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Opinião

TERRÆ DIDATICA 7(2): 75-85, 2011 Aziz Nacib Ab’Sáber

Do Código Florestal para o Código da Biodiversidade1


1 Artigo revisado publicado a pedido do prof. Aziz Nacib Ab’Sáber
Aziz Nacib Ab’Sáber

Em face do gigantismo do território e da situa- resposta que essa era uma ideia boa mas complexa
ção real em que se encontram os seus macrobiomas e inoportuna (...). Entrementes, agora outras per-
— Amazônia Brasileira, Brasil Tropical Atlântico, sonalidades trabalham por mudanças estapafúrdias
Cerrados do Brasil Central, Planalto das Araucá- e arrasadoras no chamado Código Florestal. Razão
rias, e Pradarias Mistas do Brasil Subtropical e, de pela qual ousamos criticar aqueles que insistem em
seus numerosos mini-biomas, faixas de transição argumentos genéricos e perigosos para o futuro do
e relictos de ecossistemas, qualquer tentativa de país. Sendo necessário, mais do que nunca, evitar
mudança no “Código Florestal” tem que ser con- que gente de outras terras sobretudo de países
duzida por pessoas competentes e bioeticamente hegemônicos venha a dizer que fica comprovado
sensíveis. Pressionar por uma liberação ampla dos que o Brasil não tem competência para dirigir a
processos de desmatamento significa desconhecer Amazônia... Ou seja, os revisores do atual Código
a progressividade de cenários bióticos, a diferentes Florestal não teriam competência para dirigir o seu
espaços de tempo futuro, favorecendo de modo todo territorial do Brasil. Que tristeza, gente minha.
simplório e ignorante os desejos patrimoniais de O primeiro grande erro dos que no momento
classes sociais que só pensam em seus interesses lideram a revisão do Código Florestal brasileiro — a
pessoais, no contexto de um país dotado de gran- favor de classes sociais privilegiadas — diz respei-
des desigualdades sociais. Cidadãos de classe social to à chamada estadualização dos fatos ecológicos
privilegiada que nada entendem de previsão de de seu território especifico. Sem lembrar que as
impactos, nem tem qualquer ética com a natureza. delicadíssimas questões referentes à progressivi-
Não buscam encontrar modelos técnico-científicos dade do desmatamento exigem ações conjuntas
adequados para a recuperacão de áreas degradadas, dos órgãos federais específicos, em conjunto com
seja na Amazônia, seja no Brasil Tropical Atlântico, órgaos estaduais similares, uma Polícia Federal
ou alhures. Pessoas para as quais exigir a adoção de rural, e o Exército Brasileiro. Tudo conectado ain-
atividades agrárias “ecologicamente auto-sustenta- da com autoridades municipais, que tem muito a
das” é uma mania de cientistas irrealistas. aprender com um Código novo que envolve todos
Por muitas razões, se houvesse um movimento os macro-biomas do país, e os mini-biomas que
para aprimorar o atual Código Florestal, teria que os pontilham, com especial atenção para as faixas
envolver o sentido mais amplo de um Código de litorâneas, faixas de contato entre as áreas nucleares
Biodiversidades, levando em conta o complexo de cada domínio morfoclimático e fitogeográfico
mosaico vegetacional de nosso território. Reme- do território. Para pessoas inteligentes, capazes de
temos essa ideia para Brasilia, e recebemos em prever impactos, a diferentes tempos do futuro, fica

