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Simondon e a

construção do empirismo

transcendental

Anne Sauvagnargues 1

A filosofia da individuação de Gilbert Simondon desempenha um papel


central na construção d o signo
� que D_eleuze inicia . e m Diferença
.

e Repétição e persegue ao longo de sua obra. A contribuição de Simondón, .


que permite a Dele_uze construir seu empirismo transcendental,� pode
ser sistematizada em termos de. seis aspectos
-
\
lógicos- e_ físicos As três . .
primeiras proposições dizem respeito aos conceitos de modulação,
disl?aridaâe transdutiva e problemática, todos os três dos quais descrever:n
operações reais, mas são sistematizados.por Simondon como operadores
conceituais em sua metafísica da individuação. Deleuze o.s integra
como tais em sua própria_ �nálise e apropria-se .delas plenamente,_mas
não sem modificá-las .um pouco, às vezes sem seqúer mencionar Siír!ondon,
cuja presença em Diferença e_Repetição é . mais.forte.do _que_as poucas
referências que Deleuze faz a ele nos fazem acreditar. As três últimas
proposições, que dizem respeito à individuação do cristal, o signo como
diferença intensiva e a membrana constitutiva da interioridade do vivo também
descrevem a individuação real e servem para formalizar essa física
intensiva de que_Deleuze necessita par? esclarecer �ua filosofia da diferença
nos capítulos finais de Diferença e Repetição. , essas duas tríades de
conceitos formam a estrutura de uma epistemologi� -� de ' uma filosofia da
individuação que suste�t?m a lógica e a físiça da diferença de Deleuze.
Nas primeiras páginas de Diferença e Repetição, a definição dada ao
signo é t9talmente simdoniana, o objeto que exprime o signo "está
necessariamente num nível diferente, , como se . . houvesse duas ordens de
tamanho ou realidades díspares entre as quais o sigrio pisca" e não pode·
ser elucidado sem uma análise cuidadosa de Simondon.2
1 Traduzido por Christopher Cohoon.
2Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, traduzido por Paul Patton (Nova York: Columbia Universit y
Press, 1995), p. 22, doravante DR.

1
ANNE SALVAGNARGES ;J

matéria e forma confusa com uma ordem exprimível, em vez de considerá-la


como uma operação material de modulação. No entanto, Simondon, que
permanece indiferente a Marx, não desenvolve esta análise incisiva
numa crític9 social.Jsto. �juda a e_?<plicar a s_ua obsc,uridade_dentro_do _
intelectual francês. cenário da década de 1960 e é um dos fatores que levaram
Deleuze a censurá-ló por sua in diferença.1
A.origem do esquema.hilomórfico é, portànto, claramente social e não.
tecnológica, p.9is uma análise real das condições. tecr,ológicas trànsforma
çompl�tamente as_ noções.de . matéria
. e Jorma, revelando q u e .a. operação .
técnica é.uma questão de uma tomada de forma que coloca forças e _
materials_. A.análise.da modulação torna-se assim cada vez mais importante
na obra de Deleuze: depois de ter desempenhado um papel na construção _
do empirismo transcendental, ela também se relaciona com a
problemática da forma intensiva e da casualidade que Deleuze desenvolve em
seu_relato ..de Spinoza e Geoffro.y .Saint :Hilair. e. A análise. _ da modulação
consiste, portanto,_ em substituir o confronto abstrato entre forma e
matéria por uma nova análise .da. forma como. variação intensiva de forças
e - materiais como informação .-: ._que. pressupõe .a .existência_ de um _
sistema em estado de equ_ilíbrio metaestável coi:n potencial de individuação,
por isso a modulação pressupõe uma análise da disparidade.

2. Disparação Transdutiva

Segunda Proposição: Toda individuação é metaestáve


_ l, em estado de
disparidade.
Para explicar a individuação do tijolo, precisamos mostrar como
as paredes do molde e da argila entram em ressonâf!cia ('modulam')
e como a modulação da argila e do molde produz a individuação
do tijolo.

Para dar conta desta individuação, devemos,explicar como ela se


desenvolve eni seu ambiente pré-individual. O conceito de disparidade serve.. este
propósito: 'O que define essencialmente um sistema metaestável é a,existência
de uma "disparação", a existêr:icia de pelo menos duas dimensões diferentes-
4'Poder-se-ia dizer que numa civilização que divide os homens em dois grupos, os que
dão ordens e os que as recebem, o princípio d a individuação, que se baseia no exemplo tecnológico,
é necessariamente atribuído à forma ou à matéria, mas nunca para ambos juntos.' Gilbert
Simondon, L'individu et sa genese Physico Biologique, l'individuation à la lumiêre des notions de
forme et d'information (Paris: PUF, 1961), página 56, doravante IGT.
biologique ainda não foi publicada em tradução para o inglês; esta e todas as traduções subsequentes do
Este trabalho é meu. 1
ANNE SALVAGNARGES 19

