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VI ENIPAC | 23 A 27 DE OUTUBRO | JOINVILLE | UNIVILLE

ENCONTRO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM PATRIMÔNIO CULTURAL


PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE
Local: Joinville | Univille
Data: 23 a 27 de outubro

INSCRIÇÕES
https://enipac2023.com.br/

REALIZAÇÃO
Programa em Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille
Curso de História da Univille
Laboratório de História Oral da Univille (LHO).

PATROCÍNIO
Programa em Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille e ANPUH/SC.

ACESSÓRIA TÉCNICA
Catarina Kortmann Osik (Assessoria de Eventos da Univille).

SECRETARIA DO EVENTO
Anthonia Voss Sell, Antonio José Fernandes Ricardo, Ana Gabriela Cardoso, Ana Gabriela Cardoso, Bianca
Beatriz Lourenço Melatto, Eliandro Jaques Gonçalves, Eloyse Caroline Davet, Evelyn de Jesus Jeronimo,
Guilherme José Moraes, Ian Pogan, Ketlyn Cristina da Silva Alves, Matheus José Hamann, Rhuan Carlos
Fernandes, Adelaide Graeser Kassulke, Amanda Gassenferth, Ana Carla Jacintho, André Marcos Vieira
Soltau, Angela Luciane Peyerl, Anne Elise Rosa Sotto, Bruna de Souza Medina, Cladir Gava, Daniele Cristina
Mendes Beltramini, Jaqueline Almeida Camargo, Juliana Rossi Gonçalves, Louine Henrieth de Moura Correia,
Luiz Fernando Klug, Marília Garcia Boldorini, Roberta Fernandes Buriti, Daniani Schons da Silva, Jonatan
Gomes dos Santos, Daniele Claudia Miranda, Fernanda Dalonso, Grasiéle Aparecida da Costa Ferreira Peters,
Gabriella de Souza Madeira Alves, Marylene Santos Rodrigues, Murilo Ristow Catarina, Tayna Vicente,
Lucas Jair Petroski.

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO
Ilanil Coelho; Roberta Barros Meira; Ian Pogan; Eloyse Caroline Davet; Lucas Jair Petroski.
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL:
TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

COMISSÃO ORGANIZADORA
Anthonia Voss Sell
Daniela Pistorello
Dione da Rocha Bandeira
Eloyse Caroline Davet
Fernanda Dalonso
Fernando Cesar Sossai
Ian Pogan
Ilanil Coelho
Louine H. de Moura Correia
Lucas Jair Petroski
Mariluci Neis Carelli
Mariza Carolina Menegaro
Raquel Alvarenga Sena Venera
Roberta Barros Meira

COMISSÃO CIENTÍFICA
Cleusa Maria Gomes Graebin
Cristina Meneguello
Daniela Pistorello
Dione da Rocha Bandeira
Euler Renato Westphal
Fernando Cesar Sossai
João Carlos de Melo Junior
Ilanil Coelho
Mariluci Neis Carelli
Paulo Peixoto
Raquel Alvarenga Sena Venera
Roberta Barros Meira
PRODUÇÃO EDITORIAL
Editora da Univille

COORDENAÇÃO GERAL
Ilanil Coelho

PRODUÇÃO GRÁFICA / DIAGRAMAÇÃO


Ian Pogan
Lucas Jair Petroski
Roberta Barros Meira

ISBN
978-65-87142-00-5

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Univille

E56a Encontro Internacional Interdisciplinar em Patrimônio Cultural – ENIPAC (6.


: 2023 : Joinville, SC)
Anais do VI ENIPAC: Patrimônio cultural: trabalho, memória e ambiente
/ organizadores: Ilanil Coelho... [et al.] – Joinville, SC : UNIVILLE, 2023.

293 p. : il.; 30 cm

1. Patrimônio cultural. 2. Memória social. 3. Paisagem social. 4. Preservação -


Patrimônio. I. Coelho, Ilanil (org.). II. Título.

CDD 363.69

Os textos integrantes desta publicação são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. As
Comissões Organizadoras e Científicas do VI ENIPAC – Encontro Interdisciplinar de Patrimônio
Cultural, assim como a Univille como um todo, não se responsabilizam pelas afirmações registradas
nesta publicação, bem como por eventuais equívocos gramaticais.
VI ENIPAC

O VI Encontro Internacional Interdisciplinar de Patrimônio Cultural (ENIPAC), realizado de


23 a 27 de outubro de 2023, teve como temática central “Patrimônio Industrial: Trabalho, Memória e
Ambiente”. O evento foi relevante para compartilhar dificuldades e achados teórico-metodológicos
em patrimônio cultural que adensaram a condição de problematizar como se encontram amarrados o
trabalho, a memória e o ambiente. O Encontro - promovido pelo Programa em Pós-graduação em
Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille com o apoio da ANPUH-SC e da FAPESC - foi
organizado de forma híbrida diante dos impactos ainda presentes da pandemia da Covid-19.
Na sua sexta edição, o ENIPAC investiu na construção de diálogos que permitiram aprofundar
em uma perspectiva interdisciplinar, os conhecimentos, os problemas e os desafios lançados às
sociedades contemporâneas quando pensam e operam com o patrimônio industrial em diferentes
territórios e ambientes construídos. Nessa agenda, ganhou destaque as interrelações do patrimônio
industrial com as memórias sociais dos mundos do trabalho e problematizações teóricas que
envolvem o patrimônio ambiental e o uso cultural da biodiversidade.
No contraponto das memórias e das sociabilidades atreladas ao patrimônio industrial,
chamamos a atenção para a dimensão relacional entre os processos de transformação da natureza
como matéria prima transformada. Nesta perspectiva, não somente os saberes-fazeres com a natureza,
tida como recurso, são importantes, mas, em maior escala, como o uso cultural da biodiversidade
pode, em certa medida, ser impulsionador de processos erosivos muitas vezes irreversíveis,
principalmente no atual cenário de mudanças globais que acenam uma crise ambiental mundial.
Entre as diferentes ações promovidas registrou-se a realização de atividades integradas por
pesquisadores nacionais e internacionais, como as. conferências, as oficinas, os minicursos, as mesas
redondas, as reuniões de pesquisadores, as apresentações culturais, o lançamento de livros e os
simpósios temáticos. A palestra de abertura foi realizada pelo Prof. Dr. Manuel Lopes Cordeiro, da
Universidade do Minho, tendo como tema a história e a arqueologia do Patrimônio Industrial. A
conferência de encerramento foi proferida pelo Prof. Dr. Eduardo Romero de Oliveira, da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Assis), que trouxe a discussão
sobre Patrimônio Cultural e Direitos Humanos. As questões ambientais que envolvem a “Paisagem
cultural multiespécies” foi apresentada pelo Prof. Dr. Diogo de Carvalho Cabral, da Universidade de
Dublin.
As três mesas contaram com a presença de importantes pesquisadores brasileiros: Lázaro
Silva (UFBA), Cátia Callado (UERJ), Arno Fritz (UFF); Cláudia Franca Barros (JBRJ), Luiz Melo
(UEPA); Warlen Silva da Costa (UERJ), Flávia Brito (USP), Eliana Rela (UCS), Roberta Meyer
(Prefeitura Municipal de Joinville), Gildo Magalhães dos Santos Filho (USP), Ilanil Coelho (Univille)
e Paulo Osório (UNESC). As discussões envolveram diferentes temas, como as madeiras históricas,
a cultura material e a conservação da natureza no Antropoceno, as paisagens industriais, as memórias
do trabalho e a preservação e usos do Patrimônio Industrial.
Registramos também a realização de duas importantes reuniões que tiveram como foco o
compartilhamento de resultados de dois projetos de pesquisa financiados pela FAPESC. Uma
envolveu técnicos, representantes do poder público e pesquisadores brasileiros e estrangeiros,
vinculados ao projeto “Entre memórias e lugares: um estudo histórico sobre patrimônio industrial e
políticas de desenvolvimento no norte de Santa Catarina (séculos XX-XXI) – PAIN”. A outra reunião
envolveu os docentes do PPGPCS e os parceiros internacionais integrantes do projeto e “Função do
Patrimônio Cultural”: Profa. Dra. Maria Paula Menezes, (Universidade de Coimbra), Prof. Dr. José
Manuel Lopes Cordeiro (Universidade do Minho) e Prof. Dr. Ignácio Lopez Moreno (Universidad
Autónoma Metropolitana).
As comunicações científicas inscritas nos sete simpósios temáticos totalizaram 82 trabalhos.
Os textos apresentados nos anais foram o resultado das pesquisas desenvolvidas por docentes e
discentes da Univille e de outras universidades brasileiras. Releva notar a importância dos simpósios
e dos anais do Encontro para a divulgação científica de pesquisas com uma enorme variedade temática
realizadas por graduandos, mestrandos, doutorandos e docentes. A organização proposta dos textos
segue a ordem dos trabalhados apresentados nos sete simpósios, buscando facilitar a proximidade
temática, teórico-metodológica e de fontes.

Os organizadores(as) do evento.
Sumário
ST - 1 DIÁLOGOS ENTRE ARTE, MUSEU E PATRIMÔNIO ......................................... 8
‘VAMOS LÁ FORA BRINCAR?’ - VIVÊNCIAS DE CRIANÇAS NO MUSEU DA INFÂNCIA: PATRIMÔNIO CULTURAL
CATARINENSE E O ENSINO DA ARTE NA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA ................................................................ 9

MEMÓRIA DA DISPERSÃO DOS EQUIPAMENTOS CULTURAIS: UMA OUTRA ÓTICA DA URBANIZAÇÃO DO


BRASIL E DO RIO GRANDE DO SUL.......................................................................................................................................... 23

CONEXÕES CARTOGRÁFICAS ENTRE A CRIAÇÃO DA ESCOLA DE ARTES FRITZ ALT E O PROCESSO DE


INDUSTRIALIZAÇÃO DE JOINVILLE/SC ................................................................................................................................... 35

CIRCULARIDADES E DISPERSÕES DE ACERVOS: UM ESTUDO DE CASO.................................................................... 45

ST - 3 DIREITOS CULTURAIS E JUSTIÇA SOCIAL .................................................... 55


CINQUENTENÁRIO DO TOMBAMENTO DE LENÇÓIS: A DEFESA POPULAR DO PATRIMÔNIO CULTURAL
MATERIAL DA BAHIA..................................................................................................................................................................... 56

A CULTURA COMO DIREITO A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: ESTUDO DA IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS
CULTURAIS, COMO A LEI ROUANET, NOS ESTADOS DE RIO GRANDE DO SUL E SANTA CATARINA NOS ANOS
DE 2015, 2018 E 2021 ...................................................................................................................................................................... 66

LEI ROUANET: UMA ANÁLISE ECONÔMICA DA ÚLTIMA DÉCADA (2012-2022) DE INVESTIMENTOS PÚBLICOS
NA PROMOÇÃO E DIFUSÃO CULTURAL. ................................................................................................................................. 77

REFLEXÕES SOBRE A NECESSIDADE DE CODIFICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO DE PATRIMÔNIO CULTURAL


BRASILEIRA A PARTIR DA (IN)APLICABILIDADE DE SEUS PRINCÍPIOS JURÍDICOS .............................................. 85

ST - 6 NARRATIVAS, MEMÓRIAS, LINGUAGENS: OS PROCESSOS DE


SUBJETIVAÇÃO E A IMATERIALIDADE DO PATRIMÔNIO ...................................... 96
AS EXPERIÊNCIAS VIVIDAS E AS CARTAS COM RELATOS DOS IMIGRANTES ALEMÃES IDA E OTTOKAR
DÖRFFEL COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DE JOINVILLE ................................................................................................. 97

CORPO BIOGRÁFICO: REFLEXÕES SOBRE MEMÓRIA, LINGUAGEM E IDENTIDADE NOS CORPOS FEMININOS
............................................................................................................................................................................................................ 106

EMPADAS JERKE (JOINVILLE/SC): A IMATERIALIDADE DO COMER PERANTE ELEMENTOS MATERIAIS ....... 115

A PRÁTICA DA JARDINAGEM COMO PROMOTORA DE BEM ESTAR DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19 .... 125

PATRIMÔNIOS DIFÍCEIS, MEMÓRIAS TRAUMÁTICAS: UM OLHAR SOBRE A COMISSÃO DA VERDADE E


RECONCILIAÇÃO DE SERRA LEOA ..........................................................................................................................................137

OS GUARDIÕES DA MEMÓRIA, NA “MEMÓRIA DE VELHOS” OPERÁRIOS DA PEDREIRA DO CERRO DO ESTADO


............................................................................................................................................................................................................ 146
ST - 7 PAISAGEM CULTURAL, HISTÓRIA AMBIENTAL E ARQUEOLOGIA: NOVOS
DESAFIOS PARA O PATRIMÔNIO E A SUSTENTABILIDADE ............................... 158
MOBILIZAÇÃO SOCIAL E MANUTENÇÃO DA PESCA ARTESANAL DA TAINHA PATRIMÔNIO CULTURAL NO
MUNICÍPIO DE BOMBINHAS/SC: AVANÇOS E DESAFIOS ................................................................................................ 159

“SE É SEMPRE OUTONO O RIR DAS PRIMAVERAS”: GÊNERO, PODER E BIOGRAFIA EM UMA ANÁLISE
FOUCAULTIANA............................................................................................................................................................................. 170

ST - 8 PATRIMÔNIO INDUSTRIAL E MUNDIAL: ESTADO DA ARTE,


PERSPECTIVAS E DESAFIOS ...................................................................................... 180
A VALORAÇÃO DO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS PORTARIAS N.º407/2010 E
N.º17/2022 IPHAN........................................................................................................................................................................... 181

O CASE DA ANTIGA ARMASUL COMO REPRODUÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL NA REGIÃO


METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE ....................................................................................................................................192

INTERVENÇÕES NO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL EM FLORIANÓPOLIS/SC ..................................................................202

(DES)USOS DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL EM ITAJAÍ/SC: O CASO DA EX-FÁBRICA DE TECIDOS RENAUX ...212

EDIFÍCIO MANCHESTER: A ARQUITETURA MODERNA COMO SÍMBOLO DA POTÊNCIA INDUSTRIAL


JOINVILENSE ................................................................................................................................................................................. 223

PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL EM ÁREAS URBANAS: A FÁBRICA MOINHO ANACONDA E A


MEMÓRIA INDUSTRIAL DE CURITIBA ..................................................................................................................................... 233

ESCANEAMENTO A LASER NA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ................................................................................242

ST - 10 DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES ENTRE CULTURA, ESTÉTICA E


EDUCAÇÃO ........................................................................................................................251
PERSPECTIVAS DO TEMPO NA EDUCAÇÃO BÁSICA: ENTRE IDENTIFICAÇÕES E RECUSAS DO PATRIMÔNIO
CULTURAL DA CIDADE EM SÃO BENTO DO SUL ................................................................................................................ 252

EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA FORMAÇÃO INICIAL DOS CURSOS DE PEDAGOGIA ................................................... 263

INTERSECÇÕES ENTRE TEORIA E PRÁTICA DA HISTÓRIA DIGITAL E DA HISTÓRIA PÚBLICA:


EXPERIMENTAÇÕES DE DIVULGAÇÃO HISTÓRICA NA UNIVERSIDADE ..................................................................... 273

AS DIMENSÕES DO RIZOMA EM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI ......................................................................282


ST - 1

Diálogos entre arte, museu e patrimônio


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ENCONTRO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR DE PATRIMÔNIO CULTURAL
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

‘VAMOS LÁ FORA BRINCAR?’ - VIVÊNCIAS DE CRIANÇAS NO MUSEU DA INFÂNCIA:


PATRIMÔNIO CULTURAL CATARINENSE E O ENSINO DA ARTE NA PEDAGOGIA
HISTÓRICO-CRÍTICA
Marcos Antonio dos Santos; Mestrando Prof-Artes UDESC | E-mail: tropeiraspaisagens@gmail.com
Giovana Bianca Darolt Hillesheim; Doutora pela UDESC | E-mail: giovana.bianca@ifsc.edu.br

Introdução

“O fortalecimento das referências culturais


e do patrimônio cultural às novas gerações
é mais amplo do que a escolarização,
não se restringindo ao espaço da escola,
mas inserindo-se em contextos culturais
e reconhecendo a contribuição de outros
[espaços] e agentes educativos.”

- sobre a importância de um ensino que apresente o legado


da humanidade às gerações mais novas -
(Florêncio, 2014, p.09-10)

Imagem: Penteadeira - Museu Casa de Anita/Laguna, 2023.


Fonte: Professora Neiva Jeronymo.

Na presente pesquisa, tomarei a liberdade de ‘mesclar’ situações do cotidiano na aula de


artes, precisamente porque as vivências no chão da escola moveram esse professor a tornar-se
pesquisador na busca de alinhavar conceitos mais elaborados e implementar ações pedagógicas que
pudessem contribuir para a superação das compreensões do senso comum dos alunos. E a
necessária superação dos conceitos espontâneos se insere nos objetivos da escola. Adiantaria que
lecionar artes nos dias atuais não é sinônimo de um ensino em sintonia com os desafios
contemporâneos inerentes ao ensino da Arte. Em termos históricos, a fim de nos situarmos
cronologicamente no tempo, tudo o que realizamos em nossos dias é contemporâneo. Porém, pelo
viés conceitual da pedagogia histórico-crítica, uma postura contemporânea no ensino da Arte exige
algo mais por parte do professor: um trabalho no qual as produções artístico-culturais sejam
apresentadas em seu contexto sócio-cultural e portanto histórico; em um enfoque de valorização
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da arte e das culturas populares. Tal qual a importância e o destaque históricamente conferidos na
educação formal brasileira à arte clássica e erudita, de raízes européias. Tanto que ao perguntar aos
alunos na sala de aula a concepção que tinham de patrimônio cultural, as respostas evocadas
apontavam diretamente para o que a socióloga Maria Cecília Londres Fonseca, atuante em
importantes linhas de pesquisa do IPHAN e do MinC, aponta como o senso comum no que se refere
ao Patrimônio Cultural enquanto “um conjunto de monumentos antigos que devemos preservar” e
também tinham a ver com objetos, criações ou “obras de arte excepcionais.” Ou ainda, foram
citados pelas crianças enquanto lugares reconhecidos “por terem sido palco de eventos marcantes,
referidos em documentos e em narrativas dos historiadores” (Abreu e Chagas, 2003, p. 56). Quantas
pistas importantes emergiram naquela roda de conversa para uma sondagem, momento no qual
tratei de elencar uma lista (um ‘inventário’) com palavras-chave fornecidas pelos alunos nesta
primeira conversa sobre Patrimônio Cultural: monumentos - coisas antigas - documentos - histórias
- cuidado/preservação - objetos - criações - obras de arte - estátua - museu - acontecimentos.
E ao deparar-me com a organização da sequência didática na qual deveria abordar os
estudos sobre Educação Patrimonial e os conceitos de Patrimônio Cultural, Bens Culturais,
Patrimônio Cultural Material e Imaterial, Reconhecimento e Tombamento Patrimonial, entre
outros, para duas turmas de 5º ano dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, pude perceber a
dimensão do desafio de propiciar o acesso e o reconhecimento de alguns dos bens culturais das
gerações que os antecederam. Constatei que dava-se início a uma pesquisa que viria a contribuir
na melhoria da minha prática como professor de Artes e consequentemente na formação dos meus
alunos. E, para início da conversa/pesquisa, necessitaria de perguntas capazes de revelar
inquietações oportunas e legítimas… Então, elenquei algumas (certo de que outras poderiam surgir
no percurso, como de fato surgiram): Quais seriam as questões pontuais a serem formuladas em
torno da temática do ensino da Arte e Patrimônio Cultural? Quais alternativas deveriam ser eleitas
e como traduzi-las em ações pedagógicas nas quais os alunos pudessem reconhecer-se como
espectadores, herdeiros e em alguma dimensão co-criadores, ao passo em que pudessem
reelaborar conhecimentos sobre Patrimônio Cultural? Como promover na sala de aula - e em
outros espaços educativos - exercícios do reconhecimento de si, dos outros e do lugar no qual
vivem e na contribuição na formação da identidade cultural que os bens culturais conferem à
cidade?

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‘Luz, câmera, ação - pedagógica’

Para iniciar os estudos sobre patrimônio cultural, patrimônio material e imaterial,


equipamentos culturais, optou-se em trazer para a sala de aula uma produção na linguagem do
cinema (estudos da sequência didática anterior): o que mobilizou as turmas 501 e 502 dos Anos
Iniciais em torno de perguntas, feitas logo depois da sessão, a fim de mapearmos a compreensão
dos alunos sobre o que é? E quais são os patrimônios culturais, equipamentos culturais e pontos
marcantes na nossa cidade e arredores.

Na companhia de Maria, protagonista da animação ‘Contornando Criciúma’ apreciamos um


curta metragem pensado, roteirizado e produzido pela artista visual local Deise Pessi. Produção que
revela o profundo comprometimento e envolvimento da artista com a infância, a cidade e as
dinâmicas, afetivas e vivas relações entre arte, memória e patrimônio cultural. Durante a exibição -
valeria dizer que repassamos algumas vezes o curta ‘contornando Criciúma’ - e novas camadas,
percepções distintas eram inseridas na conversa pelos alunos, que puderam perceber a cidade de
outra forma: reconheceram obras, monumentos, prédios, praças e outros elementos que têm
ligações identitárias, econômicas, sociais e históricas com a cidade de Criciúma. Inclusive, citaram
outros exemplos pertinentes não contemplados no curta-metragem. Destacaria a importante
participação dos alunos vindos de outras regiões do país, contando-nos sobre o lugar no qual
cresceram e/ou viveram. Além dos patrimônios reconhecidos, tombados ou não, realizamos um
mapeamento dos patrimônios eleitos/sugeridos pelos alunos.
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Imagem: Mapa dos patrimônios eleitos pelas turmas 501 e 502. Produção coletiva das ‘figurinhas dos
patrimônios’. Técnica mista sobre papel. 45 x 60 cm.
Fonte: Arquivo do pesquisador.

No trajeto ao Museu da Infância, aproveitamos para realizar um tour cultural por alguns dos
monumentos, equipamentos culturais, praças e pontos bem conhecidos na cidade: “parece que
estamos na viagem com a Maria, contornando Criciúma professor”, disse um aluno durante o trajeto
até o MI (tour cultural é a expressão que costumo empregar para as usuais ‘saída ou viagem de
estudos’, expressões mais comuns no ambiente escolar).

‘Escola e a intencionalidade do processo ensino-aprendizagem’

Na sua pesquisa sobre educação patrimonial no processo educacional, a professora Carolina


Maria Silva Antonio defende a importância de uma abordagem conceitual do Patrimônio Cultural
nas aulas de Artes, oferecendo subsídios para um (re)conhecimento da identidade cultural no
contato com o entorno: a cidade, seus espaços e lugares atravessados por memórias, histórias e
trajetórias. E no processo de humanização, a escola constitui-se

[...] um dos principais espaços formadores de conhecimento, contribuindo


nos campos da cognição, reflexão e formação estética dos estudantes, sendo
assim a escola deve perceber sua responsabilidade em criar meios que
proporcionem a valorização, estratégias de aprendizado, desenvolvimento
do anseio de pertencimento e entendimento. (2012, p. 09)

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A fim de criar as condições necessárias para que nossos alunos superem o individualismo e
exerçam plenamente o direito ao bem comum, da cidadania, conhecer a região em que se vive,
reconhecer valores e características que compõem suas origens e que contribuem no seu
desenvolvimento, perpassa a construção identitária: e esse fundamental exercício ao nosso
processo de humanização (no qual aprendemos entre e com os humanos e na cultura), perpassa as
dimensões de valorização das culturas materiais e imateriais do patrimônio cultural. E nesse
contexto, a escola constitui-se fundamental para o desenvolvimento cognitivo, artístico-cultural e
estético das crianças, possibilitando o desenvolvimento de capacidades através da instrução,
mediação e solução de problemas.
Para entender a importância da escola, faz-se fundamental entender as diferenças entre os
conceitos espontâneos e conceitos científicos: os conceitos espontâneos são construídos na
interação com o mundo, ou seja, a partir das experiências cotidianas e os conceitos científicos não
são inatos, são aprendidos e construídos socialmente. A partir de situações de ensino e
aprendizagem a criança será exposta aos conceitos científicos e desenvolverá uma capacidade de
compreender os conteúdos trabalhados (Vigotski, 2001). E o Patrimônio Cultural enquanto
conteúdo na escola, requer olhar a cidade de forma similar a um organismo vivo, “que cresce e se
transforma numa velocidade muito grande. Prédios antigos são demolidos, novas construções
aparecem, áreas próximas são loteadas e novas ruas são asfaltadas” (Meira, 2006, p. 102). O
pertencimento e o reconhecimento, do individual ao coletivo, passam pelo conhecimento: de si, do
outro e do seu entorno; da trajetória sócio-histórica das cidades; dos lugares de memória
preservação, salvaguarda e ‘entrega’ às novas gerações do legado da humanidade; em dimensão
local ou esfera mais global. E nessa dinâmica, uma formação educativa em educação patrimonial
constitui-se em uma necessidade urgente por conta da preservação desta memória e acesso aos
referenciais culturais sociedade na qual se inserem as crianças das turmas da presente pesquisa,
que representam tantas outras crianças em tantas sociedades no território global.

‘Sobre patrimônios, pessoas e o tempo’

Ao nos referirmos aos monumentos - tão presentes no espaço urbanos da cidade de


Criciúma e citados pelas crianças no exercício de mapeamento dos patrimônios - buscamos superar
a visão destes objetos daquela de quando utilizados no passado: antes, nos esforçamos por
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compreendê-los enquanto uma intervenção estética; visto que movem nosso olhar e neste
momento, optamos por deixar a definição de arte para o sujeito que os observa. Insisto que nos
voltemos para compreender melhor a função destes objetos nos espaços públicos

Os monumentos como Lugares de Memória, termo utilizado


pelo historiador francês Pierre Nora, são erguidos com
intencionalidades, colocados em locais de destaque da cidade,
a memória oficial tenta fortalecer conjunturas do presente,
muitas vezes, buscando legitimação do [e pelo passado]
passado (MACHINSKI; SILVA, 2007, p. 03).

E no exercício de (re)conhecimento da identidade e ampliação do


repertório artístico-cultural, pode-se justificar amplamente a presença da Arte
no currículo escolar por conta das significativas contribuições na construção de
um olhar mais sensível, complexo e amplo a respeito do patrimônio cultural
local e da humanidade. Fomentando uma reflexão de que sujeitos nós somos e
como podemos – ou não – nos constituirmos em construtores, apreciadores
e/ou produtores/herdeiros das histórias e trajetórias deste patrimônio.

Imagens à direita: A personagem Maria do curta ‘contornando Criciúma’ e alguns dos monumentos,
reconhecidos, tombados ou afetivos da cidade. Fonte: Frames do filme.

‘Quer saber os contornos que Maria vai fazer? Embarque com ela nessa viagem. Bem
vindos à bordo, apertem os cintos!’ E a importante dimensão lúdica do ato de ensinar,
especialmente quando se trata de crianças, revestiu a condução do processo ensino-aprendizagem
na sala de aula: a personagem Maria tornou-se parceira dos alunos no percurso educativo. Nas
palavras da autora Deise Pessi, “Maria é seu nome, sonhadora, gosta de viajar, fotografar, beber
café, de vento no rosto, de meias coloridas, pássaros e gatos. Mostra-se um tanto atrapalhada. Pega
uma condução e segue dando asas à imaginação (2011, sinopse).” E foi o que fizemos com as turmas:
embarcamos rumo ao nosso ‘contorno pela cidade’. No trajeto, negociado com o motorista que
gentilmente nos conduziu rumo ao MI, os alunos foram reconhecendo alguns dos patrimônios vistos
no curta-metragem. Outros monumentos, prédios e referências no espaço urbano foram apontadas

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pelos integrantes do nosso grupo. Destacaria o relato cheio de emoção da professora Cláudia,
regente da turma, quando passamos em frente à Igreja Nossa Senhora da Salete: “Ali foi onde
realizou-se o meu casamento há muito tempo, crianças…”. Na sequência passamos pelo Parque das
Nações, na frente da Praça da Chaminé, o Locomóvel, O Paço Municipal (um amplo equipamento
cultural, onde além do prédio da Prefeitura Municipal, é possível encontrar outros dos
popularizados monumentos, painéis com mosaicos e outras manifestações culturais da cidade);
Indescritível perceber o brilho nos olhos e as reações das crianças, das quais a maioria não havia
ultrapassado os limites da comunidade da Linha Batista e bairros adjacentes, antes de chegarmos
ao destino do nosso tour cultural na Exposição Imersiva ‘Vamos lá fora brincar?’.

‘Museu é lugar de coisas do passado?’ - só que não…

Oportunamente aos estudos sobre Patrimônio Cultural, neste período foi organizada uma
exposição imersiva pelo Museu da Infância que trazia um título bem sugestivo relacionado aos
nossos estudos ‘Vamos lá fora brincar?’. O Museu da Infância é um equipamento cultural que
funciona na Universidade do Extremo Sul Catarinense e vivenciar uma visita a esse lugar poderia
oportunizar para as turmas dos anos iniciais a ampliação de seu repertório, vivenciar aprendizagens
de modo mais palpável ao interagir com brinquedos e brincadeiras de distintos tempos e lugares.
Aprender, de formas outras, tanto na interação com os brinquedos da exposição imersiva quanto
no contato do acervo do MI. Percebo diariamente o quanto as gerações mais novas estão imersas
nas novas tecnologias - e não é diferente com a turma da presente pesquisa - então, o contato com
brinquedos de outros tempos propiciou formas de valorização de culturas diversas e vivenciar a
passagem do tempo de maneiras distintas para os alunos do 5º ano. Tanto nos brinquedos com os
quais era possível brincar, vivenciar suas dinâmicas, quanto na apreciação de brinquedos e
brincadeiras nacionais e internacionais expostos nas vitrines e prateleiras do Museu da Infância. A
seguir, uma licença poética para inserir um relato carregado de afeto na exposição ‘Vamos lá fora
brincar?’

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"Uma manhã para criar memórias" - Ampliamos nossos


estudos sobre patrimônio cultural, equipamentos culturais e
espaços de memórias; E no Museu da Infância/UNESC a
surpresa das crianças foi encontrar tantas coisas com as quais
poderiam brincar... Na exposição 'Vamos Lá Fora Brincar'
interagiram com brinquedos de tempos diversos, criaram
memórias e tiveram até piquenique. Uma mostra que
"convida ao diálogo e à reflexão sobre a importância dos
espaços brincantes na vida da criança." Nas palavras da
curadora da exposição Amalhene Baesso Redig. (texto de uma
postagem do autor).

Imagem: “Brincando de faz de conta” no ’Cantinho dos encantos’ - Exposição vamos lá fora brincar? MI.
O título da brincadeira foi dado pelas próprias alunas durante a vivência imersiva.
Fonte: Arquivo do pesquisador.

O contato com culturas distintas e o “reconhecimento do ato brincar em sua forma mais
simples, exercitando a criatividade, a ludicidade e o conhecimento de que muito se pode fazer com
recursos materiais, desde que estejam inseridos em seu cotidiano” e em um contexto educativo,
pensado e intencional, revela o que é possível fazer na sala de aula e além dela. Além de permitirem
o exercício da criatividade e da criticidade, podem promover memórias afetivas (das próprias
crianças com seus familiares e/ou comunidade) o conhecimento e a valorização de um contexto
cultural, “de uma época muitas vezes desconhecida. Pois produzir [e brincar com] brinquedos
também promove desenvolvimento cognitivo, criativo e social.” (Menezes, s/d, p. 586). Na
exposição, primou-se em oportunizar um tempo no qual os alunos pudessem vivenciar outras
formas de brincar - aspecto que chamou a atenção na exposição imersiva/interativa no MI - cientes
da importância do brinquedo e da brincadeira no desenvolvimento infantil.

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Na sala de aula, havíamos feito mapas mentais dos brinquedos e brincadeiras presentes nas
famílias, tomando como ponto de partida uma entrevista com os familiares. E para este professor,
estes movimentos provocaram reflexões pontuais sobre as possíveis relações entre ensino da Arte
na Educação Básica, ampliando as ações para o museu enquanto espaço de memória, promotor de
diálogos, e, é claro, a mediação e a ativação do patrimônio cultural.
As ações das crianças nas possibilidades de vivências ofertadas pela mediadora do Museu da
Infância na exposição, reportam-me a um conceito de Vigotski na sua obra ‘imaginação e criação na
infância’, a noção de construção da imaginação criadora, descrita como uma força ativa da vida ao
dirigir-se às ações e os comportamentos do ser humano, na busca de encarnar-se e realizar-se,
materializar-se, objetificar-se, visto que

Qualquer construção que parta da realidade tende a fechar o círculo e


encarnar-se na realidade. Por força dos impulsos contidos nela, tende a
tornar-se criativa, ou seja, ativa, transformadora daquilo em direção ao que
a sua atividade se orienta. (2018, p. 58)

Escolhi este conceito e o inseri neste ponto deste escrito, porque a noção de construção da
imaginação criadora difere do tão popularizado nos meios educacionais (e para além dos muros da
escola também), do também nomeado por Vigotski como “espírito sonhador”. Sendo dois extremos
e formas essencialmente diferentes de fantasia: enquanto a construção da imaginação criadora
realiza-se nas diversas criações materiais e imateriais em uma compreensão vigotskiana, o “espírito
sonhador” poderia ser traduzido pelo devaneio que se perde e não se materializa, não se encarna,
não se torna objeto. Nesta perspectiva, Vigotski (2010) ainda ressalta que "a primeira forma de
relação entre imaginação e realidade consiste no fato de que toda obra da imaginação constrói-se
sempre de elementos da experiência anterior da pessoa". E nesse sentido, pensar as aulas de Artes
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enquanto espaço de vivências capazes de fomentar o processo criativo e imaginativo das crianças,
proporcionando a ampliação de repertórios e a formação do olhar sensível tornam-se
imprescindíveis em uma educação que aponte para o processo de humanização. E a via das artes e
das possibilidades de diálogos inter e transdisciplinares na Educação Patrimonial e também com
outros componentes curriculares mas, sobretudo, em bases consistentes no processo ensino-
aprendizagem ao articular o saber sistematizado do universo artístico-cultural da humanidade.

Saberes estes organizados em forma de conhecimento que se materializa em forma de


dança, música, dramaticidade e visualidades. Ou ainda, criações híbridas, nas quais as próprias
linguagens artísticas como no exemplo do Boi de Mamão da escola na qual as turmas do 5º ano
assumiram o compromisso de brincar o Boi na escola ao longo deste ano. Alunos que mantiveram
“materializada” e “encarnada” um folguedo que expressa culturas formadoras do nosso território
catarinense. E a relação entre conceitos espontâneos e conhecimentos científicos se dá, tomando
como exemplo o folguedo do Boi de Mamão acima apresentado, quando o contato com obras de
artistas e experiências práticas ampliam a complexidade das informações e geram um
conhecimento que supera o primeiro (espontâneo), incorporando-o. Para Vigotski (2018), quando
a criança é exposta a informações e conceitos científicos mais elaborados, elas integram esses
conhecimentos novos aos conceitos existentes. E nas atividades propostas na escola, as crianças vão
criando repertórios estéticos mais elaborados, que posteriormente são expressos em um
experimento de produção artística. Tanto na arte, como em outras áreas as crianças aprendem a

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generalizar e abstrair na mediação social, na interação com o professor, através tanto das práticas
culturais como das atividades educacionais.

‘Sobre uma educação do olhar’

Se nos permitimos olhar atentamente, a imagem ao lado


pode revelar que é possível estabelecer uma relação com o
passado e como as produções humanas nos afetam no presente e
nos alcançam, podem até ‘tocar nosso futuro’: “Não pensava que
as coisas já foram assim…” (relatou Vítor, estudante da imagem
imerso no trajeto pelo Museu da Infância). E este exercício de
articular teoria e prática, a busca de pautar as aulas de Artes em
bases teóricas que permitam-me desvelar cenários mais
promissores aos meus alunos - no sentido de superarem o que já trazem de conhecimento para a
escola - move-me enquanto professor de arte na escola pública. Injetam-me desejo de poder
instaurar estas formas outras de percebermos a cidade e as interações com os seus habitantes no
estudo palpável do Patrimônio e da Identidade Cultural da nossa cidade: além de ressaltar a
importância de espaços que atuam na preservação da memória, dos equipamentos culturais e
monumentos, dos bens e produções artístico-culturais que compõem a identidade cultural de uma
sociedade.

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A imagem acima, especialmente o plantio do Algodoeiro, símbolo do Museu da Infância e


que foi a ação por conta da Semana Nacional dos Museus, foi realizada posteriormente à imersão
na exposição ‘Vamos lá fora brincar’ e reforça, torna palpável aos sentidos, “encarna - materializa -
objetifica” a potência das conexões possíveis entre arte, vida e sociedade com a escola: ampliando
horizontes e repertórios, identidades. Motivam-me a seguir na construção de um trabalho
pedagógico pautado sempre na pesquisa, com organização, intencionalidade, criando possibilidades
dos meus alunos - filhos dos trabalhadores e trabalhadoras do nosso país - superarem o senso
comum e conhecerem, para então valorizar ao assimilarem aquilo que permanece, resiste ao tempo
e ultrapassa os interesses particulares de indivíduos, classes, época ou lugar (Saviani, 2013).

Considerações - apontamentos ‘vindouros’

Na escola ainda estamos realizando atividades, pensadas no início da sequência didática


e/ou resultantes de desdobramentos das proposições pedagógicas; Sempre pautadas no ensino das
artes e suas múltiplas linguagens em diálogos com o patrimônio cultural. A visita ao Museu da
Infância, a viagem de estudos da turma ao Centro Histórico de Laguna e o tour cultural pela cidade
ainda rendem boas conversas e produções em linguagens artísticas diversas com as turmas: estamos
no estudo da pintura de paisagens a partir de fotografias feitas pelos próprios alunos nas saídas da
escola. A sequência didática que proporcionou este relato, segue ganhando proporções de Pesquisa:
na qual proponho-me a investigar as implicações entre aprendizagem e desenvolvimento norteado
pelos estudos de Vigotski sobre a infância.
E os estudos da pedagogia histórico-cultural tem me permitido uma compreensão
ontológica acerca da realidade material (em linhas gerais, Ontologia é o ramo da Filosofia que
estuda a natureza do ser, da existência e da própria realidade). E a relevância do estudo da obra
Saviani? Porque nos convoca a entender que o saber, por ser historicamente situado, socialmente
construído e constituído, requer nossa imersão não tão somente no produto final. Antes, um
mergulho nas tramas em que se entrelaçam as relações culturais, políticas, sociais e, as chaves para
uma compreensão da realidade e superação de ilusórios cenários, necessitam ser acessadas por
nós, profissionais da educação, professores(as). Para que a forma com que desenvolvemos nosso
trabalho educativo, como sentimos, pensamos e desenvolvemos nossas práticas pedagógicas

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aponte possibilidades de superação das rasas realidades impostas por um sistema que não se
interessa que o conhecimento, de fato alcance os filhos e filhas dos trabalhadores, público
majoritário da escola pública.
Os exercícios poéticos que buscamos realizar na escola, revelam que é possível realizar ações
com vistas a ampliar o repertório artístico, cultural e a compreensão do patrimônio cultural. O que
contribui no reconhecimento e valorização da cidade, de si, dos outros, por se tratarem de
componentes importantes para uma educação humanizadora e emancipatória. Sempre permeada
pela cultura, a arte e pela vida.

‘E na escola, passamos por processos criadores, apesar de toda alienação.’


Profª Dra. Maria Cristina Fonseca

REFERÊNCIAS

Antonio, Carolina Maria Silva. Educação Patrimonial: O Ensino de Artes Visuais através da
Arquitetura Histórica do Rio de Janeiro. Itapetininga/RJ: UnB, 2012.

Florêncio, Sônia Rampim [et al.] Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. IPHAN:
2014.

Machinski, Aline e Silva, Silemar Maria de Medeiros da. (Re)conhecendo as produções artístico-
culturais do espaço público da cidade de Criciúma. UNESC: Criciúma, 2007. Disponível em
<https://periodicos.unesc.net/ojs/index.php/iniciacaocientifica/article/view/166/171> acesso em
22/10/2023.

Meira, Beá. Arte: Coleção Projeto Radix. São Paulo: Scipione, 2006.

Menezes,Suelene Garcia dos Santos. A arte de valorizar, produzir e usufruir de brinquedos e


brincadeiras populares. Artigo de Disponível em <https://publica.ciar.ufg.br/ebooks/eipdcc-
propostas-pratica-
acoesdialogicas/artigos/artigo54.html#:~:text=Al%C3%A9m%20de%2C%20pelo%20fato%20de,des
envolvimento%20cognitivo%2C%20criativo%20e%20social.> acesso em 03/12/2023.

Pessi, Deise. Contornando Criciúma. Curta metragem autoral. Criciúma: 2011. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=tcEi790wzoA> acesso em 22/10/2023.

Saviani, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. rev. Campinas:
Autores Associados, 2011.

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Vigotski, Lev Semionovitch. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. Paulo Bezerra.


São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Vigotski, Lev Semionovitch. Imaginação e criação na infância: Ensaio psicológico livro para
professores. Trad. e Revis. Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

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MEMÓRIA DA DISPERSÃO DOS EQUIPAMENTOS CULTURAIS: UMA OUTRA ÓTICA


DA URBANIZAÇÃO DO BRASIL E DO RIO GRANDE DO SUL

Judite Sanson de Bem1


Maria de Lourdes Borges 2
Moisés Waismann 3
Rute Henrique da Silva Ferreira4

RESUMO: A partir da metade do século XX houve uma intensificação da urbanização no Brasil e no


Estado do Rio Grande do Sul, além de uma reorganização dos equipamentos culturais no espaço. O
acesso aos equipamentos é um direito do cidadão, mas nem sempre está à sua disposição, pois sua
localização não é equânime ao longo do território nacional. O objetivo deste artigo é realizar uma
reflexão sobre a urbanização do Brasil e do estado do Rio Grande do Sul e seu paralelo com os
equipamentos culturais, nestes territórios. Metodologicamente a pesquisa é exploratória e se
utilizou de dados do IBGE e da MUNIC-IBGE. Entre os motivos destas desigualdades da localização
dos equipamentos estão as etapas e fontes de financiamento da urbanização, as leis de cultura, o
poder aquisitivo da população de consome os produtos culturais e a capacidade dos diferentes
locais em manter os equipamentos culturais.

Palavras-chave: Urbanização. Equipamentos Culturais. Brasil. Rio Grande do Sul.

Introdução

A urbanização brasileira tem sido alvo de diferentes pesquisas, tanto do ponto de vista das
ações estatais (VILLAÇA, 1999), como das perspectivas macro estruturais do subdesenvolvimento
(CANO, 2014). Em 80 anos, a taxa de urbanização brasileira passou de 31,24% em 1940 para 84,36%
em 2010 (IBGE,2010) por meio de processos que impactaram o modo de vida da população
(LENCIONI, 2017). Um dos aspectos que chamam a atenção foi a disseminação dos valores e hábitos
culturais das metrópoles para cidades pequenas e médias (LENCIONI, 2017), modificando a
presença de equipamentos culturais. Desta forma, as grandes metrópoles passam a ser
compreendidas não somente como centros econômicos, mas também culturais que se desenrolam
em espaços intraurbanos, ideais para o desenvolvimento de uma economia cultural-cognitiva
(SCOTT, 2014). Este artigo pretende responder a seguinte pergunta: quais foram os caminhos

1
Universidade La Salle. E-mail: judite.bem@unilasalle.edu.br
2
Universidade La Salle. E-mail: maria.borges@unilasalle.edu.br
3
Universidade La Salle. E-mail: moises.waismann@unilasalle.edu.br
4
Universidade La Salle. E-mail: rute.ferreira@unilasalle.edu.br
23
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adotados pelo país e o estado do Rio Grande do Sul no processo de sua urbanização, e como se
dispersaram os equipamentos culturais no país. Metodologicamente utiliza-se trabalhos referentes
à temática, relatando dados do Brasil e do Estado do Rio Grande do Sul (RS). Posteriormente utiliza-
se a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), e o Sistema IBGE de Recuperação
Automática (SIDRA), Atlas Socioeconômico do RS, entre outros. Assim, o trabalho compreende uma
metodologia descritiva, com interpretações estatísticas dos dados.
Este artigo está dividido em seções, sendo a primeira esta introdução. Segue-se a seção
referente à discussão da teoria de urbanização e equipamentos culturais. Na seção seguinte
encontra-se a metodologia. Na próxima seção a análise dos dados apresenta a temática referente
ao entendimento de equipamentos culturais, para finalmente apresentar sua dispersão no Brasil e
no estado do Rio Grande do Sul. Finaliza-se o artigo com considerações sobre a temática.

A urbanização e suas fases: uma comparação Brasil e Rio Grande do Sul

Segundo Villaça (1999), no Brasil, o urbanismo pode ser dividido em três grandes períodos:
o primeiro período 1875 a 1930) foi caracterizado por planos de melhorias e embelezamento em
busca de uma forma urbana monumental. O segundo (1930 a 1990), iniciado em 1930, foi embasado
"pelo planejamento enquanto técnica de base científica", enquanto o terceiro (a partir de 1990) o
grau de urbanização da população gaúcha era de 76.6%.
Oliveira (1996) apontava que no RS também há uma desigualdade regional em termos de
urbanização, partindo da diferenciação no ritmo de crescimento populacional das regiões urbanas
em contraponto com núcleos urbanos da região nordeste (eixo Porto Alegre - Caxias do Sul) do
estado, relacionada à inserção daquela região na economia. Estes dados demonstraram que o eixo
citado incorporou a economia urbano-industrial em comparação a outras regiões (norte e sul) de
economia mais agrícola.
Entre os anos 1991 a 2010 houve alteração nos arranjos espaciais da Região Metropolitana
de Porto Alegre por meio do avanço de outros municípios no seu entorno, "configurando-se novos
vetores de ocupação e crescimento, alterando os arranjos espaciais existentes".
Segundo Somekh e Gaspar (2012) a cidade contempla distintos espaços produtivos,
impactando em diferentes aspectos como o estético, simbólico e cultural. A dimensão cultural faz

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parte das dinâmicas socioespaciais (CONSTANTINOU; MACHADO, 2019) que resultam de mudanças,
muitas vezes, decorrentes de maior exploração imobiliária, elitização de espaços, entre outros.

Equipamentos culturais: um novo entendimento da urbanização

No decorrer do processo de urbanização, "[...] a variável territorial para a elaboração de


políticas culturais esteve ligada a concentração geográfica de espaços/equipamentos culturais que
determinada unidade administrativa possuía" (LIMA; COSTA, 2018, p. 211). Sendo assim, os
equipamentos culturais estavam predominantemente voltados para uma estética central em
antigas cenas urbanas (LIMA; COSTA, 2018).
A partir dos anos de 1990 as regiões centrais perdem lugar para as periféricas no que se
refere à produção cultural tendo como fonte as favelas e subúrbios (LIMA; COSTA, 2018). Verifica-
se a preponderância dos lugares, das relações e dos contatos construídos em detrimento do
conteúdo cultural do entretenimento e do lazer que ali ocorriam. Evidenciou-se "[...] uma rica rede
de lazer e entretenimento - e suas modalidades de fruição - na periferia urbana da cidade de São
Paulo, paisagem habitualmente descrita como uma realizada cinzenta, indiferenciada". (MAGNANI,
2003, p. 85).
A respeito dos equipamentos culturais novas perspectivas vão surgindo, pois Scott (2014, p.
21) entende que “[...] estas atividades [da metrópole ressurgente] com frequência ganham corpo
em novos equipamentos culturais, recreativos e de consumo na cidade; ocasionalmente promovem
a renovação de antigos edifícios industriais e comerciais, que são convertidos em salas de concerto,
galerias de arte, teatros, shopping centers, etc.” Concorda-se com Coelho (1997, p. 546) a respeito
do conceito de equipamentos culturais, o qual os entende como

[...] tanto edificações destinadas a práticas culturais (teatros, cinemas, bibliotecas,


centros de cultura, filmotecas, museus) quanto grupos de produtores culturais
abrigados ou não, fisicamente, numa edificação ou instituição (orquestras
sinfônicas, corais, corpos de baile, companhias estáveis, etc.).

Equipamentos culturais como teatros, cinemas, bibliotecas, galerias, centros culturais, salas
de concerto, museus entre outros possuem potencial para dinamizar territórios em que estão
inseridos, pois além de uma função artística-cultural, eles representam uma função social e

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econômica (SANTOS; DAVEL, 2018). No espaço eles apresentam-se dispersos, reflexo da


urbanização.

Análise dos dados

As Tabelas 1 e 2 apresentam a dispersão, por faixa populacional, dos equipamentos culturais


no Brasil em 2014, em quantidade e proporção respectivamente. Primeiramente percebe-se que a
maior concentração de municípios estava na faixa de zero a 50 mil habitantes, logo entre pequenos
e médios e poucos municípios entre o total estavam nos limites superiores. Esta situação também
expõe que a maior quantidade de equipamentos estava concentrada, no Brasil, em duas faixas
populacionais: mais de 10 mil a 20 mil habitantes (pequeno porte) e a seguinte, mais de 20 mil até
50 mil habitantes (médio porte). Estas evidências chamam a atenção, pois a quantidade de
equipamentos culturais de municípios de pequeno e médio porte pode ser um indicativo do modo
de vida da população, uma vez que tem relação direta com a metropolização (LENCIONI, 2017).
A maior quantidade de equipamentos culturais são: bibliotecas públicas, bibliotecas
públicas, estádios ou ginásios poliesportivos geridos pelo município, sendo o último exemplo o mais
expressivo, esses equipamentos tema a sua importância na promoção de cultura e são importantes
na cadeia produtiva.
Observa-se que os equipamentos menos expressivos eram as galerias de arte; shopping
centers; circos fixos e conchas acústicas. Uma das reflexões suscitada pelas evidências indica que
embora as galerias sejam uma expressão de arte e cultura, em 2014 ainda não faziam parte da
realidade da população brasileira, devido ao desconhecimento e as dificuldades de sua manutenção.
Observa-se também a pouca expressividade numérica dos circos, os quais foram
desaparecendo ao longo das décadas, devido ao número de atrativos substitutos e mesmo de
legislações mais rígidas quanto ao uso de animais, etc, praticamente inexistindo.
Merece atenção, também, alguma reflexão sobre o cinema, pois além de progressivamente
haver uma redução de sua quantidade, os mesmos passaram prioritariamente a estarem nos
shopping centers, o que pode razoavelmente ser verificado na tabela 1, pois se percebe certo
equilíbrio no número de shopping centers e de salas de cinema. A tabela 2 descreve a proporção
dos equipamentos culturais, considerando os municípios agrupados por faixa populacional.

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As Tabelas 3 e 4 apresentam a dispersão, por faixa populacional, dos equipamentos culturais


no Estado do Rio Grande do Sul, em 2014, em quantidade e proporção respectivamente.
Primeiramente, percebe-se que a maior concentração de municípios, ao contrário do Brasil, foi em
2014, na faixa de zero a 10 mil habitantes, logo de pequeno porte. Em proporção, os municípios
maiores foram em quantidade semelhante ao Brasil.
Esta situação também expõe que a maior quantidade de equipamentos estava concentrada,
no RS, em três faixas populacionais: mais de 5 mil habitantes a 10 mil, mais de 10 mil a 20 mil
habitantes e a seguinte, mais de 20 mil até 50 mil habitantes.

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Tabela 1 – Equipamentos culturais no Brasil distribuídos por faixa populacional (2014)

+ de + de 50 + de >
Até 5 + de 10 + de 20 Total
5mil a a 100 100 a 500
mil a 20 mil a 50 mil Geral
10 mil mil 500mil mil
Quantidade de Munícipios 1.243 1.216 1.383 1.080 348 261 39 5.570
Quantidade de Lan House 676 972 1.264 1.040 339 258 39 4.588
Quantidade de Galerias de arte 1 8 19 56 43 104 32 263
Quantidade de Shopping center 3 4 19 56 77 175 38 372
Quantidade de Bibliotecas públicas 1.187 1.170 1.342 1.065 344 261 39 5.408
Quantas são mantidas pelo
1.239 1.248 1.483 1.268 457 545 297 6.537
município
Quantidade de Museus 169 202 304 403 207 195 35 1.515
Quantas são mantidas pela gestão
164 192 288 438 231 297 143 1.753
municipal
Quantidade de Teatros ou salas de
83 118 249 373 217 224 39 1.303
espetáculos
Quantas são mantidas pela gestão
76 114 222 397 235 308 175 1.527
municipal
Quantidade de Centro cultural 283 313 475 512 220 220 38 2.061
Quantas são mantidas pela gestão
278 303 465 504 234 319 107 2.210
municipal
Quantidade de Arquivo público e/ou
89 137 263 330 185 172 33 1.209
centro de documentação
Quantas são mantidas pela gestão
89 145 267 326 194 176 51 1.248
municipal
Quantidade de Estádios ou ginásios
1.079 1.080 1.265 1.030 342 257 39 5.092
poliesportivos
Quantas são mantidas pela gestão
1.535 1.707 2.366 2.318 965 1.039 186 10.116
municipal
Quantidade de Cinema 19 28 66 129 111 191 38 582
Quantidade de Banca de jornal 19 79 267 487 260 242 37 1.391
Quantidade de Videolocadora 270 497 823 820 299 243 38 2.990
Quantidade de Lojas de discos, CDs,
182 341 540 634 275 237 39 2.248
fitas e DVDs
Quantidade de Livraria 94 144 289 466 263 232 39 1.527
Quantidade de Unidade de ensino
99 222 549 738 322 254 39 2.223
superior
Quantidade de Clube/associação
588 674 925 878 329 247 39 3.680
recreativa
Quantidade de Circo fixo 1 1 2 3 8 15 9 39
Quantidade de Concha acústica 16 28 53 105 59 74 22 357

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados da Munic

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Tabela 2 – Proporção de equipamentos culturais no Brasil distribuídos por faixa populacional (2014)

Até 5 + 5 a + de 10 + de 20 + de 50 a + de 100 > 500


mil 10 mil a 20 mil a 50 mil 100 mil a 500mil mil
Quantidade de Munícipios 22 22 25 19 6 5 1
Quantidade de Lan House 15 21 28 23 7 6 1
Quantidade de Galerias de arte 0 3 7 21 16 40 12
Quantidade de Shopping center 1 1 5 15 21 47 10
Quantidade de Bibliotecas públicas 22 22 25 20 6 5 1
Quantas são mantidas pela gestão municipal 19 19 23 19 7 8 5
Quantidade de Museus 11 13 20 27 14 13 2
Quantas são mantidas pela gestão municipal 9 11 16 25 13 17 8
Quantidade de Teatros ou salas de
6 9 19 29 17 17 3
espetáculos
Quantas são mantidas pela gestão municipal 5 7 15 26 15 20 11
Quantidade de Centro cultural 14 15 23 25 11 11 2
Quantas são mantidas pela gestão municipal 13 14 21 23 11 14 5
Quantidade de Arquivo público e/ou centro
7 11 22 27 15 14 3
de documentação
Quantas são mantidas pela gestão municipal 7 12 21 26 16 14 4
Quantidade de Estádios ou ginásios
21 21 25 20 7 5 1
poliesportivos
Quantas são mantidas pela gestão municipal 15 17 23 23 10 10 2
Quantidade de Cinema 3 5 11 22 19 33 7
Quantidade de Banca de jornal 1 6 19 35 19 17 3
Quantidade de Videolocadora 9 17 28 27 10 8 1
Quantidade de Lojas de discos, CDs, fitas e
8 15 24 28 12 11 2
DVDs
Quantidade de Livraria 6 9 19 31 17 15 3
Quantidade de Unidade de ensino superior 4 10 25 33 14 11 2
Quantidade de Clube/associação recreativa 16 18 25 24 9 7 1
Quantidade de Circo fixo 3 3 5 8 21 38 23
Quantidade de Concha acústica 4 8 15 29 17 21 6

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados da Munic

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Tabela 3 – Equipamentos culturais no Rio Grande do Sul distribuídos por faixa populacional (2014)

Até 5 +de 5mil + de 10 + de 20 + de 50 a + de 100 > 500 Total


mil a 10 mil a 20 mil a 50 mil 100 mil a 500mil mil Geral
Quantidade de Munícipios 220 110 60 64 24 18 1 497
Quantidade de Lan House 41 64 43 61 23 18 1 251
Quantidade de Galerias de arte - 1 - 5 4 10 1 21
Quantidade de Shopping center - - 1 7 7 14 1 30
Quantidade de Bibliotecas públicas 212 109 58 64 24 18 1 486
Quantas são mantidas pela gestão
217 110 60 68 29 48 2 534
municipal
Quantidade de Museus 76 61 40 54 23 16 1 271
Quantas são mantidas pela gestão
76 58 39 63 33 21 1 291
municipal
Quantidade de Teatros ou salas de
12 10 18 33 20 17 1 111
espetáculos
Quantas são mantidas pela gestão
11 9 15 35 17 20 8 115
municipal
Quantidade de Centro cultural 49 31 25 40 20 16 1 182
Quantas são mantidas pela gestão
47 27 25 33 18 16 2 168
municipal
Quantidade de Arquivo público e/ou
13 12 14 35 16 17 1 108
centro de documentação
Quantas são mantidas pela gestão
12 12 13 36 16 17 1 107
municipal
Quantidade de Estádios ou ginásios
192 101 56 61 24 18 1 453
poliesportivos
Quantas são mantidas pela gestão
251 125 120 130 62 57 - 745
municipal
Quantidade de Cinema - - 3 11 9 14 1 38
Quantidade de Banca de jornal 3 11 16 39 21 18 1 109
Quantidade de Videolocadora 56 82 55 63 23 17 1 297
Quantidade de Lojas de discos, CDs,
30 38 23 50 22 18 1 182
fitas e DVDs
Quantidade de Livraria 45 42 35 53 22 18 1 216
Quantidade de Unidade de ensino
13 17 29 52 22 17 1 151
superior
Quantidade de Clube/associação
159 96 54 61 23 17 1 411
recreativa
Quantidade de Circo fixo - - - - 1 - - 1
Quantidade de Concha acústica 3 3 4 6 4 3 - 23

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados da Munic

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Tabela 4 – Proporção de equipamentos culturais no Rio Grande do Sul distribuídos por faixa
populacional (2014)

Até 5 +de 5mil + de 10 + de 20 + de 50 a + de 100 > 500


mil a 10 mil a 20 mil a 50 mil 100 mil a 500mil mil
Quantidade de Munícipios 44 22 12 13 5 4 0
Quantidade de Lan House 16 25 17 24 9 7 0
Quantidade de Galerias de arte - 5 - 24 19 48 5
Quantidade de Shopping center - - 3 23 23 47 3
Quantidade de Bibliotecas públicas 44 22 12 13 5 4 0
Quantas são mantidas pela gestão
41 21 11 13 5 9 0
municipal
Quantidade de Museus 28 23 15 20 8 6 0
Quantas são mantidas pela gestão
26 20 13 22 11 7 0
municipal
Quantidade de Teatros ou salas de
11 9 16 30 18 15 1
espetáculos
Quantas são mantidas pela gestão
10 8 13 30 15 17 7
municipal
Quantidade de Centro cultural 27 17 14 22 11 9 1
Quantas são mantidas pela gestão
28 16 15 20 11 10 1
municipal
Quantidade de Arquivo público e/ou centro
12 11 13 32 15 16 1
de documentação
Quantas são mantidas pela gestão
11 11 12 34 15 16 1
municipal
Quantidade de Estádios ou ginásios
42 22 12 13 5 4 0
poliesportivos
Quantas são mantidas pela gestão
34 17 16 17 8 8 -
municipal
Quantidade de Cinema - - 8 29 24 37 3
Quantidade de Banca de jornal 3 10 15 36 19 17 1
Quantidade de Videolocadora 19 28 19 21 8 6 0
Quantidade de Lojas de discos/ CDs/ fitas
16 21 13 27 12 10 1
DVDs
Quantidade de Livraria 21 19 16 25 10 8 0
Quantidade de Unidade de ensino superior 9 11 19 34 15 11 1
Quantidade de Clube/associação recreativa 39 23 13 15 6 4 0
Quantidade de Circo fixo - - - - 100 - -
Quantidade de Concha acústica 13 13 17 26 17 13 -

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados da Munic

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

A maior quantidade de equipamentos culturais são: bibliotecas públicas, estádios ou ginásios


poliesportivos, clube e associação recreativa, sendo os poliesportivos de gestão municipal, o
exemplo mais expressivo. Já as menores quantidades de equipamentos tanto no RS (2014) como no
Brasil eram galerias de arte; shopping centers; circos fixos; conchas acústicas e cinemas.
Talvez atualmente (2023) a configuração seja diferente, pois o país atravessou uma severa
recessão e posteriormente uma pandemia, que pode ter provocado mudança. No entanto
trabalhamos com estes dados pois eram os que estavam disponíveis.
Os dados nos apresentam uma realidade tanto do ponto de vista da urbanização no Brasil e
no RS no que diz respeito a memória dos equipamentos culturais nestas regiões: primeiramente o
Brasil (2014) é formado em sua maioria por municípios com até 50 mil habitantes o que também se
verificava no Rio Grande do Sul. Quando nos referimos ao número de equipamentos culturais,
enquanto nos municípios com maior quantidade de habitantes há uma concentração de
estabelecimentos como cinemas, shopping centers, galerias de arte e outros, nos municípios
pequenos há mais bibliotecas públicas e centros culturais. Esta diferença passa pelo tamanho e
renda da população, pois a oferta de bens e serviços culturais é uma relação direta da renda.

Considerações finais

A desigualdade do crescimento econômico brasileiro também é verificada no estado. Tanto


no Brasil quanto no RS a população está concentrada em poucos municípios, tendo crescido mais
no primeiro do que no Estado. Esta desigualdade vai se refletir em outros indicadores, como
demandas por cultura, atividades, parques, praças, entre tantos.
No que concerne aos equipamentos e sua dispersão, o Brasil tem a maior concentração em
Bibliotecas públicas; estádios ou ginásios poliesportivos (gestão municipal), sendo o último
exemplo, o mais expressivo. Já no RS a maior quantidade de equipamentos culturais são: Bibliotecas
públicas, Bibliotecas públicas; estádios ou ginásios poliesportivos (gestão municipal), Clube e
associação recreativa, sendo os poliesportivos de gestão municipal o exemplo mais expressivo. No
entanto, o menor número de equipamentos no RS, eram semelhantes ao Brasil: Galerias de arte;
Shopping centers; Circos fixos; conchas acústicas e Cinemas. Desta forma não podemos
desconsiderar a importância dos equipamentos culturais para o desenvolvimento social de uma
região bem como sua representatividade como um capital social.
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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Abramo: Editora Expressão Popular: ABED, 2021.

CLEMENTINO, Maria do Livramento. Economia regional e a produção do urbano crítico: lições de


Wilson Cano. Economia e Sociedade. v. 30, n. spe, p. 739-760, 2021.

COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. Cultura e Imaginário. Editora Iluminuras
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2017. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002895705. Acesso em: 01 fev. 2023.

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culturais e territórios urbanos.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. A antropologia urbana e os desafios da metrópole. Tempo


Social, São Paulo, v. 15, n. 1, p. 81-95, abr., 2003.

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Acesso em 10 dez. 2022.

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Revista Digital de Gestión Cultural. Número 15. Febrero 2020.
SANTOS, Fabiana Pimentel; DAVEL, Eduardo Paes Barreto. Identidade Territorial: Potencialidades
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administração. São Paulo: Atlas,
2005.

VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento no Brasil. São Paulo, EDUSP,
1999. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001130640. Acesso em 01 out. 2022.

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CONEXÕES CARTOGRÁFICAS ENTRE A CRIAÇÃO DA ESCOLA DE ARTES FRITZ ALT E


O PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO DE JOINVILLE/SC

Juliana Rossi Gonçalves | UNIVILLE | julirossi@gmail.com


Taiza Mara Rauen Moraes | UNIVILLE | moraes.taiza@gmail.com

Introdução

O presente texto é parte de uma pesquisa de Doutorado que aborda a criação e difusão
cultural da Escola de Artes Fritz Alt (EAFA) na cidade industrial de Joinville/SC, localizada no sul do
Brasil. O estudo desvelou conexões cartográficas entre o processo de industrialização e a criação de
uma escola de artes pública, pois o desenvolvimento cultural da cidade aconteceu concomitante ao
desenvolvimento industrial advindo de processos históricos ligados à imigração europeia da região.
A pesquisa mapeou algumas manifestações culturais locais que culminaram na criação da
EAFA na década de 1960, como os Kränzchen, grupos de mulheres formados inicialmente por
esposas de donos de comércios e indústrias que se reuniam para socializar em clubes de leitura e
praticar artes manuais. Seus desdobramentos serão os grupos de pintura em porcelana ministrados
por mulheres que se especializaram na técnica – entre elas, destaca-se a artista Edith Wetzel que,
além de ter atuado como professora, impulsionou na projeção e consolidação de aparelhos culturais
da cidade.
Para reunir os diferentes núcleos artísticos e de aprendizagem em artes que se formaram na
cidade, gestores e artistas criaram a EAFA em 1968. Desde seu início, artistas da cidade eram
chamados a lecionar na instituição, desvelando uma nova identidade, a do artista-professor, cenário
que permanece até os dias atuais, pois grande parte de seu corpo docente possui uma produção
artística ativa. Na década de 1970, a Escola passou a funcionar na Casa da Cultura Fausto Rocha
Júnior, polo cultural que oferece cursos de artes à população de Joinville e região.
O processo cartográfico da pesquisa foi apoiado em Deleuze e Guattari (2000), que utilizam
o conceito de mapas e rizomas, relacionado aos princípios de conexão e heterogeneidade: “[...]
qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente
da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem” (Deleuze; Guattari, 2000, p. 14). Implicada
em um acompanhamento de processos e percursos, a cartografia conecta o desenvolvimento
industrial da cidade à criação de uma escola de artes.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

A cidade do trabalho e das indústrias

A origem das concepções sociais que impulsionam Joinville/SC como industrial advém de
fatores históricos e econômicos. A cidade é marcada pela forte valorização do trabalho, presente
nas práticas, narrativas e representações. Essa representação social tem origem entre a metade do
século XIX e início do séc. XX, período “[...] da vinda de imigrantes europeus, de luso e afro-
brasileiros, formando a sociedade local e lançando os fundamentos do ‘mundo do trabalho’, com
suas relações, práticas e representações” (Cunha, 2008, p. 14). Kalb e Carelli (2015) afirmam que a
origem da industrialização da cidade remete ao seu processo colonizador de imigrantes germânicos:

O processo de colonização europeu (de língua alemã, tradição germânica e religião


protestante, em sua maioria) em meados do século XIX na cidade de Joinville foi
uma das grandes causas da formação do aglomerado eletro-metal-mecânico,
composto por inúmeras pequenas atividades mercantis e manufatureiras, bem
como de ferramentarias (Kalb; Carelli, 2015, p. 201).

As políticas imigratórias estimuladas pelo governo imperial fizeram com que um grande
contingente de pessoas migrasse de suas terras natais europeias, principalmente em função da falta
de mão obra pela Abolição da Escravatura. Por meio de acordos de interesses capitalistas de
comerciantes de Hamburgo (Alemanha), o empreendimento “Colônia Dona Francisca” (primeiro
nome da cidade de Joinville) tomou forma no Sul do Brasil, tendo como marco oficial de fundação
da cidade o ano de 1851 com a chegada dos primeiros imigrantes europeus, apesar de que na região
já havia moradores luso-brasileiros e indígenas.
Os imigrantes, em sua maioria germânicos, trouxeram consigo seus recursos e experiências.
Os que já tinham capital fizeram investimentos em empreendimentos e estabelecimentos
comerciais, enquanto os artífices, com pouco capital, abriram outros tipos de estabelecimentos
menores. Portanto, a industrialização da região foi proveniente de pequenas produções mercantis
com artesãos ou trabalho familiar, além da mão de obra qualificada de indústrias já existentes.
Outros fatores que estimularam a industrialização foram a ampliação do sistema de transportes e
comunicação (Rocha, 1997). A partir de 1880 os setores alimentício, metalmecânico e têxtil foram
impulsionados com uma série de indústrias com o capital acumulado de artesãos e comerciantes.

