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Principais Conceitos em Cuidados Paliativos

Por que precisamos aprender cuidados paliativos?


Confira a resposta para este questionamento neste módulo.

Cuidado Paliativo é uma área que atrai cada vez mais atenção. Esse fato tem várias expli-
cações, mas uma delas é a quantidade crescente de evidências científicas apontando sua
eficácia. Muitos estudos e artigos científicos, alguns em revistas de alto impacto, como
New England Journal of Medicine, Lancet e BMJ, têm sido publicados nos últimos anos.

Gráfico 1. Artigos publicados sobre Cuidados Paliativos/ano

Fonte: Pesquisa do autor realizada no PUBMED, com descritores “palliative care”.

Sintetizando esses achados, a meta-análise Association Between Palliative Care and Pa-
tient and Caregiver outcomes – A Systematic Review and Meta-analysis, publicada pela
JAMA em 2016, analisou 43 estudos randomizados, mostrando que, comparado ao grupo
Controle, o grupo que recebeu uma intervenção específica de Cuidado Paliativo teve, de
forma significativa:
Imagem esquemática da síntese de estudos sobre a intervenção dos Cuidados Paliativos.
Fonte: Organizado pelo autor.

Em economia isso tem nome: valor. Nesse sentido, Cuidado Paliativo agrega valor a um
sistema de saúde que infelizmente está se tornando insustentável e muitas vezes não ofe-
rece o que precisamos.

É válido mencionar que, nos 43 estudos randomizados, o grupo Controle é, em geral, o


Cuidado Paliativo feito com bom senso pela equipe de saúde. Já o grupo Intervenção é o
Cuidado Paliativo feito com técnica específica, que iremos apresentar aqui e desenvolver
neste curso.

Com frequência, profissionais de saúde no Brasil se assustam com a dimensão das evidên-
cias sobre Cuidados Paliativos, que contrasta com uma pergunta frequente: mas então por
que eu nunca tinha ouvido falar disso antes? A resposta para essa pergunta se relaciona
à raridade do Cuidado Paliativo feito com técnica específica no país, infelizmente tornando
essa competência pouco acessível e pouco disponível no nosso sistema de saúde.

Isso reflete o achado da própria Organização Mundial de Saúde, que publicou em 2014
uma avaliação sobre como está a acessibilidade e a disponibilidade do Cuidado Paliativo
ofertado ao redor do mundo. O que a OMS identificou é que no Brasil a disponibilidade do
Cuidado Paliativo foi classificada no nível 3a. No nosso país, o Cuidado Paliativo é feito em
ilhas, algumas de excelência, mas que são poucas em relação ao tamanho da população, e
não são conectadas umas com as outras. Segundo a OMS, estamos atrás, por exemplo, da
Argentina, onde já existe um número muito maior de serviços de acordo com a população
(nível 3b). Estamos muito atrás do Chile, Uruguai e alguns países da África, como Zâmbia e
Zimbábue, onde o Cuidado Paliativo já é uma política de saúde pública, e assim conecta as
ilhas – que, por sinal, também são em número maior em relação à população.

Infelizmente ainda estamos atrás, mas um dos grandes objetivos deste curso é disseminar
esse conhecimento, essa cultura, para mudarmos isso. Estamos abordando esses exem-
plos para não cairmos no lugar comum de falar que estamos atrás de EUA, Europa ou Aus-
trália, onde Cuidados Paliativos já são uma política de saúde com investimento há quase
duas décadas.
Para compreender o ranqueamento da OMS, analise os dados a seguir:

Figura 1. Diagnóstico situacional do Brasil em relação ao mundo, segundo a OMS

Fonte: Adaptado de Global Atlas of Palliative Care. WHO, 2014.

Figura 2. Paliativo no mundo, segundo a OMS

Fonte: Adaptado de Global Atlas of Palliative Care. WHO, 2014.


Figura 3. Paliativo no mundo, segundo a OMS

Fonte: Adaptado de Global Atlas of Palliative Care. WHO, 2014.

Figura 4. Paliativo no mundo, segundo a OMS

Fonte: Adaptado de Global Atlas of Palliative Care. WHO, 2014.

