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Strategic Design Research Journal, 1(1):9-16 julho-dezembro 2008

©2008 by Unisinos - doi: 10.4013/sdrj.20081.02

O uso inconsciente da tecnologia no cotidiano

The unconscious use of technology in everyday life

Rejane Spitz
rejane@puc-rio.br
Laboratório/Núcleo de Arte Eletrônica. Departamento de Artes & Design/ PUC-Rio. Rua Marques de São Vicente, 225, sala 717 F, Rio de Janeiro,
22453-900, RJ, Brasil.

Resumo Abstract

É através da mediação das tecnologias computacionais que It is through the mediation of computer technology that
hoje construímos nossa relação com o mundo, nas conexões we build our relationship with the world, by using the
– com ou sem fio – de nosso cotidiano. Essas tecnologias vêm connections – whether wireless or not – in our everyday life.
sendo utilizadas sem grande esforço, e de forma quase trans- These technologies have been used without a great effort, and
parente, em muitas de nossas tarefas cotidianas, embutidas almost in a transparent way, in lots of our everyday tasks. They
nos objetos que carregamos em nossos próprios bolsos – tais are present in the objects that we carry in our own pockets
como o celular, os cartões de crédito ou os cartões para ingres- – such as the cell phone, credit cards, or public transport
so em transporte público – e em produtos e serviços utiliza- cards – and in products and services used by people around
dos por bilhões de pessoas ao redor do planeta, a despeito de the planet in spite of our deep cultural and socioeconomic
nossas profundas disparidades culturais e socioeconômicas. E disparities. If on the one hand, the use of the computational
se, por um lado, o uso de sistemas computacionais e de te- and telecommunication systems became more accessible
lecomunicação torna-se cada vez mais acessível, popular, fá- and popular, on the other hand its operation mechanisms
cil e simples, por outro, seus mecanismos de funcionamento became more invisible, complex and sophisticated. That
tornam-se cada vez mais invisíveis, complexos e sofisticados. situation is giving space to what we call “the unconscious use
Tal situação vem dando lugar ao que denominamos de “uso of technology”, characterized both by the ignorance about
inconsciente da tecnologia”, caracterizado tanto pelo desco- the technological process related to the operation of the
nhecimento parcial ou completo dos processos tecnológi- equipments and services which we use daily, and by our lack
cos relativos ao funcionamento dos aparelhos e serviços dos of awareness about our intimate and visceral connection with
quais fazemos uso cotidianamente, quanto por nossa falta de technology. Under the lights of an absolutely unpredictable
consciência em relação à nossa íntima e visceral ligação com a future – that will be shaped by the intense desire with which
tecnologia. À luz de um futuro absolutamente imprevisível – a we seek forms of connection and communication increasingly
ser moldado pela avidez com que hoje buscamos formas de fast, expressive and that have multimedia characteristics – we
conexão e de comunicação cada vez mais velozes, expressivas will expose in this article a synthesis of the contemporary
e multimidiáticas – neste artigo apresentamos uma síntese scene characterized by the ubiquity and mobility of our
do cenário contemporâneo caracterizado pela ubiqüidade e computer systems, discuss the unconscious and everyday
mobilidade dos sistemas computacionais, discutimos o uso use of technology and point out some possible ways of
inconsciente e cotidiano da tecnologia, e apontamos alguns researching and developing products, services and systems in
possíveis caminhos para a pesquisa e desenvolvimento de the design field.
produtos, serviços e sistemas de natureza digital, no campo
do Design.

Palavras-chave: design, tecnologia digital, sociedade, cotidiano. Keywords: design, digital technology, society, everyday life.
O uso inconsciente da tecnologia no cotidiano