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Kränzchen e conexões com a criação da Escola de Artes Fritz Alt (EAFA)

Na Colônia Dona Francisca no século XIX, em meio à adaptação na nova terra, os grupos de
imigrantes se reuniam em atividades culturais e de lazer. Os bailes, passeios, piqueniques e
cavalgadas se destacavam, além das Sociedades de Canto, Corais, associações recreativas,
agremiações de música, de atiradores e principalmente os grupos de teatro amador marcaram como
os primeiros movimentos culturais, sendo que alguns eram vinculados à igreja.
Em meio a esses movimentos, os Kränzchen identificaram o momento cultural – o nome
designa reuniões de um pequeno grupo de mulheres. Sua tradução literal é o diminutivo da palavra
alemã “Kranz” e significa crochê ou pequena coroa de flores (Silva, 2000). O termo tem origem na
palavra Kaffeekränzchen, que advém de tradições sociais alemãs que remetem ao século XVIII, de
mulheres que se reuniam para socializar (Kränzchen, 2023).
Os grupos se reuniam para fazer crochê e em geral, eram formados por esposas de
fundadores de indústrias e estabelecimentos comerciais. Mesmo com boas condições financeiras,
normalmente eram responsáveis pelas tarefas domésticas diárias, o que possibilitava os encontros
nos sábados à noite. Nas reuniões, as mulheres faziam rodas de leituras e conversavam, trocavam
experiências, conhecimentos e poesias, sempre acompanhadas de café, comidas e doces, muitas
vezes preparados por elas mesmas.
Em uma pesquisa sobre a história das mulheres em Joinville no século XIX, a historiadora
Janine Gomes da Silva (2000) relata as atividades manuais oferecidas na época por professoras nas
escolas, dirigidas à educação da mulher e às tarefas voltadas para o lar. No jornal da Colônia,
denominado Kolonie Zeitung, foi encontrado um anúncio de 1889 da professora Maria Clara de
Miranda Oliveira que descreve as atividades oferecidas: “Ensina flores de escama, de papel, panno
(sic), penas, canutilho, vidrilho, etc., bem como o português, o bordar em ouro e prata [...]” (1889
apud Silva, 2000, p. 60). O anúncio demonstra um prenúncio do ensino da arte se moldando
timidamente em Joinville, por meio do ensino de técnicas manuais, indícios de uma demanda no
período inicial da colonização, século XIX, estendendo-se para o século XX – na Escola Paroquial (que

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atualmente abriga o Colégio dos Santos Anjos), era comum o ensino de trabalhos manuais (fig. 1), e
também as aulas de bordado, na Sociedade Harmonia Lyra5 (fig. 2).

Figura 1 – Escola Paroquial (atual Colégio dos Santos Anjos): estudantes (1923?).
Aula de trabalhos manuais, provavelmente bordado.

Fonte: Acervo Arquivo Histórico de Joinville.

Figura 2 – Exposição de bordados das alunas de D. Marieta Stock, no salão de banquetes da Sociedade
Harmonia Lyra (c. 1940).

Fonte: Acervo Arquivo Histórico de Joinville.

Em reportagem de Maria Cristina Dias (2016) pode ser identificada outra referência similar
aos Kränzchen, em que a artista-professora Rita Käsemodel relata como foi despertado seu interesse
inicial pela pintura em porcelana, na fase da adolescência. A artista contou que no período que
estudava no Colégio dos Santos Anjos, frequentemente se deparava com um grupo de mulheres e

5
A Sociedade Harmonia Lyra foi um dos primeiros espaços criados para eventos na cidade, por imigrantes e
seus descendentes em 1858. Segundo Mickucz (2017), surgiu da união da Sociedade Harmonie-Gesellschaft
(1858) e da Sociedade Musikverein Lyra (1899) que ocorreu em 1922.
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

rememorou que “No caminho da escola, parava no antigo galpão6 e se encantava com os grupos de
senhoras que transformavam louça branca em obras de arte” (Dias, 2016). Aos 17 anos, em 1972,
Rita se inscreveu no curso de Pintura em Porcelana e recordou que a maior parte das suas colegas
de curso, eram senhoras e donas de casa que aprendiam a pintura por hobby. O grupo de mulheres
tinha como professoras Edith Wetzel e Nany Keller. Não somente se reuniam para pintar nas aulas,
mas também para confraternizar:

A antiga tradição dos lanches das senhoras era muito presente naqueles tempos, e
as alunas faziam das aulas um outro momento de reunião com as amigas. “Iam para
as aulas, encontravam as colegas e a cada dia uma levava um doce. Paravam para
fazer o lanche, como uma atividade social”, explica Rita Käsemodel (Dias, 2016).

De família de imigrantes germânicos7, a artista Edith Wetzel (1920-2014) foi pintora,


escultora e ceramista, com efetiva atuação na projeção e consolidação de instituições culturais da
cidade que se encontram em funcionamento até os dias atuais, como o Museu Casa Fritz Alt (MCFA)
e o Museu Nacional de Imigração e Colonização (MNIC). Nascida em Joinville, estudava pintura nas
horas vagas de seu ofício como enfermeira e foi aluna do escultor alemão Fritz Alt (1902-1968),
radicado em Joinville, que foi quem a estimulou a desenvolver a pintura em porcelana:

“Ele sugeriu que eu me dedicasse à pintura em porcelana, pois não havia em


Joinville ninguém especializado nessa técnica”. Seguindo o conselho do mestre, [...]
[Edith] foi morar um tempo na casa de uma irmã em São Paulo e aprendeu a pintar
em porcelana (Redação ND, 2014).

Quando Edith e Nany Keller voltaram de São Paulo e começaram a lecionar, a pintura em
porcelana teve sua grande repercussão em Joinville, pois “[...] caiu no gosto das senhoras da cidade,
que apuraram o traço, buscaram novas técnicas e se destacaram na criação destas delicadas obras

6
Antes da construção da Casa da Cultura Fausto Rocha Júnior em 1972, era nesse antigo galpão que
funcionavam as aulas da Escola de Artes Fritz Alt.
7
Os pais de Edith Wetzel foram Marie/Maria e Hermann/Germano Wetzel (1873-1932), filho dos
imigrantes Friedrich e Emma Wetzel. Friedrich, pai de Germano, iniciou a Companhia Wetzel Industrial, a
partir do trabalho noturno (de complementação de renda) de produção de velas e sabões em 1856. Com
sua morte, Germano assumiu a direção da indústria e com as gerações posteriores, principalmente entre
1940-1960, a Wetzel tornou-se um complexo fabril que também fabricava cera para assoalho (Rocha,
1997).
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de arte” (Dias, 2016). Segundo Goulart (2009), Edith juntou-se a Fritz Alt e Nany Keller para reunir
forças na criação de uma escola de artes, na gestão de Nilson Bender:

Quando o Sr. Nilson Bender assumiu a prefeitura de Joinville, houve uma reunião
com o Sr. Alt e Sra. Nany Keller para a solicitação da criação de uma escola de artes.
Foi nesse momento que Edith tomou parte dessa empreitada. [...] Surgiu então, a
ideia de formar um grupo onde haveria mais força e outros poderiam dar aulas
(Goulart, 2009, p. 4).

O início foi difícil pois as duas artistas-professoras não tinham experiência em dar esse tipo
de aula, embora tivessem domínio sobre as técnicas e o conteúdo. Na reportagem de Dias (2016),
Rita Käsemodel explicou que as duas “Começaram a dar aulas juntas, na mesma sala, com uma
turma de 12 a 15 pessoas. Depois, dividiram os grupos com cinco, no máximo sete alunas”
(Käsemodel apud Dias, 2016).
Uma linha de conexão cartográfica é a participação de Edith em um Kränzchen. A pesquisa
de Souza (2021), ao citar o livro da professora de tradutora de alemão Regina Colin (2002), afirmou
que Edith participou de um grupo de canastra denominado Ingwerklub (Clube do Gengibre), que se
encontrava aos sábados à noite para jogar cartas e escrever poemas e rimas em alemão. A
fundadora do clube foi sua amiga Hilda Anna Krisch, responsável por sua introdução no trabalho
cultural na cidade (Souza, 2021).
Com a criação de núcleos de pintura em porcelana e a organização de artistas e gestores, o
processo de criação da Escola de Artes Fritz Alt (EAFA), inicialmente denominada Escola Municipal
de Artes Aplicadas, teve início em 1967, no entanto, a Escola foi inaugurada oficialmente em 8 de
março de 1968 (90 ALUNOS, 1968). A mentora política da criação da Escola foi Iraci Schmidlin (1930-
2003), na época Diretora do Departamento de Educação e Cultura, que articulou forças para a sua
criação, para “[...] aproveitar a potencialidade cultural da região, herança dos antepassados
europeus” (Schmidlin apud Mokross, 1992, p. 26). Em sua fala, é possível identificar a representação
simbólica da imigração germânica como sinônimo de progresso, civilidade, e de valorização da arte
e cultura, por meio das atividades e tradições culturais instituídas pelos imigrantes desde a fundação
da cidade.
O primeiro nome dado à escola, Escola Municipal de Artes Aplicadas, traz a ideia da
“aplicação” da arte para algum fim, com um objetivo “prático” para o trabalho. Uma hipótese inicial

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pensada para a pesquisa foi que a instituição poderia ter sido criada para a especialização da mão
de obra industrial da cidade, pois um fator que corroboraria para essa hipótese foi o curso de
Desenho Arquitetônico oferecido na constituição da escola, promovido em convênio com o
Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra Industrial – PIPMO8 (Mokross, 1992). Porém,
mesmo com esse curso inicialmente oferecido, não foi encontrada nenhuma outra pista ou
evidência que atesta que a Escola foi criada para a especialização de mão de obra industrial. Pelo
contrário, desde o início ela foi voltada ao fazer artístico, também pelo fato de que os professores
chamados para lecionar na Escola foram artistas com produção artística ativa na cidade.
Em 1968 a “Escola Municipal de Artes Aplicadas” passou a se chamar “Escola de Artes Fritz
Alt” em homenagem ao escultor alemão Fritz Alt. Segundo reportagem do Jornal A Notícia em
comemoração aos 15 anos da EAFA, o artista ministrou a primeira aula e morreu no dia seguinte,
no dia 15 de março de 1968 (JOINVILLE, 1968; Ampla, 1983), exatamente uma semana após a
inauguração da escola.
Os artistas que se destacavam na cidade eram convidados a lecionar na instituição. Dessa
forma, uma nova identidade é desvelada na EAFA, a do artista-professor, um traço do passado que
perdura na atualidade, pois a maioria dos professores atuantes são artistas visuais. Além da
docência e da produção artística, esses profissionais são reconhecidos pela atuação na gestão
pública e na efetivação de instituições culturais que moldam a cidade, assim como a atuação da
artista-professora Edith Wetzel. Atualmente, o ingresso como docente na EAFA é feito via concurso
público municipal.
A EAFA é mantida pelo poder público e atende anualmente cerca de 400 alunos dos seis aos
95 anos que frequentam os cursos de Arte Juvenil, Cerâmica, Desenho e Pintura, Escolinha de Artes
Infantis, Gravura, História da Arte, História em Quadrinhos, Pintura em Porcelana, Tapeçaria e
Tecelagem. A Escola funciona dentro da Casa da Cultura Fausto Rocha Júnior (CCFRJ), espaço
cultural da cidade que foi inaugurado em 1973 e oferece aulas de artes visuais (EAFA), dança (Escola
Municipal de Ballet), teatro (Escola Municipal de Teatro) e música (Escola de Música Villa Lobos) à
população, além de possuir uma galeria de artes (Galeria Municipal de Artes Victor Kursancew), um
auditório e uma biblioteca (Biblioteca Edith Wetzel).

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Criado por meio do Decreto n. 53.324, de 18 de dezembro de 1963 pelo Presidente João Goulart, o PIPMO
fazia parte das ações que implantariam as reformas na educação voltadas ao trabalho (Lobo Neto, 2018).
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Considerações finais

Os movimentos imigratórios germânicos estimularam o desenvolvimento industrial da


cidade a partir da criação de serviços e comércios que se transformaram em grandes indústrias no
século XX. Desde o século XIX, os grupos de imigrantes e seus descendentes criaram e mantiveram
associações culturais e recreativas de canto, música, tiro e teatro, denotando a necessidade de
atividades culturais e de lazer para uma sociedade que se uniu em prol de seu desenvolvimento em
uma terra desconhecida.
Além dessas associações culturais, algumas mulheres alemãs que eram esposas de donos de
indústrias e comércios se reuniam para socializar e exercer atividades artísticas e manuais, como
clubes de leitura e crochê, em grupos denominados Kränzchen. Os grupos sociais influenciaram a
criação de núcleos de pintura em porcelana ministrados por artistas como Edith Wetzel que, além
de sua atuação na docência e na produção artística, articulou forças para a constituição de espaços
culturais da cidade. Um deles foi a criação em 1968 da Escola de Artes Fritz Alt, fruto de um esforço
coletivo de artistas e gestores, que atualmente oferece cursos de artes visuais à população de
Joinville.
O estudo cartográfico forma conexões entre a industrialização da cidade com origem nas
correntes imigratórias germânicas, ao mesmo tempo que desvela aspectos culturais que culminarão
na criação de uma escola de artes pública. Dessa forma, infere-se que a EAFA e seus artistas-
professores participaram e auxiliaram no desenvolvimento cultural da cidade denominada
“industrial”, ressignificando Joinville como uma “cidade pluricultural”, devido à diversidade
identitária e artística que a compõe.

REFERÊNCIAS

90 ALUNOS irão estudar arte na escola ontem inaugurada. Jornal A Notícia, 9 mar. 1968. Acervo
Arquivo Histórico de Joinville.

AMPLA comemoração aos 15 anos da Escola de Artes Fritz Alt. Jornal A Notícia, 17 mar. 1983.
Página 10. Acervo Arquivo Histórico de Joinville.

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CIRCULARIDADES E DISPERSÕES DE ACERVOS: UM ESTUDO DE CASO

Dra. Maria de Fátima Fontes Piazza |UFSC | Observatório do Patrimônio Histórico Cultural (OPAH)|
mdpiazza@uol.com.br
Dra. Giane Maria de Souza | Arquivo Histórico de Joinville (AHJ). Observatório do Patrimônio Histórico
Cultural (OPAH)| gianehist@gmail.com

Introdução

A presente comunicação tem como escopo estudar objetos audiovisuais dispersos no


sentido arquivístico ou de coleção e tem como problema central a preservação do patrimônio
imaterial catarinense. A partir da provocação de um artigo de Carlos Sandroni (2022) Patrimônio
Imaterial: engarrafando nuvens?, o objeto de estudo diz respeito a Missão no Uruguai, título de
uma separata do folclorista Walter Fernando Piazza (1925-2016), doravante WFP. O documento
encontrado no acervo WFP foi depositado no Instituto de Documentação e Investigação em Ciências
Humanas, IDCH/FAED/UDESC, em Florianópolis/SC. Nesta separata, o folclorista aponta para uma
conferência proferida na Associação Cristã de Moços em Montevidéu, sob os auspícios do Centro
de Estúdios Folkloricos del Uruguay (CEFU), “Folguedos populares de Santa Catarina”, onde
apresentou uma película cinematográfica de 45 milímetros. O CEFU foi criado em 1954 pelo
professor Paulo de Carvalho Neto e seus alunos dos cursos de Folklore General y del Brasil, del
Instituto de Cultura uruguayo- brasileña y Antropologia de la Faculdad de Humanidades y Ciências
para fomentar as pesquisas de campo, de ensino e extensão. Essa missão no Uruguai tinha por
objetivo representar a Comissão Catarinense de Folclore (CCF), como delegado na II Exposición del
Folklore de las Américas, realizada na cidade de La Paloma, Rocha, entre os dias 23 de fevereiro a 3
de março de 1957, e incrementar o intercâmbio com os folcloristas latino-americanos,
especialmente os uruguaios vinculados ao CEFU.
A pergunta que não quer calar: onde se encontra o material audiovisual apresentado no
Uruguai, como a película e outros registros sonoros, como a da audição de número 91, na Rádio
Rural de Montevidéu em atividade mantida pelo CEFU, a entrevista concedida por WFP a Rádio
Carve, a palestra no Servicio Oficial de Difusión, Representaciones y Espetáculos (SODRE), sob o
título “As raízes do folclore Catarinense” e a conferência no Auditório da Associación Cristiana de
Jóvenes sobre “Folguedos populares de Santa Catarina”. A pesquisa partiu de uma notícia publicada
no site do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense, com a manchete
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Documentário histórico de importante folclorista gaúcho é recuperado por meio da iniciativa do IFS
e do IFRS, pelo historiador Vinicius Pereira de Oliveira, que localizou o curta-documentário
Moçambique, filmado na cidade de Osório, no Estado do Rio Grande do Sul, entre 1977 e 1978, pelo
folclorista e etnógrafo gaúcho Carlos Galvão Krebs (1914-1992), figura de destaque no movimento
folclórico gaúcho, que retrata uma das manifestações culturais fruto do sincretismo religioso ou
afro-católica. A pesquisa de Oliveira encontrou o documentário original filmado em super 8, com
duração de 11 minutos e 54 segundos e estava sob a guarda da neta do folclorista, Cristina Krebs,
este material foi digitalizado por meio de lei de incentivo à cultura e foi disponibilizado à
comunidade. Este folguedo popular, bem como, os catumbis ou quicumbis eram na primeira metade
do século XX, realizados majoritariamente por egressos da escravidão e seus descendentes na região
litorânea de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. No acervo de WFP depositado no
IDCH/FAED/UDESC não foram encontrados objetos que seriam suportes para audiovisuais, como
fitas cassetes, fitas magnéticas ou em VHS, por exemplo. Daí a problemática apontada por Fornaro
(2011, p. 62), de que “los archivos sonoros constituyen un caso muy especial de patrimonio: en ellos,
el llamado patrimonio intangible - es decir, la música interpretada y almacenada en soportes
específicos - deviene patrimônio material”. Estes objetos são de difícil conservação, seja no âmbito
de uma coleção privada ou nos espaços de salvaguarda.
Arquivo audiovisual é conceituado pelo Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística
(2005, p. 73), como: “O documento audiovisual é um gênero documental integrado por documentos
que contêm imagens, fixas ou em movimento, e registros sonoros, como filmes”. No caso em
estudo, estes documentos continham gravações dos registros do patrimônio imaterial catarinense,
notadamente de folguedos populares, como Folia e Festa do Divino, Pau de Fita, O Vilão, Boi de
Mamão e O Cacumbi, também conhecido como Quicumbi, Catumbi ou Ticumbi, que reverenciava
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito são folguedos que envolvem danças, músicas, cantos,
rezas em forma de versos rimados e coroação de Reis, ocorriam no ciclo natalino e assemelha-se a
outras danças dramáticas, como Reinado, Congado, Congada e Congo e suas variações regionais.
Segundo Lott (2021, p. 294) existe uma profusão de nomes: “a designação de Congada também se
confunde com os nomes das guardas - ou grupos de dançantes ou cantantes - que participam do
cortejo real. O Congo, juntamente com o Moçambique, o Catopé, os Caboclinhos ou (Caiapós) e a
Marujada (ou Marujos) homenageiam a santa (Nossa Senhora do Rosário) durante o cortejo real. Já

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o termo Reinado designa-se à conformação mais complexa, abrangendo os mitos fundadores da


prática festiva e a convivência cotidiana dos membros”. Tal como, o Moçambique no Rio Grande do
Sul, o mesmo que Carlos Krebs registrou na cidade de Osório, duas décadas depois que o folclorista
catarinense apresentou o audiovisual no Uruguai. O Patrimônio Imaterial segundo o verbete no
Dicionário Temático:

é a definição que se refere a práticas, representações, expressões, conhecimentos


e técnicas - junto com instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhe
são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos
reconhecem de seu patrimônio cultural (PELEGRINI, 2020, p. 71).

Também:

As práticas culturais propagam valores identitários que respeitam as tradições e


contribuem para a constituição de uma identidade regional ou grupal. Elas
simbolizam características peculiares de grupos que se manifestam em
comportamentos, valores e visões de mundo de uma comunidade (PELEGRINI,
2020, p. 71-72).

No Brasil, com a Constituição de 1988, que dispôs sobre “o patrimônio cultural brasileiro se
constituía de bens materiais e imateriais relativos à identidade e à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira”, reitera Pelegrini (2020, p. 72). Em Santa Catarina, em 2018,
tivemos o tombamento da bicentenária procissão do Senhor Jesus dos Passos em Florianópolis que
foi declarada Patrimônio Imaterial registrada pelo IPHAN e o Catumbi de Itapocú de Araquari foi
reconhecido pela Fundação Catarinense de Cultura (FCC). Sobre os arquivos audiovisuais, as
matérias na imprensa brasileira e uruguaia, noticiaram "proyecciones luminosas", no El día, de
Montevideo:

Hoy (15 de febrero de 1957) a las 19, en la Asociación Cristiana de Jóvenes, el prof.
Piazza disertará sobre “Folguedos populares en Santa Catalina”, con exhibición de
películas documentales de la “Comisión Catarinense del Folklore”. Uno de esos
films se referen al buey, figura totémica que se presenta en el folklore en Paraguay,
Venezuela y sobretodo el Brasil.

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Outro periódico, A Gazeta, de Florianópolis, em 12 de fevereiro de 1957, dissertou sobre o


material que seria apresentado por Piazza no Uruguai e que

fará exibir três pequenos filmes versando sobre o ‘boi de mamão’, ‘pau de fitas’ e
‘O vilão’, os dois primeiros filmados em Santo Amaro da Imperatriz e o último
filmado em São Paulo, por ocasião do festival folclórico do IV Centenário (1954)
com um grupo de São Francisco do Sul (SANTA CATARINA, 1957).

A película cinematográfica de 45 milímetros que foi levada ao Uruguai ou os documentários


acima citados, pertenciam à CCF, então dirigida pelo médico, professor, antropólogo e folclorista
Oswaldo Rodrigues Cabral (1903-1978), membro do Conselho Nacional de Folclore (CNF). A
Comissão e o Conselho deixaram de existir há muitos anos, junto com o movimento folclórico
nacional. Luís Rodolfo Vilhena (1997) sinaliza o período de 1947 a 1964 como o tempo de
constituição, apogeu e fim do movimento folclórico.
O CEFU que patrocinou o evento também não existe mais, este órgão fez uma tentativa de
criar um Museo del Hombre nos moldes do de Paris, para a salvaguarda do acervo acumulado por
pesquisadores e pesquisadoras do referido centro. O declínio dos movimentos folclóricos à nível
latino-americano apegados à tradição e a uma linguagem romântica, deixaram para trás os objetos
da cultura material e imaterial coletados durante décadas de pesquisa. A questão é que os acervos
se dispersam e se deterioram rapidamente, o que leva o pesquisador a percorrer caminhos muitas
vezes inusitados, como no caso do acervo audiovisual que, ao que parece, não está salvaguardado.
A fragilidade dos suportes dos registros audiovisuais, seja em fitas cassetes, fitas magnéticas e em
VHS que se deterioram pela ação de vários agentes, como umidade, fungos, luz, calor, entre outros
e levam a perda do registro das representações da cultura material e imaterial, além das questões
tecnológicas que se tornam rapidamente obsoletas.
O repertório apresentado no Uruguai à luz da Antropologia Cultural levando em conta a força
da tradição do movimento folclórico estadual emanada desde o I Congresso de História Catarinense
em 1948. Daí, a ênfase pelas manifestações culturais da região litorânea catarinense, notadamente
de colonização açórico-madeirense. Aqui, a Missão no Uruguai tem na nossa opinião, alguns
momentos que poderiam resultar em arquivos audiovisuais, como a audição de número 91, na
Rádio Rural prefixo CX-4, no dia 14 de fevereiro de 1957, atividade mantida pelo CEFU; a palestra
na Asociación Cristiana de Jóvenes, em 15 de fevereiro de 1957, sob o título “Folguedos Populares
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de Santa Catarina”, com a apresentação ao público da película cinematográfica que o folclorista


dividiu em duas partes: folguedos religiosos, não religiosos e populares de fundo religioso; a
palestra na SODRE, no dia 15 de fevereiro de 1957, às 11 horas, sobre “As raízes do folclore
Catarinense” e a entrevista dada por WFP à rádio Carve. Alguns arquivos ainda merecem consulta,
como em Montevidéu, o Archivo Nacional de la Imagen y la palabra, Archivo de la Radio Rural e de
la Radio Carve e o Archivo Lauro Ayestarán depositado nas dependências do Museo Histórico
Nacional, Museu Édison Carneiro no Rio de Janeiro, Museu da Imagem e do Som (MIS),
MarquE/UFSC em Florianópolis/SC, Arquivo Francisco Curt Lange na Biblioteca Central da UFMG em
Belo Horizonte e as pesquisas de Mário de Andrade depositadas na Discoteca Oneyda Alvarenga, no
Centro Cultural São Paulo, na capital paulista, que salvaguarda os registros iniciados com as viagens
etnográficas ao Norte e Nordeste e, posteriormente, conduzidas pelo arquiteto Luís Saia, sob a
orientação do escritor paulistano.
Este estudo aponta para uma questão crucial em que convergem arquivologia, museologia
e musicologia, não somente na parte relativa à conservação de documentos da cultura material e
imaterial, mas também, dos acervos museológicos e arquivísticos. Os arquivos pessoais contêm
elementos que ajudam a entender a música como parte de manifestações culturais. Também, uma
pesquisadora uruguaia chamou atenção de que: “El campo de intercambio entre archivologia y
musicologia es grande y puede ser muy fértil” (FORNARO, 2011, p. 62), levando em consideração a
transdisciplinaridade das pesquisas nesta área de conhecimento.
Observa-se que pelo escopo do CNF, o movimento folclórico possuía o interesse de criar
museus regionais e instituições que salvaguardassem o patrimônio audiovisual e iconográfico. O que
pode sinalizar que a fita VHS ou magnética apresentada por WFP na missão do Uruguai tenha sido
recolhida para esses fins. Até porque a preocupação do Movimento Folclórico e do Conselho com
os folguedos populares norteava a atuação e as pesquisas dos folcloristas. A Biblioteca Amadeu
Amaral (BAA) foi criada pela CNFL, uma “rica documentação organizada pelos folcloristas” sinaliza
Vilhena (1997, p. 32), entre acervos bibliográficos, iconográficos, audiovisuais, artefatos, existiam
acervos de correspondências trocadas entre os folcloristas no Brasil e exterior. Demonstrando uma
organização do arquivo acumulado pela CNFL ao longo de sua existência.

Dos folguedos ao patrimônio imaterial

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O que significa Folguedo? Segundo o dicionário Houaiss, folguedo 1. Substantivo masculino


folgança (brincadeira); 2. Dança Dramática. Etimologicamente Folgar + Edo, ver folia. (Houaiss,
2001, p. 1365). Quem participa são os folgados ou os brincantes, que brincam, dançam, cantam,
coreografam e tocam nos dias e horas de folga da jornada de trabalho, como a noite, feriados, dias
santos, sábados e domingos. Os Folguedos populares elencados por WFP na separata Missão no
Uruguai foram a folia e festividades do Divino Espírito Santo, Ternos de Reis e de Santo Amaro, o
Vilão, Boi na Vara, Boi de Mamão, Cacumbi ou Catumbi e Pau-de-fita. Na produção bibliográfica do
folclorista existem estudos sobre os Folguedos, entre os quais Boi na Vara, Quicumbi, Folia e
festividades do Divino Espírito Santo e Variações sobre o Boi de mamão, este último recebeu vários
nomes no país correspondente às variações regionais existentes, como Boi-Bumbá, no Amazonas e
Pará; Bumba-meu-boi, no Maranhão até o Boi-de-Mamão, em Santa Catarina. A maioria dos
folguedos seguem o calendário católico e possuem uma ritualística que envolve múltiplas
comunidades onde a celebração ou manifestação cultural está inserida. As práticas culturais,
segundo Canclini (1982), como parte de uma teatralização é composta por coreografias e
cenografias, marcados por cantorias, ritmos, indumentárias, rezas, artefatos, adereços,
instrumentos musicais, danças e comidas relacionadas à temática religiosa. O Terno de Reis remete
ao nascimento de Jesus e perdura até o Dia de Reis, em 6 de janeiro, data da entrega dos presentes
dos reis magos para o menino Jesus, findando o ciclo natalino.
Os folguedos divulgados por Piazza, em 1957, no Uruguai demarcam a concepção de folclore
existente à época e todas as concepções intrínsecas ao campo do patrimônio, sobretudo
trabalhadas pelo Movimento do Folclore Brasileiro instituído em 1947, sendo que no ano da missão
internacional catarinense no Uruguai, o movimento estava completando o seu decênio.
No Brasil, a CF-1988, nos artigos 215 e 216, retomou os conceitos de Mário de Andrade no
anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan). O Decreto n.º 3.551,
de 4 de agosto de 2000, dispôs sobre o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. O Plano
Nacional de Cultura (PNC), instituído pela Lei n.º 12.343, de 2 de dezembro de 2010, por sua vez,
difundiu a concepção antropológica de cultura em três dimensões a cidadã, a simbólica e a
econômica, retomando os preceitos de Mário de Andrade e de Aloísio Magalhães. Esses intelectuais
foram os principais expoentes da defesa do patrimônio imaterial e demarcaram a necessidade de

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se trabalhar as pesquisas etnográficas a partir de diagnóstico, coleta e identificação para a


salvaguarda do patrimônio.
Em Santa Catarina, com o Decreto n. 2.504, de 29 de setembro de 2004, que institui as
formas de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível que constituem o
Patrimônio Cultural (SANTA CATARINA, 2004). Este registro em quatro livros de tombo, seria o Livro
de Registro das Celebrações, com arcabouço legal estadual análogo ao federal, onde caberiam os
registros apresentados no Uruguai e à FCC, com o Programa Estadual do Patrimônio Imaterial,
visando à implementação de política específica de inventário, referenciamento e valorização do
patrimônio (CAVALCANTI & FONSECA, 2008, p. 198).
As manifestações culturais apresentadas no Uruguai, há sessenta e seis anos, caso os
registros visuais e sonoros existissem ou fossem encontrados e salvaguardados, colocam em
evidência algumas discussões. Interessante ressaltar que, as fitas de gravação que serviram de
suporte para os folguedos são sensíveis e apesar de protegidas recentemente pela legislação federal
e estadual ainda não foram encontradas. Primeiro, poderia demonstrar como a memória e as
experiências sociais do passado se transformam com o processo acelerado de urbanização das áreas
rurais de algumas cidades do litoral catarinense. Ao que parece, os intelectuais representados pela
CCF pensavam a identidade regional a partir das manifestações culturais, notadamente de matriz
açórico-madeirense. Com raras exceções, como o Cacumbi ou Quicumbi, cujos praticantes elaboram
memórias coletivas do grupo em torno de heranças de ancestralidades que são reelaboradas
constantemente. O folclorista Piazza fez um registro etnográfico sobre o Quicumbi localizado em
Caieras, no distrito de Guaporanga, que pertence ao município de Biguaçú, publicado pela CCF, em
1954, que não está embasado somente na identidade étnica do grupo, mas na complexidade da
manifestação com música, reza rimada, ritmo, indumentária, instrumentos musicais, movimentos,
estandartes, bandeiras e que na coleta etnográfica registrou a prosódia.
Sandroni (2022) chama à atenção para a metáfora entre patrimônio imaterial e o
engarrafamento de nuvens, porque:

Nuvens estão sempre se movendo e mudando de forma. A mudança é intrínseca a


elas; fechar nuvens em redomas - se isso fosse possível - impediria que seguissem
seu curso, e dissiparia suas formas cambiantes. Do mesmo modo, o patrimônio
imaterial está em permanente transformação; seu reconhecimento e proteção
oficial poderiam redundar em tentativas de confiná-lo (SANDRONI, 2022, p. 104).
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Do mesmo modo: “A imagem sintetiza a visão segundo a qual ações de poderes públicos
sobre formas expressivas populares, mesmo quando bem intencionadas, induzem a algum tipo de
‘cristalização’ ou ‘congelamento’ (metáforas recorrentes nos debates sobre o tema)” (SANDRONI,
2022, p. 104). Finalmente, o patrimônio imaterial Catarinense apresentado no Uruguai teve um
mediador intelectual no sentido proposto por Gomes & Hansen (2016) ‒ Walter Fernando Piazza.
Esta mediação se deu pela Exposición del Folklore de las Américas, com palestras, entrevistas e
audições em rádios, na SODRE, conferência na Asociación Cristiana de Jóvenes, Curso de Férias,
entre outros. O que remete a uma reflexão de que a geração, não no sentido biológico, que integrou
a CCF se distinguiu por integrar sodalícios, instituições de ensino superior e desenvolver pesquisas
nas áreas de História, Antropologia, Arqueologia, Sociologia, entre outras e deixou o folclore para
os “diletantes” fora da Academia. A patrimonialização, até então, tinha como suporte a
musealização que resultou no Instituto de Antropologia nos seus primórdios, atual MarquE, na
UFSC, que leva o nome de Oswaldo Rodrigues Cabral, fruto de pesquisas arqueológicas e
antropológicas. Esta instituição foi fundada por dois egressos da CCF, Cabral e Piazza, além de Silvio
Coelho dos Santos que sempre atuou na Antropologia estudando povos indígenas. Reside aqui, um
ponto de inflexão levantado por Zélia Lopes da Silva (2022, p. 127):

Como pensar essas salvaguardas nesse contexto de profundas transformações


vividas pelas sociedades contemporâneas, em que prevalecem rupturas
significativas nas relações humanas com o cultivo cada vez mais acentuado do
isolamento dos indivíduos, do hedonismo, e da ruptura dos diversos laços
comunitários?

Considerações finais

Esse trabalho é uma parte da pesquisa sobre a Missão do Uruguai e sobre os itinerários
etnográficos de Walter Fernando Piazza, sobretudo de como o pesquisador compreendia a cultura
popular e a divulgava em intercâmbios culturais e científicos. Ficou evidenciado que o filme de 45
milímetros exibido no Uruguai, há 66 anos, englobou várias manifestações culturais. Manifestações
que na década de 1950 eram denominadas folclore pelas comissões de especialistas, hoje são
compreendidas como patrimônio imaterial, indissociável com os saberes e fazeres da cultura

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popular e tradicional, que se mantém registradas nos textos de periódicos culturais e científicos
graças a atuação de folcloristas que atuaram nos inventários e registros audiovisuais e fotográficos
desses folguedos.
O estado atual da pesquisa é work in progress, pois o tema do artigo está em movimento,
podendo inclusive, suscitar novas abordagens e outros caminhos de análise. Em Aspectos Folclóricos
Catarinenses, de 1953, Piazza destacou: “A Comissão Catarinense de Folclore tem, desde então
(1949), trabalhado ativamente: pesquisas de campo (gravações e filmagens), inquéritos, publicação
de um ‘Boletim’, já, no quarto ano de existência, são o seu acêrvo e a sua contribuição à Cultura
Catarinense” (PIAZZA, 1953, p. 137). Do patrimônio material audiovisual a prova que restou é a
separata que faz menção ao documentário, objeto deste artigo. Sob uma perspectiva do método
indiciário, lembrando Carlo Ginzburg, nos debruçamos sobre um detalhe da Missão catarinense para
encontrar vestígios e possibilidades de análise histórica sobre a transição de abordagens, de
métodos e terminologias, do folclore para o patrimônio imaterial a partir dos registros de viagem.

REFERÊNCIAS

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Arquivo Nacional, 2005. 230p. Disponível em:
http://www.arquivonacional.gov.br/Media/Dicion%20Term%20Arquiv.pdf. Acesso em: 18 set.
2022.

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In: Patrimônio e Memória. Assis: Unesp, v. 17, n. 2, p. 294, 2021.

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Dicionário Temático de Patrimônio: Debates Contemporâneos. Campinas: Editora UNICAMP,
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Trajetórias e Perspectivas em Rede. Vitória: Editora Milfontes, 2022.

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SANTA CATARINA. Decreto n. 2.504, de 29 de setembro de 2004. Institui as formas de Registro de


Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível que constituem o Patrimônio Cultural de Santa
Catarina. Disponível em: http://server03.pge.sc.gov.br/LegislacaoEstadual/2004/002504-005-0-
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SANTA Catarina comparece a importante certamente cultural. A Gazeta de Florianópolis, 12 fev.


1957.

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Amazonas e Parintins. In: NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos (Org.). Patrimônio, Resistência e
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VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão. O movimento folclórico brasileiro. 1947-1964. Rio de
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ST – 3

Direitos culturais e justiça social

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CINQUENTENÁRIO DO TOMBAMENTO DE LENÇÓIS:


A DEFESA POPULAR DO PATRIMÔNIO CULTURAL MATERIAL DA BAHIA
Alexandre Almeida Aguiar9

RESUMO: A Revista do Patrimônio Histórico de 1978 registrou que uma equipe de jovens naturais
ou radicados em Lençóis: Steve Horman, Heraldo Barbosa Filho, Emanuel C. Marciel, Olímpio Senna,
Itamar Aguiar, Ivanice Alcântara, Rena R. Rola, Luiz Otavio Pereira e Ronaldo Senna, apresentou
trabalho em defesa do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural no II Encontro de
Governadores. Estes cidadãos, em 1973, são alguns dos que fizeram parte do Movimento de
Criatividades Comunitárias – MCC, que culminou com o primeiro tombamento de conjunto urbano
por iniciativa popular do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN.
O tombamento coletivo se revela como um esforço democrático que impede perdas e danos tais
quais descaracterizações, demolições ou ruínas no centro histórico de Lençóis, cidade surgida no
século XIX, a partir das lavras diamantinas da Bahia. Este artigo, de vertente jurídico-social e do tipo
jurídico-histórico, pretende demonstrar a importância do instrumento em análise, que destaca a
função cultural da propriedade, com o propósito de revelar o anseio local por equidade na
manutenção do acervo. Por fim, percebe-se que a hipossuficiência econômica dos detentores dos
bens culturais aponta para a necessidade de proteção com ênfase nos direitos humanos inerentes
ao patrimônio cultural envolvido.

Palavras-chave: Tombamento coletivo; Direitos culturais; Detentores; Equidade; Lençóis.

Considerações iniciais

A cidade surge a partir de povoamento motivado pela mineração de diamantes e carbonatos,


com construções de período do Século XIX, sendo que a cultura extrativista dos garimpos compõe
o contexto político, social, econômico e cultural da ocupação colonialista, estando estes e outros
aspectos delineados de forma cientificamente apropriada no estudo Anseios, dissonâncias,
enfrentamentos: o lugar e a trajetória da preservação em Lençóis (MANGILI, 2015).
Neste artigo, contudo, o que se propõe, é fazer um recorte para homenagear o
cinquentenário do primeiro tombamento por iniciativa popular do Brasil (MANGILI, 2015) ocorrido
no ano de 1973, de modo a falar que a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de 1978
registrou que uma equipe de jovens naturais ou radicados em Lençóis: Steve Horman, Heraldo

9
Advogado. Especialista em Direito Previdenciário. Participa no Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais
Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR), Presidente da Comissão Especial de Entretenimento e Cultura da OAB/BA
(Triênio 2022-24).
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Barbosa Filho, Emanuel C. Marciel, Olímpio Senna, Itamar Aguiar, Ivanice Alcântara, Rena R. Rola,
Luiz Otavio Pereira e Ronaldo Senna, apresentou trabalho em defesa do patrimônio histórico,
artístico, arqueológico e natural no II Encontro de Governadores, na cidade de Salvador.
Estes cidadãos, são alguns dos que fizeram parte do Movimento de Criatividades
Comunitárias – MCC num período que o retrato apresentado pelo fenômeno da escassez nos
garimpos, promoveu o decréscimo populacional das lavras diamantinas em Lençóis, com o
enceramento de garimpos, fechamento de imóveis residenciais e comerciais, trazendo
características de abandono ao acervo com ameaças de perdas e danos. Na referida circunstância,
o movimento eclesial de base, influenciado pela Diocese de Rui Barbosa, realiza a formação de
lideranças na população local, o que envolve sobretudo professores e a juventude da época.
A característica participativa presente no tombamento coletivo na cidade de Lençóis, Estado
da Bahia, por realização de lobby (MANGILI, 2015) conjunto de atores engajados por ações sociais
e petições ao Poder Público, ocorre até alcançar a decisão de competência administrativa
(MIRANDA,2021) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, requisito afeito
ao princípio constitucional da participação popular (CUNHA FILHO, 2018) na defesa dos direitos
culturais e direito do patrimônio cultural, expresso anos mais tarde na Carta de 1988, quando no
Art. 23, incisos III e IV, Art. 30, inciso IX, e Art. 216, § 1º o legislador constituinte menciona a
colaboração da comunidade:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios:
(...)
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e
cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de
outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
(...)
Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a
legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
(...)
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
(...)

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§1º Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o


patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação.”

O texto constitucional de 1988, por sua vez, adiante vem a fortalecer os titulares dos direitos
relacionados a cultura, quando a Emenda Constitucional 71/2012 destaca no Art. 216 – A caput, a
obrigatoriedade sistêmica de pactuação das políticas públicas culturais entre os entes da federação
e a sociedade civil, o que orienta a retirada do apito autoritário das oligarquias e classes dirigentes,
na realização das políticas públicas culturais, sendo essa a marca adstringente que a defesa popular
do patrimônio cultural estabeleceu na Bahia, a partir do Tombamento de Lençóis:

“Constituição Federal
Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração,
de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e
promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes,
pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover
o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos
culturais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012)”

A menção de alguns dos envolvidos no tombamento coletivo de Lençóis, vem para acentuar
o que dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos artigo 22 e 27, ao definir, na parte em
que trata do direito humano do patrimônio cultural (MIRANDA, 2021), que é garantido a toda
pessoa o direito a segurança social para legitimamente exigir a satisfação dos direitos culturais
indispensáveis e toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da
comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso cientifico e de seus benefícios, de modo
a reconhecer esses direitos como pessoais, sendo, portanto, uma questão da pessoa humana,
enquanto ser ou indivíduo e assim direitos invioláveis.

Função cultural da propriedade e equidade na manutenção do(s) acervo(s)

O direito de propriedade está garantido na Constituição Federal de 1988, Art. 5º, inciso XXII
e também no inciso XXIII onde consta a definição de que a propriedade atenderá a função social.
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Por estes dispositivos constitucionais, cabe levantar a hipótese de conceituação jurídica da


sobredita função cultural da propriedade, o que aqui se faz por exercício de analogia comparativa,
no campo da hermenêutica (STRECK, 2014) o que doutrinariamente já vem sendo chamado de
função sociocultural da propriedade (MIRANDA, 2021).
Observada a indivisibilidade dos direitos humanos, ao propor a função cultural da
propriedade no direito do patrimônio cultural, o que se busca além da correlação no sentido jurídico
da função social da propriedade, estabelecida no Título VII, que trata da Ordem Economia e
Financeira, Art. 170, inciso III da Constituição Federal e a Lei 10.257/2001 (Estatuto das Cidades) é
a especificidade insculpida nesta terminologia para imaginar novas possiblidades democráticas
(SANTOS, 2018).
A designação Função Cultural da Propriedade se justifica dada a abrangência fundamental
de afirmação dos direitos relacionados a cultura, de modo que se possa definir uma base para que
o Estado crie os meios sistêmicos específicos voltados a promoção e proteção do patrimônio
cultural, inserido aí o imóvel ou os imóveis tombados, seja de forma individual ou coletiva, dada
pertinência para ações focais de fomento na dimensão econômica da cultura, embasada na
legislação vigente, a considerar que Lençóis. por exemplo, jamais alcançou o aterramento das
fiações elétricas e retiradas dos postes de energia que causam impacto ambiental e enfeiam as
fachadas dos imóveis.
A hipótese de correlação da função social da propriedade, com a aqui proposta função
cultural da propriedade, almeja por certo ir ao encontro de invenções jurídicas para dinamizar e até
mesmo oxigenar o direito de propriedade, de modo que possa ser atribuída autonomia nas políticas
públicas relacionadas ao direito do patrimônio cultural, com custeio direto das medidas de
promoção e proteção indispensáveis, a partir do apoio e incentivo constitucional da cultura, cujo
compromisso permeia a responsabilidade do Estado em garantir a efetividade desses direitos.
Como exemplo, no caso de Lençóis, Estado da Bahia, é possível notar circunstâncias que
dificultam a proteção federativa do conjunto arquitetônico de tombamento coletivo na cidade
histórica, que é uma cidade monumento, com cerca de 10.000 (dez) mil habitantes, em que se fosse
considerada a função cultural da propriedade, contemplada as dimensões estéticas, paisagísticas e
visuais por políticas públicas, o Estado talvez já possuiria alternativas para agir na defesa plena da
conservação no cenário do patrimônio cultural com recursos.

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E preciso, romper o imobilismo, com o desenvolvimento de novos mecanismo, para


concertar diversos bens culturais e lhes entregar íntegros à coletividade, ainda que particulares,
diante da condição econômica de hipossuficiência dos seus detentores, ou mesmo em
circunstâncias relacionada ao direito de sucessão hereditária, com casarões e sobrados deteriorados
pela ação do tempo ou fechados, o que põe as unidades do acervo patrimonial cultural coletivo em
risco e sob a sanha da indesejável especulação imobiliária, que podem ter um contraponto por meio
de normas jurídicas afeitas a função cultural da propriedade.
O FUNPATRI, criado em Lençóis pela Lei Municipal 551/2001 não agiu em imóveis
particulares, tendo acontecido recuperações apenas em imóveis públicos, apesar de em 2020 o
sobrado que abriga a Phylarmonica Lyra Popular de Lençóis, ter sido beneficiado por reforma
através do Projeto Destino Elo, da operadora de Cartões de Crédito Elo10. A questão de Lençóis
passa pela impactante e integral reforma de todos os imóveis do centro histórico, numa iniciativa
de proteção e promoção, que consorciado a ao reconhecimento do patrimônio cultural imaterial na
efetivação do Sistema Municipal de Cultura pode transformar definitivamente a vida da população
local, com a garantia dos direitos relacionados a cultura.
A propriedade, domínio, detenção ou posse de bens considerados parte do acervo, no
patrimônio cultural precisa ser abrangida por medidas de proteção providenciadas de forma
simplificada, através da atuação do Poder Público e Iniciativa Privada, com lastro no princípio da
informalidade, para proteger o patrimônio cultural material, uma vez que estes bens terminam
submetidos a ameaças de perdas e danos como a ruina, ou ainda, de outra maneira, submetidos a
especulações imobiliárias que terminam em descaracterizações ou demolições irrecuperáveis no
todo ou em parte, do que é preciso aparatos de defesa.
A noção de equidade aplicada ao patrimônio cultural material no Brasil, então, aponta para
necessidade de se desenvolver instrumentos de encaixe das tutela dos bens jurídicos, dada a
conhecida dificuldade de acesso à legislação sobre o patrimônio cultural brasileiro, muito extensa,
pouco conhecida e sistematizada (PAIVA, 2011) sendo que o tema do Seminário Nacional de Direito

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Noticias. Casarão de Lençóis começa a ser recuperado. SETUR – Secretaria de Turismo do Estado da Bahia. Disponível
em: http://www.setur.ba.gov.br/2020/05/1675/Casarao-de-Lencois-comeca-a-ser-recuperado-.html. Acesso em 04
abr. 2023
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do Patrimônio em 2023, foi a elaboração e aprovação da Lei Geral do Patrimônio Cultural Brasileiro,
defendida na Carta de Ouro Preto.
Por certo, a eventual adoção e o reconhecimento da instituto jurídico da função cultural da
propriedade, com o aproveitamento do valor favorável das dimensões dos bens jurídicos do
patrimônio cultural, poderá cobrir de beleza cênica ambientes urbanos de relevante valor histórico,
artístico e cultural, não só na cidade de Lençóis, mas por exemplo no bairro da Lapa no Rio de Janeiro
ou no Pelourinho em Salvador, por via do custeio da recuperação de imóveis, proteção e promoção,
escorado no princípio constitucional do suporte logístico estatal (CUNHA FILHO, 2018).
Na dimensão econômica do direito do patrimônio cultural, a economia criativa (HOWKINS,
2013) , pode transformar o modelo constitucional de proteção e promoção dos bens imóveis
componentes do patrimônio cultural material, via projetos de reformas de fachadas e do interior de
imóveis históricos, de modo que taís iniciativas possam ser acompanhados do fomento a abertura
de bibliotecas, museus, cinemas, estúdios de gravação em sobrados e casarões, vinculado à estas
iniciativas perspectivas educacional e negocial.
O incentivo a formação de micro e pequenas empresas, para geração de emprego e renda,
com o olhar nos ODS - Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, para combate à fome e
erradicação da pobreza, por via dos mecanismos de proteção e promoção associado a função
cultural da propriedade, tendem a potencial junção das artes, memórias coletivas e fluxos de
saberes (CUNHA FILHO, 2018) com o turismo e a inserção de novas cadeias produtivas, financiada
por investidores através de recursos não reembolsáveis e parcerias público privadas, com a
contratação de mão de obra especializada, desenvolvimento de termas relacionados a cultura.

A declaração de hipossuficiência dos detentores de imóveis históricos

O direito do patrimônio cultural, certa medida possui longevidade no ordenamento jurídico


brasileiro, a partir do Decreto Federal 25/1937, por exemplo, motivo que levou os jovens da
comunidade de Lençóis a pleitear o Tombamento do conjunto arquitetônico, para obtenção do
direito coletivo a conservação dos bens imóveis pioneiramente em 1973 junto ao IPHAN, como já
mencionado, portanto, há cinquenta anos.
Atualmente esses direitos do patrimônio cultural tem alcançado novas hipóteses, à medida
que os estudos, pesquisas e debates democráticos tem avançado, cabendo elencar as emendas
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constitucionais editadas pós Constituição Federal de 1988, bem como, a recente etapa afirmativa
dos direitos culturais com as Leis de Emergência Cultural 14.017/2020, 195/2022 e 14.399/2022,
respectivamente Aldir Blanc, Paulo Gustavo e por derradeiro a Aldir Blanc II, destinadas ao apoio
cultural da União nos Estados, Distrito Federal e Municípios.
Ao analisar a circunstância do cidadão detentor de imóvel tombado, seja este proprietário
do imóvel ou não, mas que por sua vez esteja legitimamente na posse direta do bem, submetido à
condição de baixa renda ou pobreza no sentido jurídico do termo, sem condições de arcar com os
custos da proteção e promoção do bem cultural, mais uma vez, por exercício hermenêutico (STRECK,
2014), cabe a analogia à concepção do instituto da hipossuficiência jurídica.
É possível, assim, verificar por observação e escuta da comunidade tradicional nas lavras
diamantinas da Bahia, que a população se ressente do IPHAN, considerando-o restritivo e punivista,
ao tempo que apontam desigualdade no tratamento de quem é rico e pode tudo, em relação a
quem é pobre e não pode nada, sobretudo no tocante as medidas fiscalizatórias de proteção
patrimonial do acervo tombado na cidade, que outrora foi uma vila de garimpeiros artesanais,
catadores de pedras preciosas que se tornou turística, submetidos em um processo de exploração
de mão de obra, do garimpo ao turismo, pairando na comunidade um sentimento de permanente
injustiça patrimonial cultural.
Neste sentido, a concepção do instituto jurídico da declaração de hipossuficiência dos
detentores de imóveis históricos, com aplicabilidade extrajudicial e administrativa, em ampliação
ao entendimento disposto no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, pode garantir que o Estado venha a
prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, na esfera do
direito do patrimônio cultural, podendo, assim ser instaurada uma política reparatória, nas medidas de
proteção e promoção do patrimonial cultural, com o apoio a reforma incentivada dos imóveis de pessoas
vulneráveis no centro histórico tombado.
A defesa do patrimônio cultural precisa ser conjugada desde o Art. 215, caput e § 1º do Art. 216 da
Carta de 1988, na parte que indica apoio e incentivo, somado a promoção e proteção do patrimônio cultual,
com o que também estabelecem a Lei Federal 8.313/1991 e o Decreto Nacional de Fomento 11.453/2023,
além da expectativa de aprovação da Lei do Plano Nacional de Cultura e do Marco Regulatório do Fomento,
no Congresso Nacional, para ajudar a concertar os imóveis tombados do Brasil via incentivos fiscais,
superando na cultura um antigo gargalo jurídico na dicotomia entre o público e privado, que envolve o direito
de propriedade.

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A cidadania cultural no Estado Democrático de Direito, com a inclusão de quem está em


vulnerabilidade social e econômica, seja na falta de condições para promover uma simples reforma de um
bem imóvel ou devido a morosidade judiciária num processo de inventário por sucessão hereditária de
imóvel tombado, por base no instituto da Declaração de Hipossuficiência dos Detentores de Imóveis
Históricos, propõe-se uma opção simplificada, que pode servir a tutela dos bens culturais materiais.
Na dimensão prática da proteção e promoção de imóveis históricos ou de interesse do patrimônio a
partir de seus detentores é essencial por via de cadastro público simultâneo em âmbito Federal, Estadual,
Distrital e Municipal, permanente não só quanto aqueles imóveis tombados e com registro em livro próprio,
mas também dos imóveis de interesse patrimonial cultural que ainda não foram alcançados pela política de
patrimônio, com medida cautelar antecedente para pré-notação do valor patrimonial cultural do imóvel em
Cartório de Registro e controle dos alvarás de construção e demolição dos imóveis no Setor Municipal de
Obras.
A Declaração de Hipossuficiência dos Detentores de Imóveis Históricos para obtenção de políticas
públicas de reparação em relação aos imóveis, pode servir de estimulo a colaboração da comunidade, para
ajudar o poder público a galgar a efetividade constitucional sistêmica de ampla garantia a proteção e
promoção do patrimônio cultural, com estimulo e preservação dos bens culturais materiais, sejam imóveis
tombados individualmente ou em conjunto, com tombamento apenas de fachada ou na totalidade.

Conclusão

O Cinquentenário do Tombamento de Lençóis, primeiro tombamento coletivo por iniciativa popular


do Brasil, acontece com relevante significado na defesa popular do patrimônio cultural material brasileiro na
Bahia, referencial das aspirações do povo no exercício da cidadania cultural, que favorece a aprendizado das
iniciativas celebradas pelos movimentos culturais, construído por muitas mãos, como marca na trajetória
afirmativa dos direitos humanos. O povo, por sua vez, vem sendo interpretado de maneira equivocada, pois
a observação desses direitos deveria ser a partir dos direitos culturais, econômicos, sociais, políticos e civis,
necessariamente nesta ordem, não o contrário, sendo dedutível que está na cultura o domínio dos meios de
produção para tentativa do encaixe das peças do quebra cabeças do desenvolvimento humano.
A função cultural da propriedade, assim conceituada por correlação com a função social da
propriedade, observada a autonomia do direito do patrimônio cultural, pode se valer dos mesmos
instrumentos jurídicos já definidos àquela, para uma equiparação legislativa imediata, mas deve servir como
sugestão para aguçar o interesse da comunidade jurídica e setor cultural em pensar novas possiblidades
capazes de garantir a efetividade constitucional e complementaridade sistêmica, por base no que dispõe o

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texto da Carta Magna, nos Art. 215, 216 e 216-A, de modo a assegurar o patrimônio cultural material com
a execução eficaz de políticas públicas adequadas na proteção e promoção desses direitos.
A Declaração de Hipossuficiência dos Detentores de Imóveis Históricos, vem com o condão de
romper o imobilismo social e econômico, para que o fomento assuma a responsabilidade de promover
políticas públicas de reparação para a sociedade civil brasileira, que segue se abrigando nos imóveis
tombados como patrimônio cultural material ou mantendo-os fechados em meio aos prejuízos provocados
por todas comoções que abalam a vida brasileira, desde a independência até a proclamação da república,
350 anos de escravidão, duas ditaduras e tantas rupturas que são obstáculo para que o constitucionalismo
direcione o Estado Democrático de Direito, para Agenda21 da Cultura e consolidação dos ODS – Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável na Agenda 2030 da UNESCO.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

A CULTURA COMO DIREITO A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: ESTUDO DA


IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS CULTURAIS, COMO A LEI ROUANET, NOS ESTADOS
DE RIO GRANDE DO SUL E SANTA CATARINA NOS ANOS DE 2015, 2018 E 2021

Moisés Waismann11
Judite Sanson de Bem12
Rute Henrique da Silva Ferreira13

RESUMO: A partir da metade do século XX houve um aumento da preocupação com a salvaguarda


do patrimônio cultural edificado como meio de desenvolvimento do território. No Brasil, foi a
Constituição Federal de 1988 que marcou a fase de institucionalização da cultura como direito
fundamental do cidadão. Junto a este direito veio a necessidade de acesso e universalização. Esta
seria mediada por leis de incentivo, a partir do Governo de José Sarney e, mais fortemente, com a
Lei Rouanet. No entanto, os estados não têm o mesmo acesso, sendo exemplo o Rio Grande do Sul
e Santa Catarina. O objetivo deste artigo é apresentar as disparidades de financiamento entre estes
dois Estados da Federação no período de 2015, 2018 e 2021. Metodologicamente a pesquisa é
exploratória e se utilizou de dados do Sistema SALICNET. Entre os motivos destas desigualdades
estão as fontes de financiamento e a possibilidade de obtenção de lucros com os recursos provindos
da isenção fiscal habilitados pelas leis de incentivo.

Palavras-chave: Lei Rouanet. Constituição Federal. Rio Grande do Sul. Santa Catarina.

Introdução

A Constituição Federal de 1988 a partir dos artigos 215 e 216 atribui ao cidadão brasileiro o
direito à cultura, no entanto o pleno exercício dos direitos culturais só passa a ser desfrutado
quando os indivíduos têm acesso mediante leis ou políticas. Estas são mais ou menos
intervencionistas, sendo sua oferta ora dever do Estado ora obrigação da iniciativa privada.
Objetivo deste artigo é descrever a importância das políticas culturais a partir da
incorporação da cultura como direito fundamental na Constituição de 1988. Tendo por base a
principal política de financiamento cultural no Brasil, far-se-á uma análise dos dados do
financiamento cultural no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina nos anos de 2015, 2018 e 2021.
Metodologicamente a pesquisa foi exploratória (VERGARA, 2000), pois caracteriza dados do
financiamento cultural, e suas principais fontes de investigação foram os dados disponibilizados

11
Universidade La Salle. E-mail: moises.waismann@unilasalle.edu.br
12
Universidade La Salle. E-mail: judite.bem@unilasalle.edu.br
13
Universidade La Salle. E-mail: rute.ferreira@unilasalle.edu.br
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

pelo Sistema SALICNET, que permite acessar informações sobre os projetos beneficiados pela Lei
Rouanet, através de consultas, relatórios e extração de dados de pessoas físicas ou jurídicas
participantes dos projetos. Quanto aos meios de investigação, a pesquisa se caracteriza como
documental e bibligráfica, uma vez que também foram realizadas revisões teóricas sobre a temática
das políticas culturais.
O artigo está dividido em três partes principais: primeiramente há uma breve descrição da
cultura na Constituição de 1988 e tratados que se seguiram, seguida de questões relativas ao
financiamento cultural, com ênfase na Lei Rouanet e da comparação dos dados de financiamento
cultural via Lei Rouanet em Santa Catarina (SC) e Rio Grande do Sul (RS). Finaliza-se com as
considerações finais e as referências.

Constituição e políticas culturais: uma trajetória

A Segunda Guerra Mundial e os estragos que provocou tanto econômica, social, ambiental e
culturalmente trouxe à tona diferentes questões, entre as quais pode-se citar a destruição de
patrimônios edificados, como o Castelo de Shuri no Japão e destruição de Florença. Assim, as
Declarações que se seguiram à II Guerra trataram de assegurar alguns direitos, como Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948), a qual incorporou os direitos culturais expressos nos
Artigos 22 e 27 (ALEM, 2017).
Na América do Norte, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, também
de 1948 e que antecedeu a Declaração Universal, já trazia o tema da cultura em seu texto, conforme
destaca ALEM (2017).
A partir destas convenções de 1948, outras foram à efeito, entre as quais a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969 (Decreto n.º 678/92).
Mais adiante, em 1988, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em
Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador” (Decreto n.º
3.321/99), destaca no Preâmbulo e Artigo 14 a relação entre direitos econômicos, sociais e culturais
e os direitos civis e políticos. No entanto, conforme destaca Canotilho (1993), a cultura como
matéria constitucional é mais recente.
No Brasil, o debate sobre a democracia cultural é um norte para os gestores públicos da área
cultural a partir da Constituição Federal de 1988, sobretudo quando se considera que a
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democratização se refere a valorização e disponibilização, acesso, de todo o tipo de arte ou outro


bem e serviço cultural, à maior parte da população e que este processo de democratização passa
pela construção de políticas públicas com abrangência territorial, que impliquem na democratização
das fontes de financiamento e na participação nos processos políticos (BARBOSA, ELERRY, MIDLEJ,
2007).
Com a promulgação da Carta Magna de 1988 a cultura ganhou dois artigos específicos: os
artigos 215 e 216. O artigo 215 trata da garantia universal da cultura aos cidadãos brasileiros,
proteção das manifestações culturais e prevê o Plano Nacional de Cultura. Já o artigo 216 denomina
o que se entende por patrimônio cultural material e imaterial além de atribuir responsabilidades
aos diferentes entes federados (BRASIL, 1988).
Em 2012 há a instituição de uma Emenda Constitucional, criando o Sistema Nacional de
Cultura (SNC) (BRASIL, 1988, p. 127)

Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração,


de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e
promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes,
pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover
o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos
culturais. (EC no 71/2012)

Além disso, a expressão cultura passa a aparecer em diferentes documentos oficiais e


sobremaneira a partir dos anos de 1990 quando da assinatura de tratados em que o Brasil passa ser
signatário junto a ONU e UNESCO. A partir deste momento, a cultura passa a ser vista como eixo
dinamizador do desenvolvimento econômico.
Entre estes tratados pode-se citar a Rede de Cidades Criativas da UNESCO (UCCN), que foi
criada em 2004 e tem o objetivo de “[...] promover a cooperação com e entre as cidades que
identificam a criatividade como um fator estratégico para o desenvolvimento sustentável.”
(UNESCO, 2022).
Outras convenções da UNESCO na área da cultura em plataforma global na qual o Brasil está
presente são: Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais
(2005); Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003); The Convention on
the Protection of the Underwater Cultural Heritage (2001). (UNESCO, 2022).

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Deste modo, a Constituição Federal de 1988 é relevante pois, além de ser a lei máxima do
país, ela abrange pontos que até então eram inexistentes ou estavam subjugados, incluindo a
cultura (PIOVESAN, 2022). Vê-se a cultura, desta forma, se tornando um motivo de preocupação e
objeto de ação pública, deixando de ser interpretada como algo que seja desfrutada apenas pelos
mais abastados e passando a ser algo universal.
Com a Constituição de 1988 a cultura, além de participar dos direitos fundamentais, ou seja,
situar-se como parte do rol dos direitos civis e políticos – dos direitos básicos, “[...] passou a compor
aqueles direitos que exigem condições materiais e ações específicas para garantir os meios de
realização da cidadania [...]” (BARBOSA; ELLERY; MIDLEJ, 2007, p. 227).
Assim, surge outra demanda fundamental para a consecução desta realidade: recursos
institucionais ou políticas públicas. Entre estas surge a política de financiamento cultural que vai
estar presente a partir do Governo Sarney, com a criação do Ministério da Cultura (MinC), criado
em 15 de março de 1985 pelo decreto nº 91.144. Mais adiante, já no ano de 1991, é editada a Lei
Rouanet, objeto a ser discutido na próxima seção.

Financiamento cultural: um estudo de caso entre Rio Grande do Sul (RS) e Santa Catarina (SC)
através da Lei Rouanet – breves considerações

À luz da discussão da seção anterior, pode-se afirmar que a inclusão da cultura como direito
de todos na Constituição Federal de 1988 passa a exigir um aporte de regulamentações e políticas
públicas nas diferentes esferas que sustentem sua importância. Entretanto, cabe destacar que
anterior a 1988 já havia alguns movimentos no cenário nacional.
Inicialmente, em 15 de março de 1985 foi criado pelo decreto nº 91.144 do presidente José
Sarney o Ministério da Cultura, cujas atribuições eram até então do Ministério da Educação, que no
período de 1953 a 1985 foi denominado Ministério da Educação e Cultura (MEC). Em fevereiro de
1986 foi nomeado Celso Furtado para chefiar o Ministério, sendo ele o responsável pela implantação
da Lei Sarney, a primeira Lei de Incentivo à Cultura.
Quando da posse do presidente Fernando Collor de Mello, em 15 de março de 1990, este
extinguiu o Ministério e rebaixou-o a Secretaria. No curto período em que Collor ficou na
presidência, os estragos foram visíveis para a área cultural. Mas, quando do seu impeachment e da
presidência de Itamar Franco, modificações foram adotadas, incluindo uma nova postura legislativa.
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Em 23 de dezembro de 1991 foi promulgada a Lei° 8.313, que instituiu o Programa Nacional
de Apoio à Cultura. A nova lei, que ficou conhecida como Lei Rouanet, era um aprimoramento da
Lei Sarney e injetava recursos financeiros no setor através do mecanismo de renúncia fiscal.
Entretanto, o setor cultural sempre sofreu reveses em termos de financiamento e
estabelecimento de seu lugar no desenvolvimento do país. Após ter sido extinto no governo
Fernando Collor de Mello, em 1992, sob o governo de Itamar Franco, o Ministério da Cultura foi
recriado e, a partir daí, também algumas de suas instituições como a FUNARTE. Em 1993, foi criada
uma lei de incentivo específica para a área do audiovisual, com foco especial no cinema, ampliando
os percentuais de renúncia a serem aplicados (BARBALHO, 2007).
Na gestão do Ministro Francisco Weffort, no governo Fernando Henrique Cardoso, um novo
modelo aumentou a transferência para a iniciativa privada, através da lei de incentivo, o poder de
decisão sobre o que deveria ou não receber recursos públicos incentivados.
Dessa forma, a lei gradativamente reforçou o movimento de transferência para o mercado
de uma parcela crescente da responsabilidade sobre a política cultural do país. Também a escolha
de qual projeto cultural deve receber o mecenato custeado pelo dinheiro público fica nas mãos dos
empresários (BARBALHO, 2007).
Já Calabre (2007, p. 95) pontua que “isso significa que o capital investido pela empresa, que
gera um retorno de marketing, é todo constituído por dinheiro público, aquele que seria pago como
impostos”.
De acordo com Albuquerque Júnior (2007, p. 73) esta situação de transferir ao mercado é
uma lógica que representa um grupo claro de dominância, uma vez que o Estado “entrega a gestão
e a regulação da produção cultural aos interesses privados, empresariais, que hoje se expressam
através de grandes conglomerados industriais de mídia”.
Vale Neto (2017) afirma que já em 2002, o projeto para a cultura, pensado no plano de
governo do então candidato Luís Inácio da Silva - A imaginação a serviço do Brasil - programa de
políticas públicas de cultura é um marco para o setor cultural. Ainda sobre esse projeto, Ignácio
(2021, p. 11) afirma que “Os desafios da pasta eram enormes, tanto como instituição, como de
orçamento, ou de incapacidade de elaboração de políticas culturais de imediato.”
Mesmo com uma visão mais realista da cultura, como forma de expressão da sociedade e de
sua importância como vetor do desenvolvimento, as políticas de financiamento, como dito acima,

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permaneciam distribuindo os recursos de forma desigual ao longo do país e das diferentes formas
de expressão. Podemos problematizar por meio dos dados do estado de Santa Catarina e do Rio
Grande do Sul que serão apresentados e analisados na próxima seção.

Análise dos dados

A tabela 1 mostra a quantidade de projetos aprovados utilizando a Lei Rouanet nos estados
do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Região Sul e no Brasil nos anos de 2015, 2018 e 2021 e a figura
1 evidencia a proporção destes valores. A intensão das ilustrações é observar a variação ao longo
do tempo da pesquisa.

Tabela 1 - Quantidade de projetos aprovados utilizando a Lei Rouanet no RS, SC, Região Sul e no Brasil nos
anos de 2015, 2018 e 2021

2015 2018 2021


Rio Grande do Sul 447,00 536,00 209,00
Santa Catarina 276,00 345,00 154,00
Região Sul 1.086,00 1.281,00 597,00
Brasil 5.408,00 5.449,00 2.717,00
Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados disponíveis em
http://sistemas.cultura.gov.br/comparar/salicnet/salicnet.php, pesquisados em 09/02/2022.

Tanto a tabela 1 quanto a figura 1 mostram que o Rio Grande do Sul utilizou mais desta
modalidade de financiamento cultural, em todo o período estudado. Mas também pode ser visto
que ambos estados e a região como um todo reduziram as solicitações via lei Rouanet.

Figura 1 – Proporção de projetos aprovados utilizando a Lei Rouanet no RS, SC, Região Sul e no Brasil nos
anos de 2015, 2018 e 2021

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Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados disponíveis em


http://sistemas.cultura.gov.br/comparar/salicnet/salicnet.php, pesquisados em 09/02/2022.