Outros estudos1 apontaram na mesma direção. Nesse sentido, em um dos levantamentos


mundiais mais estruturados, um grupo patrocinado pelo International Narcotics Control
Board publicou em 2016 no Lancet, um estudo quantificando o consumo de opioides em
214 países. Este levantamento mostrou que, mundialmente, há uma enorme desigualdade
no consumo de opioides. Havendo excesso no mundo desenvolvido enquanto há falta em
todo o restante. O estudo mostrou ainda que 10% da população mundial, concentrada nos
EUA, Canadá, Austrália e Europa consomem 90% do opioide no mundo. Os demais, incluin-
do toda a América Latina, América Central, África e Ásia consomem 10%.
1
Com outras metodologias.
No Brasil, os dados demonstram que o consumo de opioides é incompatível quando se
relaciona a quantidade mínima prescrita para o controle de dor, com o número de pessoas
que vivem e morrem com dor decorrente de doenças avançadas em nosso país. Na Tabela
abaixo, você encontra os números do consumo de opioides, calculado em S-DDD (quan-
tidade de opioide em equivalente de morfina consumido em 1 ano no país/população do
país/365 dias):

Tabela 1. Aliviando o abismo de acesso em cuidados paliativos e alívio da dor

Fonte: BELTERAME S et al. Utilisation and barriers to accessing opioid analgesics:


A country, regional, and global study.
Disponível em: www.thelancet.com
Acesso em: 30 mai 2019.
Embora esteja em curso uma epidemia de excesso de opioide nos EUA, é necessário avaliar
os dados brasileiros e coloca-los em contexto. Por exemplo, nos EUA se prescreve 3 150
% a mais que o recomendado. No Reino Unido, a quantidade prescrita é próxima ao reco-
mendado enquanto no Brasil é muito abaixo.

Legenda: Nos EUA se consome em torno de 55 mil mg de equivalente de morfina por milhão de habitantes, enquanto
no Brasil se consome 342 mg de morfina por milhão de habitantes, e no Reino Unido 5.227. Não precisa ser um exage-
ro brutal, como nos EUA, nem uma falta generalizada como no Brasil.
Podemos buscar o equilíbrio, como o reino Unido tem conseguido.
Fonte: Berterame et al. Lancet 2016; 387: 1644.

Consumimos no país menos de metade de opioide por milhão de habitantes do que se con-
some na Argentina ou no Chile, que é em torno de 700 mg, quase 1/3 do que a OMS reco-
menda. A grande quantidade de pessoas com dor subtratada decorrente de doenças avan-
çadas em nosso país representa uma grande oportunidade de melhoria e desenvolvimento
do cuidado paliativo no Brasil.
Na tabela a seguir você confere na íntegra o consumo de opioides na América do Sul.

Tabela 2. Consumo de opioides na América do Sul

Fonte: Adaptado de Berterame, Lancet 2016.

A própria OMS recomendou por unanimidade, em sua 67ª Assembleia Mundial em 2014,
que o Cuidado Paliativo é uma urgência de política pública para os países do mundo.

Nesse sentido, nosso país está dando passos significativos para mudar essa realidade. No
final do ano de 2018, foi publicado no Diário Oficial da União a Resolução Nº 41 da Comis-
são Intergestores Tripartite, estabelecendo as diretrizes para a organização dos Cuidados
Paliativos no Sistema Único de Saúde.

“Os Cuidados Paliativos deverão fazer parte dos cuidados


continuados integrados ofertados no âmbito da Rede de Atenção
a Saúde( RAS)”.
Além disso, alinhada com as recomendações da Organização Mundial da Saúde, estabele-
ceu que:

Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma


equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de
vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que
ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da
identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e
demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais, Consi-
dera-se elegível para Cuidados Paliativos toda pessoa afetada por
uma doença que ameace a vida, seja aguda ou crônica, a partir do
diagnóstico desta condição.

Essa importante diretriz do Sistema Único de Saúde colocou o Brasil alinhado com reco-
mendações da Organização Mundial da Saúde e com as melhores evidências científicas dis-
poníveis, que mostram que técnicas de Cuidado Paliativo integradas aos tratamentos que
buscam a cura ou o controle de doenças são capazes de melhorar a qualidade de vida e o
controle de sintomas e reduzir o uso de recursos de saúde, levando a uma assistência de
maior qualidade e menor custo.
O que são Cuidados Paliativos?

Em qual momento da trajetória da doença, devemos começar


o cuidado paliativo?

Podemos entender melhor a definição atual desse conceito ao revisarmos brevemente a


história de como ele se desenvolveu. Vamos então ver rapidamente o que a história nos
ensina sobre Cuidado Paliativo.

O cuidado paliativo moderno começa com Cicely Saunders na década de 50 do século XX.
Esta mulher brilhante, graduou-se em serviço social, enfermagem e medicina. Com muita
coragem, muita dedicação e muito trabalho em equipe, mudou a história, começando pela
Inglaterra.