Entrelaçados e conectados o mundo, “habituando-nos a conviver de forma crescente


com uma enorme quantidade de dados e de interfaces
“Numa manhã do outono passado, combinei de me en- que se distribuem em infinitos percursos e conexões” (Pra-
contrar com Chipchase num bairro de Accra, onde ele do, 2005, p. 45).
e algumas outras pessoas da NOKIA estavam fazendo As redes digitais englobam tanto uma dimensão de
pesquisas. Ele sugeriu que eu pegasse um táxi e fosse natureza material – responsável pelo transporte de maté-
para a área do mercado, e de lá ligasse para o seu celu- ria, energia ou informação – quanto uma dimensão de na-
lar. [...] As ruas em volta do mercado estavam cobertas tureza social, pois “a rede é tecida também pelas pessoas,
por um mar de gente que se movia lentamente. Sobre mensagens e valores que a freqüentam” (Castells, 1999, p.
as suas cabeças, as mulheres de Gana carregavam ro- 262). Há, porém, uma grande diversidade de visões quanto
mãs empilhadas, pães frescos, cestas com galinhas vi- à sua caracterização. Para Ascott (Ascott e Shanken, 2003),
vas. À uma distância de onde não conseguia ainda vê- as redes digitais – ou “redes telemáticas”, conforme deno-
lo, Chipchase usava seu telefone para me guiar através minação cunhada por ele – não se referem apenas à con-
desse caos, que não me era familiar. [...] Meu encontro vergência de computadores e sistemas de comunicação,
com Chipchase requereu muito pouco em termos de mas qualificam toda uma gama de formas de conscien-
planejamento, e foi mais eficiente do que a tão comum tização e de expressão cultural, mediante as quais novas
e imperfeita prática de se definir uma hora específica e modalidades de conhecimento e seus meios de distribui-
um lugar específico para um encontro. Ele não teve que ção estão sendo testados e ampliados (Ascott e Shanken,
sair do seu trabalho até o momento em que soube que 2003). Na visão de Santos e Marques (2002), ao combina-
eu já estava nas redondezas. Sabendo que ele não me rem – de forma híbrida – aspectos técnicos e sociais, está-
esperava, eu não fiquei nervosa a respeito dos 15 minu- ticos e dinâmicos, locais e globais, materiais e imateriais, as
tos extras que meu motorista gastou, buzinando sem redes provocam um sentimento de ambigüidade. Já para
parar, no tráfego imprevisível de Accra. E agora, a pé, se Couchot (2005, p. 516), considerar uma rede como um es-
eu tomasse a direção errada, ele poderia rapidamente paço imaterial e abstrato é apenas realçar um dos seus
me corrigir. Usando celulares, nós fomos capazes de co- aspectos, pois ela é “sobretudo um espaço calculado, total-
ordenar tudo de forma incremental. “Você está vendo mente automatizado, como qualquer espaço digital”. Por
a ponte?” Chipchase dizia ao telefone. “Não? OK, você sua vez, Gilbertto Prado (1997) confere uma distinção en-
está vendo o cartaz gigante, pintado de verde, que diz tre o que se caracteriza como “uma matriz técnica de trans-
‘Creia em Deus’? Sim? Estou bem à esquerda dele. Perto porte e de organização da informação e do simbolismo
da cabra. Agora você está vendo o cartaz? Está me ven- que ela veicula”, e o que se refere “a um conceito, ou a uma
do? Ah, sim”, disse ele alegremente, “aqui está você”. E forma de trabalho, de ação/pensamento, de interação num
então, cara a cara, e suando por conta do sol escaldante, contexto partilhado” (Holanda e Spitz, 2008, p. 284). Inte-
desligamos” (Corbett, 2008, p. 1). ressante é também a visão oferecida por Bauman (2004, p.
12), que define “rede” como algo que intercala momentos
De um modo pervasivo e ubíquo, as mídias digitais em que se está em contato, em “conexão”, com momentos
permeiam hoje nosso imaginário e nosso cotidiano, apon- de “movimentação a esmo”: o autor contrapõe essa noção
tando novos caminhos para a reflexão teórica e estabele- de rede – que serve de matriz tanto para conexões quanto
cendo novas bases para a prática contemporânea de artis- para desconexões – às noções de “relações”,“parentescos”, e
tas e designers. É notória a importância hoje atribuída ao “parcerias”, que ressaltam um caráter de engajamento mú-
estudo das práticas culturais e sociais advindas de utiliza- tuo, de compromisso, nas relações humanas.
ção cada vez mais intensa da tecnologia computacional. Acrescenta-se, ainda, a essa diversidade de cate-
As pesquisas e estudos na área de Design – que nos anos gorizações, a distinção que Manovich (2005) faz entre o
1980 e 1990 tratavam primordialmente das aplicações e conceito de “novas mídias” e o de “cibercultura”. Às novas
dos usos dessa tecnologia enquanto circunscritos à esfera mídias, caberia o estudo dos novos objetos culturais que
de nossa prática profissional – ampliaram substancialmen- usam a tecnologia computacional para distribuição e
te seu foco na última década, passando a abranger o estu- exposição (como, por exemplo, a Internet, os sites, os jo-
do das mudanças promovidas pelo surgimento e pela po- gos de computadores, os efeitos especiais gerados por
pularização de várias formas de utilização da computação computador, dentre outros). Já o estudo dos vários fenô-
em nosso cotidiano, e a análise de seu impacto no modo menos sociais associados à Internet e a outras formas de
como pensamos, agimos e vivemos em sociedade. Amplia- comunicação em rede (tais como o uso dos celulares em
se, assim, a discussão do papel da tecnologia computacio- diferentes contextos culturais, os jogos com múltiplos jo-
nal para muito além das ferramentas, dos softwares e das gadores on-line, a questão da identidade on-line, dentre
questões de cunho essencialmente técnico, no campo do outros) ficaria a cargo da cibercultura. Assim, para o autor,
Design: pois são as mídias digitais que tecem as redes cul- enquanto a cibercultura “concentra-se no social e na rede,
turais e sociais que hoje nos conectam e nos entrelaçam as novas mídias concentram-se no cultural e na computa-
em nosso cotidiano, e cabe à ubiqüidade e à mobilidade ção” (Manovich, 2005, p. 27). No âmbito deste artigo, cabe-
computacional um papel de destaque nos processos de nos examinar tanto a cibercultura quanto as novas mídias,
comunicação contemporâneos (Pinheiro e Spitz, 2007). pois ambos os aspectos sociais e culturais fazem parte do
A partir da mediação das tecnologias computacio- foco de interesse do campo do Design. Na visão de Felin-
nais e das redes digitais, reconstruímos nossa relação com to (2006), a cibercultura representa um momento em que

