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MARCIA HELOISA
Ilustrações
RAMON RODRIGUES
Volume 1
NUNCA APOSTE
a cabeça
COM O DIABO
1841
Con tal que las costumbres de un autor, escreveu Don Thomas de las Torres no
prefácio para os seus Poemas amatórios, sean puras y castas, importo muy poco
que no sean igualmente severas sus obras. Ou seja, desde que a moral de um
autor seja puramente pessoal, pouco importa a moral de seus livros. Presume-se
que Don Thomas esteja agora no purgatório, graças a tal afirmação. Seria sábio,
à guisa de justiça poética, mantê-lo por lá até que seus Poemas amatórios saiam
de cir-culação ou sejam, em definitivo, relegados às estantes por falta de leitores.
Qualquer obra de ficção deve ter uma moral; e, o mais relevan-te, os críticos
descobriram que toda ficção tem. Philip Melâncton, há algum tempo, escreveu
um comentário sobre a “Batracomiomaquia”, provando que o objetivo do poeta
era instigar um repúdio à sedição.
Pierre la Seine, indo ainda mais além, mostrou que a intenção era re-comendar
aos rapazes que comessem e bebessem com mais tempe-rança. Do mesmo modo,
Jacobus Hugo satisfez-se em achar que, por
Euenis, Homero queria se referir a João Calvino; por Antínoo, Marti-nho Lutero;
por Lotófagos, os protestantes em geral; e, pelas Hárpias, os holandeses. Nossos
escoliastas mais modernos são igualmente pre-cisos. Esses sujeitos demonstram
significados ocultos em Os antedi-luvianos, uma parábola em Powhatan, novas
interpretações para Cock Robin e transcendentalismo em O pequeno polegar.
Em suma, ficou provado que nenhum homem pode sentar para escrever sem um
propósito muito profundo. Assim, os autores em geral são poupados de muitos
problemas. Um romancista, por exemplo, não precisa se pre-ocupar com sua
moral. Ela está lá — quer dizer, está em algum lugar
Defuncti injuria ne afficiantur era uma lei das doze tábuas e De mor-tuis nil nisi
bonum é uma excelente injunção — mesmo se o morto em questão não passar de
um morto mixuruca. Não é minha intenção, no entanto, vilipendiar meu falecido
amigo Toby Dammit. Era um 1
pobre-diabo, é verdade, e morreu como um; mas não era culpado por suas falhas.
Estas foram causadas por um defeito pessoal de sua mãe.
Ela se esforçou para açoitá-lo bastante quando pequeno, pois, para sua mente
bem ordenada, os deveres eram sempre deleites, e bebês, como bifes duros ou as
modernas oliveiras gregas, ficavam invaria-velmente melhores quando bem
batidos. Mas pobre mulher! Tinha a infelicidade de ser canhota e, para apanhar
de um canhoto, é melhor nem apanhar. O mundo gira da direita para a esquerda.
De nada adianta bater em uma criança da esquerda para a direita. Se cada golpe
na direção certa expulsa uma tendência para o mal, cada pancada na direção
contrária incute no castigado uma dose extra de perver-sidade. Fui testemunha
frequente das surras que Toby levava e, até mesmo nos chutes que recebia, eu
podia notar que estava ficando cada dia pior. Por fim, concluí, com lágrimas
embaçando os olhos, que não havia esperança alguma para o patife e um dia,
quando as bordoadas no rosto o deixaram tão negro a ponto de ser confundido
com um africano, sem produzir nenhum efeito além de um convul-sivo chilique,
não pude mais suportar: prostrei-me de joelhos e, er-guendo a voz, profetizei sua
ruína.
É bem verdade que sua precocidade na depravação fora terrível.
Aos cinco meses de idade, já era tomado por paixões que sequer podia articular.
Aos seis, flagrei-o roendo um baralho. Aos sete, tinha o há-
Foi por causa desse costume pouco cavalheiresco que a ruína que eu profetizara
a Toby Dammit acabou por derrotá-lo. A mania havia
modo que, quando atingiu a idade adulta, mal conseguia proferir uma frase sem
propor uma aposta. Não que chegasse a apostar dinheiro —
isso não. Preciso fazer justiça ao meu amigo e reconhecer que ele pre-feriria
botar ovos a arriscar dinheiro em uma aposta. Era apenas um cacoete, nada mais.