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claro que, ao invés da “estadualização ”, é absolu- fato mais infeliz é que ninguém procura novos
tamente necessário focar para o zoneamento físico conhecimentos para re-utilizar terras degradadas;
e ecológico de todos os domínios de natureza do ou exigir dos governantes tecnologias adequadas
país. A saber, as duas principais faixas de Florestas para revitalizar os solos que perderam nutrientes
Tropicais Brasileiras: a zonal amazônica e a azo- e argilas, tornando-se dominados por areias finas
nal das matas atlânticas, acrescentando estudos (siltização).
indispensáveis sobre o domínio dos cerrados, cer- Entre os muitos aspectos caóticos, derivados
radões e campestres: a complexa região semi-árida de alguns argumentos dos revisores do Código,
dos sertões nordestinos; os planaltos de araucárias destaca-se a frase que diz que se deve proteger a
e as pradarias mistas do Rio Grande do Sul, além vegetação até sete metros e meio do rio. Uma redu-
de nosso litoral e do Pantanal Mato-Grossense. ção de um fato que por si já estava muito errado,
Seria preciso lembrar ao honrado relator Aldo porém agora está reduzido genericamente a quase
Rabelo, que a meu ver é bastante neófito em maté- nada em relação aos grandes rios do país. Imagine-
ria de questões ecológicas, espaciais e em futuro- -se que para o Rio Amazonas a exigência protetora
logia – que atualmente na Amazônia Brasileira fosse apenas sete metros, enquanto para a grande
predomina um verdadeiro exército paralelo de maioria dos ribeirões e corrégos também fosse
fazendeiros que em sua área de atuação tem mais aplicada a mesma exigência. Trata-se de desconhe-
força do que governadores e prefeitos. O que se viu cimento entristecedor sobre a ordem de grandeza
em Marabá, com a passagem das tropas de fazen- das redes hidrográficas do território intertropical
deiros, passando pela Avenida da Transamazônica, brasileiro. Na linguagem amazônica tradicional,
deveria ser conhecido pelos congressistas de Bra- o próprio povo já reconheceu fatos referentes à
sília, e diferentes membros do Executivo. De cada tipologia dos rios regionais. Para eles, ali existem,
uma das fazendas regionais passava um grupo de em ordem crescente: igarapés, riozinhos, rios e
cinquenta a sessenta camaradas, tendo a frente, em parás. Uma última divisão lógica e pragmática, que
cavalos nobres, o dono da fazenda e sua esposa, e os é aceita por todos os que conhecem a realidade da
filhos em cavalos lindos. E os grupos iam passando rede fluvial amazônica.
separados entre si, por alguns minutos. E alguém Por desconhecer tais fatos, os relatores da
a pé, como se fosse um comandante, controlava a revisão aplicam o espaço de sete metros da beira
passagem da cavalgada dos fazendeiros. Ninguém de todos os cursos d’agua fluviais sem mesmo ter
da boa e importante cidade de Marabá saiu para ido lá para conhecer o fantástico mosaico de rios
observar a coluna amedrontadora dos fazendei- do território regional.
ros. Somente dois bicicletistas meninos deixaram Mas o pior é que as novas exigências do Códi-
as bicicletas na beira da calçada olhando silentes go Florestal proposto têm um caráter de libera-
a passagem das tropas. Nenhum jornal do Pará, ção excessiva e abusiva. Fala-se em sete metros e
ou alhures, noticiou a ocorrência amedrontadora. meio das florestas beiradeiras (ripário-biomas), e
Alguns de nós não pudemos atravessar a ponte para depois em preservação da vegetação de eventuais
participar de um evento cultural. e distantes cimeiras, não se podendo imaginar
Será certamente, apoiados por fatos como esse quanto espaço fica liberado para qualquer tipo de
que alguns proprietários de terras amazônicas ocupação. Lamentável em termos de planejamento
deram sua mensagem, nos termos de que “a pro- regional, de espaços rurais e silvestres. Lamentável
priedade é minha e eu faço com ela o que eu qui- em termos de generalizações forçadas por grupos
ser, como quiser e quando quiser”. Mas ninguém de interesse (alguns ruralistas).
esclarece como conquistaram seus imensos espaços Já se poderia prever que um dia os interessados
inicialmente florestados. Sendo que, alguns outros, em terras amazônicas iriam pressionar de novo pela
vivendo em diferentes áreas do centro-sul brasilei- modificação do percentual a ser preservado em cada
ro, quando perguntados sobre como enriqueceram uma das propriedades de terras na Amazônia. O
tanto, esclarecem que foi com os “seus negócios argumento simplista merece uma crítica decisiva
na Amazônia”... Ou seja, através de loteamentos e radical. Para eles, se em regiões do centro-sul
ilegais, venda de glebas para incautos em locais de brasileiro a taxa de proteção interna da vegetação
difícil acesso, os quais, ao fim de um certo tempo, florestal é de 20%, por que na Amazônia a lei exi-
são libertados para madeireiros contumazes. E, o ge 80%? Mas ninguém tem a coragem de analisar

