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Da Cibernética à Autopoiesis:
continuidades e descontinuidades
A
de educação só produzem aprendizagem efetiva quando os
educadores e/ou conteúdos informacionais possibilitam um humanidade apenas no século XX e quem
reforço, uma criação, ou uma flexibilização de sentido auto-
poiético do educando. percorra toda a vida ao longo do século
Palavras-chave: Autopoiesis. Cibernética. Aprendizagem.
Educação. atual pode muito bem nunca encontrar o seu
nome, dado muitos acreditarem que a sua
Abstract: The purpose of this article is to reflect how the
autopoiesis theory was influenced by the cybernetics and missão e sua função foram já substituídas
as both contributed to the explanation of the interaction
between learning and education phenomenon. We used
pelas Ciências da Computação.
hermeneutical methodology. We discuss the cybernetic’s Seja como for, a releitura das obras dos
emergence. The three cybernetics until 80-90. Cybernetics
and biology. Continuities and discontinuities between the pioneiros da Cibernética deixam-me sempre
biological autopoiesis and the cybernetic self-regulation. extasiada face ao mundo que naquelas páginas
Learning, individual’s and community’s self production of
meaning, through structural couplings. Observation and aqueles pensadores, imaginavam, criavam, e
Education. In conclusion, we point logical and epistemic in-
congruities between the study of cybernetic self-regulation fabulavam…e que se tornou real! E, no entanto,
and the one of the biological autopoiesis; that some con- como tantas vezes, tudo começou por causa
cepts of cybernetics of 2nd order were especially important
for the understanding of the observational dimension in the da guerra.
autopoiesis theory of which elapses education; that edu-
cation processes only produce effective learning when the
Com a II Guerra Mundial, tornara-se
educators and/or informational contents make possible a claro que a investigação científica deveria
reinforcement, a creation, or a flexiblization of the other
person’s autopoietic meaning. manter-se em estreita ligação com o mundo
Keywords: Autopoiesis. Cybernetics. Learning. Education. do armamento, não só para criar novas
máquinas para matar, mas sobretudo para
inventar máquinas que destruíssem máquinas
de efeito devastador. Muitos dos cientistas
(além de filósofos, compositores, etc) de
origem austríaca e alemã (sobretudo os que
eram simultaneamente judeus) tinham fugido
para os EUA; vários deles foram acolhidos
OLIVEIRA, Clara Costa. Da Cibernética à Autopoiesis: con- pela Companhia Bell, pioneira dos telefones,
tinuidades e descontinuidades. Informática na Educação:
teoria & prática, Porto Alegre, v. 12, n. 2, p. 23-34, jul./
ou seja, com um papel fundamental na
dez. 2009. comunicação humana. Esta experiência de
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aliar o saber electrónico à comunicação entre negava que a mensagem tinha uma significação,
pessoas, entre povos, é algo determinante nem tampouco que esse significado pudesse
para o surgimento… da Cibernética. “Nous ser aferido por bits informativos muito menos
avons décidé de désigner le champ entier de frequentes na mensagem do que aqueles que
la théorie du controle et de la communication, ocorriam mais vezes; no entanto, ele pretendia
aussi bien dans les machines que chez les aferir a informação quantitativa que se podia
êtres vivants, sous le nom de Cybernétique [ obter em mensagens, ignorando o seu eventual
. . . ]” (WIENER, 1971, p. 12); de notar que a significado, enquanto mensagem. Os estudos
palavra remete etimologicamente para aquele de Shannon foram muito importantes no campo
que controla, como um piloto. da zoologia, por exemplo, especialmente no
Por volta de 1943, um grupo de estudo dos cânticos dos pássaros e alguma da
investigadores, coordenados por Arthur investigação que primeiramente se fez em Palo
Rosenbleuth e Norbert Wiener, criaram a Alto era explicitamente centrada em Shannon,
Cibernética (embora o termo já tivesse sido dado que existem transcrições de comunicação
referenciado por Ampère, por exemplo), para cinestésica e não verbal de terapeutas, como
estudarem os mecanismos de regulação e de G. Bateson, acentuando-se a informação que
auto-regulação em máquinas e nos seres vivos, se obtinha na sequência comunicativa, pela
a comunicação e a construção de máquinas que repetição de determinados gestos, colocação
criassem comunicação, ou a incrementassem. de corpo, etc.
