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Editor: Luis Gomes

DIFERENÇA,
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Bibliotecária responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960
CULTURA
0569
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Diferença, cultura eeducasão /organizado por Ama ri Ido luiz
Trevisan, Elisete M. Tomazetti e Noeli Outra Rossatto. - E EDU CAÇAO
Porto Alegre: Sulina, 2010.
423 p.

ISBN: 978-85-205-05 74-8

1. Filosofia da Educação. 2. Filosofia - Ensino. 1. Trevisan,


Amarildo luiz. li. Tomazetti, Elisete M. Ili. Rossatto, Noeli Outra.

CDU: 37.01 (Orgs.)


COO: 107
370.1
Amarildo Luiz Trevisan

Elisete Medianeira T 01nazzetti

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RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA
NA TEORIA CRÍTICA

Luiz Repa 1

Em um de seus debates sobre educação e emancipação, Theodor W.


Adorno propõe a ideia de que a formação do indivíduo autônomo só pode ser
acalentada enquanto princípio, a.gesar de todas as pressões da realidade social
para o contrário, se o indivíduo ainda poder se constituir num processo da
experiência que, reportando-se a Hegel, se poderia caractérizar de "expe1iência
do não-eu no outro" (1995, p. 154).
A educação para a emancipação, a {mica que deveria receber ainda o
nome de educação, coincide inteiramente, segundo Adorno, com, a educação
CULTURA para a exyeriência, entendida nesse sentido de experienciar o não eu no outro.
Somente assim, sugere Adorno, estaria dada uma das pressuposições ne-
E DIFERENÇA cessárias para que a exigência primeira da educação se cumpra, a saber, que
Auschwitz não se repíta (lbid., p. 119-138).
Compreende-se essa linha de pensamento que vincula autonomia, ex-
periência do não eu e o imperativo contra a repetição de Auschwitz, se se con-
sidera uma das principais teses da teoria crítica adomiana: aquela segundo a
quíll a civilização e o processo de raéionalização se realizam pela imposição do
pensamento identitário, objetivante, por meio da qual o individual e o não idên-
tico são subsumidos em esquemas funcionais para a dominação da natureza e
do homem, e~ por conta disso, traz consigo o germe de sua próp,ria destruição,
a barbárie. Opensamento identitário e instrumental, constituindo-se como vio-
lência sobre o não idêntico para a finalidade de autoconservação do indivíduo
não só tem como pressuposto uma mutilação desse mesmo individuo, que se

1
Professor adjunto do departamento de filosofia da Universidade Federal do Paraná.
Doutorado pela Universidade de São Paulo. Autor de A trans/J rmaçâo da Filosofia em
Jürge11 Habermas. São Paulo: Esfera Pública, 2008.

11
converte cm coisa para si mesmo, como o sistema social gerado para a domi- experiência se1ia inseparável também de um teconhecimento do eu no diferente,
nação da natureza leva também à sua destruição. de modo que a fo rmação do eu passa necessariamente pelos dois momentos,
Certamente seria precipitado traduzir de imediato a experi8ncia do pela identidade e pela diferença entre o eu e o outro. Esse segw1do momento, o
não eu no outro, tal como a pensa Adorno, nos termos de um reconhecimento da identidade, é ce1tamente o ponto mais sensível para um adorniano,já que de
da diferença. Essa expressão provavelmente lhe resultaria ou suspeita, se novo estaríamos prestes a modelar a diferença conforme a identidade.
diferença v ier a significar apenas a heterngeneidade medida pela homoge- Eu gostaria de mostrar, então, que a teoria honnethiana, ao dese1rvol-
neidade, ou inócua, se por ela for preciso entender, no âmbi to das práticas ver seu conceilo de reconhecimento a iJartir de Hegel, permite fazer frente às
pedagógicas, a tcnla liva de valori~ar as qualidades positivas de minorias reservas adorn ianas ou similares. Ou seja sua teoria do reconhecimento seria
reprimidas ( lbid .~ p. 12 L). Tampouco deve se ignorar que o "outro'' pode se capaz de dar conta de um processo de formação da identidade pessoal que
referir igualmente à natureza, na medida cm que o sujeito se reencontra como depende do reconhecimento do outro como outro, e, ao mesmo tempo, de si
produtor de categor ias que torna os processos naturais cognoscíveis e, por mesmo no oun·o, de tal maneira que o momento da identidade não signi fica-
fim, manipuláveis. ria algo como uma anexa_ção da diferença.
A despeito desserisco, é possível encontrar, creio eu, alguns pontos em Porém, esse é apenas um lado da questão. O outro lado consiste cm
cornmn se transitamos para o quadro de referências da teoria do reconheci- evitar também uma espécie de afirmação da aiferençn pela mera diferença, que
mento, proposta por um outro pensador que se filia à tradição de, pensamento lira do horizonte que todà dl ferença é a8enas uma oulra identidade pessoal ou
intitulada teoria crítica. Refiro-m e n Axel Flonneth, que, embora não tenha coletiva se formando em processos de socia lizaçã.o, cuja estrntüra intersubj etiva
estendido seu conceito de reconhecimenlo ao âmbito da educação, certamente deveria possibilitar a constituição de suj eitos igualmente autônomos, e, com
poderia dar crédito à pressuposiçao recíproca entre.autonomia, como finalida- isso, diferentes entre si.
de primeira da educação, e a experiência do não eu no outro, entendida como A lém desses dois objetívos centrais, pretendo mostrar, de maneira bas-
reconhecimento da diferença do outro como outro. tante lateraÍ que a teoria do reconhecimento desenvolvida porí!onncth pennite
também evitar dois perigos imputados ao discurso hoje em voga, do reconheci-
Evidentemente, isso não significaria transferir para a leoria do reco-
mento da diferença. O primeiro deles, não dirigido, até onde sei diretamente a
nhecimento o mesmo diagnóstico sobre a civilização, visto que Honncth não
Honneth, mas a Hegel, pretende descobJir nas demandas de reconhccímenlo
comparti lha com Adorno as teses fundamentais da Dialética do esclarecimen-
uma fo1ma internalizada de adesão aos valores já predominantes enfuma deter-
to, tanto por causa da preponderância da dominação da natureza como modelo
minada sociedade. Nesse sentido se move, por exemplo, a interpretação que
de análise da dominação social, como por conta das experiências histôrica~
Gilles Deleuze (1976) faz de Nietzsche como um anti-Hegel.
distintas, que subjazem a ambas teorias 2.
O outro risco a ser evitado consiste no que o próprio Honneth chama de
Além dessas diferenças mais gerais, convém chamar a atenção para uma
" reconhecimento como ideologia", isto é, a transformação do ato de afinnação
modulação conceitua! bastante distinta. Se em Adorno a experiência dà eman-
positiva dos valores de determinadosqndivíduos e grupos como uma forma de
cipação se configura como experiência do não eu no outro, para Honneth, essa
sujeição desses indivíduos e grupos a uma hierarquia social dada. Ou seja,
valorizam-se simbolicamente grupos até entã.o desprezados em suas formas de
vida,")Jara justamente mantê-los volnntariamente em condições sociais desi-
2
Cf. a crítica de Honneth ao chamado "déficit sociológico" da teoria crítica de Adorno e
guais (Honneth, 2004, p. 51-7 1).
Horkheimer, in: Honneht, A. Kritikder Macht. Frankfuii am Main. Suhrkamp, 1986.
Gf. também: " Das soziologische Defizil der Kritischen Theorie - Gesprach mit Marcos
Nobre und LuizRepa". ln: Basaure, M, Rccmtsma, J. Ph., Willig, R. orgs.), Erneuerung
***
der Kritik. Axel Ilonneth im Gespriich. f.rankfurt am Main/ Nova York, Campus Verlag, Proponho começar pela pergunta sobre o que vem a ser reconhecimento.
2009, p. 83-90. O que significa reconhecer o outro ou ser reconhecido pelo outro?