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Rejane Spitz

a tecnologia se coloca como questão essencial para toda A convivência entre culturas diferentes na rede, seus
a sociedade, pois, embora não haja domínio da vida con- desafios e dificuldades, são aspectos que também mere-
temporânea “que não esteja, de certo modo, embebido na cem nossa atenção. A despeito da euforia de vários auto-
experiência tecnológica”, é na cibercultura que o compo- res em relação à possibilidade de diálogo e convívio de
nente tecnológico “passa a ser pensado, reflexivamente, pessoas de diferentes culturas por meio das redes digitais,
como o fator central determinante das vivências sociais, alguns autores consideram que o incessante aumento da
das sensorialidades e das elaborações estéticas” (Felinto, informação e a facilidade de comunicação proporciona-
2006). Na cibercultura, não é mais “o usuário que se deslo- dos hoje por meio das redes não têm facilitado as relações
ca até a rede, mas a rede que passa a envolver os usuários transculturais, nem ampliado a compreensão do outro.
e os objetos numa conexão generalizada” (Lemos, 2004). Quéau (1999) ressalta o perigo do uso de expressões tais
Reyes (2005, p. 13) enfatiza que embora, na maioria como “sociedade global” e “universalidade”, pois entende
das vezes, a cultura do digital seja discutida num plano que a esmagadora maioria das pessoas não entende o
teórico – como se pudesse haver essa “realidade apar- conceito de globalização ou mesmo se beneficia dela, ain-
tada da materialidade física de nossa vida cotidiana” – é da que esteja de fato apoiando suas conseqüências (Spitz,
preciso que se enfrente o desafio de analisar o ambiente 2000). Esse tema é também abordado por Stangl (2003)
digital “atravessando e sendo atravessado pela realidade que, ao tratar da convivência entre culturas diferentes na
da vida cotidiana”. Pois é nos espaços públicos, abertos, rede, alerta para o fato de que suas conseqüências ainda
de uso coletivo, de experiências compartilhadas, que os são pouco discutidas, e seus efeitos ainda embrionários.
estranhos se encontram em não-lugares – espaços de Fazendo uma comparação entre a identidade digital das
passagem, lugar do provisório e do efêmero, que se deli- informações – onde um arquivo não é igual a outro, mes-
neiam transitoriamente por intermédio do fluxo dos tran- mo que tenham conteúdos idênticos, pois, não estando no
seuntes – sem o compromisso de estabelecerem intera- mesmo espaço nem no mesmo tempo, cada arquivo tem
ções sociais, mas com infinitas possibilidades de conexão. seu próprio contexto e muda se esse contexto mudar – e
A capacidade de localização e mobilização dessas mídias a identidade cultural na rede digital, o autor afirma que
remodela, mais uma vez, as formas de relações sociais e “a existência de uma totalidade não elimina a presença
a noção de comunidade (Holanda, 2008). No ciberespaço, individual, mas esta não é, nem nunca será, determinada
o espaço físico e as relações entre os indivíduos passam pela cultura no singular. A cultura digital é indeterminada,
a ser construídos numa única dimensão – o da conexão é híbrida, é misturada e remixada”. Ao cunhar o termo “ci-
virtual – o que, para Shieck (2008), “torna as barreiras en- bermestiçagem” – que seria o lugar “onde não-existem lu-
tre as fronteiras casa/trabalho, público/privado, eletrôni- gares”, mas sim uma totalidade de culturas – Stangl (2003)
co/físico, menos nítidas. [...] O espaço de interação passa aponta para a possibilidade de uma nova sociabilidade
a ser definido no interior dos fluxos de comunicação”. com a Internet, onde “a identidade renasce como parte
Dispositivos móveis permitem-nos interagir no mundo dessa nova totalidade, livre para migrar.”
físico ao mesmo tempo em que estamos conectados a
ambientes virtuais – o que Allen (2003, p. 324) denomi- Do inconsciente ao consciente
na de “coexistence”, uma coexistência que se dá numa
realidade mista. Na visão da autora, o aprimoramento A tecnologia computacional vem se infiltrando no
crescente das interfaces fará com que, num futuro muito dia-a-dia de bilhões de pessoas ao redor do mundo, sendo
próximo, pareça natural “nos deslocarmos para dentro e utilizada sem grande esforço – e, muitas vezes, de forma
para fora do ciberespaço”, no decorrer de nosso cotidiano. despercebida – em suas tarefas cotidianas: o computador
Allen identifica uma crescente disseminação da noção de deixa de ser uma entidade evidente para diluir-se no am-
“presença distribuída” – “um eu distribuído que existe em biente, mediando atividades do dia-a-dia sem demandar
muitos mundos e desempenha muitos papéis ao mesmo esforço cognitivo para sua utilização (Pinheiro e Spitz, 2007).
tempo” (Allen, 2003, p. 324). De fato, com os dispositivos Em algumas cidades brasileiras, os passageiros dos ônibus
portáteis e as redes individuais móveis – freqüentemen- coletivos urbanos utilizam cartões magnéticos em sensores
te utilizados “em situação de trânsito e deslocamento, que controlam as roletas de entrada, “identificando o tipo
em estados entrópicos e de aceleração continua” (Bei- de usuário, perfazendo cálculos sobre a tarifa da passagem,
guelman, 2005, p. 154), “somos todos nômades, viajantes exibindo o saldo restante acumulado no cartão e liberando
num espaço informe e excessivo, imersos no fluxo de ou não a passagem pela roleta”, conforme relatam Pinheiro
uma grande rede, ao mesmo tempo em que portamos e Spitz (2007). Essa operação, mediada pela tecnologia com-
nossa rede pessoal, singular, e a ela conectada. Estamos putacional, na maior parte dos casos, sequer é compreendi-
simultaneamente aqui e lá, agora” (Holanda e Spitz, 2008, da plenamente pelos passageiros – o que não impede que
p. 280). “Vivemos hoje um momento de inaudito fascí- utilizem o sistema sem maiores dificuldades. É possível que
nio com o desenvolvimento dos meios de comunicação”, a maioria dos usuários desse sistema nem ao menos tome
afirma Felinto (2006), que acredita que tanto a miniatu- conhecimento dos cálculos e informações dispostas pelo
rização das tecnologias de comunicação quanto a sua aparelho, limitando-se a compreender que o cartão libera
crescente mobilidade tornaram a comunicação mediada sua passagem pela roleta. “O convívio com a tecnologia
um fenômeno do qual já não se pode escapar. “Temos de tornou-se cotidiano, quase banal”, sugerem os curadores do
nos comunicar sempre, com cada vez mais freqüência e Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis arte.mov
eficácia” (Felinto, 2006). (TELEMIG Celular, 2007, p. 34).

