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PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL E

DIREITO CIVIL

TIAGO TOCCHETTO

O DEVIDO PROCESSO LEGAL NO PLANO DAS PLATAFORMAS

LONDRINA
2022
O DEVIDO PROCESSO LEGAL NO PLANO DAS PLATAFORMAS

Artigo apresentado ao curso de pós-


graduação lato sensu em: Direito
Processual Civil e Direito Civil do
Instituto de Direito Constitucional e
Cidadania como requisito para a
obtenção do título de especialista.

Orientador: Dra. Maria Celia


Nogueira

LONDRINA
2022
RESUMO

Diversas limitações a ingerência do Estado na vida privada dos indivíduos foram


alcançadas através da Carta Constitucional de 1988, garantidora de diretos fundamentais
como o contraditório e a ampla defesa. Acontece que a integridade destes princípios não
se encontra ameaçada somente pela ingerência estatal, mas também por entes privados
detentores de elevado poder sócio econômico, conforme se observa na gradual quebra da
descentralização do poder de voz, oriunda da globalização e advento da internet, por
decorrência do controle das redes sociais sobre o tráfego de conteúdo, por via de remoções
de contas e publicações em dissonância com o devido processo legal. Logo, o enfoque do
estudo está centrado em ilustrar os meios viáveis para o asseguramento do devido
processo no âmbito das plataformas, que dar-se-á mediante a apresentação das teorias da
eficácia horizontal indireta e direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, e suas
formas de aplicações no ordenamento pátrio.

PALAVRAS CHAVES: Devido Processo Legal, Direitos Fundamentais, Eficácia


Horizontal, Plataformas.

ABSTRACT

Several limitations to State interference in the private life of individuals was achieved
through the Constitution of 1988, guarantor of fundamental rights such as contradictory
and full defense. It turns out that the integrity of these principles is not only threatened by
state interference, but also by private entities with high socio-economic power, as can be
seen in the gradual breakdown of the decentralization of voice power, arising from
globalization and the advent of the internet, due to the control of social networks over
content traffic, through the removal of accounts and posts in dissonance with due process
of law. Therefore, the focus of the study is centered on illustrating the viable means to
ensure the due process in the sphere of platforms, which will take place through the
presentation of the theories of indirect and direct horizontal effectiveness of fundamental
rights in private relations, and their forms of application in the national order.

Key words: Due Process of Law, Fundamental Rights, Horizontal Effectiveness,


Plataforms.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................5
2 A DIVERSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE EXPRESSÃO E O PROTAGONISMO
TOMADO PELAS REDES SOCIAIS ...................................................................6
3 AS EXCLUSÕES DE PUBLICAÇÕES E CONTAS PELAS REDES SOCIAIS
SEM OBSERVÂNCIA AO CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA .............8
4 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES PRIVADAS .......................................................................................12
5 O DEVIDO PROCESSO LEGAL NAS RELAÇÕES PRIVADAS .....................16
6 CONCLUSÃO .....................................................................................................21
REFERÊNCIAS .....................................................................................................22
5

1 INTRODUÇÃO

Pensar no meio pelo qual ocorre o hodierno trânsito comunicativo-


informacional sem se remeter as redes sociais é algo inconcebível, logo, facear reiteradas
limitações à perfis e remoções de conteúdos publicados no seio deste ambiente virtual,
executadas por decisões automatizadas das plataformas viabilizadoras das conexões entre
usuários, isentas de cientificação, ou mesmo oitivas destes últimos, levanta inquietação
quanto o respeito as garantias fundamentais previstas na Constituição da República
Federativa do Brasil.
Inobstante a abertura de espaços descentralizados para as mais diversificadas
manifestações sociais na esfera cibernética, oriunda do processo de globalização e de
privatização das infraestruturas de interligação de redes, migrando da verticalidade do
poder público, para horizontalidade social, depara-se ainda com a mantença de graus
hierárquicos, camuflada nas arbitrariedades cometidas pelas grandes plataformas,
controladoras deste universo tecnológico.
Este sufocamento promovido pelas redes sociais perante seus usuários,
emoldurado em trâmites de remoção unilateral de conteúdos e contas, exemplificar-se-á
mediante a exibição da supressão de direitos vivenciada por três figuras públicas
nacionais, desembocando na afronta aos princípios constitucionais do contraditório e da
ampla defesa (art. 5⁰, LV da CF/88) que, por conseguinte, ferem o princípio do devido
processo legal (art. 5⁰, LIV da CF/88), visto que aqueles são abarcados por este.
Desta feita, levando em conta que estes direitos fundamentais são assegurados
em sede jurisdicional, ou seja, na relação existente entre indivíduo e Estado, há que se
averiguar a aplicabilidade destes direitos nas relações travadas entre particulares, cenário
que invoca o apelo às teorias da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações
privadas.
Portanto, para congruente perpetuação do presente artigo científico, pautado na
busca pelo devido processo no âmbito das plataformas, utilizar-se-á de uma análise
criteriosa da teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais, ao se apreciar
os artigos da Lei n⁰ 12.965/14 (Marco Civil da Internet) e da Lei n⁰ 13.709/18 (Lei Geral
de Proteção de Dados); assim como da teoria da eficácia horizontal direta, através do
exame sobre entendimentos jurisprudenciais exarados pelo STF acerca do assunto, vide
RE 158.215/RS e RE 201.819/RJ.
6