Naquela altura, aquele tipo de pesquisa era A importância de Shannon para a
muito importante para conseguir perceber Cibernética tem então a ver, antes de mais
como funcionavam armas programadas, armas nada, em ter fornecido um teorema que
de detonação programada à distância (como permite medir a quantidade de informação
mísseis) ou armas auto-programadas. entrada numa máquina (construída pelos seres
A questão da comunicação foi-lhes humanos); conseguimos também com esse
influenciada pela teoria da informação de instrumento matemático aferir quais dessas
Claude Shannon, que abordava a quantidade entradas são mais ou menos redundantes; a
de informação recorrendo aos conhecimentos função H proporciona-nos prever o programa
de termodinâmica, nomeadamente a de de respostas com que a máquina lidará com
L. Boltzmann (OLIVEIRA, 2009). O que é essas redundâncias, indicando as possíveis
muito importante perceber nas concepções e saídas.
experiências de Shannon é que a quantidade de Logo no ano seguinte após a publicação de
informação transmitida em vias comunicativas seu famoso artigo, A Mathematical Theory of
sujeitas a ruído não se relaciona com a sua Communication (1948), Shannon publica um
significação. Para Shannon, informação livro em parceria com Warren Weaver onde de
correspondia à medida de várias possibilidades novo estas questões são colocadas, mas com
de escolha que uma mensagem pode ser um posicionamento diferenciado por parte de
seleccionada por um sistema. O famoso 1º Weaver. Com efeito, este matemático norte-
teorema de Shannon estabelece um paralelismo americano faz questão de distinguir três níveis
entre a medição de redundância (aspectos de produção de informação: 1- a interação de
ruidosos) num processo comunicativo – função sinais dentro de um canal comunicacional (o
H (o exemplo clássico para se compreender a nível de Shannon); 2- nível do emissor que emite
teoria de Shannon é a comunicação por telex) sinais informacionais por meio de um, ou vários,
e a medição de entropia num sistema físico canais comunicacionais; 3- nível do receptor
aberto ou fechado – função S (obviamente que dos sinais emitidos pelo emissor e recebidos
a entropia, em termodinâmica, também não se por um, ou mais, canais de comunicação.
preocupa com significações, pois estamos na Estes dois últimos níveis acarretam consigo
área física que estuda fenómenos térmicos e as dimensões da compreensão (codificação/
gasosos). descodificação) dos sinais, dos seus sentidos
Explicitemos melhor esta questão: para possíveis e da eficácia na transmissão desses
Shannon, informação era o que se conseguia sinais. Todos estes elementos nos dirão se há,
obter pela quantidade com que um signo ou não, uma mensagem. É que pode haver
ocorre dentro de uma mensagem, numa via de comunicação apenas com informação, em
comunicação mais ou menos ruidosa. Ele não sentido shannoniano, e sem mensagem.
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1.1 O BCL – Biological Computer Von Foerster (1960) fez em seguida a mesma
Laboratory (1958-1976) experiência mas com os cubos magnetizados
apenas numa das faces. O resultado foi uma
Este era pois o tipo de questões com que configuração de cubos ordenada, dado que
os pioneiros da Cibernética se encantavam e haverá cortes de redundância fornecida pelas
a sua construção maquínica no BCL tinha-as configurações obtidas com as faces dos cubos
presentes. Mas o fato de estes homens vindos magnetizados; consegue-se um conjunto de
da Matemática, Física e Engenharia eletrônica cubos que constroem algo com sentido para
terem apelidado o seu laboratório como um observador.
biológico deve-nos fazer pensar um pouco. A As lições epistemológicas desta experiência
principal razão para tal fato é que muitos deles de von Foerster são sobretudo duas: 1- quem
tinham estudado processamento informacional atribui sentido ao mundo é um observador, e
em sistemas vivos; tal acontecera no MIT, o sentido depende do contexto observacional
nomeadamente com o então jovem Humberto em que ele se encontra (quais as variáveis
Maturana que investigava com Wiener – e informacionais que ele possui, e qual o saber
McCulloch, entre outros – o processamento que ele detém, sobre aquilo que observa;
informacional da retina de rãs. O que este 2- a aleatoriedade (o lançamento dos dados
tipo de estudos indicava era que a informação ao acaso) pode produzir produtos ordenados
processava-se de modo diferente do modo (princípio de order from noise de von
como era processada nos sistemas físicos. A Foerster).