A tabela 2 mostra o valor dos projetos aprovados utilizando a Lei Rouanet no RS, SC, Região
Sul e no Brasil nos anos de 2015, 2018 e 2021 e a figura 2 evidencia a proporção destes valores. A
intensão das ilustrações é observar a variação ao longo do tempo da pesquisa.

Tabela 2 – Valor dos projetos aprovados utilizando a Lei Rouanet no RS, SC, Região Sul e no Brasil nos anos
de 2015, 2018 e 2021

2015 2018 2021


Rio Grande do Sul 246.156.479,61 353.130.829,21 147.855.876,43
Santa Catarina 150.536.107,29 207.000.386,15 66.796.482,31
Região Sul 601.826.333,12 849.641.172,59 315.747.067,61
Brasil 5.212.563.939,32 6.813.470.979,50 2.259.885.430,94
Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados disponíveis em
http://sistemas.cultura.gov.br/comparar/salicnet/salicnet.php, pesquisados em 09/02/2022.
Nota: Valores nominais.

Neste momento também podemos perceber que os valores solicitados/aprovados por SC se


reduziram, consideravelmente, no período (ao redor de 50%). Aqui há uma questão fundamental a
ser discutida, que na pandemia, contabilizado pelos dados de 2021, foi um momento em que a
cultura sofria muito e mesmo os auxílios repassados, como a Lei Aldir Blanc não foram suficientes
para restabelecer a normalidade ao setor.
Pode-se argumentar que os dados de 2021 refletem uma realidade de penúria e que o setor
ainda não retomou o estágio anterior a pandemia.

Figura 2 – Proporção dos valores dos projetos aprovados utilizando a Lei Rouanet no RS, SC, Região Sul e no
Brasil nos anos de 2015, 2018 e 2021

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Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados disponíveis em


http://sistemas.cultura.gov.br/comparar/salicnet/salicnet.php, pesquisados em 09/02/2022.

Dessa forma observa-se que há uma evidente diferenciação entre os dados de números de
projetos aprovados, valores dos projetos utilizando a Lei Rouanet entre os dois estados, sendo que
a lei em tese não beneficia nenhum dos estados da Federação. Ou seja, constitucionalmente a
cultura é um direito que perpassa os diferentes estados desde 1988, e que posteriormente as
legislações forem sendo moldadas.
Mas a partir desses moldes houve um distanciamento considerável entre os estados e isto
pode ser comprovado nas tabelas e figuras anteriores. Mesmo com os esforços realizados pelo
Governo Lula e Dilma não foram suficientes.
Assim os autores apresentam uma realidade que não era esperada, pois acreditava-se que o
Estado de Santa Catarina tivesse uma participação mais efetiva junto a Região Sul.

Considerações finais

Após estas breves considerações verificam-se que embora a cultura seja assegurada pela
Constituição de 1988 ainda hoje, 34 anos após, se discute as funções da cultura, que modalidade
seria mais apropriada entre outros.
Um dos resultados, institucionais e de carência de orçamento, de todo esse processo foi a
concentração vista pelos dados de Santa Catarina, Região Sul e Brasil, na aplicação dos recursos.
Mesmo com toda a importância que a cultura apresenta, visualizada desde a Declaração da
dos Direitos Humanos de 1948, o acesso não é universal, ainda, como proclamado. No Brasil uma

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explicação pode decorrer da forma como a lei Rouanet, se estabeleceu, permitindo que o setor
privado financiasse a cultura, através da isenção fiscal oportunizando às empresas que financiam
produtores e artistas renomados conseguirem uma melhor colocação no mercado, além de
financiarem somente aqueles eventos que promovessem maior retorno.
A desigualdade também é fruto da possibilidade dada aos financiadores de obterem muitos
lucros via marketing cultural. Aqueles que pouco produzem retorno de marketing são preteridas,
criando também um processo de investimento desigual entre as diversas áreas artístico-culturais.
Assim, tanto a Constituição de 1988 quanto a Lei Rouanet objetivavam uma realidade, mas
esta não se efetivou, pois as forças de pressão são muito relevantes quando da operacionalização
das políticas culturais e sua articulação entre o público e o privado. As políticas e suas leis sofrem
pressões, e no caso da cultura não poderia ser diferente, houve uma modificação do projeto inicial
em prol da parceira da iniciativa privada em investimentos de forma crescente, mas de modo
desigual.

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ENCONTRO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR DE PATRIMÔNIO CULTURAL
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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ENCONTRO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR DE PATRIMÔNIO CULTURAL
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

LEI ROUANET: uma análise econômica da última década (2012-2022) de


investimentos públicos na promoção e difusão cultural.

Luise Amaral, acadêmica do 6º semestre do Curso de Direito | Faculdade IELUSC |


luise.amaral8@gmail.com
Albano Francisco Schmidt, doutor em patrimônio cultural e sociedades pela UNIVILLE | Faculdade
IELUSC | albanodireito@gmail.com

Introdução

O presente artigo objetiva realizar uma análise dos investimentos realizados na última
década a partir dos dispositivos da Lei de Incentivo à Cultura - Lei nº 8.313/91, popularmente
conhecida como Lei Rouanet. Estrutura-se a partir da maneira como os investimentos públicos
foram destinados para que os objetivos da referida lei – sedimentada no binômio captação de
recursos com posterior difusão da cultura - fossem, ou não, alcançados, considerando em toda a
análise a (in)observância dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 e por consequência
o princípio da fruição e pulverização cultural dali decorrentes. Propõe uma análise exploratória e
dedutiva com base no estudo da legislação nacional (Lei Rouanet e seus dispositivos derivados) e
internacional (tratados da UNESCO), tornando efetiva as constatações com base nos dados
apresentados, disponibilizados no Portal da Transparência do Governo Federal e no Sistema de
Apoio às Leis de Incentivo à Cultura - SALIC. O debate acerca do tema se torna relevante na
contemporaneidade, uma vez que a cultura é um elemento de desenvolvimento social e humano,
tendo, ainda papel significativo no desenvolvimento econômico nacional (economia criativa).
Portanto, é necessário compreender quais os mecanismos para captação de recursos dispostos no
corpo da lei e determinar sua eficácia/eficiência para atender à existente necessidade do setor
cultural. Podendo a partir desta análise identificar possíveis falhas e oportunidades de melhoria
legislativa a fim de garantir que o Estado esteja cumprindo com o seu papel.

As matrizes culturais da Constituição Federal

Para que uma análise acerca da Lei Rouanet na última década seja realizada, se faz
necessário ter em destaque a base sólida da cultura que advém da Constituição Federal.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Segundo Pereira (2014) o texto constitucional traz uma concepção de que a cultura é como
um objeto ao qual o Estado tem a função de proteger, promover, difundir e também dar acesso a
todos os cidadãos. O artigo 215 da Constituição Federal dispõe o seguinte acerca do papel do Estado
em relação à cultura: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais” (BRASIL, 1988).
Decorre do artigo mencionado o princípio da fruição, que segundo Schiavon (2023), advém
como o ato de fruir, aproveitar e/ou usufruir de alguma coisa, ou seja o princípio corrobora com a
atribuição da competência ao Estado em assegurar a coletividade, não podendo ser algo dispensável
o acesso à cultura a todos.
A partir de tal constatação surge a necessidade de mecanismos para que o Estado consiga
proporcionar a todos a livre fruição da cultura. Nesta necessidade em que a Lei Rouanet se encaixa,
melhor colocando, ela nasce, se torna viva e necessária para o Estado brasileiro.

Programa Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC: o seu objetivo e a sua forma de atuação.

Através da Lei Rouanet e por diretriz do Plano Nacional de Cultura, no dia 24 de janeiro de
1991 (data de promulgação da Lei Rouanet) foi instituído o Programa Nacional de Apoio à Cultura -
PRONAC o qual segundo a lei, tem a função de captar e canalizar recursos para o setor cultural. O
PRONAC atua em uma tríplice vertente de captação-difusão: a) Fundo Nacional de Cultura - FNC; b)
Fundo de Investimento Cultural - FICART; e c) Incentivo à cultura.
O Fundo Nacional de Cultura - FNC, trata do investimento direto do Estado em projetos
culturais, recurso advindo do Tesouro Nacional. O Fundo de Investimento Cultural - FICART é
constituído na forma de quotas, ações negociadas no mercado financeiro reguladas pela Comissão
de Valores Mobiliários, o possuidor das ações atuaria como "sócio" do projeto cultural em que
possuísse as quotas, recebendo inclusive lucros proporcionais às ações. E por último, o Incentivo à
cultura, se baseia na renúncia fiscal possibilitando descontar até 4% do imposto devido por pessoa
jurídica ou no caso de pessoa física até 6%, dessa forma os contribuintes por intermédio de doações
ou patrocínios incentivam projetos aprovados pelo Ministério da Cultura.
Na letra da lei, as formas de captação de recursos parecem atender a diversidade cultural
nacional, assim como o objetivo de assegurar a todos o direito de fruir da cultura, evidenciado pela
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Constituição Federal, três meios que advém de objetivos e formas distintas, visando o combate a
uma possível centralização na difusão da cultura.
Existem personagens que através da Lei Rouanet se tornam peças-chave na promoção
cultural. O FNC é um instrumento público de investimento na cultura, assim sendo o Estado assume
mais uma responsabilidade à frente da promoção cultural, além da sua competência inicial
constituída. O FNC é estabelecido com o objetivo de promover a distribuição regional de recursos
ao setor cultural de forma equitativa, atribuindo ao Estado tal responsabilidade. A partir do
momento em que se busca dados acerca do FNC é evidente a falha do Estado na sua função, pois
segundo o Portal da Transparência, na dotação do FNC, para o ano de 2015, era previsto um
orçamento de R$ 1,88 bilhões e foram utilizados apenas R$ 14,68 milhões. No ano de 2018 ele se
repete, o previsto no orçamento era de R$ 1,27 bilhões e foram utilizados tão somente R$ 26,54
milhões.
A partir desses indicadores, questiona-se: qual seria o motivo para uma diferença tão
significativa no previsto pelo orçamento ao utilizado? Preliminarmente pode-se conjecturar como
justificativas a falta de projetos, ou a falta de necessidade do setor cultural. O FNC seria o meio para
tirar das mãos das instituições privadas o poder na distribuição de recursos, fazendo com que a
cultura fosse além de valores negociados, colocaria para segundo plano o interesse financeiro e em
ascensão o desenvolvimento cultural.
O FICART, na análise de Almeida e Nunes (2018), traz a possibilidade de obtenção de lucros
gerados por dividendos e ainda acabar gerando rendimentos com tal incentivo à cultura,
trabalhando alinhado a lógica de ser o setor cultural uma forma de movimentação econômica. À
primeira vista tal mecanismo aparenta ser atrativo ao empreendedor e poderia ser mais uma forma
efetiva de promoção cultural, porém por conta da regulamentação ainda pouco explorada acaba
negligenciado. Destaca-se que mesmo após trinta anos da promulgação da lei as informações acerca
do FICART são escassas, números e dados não existem, o que dificulta os debates da (in)utilização
deste mecanismo. Mais estudos são necessários a fim de preencher esse vácuo de dados e
diretrizes.
E por último, acerca do Incentivo Fiscal, o seu principal personagem é o incentivador, que na
grande maioria dos casos é o setor privado, o qual escolhe qual projeto ele opta por incentivar,
através do SALIC nos termos da lei. Evidente que os proponentes de projetos culturais merecem o

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

destaque na promoção cultural, porém para que o projeto submetido seja efetivo ele precisa do
incentivador.
Um importante ponto a salientar sobre o Incentivo Fiscal é de que há um percentual mínimo
de captação (20%) para que o proponente possa movimentar os recursos e continuar captando
durante a execução do projeto, até a captação deste percentual os recursos recebidos ficam
bloqueados.
Como os demais mecanismos de captação, o Incentivo Fiscal apresenta possíveis pontos para
melhoria. Este acaba por fomentar a centralização na difusão cultural, um movimento natural e
problemático que será discutido no próximo tópico.
Finalizando os personagens emblemáticos da promoção da cultura no Brasil, inúmeras as
manchetes acerca dos escândalos dos captadores de recursos por meio do Incentivo Fiscal e o tema
mais evidenciado são os grandes artistas, intitulada muitas das vezes a Lei Rouanet como a Lei que
financia grandes artistas. Entretanto, conforme lista dos maiores captadores disponibilizada pela
Secretaria da Cultura desde a criação da Lei, esta não traz nenhum grande artista no seu rol,
parecendo claro que se trata apenas de manchetes sensacionalistas divulgadas na grande imprensa:

A centralização do incentivo fiscal

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Partindo da constatação de que a principal forma de captação de recursos nos últimos anos
se deu por intermédio do Incentivo Fiscal, é necessário a busca dos dados acerca do modo em que
ocorre esta distribuição. Afinal, o Brasil possui cinco grandes regiões, desenvolvidas historicamente
de forma desigual em vários âmbitos e essa é uma característica da economia de qualquer país.
Entre 2012 e 2022, um total de 50.027 projetos do âmbito cultural foram aprovados no
Brasil. Depurando-se os dados por região, denota-se que em São Paulo foram aprovados 16.111
projetos, no Rio de Janeiro 9.747 projetos, em Minas Gerais 6.157 projetos, no Rio Grande do Sul
4.504 projetos, Paraná 3.443 projetos e em Santa Catarina 2.602 projetos.
Após uma análise dos dados disponibilizados no SALIC, surge a constatação de que há uma
centralização no Incentivo Fiscal, com a região Sudeste possuindo o maior número de projetos
aprovados, concentrando 32.015 projetos aprovados entre 2012 e 2022 o que representa mais de
50% dos projetos aprovados neste recorte temporal:

Fonte: Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura - SALIC

O desequilíbrio evidenciado acompanha os demais indicadores nacionais de


desenvolvimento socioeconômico, com as regiões Sudeste, seguida da região Sul (ainda que ao
longe), cooptando a maior parcela dos investimentos, que, em teoria, deveriam ser utilizados para
a difusão da cultural. Não se desconhecem os motivos histórico e econômicos da situação,
tampouco o grande público consumidor agraciado com os projetos, contudo, por ser uma lei com
claro viés distributivo e voltada para a pulverização da cultura nacional, por mandamento
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constitucional, a situação merece reparos. Nessa linha, cabe ao Estado adotar medidas para
controlar os efeitos que tal centralização pode causar. Justamente por esta razão a Lei Rouanet por
intermédio do PRONAC instituiu o FNC, para que quando o Incentivo Fiscal acabasse por centralizar
o acesso à cultura seus impactos fossem minorados. O FNC estaria atendendo esta deficiência,
incentivando os projetos das demais regiões, desde que os projetos fossem devidamente aprovados
e cumprisse com os requisitos estabelecidos. Porém, o constatado quando analisado em foco o FNC
é que ele se encontra negligenciado quanto a sua eficácia.

Considerações finais

Os ataques à Lei Rouanet ocorrem de parcial e não se sustentam nos indicadores de


investimento levantados. Não parece ser uma solução para o setor cultural a simples revogação da
Lei Rouanet, uma vez que, atualmente, esta é a principal lei de incentivo à cultura. Revogá-la apenas
afastaria a sociedade brasileira da garantia que lhes é devida com base no artigo 215 da Constituição
Federal, culminando em ainda mais retrocesso.
Findada a falsa afirmação de que a Lei Rouanet unicamente serve para o financiamento de
grandes artistas, e visando o combate aos reais problemas, evidenciando que toda constatação é
preliminar, a raiz do problema se dá pela falta da efetivação dos demais mecanismos que ela
instituiu. É um tripé que está parcamente equilibrado em apenas um de seus vértices. O FNC e do
FICART devem também ser institucionalizados e chamados para a mesa dos debates e dos projetos.
A partir da afirmação de que o Incentivo Fiscal é o meio de captar recursos mais utilizado no
recorte temporal proposto, surge a segunda necessidade, o incentivo fiscal acaba por centralizar a
distribuição de recursos para o setor cultural. Uma vez mais a questão da necessidade de outras
bases de apoio (FNC / FICART), já existentes, contudo, subutilizados.
Existe a necessidade de uma revisão por parte do Estado do atual modo como a difusão
cultural ocorre, a previsão constitucional não visava uma concentração da cultural, mas a
pulverização desta. Se faz necessário investigar qual a melhor reação para a centralização dos
recursos em determinadas regiões, por exemplo iniciando o pensamento de o quão justo é o
investimento de uma empresa do interior apenas em grandes capitais, e não na promoção dos
eventos culturais da própria região.

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As questões levantadas foram observadas de forma preliminar com base nos dados
apresentados, entretanto a necessidade de uma revisão legislativa, em sentido amplo, ou seja, da
macro estruturação da política pública desenhada, se torna evidente desde o início. Parece ser da
natureza da lei, diretamente vinculada a constituição, de que a fruição da cultura deve se sobressair
ao interesse econômico, ou, ao menos, acompanhá-lo. Os mecanismos-base já existem, somente
precisam ser mais aproveitados pelos governantes e atores culturais. O intuito é buscar o
aprimoramento das políticas públicas culturais e a sua forma de financiamento e acompanhamento.

REFERÊNCIAS

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FICART: análise da sua aplicação prevista pela lei Rouanet. Marília, 2018.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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REFLEXÕES SOBRE A NECESSIDADE DE CODIFICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO DE


PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRA A PARTIR DA (IN)APLICABILIDADE DE SEUS
PRINCÍPIOS JURÍDICOS

Italo Pacelli Santos Peixoto |Graduado em Direito pela UFOP| italopacellisp@gmail.com

Introdução

O direito do Patrimônio Cultural é um direito fundamental consagrado na Constituição


Federal de 1988 e carrega consigo uma ampla potencialidade para o desenvolvimento de sua
estrutura legal. Os dispositivos constitucionais que tratam do Patrimônio Cultural (artigos 5º, LXXIII,
23, 24, 30, 129, III, 215, 216, 216-A e 225) projetam o degrau mais elevado na composição de
elementos normativos da natureza jurídica do Patrimônio Cultural e, com efeito, emanam caráter
de supralegalidade.
No entanto, mesmo que tenham sido contempladas na Carta Magna, as normas do Direito
do Patrimônio Cultural não traduzem uma base jurídica consistente que corresponda às demandas
socioculturais contemporâneas. Nota-se que a rede normativa depende de codificação, bem como
ainda carece de diretrizes - a citar os princípios jurídicos - para consolidar uma ordem jurídica
sistematizada.
Por isso, o objetivo desta pesquisa é refletir criticamente acerca da necessidade de uma
codificação da Legislação Brasileira de Patrimônio Cultural, com base na análise principiológica
relacionada ao tema. Isso se dará mediante a vertente jurídico-dogmática (DIAS; GUSTIN; NICÁCIO,
2021), já que se pretende fazer um estudo considerando o ordenamento jurídico em si, sem
extrapolar o direito interno. Em sequência, o tipo genérico de pesquisa consiste no jurídico-
descritivo, pois a pesquisa se orienta no sentido de diagnosticar princípios que elucidem a
pertinência de uma uniformização legislativa sob a sustentação de um código.
A relevância desta pesquisa se relaciona com os últimos eventos da área, a exemplo do
Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural, ocorrido nos dias 4 e 5 de abril de 2023, em
Ouro Preto, que culminou com a Carta de Ouro Preto para Legislação Brasileira de Patrimônio
Cultural. Neste evento, as discussões envolveram sobremaneira a pertinência de uma codificação,
pelo que o assunto se mostra cabalmente atrelado ao cenário contemporâneo. O trabalho também

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se demonstra relevante na elucidação de fontes jurídicas para a uniformização legislativa em


constante curso no Brasil.

Desenvolvimento
Reflexões conceituais sobre o patrimônio cultural

As noções gerais conceituais do Patrimônio Cultural parecem figurar como impropriedades


do Direito ao Patrimônio Cultural. Afinal, em decorrência do conceito de Patrimônio Cultural é que
se suscitam os pilares de qualificação jurídica e se torna unificado o entendimento acerca do que é
o tema.
Em verdade, é preciso salientar que existem normas que conceituam o objeto de estudo em
questão; porém, não há uma concepção unívoca que estabeleça um consenso acerca de uma
definição legal e técnica do Patrimônio Cultural.
Conforme ensina Ana Paula Alcoforado (2021), a multiplicidade de conceitos acarreta a
vulnerabilidade da eficácia do sistema jurídico como um todo:

A dificuldade de aplicação das leis protetivas na prática também é resultado do


emaranhado de normas sobre o tema, com dispositivos contraditórios. Não existe,
por exemplo, uma definição unívoca do que seria o patrimônio cultural passível de
proteção. Há uma definição no art. 1º, caput, da Lei do Tombamento; no art. 2º,
inciso I, do Decreto nº 8.124/2013; e na Lei dos Crimes Ambientais. Não é incomum
o judiciário perdurar em questões conceituais do que deve ou não ser protegido
pelas leis que abordam o tema (ALCOFORADO, 2021, p. 88).

Com efeito, nota-se uma precariedade nas disposições normativas do Patrimônio Cultural
que interfere na uniformização da matéria regulada, não se esgotando apenas no conceito primário
do Patrimônio Cultural, como também em outras interpretações judiciais, que não foram
aprimoradas em matéria legislativa.
Em direito comparado, a lei unificada do patrimônio cultural português traz consigo um
conceito restrito de patrimônio cultural, em relação à exclusão dos bens naturais, bem como extrai
de sua noção ampla, similar à Constituição da República de 1988, quais são especificamente os bens
culturais materiais e imateriais no decorrer de seu texto (NABAIS, 2004, p. 19).

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A Lei nº 107/2001 de Portugal organiza-se em torno dos princípios basilares da atuação


estatal, o objeto e âmbito de proteção jurídica do patrimônio, direitos, deveres e garantias dos
cidadãos na matéria, estruturas administrativas em associação com a comunidade para a
preservação do patrimônio cultural, tipologia dos bens culturais e sua caracterização, além das
formas de proteção e sua pormenorização procedimental, sua tutela penal, incentivos fiscais aos
bens culturais e alguns regimes jurídicos autônomos (COSTA, 2008, p. 7).
Nessa conjuntura, é válido pontuar que um uma positivação uniformizada do que se entende
como patrimônio cultural favorece no desdobramento de seus elementos característicos, tais quais
a demarcação das diretrizes e bens a serem protegidos. Segundo Carvalho e Pinheiro (2022), um
bom exemplo dessa ausência de iniciativa conceitual se refere ao Patrimônio Cultural
Agroalimentar, cujos bens culturais contemplam práticas agropecuárias e culinárias indissociáveis
no processo de registro. Essa visão, consoante as autoras, dialoga com a compreensão de
patrimônio cultural adotada pela política do IPHAN, que, apesar de utilizar a expressão em eventos,
nunca registrou um bem com tal terminologia.
Uma definição fixa não apenas facilita a abrangência científica e jurídica do tema, como
também favorece o asseguramento da garantia constitucional do direito à cultura, atribuída na
estirpe do Patrimônio Cultural, como direito fundamental da CF/88.

Análise principiológica do Direito do Patrimônio Cultural

A par disso, os princípios jurídicos – invisíveis no campo do Patrimônio Cultural brasileiro –


emergem como alternativas para contribuir na consolidação do próprio direito ao Patrimônio
Cultural, conforme se percebe no exemplo da Lei 107/2001, de Portugal.
Na ótica brasileira, os princípios jurídicos são tratados como fontes normativas equivalentes
às regras jurídicas, em correspondência ao discurso pós positivista e neoliberal do ordenamento
jurídico atual. O Estado Democrático de Direito instaurado na CF/88 gerou o desenvolvimento das
proposições normativas dos princípios, tornando-se valorosas na construção de valores
constitucionais e na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico (BARROSO, 2005).
Por tais razões, a veiculação sistematizada de princípios jurídicos do Patrimônio Cultural
poderia incentivar uma postura construtiva ao judiciário e reformista na vertente legislativa do ramo

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cultural, dando impulso nas afirmações dos valores constitucionais culturais e na formulação das
soluções nos casos concretos.
Vale salientar, nesse ponto, que o sistema jurídico patrimonial tem como principal alicerce
os valores constitucionais ambientais. A doutrina e jurisprudência brasileira tem forte tendência em
ajustar princípios do direito ambiental para a proteção dos bens culturais, haja vista a sua
integralização no plano macro do bem constituído pelo meio ambiente natural. Pode-se citar o
princípio do direito fundamental ao meio ambiente, além de princípios constitucionais norteadores
do art. 225 da CF/88, como o princípio do direito à sadia qualidade de vida, o princípio da
obrigatoriedade, da intervenção do Poder Público, o princípio da precaução, o princípio da
prevenção, o princípio do poluidor-pagador, o princípio da informação, o princípio da participação,
o princípio do desenvolvimento sustentável, o princípio da responsabilidade objetiva e o princípio
da equidade geracional (SOARES, 2009), que se associam na dinâmica judicial do patrimônio
cultural.
Nessa toada, embora empreenda um rol de princípios para composição dos conflitos, o
Direito ao Patrimônio Cultural ainda carece de uma base principiológica própria que alimente a
efetiva proteção de bens culturais tutelados pelo ordenamento, adequando e pormenorizando as
suas peculiaridades. Cabe dizer, nas palavras de Soares (2009), que

O arcabouço principiológico ambiental é extremamente importante e influente na


tutela dos bens culturais, mas a aplicação desses princípios não abarca todas as
situações de dano ou ameaça de dano ao patrimônio cultural, nem garante uma
ampla possibilidade de se atingir sua efetiva proteção, em decorrência das
especificidades que os bens culturais, especialmente os bens imateriais, possuem.
No entanto, vale repetir o esforço para construção de uma base principiológica
específica para que a matéria não se afaste da concepção de bens culturais como
integrantes do meio ambiente (macrobem) (SOARES, 2009, p. 132).

Cabe ressaltar que os princípios ambientais podem ser necessariamente impróprios ao meio
ambiental cultural, por manifestar interpretações dissonantes quando convertidas nas hipóteses
situacionais de apreciação ao patrimônio cultural. Como se pode ver no caso do Princípio ao Meio
Ambiente Ecologicamente Equilibrado,

[...] em determinadas situações, é justamente a falta de equilíbrio é que deve ser


tutelada.[...] É em nome de um suposto equilíbrio ambiental irreflexivo que se
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fecham as portas para a evolução cultural de novas contribuições artísticas, e se


abre espaço para a elitização da cultura e a exclusão sociocultural (PAIVA, 2015, p.
183-184).

Não obstante, isso não significa que a constituição principiológica deva ser desprovida de
estímulos de outras áreas. Tendo em vista a perspectiva de um sistema jurídico aberto e passível de
uma interpretação axiológica do ordenamento jurídico e de seus valores constitucionais primordiais,
o ramo do Patrimônio Cultural deve ser constituído com uma ampla relação transdisciplinar, isto é,
sob um suporte principiológico complementar de outras áreas, nutrindo-se de princípios
administrativos (relacionados principalmente à gestão administrativa), do direito urbanístico,
tributário e muitos outros, em vista de constituir diretrizes para desenvolver sua base principiológica
própria.
Ademais, convém sublinhar que a compatibilização de princípios deve ser harmonizada não
apenas em favor da regulamentação e trato dos bens materiais e imateriais, mas também em
fomento das relações privadas com inferência direta na preservação do patrimônio cultural ou nas
implicações do dano ou ameaça deste.
Portanto, a fixação sistematizada de princípios do direito ao Patrimônio Cultural lhe daria
autonomia para amplificar as tratativas da relação jurídica de abrangência patrimonial no território
brasileiro.

Da Breve noção sobre os princípios jurídicos

Com base na Teoria dos Direitos Fundamentais, sustentada por Robert Alexy, entende-se
que os princípios jurídicos são espécies do gênero norma jurídica, assim como as regras jurídicas.
Constituem, portanto, papel fundamental no Estado Democrático de Direito pois se apresentam
como uma ferramenta indispensável para oferecer clareza conceitual e segurança jurídica na
preservação dos bens jurídicos fundamentais, a citar o direito ao patrimônio cultural. Segundo a
ideia do autor,

Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida
possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por isso, os princípios
são mandados de otimização¹², que estão caracterizados pelo fato de que podem

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ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não
só depende das possibilidades reais como também das jurídicas (AMORIM, 2005).

Nessa perspectiva, considerando que os princípios externalizam critérios normativos com


diferentes graus de generalidade e determinabilidade, é possível inferir que, ao contrário das regras,
abrangem maior alcance na proteção do bem jurídico, especialmente em situações complexas, por
meio de um discurso pautado pela proporção e razoabilidade.
Para tanto, como mandados de otimização, os princípios permitem o balanceamento de
valores e interesses, consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente
conflitantes. Isto porque na hipótese de conflito entre dois princípios jurídicos,

(...) um dos dois princípios tem que ceder ante o outro. Mas isso não significa
declarar inválido o princípio desprezado nem que no princípio desprezado haja que
ser introduzida uma cláusula de exceção. O que vai determinar qual o princípio que
deve ceder serão as circunstâncias. Isso quer dizer que, nos casos concretos, os
princípios têm diferentes pesos e que prevalece o princípio com maior peso
(AMORIM, 2005).

No contexto do Patrimônio Cultural, essa ponderação torna-se ainda mais crucial, uma vez
que a preservação dos bens culturais muitas vezes envolve um equilíbrio entre a conservação do
legado cultural e as demandas contemporâneas de desenvolvimento e progresso, muitas vezes
conflitivas com a integridade do bem tutelado. Com efeito, ressalta-se que a abordagem dos
princípios jurídicos no âmbito do Patrimônio Cultural brasileiro não se restringe apenas à sua
dimensão normativa, mas se baseia também na interpretação em consonância com as
especificidades históricas, sociais e culturais do bem tutelado.
Em verdade, a aplicação dos princípios jurídicos oferece vantagens substanciais ao Direito
do Patrimônio Cultural. Primeiramente, esses princípios contribuem significativamente para o
aperfeiçoamento da interpretação e concretização judicial (sentenças e acórdãos), reduzindo a
arbitrariedade nas decisões legais. Ao fornecer diretrizes gerais e flexíveis, os princípios ajudam na
compreensão mais aprofundada das leis que regem o patrimônio cultural, oferecendo uma base
sólida para a interpretação por parte dos operadores do Direito.
Outra vantagem significativa é a construção de um discurso normativo mais robusto e com
valores consistentes no âmbito do Direito do Patrimônio Cultural. Ao aplicar princípios claros e bem

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definidos, é possível estabelecer um arcabouço normativo mais coerente e abrangente, oferecendo


maior clareza às normas que regem a proteção e preservação dos bens culturais.
Além disso, a adoção de princípios orienta o poder público na sistematização das normas
referentes ao patrimônio cultural. A existência de princípios bem estabelecidos fornece diretrizes
claras para os órgãos governamentais na formulação e aplicação de políticas e medidas relacionadas
à proteção do patrimônio cultural, promovendo assim uma gestão mais eficaz desses bens.

Desdobramentos dos princípios do Direito do Patrimônio Cultural

Na leitura principiológica do Direito do Patrimônio Cultural, oportuna é a observação da


dinâmica dos princípios constitucionais gerais com a tutela do patrimônio cultural.
Com base nas diretrizes referendadas pela Carta de Ouro Preto para a Legislação Brasileira
de Patrimônio Cultural (inaugurada no Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural,
ocorrido nos dias 04 e 05 de abril de 2023) é possível inferir dois apontamentos claros: a) conforme
a diretriz 05, há ausência de parametrização “(...) dos princípios da solidariedade e subsidiariedade
no que tange à distribuição de competências entre os entes federados em matéria de patrimônio
cultural e as possibilidades de ações cooperadas”; e b) conforme a diretriz 18, faz-se necessário “(...)
reconhecer o princípio da razoável duração do processo nos processos administrativos de
tombamento e registro”.
No primeiro caso, a diretriz 05 expõe uma fragilidade principiológica constitucional
manifestada na distribuição da competência em matéria de patrimônio cultural entre os entes
federativos. Por seu turno, na diretriz 18, o princípio constitucional da razoável duração do processo
(art. 5º, LXXX, CR/88) reflete as implicações da celeridade processual exigida no procedimento
administrativo de tombamento, em observância às circunstâncias de bens culturais afetos à
coletividade. Ilustrativamente, o processo de tombamento da Serra do Curral, localizada em Belo
Horizonte, capital de Minas Gerais, expõe a vulnerabilidade de um procedimento moroso que se viu
ameaçado pela iminente prática de atividades de mineração, licenciadas pelo poder público no
perímetro (SOUZA; MARTINS; CASTRO, 2022).
Dessa forma, deduz-se que a proteção efetiva do patrimônio cultural exige conformação
normativa da Carta Magna ao Direito do Patrimônio Cultural, a fim de viabilizar a aplicação de
princípios jurídicos gerais na seara patrimonial, quando pertinentes e oportunos.
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Já na esteira dos princípios do patrimônio cultural propriamente ditos, toma-se por base as
classificações doutrinárias desenvolvidas pelos autores Ana Maria Marchesan, Inês Virgínia Prado
Soares, José Casalta Nabais (em direito comparado) e Marcus Paulo de Souza Miranda (SOARES,
2019, p. 138). Embora haja variações na tipologia dos princípios, há um entendimento
compartilhado quanto à relevância da funcionalidade principiológica.
Dentre eles, destaca-se, primeiramente, o princípio da proteção. Embora seja abarcado
apenas por Marcus Paulo de Souza Miranda, tal princípio pode esclarecer controvérsias jurídicas
como a possibilidade do bem cultural receber proteção do Estado mesmo sem a incidência de um
regime jurídico de tutela, a citar o instituto protetivo do tombamento. Sob o respaldo dos artigos
216, § 1º, e 23, III e IV, da Constituição Federal de 1988, o mandamento impõe obrigação ao poder
público, com a colaboração da comunidade, de desenvolvimento de uma ação protetiva do
patrimônio cultural com base no seu valor comunitário.
Além disso, outro princípio essencial é o da acessibilidade cultural, defendido por Ana Maria
Marchesan e Inês Virgínia Prado Soares. Este mandamento destaca a importância de se garantir o
acesso equitativo e inclusivo ao patrimônio cultural, assegurando que todos os membros da
sociedade tenham oportunidades de usufruir, conhecer e se engajar com os bens culturais. Isso
implica a criação de políticas e ações que promovam a disseminação do conhecimento e o acesso
democrático a esses elementos culturais. Também reforça a conduta protetiva do bem cultural na
medida em que corrobora a relação de acessibilidade, por exemplo, da Pessoa com Deficiência (art.
42, §2º, do Estatuto da Pessoa com deficiência, Lei 13146/2015).
Por sua vez, a introdução dos princípios da sustentabilidade e da valorização sustentável
(sustentados por José Casalta Nabais e Ana Maria Marchesan, respectivamente) sugerem a
consolidação de um patrimônio cultural que não apenas se conserva, mas também se integra aos
processos produtivos e à vida das comunidades de forma sustentável, dando suporte para a
autonomia dos grupos sociais pertinentes ao bem cultural. Tal abordagem busca equilibrar a
valorização dos bens culturais com benefícios sociais e econômicos, sem comprometer a essência e
o valor intrínseco desses elementos em função de ganhos puramente lucrativos.
Outrossim, a própria sustentabilidade do bem tutelado favorece a aplicabilidade do princípio
da equidade intergeracional (classificado por Inês Virgínia Prado Soares) uma vez que estabelece a

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responsabilização coletiva da comunidade na manutenção do bem, tendo em vista o usufruto pelas


gerações futuras.
Esses e muitos outros princípios são capazes de substancializar com maior precisão os
valores culturais constitucionais no sistema normativo, em meio a tratativa de um código, na
interpretação judicial perante a análise da temática e na coordenação de políticas públicas do Poder
Público em conjunto com a sociedade civil.

Considerações finais

É evidente que a ausência de uma codificação específica e uniforme para o Patrimônio


Cultural no ordenamento jurídico brasileiro representa um desafio significativo. A falta de definições
precisas e de uma base principiológica sólida tem gerado interpretações divergentes e questões
conceituais que impactam diretamente na aplicabilidade das leis de proteção e preservação do
Patrimônio Cultural.
É fundamental ressaltar a importância de estabelecer uma base jurídica sólida e unificada,
que possibilite uma interpretação coerente e abrangente das leis que regem o Patrimônio Cultural.
Esta base principiológica específica não só fortaleceria a preservação desses bens, mas também
promoveria o enriquecimento da técnica de interpretação e aplicação da área em questão,
garantindo o direito fundamental ao Patrimônio Cultural, conforme estabelecido na Constituição
Federal.
Diante disso, urge a necessidade de um esforço conjunto entre setores acadêmicos, jurídicos
e culturais para elaborar e implementar uma legislação mais completa e detalhada. Esta ação
contribuiria não apenas para a proteção efetiva do Patrimônio Cultural, mas também para a
promoção de uma sociedade mais consciente e engajada na preservação de sua história e
identidade cultural.
Portanto, a codificação da Legislação Brasileira de Patrimônio Cultural, embasada em uma
análise principiológica sólida e transdisciplinar, é crucial para assegurar a preservação, valorização
e disseminação do nosso patrimônio cultural, promovendo o acesso universal a uma herança rica e
diversificada para as presentes e futuras gerações.

REFERÊNCIAS
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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Juruá Editora, 2015.

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ST – 6
Narrativas, memórias, linguagens:
os processos de subjetivação e a imaterialidade do patrimônio

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AS EXPERIÊNCIAS VIVIDAS E AS CARTAS COM RELATOS DOS IMIGRANTES ALEMÃES


IDA E OTTOKAR DÖRFFEL COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DE JOINVILLE
Me. Daniele Claudia Miranda|Univille|daclam42@gmail.com
Prof. Dr. Euler Renato Westphal|Univille|erwestphal@gmail.com
Profa. Dra. Roberta Barros Meira|Univille|rbmeira@gmail.com

Introdução

As cartas escritas pelo casal Dörffel aos seus familiares fornecem informações valiosas sobre
a história da imigração, particularmente as dificuldades e acontecimentos que marcaram suas vidas
quando cruzaram o oceano com rumo para o Brasil. Essas cartas contêm relatos de suas experiências
desde a saída da Saxônia, embarque no Porto de Hamburgo/Alemanha, até a chegada ao Porto de
São Francisco/Brasil a bordo do navio Florentin em 1854.
Ao analisar o conteúdo traduzido dessas cartas, pode-se compreender os desafios
enfrentados no “novo mundo” daquela época. Este “novo mundo” apresentava um ambiente
significativamente diferente daquele a que estavam habituados na Europa. A saga da viagem,
incluindo detalhes de doenças, mortes e nascimentos a bordo do navio, é o tema principal. As
primeiras impressões na chegada, a descrição da Colônia Dona Francisca, bem como detalhes sobre
o novo ambiente fornecem valiosos dados sobre a história dos imigrantes alemães durante a
segunda metade do século XIX.
Nesse sentido, o artigo tem como objetivo apresentar alguns fragmentos dos relatos
presentes nas cartas que fazem menção à viagem e à chegada na Colônia. Isso permite vislumbrar
a experiência vivida e os desafios enfrentados.

A importância das cartas dos imigrantes como fonte histórica

Na carta escrita em 12 de março de 1855, dirigida a Christiane Charlotte Dörffel, mãe de


Ottokar Dörffel, o autor faz um relato detalhado de sua viagem da Alemanha ao Brasil. Ele escreve
as dificuldades e os desafios enfrentados durante a viagem, as condições do navio, as tempestades
e as doenças que afligiram os passageiros. O casal Dörffel também compartilha suas impressões
sobre as cidades por onde passaram e as condições da colônia onde se estabeleceram. Eles discutem
seus esforços para estabelecer uma nova vida, incluindo preparar terras, plantar e construir uma

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casa. Suas descrições revelam aspectos importantes do cotidiano do imigrante alemão e o progresso
que fizeram na sua nova casa.
Tais relatos, como a do casal Dörffel, são considerados por Maria Teresa Santos Cunha (2007)
como valorosos, pois apresenta escritos pessoais como fontes históricas e sua importância na
compreensão de diferentes aspectos da sociedade. A autora, argumenta que os relatos são fontes
históricas valiosas que fornecem um panorama sobre vários aspectos da sociedade. Além disso, ela
sugere que sejam considerados documentos autobiográficos que oferecem pistas para a
compreensão de tempos passados. Geram conhecimento sobre a história recente e estimulam a
reflexão sobre o presente. A autora reconhece o valor inegável dos relatos, pois emergem do
silêncio das “caixas e dos baús”, permitindo aos historiadores considerá-los na sua forma
fragmentada como evidências de modos de viver e compreender o cotidiano. Os diários funcionam
como atos de memória que dão origem a percepções e representações de uma determinada época.
As cartas podem ser vistas como uma forma de "escrita interior", concentrando-se em
sensações emocionais. Para Cunha (2007), são práticas sociais que contribuem para a construção
da história dos indivíduos que são moldados pelas suas práticas de escrita, constituindo um regime
de sensibilidades, vistas como uma forma de escrita interior, onde os sentimentos e sensações
internas ocupam um lugar significativo, como um diário.
Portanto, as cartas para os estudos historiográficos pode ser uma forma privilegiada de
inscrição autoral, e o seu acesso na atualidade serve de fonte para a compreensão dos modos de
viver e de pensar de uma determinada época. São fontes importantes para entender os eventos que
marcaram um período da colonização alemã na região sul do Brasil.
Tal compreensão se intensifica à medida que nos apropriamos dos discursos presentes nas
cartas para apresentar modos de vida antes e depois da imigração. Para o estudo da imigração
alemã no Brasil os relatos presentes nas cartas são fontes de problematização no âmbito das
experiências sociais, para que cada memória pessoal possa ser vista e estudada como uma
perspectiva da memória coletiva.
Todavia, Cunha (2007) alerta os historiadores para evitarem cair na ilusão da singularidade
das experiências dos indivíduos ou na ilusão da coerência perfeita em uma trajetória de vida.

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Experiências durante a viagem marítima e os desafios enfrentados: travessia de Hamburgo/


Alemanha até a Baia de São Francisco/ Brasil

Ottokar descreve em sua carta a experiência vivida durante a travessia do oceano rumo ao
Brasil. Seus relatos oferecem uma oportunidade de estudar os aspectos cotidianos deste período e
compreender os desafios enfrentados.
Segundo Rölke (2016), muitos imigrantes que chegaram aos portos de embarque já haviam
superado muitos obstáculos e dificuldades. Alguns viajaram de carroça, a pé ou de trem. Desde
1846, existia uma linha ferroviária ligando Berlim a Hamburgo, o que reduzia tempo e dinheiro para
os imigrantes vindos das regiões orientais da Alemanha. Para aqueles que eram economicamente
menos afortunados, a viagem de casa para Hamburgo poderia levar até 14 dias. Quando o fluxo de
emigração alemã começou em 1836, o Porto de Hamburgo não possuía infraestrutura para
acomodar o grupo de pessoas que chegava com a intenção de ir para a América do Norte e do Sul,
e precisava se adaptar à nova demanda.

Com o fluxo cada vez maior de emigrantes, o porto teve que sofrer transformações.
Para isto naturalmente também contribuiu a industrialização, que aos poucos foi
aposentando as carroças puxadas a cavalo e usadas no porto para transporte de
mercadorias. A máquina a vapor foi substituindo os veleiros, as chalupas e outros
tipos de embarcações movidas a velas. Rapidamente foram construídos docas e
armazéns que foram interligados com linhas férreas, tornado o transporte de
mercadorias mais fácil. As construções de docas permitiram que vários navios
pudessem atracar ao mesmo tempo no cais. Não havia mais a necessidade de
transportar os emigrantes em pequenas embarcações para os veleiros ancorados
no Rio Elba. (RÖLKE, 2016, p.272)

Por essa razão, o governo de Hamburgo envolveu-se mais com a Associação de Hamburgo
para a Proteção dos Imigrantes a partir de 1855, com o objetivo de melhorar as acomodações para
os imigrantes em trânsito, isso porque aumentavam as queixas e acusações de tratamento
desumano no porto antes do embarque, como descreve alguns trechos da carta de Ottokar Dörffel
durante sua estadia em Hamburgo, em 12 de março de 1855:

Nossa aventura [...], a recepção que recebemos do "Verein zum Schutz für
Auswanderer"14 em Hamburgo e nossa viagem da estação de trem para local, na

14
Tradução: Associação para a proteção dos imigrantes.
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qual fomos transportados em duas carroças embalados como estacas foi difícil [...]
chegamos ao porto, onde uma multidão de marinheiros imediatamente nos circulou
e descarregou nossa bagagem sem pedir muito e a jogou com pouca delicadeza
contra o paredão de 20 pés15 de altura do Elba. (DÖRFELL apud MATZKE, 2018 p.94)

As dificuldades enfrentadas durante a viagem até o Porto de Hamburgo e a recepção pouco


acolhedora foram relatos frequentes dos imigrantes alemães. O sentimento de abandono e falta de
humanidade não era compartilhado apenas pelo casal Dörffel, considerados intelectuais de classe
média. A situação piorava dependendo da classe social mais baixa em que se encontrava uma família
alemã, conforme descreve Rölke (2016) em seu livro ‘Raízes da Imigração Alemã: história e cultura
alemã no Estado do Espírito Santo’, onde apresenta relatos das queixas, maus-tratos e segregação
de imigrantes.

Emigrantes que vinham de regiões potencialmente sujeitas a doenças, como o leste


europeu, eram separados em barracões à parte, onde os seus pertences e eles
mesmos eram desinfetados, além de terem que se submeter a constantes exames.
Havia pessoas que passavam mais de 14 dias confinadas. Eram os barracões dos
“impuros”. Os emigrantes que não traziam sinais de doenças eram alojados nos
barracões dos “puros”, ou melhor, “limpos”. (RÖLKE, 2016, p.280)

Esses relatos são apenas o início de uma jornada longa dos imigrantes até o destino no Brasil,
cujo enfrentamento seria maior à medida que deixavam o Porto de Hamburgo.
Nesses momentos de tensões dos imigrantes alemães as cartas tornaram-se companheiros
fiéis dos momentos pessoais difíceis, que Cunha (2007) afirma ser um instrumento eficaz de
apropriação das palavras e de criação do discurso, ao mesmo tempo que contribuem para a
compreensão e apresentação de si, a exemplo da descrição do percurso marítimo que marca a
experiência pessoal de Ottokar Dörffel durante a travessia.

Nossa viagem marítima foi muito favorável em termos de velocidade, mas


desfavorável em termos de saúde dos passageiros. Saímos de Hamburgo no dia 1º
de outubro. [...], mas dia após dia passavam-se na esperança de melhoras [...], mas
sempre havia novas doenças e mortes entre os passageiros quase todos os dias. [...]
A vida no navio apresentava os maiores contrastes: lá embaixo, na baiuca, ouvia-se
os gemidos e suspiros dos doentes, no convés da cabine havia uma atividade
animada assim que o tempo melhorava. Muitas vezes jogavam-se cartas,
cantavam-se e tocava-se música no convés dos camarotes, enquanto descendo um

15
Referência à embarcação “Florentin” com o qual os Dörffels cruzaram para o Brasil.
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lance de escadas, ou seja, no convés propriamente dito, um cadáver era trazido ao


mar e entre cânticos e sermões, era afundado no mar. (DÖRFELL apud MATZKE,
2018, p. 84 e 87)

A partir de detalhes apontados por Ottokar, tem-se uma ideia do que significava viajar numa
embarcação dessas proporções. Vale, porém, lembrar que Ottokar viajava em uma cabine privativa,
o que não era o caso da grande maioria dos imigrantes vindos para Santa Catarina. Como se
tratavam em sua maioria pequenos artesãos, tinham que se contentar com a terceira classe. De
acordo com a data das cartas de saída e chegada estima-se que foram 45 dias a bordo do navio em
condições higiênicas catastróficas, com relato de doenças, como cólera que acometeu inúmeros
passageiros.
Foto 1: Navio com imigrantes alemães16

As condições precárias se assemelham em inúmeros relatos de imigrantes de outras


embarcações como apresenta Rölke (2016) em seu livro o depoimento escrito do comandante Lüder
Haelsoop, que descreve a situação do veleiro “Dorette”, no ano de 1867.

Que instalações primitivas para os passageiros. Sem janelas, sem ventilação.


Quando com tempo ruim as escotilhas tinham que ser fechadas, lá embaixo o ar era
horrível. Todos se amontoavam, todos dormiam misturados. Não havia médico a
bordo. A água para tanta gente era acondicionada em barris. Cada passageiro
recebia uma pequena porção de água potável. Durante a noite se colocava guardas,
para que não se roubasse água e alimentos. (HAELSOOP apud RÖLKE, 2016, p.295).

16
Coleção de fotos do arquivo do Centro de Imigração Alemã em Bremerhaven (cidade alemã no estado
federal de Bremen/ Alemanha) e publicada no livro de Matzke (2018, p.85).
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Nascimentos, mortes, dor, sofrimento, tempestades também são descritos por Ottokar
Dörffel durante a travessia. Muitos desses momentos são descrições de medo e tensão ao
enfrentarem tempestades, como ao cruzar o Golfo da Biscaia na noite de 16 de outubro. Os
passageiros foram surpreendidos por uma violenta tempestade que durou mais de 48 horas,
deixando a tripulação terrivelmente abalada pelas ondas e causando desconforto e pânico em
muitos dos passageiros, como no trecho: “O navio inclinava-se de tal forma que parecia querer
afundar e havia apenas alguns passageiros no convés além de mim, que foram poupados do enjoo”.
As mortes de passageiros por condições precárias no interior da embarcação, os
nascimentos em meio ao caos e as dificuldades e sofrimentos presentes nos relatos das cartas nos
proporcionam uma compreensão dos desafios vivenciados.
No campo dos estudos historiográficos, a escrita das cartas pode representar uma fonte
valiosa que fornecem impressões sobre as dificuldades encontradas pelos imigrantes nos navios, a
necessidade de seguir protocolos de saúde, como a quarentena, para evitar epidemias no país de
chegada e as diferenças econômicas e sociais destes homens e mulheres que precisaram deixar a
Europa.

Chegada ao Brasil: primeiras impressões da Colônia Dona Francisca

Em meados de novembro de 1854, a bordo da embarcação marítima Florentin,


desembarcam os imigrantes alemães Ida e Ottokar Dörffel. A partir daquele momento um novo
rumo é traçado em suas vidas.

Novembro de 1854 estamos com segurança no porto de São Francisco [...] O estado
em que encontramos a Colônia Dona Francisca não correspondia em nada às
expectativas geralmente baixas que eu tinha dela. A comida é tão cara quanto aqui
na Alemanha. Além disso, […], não há locais de aluguel. Portanto, tivemos que ser
alojados com outros em um dos edifícios de recepção geral e fomos designados para
lá, uma localidade de cerca de 6 metros quadrados, com a qual nenhum animal na
Alemanha ficaria satisfeito. [...] se você não quiser revelar seus pertences, deve
trancar a porta por dentro. Baratas, pulgas, e outros vermes vivem neste buraco, e
é tão úmido que as roupas que você tira à noite ficam muito úmidas e pesadas pela
manhã. (DÖRFELL apud MATZKE, 2018 p.93)

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A chegada do casal Dörffel marcou suas vidas assim que desembarcaram. Fica evidente o
sentimento de decepção ao se depararem com as condições em que se encontrava a Colônia de
Dona Francisca, mesmo com baixas expectativas. Os imigrantes eram hospedados em prédios
improvisados. Geralmente, as hospedarias de imigrantes eram armazéns pouco arejados, mal
iluminados e com pouca higiene.
A comparação entre os dois mundos, na Saxônia e na Colônia, fora inevitável. Contudo,
retornar não estava nos planos do casal. Pelo contrário, como sugere uma declaração de Ottokar ao
Jornal de imigração Allgemeine17 que demonstra o movimento consciente na decisão de migrar em
direção ao Brasil com o intuito de permanecer e se manter fiel a sua germanidade.

Deixe-me assegurar-lhe quando deixei meu país Natal a Saxônia em 1854, fui
inspirado e guiado pelo desejo de encontrar um lugar tranquilo onde pudesse
permanecer alemão. Mais de uma vez, recebi sugestões e ofertas de conhecidos da
América do Norte para ir para os Estados Unidos, mas o medo de ter que sacrificar
minha germanidade ao ianque me deteve, e esse desejo me permitiu escolher a
Colônia Dona Francisca como destino da minha imigração.18

Foto 2: São Francisco do Sul, Porto de chegada de navios de imigrantes19

17
Com circulação entre 1846 e 1871, O "Allgemeine Emigration Newspaper" (Jornal Geral da Imigração
Alemã), de responsabilidade de editoração de Rudolstadt, Günther Fröbel tinha publicação semanal de três
exemplares. Além de conselhos aos que desejam imigrar e de relatos das experiências dos que migraram,
publicavam listas dos imigrantes alemães nos navios como fonte de informações censitárias.
18 Allgemeine Emigration Newspaper 20 (1866), nº 13 de 29 de março de 1866, página 2.
19
Foto de Theodor Rodowicz da Colônia Dona Francisca, Hamburg 1853. Publicada no livro de Matzke (2018,
p.86).

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E assim o fez, comprou uma propriedade e projetou cada detalhe, onde permaneceu até sua
morte em 18 de novembro de 1906.

“No dia 1º dia do mês de dezembro, tomei posse do meu imóvel e levamos todos os
nossos pertences. Você pode imaginar que, sob tais circunstâncias, estamos em
grande desordem e com as mãos ocupadas apenas para restaurar alguma ordem
[...]. É assim que a vida funciona aqui. (DÖRFELL apud MATZKE, 2018 p.90)

Ao final do primeiro ano na Colônia Dona Francisca, segundo Matzke (2018), Ottokar possuía
uma olaria para produção de telhas, cumprindo sua parte no atendimento às demandas de uma
comunidade com 900 habitantes recém-chegados e sem infraestrutura. Mas não era apenas à
sobrevivência que ele pretendia dedicar os seus dias; sua contribuição estendeu-se além de seus
escritos. Fundou e atuou como editor do Kolonie-Zeitung, um dos primeiros jornais de língua alemã
do Brasil. Esta publicação, que circulou de 1862 a 1942, desempenhou um papel crucial na
orientação dos primeiros colonizadores e no alívio das suas saudades de casa. O Kolonie-Zeitung
tornou-se uma importante fonte de informação para os alemães.
Ottokar Dörffel e sua esposa Ida, mesmo diante do ambiente isolado e inóspito da Colônia
Dona Francisca, como sugerem os relatos de suas cartas, não os impediram de construir e
desenvolver o local que escolheram para morar. A sua fundamentação intelectual e cultural foi
decisiva para moldar e influenciar o cenário político, administrativo e cultural dos imigrantes que,
como eles, escolheram a Colônia como seu “novo lar”.
Nesse sentido, todos os relatos mencionados nas cartas do casal Dörffel, onde descrevem os
desafios e obstáculos enfrentados, são documentos que podem contribuir para a historiografia da
cidade de Joinville.

Considerações finais

As cartas para familiares e amigos eram muitas vezes os únicos relatos confiáveis da vida no
outro lado do oceano para aqueles que ficaram para trás. Deram um contributo significativo para o
processo de tomada de decisão relativamente à imigração ou à permanência na Europa e não foram
apenas recebidos pelo círculo familiar alargado, mas também utilizados estrategicamente através
da distribuição nos meios de comunicação social como literatura de recrutamento para a imigração.

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Pela primeira vez, a carta do imigrante criou uma ligação contínua com a linguagem escrita para um
grupo que de outra forma tinha mais experiência em comunicação oral e estava ancorado na
investigação histórica durante décadas. Como fonte notável de história cultural, mentalidade e vida
cotidiana, encontrou seu lugar em numerosos estudos. As cartas fornecem informações vívidas
sobre a vida no estrangeiro, muitas vezes abrangendo a viagem e a chegada ao Novo Mundo,
condições de trabalho e de vida, comida, bebida, vestuário, rendimentos, preços e oportunidades
de lazer. Como uma série de cartas que abrangem um longo período, elas testemunham histórias
de vida.

REFERÊNCIAS

CUNHA, Maria Teresa Santos. Do baú ao arquivo: escritas de si, escritas do outro. Revista
Patrimônio e Memória. UNESP, v.3, n.1, 2007 p. 45.

MATZKE, Judith. Von Glauchau nach Brasilien. Auswandererbriefe von Ida und Ottokar Dörffel
(1854-1906). Halle/Saale: Mitteldeutscher Verlag, 2018.

RÖLKE, Helmar. Raízes da Imigração Alemã: história e cultura alemã no Estado do Espírito Santo.
Vitória/ES: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016.

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CORPO BIOGRÁFICO: REFLEXÕES SOBRE MEMÓRIA, LINGUAGEM E


IDENTIDADE NOS CORPOS FEMININOS
Msc. Bruna de Souza Medina | Universidade da Região de Joinville| bruna_s_medina@hotmail.com
Dra. Raquel Alvarenga Sena Venera | Univille| raquelsenavenera@gmail.com

Introdução

O presente trabalho é um recorte da pesquisa de doutorado em Patrimônio Cultural e


Sociedade. A tese pretende abordar o corpo biográfico de mulheres e o patrimônio cultural. O
conceito de corpo biográfico desenvolvido por Josso (2012) que o entende como parte da narrativa
de vida, pois é a partir do dele que se experimenta o ser-no-mundo. Assim, o corpo também é
portador de memória e identidade, uma vez que estes conceitos se conectam dialeticamente.
A pesquisa tem enfoque nas mulheres, entendendo que as construções sócio- históricas
dos papéis de gênero as colocam em uma situação de vulnerabilidade em relação aos homens,
principalmente as mulheres negras, na medida em que esses papéis operam como mecanismos de
poder no patriarcado, visando disciplinar os corpos das mulheres e as formas em que elas devem
ser-no-mundo, significando violências por vezes sutis - os padrões de beleza e corporais impostos
as mulheres; as maneiras de se comportar; a forma de se sentar; o que vestir; os locais a
frequentar; ou ainda violências explícitas chegando ao feminicídio. Trata-se de papéis sociais que
impedem o pleno acesso e direito das mulheres enquanto cidadãs e seres humanos.
Sendo assim, nesse texto discutiremos algumas reflexões iniciais a respeito do corpo
biográfico de mulheres e sua articulação com memória, identidade e linguagem que foram
iniciadas a partir das discussões e autores, como Mbembe (2018) e Assmann (2011) dentre outros,
abordados na disciplina de Estudos Avançados em Memória, Linguagens e Identidade (EAMLI), que
serão desenvolvidas mais profundamente no decorrer na tese.

Corpo biográfico e o feminino: articulações possíveis com EAMLI

“[...] todas as experiências que tive


estão memorizadas na minha pele
mesmo quando a mente esquece
meu corpo lembra meu corpo é o
mapa de minha vida meu corpo
veste tudo o que viveu meu corpo
aciona o alarme quando sente o
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perigo chegar e de súbito os


demoniozinhos do passado saem do
meu corpo num salto e gritam não
se esqueça da gente nunca mais
pense em tentar deixar a gente pra
trás”
(KAUR, 2020, p.33, grifo da autora)

Quando narramos nossas histórias de vida nosso corpo é parte importante dessa narrativa,
no entanto na maioria das vezes não temos consciência do lugar do corpo em nossa história. Aqui
não estamos falando apenas de uma presença física ou de expressões corporais no ato de narrar,
como um silêncio, um espanto estampado na face, um choro involuntário, mãos e olhares
inquietos, mas de um corpo que esteve presente em todos os momentos de nossa vida até o
instante da narrativa. Desde nascimento à puberdade, nas transformações físicas que passamos,
nas relações que vamos construindo com nós mesmos e com os outros, também da juventude com
as descobertas sexuais e os amores, como aponta Josso (2012) o corpo contém “ microrrelatos ou
microlembranças sobre a maneira pela qual o autor esteve em relação física com seu ambiente
humano e natural” (p. 24), nos sentimentos, nos sentindo físicos, nas necessidades básicas
enquanto humana atendidas etc., que continuam na vida adulta a ser apresentadas também em
suas diversidades de espaços, culturas e estéticas (JOSSO, 2012).
As construções identitárias e de memória se conectam em um movimento dialético, logo
“a perda de memória é, portanto, uma perda de identidade” (CANDAU, 2011, p.59). O corpo faz
parte desse arranjo na medida em que é através dele que experienciamos o nosso ser-no-mundo,
termo que a autora Josso (2010) utiliza para abordar várias dimensões de se estar no mundo (como
o ser físico; sensível; de afetividade; das emoções; de cognição; de ação; e de imaginação), que se
conectam entre si ao ponto central para nosso ser no mundo, que é o ser de atenção consciente,
que consiste em

[...] como presença para si mesmo no aqui e agora tanto em nosso vínculo com o
mundo exterior quanto em nossa interioridade psíquica e física. Estar presente
para si mesmo no tempo daquilo que se vive constitui um ganho suplementar não
somente para aprender, mas igualmente para guardar algo (um vestígio, uma
pista) [...] O ser de atenção consciente está, assim, no coração de nosso ser no
mundo e de nossa capacidade de existir, conectado com nós mesmos e com nosso
ambiente humano e natural [...] (JOSSO, 2010, p.75, grifos da autora).

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É preciso estar presente para si para se conhecer, descobrir suas potencialidades, para
aprender com sua narrativa e com sua história de vida, assim como para ter consciência do seu
corpo.
A memória “permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo,
interfere no curso atual das representações” (BOSI, 2003, p .36). No entanto, quando “uma
memória embutida no corpo é totalmente cortada da consciência, estamos falando de um trauma.
Esse trauma é entendido como uma experiência encapsulada corporalmente, que se expressa por
sintomas e bloqueia uma lembrança recuperadora” (ASSMANN, 2011, p.25). O trauma então, é
essa memória reprimida, mas que continua presente e reverbera, e que mesmo depois de acessada
ainda se perpetua na forma de cicatriz. Partindo disso pode se pensar o que Mbembe (2018) coloca
sobre a condição do escravo em seu livro “Necropolítica”, na qual há “uma tripla perda: perda de
um ‘lar’, perda de direitos sobre o seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale
a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é a expulsão fora
da humanidade)” (p.27). A colonização transformou os escravizados em coisas e mercadorias, uma
morte em vida, no qual o sofrimento foi registrado em seus corpos.
O fim da escravidão não modificou o lugar do negro na sociedade, novas formas de
subjugação foram postas. Mbembe nominou como Necropolítica as novas “formas
contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte” (MBEMBE, 2018, p.71), em que as
populações mais vulneráveis tanto geopoliticamente, quanto subjetivamente são alvo da política
da morte. O autor ao discutir as formas contemporâneas da política de morte aborda a lógica do
sobrevivente e a lógica do mártir. No primeiro plano a partir dessa lógica é colocada em prática
que através da morte do outro, os outros são considerados como os inimigos e a morte deste
significa minha sobrevivência de forma que traz um sentimento de segurança. No segundo, o corpo
se transforma em uma arma, no qual o desejo individual de morte está atrelado ao desejo da morte
do outro, ou seja, “a vontade de morrer se funde com a vontade de levar o inimigo consigo, ou
seja, eliminar a possibilidade de vida para todos” (MBEMBE, 2018, p.64). O corpo é então algo sem
sentido em si, uma coisa que só teria poder e valor com base em um desejo de viver eternamente.
Partindo dessa discussão, é possível pensar que os mecanismos do patriarcado na
contemporaneidade operam no modo de uma política de morte, na medida em que o machismo

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incide e afeta os corpos femininos?


De forma geral pode se dizer que o patriarcado é um o sistema pelo qual os homens
exercem poder e domínio sobre as mulheres, através da cultura, de estruturas e de relações que
os favorecem. Margareth Rago (1985) aponta que o modelo feminino elaborado em meados do
século XIX, simbolizava a mulher como a esposa dona-de-casa-mãe-de-família, impactou na
desvalorização profissional, política e intelectual da mulher, restringindo seu espaço ao privado,
ao lar, e no espaço público como dependente de uma subordinação masculina. Precisa-se destacar
que com as revoluções industriais (século XVIII e XIX) as mulheres, principalmente de classes mais
baixas ocuparam as fábricas o que representa a inserção das mulheres nos espaços públicos,

Desse modo, para as mulheres o público significava o “risco de perder a virtude”,


já que se associava o público com a ideia de desgraça moral e, para os homens, a
imoralidade se aliava a uma tendência oculta que lhes permitia ultrapassar os
limites dados pelos papéis de marido e pai, associando o público com a ideia de
liberdade, “o lado de fora” que não feria a família por permanecer distante dela.
(NOVAES, 2015, p. 54-55)

Todavia não se pode levar essa distinção entre público e privado como rígida e constante,
ela se modifica conforme a história e o contexto dos sujeitos. No século XX, com a luta das mulheres
pelo voto e principalmente com a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, as mulheres passaram a
ocupar mais espaços dentro da sociedade, assumindo papéis de liderança em suas famílias e
trabalhando em setores das indústrias considerados masculinos. Contudo, com o fim da Segunda
Guerra Mundial, os homens retornaram aos seus lares e as mulheres, por sua vez, tiveram que
retornar as suas funções domésticas. Para esse deslocamento das mulheres de volta ao lar foram
realizadas diversas campanhas durante a década de 1950, expondo a mulher como rainha do lar,
servindo ao marido e aos filhos, sempre doce e gentil, com a casa em ordem, nas palavras da autora
Alves (1981, p. 50):

com o final da guerra e o retorno da força de trabalho masculina, que a ideologia


que valoriza a diferenciação de papéis por sexo, atribuindo a condição feminina o
espaço doméstico, é fortemente reativada, no sentido de retirar a mulher do
mercado de trabalho para que ceda seu lugar aos homens. As mensagens
veiculadas pelos meios de comunicação enfatizam a imagem de “rainha do lar”,
exacerbando-se a mistificação do papel da dona- de-casa, esposa e mãe.
Novamente o trabalho externo da mulher é desvalorizado, tido como suplementar

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ao do homem.

Esta condição feminina eclodiu na década de 1960, em que muitas mulheres foram as ruas,
principalmente nos Estados Unidos, questionar esse papel social destinado a elas, e começaram a
estudar sobre a condição das mulheres na sociedade foi na década de 1980 que surge o conceito
de gênero para analisar os papeis sociais impostos a homens e mulheres. A partir da análise de
gênero então pode se observar que

a dominação masculina foi elaborada em todos os aspectos da vida, sendo, na


verdade, reinventada a cada época com vasta bateria de arrazoados religiosos,
biológicos, ‘científicos’, psicológicos e econômicos que se sucedem na tarefa sem
fim de justificar a inferioridade da mulher em relação ao homem. Os argumentos
tradicionalistas em favor da supremacia masculina têm sido notavelmente
resistentes ao tempo - em todas as experimentações democráticas, todas as
revoluções, todas as demandas de igualdade até hoje pararam aquém da
igualdade sexual - e as mulheres, vistas como biologicamente condicionadas,
continuam a ter-lhes negado o direito humano de autodeterminação plena.
(MILES, 1989, p. 12)

Outro ponto que deve ser considerado é a questão racial, pois todo o contexto abordado
até então faz referência às mulheres brancas ocidentais. As mulheres negras, quando comparadas
aos demais da população, estão mais vulneráveis, pois além do racismo elas vivenciam o machismo
também. Segundo Kilomba (2012 apud RIBEIRO, 2016, p. 102)

Por não serem nem brancas, nem homens, as mulheres negras ocupam uma
posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Nós representamos uma
espécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de
ambos, branquitude e masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só pode ser
o outro, e nunca si mesma. [...] Mulheres brancas tem um oscilante status,
enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas,
mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens
brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas,
pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem
brancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro.

Esse não-lugar que coloca a mulher negra em situação de solidão e violência tem suas
bases no período colonial, pois os seus corpos foram sexualizados e ao mesmo tempo considerados
como fortes, capazes de suportar dor, o que faz com que ainda hoje sofram violência obstétrica e

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ginecológica, por exemplo.


A construção dessa sexualização do corpo negro e da depreciação da pele negra foi
utilizada pelo colonialismo como uma ferramenta de dominação, se utilizando da linguagem que
desvalorizava tanto a cultura como as características físicas para justificar a exploração e opressão
como aponta Pantoja et al. (2019). Ainda segundo a autora, a sexualização da mulher negra, ainda
presente, vem desse processo de desvalorização que a coloca num lugar inferior e cria um
estereótipo dessas mulheres, “se compreende que esse processo, ao qual as mulheres negras
foram submetidas, culminou nas explorações físicas, verbais, sexuais e psicológicas” (PANTOJA et
al., 2019, p.6). Ribeiro (2018, n.p.) aponta que

no período colonial, as mulheres negras eram estupradas e violentadas


sistematicamente. Mulher negra não é humana, é a quente, a lasciva, a que só
serve para sexo e não se apresenta à família. Também é o grupo mais estuprado
no Brasil, já que essas construções sobre seus corpos servem para justificar a
violência que sofrem.