2 A DIVERSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE EXPRESSÃO E O PROTAGONISMO


TOMADO PELAS REDES SOCIAIS

A tamanha facilidade e velocidade com que ocorre a comunicação entre distantes


pessoas, instituições e empresas, assim como o acesso e repasse de informações, opiniões,
notícias e dados no cenário hodierno, evidencia o avassalador progresso das tecnologias
comunicacionais, oriundas da virada do século passado para o corrente, que constituem a
denominada ˝revolução digital˝.
Contudo, para que este avançado estágio das telecomunicações fosse atingido,
houveram nítidas transformações em sede social, econômica, política e cultural, as quais
advieram em grande parte pelo processo de globalização, que trouxe um encurtamento
dos espaços por conta da incidência dos avanços tecnológicos, segundo Bauman (2001,
p. 173): ˝relação cambiante entre espaço e tempo˝. O que desencadeou na hegemonia da
internet, como também na supervalorização informativa.
Sob tal prisma, se averigua que a internet, defina por Castells como (2002, p.
431): ˝espinha dorsal da comunicação global mediada por computadores˝, a qual,
diferentemente da televisão, proporciona a seus usuários a qualidade de fornecedores de
conteúdo, possibilitou a substituição da verticalidade existente entre jornalistas e sua
audiência para a horizontalização do espaço público, ampliando o campo de debate
democrático e o intercâmbio de opiniões.
Logo, em consonância com o magistério de Mariana Giorgetti Valente (2021, p.
26), a nítida diversificação com a qual os indivíduos pertencentes a esta sociedade em
rede podem manifestar suas convicções, assim como o raio de magnitude que tais
exteriorizações podem alcançar em curto ínterim em sede global, trazem inevitáveis
repercussões na liberdade de expressão dos mesmos, visto que:

Com as tecnologias digitais, as pessoas facilmente transportam conteúdo de


um lugar a outro, criam em cima dele, distribuem vídeos, textos e imagens
próprios e de outras pessoas. É como se todas as pessoas ganhassem um
megafone.

Destarte, levando em consideração a dimensão de propagação e mutua


conectividade viabilizada pela implementação da rede mundial de computadores, se
verifica a transição da mídia de um-para-muitos a uma comunicação de muitos para
muitos, traduzido no movimento de quebra da direção informacional de um emissor para
7

diversos receptores, com a introdução do intercâmbio comunicativo entre estes,


compreendido por Castells (2002, p. 427) da seguinte maneira:

Tudo porque o processamento das informações vai muito além da


comunicação de mão única. A televisão precisou do computador para se
libertar da tela. Mas seu acoplamento, com consequências potenciais
importantíssimas para a sociedade em geral, veio após um longo desvio
tomado pelos computadores para serem capazes de conversar com a televisão
apenas depois de aprender a conversar entre si. Só então, a audiência pode se
manifestar.

Nesta senda, vale destacar que a intensificação deste processo de interações


instantâneas no seio social se perpetrou, em meados de 1994, através da privatização dos
backbones, infraestruturas de interligação de redes, evento que deu abertura ao
surgimento das redes sociais, consistentes na figura de plataformas de conexão entre
usuários.
Cediço é que considerável parte da população mundial se informa, comunica e
compartilha por via das redes sociais, entretanto, há que se salientar que a diversidade e
pluralidade de manifestações oportunizada pela descentralização e democratização
comunicacional não é absoluta, visto que a permissão ou proibição de dados conteúdos
passa pelo crivo das grandes plataformas condutoras deste espaço, tais como: Google,
Facebook, Intagram e Twitter.
Desta feita, se verifica um imenso exercício de poder concentrado no atuar destas
plataformas de caráter privado sobre um espaço que, apesar de possuir a infraestrutura
privada, conta com uma comunicação de natureza pública, posto que os usuários da rede
as utilizam para as mais variadas interações entre si, ilustrando a clara influência destas
empresas perante este ˝universo público de propriedade privada˝, conjuntura sintetizada
por Ronaldo Porto Macedo Junior (2021, p. 47) com os sequentes termos:

Além disso, seus líderes não são responsáveis pelos seus usuários como
governos democráticos o são em relação aos seus eleitores. Não obstante, são
empresas gigantes de informação e sua capacidade de interferir com a
liberdade de informação e expressão é maior que a da maioria dos Estados
nacionais.

Isto posto, diante da latente interferência que as normatizações arquitetadas


privativamente pelas plataformas, muitas vezes nomeadas como termos de uso, causam
na liberdade de expressão dos usuários destas redes, verbalizadas através de supressões
ou limitações de caracteres, conteúdos e até mesmo contas, abre-se uma vitrine, onde os
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olhares devem se voltar atentamente para eventuais afrontas aos direitos fundamentais
disciplinados na Constituição da República Federativa do Brasil.

3 AS EXCLUSÕES DE PUBLICAÇÕES E CONTAS PELAS REDES SOCIAIS


SEM OBSERVÂNCIA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA

Dentro do inarredável domínio virtual tomado pelas redes sociais nas relações
interpessoais do século vigente, tidas como o meio de comunicação basilar desta
sociedade digital, não são raros os casos de exclusões de conteúdos e perfis realizados de
forma arbitrária, infundada e sem qualquer oportunização de resposta ou contra-
argumentação face a tais desarrazoadas condutas das plataformas.
Nesta toada, imprescinde trazer à tona alguns dos inúmeros eventos em que
ocorreram exclusões ou bloqueios unilaterais de publicações e contas, sem que houvesse :
prévia comunicação, esclarecimentos mínimos, ou qualquer possibilidade de
apresentação de defesa ante a remoção sumária pela qual o usuário se defronta.
Dentre tais casos, imperioso principiar pelo banimento do perfil que Felipe Rios
administra junto ao Instragram, intitulado como ˝Comédia Baiana˝, sem que houvesse
transparência suficiente da plataforma acerca do motivo de tal penalidade, muito menos
espaço para que o usuário pudesse contrarrazoar a automatizada apuração que sequer
obteve acesso, tendo o comediante assim relatado:

Segundo ele (Instagram), eu violei suas diretrizes. Não consigo mais acesso
desde a última sexta-feira (3). Eles não especificaram o motivo, apenas me
responderam que foi uma violação. O que eu acho estranho, se você reparar
bem, está acontecendo direto com os digitais influencers baianos. Só os
baianos, véi. O Instagram não explica isso de ser só a gente”, completa Felipe,
que perdeu cerca de R$ 10 mil em patrocínio com o perfil banido.

