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A FILOSOFIA ÁRABE DE AVERRÓIS E AVICENA1

Luiz Henrique Cuchaba2

INTRODUÇÃO

Dentre as figuras mais importantes para a introdução do aristotelismo na


filosofia do ocidente medieval, podemos citar Averróis e Avicena, que segundo
Eduardo Bittar, possuem uma importância fundamental na conservação,
interpretação, disseminação e transmissão da filosofia helenista no próprio mundo
cristão do ocidente medieval3. O mundo oriental árabe neste período possui um
grande interesse pela filosofia, e de modo particular pela cultura helênica antiga,
como Ptolomeu, Arquimedes, Hipócrates, Aristóteles, Teofrasto, Platão, de modo
que se não fosse a grande efervescência deste período em torno destes autores, o
destino do helenismo seria o desaparecimento4. O presente trabalho buscará trazer
um pouco das contribuições filosóficas do aristotelismo de Avicena e Averróis.

1 O ARISTOTELISMO DE AVICENA

Avicena (1037) foi um filósofo persa responsável por traduzir as obras de


Aristóteles, de maneira que foi o primeiro a trazer de forma sistemática o
pensamento aristotélico no meio do ambiente cristão medieval. Os comentários
feitos por ele das obras da cultura clássica são considerados neste período como
referência e possuindo um papel decisivo no rumo que a filosofia medieval irá
tomar5. Sua filosofia possui muitas influencias neoplatônicas, assim como os traços
da religião islâmica, o que facilitou seu acolhimento entre muitos pensadores
cristãos, que já estavam familiarizados com o neoplatonismo deste o tempo
patrístico, e possuíam muitos dogmas comuns com a religião islâmica6.

1
Trabalho para obtenção de nota parcial da disciplina de História da Filosofia Antiga e Medieval
2
Bacharelando em Filosofia pela Faculdade Vicentina - FAVI
3
BITTAR, 2009, p. 62
4
BITTAR, 2000, p. 63
5
ANTISERI; REALE, 2003, p.192
6
ANTISERI; REALE; 2003, p. 192
Dentre suas contribuições filosóficas podemos citar a distinção entre ente e
essência. Segundo Avicena, o ente existe de fato, é algo concreto, já a essência é
algo abstrato, que não precisa necessariamente existir. O ente se refere ao ser da
coisa, como por exemplo, o homem, já a essência se refere à sua abstração que lhe
diz o que é, sua definição, no exemplo do homem, sua essência é a humanidade.
Para ele, no que se refere ao ente, é possível distinguir entre o ser necessário
e ser possível. O ser necessário seria aquele onde a existência e a essência seriam
a mesma coisa, de modo que não possa deixar de ser, sendo a própria razão de sua
existência. Já o ser possível, se refere a todo ser que não possui em si mesmo a
razão de sua existência, de modo que poderia não existir. Deus é o único ser
necessário, que existe por si mesmo, já o mundo e o cosmos são seres possíveis,
pois recebem a existência de Deus.
No que se refere ao mundo e sua relação com Deus, Avicena vai dizer que o
mundo é ao mesmo tempo contingente e necessário. Contingente segundo sua atual
existência que não lhe cabe na essência, de modo que sua existência não se
mantém por si mesma. Necessário, porém, enquanto Deus, de quem recebe a
existência, pois tendo Deus criado o mundo segundo sua vontade, não poderia ter
deixado de agir deste modo, pois não pode deixar de agir segundo sua natureza.7
Avicena vai dizer que Deus produz necessariamente a primeira Inteligência e
esta a segunda, de modo consecutivo até a décima Inteligência, criando cada uma
seus respectivos céus com exceção da décima, que não gera uma nova realidade,
mas atua no mundo tanto no plano ontológico como no gnosiológico8.
No plano ontológico, a décima inteligência serve como doadora das formas da
matéria no mundo sublunar, estruturando o mundo com matéria e forma, sendo a
matéria corruptível o princípio de individualidade pela mutação e multiplicidade,
diferente da matéria dos céus que é incorruptível. Encontra-se aqui a concepção
hilemórfica9 de Aristóteles unida as categorias neoplatônicas10.
No plano gnosiológico, ela opera a passagem da potência para o ato do
intelecto possível, ou seja, o intelecto humano individual. Tal passagem ocorre por
meio da irradiação tanto dos princípios primeiros pelo intelecto habitual, como por
meio dos conceitos universais e abstrações pelo intelecto em ato, podendo também
7
ANTISERI; REALE; 2003, p. 193
8
ANTISERI; REALE; 2003, p. 193
9
Hilemorfismo aristotélico é a teoria elaborada por Aristóteles, segundo o qual todos os seres
corpóreos são compostos de matéria e forma.
10
ANTISERI; REALE; 2003, p. 193
elevar o intelecto individual ao supremo intelecto agente pelo intelecto santo. Vale
ressaltar que em todos estes contatos com o intelecto agente a individualidade e
personalidade homem permanecem intactas11
Avicena buscou conciliar a filosofia aristotélica com a doutrina islâmica, o que
fez com que conciliasse com algumas doutrinas cristãs, o levando a influenciar
fortemente o pensamento escolástico com sua filosofia, como por exemplo, Santo
Tomas, São Boaventura, Duns Escoto, que encontraram em Avicena um grande
aliado em conciliar a fé e razão.