O feminismo negro, ao pensar sobre essa construção histórica e como o machismo e o


racismo se combinam e se entrecruzam, colocando em evidência as diversas opressões da
sociedade. Em suas análises elas compartilham suas experiências e história, e possibilitam novos
pensamentos e construções sociais, esse lugar não é apenas de vulnerabilidade, mas também de
resistência e construção coletiva para a equidade.
No corpo então

localiza-se em um terreno social e subjetivamente conflitivo, ao longo da história,


ele se tornou emblema étnico, e sua manipulação tornou-se característica cultural
marcante para diferentes povos. Ele é um símbolo explorado nas relações de
poder e dominação para classificar e hierarquizar grupos diferentes. O corpo é
uma linguagem. (GOMES, 2019, p. 251)

Se o corpo é uma linguagem, que nos possibilita ser-no-mundo, a partir das vivências
corporais que tem potencialidades de consciência de si, de ressignificação, mas que também pode
subverter a lógica de dominação dos corpos, ao proporcionar uma experiência corporal, uma
história que passa pelo corpo, que é corpo.
O “EU tem um corpo” (JOSSO, 2012, p. 25, grifo da autora), que seria algo que demanda

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manutenção, seja em relação a saúde ou estética, para um “EU é um corpo ou do Eu-corpo” (JOSSO,
2012, p. 25, grifo da autora), que transforma nossas representações sobre nós mesmos e com isso
a nossa relação com nós mesmos. Processo que impede a descoberta das mulheres em sua
profundidade, com uma “atenção consciente ao corpo-que-eu-sou me informa a seu modo sobre
a situação de meu ser e de seu vir-a-ser” (JOSSO, 2012, p. 27, grifo da autora).
Ao passo que esse movimento contribui para que uma recordação se torne símbolo, ao
possibilitar um “trabalho interpretativo retrospectivo em face da própria história de vida e situado
no contexto de uma configuração de sentido particular” (ASMANN, 2011, p. 275). Poder significar
é importante para a autodeterminação, para que se possa interpretar as recordações e narrar sua
história de vida formando um sentido, que é o ponto principal de uma identidade (ASSMANN,
2012), que justamente adquire seu “sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelas
quais elas são representadas” (WOODWARD, 2014, p. 8). As narrativas de memórias são uma das
formas simbólicas que as identidades podem ser comunicadas. E o trauma, como apontado por
Assmann (2011, p. 283) “é a impossibilidade da narração”.
Voltando a pergunta, poderíamos pensar que as construções sócio-históricas dos papéis de
gênero colocam as mulheres em uma situação de vulnerabilidade em relação aos homens, e
principalmente as mulheres negras, na medida em que esses papéis operam como mecanismos de
poder no patriarcado que visam disciplinar as mulheres, através de seus corpos nas formas em que
estas devem ser-no-mundo, como por exemplo os padrões de beleza e corporal impostos as
mulheres, as maneiras de se comportar como não sentar com as pernas abertas, o que vestir, locais
a frequentar, e a própria prática de feminicídio, entre outros, que impede o pleno acesso e direito
das mulheres enquanto cidadãs e seres humanos. Será que isso poderia se enquadrar no que
Mbembe aponta como Necropolítica, o patriarcado promoveria políticas de morte sobre as
mulheres?
Além disso, considerando que o patriarcado incide sobre a cultura, e que esta “é uma
complexa teia de significados para dar sentido e sustentação à vida humana” (WESTPHAL 2017,
p.217), na qual a espiritualidade seria um dos seus fundamentos, ao lado da imaterialidade como
“teia de significados e sentidos” (WESTPHAL, 2017, p.218). Poderia se dizer que o aspecto religioso,
principalmente no que tange ao cristianismo, uma vez que o corpo é tido como de Deus, um templo
que deve ser imaculado, e, portanto, intervenções como tatuagens, roupas ditas “provocantes”,

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cabelo curto ou com coloração, podem ser interpretadas como um corpo entregue ao pecado
assim como um corpo que vive sua sexualidade, ou também no caso de pessoas trans, que estariam
desmaculando um corpo sagrado. Aqui é preciso pontuar também como o signo feminino em
corpos trans se torna vetor para a violência sofrida dessas pessoas.
O patriarcado, assim como a espiritualidade são sistemas de pensamentos que estão
presentes na cultura, e tais sistemas formam o “mundo simbólico e às relações sociais”
(WESTPHAL, 2017, p.216). Dito isso, será que o discurso religioso funciona como uma justificação
para a violência, para uma política de morte sobre os corpos que transgridam as regras religiosas?
Ele seria um vetor que potencializa as práticas de poder do patriarcado?

Considerações finais

Estas são reflexões iniciais instigadas a partir das aulas e textos expostos na disciplina de
Estudos Avançados em Memória, Linguagem e Identidade, que pretendo desenvolver e aprofundar
ao longo da tese. O projeto de Tese visa abordar o corpo biográfico de mulheres, para tal
pretendemos discutir as questões de gênero, da categoria mulher e feminino, a história do corpo
para compreender se as mulheres ao narrar suas histórias pensam sobre os seus corpos, de que
forma pensam, de que maneira essas construções de gênero impactam em seus corpos e logo em
suas memórias, identidades e subjetividades, e se elas teriam consciência disso.
Ademais a pesquisa articulará as discussões de gênero, identidade, memória, subjetividade,
linguagem e corpo biográfico com as discussões que o grupo de pesquisa vem desenvolvendo
acerca do patrimônio (em) comum.
Sendo assim o presente texto se apresenta como uma reflexão inicial de possíveis caminhos
e discussões que podem ser desenvolvidos ao longo da caminhada de tese.

REFERÊNCIAS

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ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural.


Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial,
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2003.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011. Tradução de: Maria Leticia
Ferreira.

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cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 249-293.

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MBEMBE, Achille. Necropolítica, São Paulo, 2018.
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NOVAES, Elizabete David. ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: O PAPEL DA MULHER NOS


MOVIMENTOS SOCIAIS E A CONQUISTA DE DIREITOS NO DECORRER DA HISTÓRIA. História e
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PANTOJA, Joicy Helena da Costa et al. OS REFLEXOS DO PERÍODO COLONIAL NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA: a questão da sexualização e objetificação da mulher negra no brasil. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS, 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: S.N,
2019. p. 1-10.

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica.
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PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005.

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Brasil 1890 – 1930. Rio de janeiro: Paz e terra, 1985.

RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro para um novo marco civilizatório. In, Sur - Revista
Internacional de Direitos Humano SUR 24-v.13 n.24, 99-104, 2016

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EMPADAS JERKE (JOINVILLE/SC): A IMATERIALIDADE DO COMER PERANTE


ELEMENTOS MATERIAIS

Gabriel Henrique de Oliveira Furlanetto20 | Univille | gabriel28_oliveira@hotmail.com


Prof.a. Dra. Mariluci Neis Carelli21 | Univille | mariluci.carelli@gmail.com
Prof.a. Dra. Roberta Barros Meira22 | Univille | rbmeira@gmail.com

Introdução

Na cidade de Joinville – estado de Santa Catarina – há um estabelecimento gastronômico


intitulado “Empadas Jerke”, que se faz presente no Centro da cidade, Rua Doutor João Colin, n. 393.
Esse comércio existe desde a primeira metade do século XX, pois a crônica oficial desse
estabelecimento data a sua existência a partir de 1922. Esse comércio se tornou popular justamente
pela memória oficial de 100 anos de existência e a produção e venda de empadas de massa folhada,
que, justamente por causa dessa característica, se destoa das empadas que comumente se
encontram em outros comércios, como as de massa podre. Além disso, essa mesma popularidade
é somada pelas memórias afetivas de fregueses (antigos e recentes) e interesses de turistas por
referências culturais.
Em vista disso, foi criado o projeto de pesquisa intitulado “Empadas Jerke: práticas
alimentares, historicidades e patrimonialidade”, que é um projeto de Iniciação Científica que contou
com bolsa financiada pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
e que integra o projeto guarda-chuva “A Paisagem Cultural: Viver o Patrimônio”, que é coordenado

20
Acadêmico de Licenciatura em História da Univille (Universidade da Região de Joinville). É bolsista do Prouni
(Programa Universidade para Todos) – financiado pelo Ministério da Educação –, bolsista do PIBIC (Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica) do CNPq e voluntário do Programa de Residência Pedagógica
promulgado pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Também foi
bolsista da CAPES pelo Pibid (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência). Currículo lattes:
lattes.cnpq.br/2738602230109838. E-mail: gabriel28_oliveira@hotmail.com.
21
Professora do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade e do curso de graduação
em Psicologia da Univille (Universidade da Região de Joinville). Possui doutorado em Engenharia de
Produção, mestrado em Sociologia Política e graduação em Serviço Social pela UFSC (Universidade Federal
de Santa Catarina). Currículo lattes: lattes.cnpq.br/8813616332452541. E-mail: mariluci.carelli@gmail.com.
22
Professora do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade e do Curso de História da
Univille (Universidade da Região de Joinville). Possui doutorado e mestrado em História Econômica pela USP
(Universidade de São Paulo) e graduação em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Currículo
lattes: lattes.cnpq.br/5410201062168341. E-mail: rbmeira@gmail.com.
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pela Professora Doutora Mariluci Neis Carelli. Ademais, esse projeto também fez parte dos grupos
de pesquisa intitulados “Cultura e Sustentabilidade” e “Estudos em circulação de saberes, natureza
e agricultura”, todos coordenados por Carelli e pela Professora Doutora Roberta Barros Meira. Esses
dois grupos de pesquisa integram o LAPArq (Laboratório de Arqueologia e Patrimônio
Arqueológico), que está localizado no Campus Bom Retiro da Univille (Universidade da Região de
Joinville) e é coordenado pela Professora Doutora Dione da Rocha Bandeira.
O projeto de Iniciação Científica em questão possuiu como objetivo de pesquisa discutir as
práticas alimentares e gastronômicas relacionadas às Empadas Jerke e ao seu principal produto, que
são as empadas de massa folhada. Foi iniciado no ano de 2022 e findou em 2023. Esteve adentrado
na disciplina de História com a colaboração da interdisciplinaridade. Sendo assim, nesse trabalho
serão exibidos um recorte dos resultados da pesquisa, mas antes será necessário contextualizar os
métodos empregados, a começar pela seção “Metodologia: da revisão de literatura à análise de
entrevistas”. Em seguida haverá a discussão dos resultados por meio de duas seções sequenciais,
respectivamente intituladas “O caso dos elementos alimentícios e do “sino de stammtisch”” e “O
caso do forno a lenha”.
Portanto, será observado, a partir de narrativas orais, como as práticas alimentares e
gastronômicas estão configuradas por materialidades e imaterialidades, e que essa última antecede
as próprias razões de usos da primeira. O imaterial, nesse caso, não é algo apartado da
materialidade, assim como também não está objetivamente arraigado nele, pois os exercícios
culturais são os responsáveis em manipular a materialidade nos fins de culturalmente adaptá-los
imaterialmente.

Metodologia: da revisão de literatura à análise de entrevistas

Para o projeto de pesquisa, os métodos visados foram revisão bibliográfica (que acabou se
tornando, na prática, em revisão de literatura), produção fotográfica, pesquisa documental e
História Oral. A justificativa do uso da revisão de literatura é que absolutamente toda pesquisa
científica, independentemente de sua área – como, por exemplo, Ciências Humanas, Ciências da
Saúde, Ciências Exatas e da Terra e Engenharias –, deve estar ancorada nela. Em outras palavras,
esse método antecede todos os outros métodos de pesquisa. Nesse assunto, o desenvolvimento da
pesquisa contou com análises de livros, capítulos de livros organizados, artigo de periódico e
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dissertação de mestrado. Para esse trabalho será revelado apenas um pequeno recorte dessa
revisão de literatura: Ilanil Coelho (2005); José Carlos Sebe B. Meihy e Leandro Seawright (2021);
Massimo Montanari (2008); Jean-Pierre Poulain e Rossana Pacheco da Costa Proença (2003).
A revisão de literatura circundou todo o trajeto da pesquisa, dado que ela não se constituiu
como uma primeira etapa que se encerrou após a aplicação da História Oral. Nessa situação, a
revisão de literatura foi concomitante a outros métodos e integralmente presente. Ademais, a
mudança de revisão bibliográfica à revisão de literatura se dá pelo fator de que a primeira envolve
apenas livros, capítulos de livros organizados e artigos de periódicos, enquanto a revisão de
literatura se baseia, além dessas já mencionadas, em monografias de graduação, dissertações de
mestrado, teses de doutorado e anais de evento.
Em parte dessa revisão de literatura foram utilizados fichamentos como instrumentos de
organização, análise e sistematização. Os fichamentos produzidos têm cabeçalho e três colunas. A
coluna central é onde ficam os excertos selecionados. Na coluna da esquerda há a paginação dos
excertos selecionados. Na coluna da direita ficam os comentários do excerto selecionados, como as
análises/considerações autorais, sistematizações das ideias do(s) autor(es) e a constatação dos
métodos operados pelo(s) autor(es) para basear(em) as suas ideias.
No que se refere a pesquisa de campo, a metodologia principal foi a História Oral, que
resultou, através da colaboração de três participantes de pesquisa/entrevistados, em três
entrevistas diferentes. Por se tratar de um método que envolve a pesquisa com seres humanos, foi
imprescindível, antes da realização das entrevistas, a aprovação do CEP/Univille (Comitê de Ética da
Universidade da Região de Joinville). Assim sendo, o projeto foi submetido a esse comitê pela
Plataforma Brasil, que acabou recendo o seguinte CAAE (Certificado de Apresentação de Apreciação
Ética): 65308422.6.0000.5366. O projeto foi aprovado em 19 de dezembro de 2023, para que a
pesquisa por narrativas orais fosse viabilizada.
Nessa questão, a História Oral é um método de registro de memórias de expressão oral, na
transformação delas em fontes de pesquisa. Apesar disso, não se pode concebê-lo como uma
prática simples de comunicação social, pois esse método conta um tradicional percurso de
desenvolvimento após a criação de projeto de pesquisa: elaboração de roteiro – que já foi
antecipadamente feita para a submissão do projeto; realização da entrevista; transcrição; análise
da entrevista. Os roteiros elaborados para o projeto em pauta foram reformulados e conforme as

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novas questões que emergiram no decorrer da pesquisa, especialmente no que se trata da trajetória
individual dos potenciais participantes de pesquisa.
Além disso, a produção fotográfica e a pesquisa documental foram mobilizadas para
contribuir pela História Oral. Isso significa que esses dois primeiros métodos de pesquisa não foram
os métodos de pesquisa de campo principais, porque apenas serviram de colaboração à principal
metodologia, a já mencionada História Oral. A produção fotográfica foi realizada dentro do
estabelecimento das Empadas Jerke e em seu exterior – essa última especificamente da fachada.
Foi utilizada uma câmera fotográfica profissional, emprestada do LHO/Univille, para a aplicação
desse método. A pesquisa documental, por sua vez, consistiu em análises de uma gravação
audiovisual da Terceira Sessão Especial de 2022 da Câmara de Vereadores de Joinville. Foi utilizado
uma ficha de análise para o estudo desse material, com a colaboração da revisão de literatura.
O primeiro entrevistado foi Ronaldo Eduardo Jerke, filho dos fundadores das Empadas Jerke
– Carlos Guilherme Jerke e Carlota Jerke. O segundo entrevistado foi Paulo Roberto Jerke, neto dos
fundadores, enquanto o terceiro entrevistado foi Carlos Eduardo Jerke. Somando as três entrevistas,
houve um total de 09 horas, 47 minutos e 55 segundos de áudios gravados. Foi utilizado gravador
de áudio profissional, também emprestado do LHO/Univille, para a realização das entrevistas.
Lançou-se mão também do celular pessoal do graduando para a gravação da entrevista, para
assegurar a gravação das entrevistas mesmo diante de um problema que pudesse ocorrer no
gravador de áudio profissional.
É relevante dizer que a gravação de História Oral não precisa ser realizada exclusivamente
pelo material exclusivamente audível. Nesse assunto, também pode-se utilizar de câmeras de vídeo
para captar não somente o oral, mas também as imagens dos entrevistados, entrevistadores e o
próprio ambiente físico da entrevista. Contudo, a pesquisa em questão se baseou apenas em
material audível.
De mais a mais, houve união das discussões de Meihy e Seawright (2021) com as de Poulain
e Proença (2003). A mescla das discussões desses quatro autores é para conciliar a História Oral,
enquanto método específico e autônomo de pesquisa por entrevistas, com a metodologia de
pesquisa das práticas alimentares. Essa última conta com diversos métodos, na qual uma delas é a
entrevista. Porém, na situação de que Poulain e Proença (2003) não mobilizaram a discussão da

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metodologia da História Oral, foi visto como promissor unir essa metodologia com a metodologia
de pesquisa das práticas alimentares.
Atinente a transcrição das entrevistas, foi utilizado o software Microsoft Word para a
efetivação disso. Todavia, só foi possível realizar a transcrição completa dos dois primeiros
entrevistados, porque a transcrição da entrevista do terceiro entrevistado ainda está a ser
finalizada. Nessa circunstância, houve, até o momento, a produção de 123 laudas de transcrição, na
inclusão dos cabeçalhos e dos anexos.
Outrossim, na transcrição foram utilizados os métodos de textualização e transcriação.
Conforme Meihy e Seawright (2021), a textualização é fazer com que a transcrição fique coesa e se
ancore na lógica da escrita: converter o falado na lógica do grafado. Transcriação, por seu turno, é
a intervenção criativa e inventiva do transcritor da entrevista: ele, ao desejar ressaltar mais as ideias
presentes na entrevista do que as meras palavras mencionadas, pode utilizar de elementos que
caracterizem a transcrição de acordo com o que ele deseja comunicar. Para tanto, é obrigatório o
consentimento ético dos participantes de pesquisa para o uso da transcriação.
Quanto às análises das entrevistas, não foi criado, nesse momento, um instrumento formal
de análise para o estudo minucioso das entrevistas, algo que demanda várias horas de elaboração.
Entretanto, foi possível, do mesmo modo, realizar a discussão dos resultados de pesquisa. Essa
discussão ancorou-se, também, em revisão de literatura. Para esse trabalho, haverá apenas uma
curta exposição de tais discussões, pelo motivo de que se pretende de que as mais aprofundadas e
expandidas sejam comunicadas em artigos de periódicos e capítulos de livro.

O caso dos elementos alimentícios e do “sino de stammtisch”

Com o conceito de “elementos alimentícios”, fala-se daquilo que se é humanamente possível


comer. Os elementos alimentícios em questão são o chope, a cerveja, o rollmops e a própria empada
Jerke23. O termo “sino de stammtisch” é algo criado para esse trabalho no intuito de tratar de um
dos objetos mencionados por Carlos Eduardo Jerke durante a sua entrevista. Os primeiros são, como

23
Para esse trabalho, o termo “Empadas Jerke” (com a primeira palavra em inicial maiúscula) significa o
estabelecimento comercial em pauta, enquanto o termo “empadas Jerke” (com a primeira palavra em inicial
minúscula) significa a própria empada de massa folhada do estabelecimento.
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é explanado no próprio título são elementos alimentícios, enquanto o segundo é um elemento não
alimentício.
A menção dos elementos alimentícios ocorreu logo na entrevista com Ronaldo Eduardo
Jerke24:

[G.H.D.O.F.]: Na Rua Dr. João Colin, quando houve a inauguração das Empadas
Jerke, era um dos poucos comércios que existiam por lá, porém, com o tempo, foi
surgindo outros comércios e outros lugares. Hoje há o Shopping Mueller e o
Shopping Cidade das Flores. Esses são locais de alimentação. O senhor acredita que,
diante de tudo isso, as Empadas Jerke perderam freguesia com esses novos
comércios?
[R.E.J.]: Não! Ao contrário, aumentou. Nós tínhamos uma freguesia selecionada e
muito boa. Essa freguesia mantinha a tradição de ir às Empadas Jerke todos os dias.
Inclusive, cada um desses fregueses tinha a sua própria cadeira. Eles tinham até os
seus copos para beber cerveja. Eles não enchiam de cerveja o copo do outro. Cada
um tinha o seu próprio copo. Isso é tradição da Alemanha, que é o stammtisch.
Cada um tomava a sua cerveja em seu próprio copo. Tomavam um ou dois copos
de cerveja e iam embora. [...].

Pelas narrativas apresentadas acima, observa-se que a prática cultural do stammtisch, que é
uma prática de sociabilidade que se imagina alemã e teuto-brasileira, possui vínculo com a cerveja
e o chope. Essa prática, nesse caso, esteve presente na trajetória mais antiga das Empadas Jerke e
continua perpétua até os dias de hoje, porém com transições e rupturas que a desvaneceram no
tempo.
A prática do stammtisch é algo explicado, e duas vezes, pelo segundo entrevistado25 (quando
houve a adaptação de roteiro que incluiu várias questões baseadas no stammtisch):

[P.R.J.]: Stammtisch26 seria uma mesa privada e reservada a clientes que


frequentam um estabelecimento quase diariamente. Esses clientes têm apenas a
mesa reservada, pois a própria cadeira da mesa é reservada para cada um dos
clientes.
[...]
[P.R.J.]: [...] Então, para mim o stammtisch é isso: uma mesa de amigos que
frequentam aquela casa, quase que diariamente, com uma cadeira reservada para
cada um desses amigos.

24
“G.H.D.O.F.” são as iniciais do nome do entrevistador (Gabriel Henrique de Oliveira Furlanetto), enquanto
“R.E.J.” são as iniciais do nome do primeiro entrevistado (Ronaldo Eduardo Jerke).
25
“P.R.J. são as iniciais do nome do segundo entrevistado (Paulo Roberto Jerke).
26
O terceiro entrevistado apresentou o significado da palavra: “stammtisch” significa “mesa cativa”.
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Com um recorte da síntese de todas as entrevistas (que inclui também as do terceiro


entrevistado), observou-se que o stammtisch, como prática de sociabilidade, foi um generalizado
fenômeno das Empadas Jerke, constituindo em sua trajetória antiga como principal objetivo dos
fregueses, que manuseavam a materialidade da cerveja e do chope para a as suas funções
imateriais, que é o próprio exercício do stammtisch. Pela conceituação da imaterialidade do
alimento, referencia-se o historiador Massimo Montanari (2008), que compreendeu o alimento
enquanto linguagem, não o restringindo em sua materialidade. Em outros termos, o alimento, por
possuir linguagem, possui imaterialidade pelas ações culturais que o envolvem.
Nisso também se inclui o rollmops. Também por um recorte da síntese de todas as
entrevistas, esse alimento também se fez presente no estabelecimento, podendo ser utilizado para
compor a prática do stammtisch. O rollmops é um alimento composto por um pedaço de cebola
enrolado por uma parte de pedaço de peixe com sua pele sem escamas (no Brasil, comumente de
sardinha) mergulhados em potes com conserva. Nas práticas mais recentes de stammtisch nas
Empadas Jerke também é somado o “sino de stammtisch”, que é utilizado para chamar o atendente
do estabelecimento quando necessário. Porém, não são todos os grupos de stammtisch que têm
acesso a esse objeto.

O caso do forno da lenha

Outro caso é o da recepção dos sabores na trajetória das Empadas Jerke. O filho do fundador
disse que (para a sua individualidade), quando as empadas eram produzidas com o uso do forno a
lenha, elas tinham um sabor superior em suas propriedades gustativas. No entanto, seus dois filhos
entrevistados dizem que isso não procede. O contexto é a transição de um forno a outro durante a
trajetória das Empadas Jerke. No percurso mais antigo, o forno era a lenha. A questão está presente
pela seguinte narrativa:

[G.H.D.O.F.]: Quando o senhor assumiu a gerência, já se usava fogo a gás para a


produção das empadas?
[R.E.J.]: No início, não. No início era forno a lenha. Nós tínhamos fornos muito
grandes! Era de fogo contínuo, pois ficava quente dia e noite. Assávamos mil
empadas a toda hora. Depois entrou o forno a gás. Até que isso melhorou, pois não
precisa mais ficar repondo lenha. Mas, nas empadas, isso piorou. O sabor não é
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mais o mesmo. Por meio do forno a lenha, a melhor coisa é você comer um marreco
assado, diferente de comer uma carne dessa por meio do forno a gás. O tijolo
mantém mais calor. Tudo que é feito no forno a lenha é melhor.

Abaixo, um infográfico que retrata essa questão. O cérebro representa o imaginário e a


mentalidade de Ronaldo Eduardo Jerke. No lado superior-direito, há um ícone representando o
forno a lenha, enquanto o ícone do lado inferior-direito representa os fornos mais recentes da
trajetória das Empadas Jerke: a diesel e a gás.

Figura 1 – Infográfico sobre a recepção do sabor das empadas Jerke.

Quando o segundo entrevistado, um de seus filhos, é interpelado quanto a essa questão, ele
apresenta a seguinte narrativa:

[G.H.D.O.F.]: [...]. O senhor já chegou a consumir as empadas que eram assadas a


forno a lenha. Conseguiria me dizer se há uma diferença de sabor entre a empada
assada em forno a lenha e a empada assada em forno a gás?
[P.R.J.]: Eu não acredito que se tenha alteração de sabor, porque não existe contato
direto com o produto que forma a combustão. É somente o calor que chega ao
produto. Independentemente da combustão utilizado, seja a lenha, a diesel ou a
gás, é o calor que assa a empada. Sendo assim, não vejo que o sabor do produto é
alterado pela substância utilizada para a combustão.

Como se pode ver, Paulo R. Jerke racionalizou o sabor das empadas Jerke ao não vincular o
seu sabor à materialidade do forno, independente de qual seja. A imaterialidade disso se concentra
na afetividade que Ronaldo E. Jerke possui com os tempos mais remotos do estabelecimento, algo
explícito em toda a conjuntura dos resultados de sua entrevista.

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Considerações finais

As Empadas Jerke, enquanto um potencial patrimônio gastronômico da cidade de Joinville –


que possui também a potencialidade patrimonial das suas empadas de massa folhada –, apresenta
uma trajetória marcada pela prática do stammtisch, com os devidos elementos comunicados que o
compõe, e memórias destoantes de seus familiares no que diz respeito ao impacto do tipo de forno
nas empadas produzidas.
A imaterialidade, em tudo o que foi comunicado nesse trabalho, está presente na forma
como a materialidade dos elementos mencionados (e tratando o forno também na conceituação de
“elemento”) é tratada social e individualmente: social pelo caso dos elementos alimentícios e do
“sino de stammtisch” e individual pela recepção do impactos dos diferentes forno que foram
aderidos no estabelecimento. Em tudo isso, é preciso expandir a discussão e torná-la mais baseada
em referenciações históricas, sociológicas e antropológicas.
Desse modo, as práticas alimentares e gastronômicas das Empadas Jerke, sendo imateriais,
circundam o aspectos tangíveis-materiais. Pode ser viável realizar a seguinte problemática: “Tendo
em consideração que o imaterial é culturalmente indissociável do material, quais seriam os outros
aspectos e elementos das Empadas Jerke que potencializam o seu caráter patrimonial?”. É relevante
salientar que práticas alimentares e gastronômicas são per si imateriais, mas que só são existentes
pela tangibilidade dos alimentos e a materialidade de elementos históricos de cozinha.

REFERÊNCIAS

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Entrevistador: Gabriel Henrique de Oliveira Furlanetto. Joinville. Transcritor: Gabriel Henrique de
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Entrevistador: Gabriel Henrique de Oliveira Furlanetto. Joinville. Transcritor: Gabriel Henrique de
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MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
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POULAIN, Jean-Pierre; PROENÇA, Rossana Pacheco da Costa. Reflexões metodológicas para o


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A PRÁTICA DA JARDINAGEM COMO PROMOTORA DE BEM ESTAR DURANTE A


PANDEMIA DA COVID-19

Beatriz Cristina Valentini Grigorio | Univille | beatriz.grigorio@univille.br


Raquel Alvarenga Sena Venera 1 | Univille | raquel.venera@univille.br
Mariluci Neis Carelli 2 | Univille | mariluci.neis@univille.br

Introdução

O presente trabalho se debruça sobre um momento muito sensível da humanidade, ao


mesmo tempo que permite enxergar a capacidade de reconstrução do ser humano através de uma
prática aparentemente simples, mas profundamente significativa e terna que é a jardinagem,
explorando através das narrativas dos protagonistas dessas histórias, como o cultivo de plantas e
a construção de paisagens internas se transformou em uma ferramenta crucial para a promoção
do bem-estar e a reconstrução de conexões consigo mesmo. Ao lançar luz sobre o papel
transformador da jardinagem, este estudo se propõe, através da metodologia de Compreensão de
Ricoeur (2010), a contribuir significativamente para o entendimento acadêmico dessa prática no
contexto da pandemia da Covid-19 e, por conseguinte, investigar as narrativas daqueles que se
engajaram nessa atividade durante a pandemia.

Definição do Tema e Objeto

A dissertação "Enraizar-se, Construindo Paisagens Internas Durante a Pandemia da Covid-


19" tem como tema a prática da jardinagem como uma forma de promoção de bem-estar e
encontro consigo durante a pandemia, tendo como objeto de pesquisa as narrativas e experiências
de indivíduos qute se engajaram nessa atividade como uma estratégia de enfrentamento da aflição
e desamparo surgidos na crise sanitária.

Justificativa

Findava o ano de 2019 quando ouvíamos despreocupados as primeiras notícias sobre o


vírus atroz que deixava pelo caminho um assustador número de vítimas fatais. Apesar do estado
de alerta das autoridades de saúde, não nos foi impedido de viver o Réveillon e celebrar o verão.
Em 03 de fevereiro de 2020, foi declarada "Emergência em Saúde Pública de importância Nacional

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(ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV)” (BRASIL, 2020)
e ainda assim festejamos o carnaval. Era 11 de março de 2020, ainda varríamos a purpurina das
calçadas, quando a Organização Mundial da Saúde elevava a Covid-19 da classificação de
contaminação para pandemia (UNA-SUS, 2020), muitos países decretaram confinamentos e
passamos a experimentar um dos períodos mais sombrios este século. Uma geração que acreditava
ter superado quase todas as barreiras da natureza por meio da ciência, se viu refém desse ser
imperceptível a olho nu, mas que deixou, somente no Brasil, mais de 700.000 mortos27 (BRASIL,
2023).
Uma atmosfera de pânico se instalou entre nós. Além do impacto imediato provocado pela
doença, os que não foram obrigados a lidar com o luto repentino, ou as sequelas dessa
enfermidade, lidaram com a impossibilidade de coletivizar e em casos mais críticos perderam suas
fontes de renda, o que fez somar ao confinamento a preocupação pela próxima refeição, um corpo
com fome buscará sanar antes da falta de sanitariedade, a falta de alimento; ressalta-se que quase
“35 milhões de pessoas no Brasil vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso
à coleta de esgoto” (BRASIL, 2022).
Buscando resguardar a saúde, os que tiveram o privilégio de se proteger no íntimo de suas
residências, procuraram de muitas maneiras preencher o tempo com diversas atividades, para que
ainda que de forma momentânea, protegessem suas mentes do caos e afastassem as incertezas.
Uma prática que ganhou destaque foi o cultivo de plantas. Ainda que de forma despretensiosa,
essas pessoas se expuseram a vários benefícios pelo contato com a terra e a ciência já aponta isso
tem algum tempo:

[...] analisou-se em pesquisas realizadas que a horticultura proporcionou um


relaxamento, diminuiu a ansiedade, aumentou a autoestima e resgatou o
conhecimento popular, havendo também uma significativa inclusão social.
(FEITOSA et al, 2014)

É neste fato, baseado em sua relevância e pertinência, que se fundamenta e justifica a


presente pesquisa, cujo objetivo consiste em contribuir para a compreensão teórica e o avanço do
conhecimento acadêmico nesta área específica.

27
atualizado em 04.04.2023, disponível no site https://covid.saude.gov.br/.
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A busca pela conexão com a natureza através do cultivo e contato com as plantas não
é novidade. Seja acolhendo a agonia mortal de Jesus em Getsêmani (Mt 26, 36) ou presenteando
a pessoa amada como teriam sidos os Jardins Suspensos da Babilônia (ZAIDAN; FELIPPE, 2008), as
plantas exercem seu protagonismo para além do uso alimentício há milênios,

Fuga, nostalgia, ambição mundana e exaustão mundana têm sido justificativas


através da longa história da jardinagem. Essas emoções humanas,
frequentemente mascaradas/disfarçadas/ocultadas no mito, religião e ritual, sem
mencionar nossas necessidades psíquicas comuns/ordinárias/do dia a dia,
conferem à jardinagem uma dimensão de interesse que vai além da lista de
plantas, condições de solo e variações do clima. (ADAMS, 1991, tradução
própria)28

Apesar do caráter efêmero, através da jardinagem pode-se entender o tempo e a cultura


onde ela é cultivada. Isso mostram os japoneses e chineses com suas composições refletindo a
busca pela espiritualidade, os ortogonais jardins de Versalhes na França, irradiando a autoridade
política da realeza (ADAMS, 1991) e até mesmo as brasileiríssimas produções de Roberto Burle
Marx, que ao longo do século XX utilizou espécies pouco visadas da Mata Atlântica para conceber
obras paisagísticas de grande prestígio. Na mutabilidade que lhe é própria, essa singela prática de
conexão com a natureza, inseriu-se num lugar muito íntimo dos que se dispuseram a explorá-la no
processo de isolamento, resultando no cultivo de uma paisagem de integridade emocional que
ressoou para além da crise pandêmica.
O crescente cultivo de plantas aos moldes urbanos, se somou ao fenômeno já conhecido
como "Urban Jungle” (selva urbana) e apesar da queda nos lucros nos primeiros meses de 2020, o
mercado de plantas previu um aumento de 5% no faturamento em relação ao ano anterior até o
final do mesmo ano (EVANS; PACÍFICO, 2020).
Estamos diante de um recorte temático bastante específico. A jardinagem se revelou como
uma prática altamente eficaz na preservação do bem-estar das pessoas. No revolver da terra foi
possível fazer, desfazer e refazer as paisagens que a pandemia criou dentro de nós, o que justifica

28
Texto original: “Escape, nostalgia, wordly ambition, and wordly exhaustion have all been excuses
throughout the long history of garden-making. These human emotions, often masked in myth, religion, and
ritual, not to mention our garden variety psychic needs, give gardening a dimension of interest that goes far
beyond plant lists, soil conditions, and the vagaries of the weather.”
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a necessidade de investigação por parte da academia. Ressaltando que os impactos tanto positivos
quanto negativos vivenciados durante a pandemia de Covid-19 são irrepetíveis e as experiências
que foram vividas paralelas a este momento também o serão.

Problema

A pandemia da Covid-19 gerou uma crise mundial sem precedentes, ainda que a
humanidade já tenha sido assolada por outras pandemias, o contexto deste momento trouxe
situações muito particulares. Numa atualidade onde se trabalha, estuda e diverte
predominantemente por meio de dispositivos eletrônicos, que são causadores de ansiedade, a
privação dos mínimos contatos interpessoais que ainda aconteciam através de atividades como
reuniões de trabalho, rotinas educacionais, happy hour e prática de esportes, foi devastadora.
Mesmo com o isolamento e incerteza do futuro, dentre os que tiveram a oportunidade de seguir
sua rotina de maneira remota, muitos buscaram alguma atividade que pudesse proporcionar alívio
emocional e uma delas foi a jardinagem, que mais do que um passatempo, proporcionou no revolver
da terra: regulação das emoções e o equilíbrio dos pensamentos. Há tempos que os jardins têm
desempenhado um papel fundamental como catalisadores de transformações internas, na idade
média os jardins “[...] serviam de refúgio espiritual, de escape aos medos e dúvidas que assolavam
a alma e o corpo”29 (ADAMS 1991, tradução própria). Neste contexto, surge a seguinte questão:
Como a construção de paisagens internas na experiência prática de jardinagem impactou a
promoção de bem-estar e nas narrativas sobre a pandemia da Covid-2019?
A resposta a essa pergunta será valiosa e dará voz a narrativas desse recorte ímpar da nossa
história, a pesquisa poderá contribuir para o reconhecimento do cotidiano como patrimônio
cultural, destacando a importância da vida doméstica outrora entendida como lócus de rotinas
banais, cotidianos menos valorizados socialmente – vide os estereótipos depreciativos destinados
às donas de casa e aos trabalhadores domésticos, mas que agora se apresenta como berço da
prática em análise, uma vez que é palco das narrativas que serão aqui tratadas.

Objetivo Geral

29
Texto original: “Gardening was a significant part of the early Christian monastery, serving as a spiritual refuge and
an escape from besetting fears and doubt that assailed both the body and soul.”
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Compreender narrativas de pessoas que no contexto da covid-19 escolheram as práticas de


jardinagem como forma de preservar-se, transformar-se e/ou curar-se.

Objetivos Específicos

● Apresentar como as Paisagens Culturais e as narrativas e formas vida são trabalhadas no


campo do patrimônio cultural;
● Problematizar como as narrativas e a escuta sobre formas de vida se tornam bens
culturais;
● Mapear nas narrativas das pessoas os impactos e reinvenções de vidas no contexto da
pandemia da Covid-19;

Revisão de Literatura

Hierarquização do Patrimônio - Ao conhecer a história do patrimônio, percebe-se muito


rapidamente que uma hierarquia é espontaneamente traçada. Há histórias priorizadas, histórias
que são desdenhadas e histórias que se quer suprimir. Este texto faz uma breve síntese sobre a
hierarquia supracitada e propõe uma crítica sobre a ausência do olhar dos estudos de patrimônio
para o cotidiano, espaço que gera marcos indeléveis e - diferente dos monumentos e edificações -
são na maioria das vezes produtos abstratos.
Colonização das Narrativas sobre Narrativas dos Colonizados - Se explicitamente, sob a
força da coerção se conseguiu séculos atrás impor costumes e preceitos às etnias ditas inferiores,
hoje a coerção se dá de forma estratégica, demandando (i) a organização entre os favorecidos; (ii)
o manejo dos desfavorecidos; e (iii) a colaboração do poder público e técnicos do patrimônio,
servindo isso está o patrimônio como “[...] o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos
setores oligárquicos, quer dizer, o tradicionalismo substancialista.” (CANCLINI, 2000).
Entre os séculos XVI e XVIII, enquanto a Europa celebrava seus avanços territoriais sobre o
mundo não-europeu, este mesmo mundo é submerso pelo que Mignolo (2017) explicou como lado
escuro da modernidade: a colonialidade. Nas palavras dele a colonialidade “[...] é assumidamente
a resposta específica à globalização e ao pensamento linear global, que surgiram dentro das
histórias e sensibilidades da América do Sul e do Caribe.” (MIGNOLO, 2017).

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Tangível sobre intangível - A categoria patrimônio é reconhecida popularmente como a


doutrina que cria meios e erige elementos e argumentos para proteção daquilo que promove
identidade e provém de uma memória compartilhada. O patrimônio imaterial.
limenta o que formará o material (CHUVA, 2020), tal como o adubo provê os nutrientes
para a planta subsistir, ora na forma de - como Poulot (2009) chamaria - valores de civilização dos
envolvidos, ora como a atenção das instituições e profissionais de patrimônio:

O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de seus objetos,


pelo valor estético - e, na maioria das vezes, documental, além de ilustrativo,
inclusive de reconhecimento sentimental - que lhes atribui o saber comum [...].
Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade política, ambos os aspectos
sancionados pela opinião pública (POULOT, 2009).

Chuva (2020), nos apresentou como primariamente os dicionários apresentavam o termo


por meio de palavras como herança, bens ou dotes, marcando a força da materialidade nesta área
do conhecimento. Ainda que seja incontestável a presença da imaterialidade na materialidade,
esta vertente de investigação é posta na posição de subserviente quando cruza a linha da
subjetividade, sendo direcionada o local de coadjuvante. Vê-se isso de várias formas, a exemplo do
Brasil, que em seus inícios da tratativa de temas que viriam a ser tratados por patrimônio imaterial,
pela Comissão Nacional do Folclore, não se preocupou em manter vínculo empregatício com seus
técnicos, um grupo de excelência que cumpriu as funções pelo compromisso com a causa (CHUVA,
2020).
Na contramão de boa parte de seus contemporâneos, Alois Riegl mostrou no início do
século XX, uma atitude sensível para com o patrimônio de forma geral. Através de sua obra se
mostrou adepto ao abstrato que essa ciência pode compreender. Foi com o termo Kunstwollen –
cuja tradução mais aproximada seria o “O querer da arte” - que propôs a visão do etéreo sobre
elementos patrimoniais, atribuindo valor à fruição do processo de concepção da arte. No livro O
Culto Moderno dos Monumentos de 1903, enumera tanto valores ligados ao passado – valor de
antiguidade, valor histórico e valor volível de memória ou de comemoração – como de atualidade
– valor utilitário e valor de arte (RIEGL, 2014), e de várias formas deixa claro a permeabilidade entre
eles: “Se não existe um valor de arte eterno, mas apenas um relativo, moderno, o valor da arte não
é mais um valor de memória, mas valor de atualidade.” (RIEGL, 2014).

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Além das Regras e Regulamentos - Qual espaço é aberto dentro da ciência do Patrimônio
para os marcos vividos no interior das habitações? Canclini (2000) escreveu no início deste milênio
que decorriam poucos anos que se teriam iniciado os estudos da teatralização da vida cotidiana.
As paredes que são protegidas pelos processos de tombos, testemunharam mais do que técnicas
construtivas com o emprego de materiais que hoje estão indisponíveis para uso - vê-se pelo
supracitado processo do Registro da Tava - é na vida doméstica que se formam os agentes que
transformam a sociedade de onde surgem os marcos que virão a ser patrimonializados.
Utilizando-se da explicação de Poulot (2009), entende-se patrimonialidade como a
condição íntima e afetiva do patrimônio, onde a experiência e a materialidade daquilo que gera
identificação ocupam o “[...] âmago das consciências individuais.” (POULOT, 2009). E pela fala
deste mesmo autor, evidencia-se a preferência dos cânones sobre as realidades sutis, ao expor o
anseio europeu em estender as ações de preservação para os bens de realidade íntima no período
após as grandes guerras, apresenta uma postura crítica, indicando uma conduta pouco criteriosa
quanto ao processo burocrático:

“Hoje em dia patrimonialização parece confundir-se com a patrimonialidade [...].


Entretanto, o patrimônio não está indene, muito pelo contrário, de vontades
predadoras: tanto os momentos celebrados pela ‘tradição do novo’ quanto os
objetos da família que, cotidianamente, entram no museu têm a ver com
modalidades de apropriação que, sem qualquer embasamento, são consideradas
óbvias, para não dizer ‘naturais’. Esperamos que o retorno aos alicerces do
patrimônio nacional – de acordo com nossa proposta neste livro – permita uma
abordagem renovada do fenômeno. (POULOT, 2009)

Efetivamente, é perigoso considerar a priori tudo como patrimônio, tratar espaços,


tradições e saberes, como publicamente passível de proteção, é assumir que de alguma forma
aquilo é valioso para sociedade. Se, bem como nos disse Poulot (2009), o patrimônio é vivo, sua
vitalidade vem da dinâmica social e o que foi motivo de louvor outrora, agora pode ser a tristeza e
vergonha dessa população. Todavia, se é crucial rememorar tempos e atitudes que não nos orgulha
mais, como forma de não tornar a repeti-los, também o é, o cuidado com a abordagem desse tema
e a responsabilidade para com os afetados.
Assim como é importante apontar o que nós enquanto sociedade queremos proteger e
celebrar, também o é problematizar. Nas palavras de Chuva:

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No processo de pesquisa, produzir interrogações que abram caminhos para


capturar ambiguidades, lógicas, rotinas dos processos de patrimonialização e
seus efeitos sobre uma dada realidade pode ser mais desafiador que encontrar
respostas (CHUVA, 2020).

Entender que de maneiras involuntárias e voluntárias, se construiu uma estrutura


hierárquica dentro dos estudos patrimoniais, nos suscita revolver esse solo onde foram soterradas
as histórias preteridas, assumindo a importância dessas narrativas, trazendo-as à luz.
Prescindir da postura passiva e questionar a estrutura dominante é o cerne do trabalho de
pesquisa, para sob posse do conhecimento e consciência das realidades, propor dentro de sua
alçada uma condição de igualdade para com todos.
Espaços e Significados: Paisagens em Construção - Muitas são as disciplinas que se dedicam
de alguma forma a teorizar o termo Paisagem, o que o torna um conceito polissêmico e vulnerável
a negação como conceito científico dada sua polissemia e subjetividade (RIBEIRO, 2007). Para além
da contenda científica, já se trata Paisagem como bem patrimonial há tempos, ao menos no Brasil,
pois a própria “[...] institucionalização da preservação do patrimônio no Brasil em 1937, manifesta
na criação do Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.” (RIBEIRO, p. 7, 2007).
Apesar do caráter sintético, pode-se dividir o conceito de paisagem em dois grandes grupos,
paisagem natural, que seria a paisagem sem intervenção humana, intocada; e a paisagem cultural,
aquela que manifesta a presença de grupos humanos. A separação entre uma e outra tem sido
cada vez menos encontrada, sendo esta uma grande testemunha da vida na Terra, é pouco
provável que não demonstre alguma intervenção humana - positiva ou negativa.

No Pará, ilhas de vegetação irrompem no ecossistema dos cerrados e foram,


durante muito tempo, tidas como formações florestais naturais. O inventário
botânico desses bosques revelou a sutil existência de índices constantes e
similares, em cada ilha, de diferentes plantas com diferentes formas de
utilização. Em cada ilha, verificava-se a mesma percentagem de diferentes
plantas com finalidades mágicas, ritualísticas e com utilidades econômicas,
utilizadas pela tribo indígena que habitava a região. Tratava-se de plantios
intencionais e organizados de forma muito bem planejada pelas tribos,
aparentando, contudo, serem espécimes nativos (DELPHIM, p. 171-172, 2010).

Ora, acompanhar a trajetória humana lhe confere uma essência que a faz ser muito mais

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do que uma moldura de belas histórias. Há uma alma que vive através de seus elementos - tangíveis
e intangíveis - e que ganha mais significado através dos enredos que estes espaços
testemunharam. Partindo desse princípio que em sua 16ª Assembleia Geral somada aos festejos
dos 400 anos da cidade de Québec no Canadá, o ICOMOS publica a Declaração de Québec - Sobre
a preservação do “Spiritu loci”, onde de forma objetiva e sem abrir mão da poesia, discorre sobre
o Espírito do Lugar e deixa claras recomendações sobre a preservação desse bem (ICOMOS, 2008).
Não é recente a sensação das consequências do distanciamento da rotina com as paisagens,
as rotinas laborativas contemporâneas encapsularam cotidiano em caixotes de vidro e concreto.
Ainda que estudos mostrem a ação das plantas até na purificação do ar desde a década de 1980
(NASA, 1989), foi necessário um isolamento social de nível mundial, para fazer as pessoas notarem
a falta das paisagens em seu dia-a-dia. Com isso passasse a ver com mais frequência a formação
de paisagens internas, espaços construídos para apreciação e qualidade de vida dentro das
habitações. Assim como os espaços citados anteriormente, estes também foram concebidos sob
poesia ora lírica, ora melancólica e no silêncio que povoou estes anos, verdadeiras florestas
urbanas em escala residencial foram plantadas.
Com isso, esse saber multifacetado que são as construções e vivências das paisagens abre
um novo capítulo. E assim como se captou o espírito dos lugares que emolduraram memórias
ancestrais, começa-se a notar o Spiritu Locus, também deste lado da história.

Metodologia

Para responder à questão que nasceu na intimidade das moradas, há que se pedir licença
para visitar essas histórias, escutar estes sujeitos e dar palco aos protagonistas. Uma vez que essa
produção se ancora em um espaço de tempo muito singular, entende-se que métodos sistemáticos
podem fazer perder o detalhe onde mora o subjetivo. E será a luz da compreensão segundo Paul
Ricoeur que essa pesquisa caminhará rumo aos seus objetivos.
Ricoeur (2010) traz em sua obra o conceito de Jogos do Tempo, que elucida entre várias
ideias, a de que enunciações assumem diferentes papéis dependendo do tempo verbal em que são
apresentadas.

A necessidade de separar o sistema dos tempos do verbo da experiência viva do


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tempo e a impossibilidade de separá-los completamente me parecem ilustrar


maravilhosamente o estatuto das configurações narrativas, ao mesmo tempo
autônomas com relação à experiência cotidiana e mediadoras entre o antes e o
depois da narrativa (RICOEUR, 2010, p 111).

Sob essa perspectiva, Ricoeur (2010) explica que Narrativa abarca necessariamente
enunciações passadas, excluindo falas do presente e futuro, ao revés de Discurso que exclui o
passado e inclui o presente, futuro e o perfeito.
Como forma de compor o corpo de entrevistados, será feita a captação através do Método
Bola de Neve, onde será proposto aos primeiros entrevistados a recomendação do projeto de
pesquisa para pessoas de seu convívio que passaram experiências parecidas (VINUTO, 2014). Para
participar será exigido que o entrevistado:

● Tenha ficado isolado durante parte do período decretado da pandemia da Covid-19;


● Tenha iniciado a prática da jardinagem durante o período de isolamento;
● Aceite os termos do TCLE.

Serão feitas entrevistas orais comuns, presenciais e semi-estruturadas, suas falas serão
gravadas e posteriormente transcritas.
Resultados Esperados
● Divulgação científica do tema – produção, submissão e publicações de artigos científicos
em eventos e periódicos qualificados;
● Fomento do debate do tema de Paisagens Internas nos campos do Patrimônio Cultural e
da Pesquisa (auto)biográfica;
● Produção de acervo empírico para estudos sobre as vivências da Pandemia da Covid-19;
● Produção de uma dissertação e obtenção do título de mestre ao fim da produção.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

PATRIMÔNIOS DIFÍCEIS, MEMÓRIAS TRAUMÁTICAS: UM OLHAR SOBRE A


COMISSÃO DA VERDADE E RECONCILIAÇÃO DE SERRA LEOA
Ian Pogan, mestrando em Patrimônio Cultural e Sociedade (Univille) | PPGPCS/Universidade da região de
Joinville| filiação institucional | Contato de e-mail: campodoirani@gmail.com
Taiza Mara Rauen Moraes, Doutora e mestre em Literatura (UFSC) | Curso de letras e PPGPCS/Universidade
da região de Joinville | Contato de e-mail: moraes.taiza@gmail.com

Introdução

A experiência das comissões da verdade e reconciliação são relativamente recentes na


história, sendo estabelecidas a partir do século XX. Posteriormente à Segunda Guerra Mundial, com
o conhecimento dos lagers e dos genocídios perpetrados pelos regimes nazi-fascistas e soviéticos,
surgiram inúmeros movimentos e ações memorialistas no afã de prevenir catástrofes futuras. A
ideia de “lembrar para não esquecer” vem na esteira desses movimentos. A memória ganhou,
portanto, no século XX, uma aura institucional: o memorial Yad Vashem em Israel exemplifica a
utilização ostensiva da memória, que, a partir do século passado, passou a destacar-se de forma
única; chegava a era dos testemunhos e memórias em massa, entre aqueles que “sobreviveram” às
experiências violentas e traumáticas havia o dever de memória, contar ao outro aquilo que haviam
passado e com isso evitar que tais eventos se repetissem. Nesse sentido, a memória passou a
estressar o historicismo, ao propor retorno naquilo que havia sido, o reabrir do passado tenderia à
rediscussão de personagens históricos, mas também de reparações, justiça e punição.
Conceitualmente, as comissões são advindas, em parte, dessas discussões. Discutir acerca das
comissões e seus papéis, vem ao encontro dos debates em torno dos patrimônios difíceis, lugares e
monumentos que rompem com o sentido moderno de uso e função patrimonial, que passam a
cumprir uma rememoração de eventos traumáticos, sensíveis e alguns casos polêmicos. A proposta
do presente escrito é pensar o lugar da comissão da verdade e reconciliação de Serra Leoa enquanto
um patrimônio difícil, e estabelecer relações teóricas com o campo da memória e do patrimônio.

Preâmbulo da comissão

O estabelecimento da Comissão da Verdade e Reconciliação de Serra Leoa está indissociável


da guerra civil ocorrida entre os anos de 1991 a 2002. O estabelecimento de comissões está

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associado, com frequência, à resolução de casos onde houve abusos e crimes de guerra e contra a
humanidade.
O conflito em Serra Leoa assemelha-se a outros ocorridos na África Ocidental, uma das
regiões com os piores índices de desenvolvimento humano do planeta. Paradoxalmente, esta região
possui grande riqueza natural, tipificada em minério, especialmente ouro e diamante, madeiras
nobres e petróleo. Assim como outras nações africanas, o subdesenvolvimento e pobreza estão
associados à herança colonial. O sistema colonial infligiu intensamente no desenvolvimento de
povos e etnias em diferentes estratos e áreas (Mignolo, 2017; Krenak, 2015, Fanon 2005). Serra
Leoa, de histórico colonizado inglês, galgou sua independência na década de 1960 e posteriormente,
passou mais de 20 anos sob o regime autoritário centrado na figura de Siaka Stevens; seu sucessor,
Joseph Momoh, não obteve a estabilidade política e econômica de seu antecessor, assim, passou a
sofrer diversas acusações e pressões para sua saída do poder, de modo que o clímax da crise foi o
início de uma guerra civil em 1991 (Bevernage, 2011; Valença, 2006). O conflito em Serra Leoa teve
diversas fases, que incluíam: putsch político-militares, tréguas, guerra de guerrilhas e atos
terroristas. O conflito serra-leonino, assim como outros da região, tiveram o uso de crianças-soldado
(Bevernage, 2011; Correia, 2013), amplas investidas militares sobre civis, e nesse caso, o
componente étnico foi seminal. É necessário pontuar aqui que, ainda que diversos conflitos
ocorridos nos continentes africano e asiático nos últimos dois séculos tivessem como estopim
querelas político-social e ideológica, o componente étnico teve profunda influência. Seria possível
citar diversos eventos como: o massacre de Ruanda, a guerra civil em Angola, a investida dos
ugandenses contra a presença indiana, todos estes impulsionados em grande medida por disputas
étnicas. Essa característica também é parte da herança colonial. Os colonizadores classificavam
“raças” e etnias e, a partir delas, estruturavam o modelo colonial. Tal organização tensionou ainda
mais a relação entre grupos, que vieram a se digladiar ainda mais, posteriormente à saída dos
colonizadores.
Em Serra Leoa, o fator étnico levou a violentas investidas contra civis, amiúde foram os casos
de estupros, amputação de membros, execuções. A intensidade da violência fugiu do controle,

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havendo com isso a intervenção do ECOMOG30 (Economic Community of West African States
Monitoring Group) em 1998 e no ano seguinte de tropas da ONU (Organização das Nações Unidas),
que vieram por conta do atentado ao prédio da ONU por parte de um dos grupos combatentes em
Serra Leoa (Valença, 2006).
O conflito terminou com o acordo de paz de Abuja (Nigéria) no ano 2000. Nesse acordo ficava
estabelecido o cessar-fogo imediato e as tratativas do estabelecimento de um governo provisório,
bem como da instalação de uma comissão da verdade e reconciliação nacional e uma corte especial
para julgar crimes de guerra e contra os Direitos Humanos (Bevernage, 2011). A guerra teve seu fim
oficialmente declarado em 2002. O resultado do conflito foi um país arrasado, com parte
significativa da capacidade produtiva nacional solapada. Gellmann traz alguns dados do conflito:

From 1991 to 2002, it was consumed by a civil war notorious for its brutality, with
widespread sexual violence, recruitment of child soldiers, and amputation used as a fear
tactic. Nearly half the total population – approximately 2.6 million people – was internally
displaced; upwards of 70,000 people were killed; and substantial infrastructure was
destroyed. Some of the driving factors of conflict in Sierra Leone included power struggles
over access to diamond revenues, societal frustration over unequal access to insufficient
resources such as education, water, sanitation, and electricity, and the
disenfranchisement of youth. (GELLMAN, 2016, p.141)

Com o fim do conflito, ergueu-se a bandeira de reconstrução de Serra Leoa, mas para isso,
seria necessário deixar o passado no “passado” segundo o governo do período (Bevernage, 2011).
A Comissão da Verdade e Reconciliação de Serra Leoa (Truth and Reconciliation Commission for
Sierra Leone - TRC) seria um dispositivo para alcançar um novo país e deixar os traumas da guerra
no passado.
A constituição da TRC teve grande influência da experiência da comissão da verdade e
reconciliação sul-africana no pós-apartheid, na década de 1990 (Tricário, 2019); exemplo disso foi a
visita do arcebispo anglicano Desmond Tutu para a TRC e, assim como na comissão da África do Sul,
a presidência da TRC foi chefiada por uma figura religiosa, o bispo metodista Joseph Mumber (TRC,
2004). À luz dessas características, percebe-se a estreita relação entre a TRC com os valores cristãos.

30
A força de operação do ECOMOG foi basicamente constituída de tropas nigerianas, sua ação foi decisiva para a
resolução do conflito, porém sofreu críticas, pois havia um interesse no controle das minas de diamantes de Serra Leoa.
(VALENÇA, 2006).
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De fato, as comissões da verdade e reconciliação, assim como parte significativa da lógica moderna
de política, são norteadas pela tradição judaico-cristãos (WESTPHAL, 2019).

Comissão e suas ações

A constituição da TRC deu-se no acordo de paz de Abuja no ano 2000, contudo, seu início
efetivo ocorreu em 2002, com o fim oficial do conflito civil. Concomitante à realização da TRC, foi
estabelecida uma Corte Especial ligada diretamente ao tribunal internacional de crimes de guerra
de Haia, esta deveria julgar os crimes de guerra e os crimes contra os Direitos Humanos, enquanto
a TRC deveria ter como objetivos, primeiramente, o mapeamento e o recenseamento do número
de vítimas, de ocorrências, a tipologia dos crimes (ver tabela 1), e em segundo plano, ser um local
para a promoção de reconciliação, perdão, terapia e reparação (TRC, 2004).

Tabela 1: dados da Comissão da Verdade e Reconciliação de Serra Leoa

TIPO DE REGISTRO NÚMERO

Testemunhos registrados 7706

Total de violências reportadas à comissão 40,242

Valas comuns e outros locais de sepultamento 113

Testemunhos gravados Milhares de horas (mais de 450


testemunhas)

Fonte: TRC, 2004.

O estabelecimento concomitante da TRC quanto da Corte Especial geraram certa apreensão


por parte da população serra-leonina. Havia a preocupação que os testemunhos colhidos na TRC
pudessem ser usados na Corte Especial como prova de crimes de guerra (Bevernage, 2011). Mesmo
com os acordos de paz de Lomé de Abuja, o pós-guerra de Serra Leoa ainda esteve marcado de
tensões. A TRC seria, em teoria, um canal para a reconciliação nacional e o estabelecimento para
uma nova Serra Leoa (TRC, 2004).

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Imagem 1 - Cerimônia de encerramento da TRC - Distrito de Moyamba, 13 de junho de 2003

Fonte: Shaw, 2005, p.3.

Os intentos propostos pela TRC, na prática, ganharam outros contornos, o que gerou certo
desapontamento por parte da população. Primeiramente, havia uma visível limitação financeira
para o custeio. Os valores para a TRC eram oriundos do fundo do acordo de paz de Lomé, não foram
suficientes para a realização de todo o cronograma (exemplo disso foi o fato da comissão não
conseguir atingir todos os distritos do país, de modo vários relatos e dados não puderam ser
recolhidos), especialmente no tocante às reparações financeiras às vítimas e testemunhas
(BEVERNAGE, 2011). O cenário do pós-guerra também dificultava a operação da TRC; ainda pairava
sobre Serra Leoa o medo de um retorno às hostilidades, mesmo com os acordos de paz, as armas
não haviam sido por completo devolvidas, e muitos dos sujeitos que haviam combatido haviam
retornado às suas vidas sem ter passado por algum órgão de cadastro31. Para a TRC, a importância-
mor eram as sessões de testemunhos. Para a comissão, havia o testemunho tinha papel-chave no
processo de reconciliação, narrar teria uma função terapêutica, a comissão também possibilitava
processos conciliatórios entre vítimas e agressores (SHAW, 2005). A visão do testemunho na
comissão em Serra Leoa, está ligada à tradição ocidental do uso da memória, mas que em Serra
Leoa ganhou certa resistência, especialmente entre a população do interior do país (BEVERNAGE,

31
The DDR programme scheduled to begin on 4 November saw a disappointing low turn out rate on the first day, with
very few fighters surrendering their guns. The camps in the eastern towns of Daru and Kenema were reported empty at
the time of writing. According to a BBC reporter, the Kamajor militiamen who had been willing to undergo the
programme said they were now reluctant to turn in their weapons, and were insisting that they do so only if their former
enemies (the RUF and AFRC) undergo the programme at the same time. (NGO Report, 1999, p.8)
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2011; SHAW, 2005). Contrapondo a perspectiva da TRC, onde o narrar da experiência possibilita
cura, havia entre os populares serra-leoninos, especialmente das áreas rurais, o sentido de um
silêncio público sobre as experiências do conflito. Na visão dessa população, falar sobre sobre o
passado poderia fazê-lo voltar, assim, seria necessário esquecer para se curar (Shaw, 2005). A visão
dessas populações estava ancorada em crenças e credos animistas tradicionais, para eles a busca
maior não era pela justiça formal e material, mas sim pela espiritual:

Possibly pressured by a report of the NGO Manifesto ‘99 that confirmed that most
Sierra Leoneans ‘still’ held traditional animist beliefs and were convinced that some
crimes awake the anger of the ancestors and thus asked for ritual intervention, the
Truth and Reconciliation Act of 2000 indeed allowed the truth commission to seek
assistance from traditional and religious leaders.56 While partly recognizing the
potential value of traditional ‘spiritual justice’ in which perpetrators undergo
cleansing and purification, the commission warned that some of the mechanisms
were ‘in conflict with a culture of human rights and perpetuate a culture of
violence.’ (BEVERNAGE, 2011, p. 80).

Os credos, por terem significativa importância na vida de parte das testemunhas, passaram
a presentificar-se nas sessões de testemunhos e amiúde foram as presenças de lideranças de tais
credos durante a coleta de testemunhos. O percurso trilhado da TRC demonstrou os limites de seu
alcance e funcionalidade, especialmente a muitos vitimados que optaram por justiça a partir da
espiritualidade em face das negativas em receberem reparações materiais. Esse desapontamento
com a TRC também alastrou pela visão do governo estabelecido, especialmente com as políticas de
reorganização e restituição, que buscavam tratar as consequências da guerra civil como algo do
passado sem influência ou eco na sociedade presente, devendo as testemunhas “perdoar e
esquecer” seus agressores (BEVERNAGE, 2011).

Das memórias traumáticas e dos patrimônios difíceis

Entre o “dever do testemunho”, como discorreu Levi (1988) e o silêncio como temor de uma
retomada das hostilidades, Serra Leoa experimentou uma complexa situação pós-guerra, frente a
um país destruído, havia um geist de recomeço do país, mas como seria feito e qual o seu custo?
Os testemunhos estão além dos relatos, estão inscritos nos corpos, em suas marcas e em
suas expressões. Em um conflito em que houve milhares de casos de mutilações e diversos outros

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barbarismos, o corpo em si é parte testemunhal, sua presença vem também clamar por aqueles que
passaram por completo pela experiência e já não estão mais para falar, onde, paradoxalmente, sua
ausência se torna o testemunho total do ocorrido (Levi, 1988). Aos que passaram por experiências
traumáticas ficam a latência do que foi vivido, sem garantias efetivas que ao narrá-las possam
superar tais dores. Testemunhos ganham força como possibilidade terapêutica quando o mesmo
está ligado ao caminho por justiça e reparação, onde os testemunhos tornam um corpo que evita a
repetição dos barbarismos. Os testemunhos, assim, acabam por estressar o continuum do tempo
histórico, trazendo o passado à tona, com contornos impactantes. Ao pensar o poder do
testemunho e retomá-lo junto ao papel da TRC no estabelecimento (ou não) da verdade e
reconciliação, é mobilizado aqui o conceito de patrimônio difícil como uma chave de interpretação
da TRC.
Patrimônio difícil são lugares ou monumentos referentes a tragédias, massacres, eventos
dolorosos, são frequentemente relacionados com o dark tourism, também são lugares onde a
rememoração tem uma função política ostensiva e por isso, também são considerados em várias
situações lugares de tensões e polêmicas (Logan & Reeves, 2009). Relacionar patrimônio difícil com
a experiência da TRC não visa pensar (necessariamente) em uma patrimonialização de algum espaço
físico, mas sim pensar o movimento em torno da comissão entre os anos de 2002-2006 como
expressão das disputas e dores presentes, ou seja, identificar a TRC como um patrimônio difícil no
afã da promoção de rememorações ostensivas sobre o passado que ainda assombra o presente e
como experiência de memória e justiça. Perceber a TRC através dessas lentes contribui para o
desenvolvimento no presente-futuro, entendo a TRC pelas memórias que não puderam ter sido
patrimonializadas, a ausência e o silêncio se tornam a marca da TRC.

Conclusão

O presente escrito não visou fechar o debate em torno do conceito de patrimônio difícil, mas
trazer problemáticas a respeito. A história recente de Serra Leoa ainda orbita em torno das
consequências da guerra civil, e depois de mais de 20 após o conflito, ainda ficaram lacunas a serem
preenchidas. A TRC, com suas limitações, demonstrou os limites do Estado e dos valores ocidentais
para a resolução de complexidades pós-guerra; essas questões estressam a história recente do país

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e em momentos de risco podem voltar à tona, ainda na busca por justiça, verdade e reconciliação
com seu próprio passado.

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OS GUARDIÕES DA MEMÓRIA, NA “MEMÓRIA DE VELHOS” OPERÁRIOS DA


PEDREIRA DO CERRO DO ESTADO

Gladis Rejane Moran Ferreira32


Carla Rodrigues Gastaud33

Introdução

Durante o século XIX, devido ao forte comércio do couro e do charque, a cidade do Rio
Grande, no Estado do Rio Grande do Sul, foi rota do transporte marítimo para as outras regiões do
Brasil e para o exterior. Nesta época chegaram imigrantes34 vindos da Europa, com destaque para
alemães e italianos que passaram a povoar o Sul do Brasil. No entanto, devido a insuficiência do
calado do cais do porto para atração de navios de maior porte e os transtornos causados pelos fortes
ventos e correntes marítimas, que assoreavam o canal de acesso na entrada da barra35, muitas
perdas de vidas humanas e de mercadorias foram registradas e a barra passou a ser conhecida na
imprensa local como “Barra Diabólica36” ou “Cemitério de Navios” (FIGURA 1).
FIGURA 1 – Caricatura da “Barra diabólica” ou Cemitério de navios” retratada na imprensa local

Fonte: Jornal O Bisturi, jan. 1890.

32
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de
Pelotas. UFPEL.
33
Professora Doutora e Orientadora do Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da
Universidade Federal de Pelotas. UFPEL.
34
Os primeiros imigrantes chegados ao Estado do Rio Grande do Sul foram os portugueses a partir do ano de 1750.
35
Entrada de um porto entre duas porções avançadas de terra firme.
36
A origem da denominação “Barra Diabólica” não é clara, mas aparece em termos análogos usados por Silva Paes e
pelo governador Gomes Freire de Andrade, ainda na primeira metade do século XVIII (TORRES, 2015, p.14).
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As primeiras ações para melhoramento do acesso à barra e de seus canais e atracadouros


datam de meados do século XVIII. No entanto, com a comunicação pelo mar frustrada devido as
condições difíceis o Governo Imperial necessitava garantir a navegabilidade e algumas medidas
foram tomadas. Dentre elas, comissões foram constituídas para estudar e dar segurança ao acesso
à “Barra Diabólica”. A mais importante delas, criada no ano de 188337, propôs a construção de dois
molhes38 convergentes. Um deles, de lado Oeste, na cidade do Rio Grande e outro, de lado Leste,
na cidade de São josé do Norte.
No início do século XX a maior aspiração da comunidade rio-grandina era a construção dos
molhes, uma obra que garantiria a abertura da barra de forma permanente e proporcionaria a
profundidade necessária para a circulação das embarcações maiores com regularidade e segurança,
e que simbolizaria progresso para toda a província. Com esse intuito no ano de 1907 o Governo
Federal contrata a Compagnie Française du Port do Rio Grande do Sul, com o objetivo de construir
os Molhes da Barra e um novo porto, de maior calado, ambos na cidade do Rio Grande. Para que as
obras de construção do novo porto e a ligação deste ao Porto Velho39 fossem possíveis a companhia
francesa comprou extensas áreas de terras na cidade do Rio Grande e duas pedreiras localizadas na
cidade de Pelotas, a de Monte Bonito40, que posteriormente se tornou insuficiente para a extração
das pedras, e a do Cerro do Estado, no lugar conhecido como Capão do Leão41 (FIGURA 2), em ambas
foram construídos complexos industriais para a extração do granito suficiente para a construção dos
molhes da barra. Outras áreas foram compradas42, que serviram para ligar por linha férrea as
pedreiras de Monte Bonito e do Cerro do Estado às cidades de Pelotas e Rio Grande. Para o
transporte das pedras outros lugares foram criados ou partilhados, como é o caso das estações

37
Ficou conhecida como Comissão de Melhoramento do Porto e Barra do Rio Grande do Sul que era presidida pela
engenheiro Honório Bicalho.
38
Prolongamentos de pedras, dispostas na raiz da barra que avançam mar adentro.
39
Como o porto natural da cidade do Rio Grande passou a ser chamado a partir da construção do Porto Novo
40
Apesar de deixar de ser explorada no ano de 1915 a Pedreira de Monte Bonito continuou a pertencer a Compagnie
Française du Port do Rio Grande de Sul e integrou o seu inventário. Posteriormente o Governo Federal retoma a área
que deixa de estar sob a guarda do Porto do Rio Grande.
41
Atualmente este local faz parte da cidade de Capão do Leão, que se emancipou de Pelotas em 1982.
42
Os documentos de compras de áreas fazem parte do acervo notarial da Biblioteca do Porto do Rio Grande.
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férreas43 de Capão do Leão44, Teodósio45 ; Pelotas46;Capão Seco47; Povo Novo48; Quinta49; Junção50
e Rio Grande51.