O panorama descrito acima, marcado pela unilateralidade nas restrições


impostas pelos provedores de redes sociais aos conteúdos e contas particulares, sem
prévia oitiva dos usuários, atingiu também os perfis de outras afamadas personalidades,
tais como: Ana Paula Padrão e Antônio Fagundes, sendo que a primeira teve o recurso de
˝curtidas˝ bloqueado temporariamente, quando buscava agradecer os diversos
comentários solidários que recebeu em virtude da morte de seu pai, levando-a a se
manifestar sobre tal acontecimento com os seguintes dizeres:
9

Quis reconhecer todos aqueles que me enviaram bons sentimentos pela morte
do papai mas parece que o insta achou que eu fui longe demais... Curiosos
tempos esses em que agradecer um gesto de solidariedade é motivo de
desconfiança...

No que tange ao imbróglio virtual envolvendo a segunda celebridade citada no


parágrafo antecedente, se tem que a mesma foi erroneamente confundida com um robô,
haja vista ter respondido a diversos fãs com o mesmo tipo de comentário, o que resultou
no imediato bloqueio desta função pela plataforma em questão, nas palavras do ator: ˝O
Instagram bloqueou os meus comentários porque eles acharam que era um robô. Mas não
era, não, era euzinho mesmo˝.
Neste diapasão, tomando arrimo nas similaridades presentes nos casos expostos
acima, consistentes na ausência de cientificação prévia dos usuários quanto ao teor das
acusações que lhes recaem, como também na inviabilização de apresentação de defesa
frente as limitações e exclusões compulsadas pelas plataformas, caminha-se, sob o âmbito
jurídico, para uma cultura de sufocamento aos princípios constitucionais do contraditório
e da ampla defesa.
Insta salientar que os dois princípios supramencionados possuem natureza
processual, e encontram-se positivados no inciso LV do art. 5⁰ da CF/88: ˝aos litigantes,
em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes˝, logo, não é
coincidência que o CPC/15 traz em seu primeiro artigo a subordinação do processo civil
ao texto constitucional, devendo aquele ser ordenado, disciplinado e interpretado em
sintonia com os fundamentos deste.
No que pertine a conceituação do princípio do contraditório, cumpre destacar
que este é o instrumento democratizante do processo civil e subdivide-se em dois
aspectos. O primeiro, designado como formal, garante a participação de todas as partes
envolvidas em determinado litígio, por meio da ciência dada aos réus, executados e
interessados, acerca da integralidade do que se passa no processo.
Coadunado com o conteúdo do parágrafo anterior, importa ressaltar que o
segundo aspecto do contraditório – material/substancial – cuida da atuação do indivíduo
dentro do processo, a qual se concretiza mediante a possibilidade de influenciar na
decisão do julgador, permitindo àquele se manifestar quanto as alegações que pesam
contra seus interesses e direitos, bem como que suas razões sejam levadas em
consideração para fins decisórios.
10

Portanto, de modo a condensar a concepção atrelada ao princípio do


contraditório, se faz imperioso buscar amparo na doutrina de Alexandre Freitas Câmara
(2014, p. 168), que delineia este juízo fundamental com as seguintes palavras:

Assim, como se sabe, o contraditório (visto como fenômeno jurídico) deve ser
entendido como a garantia que têm as partes de que tomarão conhecimento de
todos os atos e termos do processo, com a consequente possibilidade de
manifestação sobre os mesmos. Em outros termos, o contraditório é a garantia
de informação necessária e reação possível.

Ligado umbilicalmente ao princípio do contraditório, se encontra a ampla


defesa, uma vez que deriva daquele e consubstancia-se na asseguração de que o acusado
possa se valer de todos os meios em direito admitidos para se defender do que lhe é
imputado.
Por conseguinte, se denota que o princípio da ampla defesa compõe o aspecto
substancial do contraditório, ilustrando o forte elo conectivo entre ambos, circunstancia
da qual se assemelha a um mutualismo obrigatório no plano biológico, visto que não há
um sem que haja o outro, relação que é interpretada de maneira irretocável por Leal (2009,
p. 98) digna de integral transcrição:

O princípio da ampla defesa é coextenso aos do contraditório e isonomia,


porque a amplitude da defesa se faz nos limites temporais do procedimento do
contraditório. A amplitude da defesa não supõe infinitude de produção da
defesa a qualquer tempo, porém, que esta se produza pelos meios e elementos
totais de alegações e provas no tempo processual oportunizado na lei.