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o que aconteceu nos espaços ecológicos de São Por todas as razões somos obrigados a criticar a
Paulo, Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais com persistente e repetitiva argumentação do deputado
o percentual de 20%. Nos planaltos interiores de Aldo Rebelo, que conhecemos há muito tempo,
São Paulo, a somatória dos desmatamentos atingiu e de quem sempre esperávamos o melhor; no
cenários de generalizada derruição. momento somos obrigados a lembrar a ele que
Nessas importantes áreas, dominadas por flo- cada um de nós tem que pensar na sua biografia, e
restas e redutos de cerrados e campestres, somente sendo político, tem que honrar a história de seus
o tombamento integrado da Serra do Mar, envol- partidos. Mormente em relação aos partidos que se
vendo as matas atlânticas, os solos e as aguadas da dizem de esquerda e jamais poderiam fazer projetos
notável escarpa, foi capaz de resguardar os ecossis- totalmente dirigidos para os interesses pessoais de
temas orográficos da acidentada região. O restante, latifundiários. Insistimos que em qualquer revi-
nos “mares de morros”, colinas e várzeas do Médio são do Código Florestal vigente deve-se enfocar
Paraíba e do Planalto Paulistano, e pró-parte da as diretrizes através das grandes regiões naturais
Serra da Mantiqueira, sofreram uma derruição do Brasil, sobretudo domínios de natureza muito
deplorável. É o que alguém no Brasil — falando diferentes entre si, tais como a Amazônia, e suas
de gente inteligente e bioética — não quer que se extensíssimas florestas tropicais, e o Nordeste Seco,
repita na Amazônia Brasileira, em um espaço de com seus diferentes tipos de caatingas. Trata-se de
4.200.000 km2. duas regiões opósitas em relação à fisionomia e à
Os relatores do Código Florestal falam que as ecologia, assim como em face das suas condições
áreas muito desmatadas e degradadas poderiam socioambientais. Ao tomar partido pelos grandes
ficar sujeitas a “(re)florestamento” por espécies dominios administrados técnica e cientificamen-
homogêneas pensando em eucalipto e pinus. Uma te por órgãos do executivo federal, teríamos que
prova de sua grande ignorância, pois não sabem a conectar instituições especificas do governo brasi-
menor diferenca entre reflorestamento e floresta- leiro com instituições estaduais similares. Existem
mento. Este último, pretendido por eles, é um fato regiões como a Amazônia, que envolve conexões
exclusivamente de interesse econômico empresa- com nove estados do Norte Brasileiro. Em relação
rial, que infelizmente nao pretende preservar biodi- ao Brasil Tropical Atlântico, os órgãos do Governo
versidades. Sendo que eles procuram desconhecer Federal — IBAMA, IPHAN, FUNAI e INCRA
que para áreas muito degradadas foi feito um plano — teriam que manter conexões com os diversos
de (re)organização dos espaços remanescentes, sob setores similares dos governos estaduais de norte
o enfoque de revigorar a economia de pequenos a sul do Brasil. E assim por diante. Enquanto o
e médios proprietários: o Projeto FLORAM. Os mundo inteiro propugna pela diminuição radical
eucaliptólogos perdem ética e falta de previsão de de emissão de CO2, o projeto de reforma proposto
impactos éticos quando alugam espaços por trinta na Câmara Federal de revisão do Código Florestal
anos, de incautos proprietários, preferindo áreas defende um processo que significará uma onda de
dotadas ainda de solos tropicais férteis, do tipo dos desmatamento e emissões incontroláveis de gás
oxissolos, e evitando as áreas degradadas de morros carbônico, fato observado por muitos críticos em
pelados reduzidas a trilhas de pisoteio, hipsométri- diversos trabalhos e entrevistas.
cas, semelhantes ao protótipo existente no Planalto Parece ser muito difícil para pessoas não-ini-
do Alto Paraíba, em São Paulo. Ao arrendar terras ciadas em cenários cartográficos perceber os efeitos
de bisonhos proprietários, para uso em 30 anos, de um desmatamento na Amazônia de ate 80%
sabem que os donos da terra podem morrer quan- das propriedades rurais silvestres. Em qualquer
do se completar o prazo. Fato que cria um grande espaço do território amazônico, onde poderão ser
problema judicial para os herdeiros, sendo que ao estabelecidas glebas nas quais se poderia realizar
fim de uma negociação as empresas cortam todas as um desmate de até 80%, haverá um mosaico caó-
árvores de eucaliptos ou pinos, deixando miríades tico de áreas desmatadas e faixas interpropriedades
de troncos no chão do espaço terrestre. Um cenário estreitas e mal-preservadas. Lembrando ainda que,
que impede a posterior reutilização das terras para nas propostas de revisão, propriedades de até 400
atividades agrárias. Tudo isso deveria ser conhecido hectares teriam o direito de um desmate total em
por aqueles que defendem ferozmente um Código suas terras, vejo-me na obrigação de alertar que a
Florestal liberalizante. médio e longo prazo existiria um infernal caleidos-

