelas.

62 (Italiano) “Não se pode voltar atrás.”. Frase constante-


mente empregada por Mussolini com dois objetivos: Em
primeiro lugar para afirmar serem inexoráveis as mudanças
introduzidas pelo fascismo; e em segundo para dissimular
o caráter reacionário do fascismo. De acordo com Mussoli-
ni: “As negações fascistas do socialismo, da democracia, do
liberalismo, não devem fazer acreditar que o fascismo quer
fazer o mundo voltar ao que era antes de 1789, considerado
o ano que inaugura a era democrático-liberal. Não se pode
voltar atrás”.

53
Nitti63 não acredita que seja o caso de falar de uma
democracia a seca, mas sim, de uma democracia
social. O autor de A tragédia da Europa é um demo-
crata dinâmico e heterodoxo. Caillaux64 preconiza
uma “síntese da democracia de tipo ocidental e do
sovietismo russo”. Não consegue Caillaux indicar
o caminho que conduziria a esse resultado. Mas
admite, explicitamente, que se reduza as funções
do parlamento. O parlamento, segundo Caillaux,
não deve ter senão direitos e não desempenhar
uma missão de controle superior. A direção com-
pleta do Estado econômico deve ser transferida a
novos organismos.
Estas concessões à teoria do Estado sindical ex-
pressam até que ponto envelheceu a antiga con-
cepção de parlamento. Abdicando de uma parte
de sua autoridade, o parlamento entra em uma via
que o levará à perda de seus poderes. Esse Estado
econômico, que Caillaux quer subordinar ao Esta-
do político, é uma realidade superior à vontade e
à coerção dos estadistas que aspiram apreendê-lo
dentro de seus impotentes princípios. O poder po-
lítico é uma consequência do poder econômico. A
plutocracia europeia e a norte-americana não têm
nenhum meio para os exercícios dialéticos dos
políticos democratas. Qualquer um dos trustes ou
dos “cartéis” industriais da Alemanha e Estados
Unidos influencia na política de sua respectiva
nação mais do que toda ideologia democrática. O
plano Dawes e o tratado de Londres65 foram dita-
63 Político italiano, foi primeiro-ministro da Itália de 1919 a
1920. Durante o fascismo foi perseguido e exilado.
64 Político francês, foi líder do Partido Republicano, Radical
e Radical-Socialista e ministro da economia.
65 Acordos que se deram no período da primeira guerra
mundial. O Plano Dawes tinha por objetivo viabilizar o pa-
gamento das dívidas da Alemanha após o final da guerra,
envolvendo entre outros aspectos, receber empréstimos es-
trangeiros, principalmente dos EUA. Já o tratado de Londres,
de 1915, foi um acordo secreto entre a Itália, Grã-Bretanha,
França e, à época, o Império Russo, no acordo a Itália recebe-

54
dos a seus ilustres signatários pelos interesses de
Morgan, Loucheur,66 etc.
A crise da democracia é o resultado do crescimen-
to e concentração simultâneos do capitalismo e do
proletariado. Os propulsores da produção estão
nas mãos destas duas forças. A classe proletá-
ria luta por substituir no poder a classe burgue-
sa. Lhe arranca, durante, sucessivas concessões.
Ambas as classes pactuam suas tréguas, seus
armistícios e seus compromissos, diretamente,
sem intermediários. O parlamento, nestes deba-
tes e nestas transações não é aceito como árbitro.
Pouco a pouco, a autoridade parlamentar foi, por
conseguinte, diminuindo. Todos os setores políti-
cos tendem, atualmente, a reconhecer a realidade
do Estado econômico. O sufrágio universal e as
assembleias parlamentares, concordam em ceder
muitas de suas funções às agrupações sindicais. A
direita, o centro e a esquerda, são mais ou menos
filossindicalistas. O fascismo, por exemplo, traba-
lha pela restauração das corporações medievais e
constrange operários e patrões a conviver e coo-
perar dentro de um mesmo sindicato. Os teóricos
da “camisa negra”67 em seus esboços do futuro
Estado fascista, o qualificam como um Estado
sindical. Os social-democratas pugnam por inje-
tar no mecanismo da democracia os sindicatos e

ria alguns territórios e deixaria a Aliança e entraria na guerra


ao lado da Entente.
66 Morgan e Loucheur eram dois industriais da época. Lou-
cheur vinha da indústria armamentista e de bens primários,
ao longo de sua vida influenciou fortemente a política da
França sendo indicado a vários cargos ministeriais, entre
eles, foi “ministro dos armamentos”. Morgan era um indus-
trial e banqueiro estadunidense, durante a primeira guerra
mundial conseguiu firmar um acordo que garantia que sua
empresa fosse a única fornecedora de munição e suprimentos
para os governos britânico e francês.
67 Grupo paramilitar da Itália fascista, sua tarefa primordial
era combater “os socialistas”. Juraram lealdade a Mussolini.

55
associações profissionais. Walter Rathenau68, um
dos mais conspícuos e originais teóricos e reali-
zadores da burguesia, sonhava com um desdo-
bramento do Estado em Estado industrial, Estado
administrativo, Estado educado, etc. Na organiza-
ção concebida por Rathenau, as diversas funções
do Estado seriam transferidas às associações pro-
fissionais.
Como chegou a democracia à crise que acusam
todas essas inquietudes e conflitos? O estudo das
raízes da decadência do regime democrático não
cabe nos últimos parágrafos de um artigo como
este. Há que supri-lo de uma definição incompleta
e sumária: a forma democrática cessou, gradual-
mente, de corresponder a nova estrutura econô-
mica da sociedade. O Estado demoliberal burguês
foi um efeito da ascensão da burguesia à posição
de classe dominante. Constituiu uma consequên-
cia da ação de forças econômicas e produtoras que
não podiam desenvolver-se dentro dos diques
rígidos de uma sociedade governada pela aris-
tocracia e pela igreja. Agora, como então, o novo
jogo de forças econômicas e produtivas reclama
uma nova organização política. As formas políti-
cas, sociais e culturais são sempre provisórias, são
sempre interinas. Em sua entranha contém, inva-
riavelmente, o germen de uma forma futura. Enri-
jecida, petrificada, a forma democrática, como as
que a precederam na história, já não pode conter
mais a nova realidade humana.

68 Industrial, político e escritor alemão. Judeu, defendia a


oposição tanto ao sionismo como ao socialismo, devendo os
judeus intregarem-se totalmente na sociedade alemã.

56
57
A IMAGINAÇÃO
E O PROGRESSO
12 de dezembro de 1924
Escreve Luis Araquistain69 que “o espírito conser-
vador, em sua forma mais desinteressada, quando
não nasce de um baixo egoísmo, e sim do temor ao
desconhecido e incerto, é no fundo falta de imagi-
nação”. Ser revolucionário ou renovador é, deste
ponto de vista, uma consequência de ser mais ou
menos imaginativo. O conservador rechaça toda
ideia de mudança por uma espécie de incapaci-
dade mental para concebê-la e para aceitá-la. Este
caso é, naturalmente, o do conservador puro, por-
que a atitude do conservador prático, que acomo-
da seu ideário a sua utilidade e sua comodidade,
tem, sem dúvida, uma gênese diferente.
O tradicionalismo, o conservadorismo, são assim
definidos como uma simples limitação espiritual.
O tradicionalista não tem aptidão senão para ima-
ginar a vida como foi. O conservador não tem ap-
tidão senão para imaginá-la como é. O progresso
da humanidade, portanto, se cumpre apesar do
tradicionalismo e apesar do conservadorismo.
Há vários anos que Oscar Wilde70, em seu original
ensaio “A alma do homem sob o socialismo”, dis-
se que “progredir é realizar utopias”. Pensando
analogamente a Wilde, Luis Araquistain agrega
que “sem imaginação não há progresso de nenhu-
ma espécie”. E na verdade, o progresso não seria
possível se a imaginação humana sofresse de re-
pente um colapso.
A história dá sempre razão aos homens imagina-
tivos. Na América do Sul, por exemplo, acabamos

69 Jornalista, escritor e político espanhol. Membro do Par-


tido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e ocupou cargos
no governo da República Espanhola durante a Guerra Ci-
vil(1936-1939), se exilando na Suíça durante o governo Fran-
co.
70 Popular escritor, poeta e dramaturgo irlandês que viveu
entre a metade e o fim do século XIX. Tinha posições associa-
das ao socialismo libertário. Escreveu o romance “O Retrato
de Dorian Gray”