diferença parecia residir em que, de algum Nenhuma destas questões eram novas,
modo, os seres vivos construíam a informação pois ambas tinham sido já enunciadas e
que emitiam por processos de auto-regulação desenvolvidas no âmbito da Física, por Einstein
interna. Assim, por exemplo, no estudo da e Schrodinger, por exemplo, mas o impacto das
cor na percepção visual percebia-se que concepções de von Foerster foi muito grande
ela emergia na relação entre a estrutura na Biologia e (restantes) ciências humanas,
interna do olho para dentro (portanto, no seu talvez por na época a própria Biologia estar
enraizamento cerebral) com a retina (exposta mais focalizada nos modelos interpretativos
a factores ambientais, como a luz). que advinham da teoria da informação do
Perceber que tipo de processos eram esses, que das explicações astrofísicas, quânticas e
conseguir descrevê-los e posteriormente termodinâmicas. Voltando à Cibernética, o que
construir máquinas que os conseguissem von Foerster (1984) considerava importante
empreender era o principal sonho dos que no seu modelo era exatamente ele indicar-nos
trabalhavam no BCL, em Illinois. Quem o que os sistemas vivos poderiam eventualmente
terá perseguido, dentro do BCL, com mais atuar como os cubos magnetizados, e nós é que
persistência talvez tenha sido Heinz von não os sabíamos magnetizados, continuando
Foerster. na metáfora. Daí a importância de se conseguir
Enquanto Shannon tentara aferir valores construir máquinas que conseguissem criar
positivos informacionais pela anulação dos ordem a partir de desordem, de redundância
aspectos ruidosos (que são os redundantes, informacional. À magnetização dos cubos ele
no caso do telex, por exemplo), von Foerster começou a apelidar, auto-organização e nunca
(1960) vai tomar como desafio o não controle a equipe do BCL conseguiu construir uma
dos aspectos ruidosos, deixando-os atuar. máquina que se auto-organizasse de um modo
Criou um modelo qualitativo, com cubos tão complexo como a mais básica da estrutura
magnetizados em mais que uma face. Colocou-o do ser vivo, a célula.
dentro de uma caixa, fechou-a, abanou-a O fato de ele ter salientado a importância
e deixou rolar os cubos. Que configuração do observador (latu sensu, e não só no que
tomaram os cubos para um observador que respeita à dimensão visual) na atribuição
desconheça que os cubos estão magnetizados? da informação fornecida por um sistema
Em princípio, considerará que eles estão comunicacional abriu as portas para aquilo
desordenados (ou seja, aplicando Shannon, que ficou conhecido como a cibernética de 2ª
a quantidade de signos é muita, mas é ordem
totalmente redundante, pelo que a informação
é praticamente nula). .
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caminhos algo diferentes entre si e o que aqui Perceptão e a Adaline), e ele é considerado
descrevemos prende-se sobretudo com as suas como o precursor da IA no âmbito da engenharia
concepções nos anos 50-80, não pretendendo electrónica.
de forma alguma esgotar tal problemática com Emergindo do cognitivismo cibernético, a IA
esta breve descrição interpretativa. apostou pois na construção de máquinas (de
A cognição é descrita como sendo um tipo digital e de tipo analógico2) que fossem
tipo de cálculo logarítmico que um sistema capazes de revelar inteligência, isto é, de
efetua, articulando as suas representações processarem representações internas. As
internas com aquilo que ele pretende obter RNA (redes neuronais artificiais) fazem parte
face a questões que tem que resolver. O de uma fase mais avançada desse projecto,
que queremos aqui ressaltar não é tanto a e os engenheiros da neurocomputação mais
dimensão teleológica que esta corrente possui, ortodoxos fazem questão de recusar qualquer
mas o fato de ela ter que se relacionar com ligação de RNA com as redes neuronais
um determinismo representacional, já que as naturais. Hoje existe um número imenso
representações internas são como que fórmulas de RNA, entre elas RNA auto-organizadas
que expressam corretamente signos base – a partir do trabalho de Kohonen (1982) –
formal de tipo inato. Essa linguagem básica e as estocásticas – onde se inclui “[ . . . ] a
formal inclui regras morfológicas e sintácticas máquina de Boltzmann, de Hinton e Sejnowski
precisas. Garante-se assim uma adequação (OLIVEIRA, 1999, p. 110).