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cópio no espaço total de qualquer área da Amazônia. saibam a importância de se aproveitar a umidade e
Nesse caso, as bordas dos restos de florestas, inter- a luminosidade das bordas das florestas para plantar
glebas, ficarão à mercê de corte de árvores dotadas açaí, pupunha, capuaçú, bananeira e mamões em
de madeiras nobres. E, além disso, a biodiversidade aproveitamento o efeito de borda. Considerar que as
animal certamente será a primeira a ser afetada de propriedades familiares de até 400 hectares podem
modo radical. derruir toda a vegetação florestal de suas terras é um
Uma cartografia simbólica dos desmates em dos maiores erros, mais perigosos, da proposta feita
propriedades de diferentes tamanhos permite uma na Revisão do Código. Mesmo porque um pedaço
previsão visual do que seria a dinâmica do cenário de 400 hectares, em qualquer parte do brasil, pode
do desmatamento regional, antevisto a médio prazo, ser considerado uma fazenda.
baseando-nos em fatos reais já acontecidos no Vale Perder terra sem qualquer visão de planejamen-
do Tocantins (Pará) e nos planaltos interiores de São to regional, 400 vezes 10.000 metros quadrados qui,
Paulo e Minas Gerais. e, ao lado e além 80% em espaços proprietários,
Tem sido impossível, lamentavelmente, enten- envolvendo 500, 1.000 ou 10.000 vezes de 10.000
der o quadro em processo, que acontecerá na Ama- metros quadrados (ou 100 vezes 10.000 metros
zônia, devido às modificações básicas que foram quadrados ou 10.000 ou mais hectares), é o grande
dirigidas para o Código Florestal. crime da qual se propuseram os que apoiam e pres-
O painel de derruição propiciado pelos revisores sionam por um Código, feito na base de ignorân-
chega a ser assustador. Somente pessoas que enten- cias. Presumindo por princípio que de longe fazem
dem de espaço podem avaliar o teor da progressi- “negócios na Amazônia Brasileira”, com venda ou
vidades dos desmates que se fará realizar ao longo revenda de espaços loteados e vendas de toras de
de muitos tempos. Em um artigo meritório, Marta árvores regionais transportados através de rios ou
Solomon, de Brasília, conseguiu que se publicasse de caminhões para diferentes áreas da Amazônia
no jornal O Estado de São Paulo (22 de abril de 2011), (Breves, Santarém), ou com algum valor agregado
sob título de Código Florestal, a avaliação de que para o Sudeste do Brasil ou distantes áreas do mun-
seriam devastados até 200 mil km2 de mata. Levando do (China, EUA).
em conta, sobretudo, as liberações excessivas das No caso da Amazônia, que mais nos preocupa,
chamadas “reservas legais”, em áreas de grandes machadeiros e motoserristas – acompanhados de
propriedades da Amazônia. O pior, ainda mais, é queimadas sincopadas – o roteiro dos desmata-
que o painel do futuro, a diversas profundidades de mentos seguiu por rodovias, ramais e sub-ramais,
tempo, é progressivo e incontrolável, sobretudo pela atingindo radicalmente as “espinhelas de peixe” dos
desfaçatez de pessoas que se dedicam a “negócios loteamentos feitos em quarteirões especulativos no
na Amazônia”. Há algum tempo, um alto membro interior das matas biodiversas. Lotes de cinquenta a
do governo falou que a “Amazônia não poderia cem hectares, considerados pequenos na Amazônia,
permanecer intacta, porque lá vivem 20 milhões foram vendidos a incautos moradores de regiões
de pessoas”. Como se a sua argumentação de sorte distantes. Nesse último caso, os numerosos aqui-
favorecesse os pobres e desmerecidos. sidores, que nem mesmo puderam chegar ao sítio
No painel crítico e progressivo do futuro, pode- das terras compradas à distância, cederam o espaço
riam ser visualizadas as consequências do desmate para madeireiras espertas e persistentes, fato que
em propriedades de diferentes tamanhos. Grandes pode ser visto e analisado em imagens de satélite na
propriedades passíveis de desmate sem controle ou região norte do Mato Grosso, no médio Tocantins,
fiscalização, 80% de um terreno, em qualquer pro- na Bragantina, Acre sul-oriental, Rondônia, Oeste-
priedade do imenso território amazônico. Próximo -noroeste do Maranhão, e diversos outros setores
às grandes propriedades, as chamadas propriedades da Amazônia.
familiares, (...) ficariam libertas para devastação total Insistimos em prever que se houver um Código
de até 400 hectares. O maior absurdo do fato, pois que limite a reserva legal de proteção das florestas
o desmate global em uma propriedade de 400 vezes a apenas 20% do espaço total de cada propriedade,
10.000 metros quadrados, eliminaria até mesmo a seja qual for o seu tamanho, de 400 a um milhão
impossibilidade de olantar espécies amazônicas nas de hectares, o arrasamento a médio prazo será ini-
bordas da mata, para alimentação ou venda. É incrí- maginavelmente grande e progressivo.
vel que os que pretendem revisionar um Código não Uma das justificativas mais frequentes para os