A expressão lhe ocorria sem nenhum sentido real a ela atrelado. Eram expletivos
simples, até mesmo inocentes — frases inventivas para complementar uma
sentença. Quando dizia “aposto isso”, “aposto aquilo”, ninguém o levava a sério;
ainda assim, não podia deixar de considerar meu dever admoestá-lo. Era um
hábito imo-ral, e disse isso a ele. Era um hábito vulgar — implorei que
acreditasse em mim. Era reprovado pela sociedade — não disse nada além da
mais pura verdade. Era proibido por um ato no Congresso — não tive aqui a
menor intenção de mentir. Protestei, sem sucesso. Demonstrei, em vão.
Supliquei, ele sorriu. Implorei, ele deu uma gargalhada. Prelecio-nei, ele reagiu
com escárnio. Ameacei, ele retrucou com um palavrão.
Parti para os pontapés, ele chamou a polícia. Puxei seu nariz, ele o as-soou e
ofereceu a cabeça ao diabo, apostando que eu não tentaria re-petir esse
experimento.
A pobreza era outro vício que a peculiar deficiência física da mãe de Dammit
incutira no filho. Era abominavelmente pobre e, sem dúvida, era esse o motivo
pelo qual suas apostas em bravata não costumavam assumir um caráter
pecuniário. Jamais sequer o peguei falando algo como “aposto um dólar”. Era
mais comum dizer “aposto o que você quiser”, “aposto o que você ousar
apostar”, “aposto uma bagatela” ou, de modo ainda mais significativo, “aposto
minha cabeça com o diabo”.
Essa última frase parecia ser a que mais o agradava, talvez por ser a que lhe
oferecia menos risco — Dammit tornara-se parcimonioso em excesso. Se
alguém topasse a aposta em questão, sabia ter uma ca-beça bem pequena, de
modo que o prejuízo seria igualmente diminu-to. No entanto, essas são
elucubrações minhas e não tenho nenhuma certeza para considerá-las corretas. A
aposta com o diabo, dia após dia e em diversas ocasiões, tornou-se a favorita
dele, apesar da bruta impropriedade de um homem que aposta os miolos como se
fossem
notas — mas essa era uma questão cuja disposição perversa de meu amigo
impedia o entendimento. No fim, acabou abandonando todas as demais apostas e
entregou-se ao “aposto minha cabeça com o diabo”
Comecei a não gostar nada daquilo. A alma de Dammit corria grave perigo.
Decidi lançar mão de toda a minha eloquência para salvá-la.
Jurei servi-lo como dizem na crônica irlandesa que São Patrício ser-viu ao sapo,
ou seja, “despertá-lo para uma consciência da situação”.
Recordo-me apenas das pérolas de seu discurso. Disse que ficaria muito grato se
eu ficasse quieto. Que não queria nenhum de meus con-selhos. Que desprezava
todas as minhas insinuações. Que já era gran-dinho o bastante para tomar conta
de si próprio. Acaso eu ainda o via
como um bebê? Teria a intenção de criticar seu caráter? Insultá-lo? Era tolo a
esse ponto? Estaria minha progenitora ciente de minha ausência da residência
familiar? Disse que me perguntava levando em consideração minha sinceridade
e que, dependendo da resposta que eu desse, cederia de bom grado aos meus
argumentos. Mais de uma vez inda-gou explicitamente se minha mãe sabia que
eu estava fora. Concluiu que meu atordoamento me traía e disse que estaria
disposto a apostar a cabeça com o diabo para provar que ela desconhecia meu
paradeiro.
O sr. Dammit não esperou por uma resposta. Girando nos calca-nhares, deixou-
me com indigna precipitação. Foi melhor para ele. Havia ferido meus
sentimentos. Conseguira despertar até mesmo a raiva em mim. Pela primeira
vez, eu seria capaz de ter aceitado sua insultan-te aposta. Teria garantido ao
arqui-inimigo a cabeça do sr. Dammit —
pois minha mãe sabia muito bem que eu me encontrava apenas tem-
porariamente ausente de casa.