Mister sublinhar que a submissão do CPC/15 à Constituição Federal não fica


adstrita ao teor do art. 1⁰ da codificação processual, na medida em que o legislador
reiterou em seus dispositivos seguintes, determinados fundamentos do processo civil
estipulados na CF/88, dentre tais se constata o contraditório e ampla defesa junto aos arts.
9⁰ e 10 do CPC/15, salvaguardando a vedação à decisão surpresa, e a garantia de
influência no julgamento a ser proferido.
Não há de se olvidar que os princípios estampados arriba têm sua gênese no
Devido Processo Legal, princípio consagrado no inciso LIV do art. 5⁰ da CF/88ː ˝
ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal˝,
conquista que remonta ao ano de 1215, originado na Inglaterra, na edição da Magna Carta,
assinada pelo rei João sem Terra, período em que tal principiologia se atinha apenas a
esfera processual penal.
11

Todavia, traçando uma breve evolução histórica do devido processo legal, se tem
que o mesmo atingiu sua etapa clímax em solo norte-americano, quando da ratificação
das primeiras dez emendas constitucionais, no ano de 1791, formadoras da bill of rights.
Carta protetora de direitos individuais e limitadora do poder Federal, com especial
destaque a quinta emenda, que, contudo, somente teve seu alcance estendido a todos,
inclusos ˝ex-escravos˝, e observada por todos, insertos os estados, com a ratificação da
emenda XIV, em 1868, a qual, em parte, aduz o seguinteː

Nenhum estado fará ou executará qualquer lei que viole os privilégios ou


imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem deverá qualquer estado
privar qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o respeito ao
devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a
igual proteção das leis.

Outrossim, após a completa incorporação do princípio em comento pela


Constituição estadunidense, por meio da emenda XIV, conhecida como cláusula do
devido processo legal, se vislumbra também sua admissão pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, junto ao texto do art. 10 desta convenção internacional, que assim
apregoaː

Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública
por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos
e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Tornando para o espaço jurisdicional pátrio, sob o enfoque da Carta Cidadã de


1988, urge a necessidade de destrinchar a estruturação do devido processo legal, o qual
se divide em duas dimensões, a primeira, designada por material, guarda correlação com
a fidedigna adaptação das decisões às circunstâncias e peculiaridades de cada caso,
retratada em verdadeiro exercício de ponderação e dosimetria, afluindo, portanto, nas
máximas da proporcionalidade e razoabilidade.
Ao passo que a segunda dimensão, intitulada como formal ou procedimental,
abrange a observância dos direitos fundamentais entabulados na Constituição Federal
perante os trâmites processuais, de modo a exigir o cumprimento de princípios como:
acesso à justiça (art.5⁰, inciso XXXV da CF/88), publicidade dos atos processuais (art. 5⁰,
inciso LX da CF/88), duração razoável do processo (art. 5⁰, inciso LXXVIII da CF/88),
obrigatoriedade da motivação das decisões (art. 93, inciso IX), sem marginalizar, por
óbvio, os princípios do contraditório e da ampla defesa, vide art. 5⁰, inciso LV da CF/88.
12

Neste vértice, face a inquebrantável coexistência entre os princípios do devido


processo legal, contraditório e ampla defesa, se revela inexorável que frente a violação de
um deles, ocorre imediata ofensa a outro, panorama principiológico esboçado com
maestria por Lenio Streck e Luiz Motta (2016, p. 120):

A Constituição deve ser interpretada como um conjunto coerente, e os


dispositivos que tratam das coisas processuais devem sustentar-se
reciprocamente (não há devido processo sem contraditório; não há devido
processo sem ampla defesa; não há ampla defesa sem contraditório e assim por
diante).

À vista disto, confluindo para a dinâmica dos casos das arbitrárias exclusões e
limitações de publicações e contas por parte das plataformas, esmiuçadas no principiar
deste tópico, se notabiliza de pronto a afronta aos princípios do contraditório e da ampla
defesa, na medida em que, respectivamenteː imputaram penalidades aos usuários sem os
possibilitar a participação nos tramites que levaram a tais decisões e; por consequência
da não cientificação prévia do procedimento unilateral, inviabilizaram a apresentação de
defesa sobre os argumentos motivadores das sanções impostas.
Em sintonia com o trecho supradito e, evocando a divisão estrutural do devido
processo legal, se infere que as limitações e exclusões sumárias realizadas pelas redes
sociais ferem frontalmente a dimensão formal deste princípio, visto que não asseguraram
o contraditório e a ampla defesa aos usuários nos procedimentos que findaram em
restrições sobre tais.
Porém, ao se debruçar sobre este quadro pincelado encima de uma relação
pautada entre usuário e plataforma, ou seja, numa relação entre particulares, se levanta o
questionamento da aplicabilidade dos direitos fundamentais se estenderem para além da
defesa do indivíduo contra atos do poder público, dado que na seara das relações privadas,
impera o princípio da autonomia da vontade.

4 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS


RELAÇÕES PRIVADAS

O debate que orbita em torno do reconhecimento de direitos fundamentais


vincularem não somente o poder público, mas também as relações jurídicas travadas entre
sujeitos privados, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, teve suas raízes radicadas na
13

Alemanha, em meados de 1950, com a terminologia de Drittwirkung, apelidado no Brasil


como eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
As razões fundantes do estudo desta temática em solo alemão, advêm da
desigualdade de poder existente nas relações de trabalho, nas quais os empregadores,
considerados como polo mais forte, acabavam por restringir direitos fundamentais dos
empregados, polo considerado mais fraco, como quando obrigavam o gênero feminino
destes últimos a não ter filhos, ou não contrair matrimônio.
Diante do constante aumento da variedade de relações privadas marcadas pela
desigualdade de poder entre as partes, marchando muito além das ameaças a direitos
fundamentais provenientes do Estado, ante o poderio socioeconômico atingido por
diversos particulares, desponta a imprescindibilidade da proteção desses direitos
individuais em acordo com as pretensões da sociedade atual.
Logo, em harmonia com o magistério de Boaventura de Sousa Santos,
inerradável se torna a flexibilização dos institutos jurídicos para que se adequem com a
constante mobilidade cultural, econômica e política da sociedade em que estão vigendoː

Ao longo dos últimos duzentos anos, os direitos humanos foram sendo


incorporados nas constituições e nas práticas jurídico-política de muitos países
e foram reconceptualizados como direitos de cidadania, diretamente garantidos
pelo Estado e aplicados coercitivamente pelos tribunais: direitos cívicos,
políticos, sociais, econômicos e culturais. (2013, p. 50)