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que são favoráveis para a ampliação de áreas des- suas terras. Perguntei-lhe qual era a relação entre
matáveis, em cada propriedade de terra firme na seus camaradas e os índios yanomamis da região,
Amazônia, é de que, assim, haverá mais empre- e a resposta infeliz veio rápida e anti-ética: “Para
go para trabalhadores amazônidas. Pouca gente eles, é o meu capataz que responde, erguendo seu
lembra, entretanto, que em numerosas fazendas e perigoso facão”.
fazendinhas da Amazônia Brasileira predomina o Numa ocasião, ao término de uma visita a
trabalho semi-escravo. Desde o início da ampliação uma fazenda dedicada à pecuária, nos pediram que
das chamadas fronteiras ditas agrícolas, predomi- em nossa volta levássemos para uma farmácia um
naram o trabalho braçal periódico ou temporário, camarada doente, que estava passando muito mal.
para machadeiros, criadores de gado, madeireiros Na realidade, era alguém que contraiu uma malária
e plantadores de eucaliptos. Sendo que, nas raras radical, designada por “tersã maligna”. Não dá para
áreas de solos melhores, estabeleceu-se o vai-e-vem falar sobre o triste estado do pobre trabalhador.
tradicional de trabalho no preparo da terra e plan- Na distante farmácia, tomamos conhecimento de
tio, em períodos limitados, e, mais tarde diversas que em casos similares a única providência era um
atividades na época da colheita. Caminhoneiros coquetel de remédios agressivos, através dos quais
fizeram penetrações exdrúxulas para atingir locais o pobre doente “melhorava ou morria”.
de madeiras nobres ou transportar troncos de árvo- Na Rodovia entre Rio Branco e Brasiléia
res para serrarias ou para a retirada de produtos (Acre), pudemos sentir o ódio que alguns jovens
das raras comodites. Agora, em espaços da soja, da tinham para o que chamavam de “paulistas”, os
cana, e muito eventualmente do arroz, somente quais teriam comprado terras durante os trabalhos
os cartazaes mandonistas ganham razoavelmente. de construção da estrada. O desmate interfluvial
Quem procura um emprego qualquer, em uma fez com que as cabeceiras de igarapés secassem; e
fazenda, ainda que temporário, sofre um drama que muitas propriedades da terra firme desmatada
trágico e muito cansativo. Para chegar à fazenda ficassem sem qualquer atividade produtiva. Expli-
escolhida, com sua matulinha mirrada de roupas cação dos acreanos: inadimplência dos proprietátios
singelas, alguns caminham por quilômetros, nas alienígenas porque nunca eles quiseram fazer uma
estreitas trilhas das florestas, até atingir as proprie- parceria conosco, que temos muito mais experi-
dades onde conseguirão um emprego braçal. Seja ência sobre atividades agrárias em nossa região.
o preparo do solo para plantações; seja ampliação Note-se que o termo “paulista” dizia respeito a
dos capinzais para o gado; seja no corte de árvores qualquer pessoa procedente do centro-sul do Bra-
para detenção de espaços ditos produtivos, seja no sil. Tal como imensa área, todos os migrantes são
trabalho rápido e esgotante nas épocas de colheitas. designados por “baianos”, independentemente de
Quando despedidos são obrigados a voltar para áre- onde tenham vindo.
as de beira de estradas onde existem rústicas aldeias Aqui chegados em nossas considerações, torna-
ou “ruas” pseudo-comerciais. -se indispensável referir-se a atividades de peque-
Temos acompanhado, desde 1972, os pro- nos produtores familiares, dotados de terras mais
blemas criados por cartazes autoritários em pro- férteis, de dimensões limitadas, tais como várzeas
priedades amazônicas, pertencentes a pessoas ou de ricos solos flúvio-aluviais ao longo do rio Ama-
grupos de pessoas alienígenas. Conflitos dos mais zonas, ou de pequenas áreas da terra firme dotadas
diferentes tipos acontecem entre pobres traba- de oxisolos oriundos da decomposição de basaltos
lhadores silvo-rurais e os donos de propriedades ou diabásios [infelizmente, porém, essas últimas
dos mais diferentes tipos. Há uma resistência per- áreas são bastante raras, envolvendo em seu espaço
manente em face à remuneração dos que vêm de total menos de oito mil quilômetros quadrados] do
fora em face dos minguados preços pagos aos que território amazônico. Ou em um modelo localizado
nasceram na própria Amazônia. Reciprocamente, de plantações em praias de estiagem do rio Acre;
o comportamento dos proprietários em relação ou, onde vicejam linearmente melancias, melões
aos poucos tratos de terras férteis pertencentes e algumas plantas alimentares, ou em bordas de
a reservas indígenas é catastrófico e quase inso- florestas restantes em terrenos de projetos falidos,
lúvel. Um dia encontrei em um aeroporto, um onde estabeleceu-se o importante e famoso pro-
proprietário de uma fazenda, que ia viajar para a jeto RECA. Houve um tempo em que muito se
Amazônia no noroeste da Roraima, onde possuía falou em reservas extrativistas, a partir do Acre de