59
de comemorar a figura e a obra dos animadores
e condutores da revolução da independência. Es-
tes homens nos parecem, fundadamente, geniais.
Mas qual é a primeira condição da genialidade? É,
sem dúvida, uma poderosa faculdade de imagina-
ção. Os libertadores foram grandes porque foram,
antes de tudo, imaginativos. Insurgiram contra a
realidade limitada, contra a realidade imperfeita
de seu tempo.
Trabalharam por criar uma realidade nova. Bolí-
var71 teve sonhos futuristas. Pensou em uma con-
federação de estados indo-espanhóis. Sem este
ideal, é provável que Bolívar não tivesse vindo
a lutar por nossa independência. A sorte da in-
dependência do Peru dependeu, portanto, em
grande parte, da aptidão imaginativa do Liberta-
dor. Ao celebrar o centenário de uma vitória de
Ayacucho se celebra, realmente, o centenário de
uma vitória da imaginação. A realidade sensível,
a realidade evidente, nos tempos da revolução da
independência; não era, certamente, republicana
nem nacionalista. O mérito dos libertadores con-
siste em ter visto uma realidade potencial, uma
realidade superior, uma realidade imaginária.
Esta é a história de todos os grandes acontecimen-
tos humanos. O progresso foi realizado sempre
pelos imaginativos. A posteridade aceitou, in-
variavelmente, sua obra. O conservadorismo de
uma época posterior, não tem nunca mais defen-

71 Caudilho militar venezuelano responsável por dirigir a


guerra de libertação da América Espanhola entre 1807-1825.
Ao longo de sua vida foi presidente da Venezuela, Grã-Co-
lômbia(união da Colômbia, Venezuela e Equador), Peru e Bo-
lívia – esta última batizada em sua homenagem. Devido ao
sucesso de contra a Espanha, recebeu o epíteto de Libertador.
Em 1825 travou sua última grande batalha contra a Espanha
e Ayacucho Sua ambição era construir uma única nação
unindo a América Espanhola, mas devido aos interesses dís-
pares de suas oligarquias nativas como pela ação de grandes
potências , elas acabaram se dividindo em vários países.

60
sores ou prosélitos do que uns quantos românti-
cos e uns quantos extravagantes. A humanidade,
com raras exceções, estima e estuda aos homens
da revolução francesa muito mais que aos da
monarquia e da feudalidade então abatida. Luís
XVI e Maria Antonieta72 parecem a muita gente,
sobretudo, desgraçados. A ninguém lhes parecem
grandes.
Por outro lado, a imaginação, geralmente, é menos
livre e menos arbitrária do que se supõe. A pobre
tem sido muito difamada e muito distorcida. Al-
guns acreditam-na ser mais ou menos louca; ou-
tros a julgam ilimitada e até infinita. Na realidade,
a imaginação é bastante modesta. Como todas as
coisas humanas, a imaginação tem também seus
confins. Em todos os homens, em todos os mais
geniais, como nos mais idiotas, encontra-se condi-
cionada por circunstâncias de tempo e de espaço.
O espírito humano reage contra a realidade con-
tingente. Mas precisamente quando reage contra
a realidade é quando talvez dependa mais dela.
Pugna por modificar o que vê e o que sente; não
o que ignora. Logo, só são válidas aquelas utopias
que se poderiam chamar de realistas. Aquelas uto-
pias que nascem das próprias entranhas da reali-
dade. George Simmel73 escrevia que uma socieda-
de coletivista caminha a ideais individualistas e
que, inversamente, uma sociedade individualista
caminha a ideais socialistas. A filosofia hegeliana
explica a força criadora do ideal como uma con-
sequência, ao mesmo tempo, da resistência e do
estímulo que este encontra na realidade. Pode-se
72 Luís XVI e Maria Antonieta foram o rei e rainha da França,
respectivamente, nos anos de 1774 até ser deposto em 1792
durante a revolução francesa. Foram condenados à guilhoti-
na em 1793 pelo governo revolucionário por traição à pátria.
73 Sociólogo alemão muito popular na Universidade de Ber-
lim e entre a intelectualidade de Berlim de modo geral. Este-
ve entre os primeiros na sociologia alemã a criticar o positi-
vismo nas ciências humanas. Enfrentou bastante resistência
às suas posições ao longo de sua vida acadêmica.

61
dizer que o homem não prevê nem imagina senão
o que está já germinando, maturando, nas entra-
nhas obscuras da história.
Os idealistas precisam apoiar-se sobre o interesse
concreto de uma extensa e consciente camada so-
cial. O ideal não prospera senão quando represen-
ta um vasto interesse. Quando adquire em suma,
caráter de utilidade e de comodidade. Quando
uma classe social se converte em instrumento de
sua realização.
Em nossa época, em nossa civilização, não houve
nunca utopias demasiado audazes. O homem mo-
derno conseguiu quase prever o progresso. Até a
fantasia dos romancistas terminou por ser, mui-
tas vezes, superada pela realidade brevemente. A
ciência ocidental foi mais depressa do que sonhou
Júlio Verne74. Outro tanto aconteceu na política.
Anatole France pressagiou a revolução russa para
fins deste século, poucos anos antes que essa re-
volução inaugurasse um capítulo novo na história
do mundo.
E justamente na novela de Anatole France, que,
objetivando prever o porvenir, fórmula estes pres-
ságios, –Sur la pierre blanche75– se constata como a
cultura e a sabedoria não conferem nenhum poder
privilegiado à imaginação. Galión, o personagem
de um episódio da decadência romana evocado
por Anatole France, era um exemplar máximo de
homem culto e sábio de sua época. Porém, este
homem não percebia absolutamente a decadência
de sua civilização. O cristianismo lhe parecia uma
seita absurda e estúpida. A civilização romana a
seu juízo não poderia tramontar, não poderia pe-
74 Escritor francês, é considerado um dos precursores da fic-
ção científica. Previu em seus livros o surgimento das “má-
quinas voadoras”, submarinos e a viagem à Lua
75 Expressão em francês, significa “sobre a pedra branca”.
Título do livro de Anatole France publicado na primeira dé-
cada do século XX.

62
recer. Galión concebia o futuro como uma mera
prolongação do presente. Nos parece por isto, em
seus discursos, lamentável e ridiculamente ausen-
te de inspiração. Era homem muito inteligente,
muito erudito, muito refinado; mas tinha a imen-
sa desgraça de não ser um homem imaginativo.
Daí que sua atitude perante a vida fosse medíocre
e conservadora.
Esta tese sobre a imaginação, o conservadorismo
e o progresso, poderia conduzir-nos a conclusões
muito interessantes e originais. A conclusões que
nos moveriam, por exemplo, a não classificar mais
aos homens como revolucionários e conservado-
res mas sim como imaginativos e sem imaginação.
Distinguindo-os assim, cometeríamos talvez a in-
justiça de bajular demasiadamente a vaidade dos
revolucionários e de ofender um pouco a vaida-
de, ao fim e a cabo respeitável, dos conservadores.
Ademais, às inteligências universitárias e metó-
dicas, a nova classificação lhes pareceria bastante
arbitrária, bastante insólita: Mas, evidentemente,
é muito monótono classificar e qualificar sempre
aos homens da mesma maneira. E, sobretudo, se
a humanidade não encontrou um novo nome aos
conservadores e aos revolucionários, é também,
indubitavelmente, por falta de imaginação.

63
O PROBLEMA
DAS ELITES
7 de janeiro de 1928
Não são poucos os escritores do Ocidente que
reduzem a crise da democracia europeia a um
problema de elites. Saturados de superstições in-
telectuais e de uma ideia exagerada de sua clari-
vidência e desinteresse, esses escritores não põem
em dúvida a existência de tais elites, entendendo-
-as e definindo-as geralmente como uma aristocra-
cia de pensadores e filósofos. O problema consiste
em que não governam nem dirigem os povos. O
poder está nas mãos de políticos ordinários ou
céticos, manejados por uma poderosa plutocra-
cia76. O Estado obedece aos desígnios ambiciosos
e utilitaristas de uma oligarquia financeira que,
por meio da grande imprensa, controla a opinião
pública. A responsabilidade deste mal-estar é atri-
buída pelos seus críticos melancólicos à democra-
cia quantitativa77, à mediocridade parlamentar,
etc. Porém todos esses intelectuais, mais ou me-
nos contemplativos, partem de um viés conserva-
dor que invalida sua especulação aparentemente
desinteressada. Todos miram com horror, retori-
camente dissimulado, o socialismo, à revolução,
ao proletariado. Não são capazes de conceber
– por mera e vulgar relutância conservadora – a
reorganização da Europa e a defesa da civilização
senão dentro dos marcos burgueses. Esta limita-
ção, que é seu drama, não os permite abarcar em
sua integridade o concorrido problema das elites.
Não lhes consente averiguar se as novas elites já
não estariam maturando fora da burguesia e, em
todo caso, contra a burguesia: se as elites visíveis,
atuais, burguesas, não estariam representadas por
esses barões dos bancos e da indústria e por esses
políticos de ambígua tradição parlamentar, tão
supersticiosamente descritos. É lógico propor que
o capitalismo oponha ao proletariado suas melho-

76 A influência ou o poder do dinheiro sobre a sociedade.


77 Ideia de democracia superficial, voltada à grande partici-
pação popular do ponto de vista quantitativo em detrimento
do aspecto qualitativo.