O termo português "reconhecer" induz a urna ideia que parece ser enga- ta pela identidade de uma pessoa ou de um grupo social, a pergunta não é por
1 aquilo que se reeete sempre-da mesma maneira, como uma propriedade tisica
nosa quando se pergunta sobre o reconhecimento do ou ro. Pois reconhecer,
cmyortuguês, pode levar a pensar em um "conhecer de novo", como quando dessa pessoa ou desse grupo.
reconhecemos alguém ou algo do passado. Gomo no inglês e no francês, o .A ..Pergunta se dirige para uma certa forma de essa pessoa ou grupo se
termo se refere, nesse aspecto, a uma operação cognitiva de relembrança ou
1 relacionar consigo própria e com os demai s. O conceito de identidade social se
refere, então, a uma espécie de auton·elação que se produz por meio de rela-
de iden,üficação (Ibid., p. 55). b ções diversas com um outro, isto é, como uma outra fonJ1a de relacionar-se
Mas, certamente, não é disso que se trata essencialmente quando al-
guém pretende obter do outro o reconhecimento para si, para a sua identidade consigo.
E essa autorrelação não é acessível por melo de uma observac;ão mera-
ou para o valor de sua identidade, ou ainda por um determinado feito . esse
mente empírica, que se volta para comportamentos repetitivos, de modo que se
caso, o reconhecimento é um conhecimento novo, e não de novo. E cabe lem-
poderia atribuir as qualidades x, y e z_ à determinada identidl;}de. Para com-
brar que o termo alemão não traz consigo uma ideia. de recorrência. Apala-
preender a identidade de uma pessoa de um grupo social, é preciso adotar a
vra Anerkennung sugere algo como conhecer junto, ligado a reportado a.
postura de alguém que participa de uma interàção socialcom ela, e, refletindo
)'ara Honneth, a expressão se refere, nessa língua primariamente ao ato de
sobre sua própria história , é capaz de compreender o que aquela pessoa valo-
va lori.zação positiva de propriedades e qualidades de um outro. Esse seria o
riza em si mesma como algo inalienável de sua personalidade ou de sua iden-
sentido primordial do termo.
tidade social.
Mas não por isso estaria excluída uma dimensao cognitiva no ato de Os conceitos de ídentidade e diferença parecem ser então antes de tudo
reconhecimento social. Nesse caso, a referência é para uma abertura cognitiva relacionais. Ou seja, um não é sem o outro, eles se detenninam reciprocamente.
e valora tiva gue, a princípio, não havia antes. E isso não vale apenas para oco- Ao mesmo tempo, eles se reportam a formas de autorrelação.
nhecimento que alguém tem do outro na me8ida em que reconhece a identidade Na história da filosofia, essa autorrelação consigo mesmo recebeu um
ou valor do outro. Pode ser que mesmo aquele que e reconhecido encontre nome minúsculo, mas que acabou determinando nossa compreensão moderna
somenfe nesse momento a identidade que antes ele somente suspeitava. de mundo. Me refiro, evidentemente, à palavrinha Eu. O Eu é minúscul o~ mas
Com isso já se toma a trilha do sentido do reconhecimento. Reconhecer o parece ser maior que o mundo, já que sempre deparamos como frases como "eu
outTO e querer ser reconhecido pelo outro significa afirmar para o outro ou não me ajusto ao mundo", "eu não pertenço a esse nnmdo" etc. como se o Eu
pretender para si mcs11.10 um determinado valor ou identidade A questão passa começasse onde acaba o mundo, ou, mais grave ainda, o mundo começasse
a ser então o que é isso que.reconheço no outro ou que quero ser reconhecido onde acaba o Eu.
pelo outro. O Eu, na história da filosofia, começou a fazer época no instante em que
O que é essa identidade que parece não existir senão por um ato ao ele se apresentou como sujeito do conhecimento e da ação, isto é, como agente
mesmoiempo cognitivo e social por parte do outro? Dado que a identidade de que realiza todo ato cognitivo e todo ato prático, de modo que toda ciência e
alguém deve ser aquilo que a diferencia das demais, a pergunta se desdobra toda moral deveriam estar fundadas nas faculdades que o Eu descobre em si
sobre a diferença. O que eu devo reconhecer no outro é, afinal, a mim mesmo, mesmo por um exercício metódico de autorreflexão.
de modo que desta vez tem todo sentido dizer conhecer de novo, pois me limito Não mais a partir do Ser, ou de Deus, mas do Eu principia o conheci-
a reconhecer-me no outro, ou, ao contrário, devo reconhecer a identidade do mento do mundo. Esse feito foi operado por René Descartes. A partir dele,
outro como outro, isto é, sua diferença em relação à minha identidade? certamente muita coisa;nudou, mas a ideia central não. O eu é aquela instância
Rode-se ver por essas questões que identidade não significa meramente porta.dora ou geradora de representações por meio das quais se pode conhecer
ser idêntico, como no princípio Lógico da identidade: A= A ~Quando se pergun- o mundo e agir sobre ele.
No entanto, a revolução cartesiana só foi possível porque o Eu é tam- a referência presumível de.suas representações. É o caso do cogito ca11esiano
bém capaz de conhecer-se a si mesmo, e segundo a pretensao caitesiana, intei- que se impõe na medida em que é o pressuposto de toda dúvida r dica1. É o
ramente. Ele tem cerleza de si mesmo como algo que prescinde do mundo caso do eu penso kantiano, que é a co ndição instransponível da própria
enquanto instância de conhecimento. Essa certeza de sj mesmo se confunde possibilidade de o sujeito representar algo. A consciência de si é a condição de
com a. consciência de si. O eu, é, então, consciência de si. E este «si", porque é possibilidade da consciência de todo objeto.
ele mesmo consciência, foni1a uma autorrelação consigo mesma que se pre- 1Iegel, por sua vez~ efetua uma crítica dessa comprovação da consciên-
tende idêntica sempre, pois, caso contrário, não seria possível reportar qual- cia de si partindo da consciência. A diferença decisiva em relação às filosofia s
qucr conhecimenfo a algo que conhece. da con sciência ai;iteriol"es é que se introduz uma outra consciência de si, de
Diferentes sujeitos do conhecimento, presentes em cada momento tem- maneira que a ce1teza de si mesmo só se p ode conso lidar median te um outro.
poral em um mesmo indivíduo, significa nenhum conhecimento, mas uma Com isso Hegel põe em perspectiva a ideia de que o s ujeito só pode
di spersão de representações internas. receber, criar ou transformar sua identidade em um contexto intersubjetivo,
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4
Esse raciocício foi efetuado por um outro filósofo que parte também do mai~.-~xataJnente , em um contexto de reconhecimento recíproco • Por outro