2 O ARISTOTELISMO DE AVERRÓIS

Averróis (1198) nascido em Córdoba na Espanha muçulmana, foi um jurista,


médico e um grande comentador de Aristóteles. Ao contrário de Avicena, que obteve
grande aceitação no meio cristão pela sua tendência neoplatônica e fidelidade aos
dogmas, Averróis gerou grande desconfiança no meio eclesiástico pela sua
confiança ilimitada na razão, assim como por negar certos dogmas como a
imortalidade da alma e defendendo a eternidade do mundo, teses defendidas por
Aristóteles12.
Para Averróis, Aristóteles é o verdadeiro filósofo, e a doutrina aristotélica
coincidia com a suprema verdade. Segundo ele, as divergências que existem entre a
filosofia e a teologia se devem não a diferença nos princípios essenciais, pois ambas
buscam a verdade, mas no campo da interpretação, no qual a filosofia possui mais
força. Existe, portanto, um primado da filosofia sobre a teologia, o que virá a
contrastar com o concordismo de Avicena, e posteriormente, com o pensamento
escolástico.
Baseado na doutrina de Aristóteles, Averróis afirma que o motor supremo
assim como os motores dos céus se movem, não como causa eficiente13 como
pensava Avicena, mas como causas finais14, isto é, são o bem e perfeição que cada
céu aspira pelo movimento. É o primeiro motor que, sendo eterno e de natureza não
11
ANTISERI; REALE; 2003, p. 193
12
ANTISERI; REALE; 2003, p. 195
13
Causa eficiente, segundo Aristóteles, é a causa primeira, que deu origem ao ser ou objeto, ou seja,
aquilo que foi responsável pela criação.
14
Ou seja, a razão de algo existir.
eficiente, através de seu movimento assegura a unidade do universo, de modo que o
mundo seja também eterno15
Outro pensamento de Averróis que gerou várias críticas e discordâncias é o
da unicidade do intelecto possível, onde ele afirma que existe somente um intelecto
possível para toda a humanidade, por onde os homens podem alcançar o
conhecimento do universal. Este intelecto possível estaria fora do homem, não
sendo parte do mesmo, de modo que é comum a todos. É somente neste intelecto
que as almas são imortais, negando assim a imortalidade individual16
O modo como o intelecto possível conhece se dá pela passagem da potência
para o ato, onde ele recebe na fantasia17 os conceitos inteligíveis atualizados pelo
intelecto agente18 que realiza esta passagem. De modo que, assim como existe
somente um intelecto divino, o intelecto possível é único para toda a humanidade,
onde cada indivíduo ligado a ele pela fantasia, podem entender pela intervenção do
intelecto divino os conceitos universais aí contidos em potência. Averróis defende,
por fim, que no final dos tempos haverá uma união dos intelectos, de modo que,
quando o intelecto possível atingir sua atualização no saber, ele se unirá ao intelecto
divino que está sempre em ato19

CONCLUSÃO

O pensamento filosófico árabe, principalmente de Avicena e Averróis, se


tornou obrigatório em muitas autoridades cristãs, pela sua grande circulação nas
universidades, pela profundidade de suas reflexões e autoridade em determinados
temas, podendo enxergar esta grande influencia no pensamento de São Tomás de
Aquino20, “sendo uma constante obrigatória neste período para a afirmação das
bases do pensamento medieval ocidental”.21
É graças a Averróis que o ocidente se afiniza com Aristóteles, se
aproximando através das universidades do legado racionalista grego. Em
15
ANTISERI; REALE, 2003, p. 196.
16
ANTISERI; REALE, 2003, p. 197.
17
Entende-se por fantasia, a parte do homem sensível e individual que é capaz de se unir ao
intelecto possível, captando os conceitos em potência, embora não possa compreendê-los.
18
Intelecto agente ou divino é aquele que põe em ato dos conceitos inteligíveis em potência.
19
ANTISERI; REALE, 2003, p. 197.
20
BITTAR, 2009, p. 96
21
BITTAR, 2009, p. 98
contrapartida, no oriente a vitória do neoplatonismo de Avicena terá conseqüências
que perduram até os tempos atuais, possuindo uma verdadeira incapacidade de dar
um predomínio a cultura laica22

REFERÊNCIAS

ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da filosofia: patrística e escolástica.


1. ed. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 192-197.

BITTAR, Eduardo C. B.. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a


recepção de Aristóteles no mundo medieval. Rev. Port. de História do Livro,
Lisboa, n. 24, p. 61-103, 2009.

22
BITTAR, 2009, p 100

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