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O uso inconsciente da tecnologia no cotidiano

Nos trechos apresentados a seguir, elaborados para desde que aprendeu a enviar e-mails, seu principal
uma discussão em sala-de-aula sobre “o uso inconsciente objetivo é a divulgação de descobertas tecnológicas.
da tecnologia em nosso cotidiano” – exercício que propus Também não deixei de perceber uma certa ironia no
este semestre aos alunos da disciplina “Arte Eletrônica”1 fato da notícia ter sido escaneada de um jornal im-
– a repentina tomada de consciência dos alunos acerca presso. Isto é, de estar lendo na tela do meu computa-
de sua relação diária com a tecnologia ressaltou aspectos dor, uma notinha impressa em papel sobre criação de
muito interessantes, em especial no que diz respeito à sua papel. A notinha foi recortada, de maneira displicente,
dependência tecnológica: permitindo que os rasgadinhos de sua folha de jornal
ficassem bem visíveis, junto com pequenos amassos.
“Dei-me conta de que sou um perfeito parasita tecno- Me senti um velho que olha com carinho as fotos do
lógico. Uso a tecnologia, extraio até sua última possi- seu passado. Mas a matéria tem um “que” de futurista,
bilidade, e quando alcanço seus limites, descarto-a, ou de história de super-heróis em quadrinhos, Superpa-
começo a detestá-la, pois suas limitações me irritam. pel. Uma supervirada onde o mocinho caído no chão
[...] É preciso, talvez, inventar uma palavra nova para recobra as forças. Super poderes” (Sander, 2008).
classificar esse tipo de parasitismo. Sei que nessa asso-
ciação o hospedeiro é fornecedor de recursos para a “Celular, meu celular / Sabe falar, sabe escutar / Agora
sobrevivência do parasita. Sei também que o parasita também sabe calcular / Registrar, tocar, agendar / De-
pode ser praticamente inócuo ao hospedeiro, como morei para encarar / Para mim, era coisa de gente vul-
um piolho, ou acabar por matá-lo no final, como um gar / Mas como escapar? / Afinal, a tecnologia veio para
vírus. Existem parasitas obrigatórios, que não sobre- facilitar” (Galisi, 2008).
viveriam sem o hospedeiro. E se eu pensar na tecno-
logia como um “grande corpo hospedeiro”, tudo está “Lembra-se de quando você estranhou aquela pessoa
de acordo. Sinto que partes do meu corpo e da minha andando sozinha pela rua, a falar como se estivesse
existência na verdade são esse grande hospedeiro. conversando com alguém? Que não satisfeito em ele-
Parte de minha memória é Internet. Parte de minha var a voz de vez em quando, ainda brandia os braços,
fala e de minha audição é telefone. Parte de minha vi- gesticulando direções, dimensões e emoções? O quão
são é TV. Parte de minhas pernas é automóvel. Talvez aliviado você não ficou ao ver que essa pessoa estava,
eu seja então, andróide. Biônico” (Macedo, 2008). sim, a conversar com alguém, mas através de um dispo-
sitivo sem fio que, inserido em sua orelha, nada mais era
“Nos dias atuais, encontramos na linguagem digital um que uma extensão de seu celular? [...] Demorei muito a
modo de fixação de sons, imagens e textos. Teria nos- me acostumar com a idéia de que a pessoa que estava
so cérebro expandido? Seriam as tecnologias digitais ao meu lado, se de repente começasse a falar, não seria
extensões dele? Desenvolvemos formas de armazenar necessariamente comigo. Não foram poucas as vezes
dados fora do corpo humano. Não estaria na hora de em que respondi a uma pergunta, ou me virei com cara
pensarmos em tecnologias que nos auxiliem a expan- de que não entendia algo que, na verdade, não estava
dir nossa própria capacidade de armazenamento?” sendo dito para mim” (Batista, 2008).
(Braida, 2008).
“Outro dia, eu precisei do endereço da minha irmã. Preci-
“Ando precisando de uma tecnologia que me ajude a sava também do número de telefone dela. Certo de que
capturar o mundo de forma relevante, pois meu cére- os dados poderiam ser facilmente localizados em minha
bro já não dá mais conta disso. Quanto de informação agenda telefônica, eletrônica, embutida no meu celular,
útil realmente perde-se num dia?” (Macedo, 2008). teclei “agenda” > “buscar” > Pamella (esse é o nome da
minha irmã). E qual foi a surpresa: os dados não estavam
“Acabei de receber, por e-mail, uma matéria sobre a lá. Os dados não estavam registrados no celular que tra-
criação de um papel mais resistente do que o ferro. zia comigo. Dei-me conta de que o endereço e o telefone
Pelo que pude entender, a fabricação tradicional de da minha irmã estavam no celular que eu havia esqueci-
papel danifica as fibras de celulose, enfraquecendo-as. do em casa. Tenho dois celulares. Um com chip do Rio de
Um grupo de cientistas suecos conseguiu manipular Janeiro e outro com o chip de Juiz de Fora.
essas fibras de forma a impedir sua deformação. Esse - E se o outro celular estivesse comigo, porém se a bate-
processo, dito menos agressivo pois desintegra a pol- ria tivesse acabado?
pa da madeira com enzimas, teria resultado num ma- - É verdade! Bastaria trocar o chip.
terial de resistência extraordinária. Diz a notícia que o - Mas o celular não estava. E eu já não memorizo mais
segredo desse feito milagroso está na tecnologia. No telefones nem endereços” (Braida, 2008).
caso, na nanotecnologia pois essas fibrinhas de celu-
lose são cerca de cinco mil vezes mais finas que um fio “Andei percebendo o quanto deixo para o meu laptop a
de cabelo. [...] Alquimia contemporânea. Coisas da ci- tarefa de pensar. Parece que só penso direito, de modo
ência. Descobertas inacreditáveis estão presentes nos organizado, quando ele está por perto. Refletir coeren-
e-mails que recebo diariamente. Minha mãe se encar- temente sobre minha vida afetiva então... só em minha
rega de me manter informado e perplexo. Acho que comunidade preferida do Orkut” (Macedo, 2008).