Eu como sujeito do conhecimento e da ação: Ipimanuel Kant. A ideia básica é lado, pelo fato de qu;(}-ífidivíduo se forma também mediante relações de reco-
que tenho de pressupor uma iaentidadc nessa autorreJaçãô reflexiva, sem o nhecimento recíproco, também a maneira como a filosofi a política moderna
que não é possível o conhecimento . entendeu as relações sociais é frontalmente atacada por Hegel.
Daí que à iüeia de Eu, subjetividade e conscLência de si, associa-se uma Dito em ten11os gerai , á teoria do reconhecimen(o hegeliana consiste na
outra, que tem relação íntima com a de identidade: a ideia de indivíduo. O eu é ideia de que os sujeitos individuais só podem formar e afirmar s uas identi-
sempre e originariamente um cu, que deve ser sempre idêntico a si mesmo por dades pessoais na medida em que essas identidades fião reconhecidas intersub-
mais que não saibamos nada a:respeito dele. jetivamente. Assim o indivíduo só pode se relacionar positivamente consigo
próprio, se de algum modo ele é valorizado positivamente pelos demais ind,i-
Até aqui não fiz, mais que relembrar, um tanto simplificadamente e em
víduos de ua comunidade. Gonsequentemente, não havendo essa aceitação,
consonância com a inte1vreta9ão de Honneth (2003), a maneira como Hegel
desencadeia-se uma luta por meio da qual a parte não reconhecida pretende
compreendeu a filosofia do sujeito. O propósito crítico de Hegel, ao construir
criar as condições do reconhccirneQto.
seu conceito de reconhecimento, fo i se mirar na capacidade do E u individual
As IL1las pelo reconhecimento ganham dimensões socjaís e políticas
de poder se colocar a si mesmo como sempre idêntico na sua autonelação,
quando já não se trata de meros casos individuais esparsos, mas da falta de
indepcndemente de qualquer outro Eu, ou seja, de um outro. A sós consigo
reconhecimento da identidade e do valor de grupos sociais. Essa fa lta de reco-
próprio, o Eu se mosti-ou como princípio de toda a modernidade, de modo que
nhecimenfo pode estar na base das instituições de uma sociedade. Nesse caso a
nenhum conhecimento é verdadeiro e nenhuma lei é legítima se não passam
luta pelo reconhecimento significa uma luta pela reforma ou mesmo uma revo-
pelo crivo do sujeito individuaP.
luçao das instituições sociais.
Quer dizer, as filosofias do Sujeito sempre partiram do conhecimento
Com isso chega-se à dimen são propriamente social e política do reco-
teórico para se chegar à consciência de si como inst1ncia ir ·ecusável e fundante
nhecimento. Se de um lado Hegel q_uer demonstrar a constitui~ão intersubj etiva
do saber. Para tanto bastava um sujeito e o mundo dos objetos gue constituíam
do Eu individual, rompendo com a ideia de um sujeito que solitariamente se