65
res forças. Se não se defende com forças bem esco-
lhidas, com homens mais convencidos e elevados,
é seguramente porque não os possui. O caso do
governo francês, considerado sagaz, bastaria para
desfazer qualquer equívoco. Governa a França há
dois anos um gabinete de antigos premiers78 presi-
dido por um homem a quem Albert Thibaudet79
incluiu entre seus príncipes de espírito e a quem a
burguesia vê como um homem da elite, um aris-
tocrata da democracia. Entre os premiers que o ro-
deiam, encontram-se Herriot80, humanista erudi-
to, democrata sincero, idealista honesto e Briand81
um dos mais comprovados gênios parlamentares
da França contemporânea. Este gabinete de tanta
autoridade política composto por homens direitos
e experimentados não está, no entanto, menos su-
jeito que os anteriores aos interesses da indústria e
do setor financeiro. Por exemplo, uma campanha
de imprensa pode colocá-lo, contra sua intenção,
à beira de uma ruptura com a Rússia. Acaso sa-
beria, um ministério de elite intelectual, resistir
melhor à pressão dos interesses capitalistas? Mais
inverossímil ainda seria um Estado e um capita-
lismo regidos espiritualmente, desde seus gabine-
tes, por três ou quatro austeros catedráticos.
As verdadeiras elites intelectuais operam sobre

78 (Francês) “Primeiro”; como se chamava o primeiro minis-


tro. Na Terceira República Francesa(1870-1940) seu papel era
o de chefe de governo.
79 Escritor francês, ensaísta e crítico literário. Recebeu em
1896 o “Prêmio da Eloquência”.
80 Político francês do Partido Radical. Além de premier, foi
deputado da Assembleia Nacional Francesa e foi prefeito de
Lyon. Destacou-se por suas impressões positivas em suas
viagens à URSS nas décadas de 1920 e 1930.
81 Político francês, ocupou os cargos de primeiro-ministro e
ministro das relações exteriores inúmeras vezes entre 1900 e
1930. Militou no Partido Socialista Francês, membro da Se-
gunda Internacional, e depois do Partido Socialista Unifica-
do, foi expulso deste por aceitar um cargo em 1906 em um
governo burguês.

66
a história revolucionando a consciência de uma
época. O verbo necessita fazer-se carne. O valor
histórico das ideias se mede por seu poder de
princípios ou impulsos de ação. Eis aqui algo que
os desconsolados críticos da democracia parecem
esquecer-se sempre.
É absurdo falar de um drama das “elites”. Uma
elite em estado de ser compadecida, somente por
isso, deixa de ser uma elite. Para a história não
existem “elites” relegadas. A elite é essencialmen-
te criadora.
Por razões óbvias, a elite do capitalismo nos últi-
mos tempos, tem sido principalmente composta
por chefes de empresa, grandes comerciantes, in-
dustriais e financistas.
A burguesia não teve neste período uma elite po-
lítica e intelectual? Sem dúvida, ela teve. Só que,
à medida que se acentuou a decadência de seus
princípios e espírito, essa elite parece destinada a
fornecer intelectuais e políticos ao socialismo. O
fato de que muitos dos maiores estadistas da Eu-
ropa burguesa – Briand, Millerand82, Mussolini,
Masaryk83, Pilsudski84, Vanderverde85, etc. – pro-

82 Militante socialista francês que, aderindo ao social-chau-


vinismo, ocupou os cargos de ministro da guerra da França,
Primeiro-Ministro e Presidente.
83 Político que lutou pela independência tcheca, foi o primei-
ro presidente da Tchecoslováquia.
84 Líder da Polônia de 1918 a 1922 e 1926 a 1935, responsável
pelo restabelecimento da Polônia durante a Primeira Guerra
Mundial, inicialmente com apoio da Alemanha e Áustria-
-Hungria depois, com apoio da Entente como forma de frear
o avanço da Revolução de Outubro. Entre as décadas de 1890
e 1910 militou nas fileiras da social-democracia polonesa, en-
quanto a Polônia ainda seguia sob jugo do czarismo.
85 Chefe do Partido Trabalhista da Bélgica, membro da Se-
gunda Internacional. Durante a Primeira Guerra Mundial
aderiu ao social-chauvinismo ocupando inúmeros cargos no
governo da Bélgica e participando das conferências interna-
cionais pelo governo belga.

67
cedam do socialismo, se deve a atração espiritual
exercida pelo socialismo sobre os homens de mais
sensibilidade política da pequena e média bur-
guesia. Nos países onde o fenômeno capitalista
não alcançou sua plenitude material e moral, a
maioria desses homens sentiu-se irresistivelmen-
te impulsionada a entrar nas filas socialistas, nas
quais militaram pelo menos temporariamente.
Não é uma autêntica elite a que deve seu poder a
um privilégio que ela mesma não conquistou com
suas próprias forças. Os ideólogos da reação, ava-
lentados mais pela derrota do proletariado que
por uma vitória da burguesia na Europa Ociden-
tal aguardam um militar ou caudilho qualquer
que instaure sua ditadura. Se reservam ao papel
de assessorá-lo. Isto os desqualifica bastante como
homens de elite, título que mais legitimamente
corresponderia, ao “providencial” que, por azar,
os içasse eventualmente ao poder sob sua ditadu-
ra.
O que falta para esse tipo de crítica não é, por to-
dos esses sinais, uma “elite” em geral, superior e
alheia a guerra de classes, e sim, uma forte “elite”
burguesa. E mais precisa e lógica, neste plano, re-
sulta a atitude daqueles como Lucien Romier86 e
René Johannet87 que trabalham para forjar os mo-
tores [resorte] ideológicos espirituais de uma gran-
de ofensiva capitalista, sem preocupar-se muito
com os foros da inteligência e do espírito. Romier
propõe o restabelecimento de uma doutrina de or-

86 Foi um eminente intelectual francês. Historiador, jornalis-


ta e político teve uma profícua vida profissional e intelectual,
publicando inúmeras obras sobre questões econômicas e so-
ciais da França. Amigo pessoal do Marechal Philippe Pétain,
exerceu a função de ministro do Estado da França de Vichy
em abril de 1942 e dezembro de 1943 durante ocupação ale-
mã na França.
87 Jornalista e ensaísta francês. Defensor do nacionalismo,
associado com L’Action Française, cunhou o termo naciona-
litarismo.

68
dem e autoridade, manobra com cautela e reserva
política. Johannet, que coloca o problema da elite
nos francos termos da reação burguesa, raciocina
com intransigência e dogmatismo de ideólogo.
Porém ambos convergem no esforço de reavivar e
excitar na burguesia seu instinto e seu orgulho de
classe. Porque – como observa Julien Benda88 – o
burguês, preocupado [abrumado] com as ironias e
zombarias de várias gerações, havia perdido este
orgulho chegando ao ponto de fazer, para se per-
doar ou esquecer seu “burguesismo”, todo tipo de
declarações de amor ao proletariado. “Hoje – diz
Benda – é suficiente pensar no fascismo italiano,
em certo Elogio do Burguês Francês89, em tantas ma-
nifestações do mesmo sentido, para ver que a bur-
guesia toma plena consciência de seus egoísmos
específicos, que os proclama como tais e os venera
como tais, considerando-os ligados aos supremos
interesses da espécie, que se glorifica venerá-los
e erguê-los contra os egoísmos que querem sua
destruição”.
Porém, tanto Romier como Johannet necessitam
indispensavelmente identificar a sorte da civili-
zação com a do capitalismo. Ainda que Romier
em sua enumeração dos tipos de “elite” não se
esqueça do operário, contramestre [jefe de maes-
tranza] ou dirigente sindical que se eleva a essa
categoria, é evidente que considera o problema da
elite como um problema interno e particular da
burguesia. Para Romier e Johannet, a revolução
proletária significaria o império da multidão, da
horda e, portanto, a negação de toda “elite”.
88 Escritor e filósofo francês. Muito conhecido por sua obra
“La Trahison des clercs” que pode ser traduzida como “A
traição dos clérigos” ou “A traição dos intelectuais”. Poli-
ticamente defendeu Dreyfus e criticou L’Action Française,
mas em contraponto defendia a luta em torno dos “valores
eternos”, a verdade, a justiça e a liberdade, em detrimento às
tentações “laicas” de raça, classe, etc.
89 Livro escrito por René Johannet voltado para a burguesia
tomista e católica.