Ela percebeu que, na Inglaterra do final da década de 1950 e início da década 1960, as
pessoas estavam morrendo mal. As pessoas que estavam doentes morriam com dor, em
isolamento, sem ter sua dignidade respeitada, seu sofrimento cuidado. A partir desse
problema e da queixa de um paciente que explicitou para ela: “Doutora, tudo em mim está
errado”, ela construiu um conceito extremamente significativo que é o conceito de dor
total.

Analise com atenção a imagem a seguir e conheça mais informações sobre esse conceito.

magem esquemática da construção do conceito de dor total.


Fonte: Organizado pelo autor.
Saiba mais
O primeiro hospice moderno é o St Christopher´s, foi inaugurado
em 1967 em Londres. De lá para cá o conceito de hospice desen-
volveu-se enormemente nos EUA, Europa e Austrália, mas infeliz-
mente não chegou em larga escala em países como o Brasil.

Essa ideia inicial de Cecily Saunders, de cuidar melhor de quem


está morrendo, foi ganhando o mundo, a ponto que a própria OMS
na década de 1990 percebeu que existia algo ali que precisava ser
abordado diretamente

Oferecer um cuidado total para a dor total de quem estava morrendo era o conceito inicial
do movimento hospice, iniciado por Cicely Saunders. Essa ideia se concretizou na década
de 1960 na Inglaterra e depois ganhou o mundo.

Em 1990, a OMS definiu cuidado paliativo pela primeira vez, ampliando o conceito iniciado
por Cicely Saunders, que focava os seus cuidados aos pacientes que estavam morrendo.
No final do século XX, a OMS ampliou o conceito para os pacientes que não tinham mais
cura. Portanto, definindo cuidado paliativo como um cuidado total e ativo de pacientes e
familiares, cuja doença não é responsiva ao tratamento curativo. Além dos sintomas físi-
cos foi nomeado que o controle de outros sintomas como psíquicos, sociais e espirituais
também são importantes. Essa foi a primeira vez em que a palavra espiritual apareceu em
uma definição da OMS, representando um enorme avanço para humanização das assistên-
cias.

Por outro lado, ao criar um modelo dicotômico, ou seja, sim ou não, curativo ou paliativo,
esse conceito da década de 1990 trouxe um novo e difícil problema:

Quando começa o Cuidado Paliativo? Ou posto de outra maneira:


quando realmente devemos traçar essa linha que define que o
paciente não tem mais um tratamento curativo?
A

Modelo dicotômico: cuidado curativo ou cuidado paliativo (modelo “tudo ou nada”).


Modelo do século passado, desatualizado desde 2002.
Fonte: Organizado pelo autor.
Às vezes é fácil encontrar essa definição. Por exemplo, é fácil afirmar que o paciente com
câncer de pâncreas metastático não tem uma doença passível de cura. E se este paciente
complicar, e desenvolver, por exemplo, uma pneumonia com insuficiência respiratória.
E então, começa uma discussão entre os profissionais que estão assistindo ao paciente:
este paciente tem uma doença incurável (câncer de pâncreas) e deve receber cuidado pa-
liativo ou ele tem uma doença curável( pneumonia) e deve ir para a UTI? Nesta discussão,
que às vezes parece esquizofrênica, quem perde é o paciente.

Na discussão se o motivo da internação é a pneumonia ou o câncer acabamos deixando


o paciente de lado. Por isso, traçar essa linha não é tão simples, e por esse motivo que
o cuidado paliativo feito de uma maneira dicotômica (sim ou não, tudo ou nada) é mui-
to abrupto e ruim para todos. Este modelo é ruim para profissional de saúde que muitas
vezes entende que cuidado paliativo é uma forma de desistir, uma forma de parar ou não
fazer. Mas é pior para o paciente e para a família que se sentem desamparados e abando-
nados em um momento tão difícil da doença e da vida.

E por tudo isto, em 2002, a OMS redefiniu o conceito de Cuidados


Paliativos. A questão de ser ou não curável tornou-se irrelevante.
A definição atual coloca que Cuidado Paliativo está indicado para
pessoas, sejam adultas ou crianças, que têm uma doença que ame-
ace a vida. A abordagem de Cuidados Paliativos foca no sofrimento
relacionado a uma doença grave e independe da questão de a doença
ser ou não curável.

Link externo
Para ampliar o seu conhecimento, sugerimos a leitura da definição
sobre Cuidados Paliativos no site da OMS.
Link: www.who.int
A linha do tempo a seguir resume como a OMS chegou a essa definição.