3
Nesse sentiao.., debruçando-se sobre a filosofia do sujeito, Hegel pôde descobrir a 4
Nesse sentido também se move a intei:pretação de Ji.ii:gen Habermas. Cf. especialmente
subjetividade como principio dos tempos modem os. Cf. a esse respeito, S:abennas, J. O "Trabalho e Interação", in:'Técnit;a e ciência como 'ideologia '. Lisboa, ed. 70, JJJ94, p.
d;scu,..so fllosóflco da modernidade. São Paulo, Martins Fontes~ 2000. 11-43. Cf. também O discursofllosóflco da modernidade, ed. c it., p. 35 ss.
relaciona somente consigo mesmo como condição de representar e conhecer o ciliar com os vínculos com,unitários. Ou seja, de modo que possa haver em uma
mundo, do outro lad6, ele quer mostrar que a sociabilidade tampouco pode ser determi nada comunidade o reconhecimento intcrsuój etivo da particu laridade
pensada a partir de indivíduos solitários que instituenl a sociedade por meio de de todos os seus membros. Essa transfom1ação é pensad~, seguindo a filosofia
um contrato socia l. política moderna como o resultado da luta. Porém, já não se trata de uma mera
Ou seja, ele busca criticar, na ideia de.contrato social, o pressuposto luta por autoconservªçªQ, mas sim de uma luta por recon!1~.~!gw11to.
antropológico básico segundo o qual o ser humano se forma de maneira E aqui se pode já começar a responder algumas questões feitas de início.
atomística, isto é, como um indivíduo fundamentalmente isolado, cuja nafureza Uma delas dizia respeito ao que se reconhece no outro, a si mesmo, sua iden-
é dada, e cujos cálculos estratégicos definem ,postcrionncnte a vida social tidade, ou.z ao contrário, sua diferença, a identidade do outro. A resposla de;
em seu conjunto. Hegel, explicitada e atualizada por Honneth será: as duas coisas. No outro me
Nessa tendência filosófica, o homem aparece geralmente como um reconheço de diversas maneiras, mas sempre na sua alteridade.
ser egocêntrico e calculista, que procura se precaver aumentando, até onde Essa ideia é apresentada por Hegel na primeira das três formas funda-
for possível, seu poder sobre o outro, sempre visto como um adversário ou mentais de reconhecimento: o amor, entendido como o conjunto das relações
mesmo um inimigo. amorosas, tanto sexuais como as de amizade e far:rúl ia. Além do amor, Honneth
E o outro é visto assim porque o homem é antes de tudo um ser que pro- destaca na filosofia de Hegel, especialmente em seu período de j uventude, o
cura garantir sua própria conservação natural de modo que todo outro é uma direito, que garante uma Liberdade negativa de Tecusar ou aceitar ofertas so-
ameaça a sua existência, caso não haja leis que imponham o respeito mú tuo. ciais, e a solidariedade, que remete à socialização do indivíduo inteiro, gara n-
Dessa maneira, Hegel se contrapõe a uma tendência da filôsofia política tindodhe o caráter único de sua personalidade.
moderna ú)resente cm Maquiavel e Hobbes mas até. hoje bastante a1,Taigad~1) de O amor apresenta-se então como uma forma primár ia de relação de.
ver o conflito social antes de tudo como uma luta por autoconservação. Ou reconhecimento mútuo: Hegel (1969, p. 201) escreve: "Cada um é igual ao
seja, os indivíduos e os grupos buscariam fundamentalmente garantir oti am- outro justamente quando é contràposto a ele~ ou o outro, por aquilo que lhe é
pliar suas chances de autoconservação. outrol é ele.mesmo" (Realphilosophie).
Ao contrário dessa tendência da filosofia moderna, que, como disse, está A gramática da relação amorosa é a de ui;na reciprocidade do "saber-
arraigada na maneira como se compreende-ia sociabilidade e a sociedade na se-no-outro", de "ser-si-mesmo-no-outro''. Com isso Hegel fala do-Sentimen-
modernidade, a teoria hegeliana do reconhecimento paite da premissa segun- to de "confiança" recíproca criada na relas;ao amorosa. Honneth, por sua
do a qual os indivíduos não são dados mas se fonnam por meio de um pi;ocesso vez, procura desvendar teoricamente essa gramática da relação amorosa
de socialização. Ou seja, desde sempre o indivíduo se encontra em convívio reportando-se aos trabalhos de Donald W. Winnicott e Jessica Benjamin. O
intersubj etivo. Esse convívio, na medida em que é sempre determinado por que está em jogo aqui é decifrar a definição hegeliana do amor como "ser-si-
costumes e valores, por víncul os éticos de ma1,1eira geral, é chamado por mesmo no outro".
Hegel de eticidadc (Sittlichkeit, também trad u~ido por "vida ética"). O amor seria um padrão particular de reconhecimento recíproco, cuja
Enquanto a filosofia política moderna explica a forma de organização ela função consistiria em garantir um equ'líbrio entre a simbiose e a delimitação de
sociedade a partir da ideia de um contrato social, estab elecido por indivíduos si mesmo e do outro, entre a liga9ão afetiva e a autonomia. Esse equilíbrio
que.calculam as vantagens de sair do estado de natureza, da guerra de todos é justamente o que interessa à teoria das relações de objeto, proposta por
contra todos, Hegel já supõe para todo processo de socialização do indivíduo W\nnicott, na medida em que esta pretende obter um critério para a identifi-
[
um conjunto de obrigações intersubjetivas dadas na eticidade. ' cação e a explicação de patologias do relacionamento. Por sua vez, para
A questão para ele não é tanto a 01igem mas muito mais a transformação
e ampliação da sociedade, de modo que a liberdade individual possa se con-
~ Honneth, ele está na raiz de uma autoconfiança que permite posteriormente ao
individuo conservar sua identidade os processos de socialização. Sem a
autoconfiança emotiva na experiência e na expressão das próprias carên_- Da mesma forma que o amor possibilita a autoconfiança, o direito per-
cias o sujeito não pode estar em condição de desenvolver outras formas de mite o aulorrespeito, já que o sujeito se sabe ·espeitado por todos os outros, na
auton-cspeito. medida em que os direitos são expressão de um respeito social. Somente com a
A at1toconfiança emotiva se desenvolve na primeira infância, a partir de garantia os direitos fundamentais a fonn a do autorrespeito adquire as,propr~e­