69
A nenhum desses críticos ocorre, obviamente, re-
parar que uma revolução é sempre a obra de uma
elite, de uma equipe, de uma falange de homens
heróicos e superiores, nem que portanto o proble-
ma das elites existe, também, como um problema
interno para o proletariado, com a diferença de
que este, em sua luta, em sua ascensão, vai tempe-
rando e formando dentro de um ambiente místico
e passional e com a sugestão de seus mitos vivos,
seus quadros dirigente. Historicamente há muito
mais possibilidade de que o gênio criador surja no
campo do socialismo do que no campo do capi-
talismo, sobretudo nos países onde não só como
feito espiritual, mas também como feito material
o capitalismo aparece concluído. (Concluído, ape-
sar de conservar o poder político, porque suas
possibilidades de crescimento econômico alcan-
çaram seu limite).
Nenhuma crítica séria e verossímil pode dissimu-
lar a qualidade de elite dos homens da Revolução
Russa. Um burguês ortodoxo, o senador De Mon-
zie90, reconheceu isto sem reservas: “A disciplina
interna é tão bruta – escreve De Monzie – as san-
ções aplicadas são tão violentas, que na verdade
não há aristocracia bolchevique, isto é, elite con-
solidada em posse de privilégios. E no entanto há
uma elite. Isso é inegável. Os viajantes atentos que
visitaram a Rússia depois da revolução exaltam
a qualidade desses estadistas improvisados, cuja
missão era precisamente improvisar um Estado.
Autodidatas formados num longo exílio, pela
experiência dos congressos socialistas, frequen-
90 Iminente figura política e intelectual francesa. Exerceu
inúmeras funções públicas como conselheiro, general, prefei-
to (da cidade de Cahors), deputado, senador, ministro. En-
volveu-se profundamente nos assuntos diplomáticos e, em
1922, fez um apelo ao reconhecimento da União Soviética .
Chefiou a Comissão de Assuntos Russos. Quando foi minis-
tro da Educação e Belas Artes no ano de 1925 foi responsável
por introduzir a disciplina de filosofia no currículo do ensino
médio e se destaca pela promoção do ensino gratuito.

70
tando as intrigas e amarguras cosmopolitas, su-
bitamente se revelaram não individual, mas sim
coletivamente”. De Monzie admite que os difame
[maldiga], “porém não sem admirá-los”. Por sua
parte, Duhamel91 apontou no governo dos Sovie-
tes o primeiro aristocrata russo, que é em sua opi-
nião, Lunatcharski92.
O fracasso da ofensiva socialista na Itália e Alema-
nha se deve em grande parte à falta de uma sóli-
da elite revolucionária. Os quadros dirigentes do
socialismo italiano não eram revolucionários, mas
reformistas, como os da socialdemocracia alemã.
O núcleo comunista estava composto de figuras
jovens, sem profunda ligação com as massas. Para
a revolução estava pronta a quantidade, não esta-
va ainda a qualidade.
As novas elites virão do lado que os intelectuais,
conservadores confessos ou dissimulados, não
queriam que viessem. O Napoleão da Europa de
amanhã, que irá impor o código da nova socieda-
de, sairá das fileiras do socialismo. Porque ao por-
venir lhe cabe realizar, ou melhor, comprovar esta
fórmula: Revolução-Aristocracia.

91 Tudo indica que se trata de Georges Duhamel. Médico,


poeta e escritor francês, ficou famoso ao escrever Civilization
e a Crônica do Pasquier.
92 Foi um veterano militante bolchevique ucraniano, se jun-
tou ainda estudante ao movimento revolucionário. Aderiu ao
bolchevismo e posteriormente realizou o trabalho internacio-
nal do Partido Bolchevique. No período de refluxo do mo-
vimento revolucionário russo, apresenta divergências com
Lênin e os bolcheviques, mas durante a 1ª Guerra Mundial se
reaproximou das posições bolcheviques e no pós-revolução
de outubro assumiu vários cargos na diplomacia, instrução
pública e comissário do povo.

71
A URBE E O
CAMPO
3 de outubro de 1924
Todos os episódios da crise contemporânea de-
nunciam a propagação, dentro da sociedade oci-
dental, de um humor contrário à convivência e à
colaboração. Através desses episódios constata-
mos que o organismo da civilização se fratura e se
desintegra. Os diversos interesses e paixões que
dão vida a uma forma social cessam de tolerar-se
reciprocamente. Se movem, com impulso próprio,
até uma meta própria.
A luta de classes preenche o primeiro plano da cri-
se mundial, porém esta contém, ademais, outros
contrastes e outros conflitos. Cresce, por exemplo,
a desavença entre a urbe e a província, entre a
cidade e o campo. Existem numerosos sinais de
uma azeda discrepância entre o espírito urbano e
o espírito camponês. Os homens do campo ten-
dem atualmente a isolarem-se, a diferenciarem-se.
Se juntam em partidos e facções que opõem à po-
lítica industrial uma política agrária. Em alguns
países - Hungria e Romênia - brotam governos
de raízes e consciência exclusivamente rurais. O
fascismo italiano se compraz por reconhecer-se e
sentir-se provinciano. Mussolini saudou os dele-
gados do último Conselho Nacional Fascista como
homens da província, “da boa, sólida, a quadrada
província”. Os convidou a levar às cidades “mui-
to populosas e, frequentemente, sem tutano”, sua
rudez, sua rusticidade, seu eflúvio e suas energias
agrárias. “Há que fazer do fascismo – disse – um
fenômeno prevalentemente rural. No fundo das
cidades se aninham os resíduos dos velhos par-
tidos, das velhas seitas, dos velhos institutos”. Os
capitães da reação tratam assim de utilizar em seu
favor a ojeriza da província contra a urbe.
A maré camponesa parece, na verdade, movida
por uma vontade reacionária para fins reacioná-
rios. O campo ama demasiadamente a tradição.
É conservador e supersticioso. Conquistam fa-
cilmente seu ânimo a antipatia e a resistência ao

73
espírito herético e iconoclasta do progresso. O na-
cionalismo alemão, como o fascismo italiano, se
abastece de homens na província, nas zonas ru-
rais. A revolução comunista, por enquanto, não
penetrou profundamente nos estratos agrários
da Rússia. Os camponeses a apoiam porque a ela
devem a posse de suas terras, porém, a doutrina
comunista é ininteligível ainda para sua mentali-
dade e inconciliável com sua ambição. Os sovie-
tes têm que dosificar seu radicalismo à atrasada
consciência camponesa. Gorky93 vê no campesina-
to o inimigo da Revolução Russa e suas criações.
Caillaux94, por sua vez, se alarma ante a tendência
dos camponeses da Europa Central a boicotar a
indústria urbana e a reconstruir uma economia
medieval. Homem da metrópole, sem nostalgias
poéticas, teme o renascimento dos tempos do fuso
e da roca.
É certo que esse não é todo o panorama político
agrário. Em outros países, na Bulgária, por exem-
plo, agrários (membros do partidos agraristas95) e
comunistas se confundem em uma mesma mul-
tidão revolucionária. Radich96, o líder dos cam-
poneses iugoslavos, acaba de visitar a Rússia,
atraído por seus homens e seus métodos. Está em
progresso a organização novíssima de uma Inter-

93 Pseudônimo de Alexei Maximovitch Peshkov: Romancista


e dramaturgo russo, considerado um dos fundadores da Es-
cola Realismo Socialista.
94 Político francês, membro do Partido Radical, serviu como
primeiro ministro da França entre 1911 e 1912
95 Os partidos agraristas foram partidos que buscavam re-
presentar os valores dos camponeses proprietários frente
a “corrupção” moral das cidades, a centralização do poder
nas capitais e a pressão financeira dos bancos. Geralmente
se opunham aos socialistas devido à sua defesa ferrenha da
propriedade privada da terra.
96 Líder e deputado pelo Partido Republicano Camponês
da Croácia, à época parte da Iugoslávia, de posição política
agrarista e separatista croata. Foi assassinado dentro do par-
lamento iuguslavo.