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Chico Mendes, para todo o território Amazônico. ser totalmente desmatadas. O fato de se conside-
Evidentemente, houve muito exagero nessa cam- rar desmatável propriedades ditas familiares até o
panha, tão simpática quanto inviável. Mas aconte- nível de 400 hectares é um absurdo total. Trata-se
ceu, felizmente, uma proposta bem mais complexa de uma excessiva flexibilização que poderá produ-
e diversificada a qual pode ter grande aplicação a zir um mosaico derruidor de florestas ao longo de
curto e médio prazo em muitas outras regiões da rodovias, estradas, riozinhos e igarapés. Um cenário
Amazônia; a proposta introduzia atividades mais trágico para o futuro, em processo no interior da
lógicas e produtivas, sem de tudo eliminar o sen- Amazônia Brasileira. No entanto, propriedades de
tido complementar do extrativismo. Trata-se de 100 a 400 hectares, que conservassem um razoá-
um modelo pioneiro, inventado por um ex-padre vel percentual de matas no seu entorno, poderiam
francês, de origem rural que, após trabalhar no receber esquemas parecidos com o projeto RECA,
Paraná, foi para o Acre com a ideia de revigorar e na borda dos remanescentes florestais, fato que não
reutilizar áreas degradadas. Após conversar com foi considerado nem de passagem pelos idealizado-
o inteligente Bispo Don Grec, em Rio Branco, o res e relatores de um novo Código Florestal. Razão
idealista ex-padre resolveu fazer uma experiência pela qual deixamos aqui além de uma crítica que
extremamente válida e quase-científica porque julgamos absolutamente necessária, uma propo-
utilizou-se do chamado efeito de borda para iniciar sição de acréscimos de atividades para pequenas e
plantações com espécies amazônicas, tais como açaí médias propriedades familiares. Lembrando que
e pupunha e cupuaçu. quem faz críticas tem que elaborar propostas bem
Seu projeto foi feito em cooperação com ama- planejadas para resolver as situações consideradas
zonidas residentes na fronteira de Rondônia com negativas.
o Acre, tendo seu foco inicial na pequena cidade Anotamos ainda que a ideia de reduzir para 15
de Nova Califórnia. metros faixas de proteção de florestas beiradeiras
Nenhum governo soube perceber o quanto (mini-biomas ripários) tem um caráter extrema-
o projeto ali instalado e desenvolvido poderia ser mente genérico e de duvidosa aplicabilidade. A
útil para numerosas outras áreas de borda de matas nosso ver não é possível limitar para a Amazônia
remanescentes. Sem falar que no seio da floresta generalizadamente as áreas beiradeiras em termos
continuava o projeto extrativista tão caro aos com- de para alguns metros de largura. Pelo contrário,
panheiros do extraordinário acreano Chico Men- é necessários considerar os fatos relacionados a
des. Além do que, o clamado “reflorestamento” igarapés, riozinhos, tios e “parás” (grandes rios).
econômico concentrado e adensado (RECA) teve A impressão que se tem é de que, determinando
um caráter didático para os cooperados que se inte- uma largura geral para proteção, estaríamos pos-
graram no trabalho, produzindo espécies amazô- sibilitando desmates no nível de todos os espaços
nicas e produtos comestíveis importantes para sua situados entre a beira de cursos s’água até muito
alimentação (como açaí, abacaxis, castanhas e sobre- além de onde se situam os interflúvios de colinas
tudo mandioca). Na borda das florestas, devido à ou encostas de pequenas serranias amazônicas.
forte luminosidade e hidratação caída das folhas e Existe toda uma aula a ser dada sobre essa pro-
galhos poderão ser produzidas muito mais coisas blemática que tende a criar cenários extremamente
ainda, a favor dos amazonidas, tais como bananeiras caóticos em relação ao futuro a diferentes profun-
e mamoeiros, e diversas outras frutíferas; Muita didades de tempo.
coisa ainda resta ser analisada, no famoso projeto, Um comentário quase final: não se faz qualquer
que infelizmente foi muito pouco compreendido projeto de interesse nacional pensando apenas em
por técnicos e governantes. favorecer de imediato só uma geração do presente,
Nas mudanças que se pretendem fazer para em termos de especulação com espaços ecológicos,
o atual Código Florestal existem alguns tópicos mesmo porque somos de opinião que devemos
extremamente criticáveis. Ao se discutir o tamanho pensar no sucesso de todos os grupos humanos
de propriedades familiares definiu-se as mesmas ao longo de muitos tempos: no caso uma questão
como tendo de dezenas de hectares até quatro- de bioética com o futuro. Sem pensar na grande
centos hectares. Fato que significa que todas as capacidade que o conjunto das imensas florestas
pequenas e médias propriedades produtoras, ou zonais preservadas da Amazônia tem em relação
parcialmente aproveitadas, até 400 hectares poderão ao clima do planeta Terra; assunto que preocupa