mna relação bem-sucedida entre mãe e filho. Nessa fase encontra-se um padrão dades da imputabilidade moral enquanto cerne-da pessoa.
de interação cuja recorrência na vida aduJta seria um indicador do êxito de Por fim , a terceira forma de reconhecimento é a solidariedade ou etici-
ljgaçõe~ afetivas com outros seres humanos. Sendo assim, é possível retirar dade, que remete a uma aceitação .[CCÍproca das qual idades individuais, jul-
das análises de Winnicott, a respeito do processo de amadurecimento infantil gadas à 1llz dos valores partilhados numa determinada comunidade. Por isso,
inferências sobre a estrutura comunicativa do amor enquanto fom1a de reco: destaca-se aqui uma comunidade de valores, através da qual se pode medir
nhecimento recíproco. intersubjetivamente o valor das realizações individuais, propiciando assim a
A ideia básica de Honneth consiste num equilíbrio na relação amorosa autoestima do indivíduo. A autoestima é entendida no sentidô de uma confiança
entre o desejo ele fusão com o Ol1tro e a delimitação da respectiva identidade. O emotiva na apresentação de realizações pessoais ou na posse de capacidades
desejo de fusão, que seria uma reminiscência do estado simbíótjco da primeira que são reconhecidas como valiosas. Porém, o indivíduo só pode chegar a essa
infância~ só se toma um sentimento de amor na medida em que se reconhece o autorrclaçâo prática se ele encontrar um reconhecimento solidário de sua im-
outro como uma pessoa independente, experiência apreendida no processo de po1iância social na coletividade.
separação da mãe. É importante notar que a fusão só é possível enquanto se Tal como o direito a forma de reconhecimento da estima social se modi-
reconhece a indepe_nclência do outro, já que é um processo de "deslimitação" fica historicamente. Uma forma de estima individualizante, gropriamente mo-
1uútua. derna, só é possível na medida cm que o tecido dos valores se torna cada vez
A diferença entre o amor e o direito como padrões de reconhecimento diz.. mais poroso, pcnnitindo a coexistência de diversos valores, e na medida em que
respeito ao modo como se dá a aceitação da autonomia do outro. No caso do a hierarquia de valores cede espaço para uma concorrência horizontal.
amor, o reconhecimento da autonomia se apoia na dedicação cmoti va, portan- Na modernidade, o valor ético do indivíduo já não depende mais das
to, em sentimentos que não estão à disposição dos pa1,ticipantes. Aqui é insu- propriedades coletivas da camada social à qual ele pertence. Em outras pala-
perável um ce1to particularismo moral, que diferencia o amor do direito, já que vras, ocone uma individualização das realizações sociais consideradas valio-
se atribui à relação jurídica uma espécie de respeito cognitivo. Por esse termo sas, o que só é possível com um certo pluralismo de valores. A questão que se
entende-se uma aceitação por assim dizer objetiva e u niversal da autonomia coloca de imediato é saber como se define então o horizonle de valores, ao
do outro, independentemente do tipo de relações que se possa manter entre os mesmo Cempo abe110 para concepções distintas de autotTealização individual,
particip;antes. Por outro lado, também no direito se encontra o mesmo mecanis- mas servindo de sistema de referência para a estima social. No campo de tensão
mo de reconhecimento recíproco que se encontra no amor. Ou se~ é sern..we da gerado dessa maneira, ocorrem as lutas dos grupos sociais em torno de quais
perspectiva do outro que podemos éhegar a uma consciência de nós mesmos ·nterpretações das finalidades éticas devem prevalecer na esfera pública dcsta-
como portadores de direitos. Como no amor, a própria autonomia é assegurada c, ndo-se em cada caso os modelos específicos de autorrealização individual.
na medida que se reconhece a autonomia do outro. Essa luta por reconhecimento em tomo da estima social se estende am-
No entanto, logo se apresenta também uma outra diferença entre o amor bém para os confrontos econômicos, já que as relações de estima estão vincula-
e o direito. O primeiro, devido a seu âmbito sempre estreito e pa1ticular, não é das também aos padrões de distribuição tlê renda. Pessa maneira a questão
suscetível de um desenvolvimento normativo histórico como é o caso do direi- sobre a redistribuição da riqueza criada por urna sociedade não está desvincu-
to . Confo1me a história do direito modifica-se o significado do que é reconhe- lada do reconhecimento do valor dos grupos sociais determinados por seu lugar
cido reciprocameufe na pessoa de direito. na divisão do trabalho. É pelo fato de aue a distTibuídío cit": rím1f'.7~ st":r t::imhP:m
mua manifestação de reconhecimento, que é possíveL para Honneth, criticar o j\hecimento, já que ela só pode se dar por meio da reciprocidade. O que o des~j o
uso ideo lógico do reconhecimento como maneira de sujeitar simbolicamente recíproco revela para cada parceiro é, antes de tudo, sua dependência mútua,
grnpos desprivilcgiados. Nesse caso, a afirmaçao meramente simbólica de capa- de forma que ambos se compreendem como um gênero de ser q11e carece
cidades de indivíduos e grupos, principalmente na esfera do trabalho, revela-se afetivamente do outro.
ideológica, na medida em que ela não é acompanhada de mudanças con-espon- Sem essa lógica da reciprocidade nenhum reconhecimento é possível, e
dentes ua distribuição material da sociedade: "Ent,re a pro01essa valorativa eo isso por ambos os lados. Se um indivíduo nega para seu parceiro de relação que
preencb.imento materialab(e-se um abismo, que é nesta medida característico, ele é um gênero de pessoa afetivamente carente, tampouco pode se descobrir
porque a provisão <;los pré-requisitM; ins1itucionais não seria mais conciliável integralmente co1n.o um gênero de pessoa coff1 a mesma qnalidade.
com a ordem dominante da sociedade" (IIo1111eth, 2004,p. 68). Se essa dimensão da personalidade é de algum modo satisfeita, o indiví-
duo pode se relacionar consigo mesmo, isto é, com sua natureza carente e
*** desejante, de uma maneira confiante, no sentido de que ele pode pressupor para
0 outro uma correspondência já experienciada antes. A autoconfiança se refere