das representações ao mundo representado, No entanto, um grupo de investigadores
dado o paralelismo formal (do mesmo tipo transdisiciplinar (onde se incluíram os biólogos
que o existente no interior de um sistema de Henri Atlan e Francisco Varela e um dos
lógica formal) entre a sintaxe (a representação investigadores do BCL, Gordon Pask) decidiu
enquanto tal, como signo, por exemplo) e a centrar-se na aprendizagem de RNA face a
semântica do signo, o seu significado. Alguns perturbações aleatórias, retomando algumas
dos nomes mais importantes desta corrente das questões em que se focalizava o BCL, mas
são Chomsky, Minsky, John e Ray McCarthy. num contexto muito desenvolvido, do ponto
Notemos que a questão da regulação de vista técnico-computacional. A este grupo,
da informação é aqui tratada de um modo a história da ciência cognitiva apelidou-o
quase perfeito, logicamente falando, dado de neoconexionistas, e dele derivam os
que ela resulta de atualizações contínuas de enatistas e os emergentistas. Os primeiros
programação existente a priori. Aqui não há ensaiaram a criação de sistemas resultantes
lugar para a possibilidade de a ordem emergir de componentes aleatoriamente distribuídos
do ruído, nem tampouco existe necessidade numa RNA, tentando estabelecer ligações
de pensar no observador, no que respeita aos possíveis com a construção semântica nos seres
significados da informação. vivos. A segunda decorre desta, tendo sido
Esta crença na similitude entre cálculo muito utilizada na compreensão da diferença
proposicional lógico-formal (puramente de nível existente entre mente e cérebro, já
dedutivo) e a atuação cerebral considerada que a produção da mente não corresponde à
inteligente, está na base da IA (e dos famosos
testes de QI).
2 As máquinas de tipo digital da época funcionavam
Neste conexionismo artificial, criaram-se
com um número reduzido de variáveis; as suas sa-
máquinas que conseguem resolver problemas ídas eram muito precisas e fiáveis, ainda que sem
formulados por equações, e as suas RNA margem de novidade informacional; um exemplo é
possuem todas um programa, onde está uma máquina de calcular com apenas as 4 opera-
ções básicas. As de tipo analógico eram aquelas que
armazenado, o mais claramente possível, possuíam uma multiplicidade muito grande de va-
a sequência de ordens a executar. Atingiu riáveis informacionais; estas máquinas conseguiam
o seu apogeu por volta dos anos 80, mais produzir muitos outputs informativos mas muito
pouco fiáveis. A internet assenta numa estrutura de
concretamente com o ciclo de conferências de
tipo analógico. É de salientar que estes conceitos são
Hopfield, entre 1982 e 1986. usados no atual mundo computacional de modo di-
Minsky (1969) vai apelidar o projeto do ferente do mencionado, dada a incrível evolução que
se verifica nesta área. G. Bateson (1979) utilizou es-
BCL de época romântica (onde se construíram
tes conceitos para se referir às linguagens articula-
máquinas que se tentavam assemelhar ao das humanas (verbais e escritas) e às cinestésicas e
funcionamento dos seres vivos, como o não verbais, respectivamente.
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soma dos processos cerebrais, nem tampouco dos seres vivos. Ora bem, era este tipo
dos seus componentes (dizer que a mente de explicação formal que a Cibernética
possui componente é algo, no mínimo, bizarro) proporcionava à Biologia: era possível construir
(VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1991). máquinas de grande nível de complexidade
(aproximando-se inclusive da complexidade
2 Cibernética e Biologia humana), desde que fossem programadas
por alguém exterior à própria máquina. A
causalidade de tipo retroactivo oferecido
Como já tivemos oportunidade de ir pela Cibernética exigia a existência de um
constatando pela leitura deste artigo, a relação programador da máquina, o que afastou os
da Cibernética com a Biologia não foi nunca embriologistas da Cibernética.