74
nacional Camponesa ou Internacional Verde97.
Porém, o espírito revolucionário reside sempre
na cidade. E este feito tem claros motivos históri-
cos. É na cidade onde o capitalismo alcançou sua
plenitude e onde é travada a batalha atual entre a
ordem individualista e a ideia socialista. Berlim,
nas últimas eleições, deu meio milhão de votos
aos comunistas, Paris, trezentos mil. Milão se-
gue sendo a praça forte do proletariado da Itália.
A teoria e prática do socialismo são um produto
urbano. A aspiração pela sociedade coletiva nas-
ce espontaneamente na fábrica, na usina, não na
alcaria [alquería]98. O camponês e o artesão ambi-
cionam a aquisição de uma pequena propriedade
individual. Enquanto a cidade educa o homem
para o coletivismo, o campo excita seu individua-
lismo. No campo se vive demasiado disperso e
individualmente, não é fácil portanto sentir uma
grande, intensa e generosa emoção social. A cida-
de, por sua vez, aloja perenemente um forte afã
de criação. No seu calor se incubaram as atuais
correntes políticas. O próprio fascismo nasceu em
Milão, uma cidade industrial e opulenta. Suas raí-
zes encontraram logo um solo mais propício na
província, porém seu gérmen foi genuinamente
citadino.
Falar de cidade revolucionária e província rea-
cionária seria, porém, aceitar uma classificação
demasiado simplista para ser exata. Na cidade e
no campo a sociedade se divide em duas classes.
A beligerância entre ambas as classes tende a ser
menor na província, porém, sua oposição recípro-
ca é idêntica a da cidade. Se não existe muita so-
97 Também conhecida como Krestintern, foi uma organiza-
ção camponesa internacional que existiu entre 1923 e 1938,
dirigida pela Comintern, e que contou também com a partici-
pação de alguns partidos e organizações agraristas.
98 Pequenas povoações rurais da antiga Al-Andalus, simi-
lares às villae (vilas) romanas. No sentido empregado pelo
autor considera-se como “aldeia”.

75
lidariedade entre as reivindicações dos trabalha-
dores agrários e os operários urbanos é porque,
em parte, o socialismo se descuidou da conquista
do campo. Finalmente, em alguns países, o capi-
talismo não colocou uma resistência intransigente
às reivindicações dos camponeses. Deixou a eles
a propriedade das terras. Ao capitalismo bastou a
posse das cidades, dos bancos, das fábricas e dos
mercados para dominar toda a economia de um
país. Assim pôde, então, deixar aos camponeses a
ilusão de serem os donos do campo.
O que distingue e separa a cidade do campo não
é, por fim, a revolução e nem a reação. É, sobre-
tudo, uma diferença de mentalidade e de espírito
que emana de uma diferença de função. No pa-
norama de uma sociedade a cidade é o cume e o
campo a planície. A cidade é a sede da civilização.
À medida que a civilização se aperfeiçoa, se acen-
tua as distâncias espirituais e psicológicas entre o
homem da urbe e o homem do agro. O homem
da cidade vive de pressa. (A velocidade é uma in-
venção urbana, uma coisa moderna). O camponês
vive monótona e lentamente. Seu trabalho e sua
produção são governados pelas estações. Arada
por um boi ou pela máquina a terra dá no mesmo
tempo e na mesma estação suas espigas. A urbe e
o rural produzem duas distintas psicologias, dois
ânimos distintos.
Segundo Spengler99 – a quem não se pode hoje es-
quecer em nenhuma tentativa de interpretação da
história –, a última etapa de uma cultura é urbana
e cosmopolita. “A urbe mundial – diz Spengler
– significa o cosmopolitismo ocupando o posto
99 Historiador e filósofo alemão, atuante no movimento con-
servador alemão nas décadas de 1910 a 1930, conhecido por
escrever o livro “A decadência do ocidente”, no qual sugeriu
uma abordagem cíclica acerca das culturas e civilizações, nas
quais elas teriam seu nascimento, como cultura; seu apogeu;
e por fim seu declínio, tornando-se civilização. Suas ideias
tiveram forte adesão no nazismo.

76
da ‘terrinha’[terruño]100, o sentido frio dos feitos
substituindo a veneração ao tradicional, significa
a irreligião científica como petrificação da anterior
religião da alma, a ‘sociedade’ no lugar do Estado,
os direitos naturais no lugar dos direitos adquiri-
dos”
A cidade foi injustamente tratada e escassamente
compreendida pelos literatos românticos e neo-
-românticos. Todos que temos respirado intensa e
avidamente a atmosfera da cidade temos lido por-
ventura a Cidade e as Serras101 de Eça de Queiroz,
porém, é difícil que alguém se solidarize, neste
tempo, com sua ingênua tendência. Eça de Quei-
roz, nesse romance, não sentiu nem entendeu a
cidade. Seu personagem, seu Jacinto, é um fidalgo
da província incapaz de se assimilar ao verdadei-
ro espírito urbano. Sua vida, das demais dramatis
personae102, não é senão uma vida ociosa, aborre-
cida, elegante e supérflua. E esta não é a vida da
cidade. Da cidade o pobre Jacinto não viu senão
a non chalance103, o prazer, o enfado, o conforto e
o tédio. Era natural, portanto, que considerasse,
muito melhores e mais poéticos, o queijo fresco e

100 (Espanhol) “Terrunho”. Referente a ideia de terra natal, à


qual há vínculo sentimental.
101 Romance do escritor português Eça de Queiroz no qual,
através da história do aristocrata Jacinto de Tormes, são con-
frontados a cidade “super civilizada” (Paris) com as Serras(
a vila rural de Tormes). Na primeira vigora o progresso tec-
nológico e a fartura material, contudo espiritualmente encon-
tra-se perdida na futilidade, tédio, luxúria e em um orienta-
lismo caricato; enquanto em Tormes, em que pese, a miséria
material e a ignorância das pessoas, a vida é pacata e virtuo-
sa. Ao final a conduta dessa personagem tenta conciliar os
dois mundo levando a tecnologia a Tormes, melhorando a
vida dos camponeses em suas terras.
102 (Latim): “personagens principais.”
103 (Francês) “Indiferença”. Apesar dos dois radicais da
expressão terem sido separados, a grafia mais empregada é
nonchalance.

77
o cândido pão da aldeia. Nem a Hugo Stinnes104,
nem a Pierpont Morgan havia acontecido o mes-
mo.
Até que ponto se pode prever o porvenir da ci-
dade? Existem alguns presságios de sua decadên-
cia. Anatole France prevê um deslocamento dos
homens em direção ao campo. A urbe gigantes-
ca é, em seu juízo, uma consequência da ordem
capitalista. O advento do coletivismo, que distri-
buirá as funções e as coisas com mais equidade
sobre a superfície da terra, deterá o crescimento
mastodôntico das cidades. Outras previsões são
mais pessimistas. Anunciam implicitamente que
a cidade será reabsorvida pelo campo inumerável
e anônimo.
Porém, esses presságios são sem dúvidas exage-
rados. A cidade que adapta os homens à convi-
vência e à solidariedade não pode morrer. Seguirá
alimentando-se de uma rica seiva rural. O campo,
por sua vez, seguirá encontrando nela seu fórum,
sua meta e seu mercado.
E o ideal para os homens será, por muito tempo,
um tipo de vida um pouco urbana e um pouco
camponesa.

104 Dono de um conglomerado, que cresceu enormemente


com negócios efetivados durante a Primeira Guerra Mundial.
Atuou em diversos setores da economia. Muito ativo e in-
fluente na política alemã e europeia foi um notório anticomu-
nista. Chegou a comprar órgãos de imprensa que passariam
difundir o discurso nacionalista que compunha a opinião
pública alemã no período imediatamente anterior à ascensão
nazista.