Ora, dadas essas linhas teóricas podemos novame11te se reportar a ques-
então à expressão de sentimentos e necessidade~ que pode~1 ~r.além da esfera
tão inicial sobre a identidade e a diferença. Eu antecipei a resposta dizendo que
das relações primárias do amor sexual e da am izade, poss1!;nhtando também
no processo de reconhecimento e, mais exatamente, na luta por reconhecimen-
reivindicações de outra ordem, como na política, por exemplo. Daí Honnetft
to, o reconhecirnento do outro é ao mesmo tempo um reconhecimento de si no insistir no fundamento do reconhecimento como amor para todas as outras
outro e do outro em sua identidade inalienável, ou seja, em sua diferença.
fonnas de reconhec,imento.
Mas para compreender isso é preciso entender o que constitui a identi- No entanto, s · essa dimensão do reconhecimento é undan;iental para a
dade em cada caso. Ora, para a teoria do reconhecimento, a identidade pessoal constituição da individualidade, na medida em que o indíviduo se relaciona
não é algo fixo, mas antes de tudo uma autorrelação. Mais exatamente.um praticamente consigo mesmo como desejante por meio de um outro desejante,
complexo de autorrelações, constituída pela autoconfiança em si mesmo pelo não por isso encontramos nessa dimensão a particularidade necessária com
autorrespeílo e pela autoestima. Ora, estas autorrelações são mediadas pelo que ele também pode se pôr em todas as outras relações sociais como um
reconhecimento do outro, de tal modo que o indivíduo se relaciona consigo indivíduo diferente, isto é, como dotado de certas gualidades e capacidades
mesmo como dotado de certas qualidades na perspectiva que ele pode ter a que o tornam único.
partir da maneira que o outro se relaciona com ele. Essa possibilidade tampouco se dá na dimensão do seconhecimento
O que cada um descobre em si mesmo no outro é, primeiramente, para a como djreito,j á que o direito confere a cada um o estatuto de pessoa, isto é, de
dimensão dás relações amorosas, no sentido mais amplo possível, a dimensão um ser que é sujeito de direitos em princípio uni.versais e iguais. Com isso, o
de um ser que carece-afetivamente, como m ser desejante. Na experiência do reconhecimento do outro e pelo outro se dá para além das particularidades
amor, o sujeito que quer experimenta-se a si mesmo como um ser que deseja e t individuais. O reconhecimento corno direito se dá na fo1ma de um respeito para
é desejado. Daí se pode decifrar aquela ideia hegeliana de que no amor cada com o outro, não p orque esse outro é conhecido ou estimado, mas porque ele
parceiro da relação sabe-se no outro e 6 ele mesmo no outro. Ele se vê no outro, tem uma dignidade conquistada por meio da lei, válida para todos. Inversa-
porque o outro, ao desejá-lo igualmente, revela para ele sua qualidade de ser 1
1
mente, o indivíduo se relaciona consigo mesmo como um ser digno de respeito
desejante e carente. Mas com isso, não se deve entender que o que o ser universal pelas mesmas razões.
desejante vê no outro é uma imagem de si mesmo, como se fosse uma identi-
r. Dessa maneira, no direito, certamente o reconhecimento do outro e pelo
ficação de si no outro. Um tal processo de identificação, ta!vez poderíamos
falar de identi fjcação narcísica, impediria por princípio toda lógica do reco- !_ outro exige agora uma propriedade comum a todos, na exata medida em que a
igualdade das no~1nas jurídicas faz abstração das propriedades e qualidades
individuais de cada pessoa. O q\te no reconhecimento jurídico cada um desco- na expectativa de que seus própi;ios valores possam, um dia~ convencer os que
bre em si no mesmo momento em que reconhece o outro são as propriedades são meramente tolerados. Ao contrárj o, no reconhecimento como estima, o
que cadá um tem de pressupor no outro e em si mesmo para a produção de uma outro é avaliado positivamente em suas atitudes concretas, de tal maneüa que
norma jurídica válida para todos. Ou seja, tudo aquilo que, confom1e a evo- cada um poderia ter adotado aquela forma de vida, porque. ela é boa em si
lução do direito autoriza a cada metl1bro de uma coletividade participar da inesma (Werle, 2009, p. 153).
produção da leis, em termos gerais, as propriedades de uma imputabilidade A respeito da estima, é preciso ter um outro cuidado, que se remete
jurídica, a qual pressupõe a autonomia moral de cada um. àquela crítica sobre o reconhecimento como forma de adesão aos valores já
Essa dimens~o do recon hec imento como direito permite a cada tm se predominantes em determinada sociedade. Ou seja, o que se reconhece não
colocar como pessoa, mas não cm sua integralidade. Pois a autorrelação do seria outra coisa do que valores já reconhecidos, ele modo que a diferença é
re~eito confere a cada um uma propriedade bastante geral, por meio da qual sufocada por um processo de identificação prévià, uma jgualização de todos.
ninguém se diferencia dos demais como um ser único, dotado de uma identi- As demandas de reconhecimento seriam, nesse caso, um processo suti l de
dade. Ta l identidadeyessoal o indivíduo SÓ1Joderá constmir para si mesmo a dominação, por meio do qual o diferente se submete à ordem, 011 seja, a uma
partir da autorrclação da estim~ para consigo mesmo. É só aí que encontramós identidade construída coletivamente. O desejo de..reconhecimento se voltaria,
a pessoa inte ira, na expressão de Hegel. A pessoa ~ n tcira é um indivíduo que nesse sentido, para a descoberta por parte de indivíduos e grupos, ele quais
obtém sua id entidade. obretudo do rcconhecini.ento de "sua particu larid ade", atributos devem merecer reconhecimento, a fim de poder realizar o desejo 5.
ou seja, daquil o que a diferenc ia de todas as de1pais, lembrando-se sempre .Porém, se é possível identificar nessa oimensãõ um desej o de reconhe-
que essa diferenciação é pretendida ge lo indivíduo em suas demand as de re- cimento, não se trata de se-coloca r na posição de um objeto de desejo do outro,
conhecimento. identificando previamente o que esse outro deseja1 quer dizet:, adapfando-se