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todos os pesquisadores sensíveis do mundo. Gente o futuro da natureza brasileira dependem da pres-
que espera que o Brasil faça uma proteção integra- são de alguns ruralistas (nem todos) fanáticos por
da da maior área de vegetação florestal que ainda seus interesses, e pelos imobiliaristas que escolhem
resta em regiões equatoriais e sub-equatoriais do os pontos nodais mais caóticos para construir pré-
mundo. Será muito triste, cultural e politicamente dios de todos os tipos, sem pensar na mobilidade
falando, que pessoas de diversas partes do mundo, da população local e sub-regional. E por último, o
ao lerem as mudanças absurdas pretendidas para caso especial de derruição de matas entre radiais,
o Código Florestal brasileiro, venham a dizer que avenidas e rodovias, aumentando a pressão por um
fica comprovado que “o Brasil não tem capacidade tipo inusitado de “aldeia global”, como é o exemplo
para administrar e gerenciar a Amazônia”, ainda fatídico que vem se esboçando entre a Granja Viana
que em outros países haja um interesse perma- e Alphaville. Tudo sobre o incentivo de prefeitos
nente em adquirir por preços irrisórios as madei- ávidos por aumentar impostos, sem pensar nas
ras do território regional amazônico. Tristes frases consequências de uma falta total de planejamento
que sempre vêm sendo ditas ao sabor de trágicos equilibrado.
acontecimentos ocorridos em nossa principal área
de vegetação florestal que se estende por alguns
milhões de quilômetros quadrados. Referência para consulta
A utopia de um desenvolvimento com o máxi-
Ab’Sáber Aziz Nacib. 201o. Do Código Florestal
mo possível de florestas em pé não pode ser elimi-
para o Código da Biodiversidade. Reunião Anual
nada por princípio em função de mudanças radicais da SBPC, São Paulo, 21 jul. 2010. Disponível
do Código Florestal, sendo necessário pensar no em:<http://sbpcnet.org.br/site/arquivos/
território total de nosso país, sob um ampliado e arquivo_273.doc.>. Acesso em: 13 ago. 2010.
correto Código de Biodiversidade. Ou seja, um In: Modenesi-Gauttieri M.C., Bartorelli A.,
pensamento que envolva: as nossas grandes flo- Mantesso Neto V., Carneiro C.D.R., Lisboa
restas (Amazônia e Matas Tropicais Atlânticas); o M.B.A.L. orgs. 2010. A obra de Aziz Nacib
domínio das caatingas e agrestes sertanejos; planal- Ab’Sáber. São Paulo: Ed. Beca. 588p. (DVD, p.
tos centrais com cerrados, cerradões e campestres; 3323-3328).
os planaltos de araucárias sul-brasileiros, as pra-
darias mistas do Rio Grande do Sul, e os redutos
e mini-biomas da costa brasileira, do Pantanal
Mato-grossense e das faixas de transição e contato
(core-areas) de todos os domínios morfoclimáticos
e fitogeográficos brasileiros.
Seria necessário que os pretensos reformula-
dores do Código Florestal lançassem sobre o papel
os limites de glebas de 500 a milhares de hecta-
res, e dentro de cada parcela das glebas colocasse
indicações de 20% correspondentes às florestas
ditas preservadas. E, observando o resultado desse
mapeamento simulado, poderiam perceber que o
caminho da devastação lenta e progressiva iria criar
alguns quadros de devastação similares ao que já
aconteceu nos confins das longas estradas e seus
ramais, em espaços de quarteirões implantados para
venda de lotes de 25 a 100 hectares, onde o arrasa-
mento de matas no interior de cada quarteirão foi
total e inconsequente.
Já logo oportuno, em acréscimo ao presente
trabalho, faremos importantes advertências a gover-
nantes e políticos. Não temos dúvida nenhuma de
que os três grupos de problemas que mais afetaram