simples e linear. Proponho-me agora destrinchar No entanto, os embriologistas tinham noção
um pouco mais esta relação intrínseca, ainda de que os princípios explanatórios típicos do
que polêmica, começando por fazer uma breve mecanicismo clássico (newtoniano), como a
referência à Embriologia e à Biologia molecular explicação formal (ou linear), não lhes serviam,
para depois nos focalizarmos na Teoria da dado que o desenvolvimento dos embriões era
Autopoiesis. muito variado e bastante imprevisível; quando
um estado de um embrião acontece (e.g.:
gástrula) não é possível saber a que tipo de
2.1 A Embriologia órgão (ou tecido) ele dará origem.
É pois face a este impasse conceitual
A embriologia, na primeira metade do que vários embriologistas procuram ajuda
século XX, procurou estabelecer princípios em outras áreas, como vimos; alguns deles
explanatórios baseando-se na termodinâmica, esperavam encontrar um organizador biológico
sobretudo nos estudos de Boltzmann e básico, que explicaria o desenvolvimento
Prigogine (com a sua teoria das estruturas morfogenético dos seres vivos. A busca desta
dissipativas), bem como nas pesquisas de substância base organizadora de tipo físico-
filósofos como Henri Bergson e Whitehead. química foi levada a cabo por investigadores
A quem esteja menos familiarizado com a da escola de Bruxelas (liderados por Dalcq e
história da Biologia, esta ligação (de Weiss Pasteels) e nunca foi encontrada.
e Needham, entre outros) pode parecer
estranha, mas resulta de algo muito peculiar: 2.2 A Biologia Molecular
a embriologia emergira como área de ponta
dentro da Biologia após a árdua derrota das Sobretudo a partir dos anos 50, o cenário
teorias criacionistas face ao sucesso das da Biologia altera-se profundamente. O físico
concepções evolucionistas. Estudar embriões Francis Crick foi um dos pais da biologia
(humanos e de outras espécies) constituía o molecular, ao aplicar à biologia bacteriana à
aprofundamento do evolucionismo ao nível teoria da informação. Três fatores têm que
mais micro que era então possível. Destes ser imediatamente identificados: primeiro,
anos de poderio embriológico, resultaram Crick apoiou-se no livro de Schrodinger
dados extraordinários, como o fato de os What is Life?, onde se defendia que a ordem
embriões só poderem ser reconhecidos como biológica era de um tipo diferente da ordem
pertencendo a determinada espécie a partir termodinâmica; segundo, Crick utiliza a
de um determinado grau de desenvolvimento teoria da Shannon, mas misturando-a com
morfológico (OLIVEIRA, 1999). a de Weaver, ou seja, misturando a sintaxe
Ser evolucionista significa não fora ser com a semântica; terceiro, ao fazê-lo, ignora
vitalista, que conota as teorias criacionistas totalmente a dimensão observacional, quer
e as de geração espontânea (entre outras) do emissor, quer do receptor, tendo como
ao vitalismo aristotélico-cristão, pelo menos principal consequência que a interpretação
naquela época. Assim, o que o vitalismo do cientista sobre a informação produzida é
pressupõe, em Biologia, é a existência de uma considerada nula. A descrição observacional
entidade exterior (de tipo transcendental, corresponde isomorficamente ao que
usualmente) que funciona como princípio onticamente ocorre no objecto de estudo
explanatório da capacidade auto-organizadora observado.
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uma obra de biologia e, nesse contexto, ser formalmente por Morin (1990) – , recusando
mecanicista significa não ser vitalista (como uma síntese dialética, em termos hegelianos
acima expliquei); o mecanicismo em Biologia (OLIVEIRA, 2003).