FIGURA 2 – Pedreira do Cerro do Estado. Capão do Leão

Fonte: Acervo de Fotos da Compagnie Française du Port do Rio Grande do Sul. Biblioteca do Porto do Rio
Grande.

Concomitante à construção da estrada férrea nas pedreiras foram construídas as moradias


para operários e encarregados; as usinas elétro-pneumáticas52; os galpões, que abrigaram as
oficinas, as máquinas e o almoxarifado; as britadeiras e foram montados os equipamentos de
trabalho. As linhas férreas ficaram concluídas em dezembro de 1911 e o transporte das pedras
começou com regularidade em 1 de janeiro de 1912 (Pradel, 1979, p.16). A construção de ambos os
molhes levou 3 anos e 10 meses de trabalho e nela foram empregadas 3.389.800 toneladas de

43
O uso das Estações era compartilhado entre a Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer du Brésil e a Compagnie
Française du Port do Rio Grande do Sul.
44
O prédio desta estação, atualmente abriga a Casa de Cultura Jornalista Hipólito José da Costa, preservando os
trilhos da linha férrea.
45
Essa estação encontra-se em ruínas, com a linha férrea, no entorno, preservada.
46
Essa estação foi desativada em 1996 e o prédio foi totalmente restaurado pela Prefeitura Municipal de Pelotas e
inaugurado em 2014. Esta Estação continua com a linha férrea que atualmente é utilizada somente para a o
transporte de carga pela Empresa Rumo, detentora da concessão da rede férrea no Estado do Rio Grande do Sul.
47
A estação foi construída em 1884. O prédio está demolido e os trilhos estão mantidos.
48
O prédio não é mais utilizado como estação da linha férrea e sim como moradia. A linha férrea se mantém e é
utilizada pela Empresa Rumo.
49
Esta estação foi desativada entre os anos de 1980 e 1990 e o prédio se mantém.
50
A estação encontra-se descaracterizada e usada para moradia.
51
A estação abrigava a sede da linha Rio Grande-Bagé. O prédio se mantém, mas seus armazéns e oficinas estão em
ruínas. Parte da linha ainda é mantida. O prédio principal da estação atualmente é ocupado por uma secretaria
municipal da cidade do Rio Grande.
52
Processo de geração de energia autossustentável.
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pedras, distribuídas entre o Molhe Leste que consumiu 1.852.700 toneladas e o Molhe Oeste, que
usou 1.537.100 toneladas. A partir da conclusão das obras, no ano de 1915 passaram a operar dois
portos na cidade Rio Grande.
A companhia francesa trouxe mão de obra especializada, formada por engenheiros e
técnicos franceses e por trabalhadores europeus de outras nacionalidades, principalmente a
italiana. Grande parte dos trabalhadores que construíram a estrada ferroviária para o transporte
das pedras era constituída por empregados belgas da Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au
Brésil. A oferta de trabalho nas pedreiras chamou atenção de trabalhadores da região e de outras
partes do estado que chegaram pelos portos de Rio Grande e Pelotas, alguns, oriundos da pecuária
e agricultura, sem nenhuma experiência na extração do granito. Também vieram trabalhadores de
Portugal, Espanha, Alemanha, Rússia, Hungria, Romênia, Uruguai e Argentina. Segundo (Dias, 2010)
no ano de 1910 a Vila do Capão do Leão tinha cerca de 710 habitantes, quatro anos depois contava
com 1400 habitantes, sobretudo em função dos trabalhadores da Pedreira de Cerro do Estado.
No ano de 1916, logo após a abertura dos Molhes da Barra e a inauguração do cais do Porto
Novo, em consequência da I Guerra Mundial, as atividades da Pedreira de Monte Bonito foram
suspensas por motivo de redução de despesas. Na sequência, em 1919, o contrato com a Compagnie
Française du Port do Rio Grande do Sul foi descontinuado e o trabalho foi encampado pelo Governo
Federal que no mesmo ano transferiu a concessão do Porto do Rio Grande para o Estado do Rio
Grande do Sul. Dados de 1921 apontam que após a encampação da companhia francesa o número
de habitantes na Vila do Capão do Leão era de 915, dos 1400 anteriores, pois a maioria dos
funcionários foi exonerada (Dias, 2010).
A lavra da Pedreira do Cerro do Estado continuou a ser explorada pelo Governo Estadual até
o ano de 1926, quando foi encampada, por 13 anos, à Companhia Americana de Construcciones Y
Pavimentos S. A53, com o objetivo de exploração da rocha para a manutenção dos Molhes da Barra
e do Porto do Rio Grande. Apesar das dificuldades, neste período, a companhia americana
diversificou a produção na pedreira, pois, além do fornecimento das pedras, que era cerca de 80%

53
Pertencente a um grupo norte americano, com matriz em Buenos Aires.
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da sua produção, também produziu moirões54; pedra britada55, paralelepípedos56, argila57 e pedras
especiais58. A produção de paralelepípedo serviu para a pavimentação das ruas das cidades de Rio
Grande, Pelotas, São Jose do Norte, Montevidéu e Buenos Aires, além de pátios de igrejas,
indústrias, e firmas construtoras, de áreas do Exército e da Marinha, e demais serviços gerais de
calçamento.
No ano de 1939 a responsabilidade da Pedreira de Cerro do Estado retornou à administração
do Estado do Rio Grande do Sul, sob a responsabilidade da Diretoria de Obras do Porto e Barra do
Rio Grande, subordinada à Secretaria de Obras Públicas. Em 1951 foi criado o DEPREC -
Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais, uma entidade autárquica, ligada a então Secretaria
Estadual do Estado do Rio Grande do Sul. Foram contratados novos operários, foi criada uma vila no
entorno da área do complexo da pedreira, a Vila Gastal, causando um crescimento demográfico
para a Vila do Capão do Leão, com a ampliação do comércio local e de prestação de serviços.
Neste período, ingressaram para trabalhar na pedreira os três operários que foram
entrevistados para a tese, cuja memória de velhos é objeto de reflexão deste trabalho. Escutar a
estes trabalhadores suscita que suas vidas, ao encontrarem ouvidos atentos, ganhem finalidade e
valorização de suas lembranças, mas sobretudo faz com que a memória do grupo social se fortaleça,
o que é confirmado por (Bosi, 1979, p.17), quando afirma que “a memória do indivíduo depende do
seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão:
enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo”.
Na tese, o objetivo é assegurar a permanência da memória dessa geração de trabalhadores,
dando voz a esse pequeno número de representantes - que ao ingressarem no trabalho na década
de 50 herdaram parte da memória do trabalho de seus antecessores, franceses, belgas e de outras
nacionalidades que no início do século XX iniciaram a extração do granito contratados pela
companhia francesa, mas sobretudo, de seus antepassados, também operários, pois a memória é
um elemento social que organiza o sentimento de identidade e de continuidade, individual e

54
Estacas, troncos ou vigas, retirados do meio ambiente a partir do corte de árvores para utilização na construção.
55
Tipo de material obtido pela trituração de rochas como granito e utilizada na construção civil.
56
Pequeno bloco esculpido em granito, utilizado em pavimento, calçadas e acabamento.
57
É um mineral de rocha sedimentar, composto de finos grãos.
58
Pedras cortadas em tamanhos especiais, algumas utilizadas para guarnições de monumentos, escadarias e soleiras.
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coletiva, sucedendo “coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si mesmo”


(Pollak, 1992, p.204).
A memória do Cerro do Estado é importante para a cidade do Capão do Leão, pois esta passa
a ser constituída como cidade a partir do crescimento populacional resultante do trabalho na
Pedreira do Cerro do Estado. Para (Nora, 1993, p.9), “a memória emerge de um grupo que ela une”,
é formada por indivíduos que se reconhecem entre família, lugares e grupos que os sustentam de
referenciais identitários. Além disso, estes trabalhadores podem ter vivido as histórias por
compartilhamento da memória coletiva do grupo social do qual fazem parte. Para (Nora, 1993, p.
18), “a coerção da memória pesa definitivamente sobre o indivíduo e somente sobre o indivíduo,
como sua revitalização possível repousa sobre sua relação pessoal com o seu próprio passado”. A
memória trazida oralmente é mais do que geração de um dado é um diagnóstico social é uma
reflexão profunda sobre o que é retido e reelaborado na intimidade, se tornando uma “substância
que se projeta no diálogo entre partes interessadas na busca por entendimentos” (Meihy;
Seawright, 2020, p. 13).
Acreditamos que as várias camadas de informações trazidas pelos narradores darão riqueza
ao trabalho pois as histórias orais podem contribuir para a preservação da memória como
experiência vivida. Segundo (Jovchelovitch; Bauer, 2002, p. 94), ao contar as histórias o narrador
está “próximos dos acontecimentos. Ele dará conta do tempo, lugar, motivos, pontos de orientação,
planos, estratégias e habilidades”. A pluralidade do que é lembrado dá sentido ao passado porque
a memória é complexa por envolver recordações, que por vezes são evocadas pelos
questionamentos do entrevistador; gestos, ecos, silêncios e emoções, que oscilem entre o
contentamento e a felicidade ou a tristeza e a nostalgia. Estas lembranças puderam ser sentidas,
vivenciadas, ou herdadas pelo contato social e pertencimento que estes idosos tem com o lugar e
com o grupo social que fizeram parte por quase toda a vida, pois além do trabalho também
constituíram família e ainda residem no lugar. Para (Candau, 2012, p. 85), “são as diferentes
temporalidades próprias às sociedades [...] que vão ter um papel fundamental nos processos
identitários”.
Busquei saber sobre a chegada destes trabalhadores na pedreira, se vieram de outro lugar
ou se são nascidos ali, quis saber sobre o trabalho da extração do granito e o transporte das pedras
até os Molhes da Barra, se sofreram ou presenciaram acidentes durante o trabalho. Sondei sobre

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suas rotinas e lembrei Ecléia Bosi ao afirmar que “caminhar e ver confundem-se nos confins da
lembrança: o tempo de lembrar traduz-se enfim, pelo tempo de trabalhar” (Bosi, 1979, prefácio).
Ouvi relatos sobre o funcionamento dos equipamentos e ferramentas e sobre a sucessão da
aparelhagem que foi trazida pela companhia francesa e substituída por outra moderna. Perguntei
se esse fato mudou a rotina de trabalho. Perguntei sobre as estações do trem, se todas já estavam
construídas e como era o trabalha na estação e de que maneira eram utilizadas ou compartilhadas.
A seguir, serão apresentadas parte dos relatos destes idosos, operários aposentados, que apesar de
serem histórias individuais criam sentido social, se constituindo em memória coletiva.
O primeiro entrevistado foi o senhor Heitor, que no momento da entrevista tinha 85 anos
de idade e nasceu na Pedreira do Cerro do Estado, numa família de trabalhadores do lugar. Ele nos
recebeu na sala de sua casa, localizada do Cerro do Estado, na companhia de sua filha e esposa59.
Sua filha nos recebeu na porta enquanto seu Heitor nos aguardava sentado na poltrona. Depois de
nos apresentarmos começou sua fala contando que seguiu a profissão do pai, que também era
guindasteiro. Além da memória individual do trabalho diário ele herdou a memória passada por seu
pai, pois foi quem lhe ensinou o ofício de manobrar o guindaste para segurar as pedras. Contou que
iniciou o trabalho na pedreira ainda menino, aos 14 anos, ligando a corda ao guindaste elétrico e
passou por outros ofícios até se aposentar como maquinista de locomotiva. Iniciou conduzindo as
locomotivas a carvão, conhecidas como “Maria Fumaça”, que foram trazidas pela companhia
francesa no início do século XX e depois sucedidas pelas locomotivas a diesel. “Na reconstrução
sentimental do passado as máquinas que no tempo do trabalho eram perigosas e cansativas, se
transformaram em objetos biográficos” (FERREIRA, 2009, p. 30). Seu Heitor iniciou sua narrativa
contando:

Nasci no hospital em Pelotas, mas meus pais moravam na Pedreira. Meu pai
trabalhava na pedreira. Meu pai trabalhava nos guindastes, nos mesmos que
eu trabalhei depois. Meu pai me ensinou a trabalhar no guindaste.

Eu comecei como aprendiz, com 14 anos de idade eu ligava a corda elétrica


dos guindastes, depois passei a trabalhar nos guindastes. Trabalhava ligando
a corda e quando dava uma folguinha entrava no guindaste pra aprender a
trabalhar nele. Não me deixavam entrar era tudo escondido né? Eu era uma
criança e o trabalho era muito perigoso.

59
A esposa do sei Heitor é filha do ex capataz da pedreira, já falecido.
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Depois trabalhei nos guindastes trazidos pela companhia francesa e depois


comecei a trabalhar numa máquina a carvão, uma Kraft a fogo, que andava
nos trilhos e depois mais tarde passei a trabalhar na locomotiva. A máquina
Kraft e a locomotiva também eram as máquinas dos franceses.

No fim, quando eu me aposentei eu trabalhava na locomotiva, nas


locomotivas a carvão trabalhei um pouco, as Maria Fumaça, mas por pouco
tempo, trabalhei mais nas locomotivas elétricas, nas que substituíram as
locomotivas a carvão. Trabalhei nas locomotivas carregando pedras para Rio
Grande. (Entrevista do Sr. Heitor Vieira da Fonseca, concedida no dia
05/04/2022).

Para Benjamin (1994, p.201), o narrador retira de sua experiência o que ele lembra para
narrar, o que ele próprio viveu ou que foi relatado pelos outros e incorpora à experiência dos seus
ouvintes. A narrativa desses operários ecoa e fortalece a memória da terceira geração de
trabalhadores, que ainda está em atividade, e de seus familiares e descendentes, são eventos que
contam, mesmo quando há vários acontecimentos, dos quais os entrevistados não participaram
diretamente, onde o “passado e o presente, [reconciliam] o tempo da história e o tempo da
narração” (PORTELLI, 2010, p. 24).
O segundo entrevistado, o senhor Lauro, com 89 anos de idade, nos recebeu na varanda de
sua casa na cidade do Capão do Leão. Contou que foi maquinista de trem na pedreira e que é natural
de Arroio Grande. Lembrou que quando jovem trabalhava no campo com a família e que ouvia de
longe o apito do trem, sem saber o que era e que conheceu o trem quando, ao completar maior
idade, foi para cidade servir ao exército. Contou que aos 19 anos, ao chegar na pedreira já tinha
experiência em conduzir o trem, pois havia trabalhado por pouco tempo na Rede Ferroviária
Federal, então, devido a sua experiência e a necessidade de ter outro maquinista na pedreira ele foi
contratado, mas relatou que no início também trabalhou como guindasteiro.

Comecei a trabalhar no DEPREC com 19 anos, nos guindastes, em dois


guindastes elétricos. Quando tinha trem para o Rio Grande pros Molhes lá
passava dos guindastes pras máquinas (locomotivas) aí nós levava os trens.
Depois só fiquei de maquinista. Aí tinha outra pessoa que trabalhava nos
guindastes, o Heitor Fonseca.

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O trem saia do britador60... era pesado na balança, a balança era ali... bem
ali na praça assim (Seu Lauro gesticula, mostrando onde ficava a direção da
balança).

A gente pesava o trem e saia da pedreira até a Estação de Teodósio e vinha


aqui (seu Lauro reside próximo a Estação), na Estação de Capão do Leão pra
pegar as licenças para ir... pra entrar na linha. A gente atravessava a pé de
uma estação a outra, pra pedir a licença pra entrar na linha férrea. A gente
deixava o trem e andava um quilômetro para pegar a licença. Aí a gente
dependia deles porque o DEPREC não pagava pra andar na linha e os outros
trens, da Rede, pagavam aí a prioridade era deles de andar na linha e a gente
tinha que esperar.

Nós não tinha horário para trabalhar no trem. Quando tinha trem na linha
nós não podia entrar com o trem de pedra... nós esperava até um dia ou dois
na estação até dar licença pra nós. O trem tinha tudo, cozinha, cama...era
muito bonito. As vezes nós saia daqui de manhã e voltava no outro dia de
noite por causa disso. (Entrevista do Sr. Lauro Gonçalves, concedida em
05/04/2022.

Procuramos saber se o turno de trabalho, as folgas, e as férias eram respeitados e se eles


ainda se reuniam na pedreira para conversar ou confraternizar, como exemplo, falei sobre a festa
de Natal61 realizada anualmente, no entorno da capela existente no lugar. Para (Bosi, 1979, prefácio)
“a velhice trabalha para lembrar” e sua função social também é aconselhar, “ligando o começo e o
por vir”. Não nos preocupamos com os lapsos de memória ou com os erros individuais do que foi
narrado porque esses são menos severos para a memória do que as omissões caladas pela História
Oficial em relação aos grupos sociais, porque a sociedade lhes rouba os suportes materiais de
memória, em prol da vitória dos “fortes” sobre os vencidos, que não são somente os velhos, mas os
operários e trabalhadores, os anônimos da história. É como se existisse uma eliminação que a
memória está sujeita.

O velho, de um lado, busca a confirmação do que se passou com seus coetâneos, em


testemunhos escritos ou orais, investiga, pesquisa, confronta esse tesouro de que é
guardião. De outro lado, recupera o tempo que correu e aquelas coisas que quando
perdemos nos sentimos diminuir e morrer (Bosi, 1979, prefácio).

60
Lugar onde os rejeitos da pedreira eram triturados para se transformar em pedras menores.
61
As festas de Natal realizadas na pedreira têm o nome de “Sonho de Natal”, se originaram nas encenações do
presépio vivo realizadas com as crianças na capela do Cerro do Estado.
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O terceiro entrevistado foi o Senhor Nedi, com 86 anos de idade, que nos recebeu na varanda
de sua residência no do Cerro do Estado na companhia de dois filhos. Seu Nedi contou que é natural
de Piratini e que chegou em Capão do Leão com dois anos de idade quando seu pai veio trabalhar
em outra pedreira da região62.

Aqui é cheio de pedreira, tem outra até hoje. Eu ainda vou voltar lá no lugar
que eu morava com meus pais e que me criei era um rancho de palha. Tem
uns pés de palha de Santa Fé, no rancho, lá adiante tinha um poço que tava
sempre cheio d’água, lavavam roupa e tudo mais. Eu jogava bola com meus
vizinhos.

Comecei a trabalhar na pedreira no ano de 1958, no tempo de DEPREC,


depois fizemos concursos para passar para CLT. Já levávamos 80 % dos
pontos, era só para legalizar o cargo no Estado. O turno de trabalho era das
7:30 às 11:30 e das 13:30 às 17:00 e era tudo direitinho, tinha folga, tinha
férias.

Quando eu comecei na pedreira eu fui cortar pedra, porque eles tavam


precisando, pra fazer Moellon pra levar pro Saco da Mangueira, lá onde tem
aquela ponte, lá em Rio Grande e depois foi os blocos, blocos de oito
toneladas, sete, pra largar na beira da praia, pra não deixar a água tomar
conta, né, lá nos molhes. O trem chegava lá, encostava ali e o guincho tirava
e colocava na água, pra conservar os molhes, quando precisava ser
reformado. O barulho da dinamite dinamitando as pedras era muito forte e
o barulho do martelete para perfurar a pedra também era muito forte e eu
trabalhava todo dia, porque tinha que furar a pedra e fazer Moellon.

O resultado será de interesse para a preservação e fortalecimento da memória do grupo


social formado por estes trabalhadores, consequentemente para a memória da Pedreira do Cerro
do Estado e para o enriquecimento da História do Porto do Rio Grande. No entanto, mesmo
buscando esta memória concordamos com (Candau, 2012, p. 16), ao afirmar que “esquecemos mais
do que lembramos” e, para as memórias narradas o que ficou foi o que mais significou para cada
um dos entrevistados, um fragmento, e o grupo retém essas lembranças e se reforça pois o interesse
está no que foi escolhido lembrar, no que aflorou, como se fosse uma tarefa, uma reconstrução.
Concordamos com (Bosi, 1979, p. 21), quando afirma que dar voz a estes trabalhadores é tirar os
“falecidos do túmulo”, numa forma de honrar aqueles que partiram e estão invisibilizados na
História Oficial, porque “no tempo evocado pelas falas dos ex-operários, existia um intenso fluxo de

62
O pai do seu Nedi trabalhou na Pedreira do Cerro das Almas.
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trabalhadores. No tempo presente, da ruptura e descontinuidade”. (FERREIRA, 2009, p. 26). Apesar


dos narradores idosos se encontrarem em seus limites físicos “(...) é através de um corpo
alquebrado: dedos trêmulos, espinha torta, coração acelerado, dentes falhos, urina solta, a
cegueira, a ânsia, a surdez, as cicatrizes, a íris apagada, as lágrimas incoercíveis” (Bosi, 1979, p.03),
que a memória de velhos emerge no presente.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo. Editora
Brasiliense, 1994.

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CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

DIAS, Joaquim. Blog Professor Joaquim Dias. Disponível em:


http://professorjoaquimdias.blogspot.com/.

JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin W. Entrevista narrativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

FERREIRA, Gladis Rejane Moran. Cem anos de Porto Novo: memória e esquecimento de um Porto
Velho e de uma “Barra Diabólica”. Rio Grande/RS: Editora da FURG, 2019.

FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. Patrimônio Industrial: lugares de trabalho, lugares de


memória. In. Museologia e Patrimônio, v.II. n.01, jan./jun. de 2009. Disponível em:
http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus.

MEIHY, José Carlos Sebe B.; SEAWRIGHT, Leandro. Memória e narrativas.: História oral aplicada.
São Paulo: Contexto, 2020.

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PORTELLI, Alexandre. Ensaios da história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

PRADEL, Antonio. Histórico da Barra do Rio Grande: comemorando os 135 anos de fundação da
Câmara do Comércio. 1979.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História oral e as
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TORRES, Luiz Henrique. A Barra Diabólica: centenário da inauguração dos Molhes da Barra e do
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ST – 7
Paisagem cultural, história ambiental e arqueologia:
novos desafios para o patrimônio e a sustentabilidade

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MOBILIZAÇÃO SOCIAL E MANUTENÇÃO DA PESCA ARTESANAL DA TAINHA


PATRIMÔNIO CULTURAL NO MUNICÍPIO DE BOMBINHAS/SC: AVANÇOS E
DESAFIOS

Luiz Antonio Patricio63


Introdução

A tainha “Mugil cephalus”, é um peixe presente em boa parte do litoral brasileiro, mas no
município de Bombinhas, litoral de Santa Catarina, assume um protagonismo que vai muito além da
pesca de subsistência. A pesca da tainha envolve toda uma comunidade, famílias, culinária típica,
ranchos, canoas de um pau só e funções específicas neste processo. Os pescadores são os mestres
que mantêm esta tradição centenária repleta de histórias e emoções, herança dos indígenas da
nação Tupi Guarani, que foi adaptada pelos açorianos que chegaram ao litoral catarinense em
meados do século XVIII. Acontece entre os meses de maio a julho, e integra o patrimônio histórico,
artístico e cultural de Bombinhas, e também do estado de SC.
O formato da pesca tradicional ocorre em cercos com rede própria para captura do peixe
que é trazida à praia. Começa com a sinalização do “vigia”, pescador com função de observar a
aproximação do cardume num ponto alto da praia. Em terra o “Patrão” comanda a tripulação
composta por 2 a 4 “remeiros” (dependendo do tamanho da canoa) e o "chumbereiro" responsável
por largar a rede no mar. Participam igualmente do processo os “camaradas”, cuja função na praia
configura em segurar os cabos puxando o cerco da rede feito em semicírculo para a faixa de areia.
O Saragaço denomina a alegria dos presentes no cerco aguardando a fartura da tainha que virá nas
redes. A partilha com todos que colaboraram é o ato conhecido como “quinhão”. (KRETZER, 2006).
As técnicas de construção das canoas, redes, “balaios”, “chumbos”, ranchos de pesca,
culinária com a tainha, a oralidade transmitida nas rodas de conversa, a participação da mulher na
pesca, representam os papéis que cada um assume, fazendo do “cerco” a mais profunda
manifestação da coletividade na comunidade tradicional. Igualmente, as cantigas, os “causos” dos
pescadores e a bebida tradicional “consertada”, utilizada na espera do peixe, são tão relevantes

63
Bacharel em Turismo e Hotelaria com especialização em Gestão de Cidades (UNIVALI 2015). Atua na
Diretoria de Patrimônio Cultural da Fundação Municipal de Cultura de Bombinhas. E-mail: luiz-
bombinhas@hotmail.com

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quanto a pesca da tainha e são esperadas ansiosamente pela comunidade, junto a um inverno
rigoroso.
Dentre o patrimônio cultural material da pesca artesanal são protagonistas as canoas de um
pau só, esculpidas em um único tronco de madeira, a qual se destaca no feitio o
Garapuvu/Guapuruvu (Schizolobium parahyba), árvore abundantemente encontrada na floresta
pluvial da Encosta Atlântica, preferida pelos pescadores por sua leveza e por possuir o tronco reto
e sem nós. Preservadas por lei, as canoas desta madeira se tornaram verdadeiras relíquias desse
patrimônio, as quais os pescadores do município mantêm com extraordinário zelo as canoas
herdadas de seus ancestrais, algumas com mais de 200 anos. Segundo a Fundação Municipal de
Cultura de Bombinhas - FMCB (2023), o município possui um acervo de 67 canoas-de-um-pau-só,
distribuídas nos 17 portos de pesca, expostas nas praias de 01 de maio a 30 de julho de cada ano à
espera dos cardumes.
Uma das mais expressivas manifestações culturais de Bombinhas, a pesca artesanal da
tainha envolve moradores e turistas, movimentando as praias no inverno. Evidencia a importância
da gestão pública na criação de mecanismos e políticas para o fomento e salvaguarda desta tradição
tão relevante para a comunidade.

O exemplo da gestão cultural no município de Bombinhas

Considerando que Gestão cultural se refere a um conjunto de ações numa organização


pública, visando alcançar objetivos planejados pela instituição, implementa normas, planos e
projetos. Neste contexto elege estruturas, recursos humanos, financeiros, físicos e tecnológicos
empenhando criatividade e inovação para alcançar os objetivos propostos, seguindo estas
premissas a gestão cultural de Bombinhas apesar de recente, cresce muito em ações da salvaguarda
do patrimônio.
O município teve sua emancipação política administrativa no ano de 1992. Inicialmente
departamento de cultura, teve suas primeiras ações organizando e inventariando os aspectos
culturais da comunidade tradicional. As ações estratégicas crescentes impulsionaram a criação em
2007 da Fundação Municipal de Cultura de Bombinhas – FMCB, via Lei nº 61 de 26 de
novembro/2007, objetivando a criação e execução da política cultural municipal, instituindo o
Conselho Deliberativo formado por 13 membros representantes do Poder Público e entidades civis.
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Sendo sua missão “Proporcionar acesso e conhecimento de cultura em suas diversas manifestações,
à comunidade e visitantes” e visão “Ser referência entre Instituições Pública na promoção e
valorização da cultura” (BOMBINHAS, 2013).
O primeiro Planejamento Estratégico datado de 2013 e atualizado anualmente, se subdivide
em seis programas municipais, a saber: Salvaguarda do Patrimônio Cultural, Fortalecimento da
Gestão Pública da Cultura, Formação na Área da Cultura, Valorização das Artes, Promoção da Leitura
e Artesanato Bombinense. Objetiva o comprometimento dos servidores públicos e sensibilização
dos poderes executivo e legislativo nas causas culturais. No ano de constituição de parte significativa
da equipe da FMCB, implementaram iniciativas e ações relevantes à salvaguarda do patrimônio
cultural, igualmente ligados à manutenção da pesca, ou voltados aos pescadores e seus familiares,
base deste estudo, conforme elencados no quadro 1:

Quadro 1 – Projetos desenvolvidos que envolvem a pesca artesanal no município de Bombinhas

PROJETOS DESCRIÇÃO ENVOLVIMENTO COM A PESCA ARTESANAL


Vô sabe, Vô Criado em 2013 objetiva levar os saberes e fazeres O Mestre responsável pelo repasse é um
ensina! tradicionais dos Mestres da cultura à comunidade, especialista em cada “Saber Tradicional”,
realizando oficinas de rendas de crivo, bilro, redes e tarrafas foi um Mestre Pescador,
confecção de balaios/cestos, gastronomia típica e bilro foi uma Mestra esposa de pescador, no
redes de pesca. Visa proporcionar o conhecimento, crivo a Mestra é mãe e avó de pescadores e
arte, costumes, tradições, promovendo capacidades em gastronomia a Mestra é filha, neta e
adquiridos da comunidade. Implementa a inclusão, bisneta de pescadores, todos ligados a Pesca
capacitação e descoberta de novos detentores Artesanal.
incentivando a continuidade dos saberes
tradicionais confeccionando artesanato de base
local.
Tarde do Beijú O evento agrega rodas de conversas e a troca de As matronas bombinenses, em sua maioria
experiências entre os presentes, ocorre esposas de pescadores, são as protagonistas
mensalmente, reunindo a comunidade, visitantes, ensinando esta iguaria que não pode faltar
estudantes e pesquisadores da cultura para na mesa tradicional, fomentando a troca de
presenciar e experimentar a arte de fazer beiju, um receitas e conto de histórias que envolvem
alimento da gastronomia local, promovendo a pescadores e a pesca em si.
manutenção da cultura de base.
Pirão Cultural Realizado periodicamente com um palestrante Os saberes tradicionais de alguma forma
pensador/historiador/mestre/conhecedor da ligados à pesca artesanal, são repassados
cultura de base açoriana e saboreando a através de um mestre ou acadêmico,
gastronomia tradicional em parceria com abordando temáticas, como a pesca
restaurantes que servem pirão com peixe-frito aos artesanal da tainha, boi de mamão, herança
presentes. Iniciou em 2014 sensibilizando sobre a de base açoriana, dentre outros correlativos
cultura tradicional em virtude da realização da 22ª a tradição da Pesca Artesanal da Tainha.
Festa da Cultura Açoriana de SC, sediada por
Bombinhas entre 02 a 04 de outubro de 2015, seguiu
tratando a Cultura de forma mais ampla além da

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cultura tradicional.
Revista Tu Criado em 2005, periódico cultural publicado Justificando o registro da memória oral
Visse?! trimestralmente, objetiva o registro da oralidade da realizado neste periódico, no ano de 2011, se
comunidade, salvaguardando a memória, em classificou em 1º lugar na categoria Gestores
aspectos históricos das famílias tradicionais, Públicos do Prêmio Cultura Viva, ganhando
personalidades, saberes e fazeres, curiosidades e destaque de todo Brasil. Os pescadores e
dados relevantes sobre a comunidade, onde muitos seus familiares sentem-se orgulhosos de ver
mestres detentores dos saberes e fazeres suas histórias registradas.
tradicionais faleceram perdendo informações
relevantes.
Festival de Criado em 2000 alusivo a comemoração do As canoas são protagonistas na pesca
Embarcações aniversário de Bombinhas, reunindo a comunidade artesanal da tainha, característica marcante
a Remo pesqueira num evento cultural promovendo a da identidade cultural. Momento de
tradição e o esporte através das remadas encontro entre pescadores e de rivalidade
tradicionais dentro das canoas de um pau só. em saber qual rancho tem os melhores
“remeiros”
Programa Desenvolvido pela Secretaria de Educação em Mestres do Projeto “Vô sabe, Vô Ensina”
Escola do Mar parceria com secretarias/fundações de Turismo, realizando o repasse da cultura tradicional às
Pesca, Cultura, Meio Ambiente e Esportes, crianças com fazeres de redes de pesca,
ensinando no contraturno escolar “Saberes cestarias, preparar pratos a base de tainha, e
Tradicionais”, aliando a teoria/ciência com as visitam os ranchos de pesca.
práticas do território.
Concurso Objetiva trilhar entre comunidade e visitantes, Os protagonistas da pesca da tainha e seus
Fotográfico registrando em fotos os pescadores artesanais em familiares são registrados, desde a puxada
“Cerca suas atividades sensibilizando, promovendo a da rede, limpando peixe e nos “saberes” que
Rapazi” salvaguarda dos Saberes Tradicionais”. envolvem a pesca.
Fortaleciment Engajou-se em 2013 ao Sistema Nacional de Cultura, Parte destas ações previstas nas as diretrizes
o das políticas como modelo de gestão e promoção de políticas do Plano Municipal de Cultura, quanto nos
públicas da públicas na área da cultura, com ações conjuntas dos projetos agraciados com o Fundo Municipal
Cultura entes da federação. O sistema aparou a criação do de Cultura, contemplam as atividades e
Conselho Municipal de Políticas Culturais, e a objetos ligados de alguma forma com a
realização do Plano Municipal de Cultura que norteia Pesca Artesanal da Tainha, como a
as ações culturais, de forma apartidária. São publicação de um livro que conta a história
realizados fóruns continuamente com participação de Bombinhas, naturalmente perpassa a
popular, e também a instituição do Fundo Municipal abordagem do tema.
de Cultura, o qual com investimento anual de R$
250,00 mil reais em projetos culturais de produtores
e entidades culturais da cidade.
Documentári Obra cinematográfica, que relata a história da pesca Total envolvimento da comunidade,
o Antes do artesanal da tainha com os Mestres sábios do mar, o retratando a Pesca Artesanal da Tainha,
Inverno papel da mulher neste cenário e o sonho de um onde os atores são os próprios pescadores,
jovem de 14 anos em se tornar remeiro. O Curta esposas e filhos.
Metragem documentário percorreu diversos
festivais de cinema do Mercosul e Congressos
Brasileiros de Folclore.
Intitulação Reconhecimento instituído via lei nº 1326/2013, Com total envolvimento da comunidade
dos Mestres valoriza as expressões de diversas linguagens pesqueira, onde vários Mestres intitulados
da Cultura artísticas, ritos sagrados e festas comunitárias, cuja são pescadores, e as Mestras todas esposas,
Tradicional de vida e obra foram dedicados à proteção, promoção filhas ou netas de pescadores.
Bombinhas e desenvolvimento da cultura tradicional
bombinense. Já foram reconhecidas 42
personalidades do artesanato, folguedos, folclore,
pesca, engenhos, memória, gastronomia e
agricultura.
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Turismo de Ações estratégicas que em sua implementação, Trabalha com a pesca artesanal e a culinária
Base visam dentro da formatação de produto turístico que envolve o peixe tendo como
comunitária focar nas comunidades tradicionais. protagonista os pescadores e suas famílias.
Descobrindo Objetiva igualar conhecimentos na comunidade e Envolve o Patrimônio na ambientação
Bombinhas trabalhadores do município no que tange o conceitual e nas visitações, dentro das
patrimônio cultural e natural, com aulas teóricas e estratégias propostas.
visitação “in loco” de aprofundamento para o bem
atender/receber dos turistas
Fonte: Fundação Municipal de Cultura de Bombinhas, adaptado pelo autor, 2023.

Além dessas ações, existem ainda iniciativas que partem da própria comunidade e entidades,
como a tradicional festa da tainha promovida pela Apae - Porto Belo e Bombinhas, a missa de
abertura da pesca da tainha organizada pela comunidade pesqueira da Praia de Bombas e a Gincana
de encerramento de confraternização dos pescadores denominada “Saragaço”. Todas essas ações
enaltecem ainda mais os projetos existentes, que juntos geram grande impacto na comunidade.
Tais iniciativas, garantiram que Bombinhas conquistasse recentemente o primeiro lugar no
Top 100 Sustainabililty Stories, que premia histórias de boas práticas em destinos ao redor do
mundo dentro da categoria Cultura & Tradição do concurso anual Green Destinations Story Awards
2023. Colocando a pesca da tainha em evidência no mundo.

A visão dos pescadores artesanais e gestores sobre o assunto

Contextualizando a mobilização social nas práticas culturais da pesca artesanal da tainha,


fundamentadas em oito entrevistados os quais receberam a Titulação de Mestre da Cultura
Tradicional de Bombinhas, critérios via Lei nº 13.226 de 26 de julho de 2013, na categoria pesca
artesanal. As entrevistas foram realizadas no ano de 2014, e as informações atualizadas durante a
pesca da tainha na temporada de 2023, buscando compreender suas percepções e pensamentos se
permaneciam as mesmas.
Igualmente foram ouvidos relatos de alguns pescadores do município, que participaram do
documentário “Antes do Inverno”, sobre a pesca artesanal da tainha em Bombinhas, por serem
considerados referência na comunidade, no entanto alguns faleceram nos últimos anos.
Para fundamentação do registro desta oralidade, buscou-se o relato gravado de um
historiador e museólogo (in memoriam) pesquisador do tema, através de entrevista coletada no dia
23 de fevereiro de 2015, realizada no município de Bombinhas.
Igualmente realizada entrevista com a Presidente da Fundação Municipal de Cultura,
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contextualizando a importância da cultura dentro da gestão municipal, buscando compreender as


perspectivas das tradições e relatos de experiência sobre projetos desenvolvidos para salvaguardar
as tradições. Coleta de dados parcialmente abaixo disposta, com a pergunta norteadora: As
tradições podem acabar? Quais são os motivos?

Poluição

O despejo de esgoto clandestinamente nos rios causando a morte e diminuição de peixes,


problema do município e esfera global, para o Mestre o Rio da Barra, no bairro de Bombas próximo
de sua residência, exemplifica tal afirmação:

[...] hoje tu vai ali ver, acabaram com tudo, não teve mais criação de peixe, não teve
mais nada ali [...] o que acabou com a nossa pesca da tainha aqui, não foi as
traineiras, não é tanto a caça de malha, não é tanto rede de praia, sabe o que é? É
a poluição! Enquanto o povo começar a colocar poluição no Rio, a nossa pesca vai
se acabar. Eu não vou alcançar isso, com a idade que estou, mas quem é novo vai
alcançar, ela vai se acabar no dia a dia.

No mesmo entendimento outro pescador reconhece que o Rio Bombinhas, enfrenta a


mesma situação:

Ali naquele rio da “Vila Paradiso” se via o chão, de tão limpinha que a água era, não
existia esgoto, não existia nada. Hoje em dia você vê como está… acabaram com
tudo. A pesca artesanal vai acabar, com muita poluição, muita coisa, isso não vai
aguentar muito tempo...

Além da poluição, outro fator interfere na diminuição dos peixes é a pesca industrial,
conforme apontado por outros mestres:

Pesca Industrial

O historiador entrevistado aborda que as interferências para diminuição dos peixes é


causado pela pesca industrial. Com embarcações possuindo tecnologia como radares/sonares, uso
de motores, se pesca uma grande quantidade de peixes:

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A pesca da tainha está diminuindo por causa da pesca industrial. A tainha vem da
Lagoa dos Patos, lá já tem uma preferência grande pelo peixe, o que chega aqui é a
míngua, quase mais nada. teve épocas como em 1922 que na Barra da Lagoa em
Florianópolis, mataram 200 mil unidades do peixe, então há o exagero, pegavam
mais do que precisavam, elas estão se acabando…. A gente já percebe que daqui a
pouco tempo, tainha vai ser alguma coisa de museu, só com retrato dela.

Na Praia do Retiro dos Padres, o mestre pescador tem o mesmo pensamento:

Já existe uma estatística do peixe que sai da Lagoa dos Patos, apenas 1% dos peixes
morrem nas praias, de Santa Marta/Laguna até São Francisco do Sul. E o resto, os
barcos da pesca industrial matam tudo. Sabe por quê? A carga de um barco, pra
mim é “cerco” pra dois, três anos… Porque se eu pegar 30 toneladas neste ano, 30
toneladas ano que vem, 30 toneladas daqui dois anos, é o equivalente que um
barco desse pega de uma vez só. Então, tem que abrir um defeso para proteção do
peixe.

O pescador acredita que deveria ser criada uma legislação com proibição/restrição à pesca
industrial da tainha, incentivando a pesca artesanal, não somente em Bombinhas, mas em todas as
comunidades que possuem esta tradição.

Desmotivação

Apontaram que a desmotivação afeta a continuidade das tradições, como a disputa entre
surfistas e pescadores, conflitos em todo litoral entre as duas classes que disputam o espaço no
mar. Os pescadores alegam que a tainha é um peixe sensível, pois não se aproxima da costa quando
há movimentação no mar. Os surfistas por falta de entendimento do patrimônio geram conflitos,
quando não há consenso, gera violência na areia da praia. Um mestre da Praia do Moçambique
(Florianópolis), relata que nestes conflitos, os surfistas colocaram fogo no seu rancho de pesca com
canoas com mais de 80 anos de existência. Similares ocorridos no município de Bombinhas, na praia
de Quatro de Ilhas em 2021. Neste contexto campanhas de sensibilização foram realizadas, como
#tainhaépatrimonio, informando visitantes e minimizando conflitos, juntamente com a criação de
legislação municipal normatizando a prática.

Legislação

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Um mestre relata que os pescadores artesanais estão desamparados pela legislação e


autoridades locais, pois para a pesca acontecer, depende de fatores como clima, mar e vento, ao
contrário de outras embarcações que conseguem liberações para a pesca próximo à costa.

Eu nem sei como eles conseguiram essa licença de pesca, isso era para ser somente
das canoas, eles trabalham com bote inflável, moto aquática, isso vai
enfraquecendo e desanimando a gente. Tentamos manter a tradição, mas não
temos uma fiscalização que nos ampare e nos proteja.

Os pescadores artesanais sugerem políticas de incentivo para manutenção da tradição com


fiscalização efetiva deste amparo legal na área da pesca.

Desinteresse dos mais jovens em aprender os ofícios

Outro fator preocupante está no desinteresse dos jovens em aprender os ofícios de seus pais
e avós, repassando e se tornando mantenedores destas tradições. Atualmente existe muita
dificuldade em encontrar pessoas que saibam ser patrão e remar a canoa, como explica um
pescador da Praia de Bombas.

Eu vejo a pesca artesanal bem curta. Eu vou tirar pela nossa família: Eu tenho um
filho que não trabalha na pesca. Dos meus cinco irmãos, nenhum deles possui um
filho que trabalha na pesca. Meus irmãos já estão acima de 40 anos de idade, então
está ficando difícil para manter a pesca artesanal da da tainha, o problema é para
remar, cuidar de uma popa de canoa.

A pesca artesanal praticada por homens e mulheres com mais de 40 anos, vislumbra um
horizonte melhor trilhado pelo interesse da nova geração entre 10 a 16 anos em atividades
oferecidas pela municipalidade no contraturno escolar.

Especulação imobiliária

O contexto abordado registrou que a especulação imobiliária fez com que ranchos de pesca
desaparecem dando lugar a prédios e pousadas de luxo, onde explica o historiador entrevistado. O
povo “nativo” desconhecia o valor do dinheiro, eram ingênuos, não vislumbrando o que o município
se tornaria.
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[...] eles nunca tinham visto dinheiro, porque antes era tudo na base do escambo,
e de repente chega alguém de fora e oferece dinheiro para eles, achavam que
tinham ficado ricos, os ranchos de pesca foram os primeiros a desaparecer, poucos
resistiram.

A falta de educação formal não possibilitou uma visão a longo prazo, tecendo comparativos
com outros destinos turísticos, e sua valorização imobiliária.

A visão do poder público e o exemplo da cidade de Bombinhas

A gestão pública salvaguarda tradições da comunidade, em contato aproximado, registros,


inventários, apoiando eventos, sensibilidade dos gestores e respeito à diversidade cultural. De
acordo com a Presidente da Fundação Municipal de Cultura:

As manifestações da comunidade contam sua história, sendo sua referência de vida


em sociedade, onde o poder público utiliza mecanismos de preservação no contato
aproximado com a comunidade, registro dos saberes e fazeres tradicionais,
audiovisual, fotográfico, propondo eventos, valorizando a comunidade,
inventariando e registrando patrimônio.

O desenvolvimento urbano e turístico afetou diretamente as famílias de pescadores, onde


parte dos empresários do trade turístico não percebem a pesca da tainha como atrativo potencial
neste segmento. É necessário valorizar a comunidade e suas práticas culturais, e todos dividindo a
responsabilidade com a gestão pública, em fomentar e sensibilizar a todos que visitam ou moram
na cidade. Conforme explica:

Uma tradição somente é mantida quando é passada através das gerações e tem
espaço para se manifestar. Faz alguns anos que a pesca da tainha vem sendo
suprimidas pelo "desenvolvimento urbano". Além disso, é fragilizada pela pressão
de pessoas que defendem o "desenvolvimento turístico", sem que esteja em
conformidade com as características da cidade e sem enxergar que as tradições,
também, podem ser fator de desenvolvimento turístico. No entanto, enquanto a
comunidade se apoderar de suas tradições e repassarem seus conhecimentos,
essas atividades continuarão vivas.

Objetivando tornar-se referência na gestão cultural e preservação do patrimônio, percebe-

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se o comprometimento dos servidores públicos. Este engajamento consolidou a Pesca Artesanal da


Tainha no rol de salvaguarda com o registro reconhecido em âmbito estadual através da Fundação
Catarinense de Cultura no ano de 2019, tornando-se a terceira comunidade pesqueira do estado a
ter sua tradição reconhecida.

Considerações finais

A presente investigação não almeja trazer verdades incontestes sobre os motivos que
interferem na continuidade das práticas culturais tradicionais, mas sim, refletir sobre os impactos
que o desenvolvimento urbano e turístico desordenado trazem a esta cultura, revelando
perspectivas dos pescadores e gestores públicos sobre a Pesca Artesanal da Tainha. Bombinhas
deixou de ser uma vila de pescadores, porém não deve perder sua essência, mesmo ao tornar-se
uma das destinações mais visitadas do Estado. Mudança de vida da população que por vezes focou
no ganho financeiro, fez perder parte de seu patrimônio, noutra parte nota-se a preocupação da
salvaguarda e manutenção das atividades pesqueiras assegurando o legado para gerações futuras.
Os repasses dos saberes enfrentam muitos desafios, na integração das novas gerações, na
especulação imobiliária crescente, no despejo de esgoto clandestino nos rios e num amparo legal
massivo à pesca artesanal. Tornando relevante o desenhar de soluções para amenizar impactos da
pesca industrial, como licença restritiva à pesca industrial, protegendo a procriação da espécie e
incentivando a pesca artesanal de arrasto de praia nas canoas monóxilas. A educação patrimonial
ocupando espaço como componente curricular na rede escolar, bem como o estímulo por visitas
técnicas, estudos, para unir pescadores e comunidade escolar, tornando uma estratégia para
continuidade da tradição.
Com relação à gestão pública, observa-se que Bombinhas caminha no rumo certo quanto à
sensibilidade pela causa cultural, graças a utilização do planejamento estratégico como ferramenta
de trabalho e do engajamento dos servidores públicos. Esse respaldo, torna-se essencial para o
sucesso das ações culturais, tendo em vista a apropriação por parte da comunidade dos projetos
criados, promovendo a sustentabilidade dos mesmos, indiferente da gestão político-partidária.

REFERÊNCIAS

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BOMBINHAS, Fundação Municipal de Cultura de; Mapa da Cultura tradicional de Bombinhas.


2023. (Documento interno).

BOMBINHAS, Fundação Municipal de Cultura de; Planejamento estratégico. 2013. (Documento


interno).

KRETZER, Fabiana; Pesca da Tainha. Revista Tu visse?!. Bombinhas, Ed. 05, ano 01, 2006.

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“SE É SEMPRE OUTONO O RIR DAS PRIMAVERAS”: GÊNERO, PODER E BIOGRAFIA


EM UMA ANÁLISE FOUCAULTIANA64
Marília Garcia Boldorini (doutoranda) | Universidade da Região de Joinville (Univille)|
mariliaboldorini@gmail.com
Roberta Barros Meira (pós-doutora) | Univille| rbmeira@gmail.com

Introdução

A literatura, tal qual um espelho do grupo social ao qual pertence, funciona como uma das
formas de descrever a sociedade e suas memórias. Ela transmite a visão de mundo do autor, molda
um dos pilares da cultura nacional e é composta de diversos gêneros textuais, entre eles a biografia.
A biografia consiste em uma narrativa oral, escrita ou visual dos fatos particulares das várias
fases da vida de uma pessoa. A questão fundamental do estudo da biografia é o fato de, por
intermédio dela, ser possível fazer uma análise macroestrutural da sociedade e dos quadros
explicativos. O detalhamento biográfico tem a funcionalidade de ilustrar a realidade mais ampla por
meio de um indivíduo que é usado como exemplo, como a imagem de uma construção social
(Avelar, 2010).
Considerando que a literatura se dá por intermédio da língua, que não é neutra, e que a
biografia é um tipo de exercício de poder, pois consiste em um discurso controlado, são trazidas
para a discussão as experiências teóricas de Michel Foucault, que se dedicou nos anos 1960, 70 e
80 aos estudos envolvendo a noção de sujeito produzida por uma configuração de saberes, uma
relação de poder e suas próprias ações. As teorias do pensador giram em torno da relação entre
poder e conhecimento e como ambos são usados como forma de controle social por meio das
instituições sociais. Em 1970, Foucault passou a centrar-se em reflexões dirigidas para a expressão
do discurso no tocante à história do pensamento ocidental. Em A ordem do discurso (1996), ele
procurou desnudar a relação entre as práticas discursivas, de modo geral, e os poderes que as
permeiam.

64
Este texto consiste em um recorte da dissertação As singularidades patrimoniais no contar biográfico: paisagem,
memórias e narrativas de Joinville, defendida em 2018, e foi publicado integralmente em 2017 na revista Em Tese,
podendo a versão completa ser acessada por meio do link: https://doi.org/10.17851/1982-0739.23.1.97-118. Acesso
em: 4 dez. 2023.
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Nesse contexto, buscou-se neste artigo fazer a análise de uma obra do gênero textual
biografia levando-se em conta os procedimentos de controle do discurso descritos por Foucault,
com base na publicação A ordem do discurso. A obra abordada aqui, Primavera em pleno outono: a
jovem Olívia faz 80 anos!, do escritor Wilson Gelbcke, é um relato sobre a vida de Olívia Maia
Mazzoli, passada na cidade de Joinville (SC), sua cidade natal.

Análise foucaultiana do discurso Primavera em pleno outono

A análise aqui exposta tem como base A ordem do discurso, do filósofo Michel Foucault
(1996). Na obra o autor explica que, se quisermos analisar o discurso em suas condições, jogos e
efeitos, é preciso optar por três decisões: questionar nossa vontade de verdade, restituir ao discurso
seu caráter de acontecimento e suspender a soberania do significante. Essas três opções são
englobadas por dois conjuntos de análise: o conjunto genealógico, pensando em como se formou o
discurso haja vista suas normas específicas, os sistemas de coerção e as circunstâncias de aparição,
crescimento e variação; e o conjunto crítico, baseando-se na prática do princípio da inversão,
mostrando a força exercida pelo discurso. Os dois conjuntos diferem apenas quanto ao ataque, à
perspectiva e à delimitação, no entanto ambos objetivam desvelar o jogo da rarefação imposta, com
o poder fundamental de afirmação.
Levando em conta tais premissas, foi trazida aqui a narrativa Primavera em pleno outono: a
jovem Olívia faz 80 anos!, primeira publicação do gênero textual biografia do joinvilense Wilson
Gelbcke. Trata-se de uma narrativa sobre a vida de Olívia Maia Mazzoli relatada por ela própria ao
escritor.
Olívia Maia Mazzoli é nascida em Joinville (SC), atuou como professora e também foi
funcionária da Receita Federal. Ela fundou em 1980, juntamente com o seu marido e outros casais
do Movimento Familiar Cristão, o Centro de Estudos e Orientação da Família (Cenef), uma entidade
sem fins lucrativos que ajuda anualmente com orientações e aconselhamentos centenas de famílias
afetadas por problemas de desagregação e crises. A instituição é hoje referência nas áreas de
orientação e aconselhamento familiar, psicoterapia, psicopedagogia, pedagogia, fonoaudiologia e
assessoria jurídica (Groth, 1999).
Inicialmente, é importante explicar o porquê da escolha da obra analisada. Após o
levantamento feito de narrativas biográficas, constatou-se que a maior parte delas é a respeito de
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vidas masculinas, reflexo da sociedade patriarcal em que vivemos e da cultura predominante, na


qual os homens servem como exemplares de indivíduos almejados pela sociedade, e as mulheres,
portanto, não são dignas de registro. Todavia, quando as biografias são sobre mulheres, elas
concernem praticamente em sua totalidade a histórias de religiosas católicas – aqui se vê também
o predomínio da Igreja Católica no país, embora este seja tido como um Estado laico. Ademais, as
biografias encontradas giram em torno de artistas, políticos e empresários importantes em termos
econômicos. Objetiva-se, então, não o conhecimento exato do passado, mas o reconhecimento
pelos outros de seu lugar na memória coletiva da sociedade a que pertence ou pertenceu a
personagem retratada na obra.
Dessa maneira, pensou-se em trabalhar com o livro Primavera em pleno outono por ele fugir
do senso comum e por não tratar de pessoas tão corriqueiras nos discursos biográficos. Além disso,
biografias que retratam a vida de mulheres são muito raras, com exceção daquelas que contêm
narrativas sobre grandes nomes midiáticos.
A obra inicia-se com uma introdução, texto em que o autor tem a oportunidade de expor
suas motivações para a escrita da obra. Logo, Gelbcke apresenta ao leitor(a) Olívia Maia Mazzoli, a
personagem central da narrativa. Já no primeiro parágrafo o autor abusa de termos como “belos
exemplos” e “excelentes trabalhos voluntários”, ao ressaltar os feitos da protagonista, numa clara
demonstração de admiração por Olívia. Por sua vez, no segundo parágrafo, os adjetivos utilizados
para descrever a personagem são “destemida e brava mulher” (Gelbcke, 2004, p. 7), numa alusão
ao fato de que para uma mulher ser brava e destemida é sinal de respeito e até mesmo de surpresa,
principalmente se considerarmos que o autor do texto, nos idos dos seus 60 anos quando escreveu
a obra, foi criado em uma época em que a mulher não tinha voz nem vez. Predominava
massivamente um mundo pautado nos feitos dos homens. Por conseguinte, uma mulher ser mais
do que uma simples dona de casa naqueles tempos representava uma grande ruptura com o modelo
social em voga.
Além disso, na introdução Gelbcke anuncia: “Já nas primeiras perguntas que lhe fiz pude
sentir que o livro seria escrito a quatro mãos. As respostas de Olívia Maia Mazzolli formam uma
autobiografia” (Gelbcke, 2004, p. 7). Podemos notar tal fato no decorrer da narrativa, pois são
intercalados trechos de depoimentos da biografada. Embora Foucault (1996) afirme que uma
mesma e única obra literária pode dar lugar a tipos de discurso bem diferentes, não é o que se vê

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na obra investigada. Tanto autor quanto biografada parecem compartilhar das mesmas ideias,
talvez por ambos terem idades parecidas e terem origens semelhantes. Observa-se, entretanto, que
as falas de Olívia são mencionadas literalmente para que haja a repetição, proposital, como uma
confirmação do que se diz. O segundo discurso, para Foucault (1996), é uma possibilidade aberta de
fala, cuja função é dizer o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro, permitindo-lhe
dizer algo além do texto, mas com a condição de que o texto seja dito e de certo modo realizado.
Ou seja, a repetição dá veracidade ao que é dito.
O narrador, para dar início à biografia propriamente dita, traz o contexto sociocultural da
década de 1920 como pano de fundo para introduzir a personagem central da obra, nascida em
1924. Ao citar pela primeira vez a biografada, fala da sua filiação, relatando mais detalhadamente
sua descendência materna, numa alusão de que, para entendermos uma pessoa de maneira mais
completa precisamos saber de suas referências e de seu background. Na primeira fala de Olívia, ela
conta sobre o romance vivido pelos seus avós por parte de mãe:

Não conheci meu avô Paul Oscar, mas sei por intermédio de minha mãe e de
poesias e desenhos de sua lavra que era homem culto e fino. Ele imigrou para
Joinville com apenas 18 anos de idade, porque tinha asma e procurava lugares mais
quentes para viver. Aqui ele sentiu falta de sua amada, que deixara na Alemanha.
E foi buscar a meiga Ulrica, mulher muito simples e sem cultura (in Gelbcke, 2004,
p. 15).

O narrador segue contando sobre os avós de Olívia e como se desenrolou sua história aqui
no Brasil, após terem imigrado da Alemanha, e especialmente sobre a mãe, Frida. A família desta,
ao estabelecer-se no Brasil, abriu uma pousada em Pirabeiraba, distrito de Joinville. Nesse pequeno
hotel foi onde a mulher conheceu “Eleutério Júlio da Maia, um caboclo bem brasileiro, descendente
da família Gonçalves da Maia” (Gelbcke, 2004, p. 18).
Com essa passagem, podemos verificar a presença do mito das três raças, que por longo
tempo se tentou forjar como marca da identidade nacional. Ou seja, o brasileiro era o resultado da
mistura dos três grupos que se encontravam no território nacional e de suas influências culturais: o
europeu, por intermédio da colonização e imigração ao país; o africano, que veio ao Brasil em
decorrência do regime escravagista; e o indígena, que já ocupava essas terras desde antes da
chegada dos portugueses. Logo, se o pai de Olívia era “um caboclo [filho de indígena com branco]

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bem brasileiro” (Gelbcke, 2004, p. 18, grifo nosso), ele era prova viva dessa mistura de raças.
Eleutério tinha sangue indígena, oriundo dos primeiros habitantes das terras brasileiras; e também
sangue europeu, da porção civilizada.
É interessante observar que o narrador primeiramente descreve toda a família materna de
Olívia, começando por seus avós, sua imigração ao Brasil, a vinda ao mundo dos filhos e depois como
a mãe da biografada conheceu o pai. Também se fala um pouco dos irmãos de Olívia só para, depois
disso, narrar um pouco da história do pai, Eleutério. De qualquer forma, os únicos fatos
mencionados acerca dele são em relação a sua vida profissional e a sua vida política, não sendo
citados detalhes a respeito de seu relacionamento com os filhos, por exemplo, ou com a esposa, ao
menos no primeiro capítulo da obra, como se ele fosse menos importante do que a mãe para a
história da biografada.
O fato de o autor ter tratado tal tema da forma como o fez reflete o pensamento da
sociedade de que o pai, homem da família, tem como funções prover a família e ser responsável por
seu sustento, principalmente no começo do século XX, época do início da nossa história, quando
eram poucas as mulheres no mercado de trabalho, e o direito ao voto ainda era restrito aos homens.
Não se sabe, por exemplo, se a mãe de Olívia se envolvia com política ou não, mas isso não era
relevante, então é algo que não vale a pena ser mencionado.
É importante inferir aqui também a diferença de nacionalidade dos pais de Olívia, talvez por
isso a ênfase na história da mulher em detrimento da do pai. Embora os dois tenham nascido em
terras brasileiras, Frida era descendente direta de europeus, visto como os civilizados e evoluídos,
grupo em que se quer espelhar, enquanto Eleutério era descendente de indígenas, bárbaros e
involuídos, que precisavam ser adestrados. Assim, não havia necessidade de adentrar na história
paterna, por ela talvez não ter nada a acrescentar.
Verifica-se ainda nessa questão o fato de na cidade de Joinville ter-se muito proeminente o
discurso da tradição alemã, numa tentativa de se forjar uma história singular e identidade para o
município. De fato, Joinville recebeu em 1851, ano de sua fundação, as primeiras levas de
imigrantes, em sua grande maioria, alemães, mas também suíços e noruegueses. Todavia, essas
terras já eram ocupadas por indígenas e africanos escravizados – grupos que foram apagados da
história oficial municipal. Então, o destaque especial que o autor dá à família de Frida, tipicamente

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de imigrantes europeus, no discurso biográfico analisado vem ao encontro do discurso oficial que
se procura manter sobre Joinville, reforçando a ideia de uma cidade cuja identidade é a alemã.
Num único parágrafo que trata do relacionamento de Eleutério com os filhos – nada é dito
sobre o relacionamento homem e mulher –, o narrador diz: “Era homem extremamente ligado à
família. De fortes princípios morais, não admitindo certas liberdades que se observa hoje em dia”
(Gelbcke, 2004, p. 21). O narrador demonstra não concordar com a flexibilidade na educação
familiar, ao questionar “certas liberdades que se observa hoje em dia”, ao colocar em xeque as
“liberdades” que se têm atualmente como contrárias aos princípios morais preestabelecidos. No
entanto questiona-se de quais princípios morais o narrador está falando, ou acredita que deveriam
ser mantidos iguais aos do passado.
É significativo ressaltar que o narrador, aquele que conta a história, já é um senhor de idade,
criado em um regime rígido, que sofreu com a ditadura militar, e num mundo em que o homem
tinha vez e voz, em detrimento da mulher. Ademais, tem-se presente ainda a questão de o biógrafo
ser homem e se dispor a narrar a história de uma personagem mulher. Por toda a criação
diferenciada entre homem e mulher e posição social, é impossível o assunto feminino × masculino
não vir à tona nas falas da personagem ou na narrativa do autor. Enquanto o homem tem o mundo
aos seus pés e acesso ilimitado a ele, o mundo feminino sempre foi muito menor e mais restrito.
Era permitido à mulher apenas o que o pai e, depois, o marido acreditavam que era o melhor,
levando-se em conta a opinião da sociedade. Quando muito a mulher podia se manifestar a respeito
de temas sociais e morais.
Na sequência, num depoimento de Olívia, ela fala da casa em que ela e sua família moraram
de 1925 a 1937: “É o casarão hoje desvirtuado (virou casa de pagode, ou coisa parecida), na esquina
da rua Procópio Gomes e Plácido Olímpio (rua Ipiranga em nosso saudoso tempo)” (in Gelbcke,
2004, p. 21).
Aqui é curioso notar dois pontos do trecho do relato. Primeiramente, que o casarão em que
morou, conforme seu pensamento, na atualidade está desvirtuado, isto é, marcado por um novo
uso, que deixou de ser uma habitação familiar e está virado em casa de pagode, ou coisa parecida,
conforme o juízo crítico da biografada. Vê-se que Olívia não concorda com a mudança de uso do

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espaço. Pagode65, talvez por ser um estilo musical oriundo do movimento negro e dos escravos,
associou-se desde a sua origem a classes mais baixas da sociedade, o que se choca bastante com a
realidade dos anos 1920 e 30 em Joinville, cidade em que à época havia o predomínio de imigrantes
alemães, suíços e noruegueses. Portanto, o preconceito está presente nessa fala, veladamente,
porém.
O outro ponto a ser destacado é o fato de o pagode caracterizar um aspecto cultural de
origem africana, conferindo a esse grupo uma identidade. Pensando aqui a questão da identidade
nacional, não podemos esquecer que esse campo não está isento de disputas nem de
imparcialidade. Ou seja, precisa-se ter cuidado com o que vai se propagar a respeito de determinado
grupo, tendo em vista que, pela tendência da homogeneização de um grupo social, todo aquele
conjunto pode ficar marcado por uma característica específica, entretanto que nem sempre reflete
a realidade dos fatos. Olívia questiona padrões culturais diversos da matriz europeia como o pagode,
por romper com uma hegemonia cultural e historicamente marcada.
Além disso, considerando que os europeus são vistos ao longo dos séculos como os
superiores e civilizados, servindo de modelo a ser seguido pelos demais, qualquer outro elemento
cultural originado em culturas que não estão em conformidade com as características ditas
civilizadas não deve ser multiplicado nem incentivado. É o caso das danças e das músicas do pagode,
derivadas das tradições africanas.
Foucault (1996) indaga o que há de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus
discursos proliferarem indefinidamente. O perigo não está no que é falado, porém na intenção com
que se fala. Afinal, nem sempre se retrata a realidade dos fatos, ou se rememora aquilo que se
acredita importante e que vale a pena ser repassado adiante, numa tentativa de moldar o futuro e
os indivíduos que dele farão parte. Se para tudo há uma intenção, seja ela positiva, seja negativa,
resta a nós, leitores, refletir sobre o que é dito para que o discurso não seja utilizado tal e qual um
instrumento de verdade e manipulação de poder.

Considerações

65
Pagode é um estilo musical parecido com samba, cuja origem remonta a cidade do Rio de Janeiro (RJ) em fins da
década de 1970. O termo pagode oriunda de festas que aconteciam nas senzalas de escravos negros e quilombos, à
época da escravidão no Brasil, e como vertente musical nasceu às margens dos acontecimentos musicais dos meios de
comunicação do país.
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É consenso entre os pesquisadores do campo do patrimônio cultural que a característica


principal e mais marcante de qualquer grupo social é a língua. Trata-se do primeiro elemento de
identificação de um grupo social e determinante da composição da identidade cultural. Por isso,
deve-se compreender que a língua confecciona a mentalidade do grupo a que pertence, pois vem
carregada de sentidos e símbolos próprios daquele grupo que dela faz uso. Um dos usos mais
comuns e relevantes da língua é a literatura, ou seja, o conjunto de obras literárias de reconhecido
valor estético de um país e transmissor de determinada visão de mundo.
Considerando que o discurso literário é um dos discursos com que Foucault se preocupa e
que a literatura consiste numa das formas de descrever memórias, moldando um dos pilares da
cultura nacional, buscou-se neste texto fazer a análise de uma obra do gênero textual biografia
levando-se em conta os procedimentos de controle do discurso descritos em A ordem do discurso,
de maneira a inferir como o discurso literário, exclusivamente a biografia, interfere, ou não, no
pensamento de determinado grupo social.
A obra escolhida para análise foi Primavera em pleno outono: a jovem Olívia faz 80 anos!, do
escritor Wilson Gelbcke. Perceberam-se as inferências que autor e biografada fazem a respeito de
cultura, identidade, imigração e memória na narrativa, que traça um panorama geral da vida de
Olívia até os seus 80 anos, contando suas histórias e a história da sua família.
Em muitos momentos ao longo da história do gênero biografia, o biografado passou a ser
cogitado como modelo de virtude e até mesmo como a representação da identidade nacional.
Assim, estranha-se quando a narrativa se dedica exclusivamente a contar a história da vida de uma
mulher, como foi o caso da obra selecionada aqui para análise, principalmente tendo essa mulher
vivido no século XX, período no qual as mulheres tinham papéis socioculturais limitados em razão
da prevalência do modelo familiar patriarcal.
Essa questão de gênero, por exemplo, apareceu por diversas vezes ao longo da análise da
biografia, talvez pelo fato de se tratar de uma obra escrita por um homem sobre uma mulher, o que
acaba revelando, mesmo que indiretamente, as diferenças de gênero impostas pela sociedade e
pela época, no caso da obra examinada, o século XX, quando a mulher era mais reprimida do que é
hoje em dia e tinha muito menos liberdade e poder de escolha. Assim, é necessário que o leitor

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perceba a construção das narrativas biográficas como uma arena de disputa e um campo de força
de agentes sociais desiguais (Thompson, 1989).
Foram verificados na obra, ainda, preconceitos velados e tentativas de apagamento de
parcelas da população, com o propósito, também velado, de manter a hegemonia e a “pureza” da
identidade regional, com o intuito de se forjar uma identidade regional e uma história singular para
o município de Joinville, que insiste em manter uma tradição única, embora já se tenham registros
de que o grupo de imigrantes e habitantes da cidade era muito mais variado. Veem-se claramente,
portanto, apagamentos a fim de sustentar a história oficial.
Pode-se concluir, então, que os desafios no campo da biografia vão na direção de repensar
modelos já consagrados, considerados por traços nem sempre originais para uma sociedade com
identidades e culturas diversas. Isso se reflete, por exemplo, em um olhar unilateral e linear tanto
pela história como pela literatura. Isso significa a permanência de narrativas biográficas que
raramente permitem transformações em seus significados, seus atores ou reconheça o caráter
mutante da cultura. De qualquer maneira, como bem aponta a voz dissonante de Florbela Espanca66
(2012), no seu poema “Ruínas”, os caminhos futuros são possíveis pelo contínuo reconstruir de
visões que se pensam como imutáveis.