Neste enfoque, se abstrai tanto da CF/88, quanto da Lei Fundamental alemã,


nítido apreço e salvaguarda ao princípio da dignidade humana, de modo a valorizar e
proteger a pessoa e garantir ao máximo a eficácia dos direitos fundamentais, não atoa o
art. 5⁰, §1⁰ da primeira Carta citada remete o seguinteː ˝as normas definidoras dos direitos
e garantias fundamentais têm aplicação imediata˝.
Apesar do dispositivo acima transcrito não fazer menção específica a incidência
das garantias fundamentais nas relações privadas, não significa dizer que estes negócios
jurídicos estejam desatrelados à Constituição, razão pela qual o Estado deve não só se
abster de violar direitos fundamentais dos particulares, como também os proteger contra
violações oriundas do próprio âmbito privado.
Pois bem, volvendo para as questões terminológicas, importa acentuar que a
eficácia horizontal, tida como aquela traçada entre particulares, procede da extensão da
clássica construção da eficácia vertical dos direitos fundamentais, entendida como aquela
engendrada na relação entre Estado e particular.
14

No entanto, esta horizontalidade não se mostra tão consistente, posto que


costuma haver uma gritante desigualdade de pesos na balança constituinte da relação
jurídica entabulada entre os particulares, situação que dá ensejo a uma sugestiva
construção nominal de eficácia diagonal, para tanto se faz relevante valer-se da precisa
crítica terminológica apontada por Marcelo Schenk Duque (2019, p. 11)ː

Isso se verifica em face da circunstância de um dos polos dessa relação deter


isoladamente e em inegável superioridade uma parcela de poder social,
situação que pode levar de maneira geral, à violação de direitos e, em
particular, à restrição do espaço de liberdade da parte que detém a menor
parcela de poder. Essa crítica é útil para alertar que a terminologia eficácia
horizontal não pode levar à falsa conclusão de que os particulares mantêm
necessariamente relações simétricas, circunstância que ingressaria em
contradição com a própria razão de ser da Drittwirkung.

Desta sorte, defronte a ampliação da identidade agressora de direitos


fundamentais, acoplando além do Estado, entidades privadas de majorado poderio sócio-
econômico, com vistas à proteção da dignidade da pessoa humana, sob a ótica da
convergência do direito privado para o direto constitucional, somado a constatação de
relações desiguais de poder, se abre a possibilidade da aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas, a qual se ramifica em duas teorias abaixo explanadas.
A teoria da eficácia horizontal indireta ou mediata dos direitos fundamentais,
tem suas bases fundadas pelo jurista Gunter Durig, em 1954, sendo posteriormente
acolhida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, e consiste na
necessidade de pontes de ligação entre o direito privado e a Constituição, estruturadas
através da legislação infraconstitucional, visto que uma aplicação direta das garantias
fundamentais, sem lei autorizativa, violaria a autonomia da vontade.
Por conseguinte, o legislador possui função preponderante e extrema
responsabilização na sedimentação dos direitos fundamentais na ordem jurídico-privada,
devendo trazer o máximo de clareza, precisão e previsibilidade jurídica para delimitação
constitucional do exercício de cada direito.
Doutro giro, a teoria da eficácia horizontal direta ou imediata dos direitos
fundamentais, foi concebida a partir da obra Dignidade Humana, publicada em 1954, por
Hans Carl Nipperdey, jurista que presidiu o Tribunal Federal do Trabalho alemão, e
trouxe para jurisprudência desta Corte a eficácia direta dos direitos fundamentais nas
relações de trabalho, rompendo a zona de aplicação das garantias fundamentais, ressalte-
15

seː atreladas à dignidade da pessoa humana, para além das relações travadas entre o
particular e o Estado.
As pilastras edificantes da teoria da eficácia direta partem da ideia de unidade
do ordenamento jurídico, compreendendo que os direitos fundamentais dos indivíduos
não são oponíveis apenas contra atos do Estado, mas também contra os poderes sociais
privados, ante o enfraquecimento da dicotomia público-privado, advindo do processo de
constituicionalização do direito privado, de forma a centralizar o ser humano neste
contexto, voltando a ordem jurídica para sua dignidade.
Ademais, esta teoria prega que os direitos fundamentais devem viger
diretamente nas relações privadas, independentemente de lei que intermedeie ou
regulamente essa aplicação, frente a indiscutível presença de grupos sociais detentores de
avolumado poder, dos quais, perfilados com outros particulares, remetem fidedignamente
à relação entre cidadão e Estado, conjectura engenhosamente sumarizada por Marcelo
Schenk Duque (2019, p. 70)ː

(...) visualiza-se que a teoria da eficácia direta visa a conferir maior proteção
aos particulares em face de agressões provenientes de sujeitos ou entidades
privadas detentores de expressivo poder social. Seus pontos de apoio
destacados são a garantia de proteção da dignidade humana e a n atureza
multidirecional dos direitos fundamentais, que os qualificam como preceitos
ordenadores da vida social. Nesse passo, a teoria da eficácia direta revela
especial sensibilidade às relações sociais marcadas por visível desigualdade,
com base em uma tendência socializante da constituição (...)