não corresponde epistemologicamente ao A recusa obsessiva de Humberto Maturana
mecanicismo moderno. Biologicamente, em utilizar a teoria da informação na teoria
significa que (tal como é mencionado na obra) por si construída – ou mesmo conceitos
se defende que as explicações fornecidas para aparentemente tão inofensivos como
a ocorrência e funcionamento de fenômenos informação – deriva da sua repugnância
biológicos só podem recorrer a componentes face à deturpação que a biologia molecular
e processos físico-químicos, e seus níveis de empreendeu da teoria de Shannon (1948) –
complexidade, sem recurso a qualquer entidade o mesmo posicionamento, mas mais leve,
que lhes seja transcendente ou transcendental. verifica-se nas obras do biólogo Henri Atlan;
Mas os seres vivos são máquinas de tipo clássico, a aproximação de Varela à linhagem das
com funcionamentos causais formais, e demais RNA, acima descrita constituiu, aliás, uma
características do mecanicismo newtoniano? das principais causas de afastamento teórico
Não, embora essas máquinas existam; são as dos autores da teoria da autopoiesis. Note-se
construídas pelos seres humanos e são de tipo que a definição de sistemas vem, de base, da
alopoiético. termodinâmica, muito antes de von Bertalanffy
As máquinas vivas são assim definidas (1950) a divulgar – e a criar de modo mais
por serem capazes de auto-produzirem os complexo e alargado.
componentes e processos que precisam Assim, o que caracteriza as máquinas
para surgirem, para se manterem e para se autopoiéticas com organização fechada e
complexificarem continuamente, ou seja, estrutura aberta é, antes de mais, a sua
são máquinas autopoiéticas (poiesis significa capacidade em se fazerem unidades, de se
produzir). Essa auto-produção não requer constituírem como sistemas sem intervenção
senão elementos físico-químicos e processos de nenhum programador externo – o que
auto-produzidos que as mantêm vivas e daí nenhuma máquina cibernética consegue – ;
serem máquinas, mas autopoiéticas. “Nuestro nelas, a interação que a estrutura, como as
enfoque será mecanicista: no se aducirán membranas celulares, possuem com os nichos
fuerzas ni princípios que no se encuentren en é metabolizada e integrada (ou rejeitada) na
el universo físico” (MATURANA; VARELA, 1972, organização do organismo vivo em função
p. 12) Caracterizam-se por serem fechadas de uma atuação selectiva organizacional
informacionalmente ao nível organizacional, – compare-se o conceito organização
ainda que abertas ao nível estrutural, sendo autopoiética com o padrão de G. Bateson
que este se subordina àquele. (1972) e compreenderemos melhor esta
Um sistema fechado distingue-se de influência assumida pelos cientistas envolvidos
sistemas isolados (que são solipsistas, e dos (BATESON, 1972). No entanto, essa atuação
quais os autores da autopoiesis se demarcam selectiva não é determinada a priori, mas
claramente) e dos sistemas abertos. Os antes se vai constituindo ao longo da ontogenia
fechados não trocam matéria directamente do organismo, o que afasta esta teoria da
com os nichos (ou meios, observacionalmente influência do cognitivismo cibernético.
falando), enquanto os abertos assim o Organismos vivos saudáveis seleccionam
permitem. O que torna a teoria da autopoiesis as perturbações a que as estruturas os
tão interessante é exatamente este carácter podem sujeitar. Quando não o conseguem
ambivalente na descrição do funcionamento fazer temporariamente, adoecem; quando
dos seres vivos, e tão confuso para quem deixam de o conseguir fazer, morrem. O
está habituado a mover-se em modelos sistema nervoso não capta informações; ele
epistemologicamente dualistas (no que respeita especifica as configurações metabolizadas pela
à origem, natureza e limites do conhecimento). estrutura do meio-nicho que são perturbações,
Por defenderem uma ambivalência contínua especificando também as mudanças que elas
entre a dimensão fechada e aberta (ainda que podem provocar no organismo. É a atuação da
a última subordinada à primeira) é que estes organização que assegura a auto-regulação de
autores são considerados como se movendo toda a complexidade de um ser vivo e Maturana
no paradigma da complexidade – enunciado sempre teve a preocupação de a justificar,
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televisão e ouvem música ao mesmo tempo. que nos deixem nele entrar, e de seguida pode
A única maneira que possuímos de perceber ser que nos sintamos lá bem, ou não. Caso
em que mundos de significações vivem os consigamos este acop(u)lamento estaremos
educandos (nossos filhos, nossos maridos, a construir mundos comuns, flexibilizando
amigos, professores, alunos, etc.) com os aqueles já existentes com as contributos que
quais queremos comunicar, é passarmos a trazemos das nossas vivências em outras
fazer parte desse mundo; para tal, é preciso comunidades (OLIVEIRA, 2008).
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