Se é sempre Outono o rir das Primaveras,


Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

REFERÊNCIAS

AVELAR, Alexandre de Sá. A biografia como escrita da história: possibilidades, limites e tensões.
Dimensões, Vitória, v. 24, p. 157-172, 2010. Disponível em:
http://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/download/2528/2024. Acesso em: 17 mar. 2016.

ESPANCA, Florbela. Poemas seleccionados. Lisboa: Atlântico Press, 2012.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Franga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Loyola, 1996.

GELBCKE, Wilson. Primavera em pleno outono: a jovem Olívia faz 80 anos! Joinville: Letradágua,

66
Poetisa portuguesa. No início do século XX, foi uma das primeiras mulheres a frequentar o curso secundário. Além
de poetisa, foi tradutora, contista, professora de português e colaborou com inúmeros jornais e revistas.
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

2004.

GROTH, Marlise. Cenef: entidade faz a defesa da família. AN Cidade, Joinville, 19 mar. 1999.
Disponível em: http://www1.an.com.br/1999/mar/19/0cid.htm. Acesso em: 23 nov. 2016.

THOMPSON, Edward. Tradición, revuelta y conciencia de clase. Barcelona: Crítica, 1989.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

ST - 8
Patrimônio industrial e mundial:
estado da arte, perspectivas e desafios

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A VALORAÇÃO DO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO: uma análise comparativa das


Portarias N.º407/2010 e N.º17/2022 IPHAN
Mestra Vivian Letícia Busnardo Marques67 | UNIVILLE | vivianlbmarques@hotmail.com
Dr.ª Ilanil Coelho68 | UNIVILLE | ilanilcoelho@gmail.com

Introdução

No ano de 2007, a Lei 11.483, de 31 de maio de 2007, acaba por atribuir ao Iphan a
responsabilidade de administrar e preservar os bens móveis e imóveis, da extinta Rede Ferroviária
Federal SA - (RFFSA), desde que tenham comprovado valor histórico, artístico e cultural.
No ano de 2010, três anos após a Lei nº 11.483, de 2007, o Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional – (IPHAN) publica a Portaria n.º 407, de 2010, com objetivo de normatizar
alguns procedimentos “Dispõe sobre o estabelecimento dos parâmetros de valoração e
procedimento de inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, visando à proteção da
memória ferroviária, em conformidade com o art. 9º da Lei n.º 11.483/2007” (IPHAN, Portaria
nº407, 2010).
Através desta da Portaria nº 407, de 2010, o IPHAN institui no Art.1º” Institui no âmbito do
IPHAN, a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, de acordo com o artigo 9º, da Lei n.º 11.483/2007,
“onde serão inscritos todos os bens reconhecidos como detentores de valor artístico, histórico e
cultural” e informa ainda que competirá à “Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário” a
gestão (IPHAN, Portaria nº 407, 2010, grifo nosso).
A inserção de um bem patrimonial ferroviário, oriundos da extinta RFFSA e inscritos na Lista
do Patrimônio Cultural Ferroviário, serão assim protegidos, conforme explica o Art. 2º “Os bens
inseridos na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário gozam de proteção”, ou seja à partir do
momento da inscrição estes bens estarão protegidos pelo IPHAN para “evitar seu perecimento ou

67
Doutoranda em Patrimônio Cultural e Sociedade. Universidade da Região de Joinville – (UNIVILLE), 2021-2024. Mestre
em Comunicação e Linguagens Midiáticas - UTP, 2009. Especialista em Conservação de obras sobre papel – UFPR, 2001.
Membro do grupo de pesquisa Cidade, Cultura e Diferença – GPCCD/UNIVILLE. Docente da UNESPAR/Embap. E-mail:
vivianlbmarques@hotmail.com

68
Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2010) e Pós-doutora pela Universidade de
Coimbra, em Portugal (2018). Docente/Orientadora do PPG em Patrimônio Cultural e Sociedade/UNIVILLE. Líder do
grupo de pesquisa Cidade, Cultura e Diferença – GPCCD/UNIVILLE.E-mail: ilanilcoelho@gmail.com
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sua degradação, apoiar sua conservação, divulgar sua existência e fornecer suporte a ações
administrativas e legais de competência do poder público” (IPHAN, Portaria nº 407, 2010).
O IPHAN, neste momento institui Comissões, para gestão e preservação do patrimônio
ferroviário, como no Art. 3º, “a Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário, para fins
de aplicação do art. 9º da Lei n.º 11.483/ 2007 (IPHAN, Portaria nº 407, 2010).
Esta Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário (CAPCF) terá como
atribuição, no § 1º, de “decidir acerca do valor histórico, artístico e cultural de bens móveis e
imóveis”, para na sequência fazer valer os instrumentos de proteção. Aponta ainda no § 2º e § 3º
que a comissão será presidida pelo “Diretor do Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização
– Depam, seus coordenadores e representantes por estes designados” (IPHAN, Portaria nº 407,
2010).
No Art. 4º, trata de quais bens são passíveis de inclusão na Lista do Patrimônio Cultural
Ferroviário “os bens móveis e imóveis oriundos da extinta RFFSA”. Para que sejam passíveis de
inclusão na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, devem seguir algum destes critérios,

I - Que apresentarem correlação com fatos e contextos históricos ou culturais


relevantes, inclusive ciclos econômicos, movimentos e eventos sociais, processos
de ocupação e desenvolvimento do País, de seus Estados ou Regiões, bem como
com seus agentes sociais marcantes; II - Portadores de valor artístico, tecnológico
ou científico, especialmente aqueles relacionados diretamente com a evolução
tecnológica ou com as principais tipologias empregadas no Brasil a partir de meados
do século XIX até a década de 1970; III - Cujo intuito de valoração cultural seja
objeto de manifestação individual ou coletiva de pessoa física ou jurídica, pública
ou privada, desde que devidamente justificada, podendo ser, inclusive, motivada
por seu valor simbólico (IPHAN, Portaria nº 407, 2010, grifo nosso).

A Lista do Patrimônio Ferroviário formulada em 2010, pela Portaria n.º 407, IPHAN, cita a
Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário (CAPCF) e a figura do Diretor do
Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização – (DEPAM) para análise dos bens ferroviários.
Recentemente, em 2022 o IPHAN publica a Portaria n.º 17, de 29 abril de 2022, a qual dispõe
sobre os critérios de valoração e o procedimento de inscrição de bens na Lista do Patrimônio
Cultural Ferroviário, visando à proteção da memória ferroviária, em conformidade com o art. 9º, da
Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007.

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O Art. 1º “visa estabelecer os ‘critérios de valoração e o procedimento de inscrição na Lista


do Patrimônio Cultural Ferroviário de todos os bens, móveis ou imóveis, oriundos da extinta Rede
Ferroviária Federal S/A, reconhecidos como detentores de valor artístico, histórico e cultural”,

§1º A inclusão de bens na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, instituída pela


Portaria nº 407, publicada no Diário Oficial da União em 21 de dezembro de 2010,
passa a ser regida por esta portaria. §2º Compete ao Departamento de Patrimônio
Material e Fiscalização - DEPAM a gestão da Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário
(IPHAN, Portaria N.º 17, 2022).

Segundo IPHAN, “A gestão desse acervo constitui uma nova atribuição do Iphan e, para
responder à demanda, foi instituída a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, por meio da Portaria
Iphan nº 17/2022, com 591 bens inscritos”, a avaliação para inscrição na LPCF,

[...] os bens são avaliados pela equipe técnica da Superintendência do Estado onde
estão localizados e, posteriormente, passam por apreciação do departamento de
patrimônio material e fiscalização, cuja decisão é homologada pela Presidência do
Iphan. Os bens não operacionais são transferidos ao Instituto, enquanto bens
operacionais continuam sob responsabilidade do DNIT, que atua em parceria com
o Iphan visando à preservação desses bens. Esse procedimento aplica-se,
exclusivamente, aos bens oriundos do espólio da extinta RFFSA. Disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/127. Acesso em 28 de agosto de
2023.

Metodologia

A metodologia escolhida para este artigo foi a análise comparativa, através da comparação
das portarias publicadas pelo IPHAN, para com a proteção do patrimônio da extinta RFFSA.
Tabela 01 - Comparação da Portaria N.º 470, de 2010 e a Portaria N.º 17 de 2022.

IPHAN Portaria N. 470, de 2010 IPHAN Portaria N.º 17 de 2022.

OBJETIVA: normatizar procedimentos e


estabelecer parâmetros de valoração para

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inscrição na Lista do patrimônio Cultural DISPÕE: sobre os critérios de valoração e


Ferroviário – (LPCF). procedimentos para inserção na Lista do
patrimônio Cultural Ferroviário – (LPCF).

INSTITUI: Lista do patrimônio Cultural PERMANECE: Lista do patrimônio Cultural


Ferroviário – (LPCF). Ferroviário – (LPCF).
INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E DE VALORAÇÃO,
INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO: Determina que a POIS ESPECIFICA O EFEITO DA VALORAÇÃO: no
LPCF é um instrumento de proteção aos bens da Art. 22, “Os bens inseridos na Lista do
extinta RFFSA. Patrimônio Cultural Ferroviário gozam de
proteção, com vistas a evitar seu perecimento
ou sua degradação, apoiar sua conservação,
divulgar sua existência e fornecer suporte a
ações administrativas e legais de competência
do poder público”.

PROPONENTE: Não define quem pode propor PROPONENTE: Define quem pode ser
processos de pedido de valoração dos bens da proponente dos processos de valoração: “Toda
extinta RFFSA. Relata apenas que o IPHAN pessoa física ou jurídica, de direito público ou
emitirá um parecer técnico a respeito dos privado, é parte legítima para provocar a
pedidos. instauração do processo de valoração”.
PEDIDO DE VALORAÇÃO: “será dirigido ao
NÃO DEFINE. Superintendente do Iphan na Unidade da
Federação onde está localizado o bem”,
No §1º “Quando o bem estiver localizado em
mais de uma Unidade da Federação, o
interessado poderá dirigir o pedido de valoração
a qualquer Superintendência com circunscrição
sobre a área geográfica do bem” e no “§2º Os
pedidos de reconhecimento de valor poderão
ser protocolizados de forma física nas unidades
do Iphan ou através dos meios digitais do

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governo federal no endereço eletrônico


www.gov.br/iphan”. (IPHAN, Portaria N.º 17,
2022.

INSTITUI : a Coordenação Técnica do Patrimônio ALTERA: “os bens são avaliados pela equipe
Ferroviário – (CTPF), para gerenciar os bens técnica da Superintendência do Estado onde
móveis e imóveis da extinta RFFSA. estão localizados e, posteriormente, passam por
apreciação do departamento de patrimônio
material e fiscalização, cuja decisão é
homologada pela Presidência do Iphan. Os bens
não operacionais são transferidos ao Instituto,
enquanto bens operacionais continuam sob
responsabilidade do DNIT, que atua em parceria
com o Iphan visando à preservação desses bens.
Esse procedimento aplica-se, exclusivamente,
aos bens oriundos do espólio da extinta RFFSA”.
Aportaria não fala mais sobre a Comissão
Técnica do Patrimônio Ferroviário – (CTPF).
BENS PASSÍVEIS DE INCLUSÃO NA LPCF: amplia
BENS PASSÍVEIS DE INCLUSÃO NA LPCF: os bens os procedimentos: bens que “apresentam
que tenham valores: artístico, histórico, cultural, correlação com fatos e contextos históricos ou
tecnológico ou científico e valor simbólico. culturais relevantes, inclusive ciclos econômicos,
movimentos e eventos sociais, processos de
ocupação e desenvolvimento do País, de seus
Estados ou Regiões, bem como com seus
agentes sociais marcantes”; II – “portadores de
valor artístico, tecnológico ou científico,
especialmente aqueles relacionados
diretamente com a evolução tecnológica e
industrial ou com as principais tipologias
empregadas no Brasil a partir da implementação
da ferrovia até a extinção da Rede Ferroviária

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Federal S.A”; III – “cujo intuito de valoração


cultural seja objeto de manifestação individual
ou coletiva de pessoa física ou jurídica, pública
ou privada, desde que devidamente justificada,
podendo ser, inclusive, motivada por seu valor
simbólico”. Parágrafo único. “Os bens passíveis
de valoração serão analisados e avaliados,
isoladamente ou em conjunto”. (IPHAN, Portaria
N.º 17, 2022).
EMISSÃO DE CERTIFICADO DE VALOR: Amplia os
EMISSÃO DE CERTIFICADO DE VALOR: critérios, bens diretamente relacionados: “bom
A emissão do certificado de valor, está estado de conservação”, se há “presença de
diretamente relacionada ao “bom estado de riscos à existência do bem”, se a “viabilidade de
conservação” do bem e sua possibilidade de acesso ao bem que permita a continuidade dos
“fruição”. estudos” e ainda a “ viabilidade de acesso físico
ao bem pela sociedade”, com o propósito da
fruição.

NÃO DEFINIE OS BENS NÃO PASSÍVEIS DE BENS NÃO PASSÍVEIS DE VALORAÇÃO E


VALORAÇÃO. INSCRIÇÃO NA LPCF: Define que os bens da
extinta RFFSA, como “terrenos, trechos de
terrenos e glebas sem benfeitorias”, não serão
passíveis de valoração.

NÃO CONSTA ESTA DETERMINAÇÃO. DETERMINA: que os bens da extinta RFFSA


podem ser avaliados isoladamente ou em
conjunto.

NÃO DEFINE INSTRUÇÕES PARA O PROCESSO DE DETERMINA INSTRUÇÕES PARA O PROCESSO DE


PEDIDO DE VALORAÇÃO. VALORAÇÃO: deve conter, “I. Identificação do
proponente; II. Denominação e endereço do
bem; III Nome do proprietário ou responsável

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

pelo bem; IV. Descrição do bem; V. Justificativa


apontando o valor do bem; VI Fotografia do
bem.
INSTRUÇÃO TÉCNICA QUANTO A ATUAÇÃO DO
NÃO CONSTA INSTRUÇÃO TÉCNICA DETALHADA IPHAN. I – “realização de vistoria inicial visando
PARA ATUAÇÃO DO IPHAN FRENTE AOS avaliar os seguintes elementos: a) existência do
PROCESSOS. bem; b) estado de conservação e preservação; c)
O Art. 5º” trata dos processos administrativos presença de riscos à existência do bem; d)
para inscrição na Lista do Patrimônio Ferroviário, viabilidade de acesso ao bem que permita a
relatando no § 1º e que o processo deve conter continuidade dos estudos; e e) viabilidade de
“parecer técnico que ateste as reais condições acesso físico ao bem pela sociedade”; II –
de apropriação social do bem, em especial “estudos técnicos: obtenção de material
quanto a sua segurança, conservação e uso fotográfico, iconográfico, textual entre outros
compatível com a preservação da Memória sobre o bem”.
Ferroviária”.

NÃO INFORMA O SISTEMA DE GESTÃO. INFORMA A EXISTÊNCIA DO SISTEMA DE


GESTÃO: O sistema de gestão será o “Sistema
Integrado de Conhecimento e Gestão – SICG” e
processo será “enviado ao DEPAM para
manifestação da unidade responsável.

NÃO ESPECIFICA DO ATO DE DECLARAÇÃO DE VALOR, no Art. 17


“A decisão de valoração do bem será proferida,
mediante despacho, pelo(a) Diretor(a) do
Departamento de Patrimônio Material e
Fiscalização – DEPAM” e no Art. 18 “Caberá ao(à)
Presidente do Iphan a homologação da decisão
favorável à valoração do bem, através da
emissão de Termo de Homologação” E demais :
“I - publicação do extrato de homologação no
Diário Oficial da União, no prazo de até 30

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(trinta) dias e II – “expedição de ofícios,


informando os dados do bem valorado,
conforme a natureza do bem”.
A PORTARIA DETALHA: 1) DECLARAÇÃO DE NÃO
REAVALIAÇÃO DA VALORAÇÃO, A QUALQUER VALOR, 2) REAVALIAÇÃO DO BEM, 3)
TEMPO: DESVALORAÇÃO.
Art. 9º “Os bens que forem objeto do Art. 4º 1) DECLARAÇÃO DE NÃO VALOR: no Art. 26
poderão ter sua valoração reavaliada a qualquer “A decisão de não valoração do bem
tempo, caso a justificativa apresentada será proferida, mediante despacho,
inicialmente ou os compromissos acordados, pelo(a) Diretor(a) do Departamento de
acerca do uso e conservação adequados, não Patrimônio Material e Fiscalização –
sejam mais condizentes com a preservação da DEPAM”.
Memória Ferroviária”. (IPHAN, Portaria nº 407, 2) REAVALIAÇÃO: Na continuidade do
2010). processo de não valoração o Art. 28,
determina o arquivamento do processo
e a emissão de declaração de não valor,
bem como no Art. 29 informa que “O
processo de valoração arquivado poderá
ser reaberto, de ofício, ou mediante
pedido de nova avaliação, desde que
sejam apresentados elementos novos
não considerados na análise anterior”.
(IPHAN, Portaria N.º17 DE 2022).
3) DESVALORAÇÃO DE BEM: o Art. 30
“Cabe à Superintendência ou ao
Departamento de Patrimônio Material e
Fiscalização, de ofício, ou a pedido,
instaurarem processo de desvaloração
de bens nas seguintes hipóteses”, I –
“perda do objeto, descaracterização e
perda dos atributos que ensejaram a
valoração”; II – “revisão, de ofício, ou a

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

pedido da extensão da valoração ou dos


atributos e valores descritos no parecer
de valoração”.
REVOGA: A PORTARIA IPHAN N. 17/2022 revoga
a PORTARIA IPHAN N. 407/2010.

Fonte: Elaborado pela autora, 2023.

Considerações finais

A pesquisa demonstra que o grande impulso à preservação do patrimônio ferroviário foi com
a promulgação da Lei Nº 11.483/2007, sobre o término do processo de liquidação e extinção e ainda
a revitalização do setor ferroviário, deixando claro que o IPHAN, ficou encarregado de “receber e
administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta
RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção”. A partir desta determinação o IPHAN
avaliou e registrou em seu livro tombo muitos bens da extinta RFFSA.
Em 2010, o IPHAN publica a Portaria n.º 407, com objetivo de normatizar alguns
procedimentos, e parametriza a valoração e o procedimento de inscrição na Lista do Patrimônio
Cultural Ferroviário – (LPCF), para proteger a memória ferroviária. Depois da inscrição inicia-se o
processo de gestão destes bens, após classificação em bens: NOP – Não Operacionais; OP –
Operacionais; FC – Fundo contingente e RT – Reserva Técnica, define-se para onde serão
transferidos e quais órgãos ficarão responsáveis. Pela narrativa dos artigos da Portaria n.º 407/2010,
um dos pontos importantes para o atestado de valoração é o estado de conservação, indissociável
do poder de fruição do bem patrimonial. O bem deve estar em bom estado de conservação, pois
bens com danos físicos perdem o valor. A portaria ainda prevê a reavaliação do bem e o bem pode
ser desvalorado. O IPHAN, criou uma comissão para avaliar os bens da extinta RFFSA, A Comissão
de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário – (CAPCF).
Doze anos depois da Portaria n.º 410/2010 IPHAN, foi publicada a Portaria nº 17, de 29 de
abril de 2022 IPHAN, onde define os critérios de valoração e o procedimento de inscrição de bens
na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário par aos bens móveis e imóveis, mesmo depois de ter
inscrito bens na lista do patrimônio Ferroviário desde 2007, instituído a portaria em 2010, o IPHAN

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

sentiu a necessidade de definir melhor os critérios de inclusão na Lista do Patrimônio Cultural


Ferroviário. Incluindo em seus artigos regras e critérios de admissibilidade e instauração e processos
de valoração, definiu os bens passíveis e não passíveis de inclusão na LPCF, definiu as informações
necessárias para incluir no processo de valoração, determinou prazos para os deferimentos,
indeferimentos e arquivamentos. Forneceu também instrução técnica para gerir os processos como
verificação do estado de conservação, presença de riscos à existência do bem, a acesso ao bem que
permita a continuidade dos estudos, acesso físico ao bem pela sociedade, para fruição e ainda
estudos técnicos sobre o bem (pesquisa e material fotográfico). A portaria ainda definiu
procedimentos de análise técnica do bem, avaliação técnica da proposta de valoração para emissão
do atestado de valor e inscrição do bem na LPCF. A portaria deixa claro que agora a valoração é um
novo instrumento de proteção do IPHAN, aplicado aos bens da extinta RFFSA, e que estes efeitos de
valoração, fazem o bem ter proteção e devem ser conservados e restaurados, se necessário. A
portaria N. 17 de 2022, finaliza explicando quando o processo não é aprovado e como funciona a
declaração de não valor ou de desvaloração do bem e os prazos procedimentos para pedir nova
avaliação.
Pode-se observar que foi revogada a Portaria IPHAN nº 407, de 21 de dezembro de 2010, ou
seja a portaria da criação da Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, pois a Portaria IPHAN n. 17 de
2022, amplia, caracteriza e especifica os critérios de valoração do patrimônio ferroviário e nota-se
que agora a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário ainda é um instrumento de proteção, porém
fica claro, que agora é também um instrumento de valoração do patrimônio ferroviário. O IPHAN
cria um instrumento de valoração, no qual o patrimônio ferroviário, bens móveis ou imóveis da
extinta RFFSA, podem ser valorados, não valorados ou ainda desvalorados de acordo com seu
estado de conservação, perda de valor e perda da capacidade de fruição.
Nota-se que a Portaria n.º 407 de 2010 demonstrava a preocupação e a formulação de um
instrumento de proteção dos bens da extinta RFFSA, a LPCF e a Portaria N.º 17 de 2022, um
aprofundamento dos critérios para inscrição na LPCF e define a valoração, como um novo
instrumento do IPHAN, específica aos bens da extinta RFFSA.

REFERÊNCIAS

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Nº.
11.483/2007. Dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário, altera dispositivos da Lei n o 10.233,
de 5 de junho de 2001, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 2007. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11483.htm>. Acesso em: 01
out. 19.

IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Portaria Nº. 407/2010. Dispõe sobre
o estabelecimento dos parâmetros de valoração e procedimento de inscrição na Lista do
Patrimônio Cultural Ferroviário, visando à proteção da memória ferroviária, em conformidade com
o art. 9º da Lei n.º 11.483/2007. 2010. Disponível em: <
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/portaria4072010alteradaportaria_1722016.pdf>.
Acesso em: 01 out. 19.

IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Portaria Nº 17/2022. Dispõe sobre
os critérios de valoração e o procedimento de inscrição de bens na Lista do Patrimônio Cultural
Ferroviário, visando à proteção da memória ferroviária, em conformidade com o art. 9º, da Lei nº
11.483, de 31 de maio de 2007. Disponível em:https://www.gov.br/iphan/pt-br/centrais-de-
conteudo/legislacao/atos-normativos/2022/portaria-iphan-no-17-de-29-de-abril-de-2022.Acesso
em: 09 set 2022.

IPHAN. Patrimônio Ferroviário. Disponível: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/127.


Acesso em 28 de agosto de 2023.

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ENCONTRO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR DE PATRIMÔNIO CULTURAL
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

O CASE DA ANTIGA ARMASUL COMO REPRODUÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL


NA REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE
Claudiâni Guimarães Vargas Gonçalves | Universidade La Salle | claudiani.vargas0230@unilasalle.edu.br
Moisés Waismann | Universidade La Salle | moises.waismann@unilasalle.edu.br

Introdução

Este estudo está relacionado à linha de pesquisa Memória e Gestão Cultural do Programa de
Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade La Salle e faz parte de um
recorte da Dissertação de Mestrado intitulada “Memória empresarial do Banrisul Armazéns Gerais
S.A. (Bagergs) e a sua contribuição para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul”. Nesta
comunicação em específico, busca-se relacionar o tema da memória social com os conceitos do
patrimônio industrial às atividades econômicas produzidas pela Armasul (atual Bagergs) quando da
sua fundação, na década de 1950. Com o intuito de estabelecer armazéns gerais para depósitos,
guarda, beneficiamento e conservação de mercadorias, as atividades da Armasul foram
extremamente importantes para atender uma demanda crescente da industrialização brasileira e
do estado do Rio Grande do Sul, responsável pelo papel de fornecedor de bens de consumo à nível
nacional. Sobretudo, as atividades da instituição se organizaram para atender um circuito produtivo
da época, remetendo-se ao conceito de patrimônio industrial e ao valor cultural, dos quais são
fundamentais para a construção da memória social e coletiva. Para dar conta desta comunicação,
utilizou-se como metodologia a análise de conteúdo a partir do corpus documental, incluindo
imagens e o levantamento bibliográfico, sendo o estudo de caráter descritivo e exploratório, num
campo qualitativo de pesquisa.

Metodologia

Esta pesquisa se enquadra no campo qualitativo e descritivo ao qual, segundo Gil (2008),
busca as várias formas de representação das vivências sociais no mundo e tem o objetivo de estudar
as características de um grupo. No caso da pesquisa exploratória, o autor contribui, pois diz que o
principal objetivo é esclarecer conceitos a partir de hipóteses pesquisáveis, além de envolver o
levantamento bibliográfico e documental (GIL, 2008).

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Neste estudo, também se aplica a pesquisa documental que, segundo Bardin (2021, p. 47)
‘’permite passar de um documento primário (em bruto) para um documento secundário
(representação do primeiro)’’, pois o objetivo é anunciar o documento em formato diferente do
original possibilitando a análise de conteúdo. Quanto ao acervo imagético aqui apresentado,
aproxima-se do entendimento de Mauad (2005) ao qual diz que a fotografia é uma fonte histórica
e também um produto cultural, uma vez que, quando alinhada com a narrativa, torna-se um meio
para rememorar o passado no presente e destacar referências culturais como acontecimentos,
vivências, histórias e memórias. Para ela, a imagem é um testemunho válido e “atesta a existência
de uma realidade” (MAUAD, 2005, p. 136).
Quanto ao corpus documental que deu origem a essa pesquisa, apresenta-se abaixo a
relação de documentos disponibilizados pela empresa:

Quadro 1 - Relação de documentos disponibilizados pela Armasul/Bagergs, dos anos 1946 a 2019

Fonte: GONÇALVES, C. G. V. Memória empresarial do Banrisul Armazéns Gerais S. A. (BAGERGS): e a sua


contribuição para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Canoas, RS: Ed. do Autor, 2021. Disponível em:
http://hdl.handle.net/11690/2559. Acesso em: 12 nov 2023.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Na sequência, é apresentado o capítulo da Revisão Teórica que dialoga com autores do


campo da memória social e do patrimônio industrial a fim de arquitetar o alicerce conceitual
necessário.

Revisão Teórica

No campo da memória social, o autor Paul Ricoeur (2007) diz que não há diálogo sobre o
passado e presente que seja neutro, pois estes exprimem um sistema de atribuições de valores.
Logo, quando há um vínculo do conhecimento do passado com os anseios do presente, é possível
uma reelaboração do mundo por meio de uma memória formalizada. Para Michael Pollak (1992), a
memória é um fato construído socialmente que envolve manter a coesão interna e defender as
crenças que um grupo tem em comum, a memória seria um produto social, ou seja, “[...] um
fenômeno construído coletivamente submetido a flutuações, transformações, mudanças
constantes” (POLLAK, 1992, p. 201).
Ainda, a memória pode ser percebida em um determinado espaço. Quanto ao conceito
deste, Maurice Halbwachs (2006, p.143) diz que “não há memória coletiva que não se desenvolva
num quadro espacial”. Ou seja, o passado só pode ser recuperado se ele for conservado em um
espaço particular onde estamos inseridos.
Considerando o campo do patrimônio industrial, Ferreira (2009) afirma que este trata de um
local de memória onde os vestígios das atividades (que muitas vezes deixam de existir ou de ter
importância) estão presentes, indo além de um lugar de trabalho. Com relação aos bens ligados às
atividades produtivas, Kühl (2018, p. 46) diz que “é necessário fazer um estudo histórico-
documental e iconográfico, estudo analítico-descritivo e também comparativo, para entender as
tipologias e a transformação dos vários setores industriais” e que “preservar a memória do trabalho
é essencial”.
Ainda, Meneguello (2005, p. 131) compreende o patrimônio como “a dimensão das
estruturas industriais a serem preservadas (...)”. Para a autora (2021, p. 92), “pensar sobre os
espaços de trabalho implica em entender todas as suas dimensões materiais e imateriais”, e quando
há uma rememoração desse trabalho, “a memória edificada ou não, pode se transformar em
patrimônio industrial” (MENEGUELLO, 2021, p. 93).

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Trajetória da Armasul

Neste capítulo é apresentada, em linhas gerais, a empresa estudada, suas características e


principais marcos. Salienta-se que as fontes imagéticas expostas nesta comunicação fazem parte da
Dissertação de Mestrado, ao qual estão aqui devidamente referenciadas.
Os “Armazéns Gerais Sul-Riograndenses S.A.” (Armasul) hoje é o Banrisul Armazéns Gerais
S.A. (Bagergs) e foi fundado em 12 de novembro de 1953, com o objetivo de estabelecer armazéns
gerais para depósitos, guarda, beneficiamento e conservação de mercadorias. Assim, as atividades
empresariais da instituição tiveram início em 1º de dezembro de 1953, onde a sublocação de
prédios, terreno e aparelhagens de uma das instituições acionistas, a Beira Rio Armazenagens S.A
(Brasa), possibilitou o início imediato das operações, conforme trecho da primeira Ata de
Assembleia:

Figura 1 - Data de início das operações da empresa

Fonte: GONÇALVES, C. G. V. Memória empresarial do Banrisul Armazéns Gerais S. A. (BAGERGS): e a sua


contribuição para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Canoas, RS: Ed. do Autor, 2021. Disponível em:
http://hdl.handle.net/11690/2559. Acesso em: 12 nov 2023.

A Brasa sublocou um total de quatro prédios, que operaram como armazéns, e um terreno
em zona comercial, de fácil acesso e que era considerada uma das mais importantes vias na cidade
de Porto Alegre/RS. Também foram locadas aparelhagens e comprados móveis e utensílios deste
acionista para o início das atividades. A extensão total somava 8.590 m2 de área descoberta e mais
4.000 m2 de área coberta, o que possibilitava a armazenagem de 600.000 volumes de cargas. O
local estratégico fazia divisa com o Rio Guaíba e estava localizado na Avenida Voluntários da Pátria,

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aos fundos da Avenida Missões, em Porto Alegre/RS. A foto abaixo se refere às vistas aéreas
próximas à localidade.

Figura 2 - Fundos da rua Voluntários da Pátria em 1956

Fonte: GONÇALVES, C. G. V. Memória empresarial do Banrisul Armazéns Gerais S. A. (BAGERGS): e a sua


contribuição para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Canoas, RS: Ed. do Autor, 2021. Disponível em:
http://hdl.handle.net/11690/2559. Acesso em: 12 nov 2023.

As operações ofertadas pela “Armasul” se estendiam ao recebimento e moagem de açúcar,


engenho de arroz, descasque, esmaltação e secagem de arroz e cereais, polimento de feijão,
moagem de farinha de mandioca, imunização de cereais e câmara de expurgo, além da
armazenagem simples, conforme trecho da Ata de Assembleia a seguir:

Figura 3 - Descrição das atividades iniciais da empresa

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Fonte: GONÇALVES, C. G. V. Memória empresarial do Banrisul Armazéns Gerais S. A. (BAGERGS): e a sua


contribuição para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Canoas, RS: Ed. do Autor, 2021. Disponível em:
http://hdl.handle.net/11690/2559. Acesso em: 12 nov 2023.

A primeira Assembleia com os acionistas da “Armasul” ocorreu na Associação Comercial de


Porto Alegre, no Palácio do Comércio, lugar que se perpetuou nos anos seguintes. Ao longo dos
anos, a empresa passou por algumas transformações e alterações de escopo profissional, entre eles
os seguintes marcos são destacados em sua trajetória:
1) Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul) como acionista majoritário (75% das
ações) a partir de 24 de fevereiro de 1961.
2) Alteração da Razão Social para “Cia. de Armazéns Gerais do Estado do Rio Grande do Sul
- CAGERGS”, a partir de 6 de maio de 1961.
3) Autorização para instalação de Depósito Alfandegado Público – DAP, via Ato Declaratório
nº 28, de 26 de setembro de 1977.
4) Autorização para atuar como Depósito Alfandegado Público em 1978.
5) Alteração de endereço para cidade de Canoas/RS em 1982.
6) Alteração da Razão Social para "Banrisul Armazéns Gerais S.A. - BAGERGS" em 29 de abril
de 1982, mantendo a natureza jurídica como sociedade anônima.
Na sequência, são apresentados alguns dos Resultados apurados durante a pesquisa de
Mestrado.

Resultados

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A Armasul foi constituída para atender uma demanda crescente da industrialização


brasileira, onde o estado do Rio Grande do Sul reafirmou o seu papel como fornecedor de bens de
consumo coloniais ofertados pelo mercado agrícola rio-grandense. As atividades da empresa foram
extremamente importantes para atender uma demanda crescente da industrialização brasileira e
do estado do Rio Grande do Sul, responsável pelo papel de fornecedor de bens de consumo à nível
nacional.
Sua justificativa aparece em trecho no Relatório da Administração correspondente ao ano
de 1953 do Banrisul, onde se cogitava oferecer, ao público, títulos relativos ao capital dos Armazéns
Gerais em Porto Alegre, empresa que, segundo o Banco, ocuparia “lugar de relevo entre as grandes
iniciativas que visam a expansão da economia gaúcha” (RELATÓRIO DO BANCO DO R. G. DO SUL,
1953-1956, p. 9).

Figura 4 - Trecho do Relatório da Diretoria Banrisul correspondente ao ano de 1953

Fonte: GONÇALVES, C. G. V. Memória empresarial do Banrisul Armazéns Gerais S. A. (BAGERGS): e a sua


contribuição para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Canoas, RS: Ed. do Autor, 2021. Disponível em:
http://hdl.handle.net/11690/2559. Acesso em: 12 nov 2023.

A instituição caracterizou-se como uma empresa de logística, atendendo um circuito


produtivo da época, indo, este, ao encontro do conceito de patrimônio industrial, que está atrelado
ao valor histórico visível em entrepostos e armazéns, conforme relata a Carta de Nizhny Tagil (2003),
e ao valor cultural material e imaterial trazidos pela Carta de Sevilla (2018) como parte essencial da
memória coletiva, tendo como função tornar essas memórias acessíveis ao público.
O objetivo era auxiliar os produtores agrícolas do estado no desafogamento do montante de
mercadorias que necessitavam ser armazenadas em depósitos de terceiros, principalmente por
estarem sem espaço físico próprio ou por procurarem custos menores dos exigidos para deixar as
mercadorias armazenadas em terminais de cargas no porto de Porto Alegre, onde as taxas
portuárias, em zona primária, são sempre mais elevadas. Logo, a armazenagem simples ofertada
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

pela Armasul, na época, possibilitava o depósito das mercadorias suprindo uma necessidade do
mercado, que enfrentava o aumento nas exportações refletido pelo vulto das safras agrícolas e o
beneficiamento da produção cerealista do estado.
Inclusive, observações colhidas no interior do estado, nas cidades de Pelotas e Rio Grande,
que faziam parte desse setor, apoiaram a constituição da empresa, a qual a construção de futuros
armazéns, nos anos seguintes, e a aderência de maquinários também direcionaram para o
beneficiamento da produção rural do território rio-grandense, além de facilitar no transporte
rodoviário, pois os armazéns permitiam que as mercadorias ficassem mais próximas das saídas do
Rio Grande do Sul para o Sudeste, tanto por via marítima como terrestre.
A seguir, são apresentadas as Considerações Finais deste recorte.

Considerações Finais

A constituição da Armasul, embora distinta da atual Bagergs, foi de extrema importância


para o estado do Rio Grande do Sul na década de 1950, auxiliando, através das suas atividades
produtivas da época, a construção da industrialização à nível nacional, tendo um papel fundamental
como fornecedor agrícola e remetendo seu escopo ao campo do patrimônio industrial e da memória
social. Neste sentido, é essencial o entendimento quanto à relevância de empresas intermediárias
como a Armasul para a sociedade e para a economia, sendo imprescindível reproduzir suas
memórias como forma de preservação e divulgação da sua identidade empresarial e social.
Assim, destacou-se, nesse estudo, a importância da Armasul (atual Bagergs) para o
desenvolvimento do estado durante esse período de transformação da economia gaúcha, uma vez
que ela representava uma empresa intermediária que recebia as safras de produtores e, por meio
do sistema logístico, possibilitava a industrialização.
A partir da pesquisa de Mestrado também se confeccionou um livro em formato de E-book,
com o intuito de ser um meio para organizar, manter e divulgar a empresa para a sociedade. O
material é composto por textos e imagens, trazendo uma exposição de linha do tempo, onde é
possível perceber a evolução do estado do Rio Grande do Sul e grandes marcos da economia ao
longo do mesmo período em que a Armasul/Bagergs se estabiliza na Região Metropolitana de Porto
Alegre e se desenvolve. O produto foi publicado pela Editora Unilasalle em 2022 e também está

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disponível no Diretório Acadêmico da Universidade, podendo ser consultado pelo link <https://svr-
net20.unilasalle.edu.br/handle/11690/2559>. Abaixo, segue a foto da capa do livro:

Figura 5 - Capa do E-book (produto técnico oriundo do Mestrado Profissional em Memória Social e Bens
Culturais da Universidade La Salle)

Fonte: GONÇALVES, C. G. V. Memória empresarial do Banrisul Armazéns Gerais S. A. (BAGERGS): e a sua


contribuição para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Canoas, RS: Ed. Unilasalle, 2022. Disponível em:
https://sites.google.com/unilasalle.edu.br/editora-unilasalle/e-books-gratuitos/mem%C3%B3ria-
empresarial-do-banrisul-aemaz%C3%A9ns-gerais-s-a-bagergs?authuser=0. Acesso em: 12 nov 2023.

Por fim, percebeu-se que as atividades da empresa atreladas ao circuito econômico e


produtivo do estado integram o que hoje se conceitualiza como patrimônio industrial, onde a
importância e a contribuição dessas empresas intermediárias para a sociedade necessitam ser
rememoradas e divulgadas, de forma a conservar sua identidade social, evitando que suas
memórias sejam apagadas. Memórias, essas, que formam parte dos mundos do trabalho, referindo-
se ao legado produtivo, ou seja, representam o patrimônio industrial do estado. Como bem aborda
a Carta de Sevilla de 2018, a manutenção e a conservação do patrimônio industrial são partes
essenciais da memória coletiva.

REFERÊNCIAS
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

BAGERGS. Apresentação Institucional. Disponível em:


http://www.bagergs.com.br/bmj/link/sitev2/Default.asp?Modulo=Institucional&Page=Apresentac
aoInstitucional. Acesso em: 1 jun. 2019.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

CENTRO DE ESTUDIOS ANDALUCES. Presentación de la Carta de Sevilla de Patrimonio Industrial,


2018. Disponível em: https://www.centrodeestudiosandaluces.es/noticias/presentacion-de-la-
carta-de-sevilla-de-patrimonio-industrial. Acesso em: 14 out. 2021.

FERREIRA, Maria Leticia Mazzucchi. Patrimônio industrial: lugares de trabalho, lugares de


memória. Revista Museologia & Patrimônio, v. 2, n. 1, jan./jun. 2009, p. 22-35. Disponível em:
<http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/43/23>.
Acesso em: 22 abr. 2022.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

GONÇALVES, C. G. V. Memória empresarial do Banrisul Armazéns Gerais S. A. (BAGERGS): e a sua


contribuição para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Canoas, RS: Ed. do Autor, 2021.
Disponível em: http://hdl.handle.net/11690/2559. Acesso em: 23 set 2023.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização: Problemas


Teóricos de Restauro. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2018.

MAUAD, Ana Maria. Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas
cariocas, na primeira metade do século XX. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.13. n.1. p.
133-174. jan.-jun. 2005.

MENEGUELLO, Cristina; RUBINO, Silvana B. Preservação do patrimônio industrial no Brasil. Oculum


Ensaios, v. 1, p. 125-132, 2005. Disponível em:
http://www.redalyc.org/pdf/3517/351732195010.pdf. Acesso em: 29 set. 2021.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v.5 n.10, 1992.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

TICCIH Brasil. Cartas Patrimoniais: Carta de Nizhny Tagil. 2003. Disponível em:
https://ticcihbrasil.com.br/cartas/carta-de-nizhny-tagil-sobre-o-patrimonio-industrial/.
Acesso em: 28 set. 2021.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

INTERVENÇÕES NO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL EM FLORIANÓPOLIS/SC

Bernardo Brasil Bielschowsky, Doutor em Geografia| IFSC | bernardo.brasil@ifsc.edu.br Karina Baseggio,


Esp. em História da Arte Moderna e Contemporânea| UFRJ | kbaseggio@gmail.com

Resumo

O presente trabalho procura levantar a questão da reutilização de espaços de valor históricos


e socialmente herdados para novas práticas socioespaciais. A partir do discurso de que essas novas
práticas socioespaciais podem redefinir os usos do território utilizado, diversas intervenções em
bens e conjuntos de valor patrimoniais estão em curso na cidade de Florianópolis/SC, especialmente
na área central da cidade. Esses espaços sofrem grande pressão do capital, por estarem localizados
estrategicamente em áreas nobres da cidade. É a partir dos discursos de reabilitação desses bens
patrimoniais “abandonados”, aliados aos novos usos de apelo turístico e a especulação imobiliária,
que esses empreendimentos receberam o aval do poder público e das instituições de preservação
e salvaguarda do patrimônio edificado. O objetivo deste trabalho é apresentar um pequeno estudo
de caso de dois empreendimentos situados na área central de Florianópolis, denominados Top
Vision (Antiga Fábrica de Bordados e Rendas Hoepcke) e Armazém Rita Maria (Antigos Armazéns da
Navegação Hoepcke e da Fábrica de Pontas Rita Maria), a partir da renovação do patrimônio
industrial esvaziado. Para isso, está sendo feito uma revisão bibliográfica sobre a produção e o
consumo do espaço urbano ressignificado a partir do modo de produção atual do sistema
capitalista, que traz à tona a mercantilização e financeirização desses espaços, alterando
significativamente seu valor de uso para valor de troca. Com a pesquisa de campo, foi constatado a
redefinição do território usado prioritariamente para o consumo e não mais socialmente produzido,
quando este passou a atender um público exclusivo, através das novas práticas socioespaciais e da
especulação imobiliária, perdendo assim a oportunidade de democratizar melhor o acesso coletivo
aos bens patrimoniais.

Palavras-Chave: Patrimônio Industrial; Reabilitação Urbana; Memória Social.

Introdução

Esse trabalho pretende demonstrar a preocupação com as recentes intervenções


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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

contemporâneas em bens patrimoniais a partir da análise de dois exemplares de patrimônio


industrial edificado significativos para a paisagem e a memória urbana da cidade de
Florianópolis/SC, pois estes retratam como o imigrante-empresário se apropriou do território e
estabeleceu um sistema de relações locais, constituindo assim uma identidade cultural, que estão
registrados na paisagem cultural e na memória coletiva local. Com as alterações na dinâmica urbana,
a globalização e a flexibilização da economia mundial, as empresas passaram por sucessivos
processos de reestruturação industrial que deixaram grande parte deste patrimônio edificado sem
utilização e, por isso, correndo o risco de deterioração e de desaparecimento. Como os processos
de substituição e deslocalização industrial se generalizam, a discussão sobre a importância da
preservação dessa paisagem ganha toda sua atualidade, pois as cidades brasileiras conhecem
rápidos processos substitutivos, decorrentes da fraqueza da legislação urbanística que permite uma
acelerada dinâmica do capital imobiliário.

Espaços de produção e a produção do espaço urbano para consumo

O quadro teórico a seguir aborda a temática entre espaços de produção e espaços urbanos,
a partir de como a lógica produtiva e a cultura organizam o espaço urbano, o meio e a paisagem,
constituindo uma identidade da sociedade com o ambiente construído. Esse importante patrimônio,
material e imaterial, está sendo ameaçado pela lógica da produção contemporânea por meio da
reprodução desse mesmo espaço, ameaçando assim não somente o patrimônio industrial edificado,
como também toda a memória urbana de uma coletividade. Por isso a academia deve ser crítica em
relação à produção deste espaço contemporâneo, não sendo apenas legitimadores das ideologias
propostas, mas sendo agente questionador e de importância fundamental na produção do espaço
da cidade contemporânea.
A discussão teórica inicia-se sobre como os espaços de produção organizam os espaços
urbanos a partir do pensamento que Lefèbvre, Castells e Milton Santos desenvolvem e conseguem
fazer uma espacialização sobre a cidade. Segundo estes autores, a organização espacial urbana se
desenvolve a partir das atividades de produção, visto que a concentração espacial ocorre a partir
do modo de produção capitalista, que reflete na dinâmica urbana das cidades. O pensamento de
Lefèbvre (1991) explica que a importância do espaço é dada pela dialética entre valor de uso e valor
de troca, que produz espaço social de usos e espaços abstratos de expropriação. O espaço continua
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

sendo um protótipo permanente do valor de uso, que se opõe às generalizações do valor de troca
na economia capitalista sob a autoridade de um Estado homogeneizador. Ao discutir sobre a
importância da preservação dos espaços industriais e suas diversas formas de influência,
principalmente nas relações sociais resultantes destes espaços, é necessário discutir também a
importância do valor de uso desses espaços para que não se tornem apenas mercadorias. Se os
espaços forem destinados somente à troca, ou seja, transformados em mercadoria, sua apropriação
e modo de uso será subordinado ao mercado, limitando seu uso às formas de apropriação privada,
cada vez mais restrita a lugares vigiados, normatizados, privados ou privatizados (LEFÈBVRE, 1972).
Claval (1999) comenta sobre a importância da cultura no desenvolvimento e alterações do
meio e da paisagem. Halbwachs (1990) desenvolve os seus conceitos sobre memória coletiva e a
importância da memória compartilhada para a formação de uma verdadeira memória urbana a
partir dos fatos sociais vivenciados no cotidiano da vida humana. Jeudy (1990) contribui nesse
mesmo sentido com a importância da valorização das memórias do social e introduz a discussão das
novas formas de preservação, onde os espaços devem ser restituídos e reapropriados para o
estabelecimento da identidade coletiva. Porém, a globalização da economia mundial e a
flexibilidade produtiva (HARVEY, 1992) são ameaças presentes ao acervo de patrimônio industrial
brasileiro, visto as formas de intervenção contemporâneas, através do modo de acumulação
especulativo e da financeirização de praticamente tudo, que espacializam as contradições no
território. É necessário cuidar com esses processos de renovação do patrimônio para atrair as
práticas de consumo contemporâneas, vinculadas ao turismo e aos supostos donos do poder, que
espacializam sua dominação territorial através dos processos de especulação imobiliária e
verticalização desenfreada, sem consideração com os bens patrimoniais, memória coletiva e a
paisagem local.
Manuel Castells, ao falar sobre a estrutura urbana, destaca a importância de não considerar
a cidade apenas como a projeção da sociedade no espaço. Os homens estabelecem relações sociais
determinadas, que dão ao espaço (bem como aos outros elementos da combinação) uma forma,
uma função, uma significação social. “Portanto, ele não é uma pura ocasião de desdobramento da
estrutura social, mas a expressão concreta de cada conjunto histórico no qual uma sociedade se
especifica” (CASTELLS, 1983, p.146).
A cidade se estrutura justamente entre o desejo da sociedade e o que é necessário para o

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processo de reprodução do capital. O espaço é o local de reprodução das relações sociais em nossa
sociedade, que não aparece na totalidade, mas fragmentado, tal e qual como a sociedade se
reproduz em nosso país. Essa fragmentação das classes sociais e do espaço é articulada por planos
econômicos, políticos e sociais que visam a passagem do processo de valor de uso para valor de
troca. Considerando que o espaço não deve ser apenas uma mercadoria e o cidadão não deve ser
apenas força de trabalho, o espaço geográfico como produção social que se materializa formal e
concretamente deve ser algo passível de ser apreendido, entendido e apropriado pela sociedade,
como condição para a reprodução da vida ao longo da história (LEFÈBVRE, 1991).
A preservação do patrimônio edificado e da memória urbana é contrária à lógica capitalista,
que pretende transformar o espaço e a cidade em mercadoria, sobrepondo-a somente ao valor de
troca em detrimento do seu real valor de uso. Para Lefèbvre (1991:4) a própria cidade é uma obra
que se opõe ao valor apenas de troca, pois a obra é valor de uso e o produto é valor de troca. A
cidade possui um conjunto significante, que apesar das sucessivas intervenções ou agressões na sua
paisagem, tem o potencial de reconstituir-se, como linguagem, a partir de seus referenciais
reconstruídos e evocar o passado de forma reflexiva, como ambiente de recuperação de uma
identidade social presente. Reconstituir a memória urbana de Florianópolis não significa apenas
valorizar as lembranças mortas ou individuais através de textos, imagens ou espetáculos teatrais.
Significa então, intervir nas ações de determinados sujeitos sociais, substituindo a fútil ocupação
intensiva e especulativa do solo pela preservação dos espaços que ainda representam uma
identidade, valorizando a memória urbana da coletividade e deixando-a viva, num processo cuja
lógica de mercado necessite do real valor de uso dessa obra que é a cidade.

Antiga Fábrica de Bordados e Rendas Hoepcke

Num conjunto arquitetônico de aproximadamente 4.000m², localizado na área central da


cidade, tombado como patrimônio histórico de Florianópolis, que abrigou por décadas a Fábrica de
Bordados e Rendas Hoepcke, foi proposto um grande complexo gastronômico e de entretenimento
com forte apelo turístico, com bares, cafés, restaurantes, sports bar, wine bar, supermercado e
espaço para eventos, denominado Top Market.

Figuras 01 e 02 - Imagens do interior do Antiga Fábrica de Bordados e Rendas Hoepcke

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Fonte: Autores (2023)

Além da transformação do espaço industrial em diversas espécies de praças de alimentação,


o restante do terreno foi altamente adensado e verticalizado, pois além das funções comerciais no
nível térreo com gabarito limitado pela altura da cobertura dos antigos galpões, foram autorizadas
a construção de 3 novas torres praticamente em cima dos galpões, com mais de 15 pavimentos
cada, com vista para o mar e ponte Hercílio Luz, denominado Top Vision.

Figuras 03 e 04 - Imagens do exterior do Antiga Fábrica de Bordados e Rendas Hoepcke

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Fonte: https://topmarketfloripa.com.br (2023)

A grande maioria dos apartamentos e estúdios serve para locação e rentabilidade, ou seja,
para investidores gerarem renda a partir da localização privilegiada na área central e com vista
panorâmica. Essas autorizações no terreno e entorno imediato do patrimônio tombado desde 1986
mostram como os “donos do poder” conseguem algumas negociações privilegiadas a partir da
“revitalização” do patrimônio e com a implantação de atividades e práticas voltadas ao turismo.

Antigos Armazéns da Navegação Hoepcke e da Fábrica de Pontas Rita Maria

Num conjunto arquitetônico de aproximadamente 2.000m², localizado na área central da


cidade, tombado como patrimônio histórico de Florianópolis, que a partir de 1895 abrigou os
armazéns onde eram armazenadas as cargas da Empresa Nacional de Navegação Hoepcke e a
Fábrica de Pontas de Paris Rita Maria, foi proposto um grande complexo gastronômico e de
entretenimento com forte apelo turístico, com bares, cafés, restaurantes, sports bar, wine bar e

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espaço para eventos, denominado Armazém Rita Maria.

Figuras 05 e 06 - Imagens ilustrativas do interior dos Antigos Armazéns Hoepcke

Fonte: www.hoepckeimoveis.com.br (2023)

Além da transformação do espaço industrial em diversas espécies de praças de alimentação,


o restante do terreno também foi altamente adensado e verticalizado, onde foram autorizadas a
construção de 4 novas torres, também praticamente em cima dos galpões, que variam entre 3, 4 e
10 pavimentos cada, com vista para o mar e ponte Hercílio Luz, denominado Centro Executivo Carl
Hoepcke.

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Figuras 07 e 08 - Imagens ilustrativas do exterior dos Antigos Armazéns Hoepcke

Fonte: www.hoepckeimoveis.com.br (2023)

São salas comerciais exclusivamente para locação e rentabilidade, ou seja, também para os
investidores gerarem renda a partir da localização privilegiada na área central e com vista
panorâmica. Essas autorizações no terreno e entorno imediato do patrimônio tombado desde 1986
novamente mostram como os “donos do poder” conseguem algumas negociações privilegiadas a
partir da revitalização do patrimônio e com a implantação de atividades e práticas voltadas ao
turismo.

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Figuras 09 e 10 - Imagens ilustrativas do exterior dos Antigos Armazéns Hoepcke

Fonte: www.hoepckeimoveis.com.br (2023)

Resultados e discussões

Com a restauração da Ponte Hercílio Luz, o espaço de estudo dessas duas intervenções
ganha ainda mais valor, onde o patrimônio é utilizado como desculpas para se higienizar o espaço
urbano através da substituição de uso e de público, contemplando ainda a verticalização dos

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espaços de entorno destas propriedades, causando impactos diretamente no entorno imediato e


na paisagem.
A grande maioria dos apartamentos e estúdios e todas as salas comerciais servem para
locação e rentabilidade, ou seja, para investidores gerarem renda a partir da localização privilegiada
na área central e com vista panorâmica. Essas autorizações no terreno e entorno imediato do
patrimônio tombado desde 1986 mostram como os “donos do poder” conseguem algumas
negociações privilegiadas a partir da “revitalização” do patrimônio e com a implantação de
atividades e práticas voltadas ao turismo.
Em ambos os casos a proposta é a praticamente a mesma: a conversão do seu espaço para
abrigar novos usos, de acordo com as demandas dos dias atuais, porém sem maiores características
inovadoras ou maior respeito ao seu passado, memória coletiva e paisagem. Estes espaços aos
poucos vão se tornando grandes espaços reprodutores da mesma lógica hegemônica de reprodução
do capital presente em qualquer espaço destinado ao consumo, com destaque para as famosas
praças de alimentação e a verticalização, que alteram seus usos e públicos, além de afetarem a
memória coletiva e a paisagem histórica.

REFERÊNCIAS

CASTELLS, M. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. CLAVAL, P. A geografia
cultural. Florianópolis: Editora da UFSC, 1999. HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo:
Vértice, 1990.

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São
Paulo: Loyola, 1992.

JEUDY, H-P. Memórias do Social. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. São Paulo: Editora Moraes, 1991.

. La vida contidiana em el mundo moderno. Madrid: Alianza, 1972.

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(DES)USOS DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL EM ITAJAÍ/SC: O CASO DA EX-FÁBRICA


DE TECIDOS RENAUX

Maykon Daniel Hundenski, Graduado em História | Universidade do Vale do Itajaí |


maykonhundenski@gmail.com
Yasmin Sayegh Al Kas, Graduada em História | Universidade de Brasília | mhin.yeh@gmail.com
Laura Faial Serpa, Graduanda em História | Universidade do Vale do Itajaí | laurafaserpa@gmail.com

Introdução

O patrimônio industrial é a representação material de um processo histórico e concreto da


configuração urbana através do trabalho, mas também o gerador de relações sociais expressas na
memória individual e coletiva, por sua vez atravessadas por questões identitárias (Rodrigues, 2010).
Entretanto, vista a inexistência de políticas públicas com noções mais ampliadas para a preservação
de diferentes tipologias de patrimônio, muitos exemplares foram perdidos.
A plena disputa pela hegemonia econômica do município de Itajaí, durante as décadas de 10
e 20, legou ao tempo presente resquícios de seu processo (Fáveri, 1998). Nesse processo, há medida
em que esses grupos se firmaram enquanto elites, suas memórias, patrimônios e histórias se
tornaram signos de valor e reconhecimento, enquanto os grupos divergentes sofreram com os
processos de apagamento. Diante disso, a memória fabril e a história da industrialização do
município, foram deixadas de lado. Em seu lugar, admitiu-se uma historiografia que fomentou a
criação de uma identidade relacionada ao rio e ao mar, lida a partir da açorianidade (Severino,
1998).
Posto isso, o presente trabalho propõe analisar os (des)usos da Ex-Fábrica de Tecidos Renaux
de Itajaí/SC, tombado a nível municipal pelo decreto nº 5910, de 27 de abril de 1999, enquanto
potencial estratégia de preservação e conservação de bens culturais. Sendo assim, a pesquisa que
dá origem ao texto tem abordagem qualitativa, é do tipo exploratória com procedimento técnico
de pesquisa bibliográfica documental. Pesquisas qualitativas admitem, segundo Chizzotti (2003, p.
222), “[...] recursos estilísticos diferenciados e permitem apresentar de forma inovadora os
resultados de investigações, criando um excitante universo de possibilidades”.
Desta forma, com base no guia “Como fazer um projeto de memória oral”, presente na obra
“História Falada: memória, rede e mudança social”, organizada por Karen Worcman e Jesus Vasquez

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Pereira, pelo Museu da Pessoa do Estado de São Paulo, foi desenvolvida uma entrevista com Edison
d’Ávila69, historiador e ex-secretário da Educação, Cultura e Esportes do município de Itajaí, entre
1977 e 2000. Durante sua gestão ocorreu: a criação do Conselho de Patrimônio, a recuperação do
prédio da Ex-Fábrica de Tecidos, seu tombamento e reconversão para sediar a Biblioteca Pública.
Metodologicamente foram consultados os acervos disponíveis no Centro de Documentação
e Memória Histórica (CDMH) e/ou Arquivo Público de Itajaí, referentes a Fábrica de Tecidos Renaux
e a Biblioteca Pública. A entrevista foi gravada em formato de áudio, transcrita e analisada em
comparação com as documentações oficiais presentes no CDMH, sob a luz do aporte teórico
pertinente.
Somado a isso, se aplicou a metodologia indicada pela carta de Nizhny Tagil (2003),
analisando criticamente os processos relativos ao tombamento e requalificação do edifício, que hoje
em 2023 abriga a Biblioteca Pública Municipal e Escolar Norberto Cândido Silveira Júnior e sua
inserção e integração com o entorno. Bem como questões sobre a preservação da memória e do
fazer industrial, conservação e restauração arquitetônica, as possibilidades de restauro de bem
patrimonial industrial e a requalificação do espaço para o exercício de uma função diferente. Diante
disso, surgem questionamentos a respeito da delimitação da conservação do patrimônio à sua
esfera arquitetônica em detrimento à preservação da memória industrial no município de Itajaí.
Aqui, entendemos a Ex-Fábrica de Tecidos Renaux, como um lugar de memória (NORA,
1993), onde a memória industrial não se encontra presente, sendo necessária sua preservação
através de sua forma física expressa no conjunto arquitetônico remanescente. Além disso, leremos
seu patrimônio enquanto um monumento deste passado e um documento que, ao perfilar enquanto
último exemplar da arquitetura industrial em Itajaí, deve ser submetido a críticas (LE GOFF, 2013)
ao demonstrar na prática a seleção consciente dos “passados” que devem ou não serem legados às
futuras gerações.

Entre as fábricas e a vila: O setor industrial de Itajaí na década de 1930

69
Edison d’Ávila, nascido no bairro Vila Operária em Itajaí/SC, em 6 de março de 1947, entrevistado pelos
autores em 16 de outubro de 2023, no Centro de Documentação e Memória Histórica/Arquivo Público de
Itajaí.
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

O processo de urbanização das cidades no Brasil, iniciado no final do século XIX, não ocorreu
desacompanhado de fatores sociais e culturais, em Itajaí/SC, remontam às três primeiras décadas
do século XX. Nesse cenário, o município recebia os saldos da ascensão política e econômica dos
imigrantes europeus, em sua maioria alemães, ao poder municipal e estadual. Segundo Fausto
(2019, p. 236), “cerca de 3,8 milhões de estrangeiros entraram no Brasil entre 1887 e 1930. O
período de 1887-1914 concentrou o maior número, [...] cerca de 72% do total”.
Os vínculos pessoais existentes entre Carlos Renaux e Lauro Müller e família, possibilitaram
a Renaux o destaque na política durante e após a Constituição do Estado de Santa Catarina em 1891,
bem como sua ascensão econômica (Glatz, 2018). Além da influência, essas relações obtiveram
resultados práticos na dinâmica comercial do Estado e da cidade de Itajaí.
Nesse período, o parque industrial do município era composto por empresas como a Fábrica
de Tecidos Carlos Renaux S.A, localizada no bairro Vila Operária, propriedade de Carlos Renaux e
administrada por seu filho, Otto Renaux; A Fábrica de Taboinhas e/ou Fábrica de Caixinhas de
Charutos, de Gottlieb Reif; A Companhia Fábrica de Papel Itajahy S/A, importante exemplar
industrial, econômico e arquitetônico da década de 1910, que contou com ações da Hering, Reif &
Cia. (D’ÁVILA, 2021, p. 251-252). Havia também a Usina de Açúcar Adelaide, propriedade da família
Konder, a Fábrica de Máquinas e Fundição Guido & Cia e engenhos de beneficiamento como
Malburg & Cia, Konder & Cia e Engenho Central (op. cit).
A Fábrica de Tecidos Renaux de Itajaí e sua matriz de Brusque, surgiram durante o segundo
período do processo de industrialização no Brasil, entre 1808 e 1930. Sobre o período, Azevedo
(2010, p.14) aponta que “o setor têxtil apresentou um grande crescimento, favorecido em parte
pelo crescimento da cultura do algodão, em razão da Guerra de Secessão dos Estados Unidos”.
A fábrica de Itajaí integra o projeto de um distrito industrial. O mesmo foi idealizado por José
Eugênio Müller, sobrinho de Lauro Müller. Conforme documentação anexada ao Dossiê de
Tombamento do Imovel, existente no Centro de Documentação e Memória Histórica
(CDMH/FGML), Müller, através da Sociedade Cooperativa de Responsabilidade Limitada
Construtora Catarinense (1924), empresa de sua propriedade, promoveu a construção de casas de
alvenaria, com plantas baixas de acordo com a escolha dos compradores e, num modelo
padronizado de casas de madeira. Estas deram origem ao bairro “Vila Operária”.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Imagem 1 - Casas de Alvenaria, bairro Vila Operária. Imagem 2 - Casas de madeira, bairro Vila Operária.

Fonte: Acervo iconográfico CDMH/FGML, 1925. Fonte: Acervo iconográfico CDMH/FGML, 1925.

De maneira concomitante, a Azevedo, Petermann & Cia constrói em idos de 1921 a “Fábrica
de Tecidos de Itajahy”, posteriormente adquirida por Carlos Renaux na década de 1930 (Andrade
Jr., 2016). No decorrer desta década, a filial foi responsável pela instalação da técnica de “fiação de
efeito”, considerada revolucionária para a tecelagem em Santa Catarina (op. cit). A ausência
documental de fontes primárias, escritas ou orais, torna as informações referente às datas,
nomenclaturas, instalação e fechamento da Fábrica imprecisas.
A Fábrica de Tecidos Carlos Renaux S.A funcionou entre a década de 30 até os anos de 1970,
quando ante às necessidades de modernização da indústria têxtil, a filial de Itajaí sofreu
sucateamento compensatório, incentivado pelas políticas do Governo Federal para importação de
teares mais tecnológicos. Segundo documento do acervo pessoal de Edison D’Ávila, as filiais da
fábrica Renaux de Itajaí/SC, Nova Trento/SC e Brusque/SC, foram fechadas. Seus teares obsoletos
foram desmontados na presença de um interventor do governo, e sua tecnologia somente poderia
ser vendida a iniciativas de fundição.

A questão do patrimônio histórico na ótica de Edison d’Ávila

Durante a entrevista realizada com o Edison d’Àvila, o historiador detalha acontecimentos


relacionados à criação de decretos e órgão de proteção ao patrimônio histórico do município de
Itajaí, bem como os movimentos de tomada e recuperação de bens culturais ocorridos durante sua
gestão como Secretário Educação, Cultura e Esportes. Dentre esses acontecimentos destaca- se a
criação do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, homologado em 1997 pela Lei nº 3198.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Entretanto, a proposta de criação de um órgão municipal encarregado apenas dos


patrimônios históricos da cidade já existia desde os anos 80, quando foi criada uma legislação
direcionada para a proteção dos patrimônios em 1982, a Lei nº 2037. Como indica o professor
d’Àvila,

[...] a gente conseguiu aprovar um projeto de lei, que se transformou em lei, de


preservação do patrimônio. Esse projeto de lei previa a criação do Conselho
Municipal do Patrimônio Cultural, que seria o órgão, né? Que teria a atenção sobre
essa questão do patrimônio.

A criação da legislação mencionada ocorreu no final do governo do prefeito da época, Nilton


Kucker, e com a eleição de 1983 foi eleito um “prefeito de oposição”, Arnaldo Schmitt Jr., que não
elencou as questões relacionadas ao patrimônio, como pauta em seu mandato.

Aí o candidato de oposição, claro, chega, aquilo que os outros do governo passado


fazem, ele não tá nem aí. E aí foi elegendo outras prioridades, etc. E a questão do
patrimônio ficou à mercê de nada, não tinha nada, não se fez nada.

O “patrimônio” somente voltaria a ser pauta nas eleições de 1997 onde, segundo o
entrevistado, Jandir Bellini, enquanto pré-candidato a prefeito, e aconselhado por Edison d’Àvila a
retomar a pauta relacionado ao patrimônio histórico do município. Após ser empossado, Bellini
implementou o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, mediante a Lei nº 3198, de 05 de
setembro de 1997.
A notoriedade desta demanda, se deve também a pressão feita pela mídia e pelo setor
artístico e cultural do município, que sinalizaram para o fato de que diversas outras cidades tinham
patrimônios tombados e Itajaí ainda não tinha nenhum.

E que geraram assim aquela coisa, poxa, mas Itajaí não tem nada, São Francisco
tem, Laguna tem, Florianópolis tem, Itajaí não tem nada. Foram demolidas nesse
período, a Casa Gal, né? Que era uma casa enxaimel, a única enxaimel, a casa
Asseburg, que era o primeiro estabelecimento comercial da cidade, uma casa de
exportação, etc. E isso, não é? Gerou uma demanda, gerou uma demanda, o que
fazer? E aí, na eleição, na eleição de 1996, porque durante esses 13 anos a coisa foi
crescendo. E foram os agentes, os artistas, tal, os jornalistas, tal, começaram a ver,
pô, não tem nada, é preciso. E aí, na eleição de 96, já os candidatos colocaram essa
questão do patrimônio como uma preocupação.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Em decorrência disso, o Conselho, agora instituído, começou a listar os monumentos e bens


de interesse histórico para a cidade, visando seu possível tombamento.

Bom, aí, o primeiro trabalho nosso do Conselho foi listar. Sabe? Aqueles imóveis que
tinham relevância histórica, cultural, arquitetônica, para um primeiro processo de
tombamento.

Os exemplares arquitetônicos do desenvolvimento de Itajaí, à época, oportunizaram outro


olhar sobre sua paisagem urbana. Dentre diversos monumentos, foram elencados aqueles que
seriam lidos como documentos, detentores de valor significativo para a memória individual e
coletiva do município e reveladores dos interesses a respeito de sua identidade cultural
.
Imagem 3: Funcionários e Diretores da Antiga Fábrica Imagem 4: Armazéns da Fábrica Renaux.
de Tecidos Carlos Renaux.

Fonte: Acervo iconográfico CDMH/FGML, c. 1930. Fonte: Acervo iconográfico CDMH/FGML, [s.d.].

Logo, questiona-se porque tombar, somente, a Ex-Fábrica de Tecidos Renaux, haja visto a
existência de demais exemplares fabris, alguns mais antigos e quiçá com maior influência e destaque
à memória industrial do município? d’Ávila argumentou que

Tombou-se a Renaux, porque era do município, era fácil o tombamento, era um


exemplar da arquitetura industrial, fazia parte da história, da história do bairro da
Vila, que o bairro da Vila foi criado com essa ideia de ser residencial e ter uma área
industrial. E aquele prédio foi. [...] Porque ela era um referencial na indústria têxtil
de Itajaí.

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Cabe salientar, que o entrevistado nasceu no bairro Vila Operária, tendo passado parte
significativa de sua vida neste lugar. Então, em certa medida, tal escolha parte de um inconsciente
afetivo, relacionado com sua vivência em relação ao patrimônio.