Imagem esquemática da linha do tempo para definição do conceito sobre Cuidados Paliativos.
Fonte: Organizado pelo autor.

Se tivéssemos que reduzir esse conceito inteiro em uma frase,


afirmaríamos que “Cuidado Paliativo é uma competência que o
profissional de saúde desenvolve para cuidar do sofrimento dos
pacientes e suas famílias que enfrentam uma doença grave”.

Conceituado dessa maneira, podemos então entender por que Cuidado Paliativo pode e
deve ser oferecido ao longo de todo o curso de uma doença grave:

Imagem esquemática da evolução do conceito de Cuidado Paliativo.


Fonte: Organizado pelo autor.
Didaticamente, agruparemos as competências essenciais para a assistência de Cuidado
Paliativo em três grupos:

Quadro 1. competências essenciais para a assistência de Cuidados Paliativos na atualidade

Fonte: Organizado pelo autor.

E, assim, podemos também entender que a discussão mais importante diante de um pa-
ciente com doença grave, se ele vai ou não receber Cuidado Paliativo. Podemos pensar de
uma maneira mais produtiva:

Mapa mental sobre decisões que devem ser consideradas na discussão diante de um paciente com doença grave.
Fonte: Organizado pelo autor.

Aprender as técnicas para cuidar efetivamente e empaticamente do sofrimento e aprender


a incorporar o Cuidado Paliativo ao longo de todo o curso da doença é o grande objetivo
deste curso.
Por isto, que a própria OMS entende também que o Cuidado Paliativo não deve ser ofe-
recido somente por especialistas. Para a OMS e para a Academia Nacional de Cuidado
Paliativo, o CP geral pode ser oferecido por profissionais que cuidem de pacientes graves
e tenham uma formação básica em cuidado paliativo. Isso inclui profissionais da atenção
primária e também da atenção especializada, como cardiologistas, oncologistas, intensi-
vistas, emergencistas, nefrologistas, entre muitos outros. E, naturalmente, não estamos
falando aqui só de médicos, mas de todos os profissionais da saúde, que incluem também
enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais,
nutricionistas, farmacêuticos, fonoaudiólogos, entre outros.

Link Externo
Para ampliar o seu conhecimento, sugerimos o acesso ao
site da Academia Nacional de Cuidado Paliativo.
Link: https://paliativo.org.br/

E, além do Cuidado Paliativo geral, existe o nível especializado. Nesse nível o CP é ofere-
cido por profissionais que se dedicam especificamente a essa área. Esses profissionais,
além de prestarem assistência a casos mais complexos, têm a função de matriciar e pro-
mover a educação em CP para todos os profissionais. Somente assim, com o CP feito em
rede e de forma integrada, é que as necessidades de CP de todos os pacientes que preci-
sem poderão ser atendidas de maneira efitiva e oportuna.

Imagem esquemática dos níveis de atenção em Cuidados Paliativos segundo a OMS e a ANCP.
Fonte: Adaptado de Análise situacional e recomendações para estruturação de programas de cuidados paliativos no
Brasil. Academia Nacional de Cuidados Paliativos, 2018.
Considerações Finais

Mais do que uma filosofia de cuidado, Cuidado Paliativo também é uma competência de
cuidado, fortemente baseada em evidência, com impacto em melhorar a qualidade de vida
de pacientes e em alocar melhor o uso de recursos de saúde. É uma recomendação da
própria Organização Mundial de Saúde e, mais recentemente, do próprio Sistema Único
de Saúde. No entanto, nosso país ainda está atrasado na disponibilidade do CP. Por isso é
tão necessário que profissionais com as mais diferentes formações e das mais diferentes
regiões se capacitem para oferecer o essencial de CP para todos aqueles pacientes e fa-
miliares que precisarem. Esse é o objetivo maior deste curso, e por isso consideramos tão
importante falar sobre CP.

Aprender a cuidar do sofrimento de quem tem uma doença grave não é somente algo
intuitivo, que aprendemos por bom senso. Esse cuidado é também uma técnica, que pode
ser estudada, aprendida e aplicada ao cuidado das várias dimensões do sofrimento hu-
mano. Isso é o Cuidado Paliativo no século XXI. E ter essa clareza de que esses cuidados
ao sofrimento podem e devem ser oferecidos ao longo do curso da doença de forma inte-
grada e feita em rede foi a grande mudança conceitual do CP neste século XXI e o objetivo
principal de aprendizado deste módulo.

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