123
Do Código Florestal para o Código da Biodiversidade TERRÆ DIDATICA 7(2): 75-85, 2011
2011 - Terrae Didatica - V 7 - nº 1-2
v. 7 - nº.1

Editorial
Pré-sal: sua importância e os desafios que se apresentam às Geociências-----------------2
Guilherme de Oliveira Estrella

Artigos
Aplicação de métodos isotópicos e numéricos em paleoceanografia com base em
foraminíferos planctônicos----------------------------------------------------------------4
Geise de Santana dos Anjos Zerfass, Francisco Javier Sierro Sánchez, Farid Chemale Jr.

Radiolários: estado do conhecimento e aplicações às Geociências-----------------------18


Karlos Guilherme Diemer Kochhann

Roteiro geoturístico no centro da cidade de São Paulo----------------------------------29


Wilian Carlos Batista Augusto, Eliane Aparecida Del Lama

Evolução do conhecimento biocronoestratigráfico do Cretáceo nas bacias marginais


brasileiras baseado em nanofósseis calcários---------------------------------------------41
Rodrigo do Monte Guerra, Lucio Riogi Tokutake

Uma proposta prática de aprendizado para a disciplina de Geologia Urbana------------49


Sueli Yoshinaga Pereira, Pedro Wagner Gonçalves, Heraldo Cavalheiro Navajas Sampaio Campos

v. 7 - nº.2

A Complexidade do Tempo Geológico e a sua aprendizagem com alunos portugueses


(12-13 anos)-----------------------------------------------------------------------------61
Jorge Bonito, Dorinda Rebelo, Margarida Morgado, Graça Monteiro, Jorge Medina, Luís Marques, Luísa
Martins, Mário Louro

Geologia Estrutural em ambiente rúptil: fundamentos físicos, mecânica de fraturas e


sistemas de falhas naturais---------------------------------------------------------------81
Henrique Zerfass, Farid Chemale Jr.

Georientação: uma proposta de disciplina esportiva e de introdução ao mapeamento


geológico--------------------------------------------------------------------------------93
Alexis Rosa Nummer, Luziane Barbosa de Souza, Marcelo Pereira Marujo, Soraya Almeida, Francisco José
da Silva, Rafael Sá dos Reis

A experiência da oficina “Do mito à natureza: educar o olhar para as Ciências da


Terra” no Festival de Inverno de Antonina (PR) --------------------------------------104
Maria José Maluf de Mesquita, Jefferson de Lima Picanço, Marcell Leonard Besser, José Carlos Ribeiro,
Heloisa Dmeterko, Angela Lucia da Silva, Giovana Marques da Cruz, Fabiane Aline Acordes, Patrícia
Ruth Ribeiro, Tatiane Hamerscmidt, José Eduardo Francisco Morais, Fábio Berton, Rafael França de Mattos,
Danielle Cristina Buzatto Schemiko.

Do Código Florestal para o Código da Biodiversidade---------------------------------117


Aziz Nacib Ab’Sáber

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