Agora... A fábrica ela tinha uma inserção muito grande no bairro da vila. Ela tinha,
por exemplo, um núcleo habitacional de casas feitas de madeira. [...]. Então, além
do que, muitos vizinhos e conhecidos da gente trabalhavam na fábrica. Então a
gente sabia, principalmente...tínhamos homens, [...] mas a maioria eram mulheres.
Então, eram vizinhas da gente, era aquela coisa toda que transitava o tempo todo,
iam pra fábrica, voltavam da fábrica, e em grupos, em três, quatro, as vezes voltava
com um grupo maior. Então, aquela vivência com operários da fábrica era constante
no bairro. Então era uma referência para a gente, era para os moradores da vila. Eu
morei e vivi no bairro da vila, nasci alías, e morei no bairro da vila até me casar. Em
1971. Então a fábrica tinha uma referência muito grande para nós. A gente falava
o quê? A Fábrica da Vila. [...] Então era uma referência, sim, uma indústria bem
integrada no bairro, assim. Bem integrada no bairro, assim. A gente passava por
ali, ouvia o barulho constante dos teares, aquela batida dos teares, e a gente ouvia
o tempo todo.

A reconversão do edifício

Com o esvaziamento da fábrica em razão do sucateamento tecnológico, os arquivos e


documentações administrativas, referentes à rotina da fábrica, foram enviados para a matriz em
Brusque. Assim, o único elemento material passível de ser conservado seria a sua estrutura
arquitetônica, extremamente característica de um período, como o telhado em estilo Shed.
Devido a inexistência de órgãos responsáveis pela preservação do patrimônio histórico e
cultural, no estado de Santa Catarina e no município, não foram pensadas e promovidas ações para
a preservação da memória do patrimônio industrial de Itajaí. Essa preocupação surge com a
consolidação do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural, em 1997, responsável pelo
tombamento dos edifícios históricos de Itajaí.
Ao analisar os usos do edifício da Ex-Fábrica Renaux, a partir de sua compra pelo município,
é possível perceber que não houve uma preocupação com a conservação do edifício e de sua
memória fabril. Segundo documento anexado ao dossiê de tombamento, após a desativação, o
espaço foi utilizado pela Sociedade de Canaricultores e Ornitologia, a Associação de Ex-
Combatentes, a Junta Militar, grupos de escoteiros e um posto de venda de materiais escolares do
MEC. (Itajaí, 1999). Neste período, o edifício entrou em evidente processo de deterioração,

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conforme indica documentação do dossiê de tombamento: “O prédio passou por uma reforma mas
existem alguns problemas no telhado, infestação de cupins e janelas emperradas” (op. cit).
Na pesquisa documental localizou-se o projeto inicial de instalação da Biblioteca Pública
Municipal (1997) e o “Relatório Fotográfico do Projeto e Implantação da Biblioteca Pública
Municipal e Escolar de Itajaí” (2000). Não foram encontrados, isso se houverem, o projeto
arquitetônico da intervenção e o relatório final, como hoje em dia é costume ser realizado ao final
de trabalhos de restauração de bens imóveis.
O entrevistado, professor Edison D’ávila, é um dos responsáveis pela elaboração do projeto,
visto que, em 1997, o mesmo estava a frente da Secretaria de Cultura e Esporte de Itajaí, quando
são iniciados os diálogos com a Petrobrás para o financiamento do “restauro” do edifício, iniciado
em 1999.

Nessa época... É... Da primeira intervenção, diríamos assim, né? No prédio para
prepará-lo para sediar a biblioteca, ainda não havia uma consciência do que era o
verdadeiro restauro. Não se tinha essa consciência. Então, o que se fazia, e o que se
fez ali, foi uma reforma buscando preservar a estrutura externa, até porque
internamente também já tinham tirado parede, já tinham feito um tipo de assoalho,
aquela coisa toda. E... Mas ainda não havia essa consciência. Depois do ano 2000,
lá por 2004, por ali, é que se tomou essa consciência de que num prédio tombado,
num prédio histórico, não se pode fazer obra com qualquer empresa.

É importante salientar que os trabalhos de intervenção receberam denominações diferentes


quando divulgados pela mídia. Restauração e reforma foram as palavras usadas. Essa confusão,
durante muito tempo, se deu por falta de compreensão sobre o ofício da restauração e por falta de
reconhecimento do patrimônio industrial, enquanto bem preservável.
A Carta de Nizhny Tagil (2003) indica alguns princípios a serem seguidos no que compete à
manutenção e conservação de sítios de patrimônio industrial. Aqui, destacamos: o
registro/inventário como parte fundamental do estudo do patrimônio e para que qualquer
intervenção seja feita de maneira coerente e bem embasada. Nele devem ser incluídos todos os
tipos de informação possível, como descrições do estado de conservação, desenhos, plantas e
fotografias. As memórias das pessoas envolvidas efetivamente na história do patrimônio também
merecem o registro.

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A conservação do patrimônio industrial deve, acima de tudo, conservar os valores de sua


identidade funcional. Entretanto, perde-se um pouco da mesma com a ausência dos maquinários e
outros documentos. A adaptação de um sítio industrial pode ser aceitável se seguir alguns
protocolos interdisciplinares de intervenção, com o respeito e interpretação dos usos anteriores.
Deve haver interesse público e político sobre um patrimônio industrial e sua história. É dever das
autoridades públicas reforçar as memórias coletivas de importância social, cultural e econômica
desses espaços de trabalho.

Imagem 5: edifício da Fábrica de Tecidos Renaux S.A Imagem 6: Biblioteca Pública Municipal e Escolar de
. Itajaí.

Fonte: Acervo iconográfico CDMH/FGML, [s.d.]. Fonte: Marcos Porto/portal Itajaínews, 2023.

Conclusão

A história da indústria Renaux, do desenvolvimento industrial no Brasil e a história política e


cultural de Itajaí estão intimamente conectadas e servem de contexto para o desenrolar dos eventos
que envolvem o edifício. Perdeu-se muito do patrimônio fabril do município, mas isso não é motivo
para desconsiderar os esforços que vieram para a preservação da Ex-Fábrica Renaux.
Há que se ponderar sobre as motivações para determinadas escolhas e realizar uma
contemporização acerca das carências conceituais a respeito da preservação de patrimônios em
geral, pensando sempre o contexto itajaiense. A memória fabril do município ainda pode ser
investigada e receber a devida divulgação. Dessa forma, acredita-se que a reforma do edifício da ex-
Fábrica Renaux foi de grande valia para sua preservação. O patrimônio, uma vez esquecido e
suscetível à ruína, agora contempla a comunidade oferecendo uma atividade cultural de extrema
importância e, como comenta Françoise Choay (2006), “o melhor meio de conservar um edifício é
o de lhe encontrar um emprego”.

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Para concluir, há uma questão pontual que merece atenção e crítica: até o momento (2023)
não há, dentro da Biblioteca Pública Municipal e Escolar Norberto Cândido Silveira Jr., qualquer
referência à função original daquele edifício. Nem mesmo uma simples placa, de identificação de
patrimônio histórico e cultural, que conte um pouco da história do edifício, como acontece em
outros muitos patrimônios edificados. O “antigo” e o “novo” aí se misturam por completo, sem dar
oportunidade à rica experiência da provocação e interpretação da memória e da história.

REFERÊNCIAS:

Acervo iconográfico do Centro de documentação e Memória Histórica de Itajaí (CDMH), Fundação


Genésio Miranda Lins.

Fundo Público da Prefeitura Municipal de Itajaí (PMI). Fundação Cultural (FCI) / Fundação Genésio
Miranda Lins (FGML), Departamento de Patrimônio / Conselho de Patrimônio.

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Daniel Hundenski e Yasmin Sayegh Al Kas. Itajaí/SC, 2023. 2 arquivos, em .m4a (43:05 min.) e mp3
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FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.
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GLATZ, Rosimari. Brusque - Os 60 e o 160: elementos da nossa história. Brusque: Ed. UNIFEBE,
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EDIFÍCIO MANCHESTER: A ARQUITETURA MODERNA COMO SÍMBOLO DA


POTÊNCIA INDUSTRIAL JOINVILENSE

Tayna Vicente, Doutoranda | Univille | taynavicentee@gmail.com


Nadja de Carvalho Lamas, Doutora| Univille | nadja.carvalho@univille.br
Alena Rizi Marmo | Univille | lemarmo@gmail.com

Introdução

A cidade de Joinville é uma das maiores do estado de Santa Catarina e muito de seu destaque
se dá pelo setor econômico. Síncrono ao período de significativo progresso econômico, alavancado
principalmente pelo desenvolvimento industrial, são erguidas pela cidade um substancial conjunto
de edificações modernistas. Entre os anos 1954 até 1975 houve um crescimento de cerca de 394%
de trabalhadores no setor industrial, passando de 7.091 empregados em pátios fabris para 35.000.
Dados de 1977, apontam as indústrias da cidade como responsáveis por 75% da produção industrial
da microrregião, 28% da produção catarinense e 5% da produção industrial da região sul (TERNES,
1986).
Joinville possuía uma grande projeção nacional, quando se tratava de assuntos ligado ao
trabalho. Uma nota publicada no jornal Correio do Norte em 26 de abril de 1975, anunciava que o
então presidente de república Ernesto Geisel, “dia 1º, Dia do Trabalho, estará em Joinville, na
Manchester catarinense e ali anunciará o novo salário-mínimo a vigorar, a partir de maio no país.
Sem dúvida, uma deferência toda especial ao nosso Estado.” (CORREIO DO NORTE, 1975).
O expressivo crescimento industrial trouxe à cidade muitos migrantes, principalmente entre
as décadas de 1960 e 1970. A “disciplinação” dos oriundos de outras partes do estado e do país
acontecia para que a cultura do trabalho, do povo trabalhador que vivia nesta cidade de
descendentes germânicos, se perpetuasse (COELHO, 2011).
Tal cultura do trabalho era alimentada, nos habitantes e nos migrantes, com um discurso de
uma cidade que se desenvolvia pelo esforço de seus habitantes. A imagem da “Manchester
Catarinense”, epíteto adotado pela cidade, reverberava no discurso do empresariado e do poder
público e encontrava na população um receptáculo. A ideia de uma cidade que se desenvolveu por
meio do trabalho de seus habitantes, que atuam interminavelmente para o crescimento, progresso

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e ordem da maior cidade do estado, perpassa lideranças e gerações, reverberando até os dias atuais
(Figura 01). (SOUZA, 2005)

Figura 01 - Grafitti em fachada na área central de Joinville, com a escrita “Joinville é a locomotiva
catarinense”.

Fonte: Foto da autora, 2022

O aumento populacional juntamente com a falta de planejamento e preparo da cidade para


receber estes novos habitantes resultou em um crescimento vertiginoso, em porções da cidade
onde não se tinha infraestrutura para habitação, marginais aos espaços desenvolvidos e, muitas
vezes, em invasões de áreas de manguezais. Passou-se a ter ocupações em áreas diversas, em
espaços distintos do que a cidade havia vivido até então, tanto espaciais, como culturais e
socioeconômicos. Estes “desajustes” pela cidade é o que por vezes foi chamado de “questão do
migrante”, uma enfermidade no tecido da cidade, que deixava lideranças políticas e empresariais
aflitas (COELHO, 2011).
Nesta esteira, contrastando com o crescimento desordenado da cidade, em meio a ascensão
do poder industrial e do empresariado joinvilense, investiu-se também em uma imagem
modernizada da cidade. Edifícios com maior número de pavimentos, a abertura de grandes avenidas
e a implantação de novas tecnologias, contrastavam com a malha urbana ligada ao período colonial

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e aos assentamentos marginalizados que se davam pela inflação populacional da cidade. Um


exemplo é a Avenida Juscelino Kubitschek, via importante que configura um eixo norte-sul na cidade
até os dias atuais, teve sua obra iniciada por volta de 1975. Além disso, construiu-se pontes, como
a do Rio Cachoeira, próxima ao Mercado Municipal, na década de 1960.
Nesta época se desenha os primeiros planos urbanísticos para a cidade. Em 1965, é lançado
o Plano Básico de Urbanismo de Joinville, apresentando, de maneira geral, um caminho para o
desenvolvimento urbano da cidade, com um maior tom de reparação e soluções menos eficientes,
como a ocupação dos morros. Em 1972 é lançado o Plano Diretor de Joinville, no qual se delineia os
zoneamentos da cidade, diretrizes de uso e ocupação do solo, áreas de usos especiais e áreas de
preservação permanente (PESSÔA, 2022). Esta racionalização do espaço urbano, com demarcações
de eixos, setorização de atividades e planejamento do uso e ocupação do solo são preceitos das
cidades planejadas e pensadas por modernistas, tais padrões ressoavam de locais como Brasília e
eram aplicadas em cidades já desenvolvidas, com “desajustes” que o planejamento tentava regular
para tomar de novo as “rédeas” da cidade.
A cidade foi um solo fértil para que fossem construídas edificações que demarcam este ciclo
sociocultural, muito disto resultante da proximidade com o estado do Paraná. O curso de
arquitetura e engenharia civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba (PR), foi aberto
anos antes do curso na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis (SC), o que
resultou em uma migração de estudantes para a capital paranaense, que após suas formações
constituíram uma carreira consistente em Joinville (AsBEA-SC, 2022).
Neste contexto, temos a construção do Edifício Manchester, que carrega em seu nome, sua
localização e em seus ocupantes, símbolos e signos desta cidade que cresceu com o trabalho e com
a força e os impactos da industrialização.

O Edifício Manchester

O Edifício Manchester (Figura 02) foi inaugurado em 24 de julho de 1970, numa cerimônia
organizada pela Associação Empresarial de Joinville (ACIJ), para a inauguração do edifício e da nova
sede da ACIJ que seria instalada no mais recente edifício da cidade. Tal cerimônia contou com a
presença do então Ministro da Fazenda, Delfim Netto (Figura 03). O Manchester, a época de sua

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construção, foi o edifício mais alto da cidade e o de maior metragem quadrada do estado de Santa
Catarina (SEBRAE, 2022).

Figura 02 - Edifício Manchester, fachada da Rua do Príncipe.

Fonte: Foto da autora, 2022.

Figura 03 - Nota sobre a vinda do Ministro da Fazenda à Joinville, publicada no Jornal O Estado. Florianópolis,
05 de junho de 1970. Nº 16.404.

Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.


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Projetado e executado pela empresa Comasa S.A., o edifício está localizado na Rua do
Príncipe, nº 330 no bairro Centro, em meio ao maior conjunto patrimonial da cidade. Tais
edificações, salvaguardadas pelo munícipio e pelo estado de Santa Catarina, estão principalmente
ligadas a formação inicial da cidade de Joinville, com edificações, sua maioria, com fachadas
ecléticas, promovendo assim um contraste de temporalidades e técnicas arquitetônicas,
contrapondo materiais, formas, volume, porte e ornamentação (ou a falta dela).
Projetado para representar a força da industrialização joinvilense, o edifício leva em seu
nome o epíteto atribuído a cidade. O discurso sobre a “Manchester Catarinense” reverbera até a
atualidade, em discursos sobre o povo trabalhador que aqui habita. Este jogo semântico, para
Certeau (1998), dispõe pela cidade nomes tais que se configuram em uma hierarquização dos
espaços e produzem legitimações históricas da cidade, reverberando até a atualidade os discursos
produzidos e legitimados.
O Manchester se constitui de 14 pavimentos e neles estão distribuídas unidades residenciais,
comerciais e de serviços. O edifício foi construído entre as ruas do Príncipe e São Joaquim, possuindo
fachada para ambas e permitindo uma permeabilidade urbana em seu térreo com acesso as duas
ruas, configurando um espaço semipúblico. Esta rota pedonal acontece em outros edifícios no
entorno do Manchester, configurando entremeios da cidade que permite aos pedestres uma
locomoção facilitada. Em seu térreo estão dispostas lojas e sobrelojas, que constituem um térreo
ativo, solução que foi utilizada também por Rubens Meister no desativado Hotel Colon, vizinho do
Edifício Manchester, que permite aos moradores e aos trabalhadores do edifício acesso a produtos
e serviços (VICENTE, 2023).
Do terceiro ao nono pavimento a configuração se divide, de modo que um lado não tem
acesso ao outro. Na fachada voltada para a Rua do Príncipe ficam as unidades residenciais e para o
lado da Rua São Joaquim estão locadas as garagens e as salas comerciais. O acesso aos setores se
dá separadamente no térreo do edifício, que possui acesso a parte residencial, de serviços e as
sobrelojas. Do quarto ao nono andar estão os pavimentos tipos, constituídos por quatro
apartamentos e quatorze salas comerciais. O décimo andar foi adequado para que a rádio cultura
se instalasse no local e o décimo primeiro, o “Terraço Tupy” (VICENTE, 2023).

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Nos primeiros anos, além da Rádio Cultura e o espaço da metalúrgica Tupy, estavam no
Manchester o Banco do Estado de São Paulo, o Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem de
Joinville e a Associação Empresarial de Joinville. Nomes como Rodrigo de
Oliveira Lobo, senador federal, também possuíam apartamentos no edifício 70 (VICENTE, 2023).
Ao longo dos anos, o edifício recebeu vários eventos e foi local de implantação de
importantes sedes, ligados diretamente ao industrial. Em algumas notas publicadas em jornais,
pode-se entender a reverberação do local como esta sede representativa da força da indústria da
cidade. Em 1971, ocorreu na sede da ACIJ o encontro dos prefeitos que integravam a Fundação
Intermunicipal, de Desenvolvimento Integrado de Santa Catarina (O ESTADO, 1971). Em 1972, o
presidente e os diretores da Companhia Siderúrgica Nacional visitaram a cidade e passaram por
diversas fábricas e posteriormente, foi realizado um coquetel na sede da ACIJ para os visitantes (O
ESTADO, 1972). A APESC, Associação dos Produtores de Energia de Santa Catarina, inaugurou sua
filial em Joinville em 1975, localizada no Edifício Manchester (O ESTADO, 1975). Assim como, em
2007, uma nota no Jornal O Correio do Povo confirma a permanência da sede da Secretaria da
Fazenda do munícipio no Manchester (O CORREIO DO POVO, 2011). É possível notar a
representatividade para o setor industrial que o edifício possuía, materializando e marcando na
paisagem da cidade a força do setor na localidade.
Em sua fachada, os pilares demarcam o ritmo das esquadrias. No térreo e na sobreloja, as
aberturas de vidro acontecem como vitrines. No terceiro pavimento, os cobogós fazem o
fechamento dos terraços, permitindo ventilação e iluminação. O volume do corpo principal do
edifício é composto por um jogo ritmado de esquadrias, que se destacam por seu acabamento preto
nos fechamentos de vidro. Destaque para as linhas verticais, que acontecem por meio da pintura
branca entre as esquadrias e proporcionam uma sensação de maior estatura, alongando as visuais
do prédio. Seu volume, como um sólido bloco retangular, se destaca na paisagem do entorno
imediato, composto majoritariamente de prédios de 2 ou 3 pavimentos (Figura 04).

Figura 04 - Edifício Manchester e a Rua do Príncipe.

70Informações coletadas nas pranchas de projeto arquitetônico disponíveis no acervo do Arquivo Histórico
de Joinville (AHJ).
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Fonte: Foto da autora, 2022

Assim como o Manchester, outras edificações construídas por voltas da década de 1970 e
ligadas a expansão industrial da cidade, tiveram seus projetos concebidos com os preceitos da
arquitetura moderna, tais como: os edifícios administrativos da Ciser, a sede administrativa e parte
da recreativa Tigre, parte da sede da Döhler, entre outras.
Tal modernização vista em suas construções representava o progresso e a atualidade que as
indústrias traziam para a cidade, gerando renda e desenvolvimento. O Edifício Manchester mantém
sua imponência na imagem da cidade até a atualidade, visto que seu entorno se dá, em sua maioria,
de edificações tombadas. Sua presença torna-se uma âncora de legibilidade do espaço urbano para
quem usufrui, frui, permanece e atravessa estes locais.
Partindo do ponto de vista de quem transita pela Praça Nereu Ramos, o Edifício Manchester,
junto ao Hotel Colon, forma um conjunto imediato de edificações modernistas, provocando a
impressão de que tais prédios fazem os limites da praça, como paredes para essa “sala de estar”

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urbana. Junto ao edifício Fauhy, construído na mesma época que o Manchester, esta sensação é
ampliada por toda a configuração de seu entorno, que, pela falta de afastamento entre os prédios,
conformam uma única grande fachada. O Manchester configura, ainda, um pano de fundo para o
edifício que foi sede dos correios e telégrafos, construído na Era Vargas, similar a outros edifícios
destinados ao mesmo uso pelo país.

Figura 05 - Praça Nereu Ramos, vista da Rua do Príncipe. Ao fundo, da direita para a esquerda, temos o
Edifício Manchester, o Hotel Colon e o Edifício Fauhy.

Fonte: Google StreetView, 2021

Estas “âncoras” da legibilidade do espaço auxiliam a leitura, o deslocamento e ordenam a


organicidade da cidade. Estas edificações cumprem seu papel social no tecido urbano, fornecendo
símbolos e experimentações sensoriais ligadas as identidades e as memórias de cada cidadão
(LYNCH, 2011). A cidade necessita de locais, meios poéticos e simbólicos, que representem os
indivíduos e o corpo social que está inserido, que demonstre seus anseios e as tradições históricas,
simbolizem seu passado e seu futuro, além de equivaler aos “complexos movimentos e funções do
mundo urbano”. (LYNCH, 2011, p. 134)

Considerações finais

O edifício marcou, e ainda marca, a paisagem urbana da cidade de Joinville. Sua construção
representa o momento de grande expansão econômica da indústria joinvilense e suas instalações
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foram utilizadas por representantes deste crescimento. Na “cidade do trabalho”, o Edifício


Manchester é uma materialização deste discurso, simbolizando a robustez e imponência da imagem
que se gostaria de passar.
Para além, seu projeto implementa características da arquitetura moderna brasileira, como
os elementos vazados, o térreo ativo, a permeabilidade urbana, soluções para conforto térmico e
fachada com aberturas maiores.
A imagem de uma cidade do progresso, modernizada e destaque por sua importância
industrial reverbera nestas construções, que estão diretamente ligadas ao poder e ao discurso
hegemônico de uma cidade construída pela força de seus trabalhadores.
- PERCEBER A REVERBERAÇÃO DE SÍMBOLOS DO INDUSTRIAL DA CIDADE
- PATRIMÔNIO INDUSTRIAL

REFERÊNCIAS

AsBEA-SC, Leticia Wilson (org.). Grandes Nomes da Arquitetura Catarinense: arquitetura


moderna. Florianópolis: Santa Editora, 2022. Disponível em: https://grandesnomes.arq.br/. Acesso
em: 13 jan. 2023.

COELHO, Ilanil. Pelas tramas de uma cidade migrante. Joinville: Editora Univille, 2011.

CORREIO DO NORTE: Notas Esparsas. Canoinhas, 26 abr. 1975.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes,
1998.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011

O CORREIO DO POVO: Sede não muda. Santa Catarina, 11 maio 2011.

O ESTADO: Informa. Florianópolis, 06 jul. 1971.

O ESTADO: Diretores da CSN chegam a Joinville para visita. Florianópolis, 19 ago. 1972.

O ESTADO: APESC inaugura sua nova filial em Joinville. Florianópolis, 14 jun. 1975.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

PESSÔA, Eleonora Bahr. Patrimônio Cultural, Ambiental e Arqueológico nos Planos Diretores de
Joinville. 2022. 207 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-Graduação em
Patrimônio Cultural e Sociedade, Universidade da Região de Joinville, Joinville, 2022.

SEBRAE. Rua do Príncipe - Trilha do Patrimônio Histórico. 2022. Disponível em:


https://www.visitejoinville.com.br/trilha-do-patrimonio. Acesso em: 17 jan. 2023.
SOUZA, Sirlei de. Movimentos de resistência em tempos sombrios. In: GUEDES, Sandra P. L. de
Camargo (org.). Histórias de (i)migrantes: o cotidiano de uma cidade. 2. ed. Joinville: Univille,
2005. p. 193-243.

TERNES, Apolinário. História econômica de Joinville. 2. ed. Joinville, SC: Do autor, 1986. 279 p.

VICENTE, Tayna. Traços da Modernidade: Uma investigação sobre valor e processo de registro
patrimonial em edificações modernas de Joinville - SC. 2023. 172 f. Dissertação (Mestrado) -
Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade, Universidade da Região de
Joinville (Univille), Joinville, 2023.

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PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL EM ÁREAS URBANAS: A FÁBRICA


MOINHO ANACONDA E A MEMÓRIA INDUSTRIAL DE CURITIBA

Daiana Marsal Damiani - Graduanda em Museologia |UNESPAR | daianamdamiani@hotmail.com


André Fabrício Silva - Doutor em Museologia e Patrimônio | UNESPAR | andre.fabricio@unespar.edu.br

Introdução

A noção de patrimônio industrial começou a ser pensada na Europa durante a metade do


século XX. Porém, sua definição só aconteceu em 2003, com a Carta de Nizhny Tagil. Sua
preservação está ligada diretamente à história das cidades e aos trabalhadores operários e é a partir
dessa proposta que pensamos nossa pesquisa. Nosso foco se direciona para a cidade de Curitiba,
uma vez que se desenvolveu economicamente com a industrialização a partir do final do século XIX.
Analisando os espaços fabris que ainda existem, sendo um deles o Moinho Anaconda, buscaremos
traçar dados sobre a importância da sua preservação para a memória e identidade dos
trabalhadores locais. Diante a falta de políticas públicas para a preservação do patrimônio industrial
na cidade, iniciamos este texto realizando as seguintes perguntas: se a cidade se desenvolveu por
meio da indústria, por que não há preservação desses espaços?; Porque seus trabalhadores não são
lembrados? Qual a importância de se preservar os espaços que sobraram? Desse modo, buscaremos
compreender a importância da preservação do patrimônio industrial para dar protagonismo aos
trabalhadores como agentes que propiciaram o desenvolvimento da cidade. Utilizaremos de
testemunhos e entrevistas com trabalhadores do Moinho Anaconda, além de análise de planos
urbanísticos da cidade para levantar questões sobre preservação, memória e identidade.

Curitiba industrial e a Fábrica Anaconda: refletindo sobre o patrimônio industrial e a memória do


trabalho.

Segundo a constituição brasileira de 1988 do Artigo 216 coloca que o patrimônio são todos
os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira”. Dentro da definição de patrimônio temos uma categoria chamada de Patrimônio
Industrial que segundo a Carta de Nizhny Tagil são os bens que:

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(…) compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico,


tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e
maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação,
entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia,
meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os
locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais
como habitações, locais de culto ou de educação.(...)

A discussão no Brasil sobre a preservação do patrimônio industrial é recente, iniciada na


década de 1960 e aprofundada em 1964 com a então preservação/tombamento pioneiro do IPHAN
do conjunto industrial Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema no estado do Rio de Janeiro. Ainda
que pareça a frente do tempo, de lá para cá pouca coisa mudou em relação às políticas de
preservação desses bens.
Com a consolidação da Carta de Nizhny Tagil em 2003, definiu-se claramente o que constitui
o patrimônio industrial e a sua relevância, proporcionando uma base para que o poder público
pudesse identificar e preservar esses bens. Contudo, a ausência de investimentos em leis e políticas
públicas, juntamente com a falta de mapeamento dessas indústrias, resulta no desaparecimento da
grande maioria delas. Muitas, por serem propriedades privadas, acabam sendo vendidas e
demolidas para dar lugar a empreendimentos imobiliários ou comerciais, sem a devida intervenção
do setor público.
Em Curitiba, inúmeros exemplos de perda de patrimônios industriais podem ser observados,
decorrentes de planos urbanísticos do início do século XX. Muitos desses planos foram elaborados
sob a pressão da elite, visando a remodelação da cidade em zonas estruturais que segregavam vilas
de trabalhadores e indústrias das áreas centrais.
A história de Curitiba iniciou-se com expedições bandeirantes em busca de ouro no início do
século XVII, estabelecendo-se como uma pequena vila de bandeirantes na região do Atuba. Após a
falta de descobertas significativas de ouro, a vila mudou-se para a área da atual Praça Tiradentes.
Em 1693, recebeu oficialmente o título de Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, posteriormente
denominada Curitiba. A falta de descoberta de ouro na Capitania de São Paulo resultou no
abandono da vila pela província. Em 1853, após a emancipação de São Paulo, Curitiba tornou-se a
capital oficial do recém-criado estado do Paraná.
A atividade econômica inicial da cidade era centrada no extrativismo mineral, pecuária e
agricultura de subsistência. Apesar do declínio da mineração no final do século XVII, a pecuária
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prevaleceu e fortaleceu-se com o tropeirismo no estado. No entanto, o verdadeiro crescimento


econômico e populacional da cidade ocorreu a partir da extração e comercialização de madeira e
erva-mate. Mudanças essas que podem já ser observadas no início do século XX no depoimento de
Nestor Victor em 1912, onde a cidade deixa te der um aspecto mais rural, e vai se aproximando de
uma cidade urbanizada

Quando eu fui para Curitiba, em 1885, nossa capital já tinha proporções


avantajadas e entre os exemplares da sua construção, aí já quase que
completamente à feição germánica, encontravam-se vários prédios importantes. Já
era grande a diferença entre tal edificação e a daminha retardatária Paranaguá,
quer pela massa total, quer pelo valor de tantos dos seus espécimes [...] Em 1900
escrevia o Dr. Sebastião Paraná que Curitiba contava com 3.100 prédios, fora os dos
arredores, e calculava ter 35.000 habitantes em todo o município (VICTOR, 1912).

Nos primórdios de Curitiba, a maior parte da força de trabalho era composta por agricultores
vinculados à agricultura de subsistência, predominantemente formada por portugueses, negros e
indígenas. Com o início do estímulo governamental à imigração europeia, a cidade estabeleceu
diversas colônias, especialmente de imigrantes alemães e italianos, visando revitalizar um sistema
de trabalho marcado pela escravidão e enfrentar desafios demográficos.
A perspectiva de uma vida melhor impulsionava a decisão de migrar para os europeus, que
vinham com a esperança de construir algo próprio para si e suas famílias. Em sua maioria, eram
agricultores que, de alguma forma, não conseguiam se sustentar no meio rural devido à pressão de
grandes latifundiários que expulsavam os pequenos produtores, e pela resistência em se
proletarizar nas fábricas urbanas. No entanto, muitos desses imigrantes ficaram desapontados com
a realidade ao chegar ao Brasil. As terras oferecidas nas colônias eram distantes das cidades e
carentes de infraestrutura. Muitos acabaram vendendo ou abandonando suas parcelas de terra e
retornando aos seus países de origem. Aqueles que permaneceram nas colônias enfrentaram
dificuldades, levando alguns a abandonar o campo e se estabelecer nas cidades, enfrentando a
realidade das fábricas que originalmente buscavam evitar.
O desenvolvimento da cidade de Curitiba teve origem no antigo bairro Rebouças, uma área
estritamente industrial que se formou por volta de 1880, impulsionada pela indústria ervateira que
se fortaleceu com a construção da Ferrovia Paranaguá–Curitiba em 1885. O bairro experimentou
um crescimento expressivo devido à facilidade de importação e exportação de produtos
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proporcionada pela ferrovia. Além disso, sua localização próxima ao rio Belém possibilitava o
descarte dos resíduos industriais rio abaixo.
Com o aumento da economia da cidade, a região passou a abrigar muitas residências de
famílias abastadas, e as fábricas e seus trabalhadores foram vistos como obstáculos, pois
"manchavam" a imagem da cidade. A partir da década de 1940, diversas fábricas foram compelidas
a se deslocarem devido a considerações econômicas e de espaço. Esse processo de
desindustrialização levou essas indústrias da região do Rebouças para o sul de Curitiba e para a área
metropolitana, ou simplesmente resultou em seu fechamento, deixando inúmeras estruturas
abandonadas e trabalhadores desempregados.
Em 1930 surge a primeira tentativa de organização da cidade de Curitiba decorrente do
crescimento populacional da cidade que entrava na virada do século XX com 60 mil habitantes, a
cidade não possui estrutura para o alongamento de tantas pessoas e sofriam com diversas
problemáticas entre saneamento básico, energia elétrica e moradia. Desse modo a cidade estava
extremamente propensa a propagação de doenças. O plano então era dividir a cidade em três zonas
estruturais que separavam comércio moradias padronizadas Indústrias, acreditava-se que a
estruturação dessas zonas distribuiria melhor a população e evitariam a superlotação de alguns
pontos. O problema foi que já em 1920 a cidade contava com mais de 90 mil habitantes, gerando
superlotação de algumas zonas estruturais, criando a necessidade do município de criar um plano
diretor/ urbanístico que se adequasse à cidade naquele momento.
Em 1943 surge o primeiro plano diretor da cidade, o Plano Agache, idealizado pelo arquiteto
francês Alfred-Donat Agache, que organizava a cidade em planos setoriais definindo em que áreas
seriam residências, comércios e Indústrias, mas, ao mesmo tempo, em que ela oficializava certos
bairros como Industrial como o Portão e o Rebouças ela colocava impasses para essas indústrias já
que muitas foram solicitadas a se retirarem por não se adequarem ao espaço.
Apesar desses desafios, a cidade continuou a crescer, dando origem a um aumento
significativo no número de indústrias. Isso, por sua vez, deu origem ao surgimento de comunidades
periféricas nas regiões industriais, uma vez que não havia habitações disponíveis em quantidade
suficiente para acomodar todos os operários.
Entre 1960 e 1965, começaram a ser concebidos órgãos públicos e planos urbanísticos que
visavam melhorar a distribuição das zonas pela cidade. Em 1965, o IPPUC (Instituto de Pesquisa e

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Planejamento Urbano de Curitiba) foi criado como órgão responsável por monitorar o crescimento
urbano e populacional, além de propor soluções para a melhor estruturação da cidade. Inicialmente,
as reuniões relacionadas a esses planos eram abertas ao público. Contudo, ao longo dos anos, o
órgão tornou-se mais fechado. Em 1972, quando o plano Serete foi inaugurado, foram realocadas
as indústrias das áreas centrais da cidade sem que de fato houvesse uma consulta à população.
Quando o plano foi finalmente divulgado, ficou claro que a área industrial seria transferida
para o sul da cidade, em uma região amplamente desocupada. Nesse local, buscava-se estabelecer
um distrito industrial, nomeado como Cidade Industrial de Curitiba (CIC), onde todas as indústrias a
serem realocadas seriam instaladas, juntamente com as instalações necessárias para os
trabalhadores, o problema é que não havia estrutura para tal, e muitas das indústrias fecharam em
pouco tempo, gerando desemprego, e a criação de favelas periféricas.
A Anaconda Moinho surgiu em Curitiba durante o período de desindustrialização na cidade,
por volta do início dos anos 50. Esse empreendimento foi resultado de um investimento realizado
pelo comércio de Secos e Molhados, denominado Dias Martins S/A, e pela empresa Robert Robert
and Miller, que já possuía uma filial em São Paulo dedicada à moagem de trigo. A presença da
Anaconda no estado do Paraná está relacionada às políticas de investimento em trigo
implementadas a partir de 1930 pelo então secretário da agricultura, Romário Martins. No contexto
paranaense, a aposta no cultivo de trigo era vista como uma promessa de progresso e civilização
para a população, acreditando-se que o trigo traria melhorias significativas. Já no início do século
XIX, o estado havia tentado cultivar trigo, mas enfrentou repetidos insucessos devido à adaptação
das sementes ao clima regional e a problemas relacionados à ferrugem.
Quando a empresa Anaconda Moinho foi inaugurada, contava com 115 funcionários,
principalmente mulheres, que trabalhavam nas linhas de produção e empacotamento. Muitas
dessas mulheres eram menores de idade ou filhas de imigrantes, incluindo residentes da região,
onde existia a antiga Vila Capanema, uma vila de operários ferroviários.
Sendo a fábrica uma das mais antigas da cidade e ainda estando em atividade no mesmo
local, pretendeu-se analisar a memória industrial a partir dos depoimentos de trabalhadores, para
levantar questões sobre memória e identidade. Com esse propósito, foram conduzidas duas
entrevistas, uma com um homem e outra com uma mulher que acumularam 40 e 30 anos de
experiência na empresa, chamaremos o homem de entrevistado 1 e a mulher de 2 respectivamente,

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a fim examinar as interações de ambos com o ambiente, a empresa e os colegas de trabalho, com o
objetivo de compreender a importância da preservação desse espaço como patrimônio industrial e
também como um criador de identidade na perspectiva operária moageira.
A fábrica, com uma relação paternalista, representava uma "família corporativa" na época
de Getúlio Vargas, influenciando a postura dos trabalhadores. Esse sistema perdurou até a segunda
geração de proprietários, quando a empresa se abriu a novos sócios e mudanças estruturais pós-
ditadura impactaram as relações de trabalho, fortalecendo os movimentos sindicais. Apesar da
evolução, a relação paternalista persiste na memória dos entrevistados. Como no relato da
entrevistada 2:

Anaconda foi a única empresa em que trabalhei, meu primeiro emprego, estou lá a
30 anos. Todas as experiências profissionais adquiri nessa empresa, trabalhando
em diversos setores. E tudo que conquistei materialmente falando também foi
através desse trabalho. Se ela sumisse, seria como uma grande parte do que vive
sumisse também. Ficaria em luto, entristecida (ENTREVISTADA 2).

A convivência dentro da fábrica, destacada nas refeições e confraternizações, foi vital na


formação da identidade dos trabalhadores. Ambos entrevistados começaram em cargos baixos, mas
a empresa oferecia oportunidades de crescimento e investia em estudos profissionalizantes. Essa
relação fez com que a fábrica se tornasse uma segunda família para muitos.
O trabalho pode ser percebido então como é: um elemento importante na constituição da
identidade em nossa sociedade. Podendo ser visto como uma ação afirmadora da existência
humana, ele inclui o indivíduo como agente participativo na construção do ser social, desenhando
trajetórias de vida e características individuais (MORAES, 2009).
Mesmo hoje, em que essas relações sociais, entre os trabalhadores, e patrões da fábrica não
tenham mais tanta profundidade, ela é usada como uma forma de identidade individual que adentra
uma memória coletiva. Se hoje a Anaconda desaparecesse, seria a morte de uma comunidade, de
uma identidade de trabalhadores operários, pois não haveriam mais referências materiais e
imateriais de suas próprias histórias. Quando perguntado aos entrevistados como se sentiriam se a
empresa simplesmente sumisse, há uma relação de luto. Frases como: “se ela sumisse, seria como
se uma grande parte do que vivi sumisse também” (Entrevistado 2, 2023) e “como perder um ente
querido, alguma coisa morreu” (Entrevistado 1, 2023), demonstram sentimentos de afetividade

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ligado ao espaço fabril, em que a mesma deixa de ser somente um espaço físico e vira um elemento
participativo atuante na vida dessas pessoas.
A preservação do patrimônio industrial, além da arquitetura, abrange as relações sociais,
econômicas e territoriais, contribuindo para compreender as transformações e desafios futuros da
sociedade como precarização de trabalho e a mulher no meio fabril, já que o processo de
automatização e desindustrialização afetaram sobretudo as mulheres que ali trabalhavam e
residiam, que em sua maioria foram dispensadas, deixando de se ter seu sustento, como relata um
dos entrevistados

…em uma máquina tinha 10 meninas, devia ter umas 10 máquinas assim, era assim
que a gente trabalhava, na hora de colocar e pesar não tinha luva era com a mão,
a gente enfiava a mão no pacote. Aí pelos anos 2000 que começaram a robotizar
tudo, daí eles começaram a dispensar, foi por causa da tecnologia a tecnologia tirou
a mão de obra ((ENTREVISTADA 2)

Nesse contexto, o marco identitário da Anaconda transcende as mudanças estritamente


dentro de sua estrutura fabril, estendendo-se à decadência da região. Atualmente, como o único
moinho em operação e uma das poucas empresas a resistir no centro de Curitiba, a Anaconda
destaca-se em meio ao processo de desindustrialização regional. Este cenário não apenas
testemunha as transformações na empresa, mas também assinala a trajetória de um tempo e uma
comunidade que enfrentaram a marginalização pela sociedade curitibana.
Como menciona o entrevistado 1, as coisas se perdem com o tempo e os ciclos terminam

…eu tenho 40 anos (empresa) mais sei que estou no final do meu ciclo aqui dentro
da Anaconda, começa e você não sabe quando vai terminar, mais uma hora vai ter
que terminar [...] pretendo trabalhar mais uns dois anos, eu ia sair agora em 2023,
mais como saiu nosso gerente industrial, o diretor pediu pra mim ficar mais um
pouco, dai eu vou ficar mais uns 3 anos. (ENTREVISTADO 1, 2023)

Quando o ciclo desses trabalhadores mais antigos se encerrar, não subsistirão registros
desses procedimentos e histórias, exceto pelo impacto visual que a fábrica deixa na paisagem.
Referencial visual que corre o risco de desaparecer com o tempo caso medidas de preservação e
pesquisas sobre esses espaços não sejam instauradas.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Conclusão

A pesquisa destaca a importância da história oral, pois a falta de registros escritos na


empresa torna os depoimentos dos trabalhadores essenciais para compreender os processos e
narrativas do passado. A preservação do patrimônio industrial não é apenas uma questão histórica,
mas um meio de fortalecer identidades e construir novas narrativas que conectam as pessoas ao
seu passado industrial. O patrimônio industrial oferece a oportunidade de narrar as histórias de
indivíduos que não ocupam posições destacadas na elite social e econômica, mas que
desempenham papéis essenciais em sua construção. Além disso, fortalece identidades e constrói
novas narrativas a partir das relações entre as pessoas dentro e fora desse ambiente. Mesmo que
Curitiba tenha evoluído para uma cidade turística, é crucial lembrar que sua formação está
profundamente enraizada na indústria. Ignorar esse passado resulta na supressão de uma parte
significativa da história, deixando lacunas impossíveis de preencher e compreender isoladamente.

REFERÊNCIAS

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

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ESCANEAMENTO A LASER NA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

Ana Paula Pupo Correia, Doutora em Educação| IFSC | ana.pupo@ifsc.edu.br Bernardo Brasil Bielschowsky,
Doutor em Geografia| IFSC | bernardo.brasil@ifsc.edu.br
Eduardo Abreu Girolimetto, Estudante | IFSC | eduardo.abreu98@gmail.com

Resumo

Para que a preservação do patrimônio histórico realmente aconteça é necessário que sejam
desenvolvidos métodos que possam auxiliar no processo de organização desta documentação.
Sendo assim, a captura de dados precisos e detalhados, através de escaneamentos a laser 3D,
levantamento fotográfico e criação de modelo BIM, se apresentam como metodologias potenciais
para produzir as documentações necessárias para futuras ações de manutenção, conservação e
preservação das edificações históricas. O objetivo geral deste artigo será apresentar os resultados
do escaneamento a laser 3D e na organização das documentações arquitetônicas em BIM, aplicado
na edificação histórica Casa de Campo do Governador Hercílio Luz, localizado no município de
Rancho Queimado/SC. Para o desenvolvimento da pesquisa foi utilizado a metodologia do
escaneamento a laser 3D, levantamento fotográfico e organização das documentações
arquitetônicas em BIM. Alguns resultados alcançados foram a visualização da edificação de forma
dinâmica, navegação imersiva da edificação entre as cenas formadas pelas nuvens de pontos,
organização da documentação arquitetônica e modelos geométricos 3D. Esta pesquisa apresentou
a integração de tecnologias de digitalização tridimensional de edifícios existentes e o registro
documental histórico da edificação para garantir a permanência da informação ao longo dos
diferentes contextos históricos.

Palavras-Chave: Patrimônio Edificado; Escaneamento a Laser 3D; Documentação arquitetônica.

Introdução

Para que a preservação do patrimônio histórico realmente aconteça é necessário que os


projetos de construção, documentos de reforma e restauração sejam organizados de maneira
eficiente. No Dicionário do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN, 2021), a documentação histórica deve ser compreendida como um conjunto de
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informações, bem como às ações de coleta, processamento técnico e disseminação de informação


(PEREIRA FILHO, 2015). Com isto, estes documentos devem garantir a permanência da informação
ao longo dos diferentes contextos históricos.
Para facilitar na preservação do patrimônio histórico é muito importante a coleta das
documentações da edificação e para que isso ocorra, a utilização de métodos que possam auxiliar
neste processo, possibilita uma maior organização das informações da edificação. Sendo assim, a
captura de dados precisos e detalhados, através de escaneamentos a laser 3D, levantamento
fotográfico e a criação de modelo BIM, apresentam-se como metodologias potenciais para produzir
as documentações necessárias para futuras ações de manutenção, conservação e preservação das
edificações históricas.
Para facilitar na preservação do patrimônio histórico é muito importante a coleta das
documentações da edificação e para que isso ocorra, a utilização de métodos que possam auxiliar
neste processo, possibilita uma maior organização das informações da edificação. Sendo assim, a
captura de dados precisos e detalhados, através de escaneamentos a laser 3D, levantamento
fotográfico e a criação de modelo BIM, apresentam-se como metodologias potenciais para produzir
as documentações necessárias para futuras ações de manutenção, conservação e preservação das
edificações históricas.
Nos estudos de Costa et al. (2021) o uso do BIM em edifícios históricos pode ser utilizado
para o registro de documentação como também para o gerenciamento de sua conservação. A
tecnologia de escaneamento a laser 3D possui aplicações em várias áreas, mas considerando o
patrimônio histórico ela se faz importante por possibilitar a obtenção de detalhes precisos das
construções, o que aumenta a possibilidade de preservação das informações históricas.
Esta pesquisa faz parte dos estudos que estão sendo realizados entre 2019 -2022 em parceria
com a Fundação Catarinense de Cultura (FCC). Nestas pesquisas, foram realizados o escaneamento
a laser 3D das edificações históricas como: Museu Etnográfico Casa dos Açores, localizado no
município de Biguaçu, a Casa do Artesanato (Antiga FECAM) e Casa José Boiteux localizadas no
município de Florianópolis e a Casa de Campo do Governador Hercílio Luz, localizado em Rancho
Queimado.
O estudo de caso apresentado neste artigo foi a Casa de Campo do Governador Hercílio Luz
localizado no município de Rancho Queimado, a aproximadamente 60 km da cidade de

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Florianópolis. Em 1911, o então governador de Santa Catarina, Hercílio Pedro da Luz, adquiriu a
edificação para utilizá-la como residência de lazer e repouso. Hoje sendo utilizado como museu e
espaço cultural, com área total de 184,41 m², foi adquirido pelo estado em 25 de fevereiro de 1985
e tombado pelo decreto nº 25.880 (FCC, 2022). Construída no início do século XX, apresenta
arquitetura em tijolo aparente, telha plana e cobertura em duas águas. Estas características podem
ser observadas na imagem da fachada figura 01:

Figura 01 – Fachada Principal a Casa de Campo do Governador Hercílio Luz.

Fonte: Autores (2022).

Além da importância histórica da edificação, outro ponto que se justifica para a realização
desta pesquisa, será o atendimento ao decreto federal Nº 10.306 de 2 de abril de 2020 (BRASIL,
2020), que exigem a utilização da Modelagem da Informação da Construção (BIM) na execução
direta ou indireta de obras e serviços de engenharia realizada pelos órgãos e pelas entidades da
administração pública federal e estadual. Com isto, estes dados coletados poderão auxiliar no
desenvolvimento destas documentações em BIM para futuras licitações de reformas, adequações e
preservação da edificação (MPF, 2020).
Esta pesquisa tem como objetivo geral apresentar o resultado do escaneamento a laser 3D
e a organização das documentações arquitetônicas em BIM, aplicado na edificação histórica Casa
de Campo do Governador Hercílio Luz, localizado no município de Rancho Queimado/SC.

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Metodologia

A metodologia da pesquisa iniciou com uma revisão bibliográfica dos conceitos associados
ao patrimônio histórico edificado, do uso do escaneamento a laser 3D e da aplicabilidade dos
resultados na organização das documentações arquitetônicas em BIM.
As atividades iniciaram com a organização das documentações fornecidas pela FCC como os
documentos históricos, fotografias e desenhos. Após estas atividades, foram realizadas visitas
técnicas na edificação para o escaneamento da edificação utilizando a método de escaneamento a
laser 3D.
O método de medição, com base no uso do escaneamento a laser 3D, opera de maneira não-
invasiva e proporciona uma documentação precisa do estado atual do edifício. O levantamento
consiste em algumas etapas conforme descreve Amorim e Groetelaars (2011): planejamento,
aquisição de dados, pré-processamento, processamento, análise da precisão do modelo gerado e
exportação do produto.
Para a realização do levantamento foi utilizado o equipamento chamado Laser Scanner 3D
Terrestre, do tipo estático modelo Focus 3D x330, do fabricante FARO. Este processamento é
denominado “registro das cenas”, onde as cenas são unidas por pontos homólogos permitindo
trabalhar numa única referência. A visualização da edificação tanto internamente, quanto
externamente foi produzido utilizando o aplicativo de navegação imersiva SCENE 2go.
O escaneamento foi realizado pela equipe de professores e bolsistas do IFSC/Florianópolis.
Foram necessários dois dias de trabalho de campo, com 10 horas de trabalho e contemplou 34 cenas
internas e externas ao edifício, as quais foram processadas utilizando o software Faro Scene.
Para complementar as informações obtidas no escaneamento a laser foi utilizada uma
câmera 360°, com a finalidade de registrar imagens em todas as direções e sentidos ao mesmo
tempo. Por gerar sensação de imersão, este tipo de material é usado para diversas utilidades,
incluindo a documentação arquitetônica e histórica de edificações e paisagens, inspeções, perícias,
entre outros, permitindo também que as imagens geradas sejam utilizadas em plataformas e
aplicativos de passeios e realidade virtual.
Após estas atividades, os pesquisadores do IFSC e bolsistas elaboraram os desenhos e
organização das documentações gráficas. Os resultados da pesquisa foram repassados a Fundação
Catarinense de Cultura.
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Resultados e discussões

O edifício possui dois pavimentos, sendo térreo e superior, conforme representado nas
Figuras 02 e 03. O posicionamento do equipamento foi distribuído, conforme os pontos em
vermelho representados nas plantas, para o escaneamento do interior e exterior do edifício, de
acordo com as limitações do equipamento e as obstruções de obstáculos encontrados.

Figura 02 – Planta Pavimento Térreo.

Fonte: Adaptado documentos FCC (2022).

Figura 03 – Planta Pavimento Superior.

Fonte: Adaptado documentos FCC (2022).

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Após a elaboração do levantamento e processamento das informações coletadas, a


varredura do escaneamento apresenta com rapidez na captura de dados e com a precisão do
material obtido, a nuvem de pontos. A densidade da nuvem de pontos resultante da amostragem
com resolução das cenas coloridas e da resolução adotada foi de 25 mm/10m, ou seja, em 10 metros
a partir do ponto central de uma varredura, os pontos dos feixes de laser estão separados por 25
mm.
A nuvem de pontos resultante da varredura a laser e a malha triangulada gerada no processo
de fotogrametria digital foram registradas usando o software FARO Scene. Este software processa
o registro dos dados heterogêneos dos dois tipos de levantamento a partir da seleção automática
de pontos comuns, usando a nuvem de pontos da varredura a laser como referência para escalar a
malha triangulada, que por natureza não tem referência métrica (AMORIM; GROETELAARS, 2011).
Na Figura 04 destaca-se a representação do escaneamento por nuvem de pontos da edificação:

Figura 04 – Representação do escaneamento por nuvem de pontos.

Fonte: Autores (2022).

Através das nuvens de pontos foi gerada uma navegação imersiva utilizando o plugin SCENE
2go. Neste caso é possível acessar os pontos do levantamento e realizar medições dispondo de um
alto nível de detalhe. Algumas vantagens do uso do equipamento: medição sem contato com
edifício ou monumento, documentação completa gráfica e numérica, medição de volume, obtenção
de um modelo 3D de qualidade fotográfica, pode ser usado para diversos fins. A partir do arquivo
executável é possível visualizar toda a edificação de forma dinâmica, navegando entre as cenas
formadas pelas nuvens de pontos. Outros recursos utilizados são: visualizar os diversos pontos
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escaneados da edificação, sendo possível dar zoom e optar entre uma navegação tridimensional,
também chamada de “visualização de varreduras”, vista panorâmica ou acessar as propriedades.
Na Figura 05, pode ser observado um exemplo da navegação imersiva da edificação:

Figura 05 – Visualização da navegação imersiva.

Fonte: Autores (2022).

Este método pode ser aplicado como levantamento tridimensional de edifícios, facilitando
no detalhamento de projeto, para estudos de patologias, controle de deformação, documentos
gráficos de instalações e simulação de visita virtual. Além disso, auxilia na modelagem BIM da
edificação onde é possível adicionar características de forma, dimensões materiais, podendo criar
elementos arquitetônicos presentes na edificação.
Outro equipamento utilizado para a organização das documentações foi a câmera 360°. Este
tipo de equipamento, registram imagens em todas as direções e sentidos ao mesmo tempo. Em
razão da complexidade de determinados ambientes a serem documentados, a tecnologia de
imagens 360º eleva o nível de qualidade na obtenção das imagens e diminui consideravelmente o
risco de perda de pontos específicos do ambiente, o que permite a preservação integral de todas as
angulações, detalhamento espacial e preservação de proporcionalidade. Na Figura 06, nas imagens
apresentadas pode ser observado o madeiramento da cobertura, de uma maneira total, utilizando
a câmera 360º:

Figura 06 – Imagens do madeiramento da cobertura utilizando a câmera 360º.

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Fonte: Autores (2022).

Após os levantamentos destes dados serão realizados a organização da documentação


arquitetônica por desenhos (plantas baixas, cortes, fachadas, seções e detalhes), modelos
geométricos (3D), navegação imersiva e um registro documental histórico da edificação.

Considerações finais

Este artigo apresentou os resultados da integração de tecnologias de digitalização


tridimensional com o patrimônio histórico edificado. Não se tem dúvida da importância deste tipo
de levantamento para organização da documentação e materiais para a utilização na prevenção da
edificação Casa de Campo do Governador Hercílio Luz, localizado no município de Rancho
Queimado/SC.
O modelo de nuvens de pontos é um elemento essencial para reconstituição das
características espaciais e geométricas do edifício que se pretende documentar, mas constitui
apenas a etapa inicial deste processo. Este método pode ser auxiliado por técnicas de levantamento
tradicionais como fotografias e medições. Com isto, é possível reunir de forma mais precisa e
abrangente, as informações da edificação.
Algumas vantagens na utilização do equipamento: medição sem contato com o edifício,
documentação completa, precisa e atual, modelo 3D de qualidade fotográfica, possibilidade de
visita virtual na edificação, medições gerais, auxílio de cálculo de volume, entre outros. Pode-se
destacar algumas desvantagens na utilização do escaneamento a laser 3D como por exemplo o alto
custo do equipamento, o que acaba sendo o principal impedimento para a disseminação de seu uso,

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dificultando o acesso para várias pessoas e instituições.


Neste trabalho destacou-se a importância da utilização da tecnologia de escaneamento a
laser 3D, para gerar documentos que auxiliam na preservação com a coleta de dados, registros
documentais, detalhes precisos das construções, o que podem facilitar na preservação das
edificações históricas.

Agradecimentos
Agradecemos ao Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) pelo financiamento desta
pesquisa através do Edital Nº 01/2022/PROPPI/PROEX/ Campus Florianópolis.

REFERÊNCIAS

AMORIM, A. L.; GROETELAARS, N. J. Tecnologia 3D Laser Scanning: características, processos e


ferramentas para manipulação de nuvens de pontos. Congreso de la Sociedad Iberoamericana de
Gráfica Digital - SIGRADI. Santa Fé: Facultad de Arqitectura, Diseño y Urbanismo da Universidad
Nacional del Litoral, 2011, p.1-5.

BRASIL. Decreto Nº 10.306, de 2 de abril de 2020. Diário Oficial da União: Brasília, DF, seção 1, Ed.
65, p. 5, 03 de abril de 2020.

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https://www.cultura.sc.gov.br/espacos/casadecampo. Acesso em: 10 mar. 2022

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TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed.
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ST - 10
Diálogos interdisciplinares entre
cultura, estética e educação

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PERSPECTIVAS DO TEMPO NA EDUCAÇÃO BÁSICA: ENTRE IDENTIFICAÇÕES E


RECUSAS DO PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE EM SÃO BENTO DO SUL

Adriano Westphal | Univille | adrianowest.aw@gmail.com


Ilanil Coelho | Univille | ilanilcoelho@gmail.com

Introdução

Quando se escreve sobre o assunto do patrimônio cultural, emergem reflexões a partir de


experiências de tempo a respeito de passados específicos, se escrevem e se inscrevem das
construções narrativas do presente. Na observação de antagonismos que emergem no próprio
cotidiano urbano a contar do entendimento do sujeito inserido no mundo, as convergências das
formas de se compreender nas diversas memórias dos contextos de uma cidade, das vidas coletivas,
e até mesmo das subjetividades pessoais e da identidade se fazem suas identificações e recusas 71.
Neste aspecto, inflama-se uma emergência da compreensão das experiências de
temporalidade nos diversos vetores narrativos da história, sendo as diversas memórias expostas e
compartilhadas, algumas se estabelecem como discursos autorizados no tempo presente da cidade,
enquanto outras sofrem recusas.
Ao escopo das determinações hegemônicas de poder da organização dos quadros culturais
e do valor que se atribui ao assunto do patrimônio cultural de uma cidade, verifica-se a relação entre
o patrimônio cultural e às pessoas que fazem uso dos espaços das cidades, evidenciando vínculos
de identificação e recusas diante do significado das experiências de temporalidade dos locais, sejam
a partir das memórias coletivas e/ou individuais.
Na própria educação formal estabelecida através de determinações de tradições políticas, a
partir de alguns sujeitos que identificam em si possibilidades e potencialidade de estabelecer
padronizações do que deve ser a memória significativa da cidade, estabelecem vetores antagônicos
no que é anunciado como patrimônio cultural oficial gerando nesse ponto a recusa aos discursos do
patrimônio cultural de uma cidade.

71
Quando se trata do assunto da recusa patrimonial é um conceito diferente, porém inspirado na ideia de Kathryn
Woodward. Sendo, no conceito da pesquisadora a diferença das identidades um critério da exclusão subjetiva do
indivíduo, enquanto a recusa se objetifica na destruição da identidade do outro como a própria identidade. (SILVA,
Tomaz T. da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 15 ed. 10 reimp. Petrópolis, RJ: Editora Vozes,
2022)
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Ao problematizar a questão da educação no Ensino Médio a respeito do patrimônio cultural


e as temáticas que a envolve, ao detectar no currículo nacional evidencia o compromisso com a
educação nas: “[...] ideias de justiça, solidariedade, autonomia, liberdade de pensamento e de
escolha”72, permite analisar, no próprio reconhecimento das diferenças, que segundo o texto não é
estabelecendo em apenas um grupo detentor de privilégios das narrativas históricas, mas na
educação que se estabelece em: “[...] respeito aos direitos humanos e à interculturalidade, e o
combate aos preconceitos de qualquer natureza”73.
Ao serem estabelecidas e impostas memórias reconhecidas ou rejeitadas pelo poder público
somente no que se configura como patrimônio cultural autorizado, algumas pessoas da cidade
ficam, no que Michel Pollak74 estabeleceu, em um espaço de memória subterrânea, em um lugar de
esquecimento ou de exclusão, ou seja, no desencontro da base curricular, acarretando a falta de
reconhecimento por grupos hegemônicos da cidade a diversidade das existências além da própria,
assim o estabelecimento de apenas uma forma de ensino do patrimônio cultural da cidade.

Desenvolvimento

Sendo professor de Filosofia em São Bento do Sul, se intrincam essas questões, nas aulas que
realizo na escola EEB Celso Ramos Filho, do Ensino Médio no território de Santa Catarina, são
estabelecidas através dos critérios curriculares, que estão ao encontro das problematizações da
pesquisa a partir dos conceitos e das experiências de temporalidade, das identidades e memórias
do educando do ensino médio descritos no patrimônio da cidade e que se evidenciam no próprio
caderno de educação, sendo:

Nesta perspectiva, romper com essa visão implica também o estranhamento do


nosso próprio mundo, que nos incomoda com as injustiças e as diversas formas de
violência. [...] Ainda se destaca o debate necessário sobre a interpretação e a
construção eurocêntrica do conhecimento, a partir da qual se crê que a
humanidade deva ser interpretada a partir de uma única experiência, ligada a uma
noção de racionalidade ocidental, postulada como civilizada, moderna e liberal.75

72
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017, p. 561
73
Id ibid
74
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. vol. 2, n.3. Rio de janeiro: Revista Estudos Históricos, 1989.
75
Santa Catarina. Secretaria do Estado da Educação. Currículo base do ensino médio do território catarinense: caderno
2 – formação geral básica. Florianópolis: Gráfica Coan, 2021. p. 65
253
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Os temas abordados na pesquisa se fazem da área de humanas e sociais aplicadas, que


estabelecem articulações com fundamento em pressupostos presentes na proposta curricular de
Santa Catarina e na Base Nacional Comum Curricular, sendo que a Filosofia está atrelada aos
materiais curriculares como componente curricular em suas especificidades de ensino das
competências e habilidades, a partir das categorias fundamentais do ensino médio que estão no:

[...] conhecimento científico; ethos social; tempo; espaço; memória; patrimônio,


indivíduo; identidades; sociedade; territórios; natureza e ambiente; relações de
poder; relações de saber/poder; poder; política; cidadania; diversidades; cultura;
saúde; mundos do trabalho; trabalho e ética. 76

Nesse aspecto, analisar realidades urbanas a partir do que ocorre nas homologações
cotidianas do viver e fazer no ambiente escolar a respeito do ensino do patrimônio cultural, a partir
de algo já estressado através de problematizações em estudos específicos da área continua
emergente, pois, no que Henry Rousso77 estabeleceu como sendo o processo de enquadramento.
Portanto, ao que seria um aspecto que ainda não foi problematizado sistematicamente a partir das
abordagens teóricas do patrimônio e da educação formal, a respeito da cidade e de sua diversidade
cultural, a partir da problematização dos vários grupos de pessoas e dos diferentes espaços em São
Bento do Sul em suas identificações e recusas à memória oficial.
Com o facho de análise direcionado aos adolescentes do Ensino Médio, se evidenciam
alicerçado nos materiais didáticos, no Currículo Base do Território Catarinense e da prática didática
que se faz costumeiramente na cidade, que por exequíveis razões ocorrem padronizações de
tradições e narrativas, ao a qual foi conceituada a partir do que Laurajane Smith78 denomina como
discurso patrimonial autorizado, em que alguns grupos desses estudantes do ensino médio que não
se identificaram nesse passado seleto de memórias do tempo da cidade, foram excluídas do uso
desse patrimônio cultural, também sendo nas ausências do historicizar das memórias negligências

76
Santa Catarina. Secretaria do Estado da Educação. Currículo base do ensino médio do território catarinense: caderno
2 – formação geral básica. Florianópolis: Gráfica Coan, 2021. p. 71
77
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho,
Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.
78
SMITH, Laurajane. Emotional heritage: visitor engagement at museums and heritage. Abingdon, Oxon ; New York,
NY: Routledge, 2020.
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

às próprias recusas dos grupos, diante de uma história oficial que impediu o emergir de outras
identificações de patrimônio cultural fora do tradicional e oficial de São Bento do Sul.
Conceituar o patrimônio cultural no tempo presente, depende de um reflexo da ordem
conceitual da profusão semântica, evidenciado do lugar, das teorias, metodologias e dos aspectos
políticos de cada período histórico. Sendo uma construção social o patrimônio e a sua relação com
o tempo, portanto há nesse sentido, ressignificações sofridas a partir da incorporação do conceito
antropológico de cultura, assim como da perspectiva de alteridade, faz do termo algo amplo, que
ao invés de sanar os questionamentos, os multiplicam.
O passar do tempo estabeleceu a insustentabilidade da noção universal de patrimônio, que
por seu viés supressivo e a partir das críticas feitas, foram sendo criadas novas classificações ou
adjetivos, na tentativa de contemplar suas complexidades, tais como: material, imaterial, mundial,
local, histórico, natural, móvel, imóvel, etnográfico, arqueológico, paisagístico, entre outros.
Nesse sentido considerar o tema tempo evidenciado no Currículo do Território Catarinense
como proposta temática para o Ensino Médio é problematizar o assunto através dos sujeitos
inseridos no espaço da educação:

[...] uma representação, discurso e narrativa das temporalidades múltiplas, e


também uma percepção das experiências dos múltiplos sujeitos históricos inscritos
no movimento e nas semânticas dos tempos históricos79.

Com impossibilidade de retorno ao passado, ocorrem tentativas através da memória de se


cativar grupos com costumes e sensações de um tempo diferente, da vivência que está sendo
compreendida como presente, podendo ser legados através de uma educação formal e oficial, ou
através dos costumes cotidianos e das práticas urbanas, ou a partir daquilo que se estabelece como
de difícil conceituação epistemológica, o patrimônio cultural.

Assim, os(as) estudantes podem refletir acerca das narrativas de preservação de


um passado já extinto, ou prestes a desaparecer, e o confrontar com os discursos
de renovação constante, que buscam o presente refletindo acerca do sentido
temporal destes variados regimes de historicidades 80.

79
KOSELLECK, Reinhert. Uma latente filosofia do tempo. São Paulo: Editora Unesp, 2021.
80
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica,
2013.
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Nesse sentido, definir o patrimônio cultural, a partir das recusas e identificações de periferias
da memória autorizada e de grupos marginalizados, que se opõem às políticas educacionais voltadas
ao patrimônio já consolidado, possibilitará presumivelmente a identificação e o reconhecimento
das diversas identidades e memórias da cidade, propiciando uma possibilidade de ir além da
exclusividade de bens culturais reconhecidos e autorizados de apenas um grupo específico de São
Bento do Sul.
Algumas identidades se encontram organicamente com o patrimônio reconhecido pelo
poder público, enquanto em outras ocorrem recusas, podendo ser um questionamento viável do
tempo presente, porém, não imediata de grupos que passaram por processos de exclusão no
passado dos espaços da cidade, a partir de disputas por uma inclusão do passados supostos como
memoráveis ao reconhecimento histórico, além do existir, sendo possível como a coadunação de
diversas identidades à cidade.
Enquanto houver evidências de grupos considerados detentores do tempo da memória e das
narrativas da cidade, se estabelecem a determinar qual a identidade por repetição as cidades devem
assumir, seja em suas tradições, ou nas formas de rememorar, enquanto além dessa memória
autorizada, delimitar-se-á manterem o silêncio como grupos periféricos da cidade nas beiradas da
historiografia tradicional.
Dessa forma pensar as problematizações necessárias aos estudantes no Ensino Médio
através do Currículo do Território Catarinense em que:

A Filosofia oportuniza problematizar e significar os sentidos existenciais e seus


valores. A formação humana propiciada pela Filosofia promove a capacidade de
abstração, o pensamento crítico e a disposição para aceitar a pluralidade de
posicionamentos.81

Problematizações que possibilitam a emergência de escalar as pessoas na experiência do


tempo presente da cidade, aos estudos das recusas e das identificações que se estabelecem pela
memória do patrimônio cultural urbano de São Bento do Sul, nos espaços de educação formal a
partir do reconhecimento do fazer e viver da produção cultural diversa cotidiana.