De certo modo, é nessa dimensão do reconhecimento que se fecham aos val ores do outro, sendo esse outro a sociedade ou a con;i unidade em que
todas as implicações da identidade da pessoa individual, por que é aqui gue o o indíviduo está inserido. Pelo contrá rio, o que está ~1a origem de uma deman-
indivíduo se relaciona consigo rl]CSmo como diferenciado. Essa auto1Telação é da por reconhecimento, é o sentimento de ser desrespeifado naquilo que o
a da estima~ que o indivíduo conquista para si ao se ver reconhecido cm suas individuo ou o grupo co sidera varoso para se relacionar positivamente con-
particularidades e capacidades. Esse reconhecimento se dá na forma de uma sigo mesmo.
valorização do outro e pelo outro. Ou seja o reconhecimento se apresenta final- É-por isso que o conceito de luta por reconhecimento serve para tentar
mente nessa fom1a mais acabada como a atribuição de valor a uma forma de ex.Plicar uma evolução da sociedaCle, no sentido da criação cada vez maior de
vida específica. espaços para diferenças, que devem merecer ser reconhecidas como valiosas e,
Aqui é preciso chamar a aten,ção para uma diferença importante enh·e ao mesmo tempo, distintas . A diversidade de identidades pessoais se perfaz,
tolerar e .r econhecer, ou entre to lerância como fomrn de reconhecimento
próprio do respeito e rccon11ecimento como estima e valorização. Ao tolerar
5 Essa critica tem sua 01j gem, como antecipei de início, no modo como G. Deleuze
uma· fotma de 'vida, uma cu ltura, uma religião, não necessariamente se avalia interpretou o conceito de luta por ,reconhecimento e a dialética do senhor e do escravo
positivamente cs a fonna de vida, essa cultura. Tolera-se por razões de outra como se dão naFenomenologia do Espírito, contrapondo-a ao conceito de ressentimento
ordem, como_, por exemplo, pclO' princípio de que o outro é uma pessoa, e nesse e.à relação senhor e escravo, desenvolvidos por Nietzsche em sua Genealogia da Moral.
Apesar de a referência ptincipal nao ser os textos hegelianos anteriores à Fenomenologia,
caso merece um respeito moral , mas o que define sua identidade pessoal es-
creio q11e a análise de Deleuzc poderia se estender a eles, bem como à reconstrução de
capa a esse respeito. É um ser humano, e enquanto tal, merece ser respeitado. Honneth. Cf. a respeito Williams, R. R. "Hegel e Nietzsche: reconl1ecimento e relação
Nesse respeito, o tolerante não tem nenhuma relação positiva para com os senhor/escravo". ln: Rosenfield, D. Estado e política: a filosofia política de Hegel. Rio
de 1aneiro, Zahar, 2003.
valores concretos de seu interlocutor, ele-até mesmo pode rejeitá-los cm bloco,
então, em urna diversidade de projetos de vida, que permitem a cada um uma O .momcnlã. da identidade foi pensado no amor como aquele reconhe-
auforrealização distinta de si mesmo. cimento recíproco entre parceiros como seres desejantes e carentes, que na
O concci lo que deve dar conta dessa di vcrs.idade de identidades e realização da dedicação emotiva percebem-se como mutuamente dependen-
projetos de vida coJTespondentcs é aquele da solidarie dade como forma de des. A dependência recíproca mostra o ser de cada um no outro, sem que
reconhecimento. A solidarieda<lc Sl: refere a um interesse afetivo por parti- ocorra uma assimilaç~lo.
cularidades individuais, o qual possibilita aquela autorrelação de estimà por No caso do direito, a identidade se recobre na g~neralidade j mídica de
si mesmo. sujeitos autônomos e imputáveis. Aqui. aparentememc, a igualdade genérica
Porém, se essa solidariednde ampla não pode ·s e fundar em uma comu- parece subsumirn diferença. Todos se tornam igualmente pessoas, sujeitos de
nidade <lc valores concretas de, um grupo, já que aí haveria uma limitação de direito2 e devem ser respeitados comõ tais. Mas justamente com ª'Proteção
~
projetos de vida possíveis, qual é então o seu esteio? A resposta do fronneth ti'.J' jurídica da autonomia, cada um pode articular livrementq,projclos de vida indi-
ó' que a so lidariedade se desdobra por valores cada vez mais plurais que viduais, sob a condição de respeitar a autonomia de todos os demais. A iden ti-
camil1ham para uma coincidência com própria gramática do reconhecimen- dade por meio da ig!Jaldade fo1mal e jurídica pode ser pensada 'então como uma
to em geral, ou s~ja, pela ideia de um reciprocidade na constituição de cada condição protetora das diferenças particulares ~Tbid., p. 277).
identidade, que, no limite, põe à luz, o quanto cada um é vulnerável e depen- É apenas· na terceira forma de reconhecimento, a solidariedade, é que
dente do outró. Essa estrutura tio rcc011hecimcnto, perceptível já na relação encontramos o reconhecimento do outro como outro, cm sua diferença própria.
do amor e do direito, permitiria, g._9nsequcntemcnfo, o questionamento dos Esse é o grau mais exigente de reconhecimento, já que elà demanda uma esti'ma
valores vigentes e.a abertura para novos ho6zontes de valor. por projeto~<; de v ida alheios, distintos dOi, nqssos. Mas essa diferenciação
Ou seja, todos os três modo:. de reconheciment9 propiciam autorrcla- máxima é acompanhada também ele uma igualização máxima: todos os pro-
ções distintas, como a auloconfiança... o autorrespeito, e a autoestima, sem as jetos de vida devem merecer simetricamente estima social? não em lermos
quais o indivíduo não poderia se realizar em suas metas de vida.< escolhidas quantitativos, mas no sentido de que todos recebem a chance de saber-se esti-
de maneira autônoma. Todos esses três modos de reconhecimento revelam, mados socialmente. Ós valores sociais que orientam essa estima devem ser tão
portanto, o que Honneth chama de "estrutura intersubj etiva da identidade diversos e plurais que acabam coinl:idindo com as condições intersubjetivas da
pessoal". "Os. indivíduos se constituem como pessoas<Inicamenle porque.,, reciprocidade necessária para a autorrealização da personalidade individual.
da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam-'- aprendem a se referir Aqui também cada um se vê no outro, na exata medida em que ele se apresenta
a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capaci-
comooufro.
dades" (2003, p. 272).