Contudo, embora a aplicação seja imediata, se faz necessária uma análise do caso
concreto para que se pondere em que medida deve haver a composição dos direitos na
relação privada, visto que de um lado há o direito fundamental em jogo, e do outro a
autonomia da vontade, cabendo ao magistrado realizar tal sopesamento entre princípios,
para que ao fim indique qual prevalecerá, consoante as peculiaridades de cada caso.
Nesta vereda, impreterível elucidar que a autonomia da vontade diz respeito à
autodeterminação do particular, perpetrada no livre desenvolvimento da personalidade, o
qual escoa na liberdade contratual, traduzida na livre escolha de formalizar ou não um
negócio jurídico, e, em caso positivo, de selecionar o conteúdo, o tempo e os sujeitos do
pacto a ser celebrado.
Todavia, o princípio pormenorizado acima não é pleno, nem absoluto, pois desta
forma estaríamos tratando de imposição de vontades, dando margem a arbitrariedades e
abusos por parte do polo mais forte de uma relação privada marcada pela desigualdade
16

de forças, razão pela qual existem limites à autonomia privada, com vistas a proteção da
liberdade e dignidade dos particulares, de modo coadunado à ordem de valores da
constituição, respaldando, portanto, a aplicabilidade direta dos diretos fundamentais nas
relações privadas.

5 O DEVIDO PROCESSO LEGAL NAS RELAÇÕES PRIVADAS

Ante o exaurimento das teorias concernentes a eficácia horizontal dos direitos


fundamentais nas relações privadas, e com o propósito de averiguar a previsão da garantia
do devido processo legal nos trâmites utilizados pelas plataformas para fins de exclusão
e limitação de conteúdos e contas de seus usuários, urge a necessidade de destrinchar a
existência de textos legais asseguradores deste princípio no enredo das redes sociais, para
tanto se deve analisar os dispositivos da Lei n⁰ 12.965/14 (Marco Civil da Internet) e da
Lei n⁰ 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados) sobre o assunto, em atenção a teoria
da eficácia mediata dos direitos fundamentais.
Principiando pelo Marco Civil da Internet, se extrai do art. 19 que ˝o provedor
de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente˝ pelos danos
gerados por conteúdo disponibilizado por terceiro, mediante ordem judicial específica,
caso não realize a indisponibilização do conteúdo apontado, no prazo estipulado. Em
continuidade, diante da leitura do art. 20 e parágrafo único do mesmo texto legiferante,
se vislumbra o único trecho que trata parcialmente das garantias do contraditório e da
ampla defesa, in verbisː

Art. 20. Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente


responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de
aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à
indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o
contraditório e ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou
expressa determinação judicial fundamentada em contrário.
Parágrafo único. Quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo
tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa
atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins lucrativos
substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação ou pela ordem
judicial que deu fundamento à indisponibilização.

Portanto, basta deslizar rapidamente as pupilas no texto legal acima transcrito


para verificar o amplo poder concedido às plataformas, visto que estas somente são
obrigadas a cientificar o usuário quanto as razões da exclusão de conteúdo quando
possuírem informações de seu contato, para que então reste viabilizado o contraditório e
17

a ampla defesa, frise-seː em sede judicial, ou seja, durante todo este ínterim, já houve a
sumária exclusão do conteúdo, sem a notificação do usuário titular de tal, muito menos a
oportunização de exposição de defesa e consideração de seus contra-argumentos para
formação da decisão.
Não bastasse o impedimento do usuário participar, tampouco influenciar na
decisão tomada pela rede social, atinente a remoção de conteúdo publicado por aquele, o
parágrafo único do art. 20 da Lei n⁰ 12.965/14 ainda condiciona a exposição do motivo
fundante da indisponibilização do conteúdo à solicitação do usuário destinada a
plataforma.
Ao transpor a busca pela aplicação do devido processo legal nas relações
pactuadas entre usuário e plataforma, sob o manto da teoria da eficácia horizontal indireta,
por entre os dispositivos da LGPD, se esbarra novamente em escassa e incompleta
previsão legal, haja vista os arts. 20 e 22 translucidarem um enorme vácuo legislativo que
concede as plataformas avantajado poder de condução dos processos de moderação dos
usuários por meio de seus termos de uso, senão vejamosː

Art. 20. O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas
unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que
afetem a seus interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil
pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua
personalidade.
§1⁰ O controlador deverá fornecer, sempre que solicitadas, informações claras
e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a
decisão automatizada, observando os segredos comercial e industrial.
(...)
Art. 22. A defesa dos interesses e dos direitos dos titulares de dados poderá ser
exercida em juízo, individual ou coletivamente, na forma do disposto na
legislação pertinente, acerca dos instrumentos de tutela individual e coletiva.

Neste ponto, defronte o cotejamento do art. 20 e §1⁰ da Lei n⁰ 13.709/18, se


abstrai um latente incentivo a massificação de decisões automatizadas, as quais por si só
ferem frontalmente o princípio do devido processo legal, além disso, ao procurar
estabelecer abertura para o contraditório e ampla defesa do usuário, o legislador limitou
tais garantias constitucionais a uma simplória possibilidade de revisão das decisões
unilateralmente tomadas pelas plataformas, quando solicitada, e, de igual modo, restrito
acesso aos critérios e procedimentos utilizados para decisão, dos quais o usuário sequer
participou ou se manifestou.
A ausência de determinações expressas tangentes a observação do devido
processo legal nos trâmites adotados pelas plataformas para fins de exclusão de conteúdos
18

e perfis de seus usuários, traduzidos nas decisões sumárias e automatizadas tomadas por
aquelas, em momento anterior a abertura de processo judicial, alcança também o texto do
art. 22 da LGPD, dado que este dispositivo se atém apenas a apresentação de defesa por
parte dos usuários em sede judicial.
Destarte, levando em conta a vultuosa fenda presente na legislação vigente, a
qual propicia o atuar arbitrário das plataformas para decidir acerca da remoção ou
limitação de publicações e contas, sem que haja garantia mínima ao contraditório e a
ampla defesa dos usuários na esfera extrajudicial, arraigada na unilateralidade das
decisões, se faz essencial recorrer a teoria da eficácia horizontal imediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas, por decorrência desta omissão legislativa, como bem
aborda Gonçalves Filho (2009. p. 45):

Impende salientar que, na vinculação direta, não se afasta a atividade do


legislador. Não se questiona o fato de que há um espaço para que esse pondere
a autonomia privada com as normas fundamentais, qual seja, o momento da
atividade legislativa. Por isso, a prioridade na concretização das normas
essenciais acaba sendo, de fato, do legislador, o que não quer dizer que não
seja possível aplicar de forma imediata quando não houver regra ordinária
específica tratando da matéria, ou até mesmo versando em descompasso.