1
Disciplina ministrada pela autora no Programa de Pós-Graduação em Design do Departamento de Artes & Design, PUC-Rio.

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Rejane Spitz

Também Bukowski (1999), em seu livro O capitão saiu “Esses eventos mostram o uso de tecnologias que co-
para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio, nectam pessoas através de redes de interações ubíquas
nos fornece reflexões sobre sua relação cotidiana e incons- e móveis, redes essas que se expandem e se multiplicam
ciente com a tecnologia computacional, por meio de tre- a cada inovação tecnológica [...] em nossos espaços
chos escritos no inicio dos anos 90, quando seu computa-
públicos e privados, constituindo um incomensurável
dor pessoal passa, então, a fazer parte de sua rotina diária e
e informe tecnológico invisível pra nós, que é tornado
de seu imaginário. A constatação das diferenças existentes
visível por esses trabalhos que lhes atribui uma forma,
entre as duas tecnologias – máquina de escrever e com-
nos colocando, assim, frente a um desvelamento da or-
putador pessoal – ocasionada por problemas no computa-
dem do sublime – do sublime tecnológico” (Holanda e
dor, leva o autor a tomar consciência das vantagens do uso
Spitz, 2008, p. 294).
da tecnologia mais avançada. No dia 22 de novembro de
1991, Bukowski (1999) escreveu em seu diário:
Acreditamos que tornar “compreensíveis”, “perceptí-
veis” ou “visíveis” as tecnologias com as quais convivemos
“Estou escrevendo melhor do que antes. [...] Este com-
em nosso cotidiano proporciona uma melhor compreen-
putador, que comecei a usar em 18 de janeiro, tem
são de seus usos, das aplicações e do potencial, além de
muito a ver com isso. Simplesmente é mais fácil es-
possibilitar uma mudança de paradigma no que concerne
crever, a palavra é transferida mais rápido do cérebro
ao nosso papel – não apenas como usuários de tecnologias,
(ou de onde quer que venha) aos dedos e dos dedos
artistas ou designers, mas como cidadãos – tornando-nos
ao monitor, onde fica visível imediatamente – nítida e
conscientes de nossas opções e escolhas, e, conseqüente-
clara. Não é uma questão de velocidade em si, é uma
mente, co-responsáveis por suas conseqüências nos domí-
questão de fluxo, um rio de palavras, e, se as palavras
nios cultural, socioeconômico, ecológico e ambiental.
forem boas, deixe que elas fluam com facilidade”
Pois, se, por um lado, o uso de sistemas computacio-
(Bukowski, 1999, p. 78).
nais e de telecomunicação em nossa sociedade torna-se
cada vez mais popular, cotidiano, fácil, invisível e simples,
Em seu relato, o autor deixa claro seu desconhecimen-
por outro, seu funcionamento torna-se cada vez mais mis-
to quanto aos processos de funcionamento da tecnologia,
terioso. “Vivemos hoje num tipo de “inconsciente tecnoló-
bastando-lhe apenas dominar o uso de sua interface e de
gico”, sugere Dyens, “onde tudo é possível, tudo é maleá-
algumas de suas funções:
vel, modelável, transformável ao infinito, onde o tempo e
o espaço estão ao nosso alcance, mas é onde também as
“A pior noite foi quando sentei no computador e ele
modificações profundas permanecem para nós opacas,
ficou completamente maluco, mandando bombas,
ocultas e inaccessíveis” (Dyens, 2003, p. 269). Quanto mais
sons estranhos e altos, momentos de escuridão, treva
imateriais se tornam os objetos, os seres e os fenômenos,
mortal, tentei, tentei e não consegui fazer nada. Daí,
menos seus mecanismos de funcionamento nos são com-
reparei no que parecia ser um líquido que tinha en-
preensíveis. “Estranhamente, assemelhamo-nos àqueles
durecido sobre a tela e ao redor da abertura perto do
numerosos povos primitivos que não compreendem os
“cérebro”, a abertura onde se colocam os disquetes.
mecanismos biológicos ou evolucionistas que sustentam
Um dos meus gatos tinha mijado no computador. Tive
os fenômenos planetários, e que nem mesmo sabem in-
que levar para a loja de computadores. Levaram oito
terpretá-los. [...] Habitamos assim um mundo que parece
dias para consertá-lo. Durante este período, voltei à
nos pertencer cada vez menos, mesmo que sua utilização
minha maquina de escrever. Era como tentar quebrar
se revele cada vez mais fácil” (Dyens, 2003, p. 268).
pedras com as mãos. [...] Tinha que ficar bêbado para
conseguir que as palavras fluíssem. [...] Mas voltei ao
computador e as palavras voaram como pássaros en-
Possíveis caminhos do Design
louquecidos” (Bukowski, 1999, p. 80).
Diante dessa situação, questionamos recentemente
qual seria o papel do Design em um ambiente onde as
Em O invisível tornado visível (Holanda e Spitz, 2008)
são abordadas novas formas de se apresentar – por in- interações humanas são mediadas por sistemas computa-
termédio da Arte e do Design – o invisível, o incomensu- cionais transparentes e invisíveis, sistemas que se consti-
rável e o informe da tecnologia: os trabalhos de Usman tuem em mero pano de fundo das atividades cotidianas
Haque (Holanda e Spitz, 2008, p. 291) e de Rafael Lozano- (Pinheiro e Spitz, 2007). E acrescentamos, agora, outras
Hemmer (Holanda e Spitz, 2008, p. 293) mostram o mo- perguntas: quais são as implicações desse “uso inconscien-
vimento das ondas de comunicação no espaço hertzia- te e cotidiano da tecnologia”? Como o Design de objetos,
no, lançam no céu – em forma de raios luminosos – as sistemas e serviços computacionais e de comunicação
mensagens de textos enviadas pelos celulares que tam- pode interferir no sentido de tornar os usuários mais cons-
bém circulam nesse espaço, transformam em sinfonia os cientes das tecnologias que utilizam, e mais responsáveis
toques dos celulares, dando forma e visibilidade a uma por suas opções tecnológicas e por seus possíveis efeitos
grande quantidade de sons que se tornaram constantes e conseqüências?
em nosso cotidiano de comunicação móvel. As autoras Ao longo das ultimas décadas, o pensamento do cam-
sugerem que obras artísticas como essas não apenas nos po do Design em relação às tecnologias computacionais
fazem refletir sobre a “existência e grandeza dessas tec- se estendeu para muito além da estética, abarcando ques-
nologias”, mas também levam os participantes do even- tões tais como utilidade e eficiência, segurança e conforto,
to a “vivenciarem a emoção dessa grandeza” (Holanda e e, mais recentemente, integração a tecnologias emergen-
Spitz, 2008, p. 292). tes, sustentabilidade e preservação ambiental (Baeta Ne-