Deleuze para esclarecer sua filosofia da Diferença definindo o signo como


disparidade. Simondon não apenas é crucial para a metafísica da Diferença
e para a semiótica intensiva,· a energética
. .
dã individuação que Deleuze
desenvolve em Diferença e Repetição, mas ele também mostra a Deleuze
como a hipótese da consciência pode ser evitado substituindo o transcendental -
subjetivo por emissões de singularidades que, estruturalmente, são
perfeitamente,diferenciais.. e que lhe permitem produzir um campo transcen_dental . _
impessoal ou pré-pessoal. Essas singularidade.s são1produzidas como
condições, como a 'razão transcendental'. da individuação e da 1subjetivação
humana, e respondem pela gênese dos indivíduos e dos humanos.
Eles são distribuídos de acordo com um p9tencial que reconhecemos
como disparidade metaestável Simondor:iiana, um potencial que 'não
admite nem a si mesmo nem eu, mas que os produz atualizando 9u realizando­
se 29 Com esta análise, Qeleuze mantém assim-sua constituição
transcendental de figuras psíquicas, pois as in_ dividuações corporais, as_ subjetivações
inconscientes e as subjetivaç· ões linguísticas não se assemelham ao s�u
ambiente pré-individual de individuação.
Podemos simultaneamente __exar:ninar o. que a.análise de ..
Deleuze retira de Simondon e a maneira como Deleuze a revive
inventivamente. A teoria da individuação permit�-lhe definir
singularidades como eventos que correspondem a séries heterogêneas
�·organizadas em um siste_ma que não é nem estável nem _ . .
instável, mas sim 30 Por outras palavras, ao distinguir o ambiente
metaestável da energia po!encial 9a atualização individuante,.
Deleuze mantém a sua constituição transcendental, mas
utiliza a disparidade Simondoniana para um propósito inteiramente
novo que o próprio Simondon não perseguiu: a constituição
de um empirismo transcendental.
Para fundamentar esta gênese transcendental, porém empírica,
de indivíduos e sujeitos, Deleuze distingue o plano do evento "puro",
o campo transcendental bem 1definido, mas virtualmente
problemático, de sua aplicação individualizante ou subjetiva. forma
de um sujeito ou de um indivíduo mais do que o real se assemelha
ao virtual. Deleuze reinterpreta e.reformula.Simondon
• . . _
empregando uma distinção que falta na análise simdoniana: potel)cial

29 LS, págin a 101.


30 Ibidem, página 1 0 3 .
20 Pli (2012)

a energia potencial corresponde à diferença transcendental em relação


ao virtual, enquanto a individuação atualiza o plano virtual em uma dada
forma empírica. O benefício desta análise é que ela situa o plano antropológico
dos sujeitos individuai!?, a forma.. do.homem,_entre diferenciações et __
individuações, e não não precisa mais ser pressuposta cgmo uma forma transcendente
que preexiste à atualização.
Esta análise também mostra o que _separa Deleuze de Simbndon: _
Deleuze acredita que não se pode gerar diferença transformando a
identidade ou tornando.la mais flexível, mas' que é necessário livrar.- ,
se1do conceito de ser, que Simondon preserva ao longo de sua análise. ,·
a transdução deve ser entendida como um modo de ser, ainda
que � defina como 'a não identidade do ser consigo mesmo'. Em vez de 1
dar_priorJdade à heterogeneidade. Simondon vê a transdução _dentro .da __ _
economia da unificação. _termos e esta concepção de relação como 'não­
identidade' representam simultaneamente ·um - acordo e um ponto- ,

de divergência entre os dóis pensactores, pois Deleuze exige que a.


Diferença seja pensada afirmativamente, enquanto Simondon continua
a falar da diferença em termos de não-identidade, que , segundo Deleuze,
é um lapso· inaceitável numa lógica de identidade para a qual n'ão
há justificação enquanto considerarmos a relação como anterior aos seus
termos.

Assim, de acordo_com Deleuze, a multiplicidade substantiva é incompatível _ ,


com o ser em fases, que Simondon define como "mais do que o
ser e mais do que a unidade", mas que, no entanto, retém uma dimensão
essencial da unidade. O ser metaestável Simondoniano pode muito bem
implicar uma transição para longe das fases de equilíbrio. , mas unifica-9s
nas suas de_fasagens. ft:.o obter .o múltiplo po
, r complicação, Simondon
continua a operar sob a economia do um e implicitamente permite-se apoiar­
se num centro mediano, como mostra claramente a expressão mais
que o ser e mais que a unidade. Aqui reside a diferença entre os dois
pensadores.

A transdução representa, no entanto, um momento lógico importante


na elaboração da diferença deleuziana. Envolve também uma nova operação
de pensamento, l:Jnia filosofia da Diferença, para a _qual, segundo Deleuze, ,
o termo ontologia, que Simondon continua a empregar, não seria mais ':,ltilizado.
ser aplicável. Quando a afirmação se torna sua divergência, não há
necessidade 'de _preservar uma visão unificada da m_et�física na forma de uma _

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