78
79
NACIONALISMO E
INTERNACIONALISMO
10 de outubro de 1924
Os limites entre o nacionalismo e o internaciona-
lismo não estão ainda muito esclarecidos apesar
da convivência já antiga de ambas as ideias. Os
nacionalistas condenam integralmente a tendên-
cia internacionalista. Porém, na prática, já fazem
algumas concessões às vezes dissimuladas, às ve-
zes, explícitas. O fascismo, por exemplo, colabora
na Sociedade das Nações105. Ao menos, não deser-
tou desta sociedade, que se alimenta do pacifismo
e do liberalismo wilsonianos106.
Acontece, na verdade, que nem o nacionalismo e
nem o internacionalismo seguem uma linha or-
todoxa nem intransigente. Todavia, não se pode
apontar matematicamente onde se encerra o na-
cionalismo e onde se inicia o internacionalismo.
Elementos de uma ideia, andam, por vezes, mes-
clados a elementos de outras.
A causa dessa obscura demarcação teórica e prá-
tica é bem clara. A história contemporânea nos
ensina a cada passo que a nação não é uma abs-
tração, não é um mito, porém, que a civilização, a
humanidade, tampouco o são. A evidência da rea-
lidade nacional não é contrária, não refuta a evi-
dência da realidade internacional. A incapacidade
de compreender e admitir essa segunda e superior

105 Sociedade das Nações ou Liga das Nações foi uma or-
ganização internacional existente entre 1919 e 1942 que pre-
cedeu a atual ONU em suas incumbências. Foi criada pelo
Tratado de Versalhes, e como foi incapaz de reunir as princi-
pais potências (os EUA e URSS não fizeram parte da organi-
zação) e de prevenir o revanchismo dos países derrotados na
Primeira Guerra Mundial, foi dissolvida na Segunda Guerra
Mundial.
106 Referente a Woodrow Wilson, presidente dos EUA en-
tre 1913 e 1921, proponente de 14 pontos para a paz para a
Primeira Guerra Mundial. Esses consistiam basicamente em
metas idealistas como a ausência de tratados secretos, livre-
-comércio, livre-navegação, autodeterminação para nações e
redução conjunta dos armamentos pelas potências que foram
amplamente ignoradas pelas potências da Entente, inclusive
o próprio EUA.

81
realidade é uma simples miopia, uma limitação
orgânica. As inteligências envelhecidas, mecani-
zadas na contemplação de uma antiga perspecti-
va nacional, não sabem distinguir a nova, vasta e
completa perspectiva internacional. A repudiam
e a negam porque não podem se adaptar a ela. O
fundamento desta atitude é o mesmo que rechaça
automática e aprioristicamente a física einsteinia-
na.
Os internacionalistas – com exceção de alguns
ultraístas, alguns românticos, pitorescos e inofen-
sivos – se comportam com menos intransigência.
Como os relativistas perante a física de Galileu,
os internacionalistas não contradizem toda a teo-
ría nacionalista. Reconhecem que corresponde à
realidade, porém, apenas em uma primeira apro-
ximação. O nacionalismo apreende uma parte da
realidade, nada mais que uma parte. A realidade é
muito mais ampla, menos finita. Em uma palavra,
o nacionalismo é válido como afirmação, mas não
como negação. No capítulo atual da história tem
o mesmo valor do provincialismo, do regionalis-
mo em capítulos passados. É um regionalismo de
novo estilo.
Por que se exacerba, porque se hiperestesia, em
nossa época, este sentimento, sendo que sua velhi-
ce deveria fazê-lo voltar um pouco mais passivo e
menos ardente? A resposta é fácil. O nacionalismo
é uma face, um lado do extenso fenômeno reacio-
nário. A reação se chama, sucessiva ou simulta-
neamente, chauvinismo, fascismo, imperialismo,
etc. Não é por azar que os monarquistas de L’Ac-
tion Française107 são, ao mesmo tempo, agressiva-
107 Movimento francês orleanista (monarquista partidário
da dinastia Orleàns) de caráter contrarrevolucionário, antii-
luminista, antissemita, católico e de extrema direita surgido
em 1898, cujo principal ideólogo foi Charles Maurras. Este
pensador, assim como seu movimento, exercerão forte in-
fluência nos movimentos fascistas e integralistas posterior-
mente.

82
mente jingoísmo108 e militaristas. Se opera atual-
mente um complicado processo de ajustamento,
de adaptação das nações e seus interesses a uma
convivência solidária. Não é possível que esse
processo se cumpra sem uma resistência extre-
ma de mil paixões centrífugas e de mil interesses
secessionistas. A vontade de dar aos povos uma
disciplina internacional tem que provocar uma
ereção exasperada do sentimento nacionalista que
romantica e anacronicamente peleja [guerría] por
isolar e diferenciar os interesses da própria nação
dos do resto do mundo.
Os fautores dessa reação qualificam o internacio-
nalismo como utopia. Porém, evidentemente, os
internacionalistas são mais realistas e menos ro-
mânticos do que parecem. O internacionalismo
não é unicamente uma ideia, um sentimento, é so-
bretudo um feito histórico. A civilização ociden-
tal internacionalizou, solidarizou a vida da maior
parte da humanidade. As ideias, as paixões, se
propagam veloz, fluída e universalmente.
Cada dia é maior a rapidez com que se difundem
as correntes de pensamento e da cultura. A civi-
lização deu ao mundo um novo sistema nervoso.
Transmitida a cabo, as ondas de rádio, a impren-
sa, etc. toda grande emoção humana percorre ins-
tantaneamente o mundo. O hábito regional decai
pouco a pouco. A vida tende a uniformidade, a
unidade. Adquire o mesmo estilo em todos os
grandes centros urbanos: Buenos Aires, Quebec,
Lima, copiam a moda de Paris. Seus alfaiates e
modistas imitam os modelos de Pequim. Essa so-
lidariedade, essa uniformidade, não são exclusi-
vamente ocidentais. A civilização europeia atrai,
gradualmente, a sua órbita e os seus costumes,
todos os povos e todas as raças. É uma civilização

108 Ufanismo acompanhado de uma política externa violen-


ta.

83
dominadora que não tolera a existência de nenhu-
ma civilização concorrente ou rival. Uma de suas
características essenciais é sua força de expansão.
Nenhuma cultura conquistou jamais uma exten-
são tão vasta da Terra. O inglês que se instala
em um rincão da África leva para lá o telefone, o
automóvel e o polo109. Junto com as máquinas e
as mercadorias se difundem as ideias e emoções
ocidentais. Aparecem estranha e insólitamente
vinculadas à história e ao pensamento dos povos
mais diversos.
Todos esses fenômenos são absoluta e inconfun-
divelmente novos. Pertencem exclusivamente a
nossa civilização que, desde este ponto de vista,
não se parece com nenhuma das civilizações an-
teriores. E com esses feitos se coordenam outros.
Os estados europeus acabam de constatar e reco-
nhecer, na conferência de Londres, a impossibili-
dade de restaurar sua economia e suas respectivas
produções, sem um pacto de assistência mútua.
Por causa de sua interdependência econômica, os
povos não podem, como antes, atacar-se e despe-
daçar-se impunemente. Não por sentimentalismo,
mas sim por demanda de seu próprio interesse.
Os vencedores têm que renunciar ao prazer de sa-
crificar os vencidos.
O internacionalismo não é uma corrente novíssi-
ma. Há mais de um século, aproximadamente, se
nota na civilização europeia a tendência a prepa-
rar uma organização internacional da humanida-
de. Tampouco é o internacionalismo uma corrente
exclusivamente revolucionária. Há um internacio-
nalismo socialista e um internacionalista burguês,
o que não tem nada de absurdo nem de contradi-
tório. Quando se averigua sua origem histórica, o
internacionalismo resulta de uma emanação, uma
consequência da ideia liberal. A primeira grande
109 Esporte à cavalo, muito popular entre as classes abasta-
das britânicas.

84
incubadora dos germes internacionalistas foi a es-
cola de Manchester110. O estado liberal emancipou
a indústria e o comércio dos entraves feudais e ab-
solutistas. Os interesses capitalistas se desenvol-
veram independente do crescimento da nação. A
nação, finalmente, não podia contê-los dentro de
suas fronteiras. O capital se desnacionalizava, a
indústria se lançava à conquista dos mercados es-
trangeiros, a mercadoria não conhece fronteiras e
pugnava por circular livremente através de todos
os países. A burguesia se fez, então, livre-cambis-
ta. O livre câmbio, como ideia e como prática, foi
um passo ao internacionalismo no qual o proleta-
riado reconhecia já um de seus fins, um de seus
ideais. As fronteiras econômicas se debilitaram. E
esse acontecimento fortaleceu a esperança de anu-
lar fronteiras políticas.
Só a Inglaterra – o único país onde se realizou ple-
namente a ideia liberal e democrática, entendida e
classificada como ideia burguesa, chegou ao livre-
-câmbio. A produção, por causa de sua anarquia,
padeceu de uma grave crise que provocou uma
reação contra as medidas livre-cambistas. Os es-
tados voltaram a fechar as portas para produção
estrangeira, para defender sua própria produção.
Veio um período protecionista, durante o qual
se reorganizou a produção sobre novas bases. A
disputa dos mercados e das matérias primas ad-
quiriu um evidente caráter nacionalista. Porém, a
função internacional da nova economia voltou a
encontrar sua expressão. Se desenvolveu gigan-
110 Escola de Manchester (também chamada de Capitalismo
de Manchester, Liberalismo de Manchester e Manchesteris-
mo) foi um movimento político, econômico e social inglês do
século XIX que se caracterizou pela defesa do livre merca-
do, através da retórica social, apontando seus presumíveis
benefícios sociais, como a redução dos preços dos produtos.
Sua atividade de maior repercussão foi a organização da Liga
contra as Leis de Cereais (Anti-Corn Law League), que mobi-
lizou a população contra as elevadas tarifas de importação de
cereais, que beneficiavam a aristocracia fundiária britânica.