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O uso inconsciente da tecnologia no cotidiano

ves, 2006). Nesse sentido, as pesquisas inovadoras que vêm sas vêm sendo conduzidas sobre a forma como cada uma
sendo realizadas visando o desenvolvimento de produtos, dessas modalidades muda drasticamente a maneira como
softwares e sistemas na área de telefonia móvel contem- os usuários se relacionam com seu telefone. Outra consta-
plam várias das questões acima, pertencentes ao campo tação foi a de que o lugar ou recipiente onde as pessoas
do Design, e indicam alguns interessantes e promissores levam consigo o celular varia de acordo com fatores tais
caminhos, merecendo nossa atenção. como o horário, o contexto de uso, as condições de tempo,
O recente “boom” da telefonia celular teve forte im- a estação do ano, suas vestimentas, sua sensação de segu-
pacto na forma como as pessoas fazem uso da tecnologia rança, o grau de expectativa e a importância das ligações a
no seu dia-a-dia: hoje o telefone celular faz parte do coti- serem recebidas, e o meio de transporte, dentre outras (Cui
diano de cerca de 3 bilhões de pessoas, ou seja, metade et al., 2007, p. 483-492).
da população mundial, e, estima-se que, nos próximos dois Chipchase (2007b) proferiu recentemente uma pa-
anos, mais 1 bilhão de pessoas irão também adquirir seus lestra sobre o impacto dos telefones celulares no Terceiro
aparelhos celulares. Líder mundial na área de telefonia Mundo, e sobre como usuários de alguns desses países uti-
móvel – responsável por cerca de 40% dos celulares ven- lizam seus aparelhos celulares de maneiras jamais sequer
didos no mundo – a Nokia vem conduzindo pesquisas de imaginadas pelos profissionais que desenvolvem essa
campo em várias partes do mundo sobre o comportamen- tecnologia, assumindo funções bastante diferenciadas
to humano em relação ao uso de dispositivos celulares, e das originalmente propostas por designers e engenheiros:
investigando usos inusitados e criativos dessa tecnologia, por exemplo, os celulares servem de canais para comer-
com o objetivo de adequar seus produtos às diferentes cialização e para negócios em localidades muito pobres,
necessidades locais e globais de seus usuários. Um grupo assumem o papel de agências bancárias “de bolso” (pois
de designers das áreas de produto, embalagem, interação muitos habitantes de Uganda, por exemplo, usam cartões
e usabilidade dessa empresa esteve no Brasil, ao final de pré-pagos como uma forma de transferência de dinheiro),
2007, para realizar uma pesquisa sobre o uso de celulares e tornaram-se pontos de identidade fixa em populações
junto à comunidade carente da Favela do Jacarezinho, no flutuantes e nômades, o que o levou a formular a teoria
Rio de Janeiro. Essa pesquisa foi também realizada com de que, num mundo crescentemente nômade e transitó-
comunidades carentes em Mumbai, na Índia, e na cidade rio como o nosso, o celular está se tornando o único item
de Accra, em Gana. Os designers da Nokia descobriram, fixo de nossa identidade (Corbett, 2008). Nicolaci-da-Costa
por exemplo, que o medo da violência faz com que os apa- (2004, p. 17) encontrou resultado semelhante ao pesqui-
relhos de dimensões mais reduzidas sejam os preferidos sar grupos de jovens brasileiros e seus relacionamentos
dos usuários brasileiros, e que o uso compartilhado de um sociais, pois constatou que os celulares permitem a esses