causou intenso mal-estar. O mesmo não se deu com o infeliz Dammit, que
ofereceu sua cabeça ao diabo, apostando que eu estava per-turbado. Ele parecia
estar com um bom humor atípico. Estava en-tusiasmadíssimo — tanto que
cheguei a cogitar uma desconfortável suspeita. Era bem possível que tivesse sido
contaminado pelos transcendentalistas. No entanto, não tenho conhecimento
suficiente para diagnosticar essa doença com certeza e, infelizmente, nenhum
dos meus amigos da Dial estava presente. A ideia me ocorreu, não obstan-te, por
conta de uma espécie de bufonaria austera que parecia acome-ter meu pobre
amigo, levando-o a agir como um tolo. Cismara em al-ternar agachadas e saltos
por baixo e por cima de tudo o que via pela frente, ora gritando, ora ceceando
todo tipo de palavras estranhas enquanto preservava a expressão mais séria do
mundo. Eu não sabia se deveria dar-lhe um pontapé ou ter pena dele. Por fim,
tendo atra-vessado quase toda a extensão da ponte, estávamos nos aproximan-do
do fim da parte coberta quando uma roleta de altura considerável bloqueou nosso
avanço. Passei por ela sem dificuldade, empurran-do-a como de costume. Mas
tudo o que era costumeiro desagradava ao sr. Dammit. Ele insistiu em pular a
roleta, dizendo que juntaria os pés no ar enquanto o fizesse. Isso eu não
acreditava que pudesse fazer. O melhor saltador de pés juntos no ar, de todos os
estilos, era amigo meu, o sr. Carlyle, e, como eu sabia que ele não conseguiria
fa-zê-lo, não poderia acreditar que Toby Dammit pudesse. Foi o que lhe disse,
com estas exatas palavras, que era um fanfarrão e que se gaba-va de poder fazer
algo de que não era capaz. Acabei me arrependendo depois de tais palavras, pois
ele logo apostou a cabeça com o diabo, afirmando que conseguiria.
Apesar de minhas resoluções anteriores, estava prestes a admoestá-
-lo contra tal impiedade quando ouvi, bem perto, uma discreta tosse que soou
como um “Aham!”. Levei um susto e virei-me, surpreso. Meu olhar finalmente
se deteve em um dos cantos da parte interna da ponte, onde distingui a figura de
um velhinho coxo de aparência venerá-
vel. Nada podia inspirar mais respeito do que a aparência dele; trajava
Observando-o com mais atenção, notei que trazia um avental de seda preta sobre
suas pequeninas vestes, o que achei bem estranho.
Porém, antes que eu pudesse fazer qualquer comentário sobre circunstância tão
singular, ele me interrompeu com um segundo “Aham!”.
ção. Comentários lacônicos como esse, em geral, não pedem respostas. Soube de
uma revista trimestral que ficou desorientada com a palavra “Fraude!”. Por isso,
não me envergonho de dizer que recorri ao sr. Dammit em busca de auxílio.
Dammit — observei mais uma vez, ainda que minha fala parecesse ter a
gravidade de um juramento, algo bem distante de minha intenção —
— Dammit, o que você está fazendo? Não ouviu? O cavalheiro disse “Aham!”.
— Não me diga — arquejou ele, por fim, após ter mudado mais de cor do que
um pirata, uma após a outra, quando perseguido por um navio de guerra. — Tem
certeza absoluta de que ele disse isso? Bem,
seja como for, agora estou envolvido e acho melhor encarar o assunto de frente.
Aí vai, então: aham!
— Tenho certeza de que você vai ganhar, Dammit — disse ele com o sorriso
mais franco. — Mas somos obrigados a ter um julgamento, você sabe, por uma
questão de formalidade.
“Ahá!”, pensei, sem dar voz aos meus pensamentos. “É um silêncio deveras
extraordinário da parte de Toby Dammit, sem dúvida consequência de sua
verborragia em ocasiões prévias. Um extremo induz ao outro. Será que esqueceu
as inúmeras perguntas irrespondíveis que me fez com tamanho desembaraço na
ocasião de meu último pito?
— Meu caro — disse ele — é justo permitir essa distância de corrida para que
pegue impulso. Espere aqui, até que eu assuma meu lugar ao lado da roleta, para
poder avaliar se o salto foi bonito, transcendental e com todos os floreios que
tem direito. Uma mera formalidade, com-preende? Vou contar “um, dois, três e
já”. Você pode começar assim que ouvir a palavra “já”. — Ele se posicionou ao
lado da roleta, fez uma pausa como se em profunda meditação, ergueu os olhos e
acho que es-boçou um discreto sorriso antes de amarrar o avental. Lançando um
olhar penetrante para Dammit, ele por fim disse, conforme o combi-nado: —
Um, dois, três e já!
acima da roleta, cruzando o arco da ponte como uma braçadeira, havia uma viga
lisa de ferro disposta na horizontal, compondo com as demais o sustentáculo da
estrutura, em toda a sua extensão. Parecia evi-dente que o pescoço de meu
malfadado amigo havia entrado em con-tato com a borda afiada da viga.
Não sobreviveu por muito tempo após uma perda tão terrível.