85
tescamente a nova forma do capital, o capital fi-
nanceiro, as finanças internacionais, aos seus ban-
cos e consórcios confluíam quantias de diversos
países para serem invertidos internacionalmente.
A guerra mundial cindiu parcialmente esse tecido
de interesses econômicos. Logo a crise pós-bélica
revelou a solidariedade econômica das nações, a
unidade moral e orgânica da civilização.
A burguesia liberal, hoje como ontem, trabalha
por adaptar suas formas políticas à nova reali-
dade humana. A Sociedade das Nações é um es-
forço, vão, certamente, no sentido de resolver a
contradição entre a economia internacionalista e
a política nacionalista da sociedade burguesa. A
civilização não se resigna a morrer neste choque,
desta contradição. Criam-se, por isso, todos os
dias, organismos de comunicação e de coordena-
ção internacionais. Afora as duas internacionais
operárias, existem outras internacionais de diver-
sas ordens. A Suíça abriga as “centrais” de mais de
oitenta associações internacionais. Paris foi, por
um período, não faz muito tempo, a sede de um
congresso internacional de professores de dança.
Os professores discutiram ali, amplamente, seus
problemas em múltiplos idiomas. Os unia, acima
das fronteiras, o internacionalismo do fox-trot111 e
do tango.

111 Dança de salão surgida na década de 1910 que alcançou


sucesso internacional nas décadas de 1920 e 1930, sendo as-
sociada ao ritmo do jazz.

86
87
ANEXO I

CARTA DE
MARIÁTEGUI
A SAMUEL
GLUSBERG
30 de abril de 1927
Lima, 30 de abril de 1927
Senhor dom Samuel Glusberg112,
Buenos Aires
Muito estimado companheiro:
Lhe rogo que me desculpe o atraso destas linhas.
Queria responder sem demora sua agradável
mensagem de amizade e simpatia. Mas faz algum
tempo que me vejo forçado a negligenciar qua-
se completamente minha correspondência. Te-
nho uma saúde instável. Me salvei há três anos
da morte ao custo de uma amputação e até agora
sofro as consequências dessa crise que me deixou
mutilado e enfermo. Por sorte, há poucos meses,
estou melhorando. Meu trabalho, no entanto, ain-
da está além de minhas forças.
Recebi os livros que você me enviou. Lhe agrade-
ço o obséquio. Tenho grande estima por seus au-
tores, Horacio Quiroga e Sanín Cano. Sobre am-
bos, dirá algo Amauta, a revista que dirijo e que
regularmente lhe enviamos.
Estou politicamente no polo oposto ao de Lugo-
nes113. Sou revolucionário. Mas creio que entre os
homens de pensamento claro e uma posição defi-
nida é fácil se entender e apreciar, embora com-
batendo-se. Sobretudo combatendo-se. O setor
político com o qual não me entenderei nunca é o
outro: o do reformismo medíocre, o do socialismo
112 Pseudônimo de Enrique Espinoza, escritor e editor ju-
deu-moldávio que emigrou para América e viveu a maior
parte de sua vida no Chile e Argentina. Foi fundador da re-
vista literária Babel e manteve uma longa correspondência
com Mariátegui.
113 Escritor argentino, precursor do modernismo em caste-
lhano. Militou em sua juventude em círculos anarquistas e
socialistas, tendo rompido com este nos fins da década de
1910, com sua adesão ao nacionalismo radical. Na década de
1920 aproximou-se do fascismo, contudo mantendo discor-
dâncias quanto ao antisemitismo. Suicidou-se em 1938.

91
domesticado, o da democracia farisaica. Ademais,
se a revolução exige violência, autoridade, disci-
plina, estou a favor da violência, da autoridade,
da disciplina. Aceito-as em bloco, com todos os
seus horrores, sem reservas covardes. Em Lugo-
nes admirei sempre ao artista, ao pensador que se
expressa sem equívoco e sem oportunismo. Ideo-
logicamente estamos em campos adversos. Me
aflige que ele fortaleça os conservadores com seu
nome e com sua ação. Embora seja sempre uma
vantagem encontrar-se com adversários de sua
estatura.
Estou anexando uma cópia de um artigo que pu-
bliquei sobre Rahab de Waldo Frank. Com o úl-
timo número de Amauta vai o artigo que escrevi
para o Boletim Bibliográfico da Universidade de
Lima. Foi reproduzido pelo Repertório America-
no e outros jornais.
Se eu puder servir para ajudá-lo a divulgar as
obras de sua editora em Lima, envie-as para mim
como quiser. Podemos estabelecer o intercâmbio
com os livros que edita Minerva.
Amauta lhe oferece suas páginas.
E tenho o prazer de anuir a você com os sentimen-
tos mais devotados, meu querido companheiro.
José Carlos Mariátegui.

92
93
ANEXO II

O CREPÚSCULO
DA
CIVILIZAÇÃO
16 de dezembro de 1922
Máximo Gorki, em um emocionante artigo, nos
falava há pouco do “fim da Europa” E esta não é
uma frase de literato. É uma realidade histórica.
Estamos assistindo, verdadeiramente, ao fim des-
ta civilização. E como esta civilização é essencial-
mente europeia, seu fim é, de certo modo, o fim
da Europa.
Nossa geração, impregnada ainda da ideia de um
progresso sempre ascendente, sem soluções de
continuidade, não pode perceber nem compreen-
der facilmente essa realidade histórica. Não pode
conceber que esta civilização, tão potente e tão
maravilhosa, não seja também infinita e imperecí-
vel. Para ela, esta civilização não é “uma civiliza-
ção”, é “a Civilização” com letra maiúscula
Porém a filosofia contemporânea corrói ativamen-
te essa miragem. Oswald Spengler, um dos pensa-
dores mais originais e sólidos da Alemanha atual,
em um livro notável, desenvolve a tese de que “o
fenômeno mais importante da história humana é
o nascer, florescer, declinar e morrer das Cultu-
ras” (Spengler não diz Civilizações, mas Cultu-
ras). Toda cultura teve suas características econô-
micas, políticas, estéticas e morais absolutamente
próprias. Toda cultura se alimentou de seu pró-
prio pensamento e de sua própria fantasia. Toda
Cultura, depois de um período de apogeu, encer-
rada sua missão, decaiu e pereceu. E toda Cultura,
por sua vez, teve como a nossa, a ilusão de sua
eternidade. Esta ilusão, por outro lado, constituiu
sempre um elemento moral indispensável de seu
desenvolvimento e de sua vitalidade. E, se come-
ça a fraquejar em nossa Civilização, minada pelo
pensamento relativista, é porque nossa civilização
se aproxima do seu ocaso.
Esse é, precisamente, um dos sintomas de deca-
dência dessa Cultura. Um sintoma sutil, porém
transcendental. Um sintoma expressivo nada me-

95
nos que da crise das concepções filosóficas sobre
as quais repousa essa civilização. Outros sinto-
mas, mais perceptíveis e mais imediatos são a cri-
se econômica e a crise política.
Política e economicamente, a sociedade europeia
oferece o espetáculo de uma sociedade em deca-
dência. Cada um dos quatros anos posteriores ao
armistício, em vez de aportar a solução dos pro-
blemas da paz, se respirava em Europa uma at-
mosfera mais otimista que agora. Não há Estado
europeu, vencedor ou vencido, para o qual a si-
tuação não seja pior que há quatro anos.
Os países vencidos caíram na ruína, na prostra-
ção, na desordem que todo o mundo contempla.
Áustria, a consequência da vivissecção do antigo
império austríaco, mutilada, empobrecida, exsan-
guinada, carece dos meios de vida. Sua anexação
a um estado limítrofe é sua única esperança, seu
único caminho. Em Viena reina uma miséria apo-
calíptica. As pessoas perecem de fome nas ruas.
Eu vi cair de inanição uma mulher consumida,
espectral. Hungria e Bulgária dispõem de mais re-
cursos que Áustria para alimentar sua população,
mas têm arruinada sua economia e depreciada
sua moeda. Em Budapeste mesmo, onde não se
sente a miséria que em Viena, me contaram que
há gente que come somente duas vezes por sema-
na. E Alemanha, finalmente, parece ameaçada de
uma miséria análoga. A população alemã vê em-
pobrecer cada vez mais sua condição de vida. O
orçamento das famílias da classe média e da classe
proletária é um orçamento de fome. As indústrias
alemãs trabalham, produzem e exportam abun-
dantemente à revelia da miséria de seus emprega-
dos e operários. E a situação dos países vencedo-
res, se não é igualmente desesperadora, tampouco
tende a se normalizar. Inglaterra tem paralisada
uma parte de sua atividade industrial. O número
de desocupados ascende a quase dois milhões. A