celular é algo recorrente nas comunidades carentes, que jovens uma existência fluida e flexível, expressa na fala de
fazem adaptações caseiras para poderem dispor de múl- uma de suas entrevistadas: “Tudo o que tenho de fixo na
tiplas linhas e configurações pessoais num único aparelho vida é meu celular”.
(O Globo, 2008, p. 3). A preocupação com o meio ambiente, com o futuro
Com o objetivo de analisar os hábitos e os costumes do planeta e com o lixo que se acumula a longo prazo –
de pessoas que pertencem a diferentes culturas, classes em vista de que atualmente as pessoas trocam de apare-
socioeconômicas e têm diferentes níveis educacionais, lho celular, em média, a cada 18 meses – levou a Nokia a
Jan Chipchase – pesquisador e designer da Nokia, que se desenvolver pesquisas também na área de sustentabilida-
define como um “antropólogo de usuários” (user anthropo- de. Vários estudos estão sendo conduzidos sobre possíveis
logist) – conduz investigações sobre, por exemplo, o que as formas de conservação de energia, tais como formas de
pessoas carregam consigo quando se deslocam de um lu- recarregamento da bateria com uso de energia solar, ou o
gar para outro, no seu cotidiano. Nesse aspecto, diz ele, há “carregador inteligente”, que, mesmo ligado, pára de con-
um consenso hoje – tanto em países desenvolvidos quan- sumir energia assim que a bateria estiver completa. Uma
to em países do Terceiro Mundo – sobre as três coisas que das pesquisas que vêm sendo conduzidas pelo grupo de
as pessoas levam mais freqüentemente consigo quando design de projetos estratégicos do Nokia Studio Calaba-
saem de casa, na bolsa ou nos bolsos (o que, em sua visão, sas da Califórnia tem por objetivo fazer com que o celular
tem diretamente a ver com a questão da sobrevivência): dure de 5 a 25 anos, e não seja um bem descartável. Nessa
dinheiro (para comprar alimentos), chaves (para voltar direção, já há um protótipo em desenvolvimento de um
para o abrigo) e um aparelho de telefone celular (para po- aparelho “ecologicamente correto” – o Remade – feito de
der se comunicar e pedir ajuda ou informações) (Chipcha- materiais reciclados, como alumínio reaproveitado, borra-
se, 2007a). Suas pesquisas revelaram outros dados surpre- cha de pneus e garrafas plásticas (O Globo, 2008, p. 3).
endentes, como o fato de que 60% dos homens colocam Cabe ainda mencionar o projeto Only Planet, um
o aparelho no bolso e perdem 30% das ligações por isso, e programa acadêmico internacional da Nokia Design, que
61% das mulheres guardam seus celulares na bolsa, e por envolve alunos e professores de Design de universidades
isso perdem 50% das chamadas, dados que levaram os de- ao redor do mundo, e possibilita o compartilhamento de
signers de sua empresa a desenvolverem novas formas de idéias e informações sobre as culturas locais. Como ressal-
alerta para as chamadas recebidas (O Globo, 2008, p. 3). tam os organizadores do projeto, o Only Planet não é ape-
Outras importantes investigações estão sendo de- nas dedicado a desenvolver aparelhos de telefonia móvel.
senvolvidas na área de convergência de mídias – ou, mais É uma visão abrangente do mundo atual,“onde influências
especificamente, sobre a convergência de funcionalidades locais tornam-se tendências globais, e tendências globais
– tais como rádio, televisão, câmera fotográfica, GPS, e- ameaçam sobrepujar as pequenas influências singulares”
mail, etc – num único aparelho de telefone celular. Pesqui- (Spitz e Pereira, 2008, p. 6). A partir do convite feito pela