81
Santa Catarina. Secretaria do Estado da Educação. Currículo base do ensino médio do território catarinense: caderno
2 – formação geral básica. Florianópolis: Gráfica Coan, 2021. p. 66
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

Problematizar o patrimônio cultural, fundamentado nos discursos da história de um local em


uma cidade em que tradicionalmente é realizado enaltecimentos de alguns grupos sobre outros, a
partir de que atualmente: “[...] o conceito de patrimônio cultural vem de uma reduplicação
museográfica do mundo”82. Com histórias que se forjaram com livros locais, publicações da
imprensa e no próprio processo de escolarização das pessoas pertencentes a cidade. Possibilita a
reflexão do que Jeudy menciona: “[...] que incita toda estratégia patrimonial, em promover a
visibilidade pública dos objetos, dos locais, dos relatos fundadores da estrutura simbólica de uma
sociedade”83.
Algumas cidades, como no caso de São Bento do Sul, enalteceram ao longo do tempo
recortes de uma história fundamentada em características exclusivamente provenientes de um
processo migratório, se deu ênfase à cultura europeia, principalmente a alemã, em que se construiu
a partir do poder público e com grupos que se responsabilizaram pela promoção dessa cultura. Se
torna questionador ao que: “Pensemos nos Estados coloniais em três instituições fundamentais no
sentido de moldar as imaginações: os censos, os mapas e os museus”84. Logo adiante no texto
menciona que isso foi responsável pela maneira de imaginar os seus domínios, logo, a forma de
pensar as cidades e seus espaços.
Assim sendo, problematizar o que determina a cidade e as suas características é observar na
sua formação imaginária não somente a partir de arquivos e museus, mas observar também, as
construções do que alguns grupos consideram do que não poderia ser a cidade. Refazer perspectivas
do patrimônio cultural a respeito dos reconhecimentos e recusas do tempo presente, evidenciam
apagamentos e negligências das culturas presentes no cotidiano das cidades.
Poder-se-ia questionar as intenções dessa especificidade em aspecto geral, contudo, não é
este o objetivo da dissertação, construir uma outra história com o desacreditar do que é
considerado consagrado por muitos, mas a partir de premissas de que alguns outros grupos, que
não fazem e nem fizeram parte desse processo do historicizar oficial da cidade, a partir de interações
cotidianas do ambiente escolar, observar os diversos produtos culturais produzidos e

82
JEUDY, Henry P. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p.18
83
Id ibid
84
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008. p. 15
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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

compreendidos como patrimônio de alunos do ensino médio de um colégio da periferia de São


Bento do Sul.
Segundo Jeudy, para que exista a possibilidade do reconhecimento de um patrimônio: “[...]
é preciso que ele possa ser gerado, que uma sociedade se veja o espelho de si mesma, que considere
seus locais, seus objetos, seus monumentos reflexos inteligíveis de sua história, de sua cultura”.85
Portanto, para se reconhecer como integrante da cidade e do patrimônio cultural, mesmo
quando não reconhecido pelo poder público, meritório é compreender as diferentes perspectivas,
de identificações e memórias diante de uma temporalidade presente do uso desses passados da
história e do patrimônio cultural de São Bento do Sul.
Alunos da educação básica diariamente refletem sobre a demora da passagem do tempo,
seja do tempo presente de suas vidas na adolescência em si como demoradas, ao anseio de uma
vida adulta, como refletido: “Gostaríamos que ora o tempo corresse mais rápido, ora que se
arrastasse ou se imobilizasse”.86. Enquanto algumas ocasiões cotidianas, afirmam os alunos que
passou o tempo rapidamente diante de um interesse específico e subjetivo que ocorreu a partir de
uma aprendizagem em sala de aula que lhes desperta interesse.
Enquanto perceber o tempo com um pesar, não a partir de medições cíclicas diárias e
lineares, ou do que é medido como uma jornada de trabalho exaustiva, mas que muito se sente, ou
na leveza, quando ao medir muitas vezes e não se percebe as suas dimensões pela rotina do
agradável e gosto pessoal.

Mas é também, e talvez sobretudo, porque as divisões do tempo, a duração das


partes assim fixadas, resultam de convenções e costumes, e porque exprimem
também a ordem, inelutável, segundo a qual se sucedem as diversas etapas da vida
social.87

Afirmações que ocorrem no cotidiano das pessoas que inevitavelmente dependem do


tempo, assim como, afirmações presentes no ambiente escolar sobre a passagem do tempo.

Contudo, existe uma concepção contínua e mutável através de vários milénios na


maneira de escrever sobre o seu próprio tempo: as modalidades, os métodos, as

85
JEUDY, Henry P. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p.18
86
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Revista dos tribunais LTDA, 1990. p. 90.
87
Id ibid. p.90
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finalidades da escrita da história mudaram consideravelmente de uma civilização a


outra.88

A maneira de divisão do tempo da vida pessoal, aconteceria com mais frequência


possivelmente a partir da pulsões, não da organização da obrigatoriedade da sujeição à disciplina
social, que sem dúvida ao se tratar do ambiente escolar, a necessidade no que diz respeito as nossas
ocupações cotidianas na educação e na realidade de trabalho do tempo presente, se faz inevitável
ao processo da própria organização social, que embora a vontade possa ser outra, discutir a ideia
do ambiente escolar como justamente um local disciplinador para a mecanização do fazer laboral
pela medida do tempo e como isso está fundado na tradição de temporalidade historiográfica da
cidade de São Bento do Sul e das narrativas tradicionais evidencia a necessidade da análise mais
crítica de como isso acarreta a concepção de ensino de memória e da história de uma cidade.

Para um pensamento vivo, impaciente e tenso, quantos encontraremos que apenas


são excepcionalmente estimulados por algum acontecimento exterior, e cujo ritmo
normal é lento e monótono porque seu interesse se detém, e ainda sem grande
entusiasmo, somente a um pequeno número de objetos.89

A partir desse momento, as divisões convencionais do tempo se impõem a nós de fora. Mas
elas têm sua origem nos pensamentos individuais. Estes somente tomaram consciência de que em
certos momentos entram em contato, de que precisa um direcionamento adequado do professor
para fazer o tempo ser útil, e pensar seja em qual tempo for, o tempo que foi e será não importando
se são reflexões deles mesmos. Discutir a problematização dos discursos que de acordo com o autor
Anderson (2008) que discute como os discursos são caracterizados pela noção de simultaneidade,
inaugura uma ideia de tempo vazio, e o vazio se preenche com qualquer coisa: “Abolem-se divisões
cronológicas claras, e em seu lugar se estabelecem regimes de temporalidade que jogam para a
esfera do mito o passado e os momentos de fundação”. 90
A partir de narrativas estabelecidas como oficiais, muitas vezes não se fazem necessárias
formas de apagar as histórias não atreladas ao mito fundador/colonizador de São Bento do Sul, nem

88
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho,
Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. p. 281.
89
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Revista dos tribunais LTDA, 1990. p.95
90
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008. p. 12
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mesmo respostas violentas aos grupos que emergem com outras memórias, sendo que: “[...] de
alguma maneira, o património seja excluído do circuito dos valores mercadológicos, para salvar seu
próprio valor simbólico”.91, mas na ausência de espaços para narrar na cidade, na ausência do
reconhecimento ou da possibilidade da educação escolar, por diversos motivos, políticos ou
mercadológicos, ou de tornar espaço de diálogo a sala de aula para diversas memórias e
entendimentos da cidade.

Considerações finais

O processo de estressar reflexões acerca do patrimônio de São Bento do Sul, a partir de


adolescentes do Ensino Médio, incita toda a estratégia patrimonial, que se estabelece justamente:
“[...] em promover a visibilidade pública dos objetos, dos locais, dos relatos fundadores da estrutura
simbólica de uma sociedade.
A transparência do que é transmissível anula a possibilidade de imaginar o que poderia até
ser ocultado da memória. O adolescente no ambiente de seus espaços de sociabilidade e
convivência se torna o sujeito que recebe a coesão social dos grupos que estão inseridos na cidade
a partir da sua própria rede de sociabilidade, com isso a partir da memória como transmissão
automática do valor patrimonial da cidade. Os riscos de não acontecerem as críticas e diálogos dos
processos de identificação e recusa do patrimônio cultural, a partir de que justamente em um
ambiente de pluralidade cultural que se faz a escola.
Pensar a conservação patrimonial a partir do Ensino Médio como “a certeza de uma ordem
do mundo e de uma organização do sentido”92, não é de uma produção cultural criativa e dotada
de sentidos à cidade, mas apenas do entendimento do espaço que está inserido e estabelecido por
alguns grupos, que diante das ressignificações do sentido passado ou do antigo, intentam
determinar algo no tempo presente, com isso, não apenas fica como algo dissonante nas cidades
em suas identificações e recusas, mas como algo estabelecido sem problematizações.
Contudo, se essa ordem patrimonial estabelecida em uma cidade depende apenas de uma
valorização e perspectiva, dos grupos que estabeleceram do que pode ser o ordenamento social

91
JEUDY, Henry P. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p.19
92
id ibid. p. 16

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sobre outros, ou da transmissão educacional formal em um aspecto unilateral, problematiza o


próprio processo educacional como um espaço para a libertação ou da autonomia das pessoas.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do


nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Volume II. 6 ed. Tradução: Rubens Torres Filho e José Carlos
Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. 4 ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2022.

BRASIL. Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina. Currículo Base do Território


Catarinense. Santa Catarina, 2023.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2023.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22 ed. 6 reimp. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2020.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Revista dos tribunais LTDA, 1990.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo. Belo


Horizonte: Autêntica, 2013.

JEUDY, Henry P. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

KOSELLECK, Reinhert. Uma latente filosofia do tempo. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. vol. 2, n.3. Rio de janeiro: Revista Estudos
Históricos, 1989.

RICŒUR, Paul. A memória, a história, e o esquecimento. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,


2007.

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de


Fernando Coelho, Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.

SANTA CATARINA. Secretaria do Estado da Educação. Currículo base do ensino médio do


território catarinense: caderno 2 – formação geral básica. Florianópolis: Gráfica Coan, 2021.

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PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: TRABALHO, MEMÓRIA E AMBIENTE

SILVA, Tomaz T. da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 15 ed. 10 reimp.
Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2022.

SMITH, Laurajane. Emotional heritage: visitor engagement at museums and heritage. Abingdon,
Oxon ; New York, NY: Routledge, 2020.

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EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA FORMAÇÃO INICIAL DOS CURSOS DE PEDAGOGIA

Silvia Sell Duarte Pillotto |Pós-doutora | Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE)| e-mail:
pillotto0@gmail.com
Mirtes Antunes Locatelli Strapazzon | Doutoranda | Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE)| e-mail:
mirteslocatelli@gmail.com
Maura Maria Roth | Mestranda | Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE)| e-mail:
mauraroth.adv@gmail.com
Rita de Cássia Fraga da Costa |Doutora | Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE)| e-mail:
ritadacosta08@gmail.com

Introdução

O artigo Experiência estética na formação inicial dos cursos de Pedagogia destaca alguns
fragmentos de uma pesquisa internacional com a participação de 22 instituições brasileiras e
estrangeiras, sendo uma delas a Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE, representada pelo
Núcleo de Pesquisa em Arte na Educação – NUPAE 93.
A problemática que permeia todas as instituições envolvidas tem o mesmo pressuposto: qual
a bagagem artístico/cultural dos acadêmicos do curso de Pedagogia e como mobilizar a criação
artística na ação formativa? O questionamento nos levou ao seguinte objetivo: produzir
mapeamento da bagagem artístico/cultural de acadêmicos de Pedagogia, traçando linhas de
atuação para potencializar as artes/culturas na formação docente.
A pesquisa está em andamento e tem em seus fundamentos teóricos/metodológicos os
seguintes autores: Celorio (2015, 2022), Dias (2013), Leggo e Irwin (2023), Meira e Pillotto (2022),
Rancière (2015) e Skliar (2003, 2014). Além desses autores, o espaço de pesquisar e pesquisar-se
está aberto para outros que ao longo da caminhando vamos encontrando.
O método utilizado na pesquisa é o a/r/tográfico, uma vez que é compreendido como
intercâmbio crítico/reflexivo e relacional entre pesquisadores e partícipes da investigação. A
pesquisa de campo aconteceu no curso de Pedagogia da Univille com destaque para a Proposição

93
O NUPAE tem como premissa a educação, a arte e a estética, destacando as sensibilidades, o afeto e as experiências
em pesquisas (auto)biográficas, desdobradas em narrativas, histórias de vida, cartografias, a/r/tografias, entre outras.
São duas as linhas de pesquisa do NUPAE: - Educação Estética e Processos de Criação, que investiga sobre educação e
Experiências Estéticas; produção, teoria e crítica da arte; educação patrimonial; processos de criação nos espaços
formais, não formais e informais da educação; e - Educação, Linguagens e Práticas educativas, que investiga sobre: o
ensino e aprendizagem das Artes (visuais, cênicas, musicais, literárias e tecnológicas), considerando os territórios
artísticos, culturais, virtuais e estéticos, além da investigação sobre/com infâncias e criança, Currículo na Educação
Básica e Superior.
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Estética - da memória musical ao movimento: vivências (im)pensadas para o corpo, que destacou as
linguagens/expressões sonoras, visuais e corporais.
Durante a Proposição Estética, os acadêmicos ficaram imersos no processo de criação,
inspirados pela memória musical e pelas relações construídas nos espaços com pessoas, objetos e
as poéticas, bem como com o corpo/movimento, corpo/sentido e corpo/sujeito.
Os instrumentos utilizados para a produção/coleta de dados foram: foto/ensaio, gravações
orais e vídeos, caderno de experiência (anotações dos pesquisadores) e as produções artísticas.
No momento estamos na etapa de captação/seleção de imagens, vídeos, anotações e
produções em geral a análise-compreensiva-interpretativa (BERTAUX, 2010). Nesse sentido, a
pesquisa tem possibilitado a compreensão sobre os percursos estéticos, que envolvem a relação
(inter)pessoal dos/as pesquisadores/as e partícipes da investigação em determinado tempo/lugar,
imprimindo um conjunto de sensibilidades que ecoam na experiência.
Para esse artigo definimos alguns itens que nos apontaram pistas e efeitos referentes
bagagem artístico/cultural de acadêmicos de Pedagogia da UNIVILLE.

Pedagogia e Sensibilidades

O Curso de Pedagogia tem como desafio a formação de docentes que atuarão com crianças
da educação infantil e dos Anos Iniciais da Educação Básica. Entretanto, temos nos perguntado
como a formação inicial desses futuros pedagogos tem acontecido e se os currículos possuem em
suas bases uma educação pelo sensível.
Temos defendido a educação estética, não apenas para a Educação Básica, mas para todos
os cursos de licenciatura, em especial os cursos de Pedagogia. Isso porque as linguagens/expressões
das artes nos constituem pessoas críticas e sensíveis, buscando nas sensibilidades a nutrição
estética. Birck (2021, p. 2), afirma que:

[...] é no campo artístico, com a poesia, a música, as pinturas e as cenas de um filme,


que se oportuniza o despertar da sensibilidade para os fenômenos humanos, seja
bela ou trágica, tranquilizadoras ou inquietantes, pois revelam facetas e
características próprias de cada ser humano. A formação ampla, sensível, rigorosa,
crítica e principalmente inconclusa deve ser a meta dos espaços próprios de
formação.

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Nesta perspectiva é possível afirmar que a educação estética no campo da Pedagogia


possibilita a apreensão da realidade, uma vez que o conhecimento não se dá somente na prática
intelectual, mas sobretudo em ações e atitudes guiadas pelo imaginário e sensibilidades.
Assim, pensar em sensibilidade é pensar a intuição, emoção, percepção, imaginação e
criação de sentidos, unidos pelas culturas e o social. As relações sensíveis, portanto, se produzem
na interface das linguagens/expressões das artes e das culturas o verdadeiro sentido da vida (Skliar,
2014).
No território da Pedagogia, a educação estética pode ser um dispositivo, provocando “[...] o
diálogo com outras formas de pensamento, reiterando a necessidade de um tempo maior para a
prática artística e a reflexão estética, seja na área de Arte ou em outro campo de conhecimento”
(MEIRA; PILLOTTO, 2022, p. 62).
Atuar com as infâncias é possibilitar que fendas sensíveis façam parte do cotidiano,
alimentando o desejo pela docência. É um cuidar de si para cuidar do outro, uma experiência
indissociável do eu/outro e o outro/nós (FOUCAULT, 2005). O cuidar na pedagogia se traduz em
uma prática social, que precisa de um guia, que pode ser o/a professor/a. Esta é uma das
possibilidades da constituição de relações entre estudantes e professores/as, no processo do
cuidado de si e do outro (FOUCAULT, 2005).
Deste modo, pensar o currículo e as práticas educativas nos cursos de formação inicial na
Pedagogia e na formação continuada, é potencializar a “[...] dimensão criadora, inventiva,
brincalhona, ‘cantante’, ousada, aventureira, corajosa” (LEITE; OSTETTO, 2004, p. 93-94). Afinal, a
docência com crianças implica um corpo sensível docente, capaz de sentir/perceber, tangenciando
o mundo com os

[...] órgãos dos sentidos transformando essa coleta sensorial em informação para
gerar processos cognitivos. Aquilo que é sentido transforma-se na fonte primária
da cognição. O corpo é porta de entrada de todo o conhecimento e por isso o
entendimento corpóreo se faz fonte para o conhecimento. [...] E pelo
reconhecimento dos sentidos, do imaginário é que adentramos nas sutilezas do
emaranhado da mente. (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p. 34-35).

A/r/tografia como método de criação

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Por conta da natureza dessas questões que fomos mobilizadas a acolher o método
a/r/tográfico em nossa pesquisa, pois como nos fala Josso (2016, p. 71-86), o pesquisador/docente
é um “ser de sensibilidade, o ser de afetividade, o ser de emoções, o ser da cognição, o ser da
imaginação [...]”.
Vale aqui destacar o significado etimológico da nomenclatura a/r/tografia, que para Dias
(2013, p. 25), “A/R/T é uma metáfora para: Artist (artista), Researcher (pesquisa), Teacher
(professor) e Graph (grafia: escrita/representação). Na a/r/tografia saber fazer e realizar se fundem.
Elas se fundem e se dispersam criando linguagem mestiça, hibrida.”
A partir dessa perspectiva, a pesquisa tem criado movimentos, no sentido de narrar bagagem
artístico/cultural de acadêmicos de Pedagogia, reiterando a ideia de que “[...] é também modelo de
inteligibilidade da experiência presente [...]” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 74). Ou seja, a medida
que trazemos o passado para o presente, o trazemos com novas significações. Na pesquisa “[...] o
corpo humano pode ser afetado, ora de uma maneira, ora de outra e, consequentemente, pode,
em momentos diferentes, ser afetado diferentemente por um só mesmo objeto” (SPINOZA, 2013,
p. 221).
A A/r/tografia portanto, favorece o “[...] intercâmbio crítico que é, reflexivo, responsivo e
relacional, que está em contínuo estado de reconstrução e conversão em outra coisa” (IRWIN;
SPRINGGAY, 2013, p. 139). Um deslocar, que intensifica o pensar/sentir em linhas que se
(entre)laçam em partilhas sensíveis, atravessadas pelo processo investigativo (RANCIÈRE, 2015).
O método, fundamenta-se se configura como “[...] atividade formadora e remete o sujeito
para uma posição de aprendente questionando suas identidades a partir de diferentes modalidades
de registro sobre suas aprendizagens experienciais” (ARAGÃO, 2010, p. 394).
A partir dessa perspectiva assumimos o papel de artográfas, (entre)laçando múltiplas
possibilidades de fazer pesquisa, pois nessa condição somos

[...] capazes de criar artefatos e textos que representam a compreensão adquirida


a partir de suas perguntas iniciais, no entanto eles também prestam a devida
atenção para a evolução dos problemas durante a investigação (DIAS, 2013, p. 29).

Para o/a artógrafo/a, as perguntas são tão importantes quanto as respostas, pois sinalizam
possibilidades para a compreensão dos fenômenos. Nesse método, os movimentos acontecem

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entre artógrafos/as e (inter)locutores/ras, todos partícipes do processo investigativo. É, como


afirma Skliar (2003, p. 102)

[...] não esquecer a pergunta, refazer a pergunta, interrogar a pergunta, malferir a


pergunta. Significa também não se acostumar com a nostalgia da mesmidade, não
se deixar arrastar pela agonia do já não ser, nem arrastar o outro nessa agonia tão
torpe e impiedosa.

A pergunta mobiliza os processos de criar e consequentemente de criar circunstâncias ou


ainda como afirmam Moles e Caude (1977, p. 32), é o “[...] processo pelo qual se provoca a existência
de um novo objeto”, ou ainda, a “[...] criação da novidade”. Portanto, o potencial investigativo na
a/r/tografia está na interação com o outro, o que possibilita aguçar a atenção e as sensibilidades,
oportunizando outros modos de convivência e produção de conhecimentos outros.
Acolher as perguntas dos/as (inter)locutores/as da pesquisa é “[...] criar um lugar, abrir um
espaço em que aquele que vem possa habitar, pôr-se à disposição daquele que vem, sem pretender
reduzi-lo à lógica que impera em nossa casa” (LARROSA, 2004, p. 188).
A pesquisa tem conduzido suas ações com base na ideia da investigação como criação e
cuidar de si, pois como nos ensina Foucault (2005) o desafio não é apenas descobrir, mas promover
novas formas de subjetividades.

Processos de pesquisar e pesquisar-se

O campo de pesquisa aconteceu no curso de Pedagogia na Universidade da Região de


Joinville (UNIVILLE) com a participação de 22 acadêmicos/as, que criaram poéticas a partir da
Proposição Estética: da memória musical ao movimento: vivências (im)pensadas para o corpo.
Iniciamos a Proposição Estética, solicitando que cada um dos acadêmicos/as escolhessem
um lugar na sala e permanecessem em silêncio. Em seguida oferecemos máscaras e solicitamos que
buscassem em suas memórias músicas que lhes haviam afetado e na sequência cantarolassem para
o colega ao lado.
Os/as acadêmicos/as trouxeram à memória músicas relacionadas as infâncias, a escola e as
brincadeiras com vizinhos/as, amigos/as, familiares e com as perdas e demandas tristes e alegres.

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A experiência, num primeiro momento causou estranhamentos, mas aos poucos se


transformou em um misto de saudade, nostalgia e alegria. Mapear memórias significa também
narrar histórias imaginárias e reais, envolvendo questões relacionais, culturais e de
tempo/experiência.
As vozes se calam enquanto as memórias trazem músicas expressas no acomodar dos
sentidos. Instante de “[...] atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar- se tempo e espaço” (LARROSA, 2002, p. 24).
O sorriso é fácil quando se (re)encontram com a voz emitente... acontece uma espécie de
satisfação plena no retorno para si mesmo. Nos grupos eles/as combinam suas performances. São
vozes sequenciadas e um falatório ritmado. Momento de sintonia e concentração e ao mesmo
tempo descontração.
Corpos que vibram em um tempo/espaço manifestado pela expressão. E como afirma
Corazza (2001, p. 30), práticas num piscar de olhos suprimem e

[...] desfazem a compreensão, a fala, a visão e a escuta das mesmas coisas, dos
mesmos sujeitos, dos mesmos conhecimentos. Desassossegam o sossego dos
antigos problemas e das velhas soluções. Estimulam outros modos de ver e ser
visto, dizer e ser dito [...].

Dando continuidade a Proposição Estética, solicitamos que os/as acadêmicos/as


escrevessem partes do corpo em tiras de papel, e ações (verbo) que o corpo faz, em outra tira papel.
As tiras foram depositadas em recipientes diferentes. Na sequência, cada acadêmico/a, de modo
aleatório retiraram dos recipientes tiras contendo escritas referentes a partes do corpo e ações. A
lógica sem lógica...As mãos ouvem? Os pés cantam? Os olhos caminham? O cotovelo beija?
Construções que submeteram “[...] as operações mentais a um projeto criador” (MARINA, 1995, p.
169).
Após o impacto com o desconhecido universo da não lógica, os/as acadêmicos/as receberam
suportes em papel de variadas formas: retângulo, triângulo, quadrado, circulo; e variados
tamanhos: pequenos, grandes e médio. O desafio foi que criassem listas-poemas, fazendo junções
das tiras de papel inseridas nos espaço-suporte (papel). Muitas conversas aconteceram no
momento de criação, e como nos fala Larrosa (2003, p. 213).
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Uma conversa está cheia de diferenças e arte da conversa consiste em sustentar a


tensão entre as diferenças... mantendo-as e não as dissolvendo... e mantendo
também as dúvidas, as perplexidades, as interrogações... e isso é o que a faz
interessante... por isso, em uma conversa não existe nunca a última palavra... por
isso uma conversa pode manter as diferenças até o final, porém cada vez mais
afinadas, mais sensíveis, mais conscientes de si mesmas... por isso uma conversa
não termina, simplesmente se interrompe e muda para outra coisa.

A pesquisa a/r/tográfica envolveu as expressões e linguagens das artes: visuais, sonoras,


corporais e literária, abrindo fendas de sensibilidades. Uma pesquisa viva e como afirmam Carl
Leggo e Rita Irwin (2023, p. 352) “[...] trabalhar com outros nos abre para o desconhecido e nos
torna coautores do conhecimento, cocriadores da pedagogia e coparticipantes nas comunidades de
práticas”.

Considerações Finais

Durante a Proposição Estética, percebemos que os/as acadêmicos/as teceram fios


(entre)laçados nas memórias de infâncias como lampejo de um tempo (re)significado no presente.
O que no impulsiona a “[...] expor nossas produções, assumindo também os riscos de suas/nossas
fragilidades?” (CORAZZA, 2004, p. 108-109). O que nos move a revisitar nossas memórias, deixando-
as vivas em nossas almas? É o que faz uma pesquisa a/r/tográfica, lidando com o imaginário como
forma de aceitação e estranhamento de quem fomos e de quem somos (BERTAUX, 2010).
Enquanto observávamos os processos de construção poética dos acadêmicos/as,
anotávamos nossas percepções em blocos de papel e na memória. Esse instrumento de pesquisa
funcionou como diários de sentidos. A escrita se constituiu de movimentos internos/externos, que
nos afetava de modo individual e coletivo. Uma conversa interior de subjetividades, ou ainda, “[...]
um movimento feito de sensações, ações e pensamentos, sofrendo intervenções do consciente e
do inconsciente” (SALLES, 2007, p. 27).
As observações, intervenções e construções afetivas na pesquisa a/r/tográfica acontecem na
experiência e na “escrita sobre nós mesmos e sobre o nosso entorno, tornando-se fundamental para
a compreensão do nosso próprio caráter” (CELORIO, 2015, p. 68). E, como nos provoca Maldonato
(2012, p. 17),

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[...] o próprio instante é o tempo, o absolutamente único e imprevisível presente


que ressoa com os outros instantes. Cada ato nosso de consciência está
mergulhado no instante, em um agora que quebra a indiferente continuidade
daquilo que é conhecido.

Realizar a Proposição Estética com acadêmicos/as em formação inicial na Pedagogia nos


instigou a pensar que a formação inicial implica

[...] nossa capacidade de escutar (ou de ler) isso que as coisas (textos, filmes,
notícias, pessoas, objetos, animais, cotidiano, etc.) têm a nos dizer. Uma pessoa
que não é capaz de se pôr à escuta cancelou seu potencial de formação e de
transformação (LARROSA, 2002, p. 133).

Além disso ficou evidente que a formação requer disponibilidade para a criação, pois esse é
um “movimento, onde reinam conflitos e apaziguamentos. Um jogo permanente de estabilidade e
instabilidade, altamente tensivo” (SALLES, 2007, p. 28). Transformar realidade em irrealidade e
irrealidade em realidade é uma busca interminável para o/a docente criativo/a. O
Professor/a/pesquisador/a/inventor/a é aquele capaz de manter acesa a chama da paixão em
exercer seu papel social.

REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Ana Maria F. de. Reflexividade coletiva: indícios de desenvolvimento profissional


docente. Tese (Livre Docência em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2010.

BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Natal: EDUFRN; São Paulo:
Paulus, 2010.

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Acta Scientiarum - História e filosofia da educação, [S.l.], v. 43, e54923, 2021. Disponível em:
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciEduc/article/view/54923. Acesso em: 05 nov.
2023.

CELORIO, José Aparecido. Narrativas e imaginários de professoras readaptadas: rumo a uma


pedagogia da observância. 2015. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de
Pelotas, Pelotas, 2015.

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ruínas existenciais. In: CHAVES, Iduina Mont’Alverne Braun; ALMEIDA, Rogério (org.). 100 anos
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CORAZZA, S. Na diversidade cultura, uma docência artística. Pátio – Revista Pedagógica,


Porto Alegre, v. 5, n. 17, p. 27-30, 2001.

CORAZZA, Sandra M.. Pesquisar o acontecimento: estudo em XII exemplos. In: TADEU, Tomaz;
CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 135 –
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metodológicas. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; PASSEGI, Maria da Conceição (org.).
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JOSSO, Marie-Christine. Processo Autobiográfico do Conhecimento da Identidade Evolutiva


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SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução e Notas: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Editora Autêntica,
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INTERSECÇÕES ENTRE TEORIA E PRÁTICA DA HISTÓRIA DIGITAL E DA HISTÓRIA


PÚBLICA: EXPERIMENTAÇÕES DE DIVULGAÇÃO HISTÓRICA NA UNIVERSIDADE
Lucas Jair Petroski - Graduando de licenciatura em História | Univille | lucaspetroski20@gmail.com
Anthonia Voss Sell - Graduanda de licenciatura em História | Univille | anthoniavsell@gmail.com
Fernando Cesar Sossai - Doutor e mestre em Educação (UDESC), graduado em História (Univille) | Univille |
fernandosossai@gmail.com

Introdução

Pretende-se discutir, neste texto, as possibilidades práticas de teorias em História Digital e


em História Pública experimentadas no curso de História da Univille, no Laboratório de História Oral
da Univille (LHO) e no Centro Memorial da Univille (CMU). Num contexto de grandes avanços das
tecnologias digitais - e com o aumento na fluidez de informações, notícias e publicidade de dados -
se faz necessário que o fazer da História, especialmente nos marcos da História Digital e História
Pública, enfoque a qualidade e o aprofundamento do conhecimento, tendo o seu conteúdo
referenciado, baseado em fontes e devidamente amparado em historiografia pertinente.
Sob este entendimento, ressalta-se a necessidade de que os discursos superficiais e
anacrônicos presentes nas múltiplas mídias e plataformas sejam combatidos com saberes históricos,
pela ciência histórica. Com isso, o papel da História Pública na comunicação desses saberes para
com os diferentes grupos é notável e, além disso, a História Digital é fundamental no fortalecimento
das discussões sobre as potencialidades e as dificuldades que o mundo em rede traz para o ofício
do historiador, entendendo que a sociedade da informação é complexa e exige um duplo esforço
de comunicar conteúdos relevantes e de filtrar a grande quantidade de informações encontradas
no meio digital.
Neste estudo teórico-prático, o objetivo geral consiste em pensar possibilidades de
requalificar e fortalecer a divulgação histórica com base na História Pública e na História Digital. E,
com o uso dos diversos instrumentos da cultura digital contemporânea, visa-se ampliar a interação
dos conteúdos históricos com as comunidades interna e externa à Universidade, procurando
democratizar saberes históricos gerados na e a partir da Univille. Também, almeja-se compreender
como o curso de História da Univille, o LHO e o CMU (por intermédio de aulas públicas e
experimentais, congressos e semanas de história, feiras, exposições) contribui para pensar novas
possibilidades de fazer História Pública e História Digital de qualidade.

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A metodologia se evidencia em experimentações teórico-práticas dentro de bibliografias da


História Digital e da História Pública e a prática se desenvolveu dentro das experimentações no curso
de História da Univille, no Laboratório de História Oral da Univille (LHO) e no Centro Memorial
Univille (CMU).
Queria-se a partir das experimentações realizadas, conseguir como resultados obtidos,
produtos gráficos, imagéticos, audiovisuais e textuais. Almejou-se que a feitura destes produtos
juntamente com a entrada nas mídias sociais mais conhecidas (Tiktok, Youtube, Instagram,
Facebook) aumentasse o alcance das produções de conhecimento realizadas no curso de história,
nos laboratórios e no Centro Memorial da Univille.
Ademais, o desenvolvimento do texto estruturou-se no seguinte formato: primeiro,
fundamentou-se com bibliografias as ações no curso de História, LHO e CMU, segundo, explicou-se
os trabalhos que foram resultados de entrecruzamentos e trocas em experimentações
comunicativas nos espaços e, por terceiro, mostrou-se alguns resultados quantitativos obtidos das
análises de dados das redes sociais.

Fundamentação bibliográfica das ações no curso de História, LHO e CMU

A historiografia que foi consultada e que aparecerá ao longo da produção desse estudo foi
necessária para se pensar meios e formatos de realizar a divulgação histórica e para discorrer sobre
o ofício do historiador. De início, logo se evidenciou que o mundo em rede ou mundo da internet
trouxe grandes desafios no fazer história, o que não está saliente ainda é o tamanho da dimensão
informacional e quais são os riscos desse novo mundo. A era do digital não é complexa apenas pelo
seu quantitativo, mas, também pelo próprio termo que foi ganhando novas interpretações ao longo
do tempo até chegar-se ao entendimento de uma cultura digital (SOSSAI, 2019).
De acordo com Câmara e Benicio (2017), há três grandes desafios quando pensamos na
sociedade da informação e a importância do historiador no enfrentamento ao mundo de
informações rápidas e superficiais, que são: o primeiro, nossas possibilidades de escolhas navegar
na web são guiadas pelos algoritmos; o segundo, o que é fonte histórica e como tratá-las em meio
ao digital; por último, como educar os usuários e a prática historiográfica em um mundo
despreparado ao informacionalismo. Para Fonseca (2012), a produção histórica nas mídias digitais

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é fundamental para a educação e para melhorar a divulgação e assimilação dos conhecimentos


históricos.
Em complemento, Noiret (2015) explica que as documentações que o historiador deve analisar
são difíceis de serem estudas em pormenores ou ao menos controladas, isto é, em uma sociedade
onde as informações são rápidas e curtas e os olhares são desatentos é difícil não só perscrutar a
quantidade de fontes como também de transmitir conhecimentos aprofundados (FONSECA, 2012).
Além disso, indo de acordo com o segundo desafio do historiador, sobre o que pode ser
entendido como fonte, até mesmo o conhecimento e as documentações se tornaram digitais, alguns
destes se encontram apenas no mundo virtual, como é o caso de blogs, websites e produções
midiáticas, deste modo, a discussão sobre o que é fonte vai para além do material, do oral e do
visual chegando na dimensão do algoritmo, do digital e das linguagens de programação. Em resposta
ao terceiro desafio do historiador na sociedade da hiperconexão, é dever do historiador ser crítico
e indagar as narrativas supérfluas ou simplórias sobre o mundo e sobre a história ( NOIRET, 2015).
O que deve ser conspícuo na sociedade informacional é que o ofício do historiador e a
narrativa histórica devem ser reconhecidas como dissonantes da produção desinteressada e
desarraigada que muitos produtores de conteúdos ditos históricos fazem. Ou seja,

A “história” e a memória que a rede mundial de computadores transmite, narradas


e interpretadas em parte por quem quer que seja, permite a reprodução acrítica e
descontextualizada de memória individual e comunitária, ou seja, do horizonte
“cego” de cada um. Esse localismo abstrato é incapaz de ler a complexidade dos
processos históricos e a sua globalidade ou de inseri-los naqueles contextos mais
amplos (NOIRET, 2015, p. 40).

Entretanto, esta nova sociedade que se apresenta também possibilita a democratização e a


globalização dos conhecimentos, a profusão de informações possibilita que aprendamos e
tenhamos acesso a saberes entendidos como subalternos, longícuos e raros (CÂMARA; BENICIO,
2017). A sociedade conectada pelo digital possibilitou a quebra de muitas barreiras geográficas e
facilitou o acesso a informação de qualidade e sem qualidade. Cabe aos historiadores, na sociedade
do esquecimento, produzir objetos e narrativas sérias e com bases sólidas para oportunizar a
consciência histórica (NOIRET, 2015).
Com base nestas compreensões teóricas, as ações e produções executadas dentro do
contexto do curso de História, do LHO e do CMU visou-se democratizar os conhecimentos históricos
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produzidos na universidade e com a universidade buscando fornecer conteúdos históricos


relevantes ao público e divulgar as atividades historiográficas executadas nestes espaços.

Entrecruzamentos e trocas em experimentações comunicativas

O conhecimento teórico-prático se deu a partir, além dos momentos de orientação e


acompanhamento das atividades com o coordenador, de momentos de trocas de conhecimento
com os bolsistas, estagiários e frequentadores do LHO.
Com base nos desafios e oportunidades do ofício historiográfico na sociedade em rede
desenvolveu-se vídeos e posts (cards) atrativos que abordam temas contemporâneos. No caso da
XXVIII Semana de História da Univille foram produzidos quatro vídeos, dois com cada convidado,
com perguntas atinentes aos assuntos que eles iriam abordar, no dia, em suas palestras. Além disso,
no contexto da semana de história foram produzidas postagens que visibilizavam as comunicações
orais ocorridas.
No mês de agosto, em homenagem ao dia dos historiadores foi gravada uma série de vídeos
e postado nas redes sociais (Instagram e Tiktok). Para os vídeos os estudantes e professores foram
convidados a responder cinco perguntas. As indagações são estas: Por que você escolheu a profissão
historiadora? O que é ser um historiador ou historiadora? Qual a importância dos historiadores e
historiadoras na sociedade contemporânea? Qual o papel e os desafios do historiador ou
historiadora na sociedade contemporânea? O que faz um historiador ou uma historiadora (quais
são suas atuações)?
Os vídeos tiveram a proposta de divulgar e aprofundar sobre as motivações, atuações,
interesses e papéis do historiador ou historiadora em nossa sociedade. Entretanto, as respostas aos
vídeos, por serem questões mais abertas, foram variadas, o que deixou o audiovisual mais dinâmico
enquanto estabelecia uma conexão com o público, fornecendo ao trabalhador no ofício
historiográfico a possibilidade de ser enxergado por dois espectros, um deles é a faceta do
historiador/professor como um profissional e o outro é a visão do historiador/professor como
pessoa.
Outra proposição que se deu por meio de vídeos foi a caracterização do curso de História da
Univille, os quais tinham por objetivo apresentar os projetos, os laboratórios, os espaços, o centro
acadêmico e as principais atividades do curso. E, as atividades, conquistas e eventos (semana de
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História, feiras, aulas experimentais, saídas de campo, entrevistas, saídas de extensão, grupos de
estudos) do curso de História ficaram visíveis em posts e stories.
No CMU, as publicações se concentraram em mostrar o trabalho no acervo e na descrição
de uma fonte histórica. O constante aprimoramento nas artes e softwares visa criar conteúdos mais
satisfatórios em termos de alcance de público e no fazer história de qualidade. Mostra-se, na figura
1, algumas publicações do curso de História.

Figura 1 – Posts do Curso de História da Univille

Fonte: Autores, 2023.

Nas redes do LHO as publicações se concentraram nas oficinas ministradas ao longo do ano
com a educação básica, concomitantemente, houve a divulgação das participações das pré-
conferências e conferências municipais de cultura, da feira do livro e das visitas que o laboratório
recebeu ao longo do ano. As artes estruturadas pelo Laboratório de História Oral da Univille
buscaram assegurar uma identidade visual, como é possível ver nas postagens exibidas na figura
abaixo.

Figura 2 – Posts do Laboratório de História Oral da Univille.

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Fonte: Autores, 2023.

Resultados quantitativos das mídias sociais

Ao longo do estudo teórico-prático procurou-se analisar os dados para entender qual era o
público de nossas mídias e como este público interagia com os conteúdos. A partir das análises
oferecidas pelas redes socias, alguns dados quantitativos relevantes foram escolhidos. Por exemplo,
no quadro 1 é possível notar o aumento do número de seguidores no Instagram no ano de 2023, de
março até dezembro, além disso, a rede social do CMU foi criada dentro deste período.
As experimentações que aconteceram vão de encontro as teorias sobre o digital, pois, o
mundo em sua transformação pela virada digital resulta também numa mudança no ofício do
historiador e no tratamento dos saberes históricos (BRESCIANO, 2015). Desta forma, os dados nos
quadros a seguir servem de objeto a ser analisado pelos historiadores e pelas instituições que
buscam se imbricar na divulgação histórica.

Quadro 1 - Número de seguidores no Instagram do curso de História, do LHO e CMU antes e depois do
começo das práticas intencionadas de divulgação histórica.

Curso Curso de História CMU LHO


Antes 480 Não existente 460
Depois 700 182 680
Aumento % 46% Em crescimento 48%
Fonte: Autores, 2023.
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No quadro 2, foi quantificado qual foi a postagem de cada perfil no Instagram que mais teve
curtidas.

Quadro 2 - Postagem com maior número de curtidas no Instagram.

Curso Curso de História CMU LHO


Curtidas na postagem 88 24 85
Fonte: Autores, 2023.

No quadro abaixo, os dados refletem o conjunto de vídeos que foram produzidos na semana
de História, no dia do historiador e na caracterização do curso.

Quadro 3 - Dados sobre a conjuntura dos Reels no Instagram do curso de História

Item Reproduções Interações Não seguidores


Dados 11.000 850 5.155
Fonte: Autores, 2023.

A quantidade de cards gráficos produzidos no curso de História foi de 100, no LHO foi de 60
e no CMU foi de 9. No Tiktok, o curso de História obteve 21 seguidores, 91 curtidas e 4.176
reproduções.
Para as produções que foram feitas o aprofundamento em técnicas, ferramentas e
metodologias (gestão do tempo, comunicação, publicidade, marketing) foi essencial, na era da
internet a atualização é constante e as ferramentas e softwares rapidamente se tornam obsoletos
ou atrasados. A busca por editores de vídeos, editores de fotos, editores de áudio e aplicações mais
aprimoradas para um bom trabalho traz custos de investimento em profissionalização e na compra
dos softwares necessários. Entretanto, não adianta profissionais capacitados e softwares caros se
os hardwares dos computadores e notebooks não forem o suficiente para rodar os programas.

Considerações finais

Destarte, as bibliografias pesquisadas sobre os desafios do historiador servem de


direcionamento sobre qual é o foco que o historiador deve ter em suas produções digitais e quais
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questões e discussões devem estar alinhadas na sua narrativa histórica. O profissional da história
deve ter mentalizado que os diversos processos envolvidos são para alcançar sujeitos e suas
realidades, ou seja, conscientizar historicamente por intermédio dos discursos visuais, auditivos e
simbólicos que produz.
Entretanto, as atividades desenvolvidas no âmbito do curso de História da Univille, LHO e
CMU ajudaram na compreensão das dificuldades práticas que vão além daquelas teorizadas
inicialmente. O historiador na divulgação histórica e na produção de conteúdo histórico se depara
com múltiplos instrumentos, suportes, hardwares e softwares que devem ser entendidos e
dominados. Aqueles que não estão aptos para entender a complexidade de lidar com as
ferramentas de rápida atualização e de aprender metodologias atrativas que mantém a atenção na
produção digital ficam defasados e inutilizados, pois, de nada adianta produzir saberes
referenciados e profícuos sendo que ninguém vai vê-los ou escutá-los. Deste modo, se o saber não
se dissemina ao público, mesmo que gratuito e disponível para o livre acesso, este produto não
cumpre a ideia de democratização do conhecimento, porque se fecha em círculos pequenos e de
linguagens próprias (terminologias e conceitos complexos).
Ademais, a produção cuidadosa de produtos digitais (imagens, vídeos, áudios) é reconhecida
pelos visualizadores das diversas mídias digitais e, conquistado e retido os seguidores de suas redes,
é oportuno apresentar assuntos mais densos. Compreende-se do que foi abordado até o momento
que as táticas de comunicação, publicidade e marketing também são aliadas dos historiadores que
querem estudar e adentrar na divulgação histórica, História Digital e História Pública.
Por fim, os dados apresentados das redes sociais do curso de História da Univille, do LHO e
do CMU são notáveis no entendimento de que os instrumentos, as ferramentas e as metodologias
aliadas a conteúdos de história fundamentados podem atrair o público das mídias digitais para
assuntos históricos e para o ofício do historiador.

REFERÊNCIAS

BRESCIANO, Juan Andrés; GIL, Tiago. (Comp.). La historiografia ante el giro digital: reflexiones
teóricas y prácticas metodológicas. Montevideo: Ediciones Cruz del Sur, 2015.

CÂMARA, Sérgio Antonio; BENICIO, Milla. História Digital: entre as promessas e armadilhas da
sociedade informacional. Revista Observatório, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 38–56, 2017.
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Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/article/view/3596.


Acesso em: 24 mar. 2023.

FONSECA, Thaís Nívia de Lima. Mídias e divulgação do conhecimento histórico. Aedos, v.4, n.11, p.
129‐ 140, set. 2012. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/view/30643.
Acesso em: 24 mar. 2023.

NOIRET, Serge. História Pública Digital. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, 2015.
Disponível em: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/3634. Acesso em: 24 mar. 2023.

SOSSAI, Fernando Cesar. Notas sobre o digital: historicidade e direcionamentos contemporâneos.


Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, 2019. Disponível em:
https://revista.ibict.br/liinc/article/view/4553. Acesso em: 24 mar. 2023.

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AS DIMENSÕES DO RIZOMA EM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI

Daniela Cristina Viana. Doutoranda em Educação pelo PPGE da UFSC. Pesquisadora voluntária do
NUPAE/Univille. Pesquisadora do Hermenêuticas da Cultura, Mundo e Educação/UFSC | UFSC/Univille |
daniela.ifsc@gmail.com
Mirtes Antunes Locatelli Strapazzon. Doutoranda em Patrimônio Cultural e Sociedade pelo PPGPCS da
Univille. Vice-líder do NUPAE/Univille. Pesquisadora do SAB/Univille | Univille | mirteslocatelli@gmail.com
Raquel Alvarenga Sena Venera. Doutora em Educação pelo PPGE da UNICAMP/SP. Coordenadora e
Professora do PPGPCS da Univille. Líder do SAB/Univille | Univille | raquel.venera@univille.br
Karinna Alves Cargnin. Doutoranda em Educação pelo PPGE da UFSC. Pesquisadora voluntária do
NUPAE/Univille | Bolsista Uniedu | UFSC/Univille | karinnaa10@gmail.com

Introdução

Este artigo apresenta algumas dimensões compreendidas no rizoma de Gilles Deleuze e Félix
Guattari (2011), entre elas, as metafóricas, metodológicas, estéticas, filosóficas e pedagógicas,
com a finalidade de investigar os seus possíveis desdobramentos à pesquisa e ao pesquisar no
campo das humanidades.
Enquanto metáforas, no sentido plural, o rizoma se desdobra de uma compreensão de livro-
mundo, livro-árvore, livro-raiz até chegar à ideia de livro rizoma. Dito isso, ele toma de empréstimo
alguns elementos do universo das ciências biológicas, tais como: raízes (pivotantes ou fasciculadas),
bulbos, tubérculos e ramificações não atribuíveis que se indeterminam em múltiplos nós. No
entanto, cabe destacar que o rizoma se diferencia em relação à verticalidade arbórea, contrariando
a imagem que cotidianamente se faz uso nas genealogias, inclusive, ao dizer de seus fundamentos
filosóficos ou princípios. Ao rizoma não cabe apenas um fundamento, seu mote é de intenso devir
em vários agenciamentos.
Em relação à cartografia, enquanto ciência que se dedica ao estudo dos mapas (e não
enquanto metodologia artístico-filosófica, sobretudo, não ainda), o rizoma se pronuncia na criação
de linhas de articulação, conexões, caminhos, estratos, segmentos, territórios e, inclusive, quando
apresenta suas nuances por meio de linhas de fugas, muros e abismos.
No que se refere à estética, recorta-se aqui o campo musical, nele o rizoma desenvolve um
ritmo próprio no entre, como intermezzo e, ainda, no limiar de ritornelos. Frente a isso, o rizoma
pode ser compreendido como um indicativo metodológico ou, até mesmo, um modo de leitura e de
escuta aguçada de mundo. Porém, em uma outra perspectiva, ou melhor, se adentrarmos ao rizoma

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tal como ele sugere, a saber: de maneira rizomática e rizomórfica, ele mesmo pode ser tomado
como um antimétodo ou uma antimetodologia pelas escolhas de seus recortes, considerações de
achados em proliferação e, sobretudo, pela defesa e resguardo das multiplicidades como um de
seus principais indicativos. Aliás, toma-se o rizoma enquanto indicativo, principalmente, a fim de
preservar o caráter de abertura que suscita, sobretudo, pelo seu modo irregular e variacional de ser.
Isso se dá porque o rizoma, de início e na maioria das vezes, caracteriza-se pela não marcação de
pontos, mas pela formação sempre temporária de bulbos e tubérculos, de segmentos e platôs, ou
seja, principalmente pelo traçado de suas linhas, sempre contingente e aberto.
Portanto, o rizoma se mostra como um modo outro de acesso e de atravessamento da
pesquisa e do pesquisar. Tomado como um modo de realização das multiplicidades, o rizoma se
torna muito oportuno ao campo das humanidades, em especial ao campo pedagógico, haja vista
que transita entre muitos saberes e fazeres, seja porque proporciona uma escuta e leitura de mundo
aguçada, vigilante, desperta, sensível, ou ainda, seja porque abre a própria possibilidade enquanto
plena possibilidade.
Além disso, este artigo fala a partir de um lugar específico, a saber, compõe parte dos
estudos realizados pelo Núcleo de Pesquisa em Arte na Educação (NUPAE), vinculado à Universidade
da Região de Joinville (Univille). Logo, o que se apresenta aqui não deseja mostrar-se como um
fechamento de leitura, mas como um recorte de movimentos de permanente investigação sobre os
temas que atravessam o pesquisar e a pesquisa no campo da educação e da Arte. Para tal, este
trabalho se deteve ao estudo da obra Mil platôs (1980) (Deleuze e Guattari, 2011), em seu volume
número 1, bem como ao estudo de outras obras e artistas que nos auxiliaram a pensar sobre o
rizoma.

Dimensões metafóricas

Publicada originalmente em 1980, a obra Mil platôs de Deleuze e Guattari (2011, v. 1) se


desdobra em uma coleção de 5 volumes pela Editora 34 no Brasil. Tal obra pode ser tomada como
uma ode às multiplicidades e é curioso que ambos os autores a fazem em análise a materialidade
que a eles está mais próxima – o livro. Desta forma, o livro enquanto coisa produzida e que reverbera
e repercute mundos, constitui parte da primeira dimensão aqui vislumbrada.

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Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentariedade,


estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de
desterritorialização e destratificação. As velocidades comparadas de escoamento,
conforme estas linhas, a carretam fenômenos de retardamento relativo, de
viscosidade ou, ao contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo isso, as linhas e as
velocidades mensuráveis, constitui um agenciamento. Um livro é um tal
agenciamento e, como tal, inatribuível. (Deleuze e Guattari, 2011, p. 18, negritos
nossos).

Pensemos no livro enquanto agenciamento de caráter inatribuível. O que isso nos diz – ser
um agenciamento e ainda, algo inatribuível? Estaríamos, talvez, no âmbito da conferência realizada
em 1969, O que é um autor? de Michael Foucault (Foucault, 2001). Pois, segundo Foucault (2001, p.
268, negritos nossos), “na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de
escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um
espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer”. Esta é uma questão atual para o
campo hermenêutico, não se trata mais do que está escrito, do texto em si, muito menos de quem
o escreveu, de seus autores, mas como recebemos o que foi escrito, ou seja, estamos no âmbito da
recepção. Não faremos aqui um juízo de valor em relação a isso, seguiremos em suspenso
analisando os seus possíveis desdobramentos. Continua Foucault (2001, p. 271, negritos nossos):

Mas não basta, evidentemente, repetir como afirmação vazia que o autor
desapareceu. Igualmente, não basta repetir perpetuamente que Deus e o homem
estão mortos de uma morte conjunta. O que seria preciso fazer é localizar o espaço
assim deixado vago pela desaparição do autor, seguir atentamente a repartição
das lacunas e das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa
desaparição faz aparecer (FOUCAULT, p. 271, negritos nossos).

A conferência de Foucault (2001) reverbera a este princípio de tratado sobre o rizoma ao


dizer que é necessário analisar o que tais desaparecimentos deixam ver ou mostram sobre a
pesquisa e ao pesquisar. Haja vista que Deleuze e Guattari (2011) tomam o livro enquanto primeira
metáfora. Continuam Deleuze e Guattari (2011, p. 18, negritos nossos):

Considerado como um agenciamento, ele [o livro] está somente em conexão com


outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se
perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se
buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em
conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele
se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o
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seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 18,
negritos nossos).

Para Deleuze e Guattari (2011) o livro é e está para o fora. A partir do momento em que se
constitui materialmente, o livro se torna um ato de agenciamento, uma ação de constantes
articulações. Voltemos ao início do texto, onde os autores dizem que: “escrevemos O anti-Édipo a
dois. Como cada um era vários, já era muita gente” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 17). Mas, vejamos
os problemas que aqui se colocam. Como já dito por Foucault (2001, p. 276), em 1969, “o anonimato
literário não é suportável para nós; só o aceitamos na qualidade de enigma”. Contudo, é exatamente
este insuportável que, talvez, Deleuze e Guattari (2011) levantam enquanto problema e, ao mesmo
tempo, enquanto potência rizomática. Pois, “escrever nada tem a ver com significar, mas com
agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p.
19). Dito isso, estamos nós autoras e coautoras deste texto em uma disposição de outra ordem.
Deleuze e Guattari (2011) dissertam sobre um primeiro tipo de livro, o livro-raiz ou o livro-
árvore. Este tipo está em referência ao mundo como árvore-raiz, isto é, este tipo está verticalmente
disposto, entre fundamento e desdobramento. Não distante, esta imagem de livro se refere ao livro
clássico, “[...] como bela interioridade orgânica, significante e subjetiva (os estratos do livro)”
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 19). E ainda, este tipo de livro está também em referência à tradição,
como sedimento de hábitos e determinações históricas e sendo assim, fecha-se em si próprio para
movimentar-se apenas na disposição de binarismos: sujeito e objeto, bem e mal, escuro e claro,
centro e margem etc.

Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a multiplicidade: ele
necessita de uma forte unidade principal [...] a do pivô, que suporta as raízes
secundárias. Isto não melhora nada. As relações biunívocas entre círculos
sucessivos apenas substituíram a lógica binária da dicotomia. A raiz pivotante não
compreende a multiplicidade mais do que o conseguido pela raiz dicotômica. Uma
opera no objeto, enquanto a outra opera no sujeito (DELEUZE E GUATTARI, 2011,
p. 20, negritos nossos).

Mas há um outro tipo de livro que ambos os autores se valem de bom grado, trata-se de um
livro transposto como sistema-radícula, ou fasciculado (Deleuze e Guattari, 2011, p. 20). Estamos
nos aproximando da ideia de rizoma. Nesta nova imagem de livro, segundo eles:

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[...] a raiz principal abortou, ou se destruiu em sua extremidade: vem se enxertar


nela uma multiplicidade imediata e qualquer de raízes secundárias que deflagram
um grande desenvolvimento. Desta vez, a realidade natural aparece no aborto da
raíz principal, mas sua unidade subsiste ainda como passada ou por vir, como
possível (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 20, negritos nossos).

A partir dessa nova imagem de livro, os autores se encaminham para uma nova dimensão
metafórica, uma dimensão que toma de empréstimo elementos do campo botânico, bem como das
ciências biológicas. Cabe ressaltar que Deleuze e Guattari (2011) estão buscando a multiplicidade
em si mesma e não como algo atribuído, ou seja, “[...] não se sabe ainda o que o múltiplo implica,
quando ele deixa de ser atribuído, quer dizer, quando é elevado ao estado de substantivo” (Deleuze
e Guattari, 2011, p. 18). Logo,

Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir.
Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para
fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão
superior, mas ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível
das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte
do múltiplo, estando sempre subtraído dele) (Deleuze e Guattari, 2011, p. 21,
negritos nossos).

Dizer sempre n-1 implica resguardar a disposição do ainda não94, isto é, implica dizer que o
que se mostra não é tudo, algo escapa ao que se mostra e ainda, existirão sempre rastros de
indeterminação que devem ser levados em consideração. Este é um resguardo que compreendemos
como necessários à disposição característica na multiplicidade enquanto substantivo. Mas, o que
isso implica à possibilidade de multiplicidade investigada pelos autores? Vejamos, segundo eles:
“subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever n-1. Um tal sistema poderia ser
chamado de rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 21, negritos nossos). Tal sistema constitui
múltiplas entradas e saídas, sempre em contingência. No entanto, é preciso ressaltar algumas
nuances sobre a ideia de rizoma a fim de que equívocos não sejam construídos aqui, pois:

94
A expressão “ainda-não” é oriunda dos estudos do filósofo Martin Heidegger, na obra Ser e tempo (1926),
especificamente no parágrafo §48 (Heidegger, 2012, p. 667-679). Tal expressão implica a resguarda da abertura do ser-
aí humano como cuidado e plena possibilidade de ser. “O Dasein [ser-aí humano] deve, no seu ser ele mesmo, vir-a-ser,
isto é, ser o que ele ainda não é. [...] O ainda-não já está incorporado ao seu próprio ser e isto de nenhuma maneira
como determinação qualquer, mas como um constitutivo seu. De modo correspondente, também o Dasein enquanto é
já é cada vez seu ainda-não” (Heidegger, 2012, p. 673, §48).
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Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e


radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz ou radícula
podem ser rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente [...]. Até os
animais o são, sob sua forma de matilha; ratos são rizomas. As tocas o são, com
todas suas funções de habitát, de provisão, de deslocamento, de evasão e de
ruptura. O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão
superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e
tubérculos. Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor
e o pior no rizoma: a batata e a grama, a erva daninha (DELEUZE; GUATTARI, 2011,
p. 21-22, negritos nossos).

A partir deste ponto, Deleuze e Guattari (2011) estão dispostos a elencar, provisoriamente
e sempre em abertura de n-1, alguns princípios possíveis (6 princípios de início) para caracterizar o
rizoma agora tomado como um sistema de pensamento e ação. Dito isso, os subcapítulos que
seguem nesse texto buscam apresentar tais princípios em correlação com outras dimensões
vislumbradas, retomando algumas já mencionadas e apresentando outras mais que, possivelmente,
dizem algo à pesquisa e ao pesquisar no campo das humanidades.

Dimensões metodológicas, bem como filosóficas, estéticas e pedagógicas

É difícil, para não dizer impossível, segmentar a proposta do rizoma e localizá-la com precisão
em suas possíveis regiões, isto é, de delimitá-la como metodológica, filosófica, estética ou apenas
pedagógica. Tal qual suscita, sua trama se entrelaça abrindo e doando espaços, o que torna hercúlea
a tarefa de determinar onde termina uma dimensão e começa outra. Contudo, iniciemos com os
princípios 1º e 2º elencados pelos autores, a saber: o princípio de conexão e o de heterogeneidade.
Em tais princípios faremos um voo sobre as 4 dimensões citadas no título deste subcapítulo, pois,
segundo os autores, “[...] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e
deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem” (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, p. 22, negritos nossos). Considerando-se que os dois princípios convergem e se
relacionam, tensionando-se a medida em que possibilitam encontros nem sempre amistosos e, no
caso do rizoma, agenciamentos entre formas de comunicação diversas, isto é, heterogêneas. Dito
isso,

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Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder,


ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia
semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas
também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem
universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias,
de línguas especiais. Não existe locutor-auditor-ideal, como também não existe
comunidade linguística homogênea (Deleuze e Guattari, 2011, p. 22-23, negritos
nossos).

Para indicar onde estamos e como compreendemos o rizoma, convidamos a artista japonesa
Chiharu Shiota a compor parte dessa investigação. Nas imagens que seguem, podemos vislumbrar
instalações que se utilizam primordialmente de lã vermelha formando uma trama extasiante de
indeterminações. Para Shiota (2023b) a instalação The wall behind the windows (2023a) é oriunda
de um esforço para compreender a dimensão invisível da vida cotidiana. Para ela, “é como agarrar
algo que não existe, mas que você ainda pode sentir. [...] A parede de tijolos da sala fica exposta
atrás das janelas, mas envolvida por uma teia de conexões. É quase como um casulo de memória”95
(Shiota, 2023b, negritos e tradução nossa).

Imagem 1 – Composição de fotos da instalação de Chiharu Shiota, intitulada The wall behind the Windows

95
Trecho que foi traduzido da língua inglesa: “it is like grasping something that is not there, but you can still feel it. [...]
The brick wall of the room is exposed behind the windows but engulfed in a web of connections. It is almost like a
cocoon of memory” (Shiota, 2023b).
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Fonte: Shiota (2023a).

Não distante, a instalação de Shiota (2023a) nos lança radicalmente ao 3º princípio, o de


multiplicidade. Nesse princípio, os autores buscam dizer que “uma multiplicidade não tem nem
sujeito nem objeto, mas somente determinações [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 23), no
entanto, tais determinações serão, em nosso compreender, de início e no decorrer de sua finitude,
sempre contingentes, situacionais, ocasionais, contextuais. Não distante, dizer que uma
multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto é uma forma de negar binarismos, bem como de
libertar o rizoma de posições individualizantes, ou melhor, egóicas. É uma forma de possibilitar por
meio de tramas, tal qual Shiota (2023a). Dito isso, continuam os autores:

Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, não remetem


à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à multiplicidade das
fibras nervosas que formam por sua vez uma outra marionete seguindo outras
dimensões conectadas às primeiras. [E ainda]. Um agenciamento é precisamente
este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente
de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou
posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz.
Existem somente linhas (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 23-24, negritos nossos).

Estamos, ao falar de rizoma, no âmbito do fora. Pois, segundo Deleuze e Guattari (2011, p.
25), “as multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de
desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras. O plano
de consistência (grade) é o fora de todas as multiplicidades”. Mas, o que é o fora? O fora nada mais
é do que o mundo que somos e compartilhamos. No entanto, ressaltam os autores, “o fora não tem
imagem, nem significação, nem subjetividade” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 45). E ainda, tal plano
de consistência é o que sustenta uma abertura de mundo em suas conexões, contudo, tal plano não
está previamente delineado, não está dado, pronto, isto é, ele é e está em constante devir de
múltiplos agenciamentos. Quando os autores levantam o 4º princípio, a saber: o de ruptura
assignificante, tal devir de agenciamentos é imediatamente correlacionado. Se não fosse assim, um
rizoma morreria a cada ponto de inflexão, sucumbiria a cada ponto de corte ou a cada fuga
desvelada ao seguir suas tramas.

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Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma


segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. É impossível
exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal do qual a maior
parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir. Todo o rizoma
compreende linhas de segmentariedade segundo as quais ele é estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também
linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma
cada vez que linhas segmentares explodem nem linha de fuga, mas a linha de fuga
faz parte do rizoma (DELEUZE; GUATTARI, p. 25-26, negritos nossos).

Dizer que há ruptura no rizoma e que as linhas de fuga também compõem o seu corpo,
compreende dizer que ambos os autores exercem uma espécie de justiça epistêmica e filosófica,
para não dizer ética. Haja vista que pensar num sistema de mil platôs deva envolver, igualmente,
acolher a vida em suas múltiplas facetas. “O bom o mau são somente o produto de uma seleção
ativa e temporária a ser recomeçada” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 26). Aliás, cada platô, em
Deleuze e Guattari (2011), entoa uma canção que se mantém em abertura, ou seja, cada platô canta
um agenciamento que permite ouvir, bem como ver os movimentos desse mapa rizomático. Além
disso, dizem eles:

Chamamos “platô” toda a multiplicidade conectável com outras hastes


subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma. Escrevemos
este livro [Mil platôs] como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele
uma forma circular, mas isto foi feito para rir. [...] Fizemos círculos de
convergência. Cada platô pode ser lido em qualquer posição e posto em relação a
qualquer outro. [Pois,] para o múltiplo, é necessário um método que o faça
efetivamente [...] (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 44, negritos nossos).

É peculiar saber que a disposição da obra como platôs foi originalmente constituída com a
finalidade de fazer rir. Os autores se reservam ao direito de saborear o caminho de suas
investigações com a alegria pueril da infância. Há muita beleza nessa disposição que não deixa de
ser rigorosa. O riso não deforma e nem arranha tal sistema. Bem verdade o riso convida o platô a se
agrimensar tal como exposto por ambos, enquanto a escrita de um entre, como intermezzo. Entre
platôs um riso que recebe e entoa uma canção composta no limiar de ritornelos. Dito isso, a
disposição do rizoma como ritornelo possibilita ao pesquisar e à pesquisa retomadas no mapa
rizomático em qualquer extremidade ou linha. Ao mapa cartográfico é possível voltar e avançar
sempre que necessário em outro ou no mesmo platô.

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Dito isso, ingressamos no 5º e 6º princípio, a saber: o de cartografia e o de decalcomania.


Aqui, Deleuze e Guattari (2011) se utilizam da ciência dos mapas para dizer do rizoma e, também,
para se contrapor a lógica arbórea que se organiza em torno de um só eixo. Segundo eles, “toda
lógica da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 29).
Podemos dizer que o rizoma, parafraseando o que expressa Gaston Bachelard (1993), em A poética
do espaço (1957), a imagem do rizoma “não é o eco de um passado” (BACHELARD, 1993, p. 2). Ou
seja,

Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque. A


orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no
seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente
voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um
inconsciente fechado sobre si mesmo, ele o constrói. [...] O mapa é aberto, é
conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de
receber modificações constantemente (Deleuze e Guattari, 2011, p. 30, negritos
nossos).

O decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma em raízes e


radículas. Organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de
significância e de subjetivação que são seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o
decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por
isso ele é tão perigoso (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 31, negritos nossos).

A estas últimas disposições, compreendidas como princípios e indicativos de ação no rizoma,


isto é, o de se mostrar tal como movimento cartográfico, bem como criador de mapas não
genealógicos, abrem o rizoma ao campo pedagógico. Não que as disposições anteriores não o
fizeram, pelo contrário, os princípios apresentados até aqui foram significativos e, sobretudo,
responsáveis por nos colocar a caminho do campo pedagógico. Pois, é exatamente quando Deleuze
e Guattari (2011) se contrapõe a ideia de decalque, que as linhas pedagógicas tomam frente. Ou
seja,

O que está em questão no rizoma é uma relação com a sexualidade, mas também
com o animal, com o vegetal, com o mundo, com a política, com o livro, com as
coisas da natureza e do artifício, relação totalmente diferente da relação
arborescente: todo tipo de ‘devires’ (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43-44, negritos
nossos).

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“Quando o rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é
sempre por rizoma que o desejo se move e produz” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 32, negritos
nossos). Dito isso, o rizoma reverbera à educação, em todas as suas regiões. Principalmente porque
o rizoma é contrário a qualquer ideia de fechamento e de apagamento das multiplicidades. A
educação busca, nesse sentido, o “como” de se movimentar em meio aos devires constante de
multiplicidades, sem produzir tais fechamentos e apagamentos. Logo, o rizoma fala diretamente ao
seu maior atravessamento, isto é, ao “como” de seu ser sempre em planos contingenciais, sempre
em devir.

Considerações finais e/ou devires

Um dos pontos que esse texto abre enquanto agenciamento possível é o fato de que o
rizoma possibilita o encontro de autores de campos não tradicionalmente familiares, como diria
Foucault (2001, p. 266), possibilita formar famílias monstruosas e não só sagradas ou sacralizadas.
E isso é considerado como um ganho à pesquisa e ao pesquisar. Estratos e segmentos
marginalizados pela tradição eurocêntrica avigoram-se nesta nova disposição, onde o foco não está
em traçar genealogias, mas (re)descobrir e amplificar vozes silenciadas.
No entanto, o rizoma também se abre em problemas que não desejamos alijar, nem
rapidamente, nem futuramente. Dentre eles, destacamos: será que é possível pensar no sistema de
rizoma enquanto disposição hermenêutica de leitura de mundo? Se sim, como escapar do
relativismo filosófico, haja vista que o rizoma comporta múltiplas entradas e múltiplas saídas? Dito
isso, será que o rizoma não acaba constituindo-se num também sedimento, tal qual o livro-árvore
tradicional, no entanto, apenas de outra ordem?
Contudo, se pensarmos o rizoma ao campo da Arte, este problema não fará sentido, a
questão nem mesmo se levanta, haja vista que ao campo da Arte não interessa o que significa a
obra de arte para o artista (suas intenções ou desejos) e, muito menos, o que significa a obra de
arte ao campo da investigação hermenêutica. O que importa é o que a Arte apresenta ao mundo e
não o que ela representa (GADAMER, 2010). Dito isso, o rizoma faz par à criatividade e à criação,
atuando enquanto abertura de possibilidade de possibilidades, da diferença enquanto diferença,
disposição muito bem-vinda à educação em todos os seus meandros.

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REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poético do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi e revisão da


tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 1933.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34,
2011.

FOUCAULT, Michel. 1969 – O que é um autor? In: MOTTA, Manoel de Barros da. (Org.). Ditos e
escritos: estética – literatura e pintura, música e cinema (volume III). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. p. 264-298.

GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. Tradução de Marco Antonio Casanova.


São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução e organização de Fausto Castilho. Campinas, SP:
Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.

SHIOTA, Chiharu. The wall behind the windows. 2018. Janela, lã vermelha, máquina de costura,
mesa e cadeira. Fotos de Roman März. Disponível em: https://www.chiharu-shiota.com/the-wall-
behind-the-windows. Acesso em: 14 out. 2023a.

SHIOTA, Chiharu. Chiharu Shiota: the wall behind the Windows. Caderno da König Galerie.
Disponível em: https://www.koeniggalerie.com/collections/publications/products/the-wall-
behind-the-window. Acesso em: 03 nov. 2023b.

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Agradecimento
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