96
questão irlandesa segue praticamente sem solu-
ção. A vitória dos turcos sobre os gregos infringiu
um golpe à dominação britânica em Oriente. E
aumentou a ameaça de uma insurreição islâmica.
França está sobrecarregada pelo déficit de seu or-
çamento que passa de quinze milhões de francos.
Como este déficit é coberto com títulos do tesou-
ro, ou seja, com créditos internos, a dívida pública
francesa cresce fantasticamente. O serviço desta
dívida reclamará somas cada vez maiores que
manterão o desequilíbrio do orçamento. E, dentro
deste caos fazendário, França é requisitada por In-
glaterra para iniciar o pagamento dos valores da
dívida de guerra. França pretende extrair de Ale-
manha os bilhões necessários para reconstrução
das províncias devastadas e o convalescimento de
sua fazenda. Porém Alemanha é insolvente. Sua
insolvência aumentará à medida que se aumen-
te a desvalorização do marco. Itália também está
economicamente desequilibrada. Seu déficit, não
obstante às economias inauguradas, é de cinco bi-
lhões de liras e não há perspectivas de que dimi-
nua. Ao contrário, há perspectivas de uma nova
carga fiscal: o serviço das dívidas de guerra britâ-
nicas e americanas. Ademais, Itália está devorada
pela guerra civil. Fascistas e socialistas revivem
nas cidades italianas as lutas medievais de guel-
fos e gibelinos114 O fascismo substituiu o Estado
na ação contra-revolucionária e acelerou assim o
desprestígio e a decadência deste. Os velhos parti-
dos democráticos falam de reorganizar e restaurar
a surrada autoridade do Estado. Mas o fascismo
reclama para si o governo. E a velha democracia

114 Foram dois partidos existentes nos estados da Itália cen-


tral, particularmente em Florença, que, nos séculos XII e XIII
se enfrentaram em sucessivas guerras civis. Resumidamente
a disputa se origina em distintas fidelidades no conflito su-
cessório do Sacro-Império Romano Germânico (que governa-
va nominalmente a Itália), na qual os guelfos eram partidá-
rios do poder Papal enquanto os gibelinos eram partidários
do Sacro-Imperador.

97
não pode prescindir dos seus serviços. A desmo-
bilização, o desarme do fascismo, traria uma ime-
diata contraofensiva revolucionária.
Do outro lado, a situação dos países vencedores
está vinculada à situação dos países vencidos. A
experiência dos quatro últimos anos prova que
não é possível a coexistência de uma Europa
Ocidental normalizada e restabelecida e de uma
Europa Central oprimida e famélica. A unidade
econômica da Europa se opõe à existência síncro-
na da normalidade e dos casos. O perigo de ban-
carrota alemã é, por isso, um perigo de bancarrota
europeia.
Alguns estadistas da Europa vencedora com-
preendem esta verdade. Esses estadistas, Nitti,
Caillaux, Keynes – em quem o político prevale-
ce sobre o homem de estudo – , creem, natural-
mente, que ainda há remédio para essa crise. Mas,
enquanto suas páginas que descrevem a crise são
uma clarividência e de uma robustez máximas,
suas páginas que sinalizam as soluções são me-
nos seguras e persuasivas. Seus livros deixam a
imprecisão de que tocam a realidade em sua parte
crítica, porém não em sua parte construtiva.
Existe um programa de reconstrução europeia. É
um programa de colaboração e de compromisso,
de um lado entre os estados vencedores e os esta-
dos vencidos e, de outro lado, entre classes sociais
antagônicas. Tende, em suma, a estabelecer uma
transição entre a velha ordem de coisas e a ordem
de coisas nascente. E, na intenção de alguns de
seus patrocinadores, tende a evitar que uma tran-
sição brusca de um regime para o outro destrua a
riqueza material, o progresso técnico, criados pela
sociedade capitalista. A tal programa, aderem não
só os elementos mais iluminados da burguesia,
como também os elementos mais moderados do
socialismo, cuja colaboração governamental seria

98
necessária para aplicá-lo.
Mas só na Inglaterra, que é por excelência o país
das transformações graduais e pacíficas, este pro-
grama tem probabilidade de ser levado a cabo. A
França ainda está muito distante dele. O demons-
tra claramente o fato de que o político que o pre-
coniza, Caillaux, seja ainda um político exilado
da política e até do território francês. A Itália está
mais próxima a essa política. Nitti conserva algu-
ma influência no parlamento italiano. Em torno de
um governo seu, poderiam unir-se os populares115
e os socialistas de direita. Mas um governo des-
ta natureza teria que ser um governo antifascista.
Um governo que provocaria a insurreição do fas-
cismo. E que, portanto, não é um governo prová-
vel. Os fascistas têm por agora mais chance116 de
influência no governo, cujo predomínio na políti-
ca italiana multiplicaria, evidente, os gérmens de
guerra e de desordem na Europa. O fascismo, que
aspira apoderar-se do governo da Itália, é um mo-
vimento ultranacionalista. Sua doutrina política
não se diferencia da velha doutrina liberal, senão
por sua delirante literatura nacionalista.
E acontece, sobretudo, algo mais grave. Que a
França, posta a escolher entre uma hipotética ruí-
na europeia e uma segura reconstrução alemã,
opta pela primeira. E acontece que, como escrevi
em um artigo recente, os estadistas franceses têm
uma mentalidade demasiado reacionária para
aceitar que, por culpa de sua política, a civilização
capitalista corre perigo de morte.
E, no fundo, têm razão. Não é o imperialismo
115 Partido Popular Italiano, de corrente democrata-cristã,
fundado pelo padre Luigi Sturzo com apoio do Vaticano em
1919 para fazer frente ao crescimento do socialismo. Mais tar-
de alguns de seus membros compuseram o governo fascista
em 1922, e em 1926 foi dissolvido pela instauração do unipar-
tidarismo fascismo.
116 Grifo do autor.

99
francês que faz vacilar a Europa. O imperialismo
francês é gerado pela decadência europeia. É um
sintoma da crise. E o mesmo vale para a impossi-
bilidade em que se encontram as potências ven-
cedoras de reunir-se em torno de um programa
comum. Considerando isolada e superficialmente
essas dificuldades, pensa-se que eliminando-as a
crise se solucionaria com facilidade. Mas experi-
mentalmente se constata que não é possível elimi-
ná-la porque são as expressões, os efeitos da crise
mundial e não as causas desta.
O “fim da Europa” parece, portanto, inevitável.
Esta civilização contém o embrião de uma civi-
lização nova. E, como todas as civilizações, está
destinada a se extinguir. O programa dos refor-
mistas – reformistas da burguesia e reformismo
do socialismo – é impedir sua ruína mediante um
compromisso entre a sociedade velha e a socieda-
de nova. (Esta é outra manifestação da decadência
e da decrepitude da sociedade velha. Um regime
que pactua com a revolução é um regime que se
sente vencido por ela).
Mas antes que a sociedade nova se organize, a
quebra da sociedade atual precipitará a humani-
dade a uma era escura e caótica. Assim como se
apagou Viena, festiva luz da Europa de avant-
-guerre117, se apagará mais tarde Berlim. Se apa-
garão Milão, Paris e Londres. E, último e grande
foco desta civilização, se apagará Nova York. A
tocha da Estátua da Liberdade será a última luz
da civilização capitalista, da civilização dos arra-
nha-céus, das usinas, dos trusts, dos bancos, dos
cabarés e da jazz band118.

117 (francês) Pré-Guerra..


118 (inglês) Banda de jazz.

100
101
Este livro foi composto na fontes, Book Antiqua 9/11 e Baskerville
BT 14/27. Impressão realizada em papel Offset 90g/m². Capa em
papel supremo 300g/m². Impresso na Gráfica Formato.

Belo Horizonte, Brasil, Setembro de 2022

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