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Rejane Spitz

Nokia ao Laboratório/Núcleo de Arte Eletrônica do Depar- Segundo Vinhas (2007), a compreensão acerca do pa-
tamento de Artes e Design da PUC-Rio – tivemos a opor- pel da tecnologia na vida social só é possível se, em vez de
tunidade de representar o Brasil com a nossa participação nos limitarmos a analisar os avanços da tecnologia, abor-
no projeto Only Planet’ 2008, que envolveu ainda outras 11 darmos também as causas que definem uma certa ten-
universidades localizadas nos seguintes países: Japão, Ar- dência na produção e na manipulação dos modelos tec-
gentina, Irã, Namíbia, Itália, Turquia, Índia, Suécia, Polônia, nológicos. “Um conjunto de técnicas não existe de modo
China e Chile. O desafio foi enorme: tivemos apenas pou- aleatório e não surge ao acaso”, afirma o autor: é preciso
cos meses para formarmos um grupo com 30 alunos de considerar “os medos, os desejos, os sonhos, enfim, tudo
graduação e pós-graduação da PUC-Rio (provenientes de aquilo que faz uma sociedade ou uma época produzir
cursos de Design, Administração, Engenharia e Informáti- determinadas tecnologias”, não sendo possível pensar as
ca), desenvolvermos várias soluções conceituais e tecnoló- técnicas – produto da subjetividade humana – sem cons-
gicas de caráter inovador e original, e criarmos um total de ciência de que são resultantes de uma determinada lógica
8 serviços para celulares que contemplassem as especifici- particular (Vinhas, 2007).
dades da cultura brasileira e atendessem às demandas dos À luz dessas reflexões, examinamos a natureza das
usuários de nossa sociedade. O projeto contou com visitas perguntas que começam a ser formuladas por designers
mensais de designers da Nokia, sob a coordenação dos da contemporaneidade – em seus projetos relacionados
designers Qifeng Yan e William Yau. Em simpósio realizado a tecnologias computacionais e de comunicação, cuja me-
na Finlândia, em fevereiro deste ano, foram apresentados todologia, agora, abrange o entendimento das práticas
os projetos desenvolvidos pelas 12 universidades, que en- sociais e culturais inerentes ao seu uso – perguntas que
focavam características dos usuários e especificidades de podem levar à compreensão acerca do papel da tecnolo-
cada país. No nosso caso, apresentamos serviços de tele- gia no cotidiano social, dando lugar ao design de objetos,
fonia móvel relacionados aos seguintes temas: analfabe- aparelhos, sistemas e serviços mais eficientes e adequados
tismo, pobreza, violência, festas brasileiras, famílias nume- aos seus contextos de uso:
rosas, precariedade de serviços públicos de atendimento
médico-hospitalar, informações sobre transporte urbano, “Como produzir um telefone que pode ser consertado
e organização rápida de reuniões e encontros (Spitz e por um técnico ambulante, que talvez não tenha acesso
Pereira, 2008). Essa colaboração com a Nokia vem tendo à compra de peças novas? Como produzir um telefone
continuidade por meio de outros projetos em parceria que não pare de funcionar por causa de vento ou chuva,
com o Laboratório/Núcleo de Arte Eletrônica, que ora se ou por cair de uma motocicleta numa estrada de terra?
iniciam. Vale ressaltar os bons frutos acadêmicos que vêm Ou um telefone que pegue sinais a longas distâncias, em
sendo colhidos, a partir dessas iniciativas: o Departamento áreas rurais, ou que mantenha a bateria do carro carrega-
de Artes & Design da PUC-Rio detém hoje uma expertise da por mais tempo, ou que possa ser usado como uma
singular na área de Design para telefonia móvel, contando lanterna, quando falta luz?” (Corbett, 2008, p. 8).
com uma equipe de professores capacitados a atuar nes-
ses novos e promissores segmentos do campo do Design, O que definimos como um processo essencialmente
e oferecendo disciplinas especificamente relacionadas ao tecnológico, na verdade, mantém “uma estreita relação
desenvolvimento de projetos nessas áreas, em seus cursos com elementos que produzem a vida contemporânea e
de graduação e de pós-graduação em Design. que podem ser estudados através dos processos limina-
res, da negociação das diferenças, da diáspora cultural e
Conscientes e diferentes das paisagens culturais” (Vinhas, 2007). Nesse contexto, a
tecnologia surge não apenas como um meio, mas princi-
Quando os computadores pessoais começaram a palmente como um modo de desvelamento, passando “do
se tornar populares, o problema da comunicação entre o não presente ao presente, do oculto ao não-oculto” (Kac,
computador e o usuário leigo em computação foi enun- 2004, p. 154), do inconsciente ao consciente.
ciado em direção ao usuário – que deveria se adaptar à
máquina – o que, num momento posterior, foi revisto, e to- Referências
mou a direção oposta – a máquina é que deveria se adap-
tar ao homem (Baeta Neves, 2006, p. 93). Hoje, no entanto, ALLEN, R. 2003. The Bush Soul e Coexistence: duas obras de
num horizonte que se estende para além da visão de tec- arte que exploram a presença humana, a vida artificial e
nologia centrada no usuário, é preciso pensar também nas a realidade mista (mixed reality) usando o Sistema Emer-
práticas culturais e sociais que estão em jogo, subjacentes gence. In: D. DOMINGUES (org.), Arte e vida no século XXI:
e inerentes ao uso da tecnologia, uma vez que o projeto de tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo, Editora UNESP,
Design compreende também os complexos domínios do 379 p.
contexto de uso (Pinheiro e Spitz, 2007). ASCOTT, R.; SHANKEN, E.A. 2003. Telematic Embrace: visionary
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e adequadas aos seus diferentes contextos de uso, como Janeiro, RJ. Dissertação de Mestrado em Design. PUC-
também, dialeticamente, é absolutamente essencial a in- Rio, 253 p.
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O uso inconsciente da tecnologia no cotidiano

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