À vista disso, para aplicar a teoria da eficácia horizontal direta dos direitos
fundamentais, em especial no que tange ao devido processo legal nas relações tecidas
entre usuário e redes sociais, há que se estampar a tendência de remoção das barreiras
entre o direito público e o direito privado, com a consequente vinculação dos direitos
fundamentais não somente aos poderes públicos, como também à proteção dos
particulares contra os poderes privados, por força da constitucionalização do direito
privado, sem se olvidar que tais direitos, a serem ponderados no caso concreto com a
autonomia da vontade, devem guardar relação com o princípio a dignidade da pessoa
humana, o que se passa a expor abaixo.
A busca por uma precisa diferenciação entre o que se denomina por direito
público e direito privado advém desde o período do Direito Romano, quando se remetia
aos desígnios de jus publicum e jus privatum, para descrever, respectivamente, o direito
derivado do Estado com viés obrigatório, e o direito representativo das relações firmadas
entre particulares ao exercerem sua autonomia. Tentativa de distinção que segundo Hans
Kelsen atraca no seguinte panoramaː
19

Como se sabe, até hoje se não conseguiu alcançar uma determinação


completamente satisfatória desta distinção. Segundo a concepção dominante,
trata-se de uma repartição das relações jurídicas . Assim, o Direito privado
representa uma relação entre sujeitos em posição de igualdade – sujeitos que
têm juridicamente o mesmo valor – e o Direito público uma relação entre um
sujeito supra-ordenado e um sujeito subordinado – entre dois sujeitos, portanto,
dos quais um tem, em face do outro, um valor jurídico superior. (1999, p. 207)

Ocorre que esta dicotomia existente entre o público e o privado vem se tornando
cada vez mais tênue, adentrando no que se intitula por privatização do público e
publicização do privado, diante da passagem do estado autoritário de direito para o
democrático, norteado na constitucionalização dos ordenamentos jurídicos, de modo a
direcionar os direitos fundamentais não só para o interesse público, como também para o
âmbito privado, sob a ótica da unidade do sistema normativo, frise-seː encabeçado pelo
princípio da dignidade da pessoa humana.
Neste vértice, focalizando na revitalização democrática experimentada pelo
Brasil, mediante a promulgação da CF/88, Carta que leva entre suas vigas de sustentação
a dignidade da pessoa humana, vide art. 1⁰, inciso III, se nota a transição de um período
autocrático para um momento de implementação de direitos e garantias fundamentais,
abarcando entre tais o devido processo legal, corolário do Estado Democrático de Direito.
Desta feita, partindo da premissa de que a aplicação dos direitos fundamentais
nas relações particulares forma a espinha dorsal do processo de constitucionalização do
direito privado e, tomando por base o entendimento sedimentado por Ingo Wolfang
Sarlet, precursor da teoria da eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais nas
relações privadas no Brasil, se faz crucial a demonstração da vinculação do princípio do
devido processo legal com a dignidade humana, para que se possa garantir o contraditório
e a ampla defesa no âmbito das plataformas, posto que Sarlet assim aduzː

Fora das relações indivíduo-poder, isto é, quando se trata de particulares em


condições de relativa igualdade, deverá, em regra (segundo os defensores desta
concepção), prevalecer o princípio da liberdade, aceitando-se uma eficácia
direta dos direitos fundamentais na esfera privada apenas nos casos em que a
dignidade da pessoa humana estiver sob ameaça ou diante de uma ingerência
indevida na esfera da intimidade pessoal. (2003, p. 353)

Tomando arrimo no pressuposto da ética kantiana como alicerce da dignidade


humana (2007, p. 68), a qual aduz que ˝(...) todo o ser racional – existe como fim em si
mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário dessa ou daquela vontade˝, se
observa de pronto o distanciamento das plataformas a tal conceito, ao priorizarem ou
20

despriorizarem certos conteúdos com a finalidade de cooptação de atenção, transfigurado