r
A. experiência do não eu é, portanto, amalgamada a cada etapa de reco-
nhecimento por urna experiência de igualdade. No todo se trata de uma expe-
*** riência multifacetada de identidade na diferença, e de diferença na identidade.
Gostaria de finalizar retomando o vínculo sugerido por Adorno entre a f É evidente que toda essa linha de raciocínio é de natureza eminentemente
educação para a autonomia e a experiência do nãõ eu uo outro. Havia dito normativa. A experiência cotidiana de desrespeito, como maneíra de negar
"
inicialmente que a teoria honnethiana assentiria com essa ideia, ainda que colo- lf! tanto direitos já constitucionalmente assegurados ou ainda por via de se con-
cada em termos tão vagos, desde que se associasse à experiência do diferente
também a experiência de uma identidade com ele. Meu propósito foi mostrar
fl quistar positivamente,. ou também de desprezo por fom1as de vida divergentes
dos padrões majoritários aponta para a necessidade de práticas sociais de reco-
a lógica dá reciprocidade entre o eu e o não eu nos diversos modos de reconhe- nhecimento intersubjetivo, para a quais a educação para a autonomia, para
cimento, para afastar seja uma anexação da diferença, seja uma dispersão de w11a autorreflexão constante sobre si mesmo se apresenta desde.. o início como
particularidades autorreferentes, como que formados por conta própria. condição irnp~seindível.

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