em ativo econômico.
Com esteio na ética de Kant, se averigua a dupla dimensão empregada por
Dworkin (2008, p. 222) na sua concepção da dignidade humana em vias democráticas,
transladada no princípio do autogoverno e da igual consideração, consistentes,
respectivamente, no respeito a responsabilidade pessoal e inalienável dos indivíduos e, na
igual consideração pela vida de todas pessoas que compõe uma comunidade política.
Logo, trazendo estes conceitos para o prisma democrático constitucional, ao
interpretar o CPC com amparo no art. 8⁰, promotor da dignidade humana, interligando o
princípio do autogoverno com a dimensão formal do de devido processo legal,
consubstanciada no contraditório e ampla defesa (art. 9⁰ e 10 do CPC), de modo a
assegurar a participação do interessado nas decisões que o vinculam, ao passo que
correlacionando o princípio da igual consideração com a dimensão material do devido
processo, contemplada na razoabilidade e proporcionalidade (art. 489, §1⁰, IV do CPC),
de forma a salvaguardar a consideração sobre todas peculiaridades e elementos do
processo para fins decisórios, se chega ao elo entre o devido processo legal e a dignidade
da pessoa humana.
Inobstante a demonstração do entrelaçamento existente entre o devido processo
legal e o princípio da dignidade da pessoa humana, impende sublinhar que tal conjunção
está afigurada no campo do processo jurisdicional democrático, isto éː na obsoleta antítese
indivíduo-Estado, caracterizada na eficácia vertical dos direitos fundamentais. Portanto,
com fulcro na unidade do sistema jurídico e na tendência multidirecional dos direitos
fundamentais, se deve, de igual modo, aplicar o devido processo legal nas relações
usuário-plataforma, para retirar a venda que as redes sociais puseram sobre a dimensão
formal do devido processo, consumada na inobservância dos princípios constitucionais
do contraditório e da ampla defesa de seus usuários, quando das decisões unilaterais e
arbitrárias de exclusões de conteúdos e contas.
Com efeito, socorrendo-se da teoria da eficácia horizontal direta dos direitos
fundamentais, se torna impreterível a atuação do magistrado, para que viabilize o
prevalecimento do devido processo legal nestes casos de desigualdade de forças entre
usuário e plataforma, após ponderar o princípio em comento com a autonomia da vontade,
como já concretizado em entendimentos jurisprudenciais exarados pelo STF em casos
similares, conforme se extrai do acórdão proferido no RE 158.215/RS, no qual se decidiu
pela imposição da observância ao devido processo legal, de modo a viabilizar a ampla
21

defesa do cooperativado, diante de processo disciplinar que resultaria em sua exclusão


de uma cooperativa (entidade privada), decorrente de conduta contrária aos seus estatutos.
Outro acórdão bastante elucidativo, diz respeito ao RE 201.819/RJ, no qual o
STF entendeu pela necessidade de uma entidade de direito privado (União Brasileira de
Compositores – UBC), sujeitar-se aos direitos fundamentais do contraditório e da ampla
defesa no trato com seus associados. Dito julgamento adveio da discussão da exclusão
sumária de um membro desta entidade, sem que lhe fosse assegurado as regras do devido
processo, o que culminou na conclusão de que a autonomia da vontade não confere aos
particulares o poder de ignorar ou transgredir as restrições determinadas pela CF/88, cuja
eficácia também se aplica aos particulares em sede de suas relações privadas.
Em linhas finais, se sobressai que, em virtude da omissão legislativa pátria
acerca da garantia ao devido processo legal no âmbito das plataformas, cai por terra o uso
da teoria da eficácia horizontal mediata dos direitos fundamentais, cenário ensejador a
recorribilidade à teoria da eficácia horizontal direta, reconhecida pela jurisprudência do
STF, justamente com o caso paradigma supramencionado, sendo preciso transplantar a
técnica de ponderação de princípios às relações usuário-plataforma, para que se
imponham limites a autonomia privada, com o fito de evitar o desrespeito pelas redes
sociais a direitos fundamentais de calibre constitucional, tais como o contraditório e a
ampla defesa.
Pois perante a mantença deste contumaz desprezo principiológico esboçado
acima, inevitavelmente acaba por se ricochetear ofensas à liberdade de expressão dos
indivíduos, o que explicitaria um retrocesso histórico em termos evolutivos dos direitos
fundamentais, regressando para o que Paulo Freire descreve como cultura do silêncio
(1981, p. 40) ˝em que as classes dominadas se acham semimudas ou mudas, proibidas de
expressar-se autenticamente, proibidas de ser˝.

6 CONCLUSÃO

Ante todo o exposto, se torna possível concluir queː (I) houveram notórias
alterações sociais, econômicas e culturais com o avanço das tecnologias comunicacionais,
permeadas pelo processo de globalização, advento da internet e privatização dos
backbones, transfigurada no rompimento da direção informacional de um emissor a
diversos receptores, para um intercâmbio comunicativo e democratizado entre todos
usuários componentes da rede mundial de computadores.
22

(II) Ocorre que, este território virtual de viés comunicacional público, possui
quase que a integralidade de seu funcionamento sobre as rédeas de pessoas jurídicas de
direito privado, amplamente conhecidas como redes sociais, as quais vêm, vorazmente,
removendo contas e publicações de seus usuários, sem os cientificar, nem possibilitar
abertura de defesa frente as decisões sumarizadas impostas, culminando no desprezo aos
princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5⁰, LV da CF/88),
intrínsecos ao devido processo legal (art. 5⁰, LIV da CF/88).
(III) Entretanto, posto que os princípios supracitados têm caráter processual, isto
significa, objetivam a proteção dos indivíduos contra agressões provenientes da atuação
estatal, se formula uma eficácia vertical dos direitos fundamentais, a qual não abrange a
salvaguarda destas garantias em face de entes privados, situação que exige a aplicação da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, visto que há
nítida desigualdade de poderes entre usuário e plataforma.
(IV) Dentre as teorias da eficácia horizontal, se deslinda que a indireta, a qual
imprescinde de lei infraconstitucional para que os direitos fundamentais sejam aplicados
às relações privadas, resta prejudicada, frente a lacuna legislativa pátria concernente ao
devido processo no âmbito das plataformas, clareando espaço para teoria da eficácia
horizontal direta.
(V) Portanto, com o escopo de garantir o contraditório e a ampla defesa no plano
das redes sociais, há que se recorrer ao exercício de ponderação entre princípios, para que
o magistrado pontue pela prevalência do devido processo sobre a autonomia da vontade,
na medida em que aquele possui intima relação com a dignidade humana, ponto
nevrálgico da teoria da eficácia horizontal direta, a qual se apoiou o STF para assegurar
a dimensão formal do devido processo legal defronte ameaças semelhantes oriundas do
âmbito privado, conforme se abstrai do RE 158.215/RS e RE 201.819/RJ.

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