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Da Cibernética à Autopoiesis: continuidades e descontinuidades

Article in Informática Na Educação Teoria & Prática · January 2009


DOI: 10.22456/1982-1654.9553

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1 author:

Clara Costa Oliveira


University of Minho
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Oliveira, C. C. (2010). Da Cibernética à Autopoiesis: continuidades e descontinuidades.
Revista Informática na Educação: teoria & prática, vol. 12, nº 2 (jul./dez.): 23-34.
UFRGS (Brasil). ISSN (impresso): 1516-084X; ISSN (digital): 1982-1654.
INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: teoria & prática Porto Alegre, v.12, n.2, jul./dez. 2009. ISSN digital 1982-1654
ISSN impresso 1516-084X

Da Cibernética à Autopoiesis:
continuidades e descontinuidades

From Cybernetics to Autopoiesis:


continuties and descontinuities

Resumo: O artigo tem por finalidade refletir como a teo-


ria da autopoiesis foi influenciada pela Cibernética, e como
ambas contribuíram para o esclarecimento da interacção
Clara Costa Oliveira
Universidade do Minho
entre os fenómenos de aprendizagem e os de educação. A
metodologia utilizada é de tipo hermenêutica. Discute-se
o surgimento da Cibernética. As três cibernéticas até aos
anos 80-90. Cibernética e Biologia. As continuidades e des-
continuidades entre a autopoiesis biológica e a auto-regula-
ção cibernética. Aprendizagem e auto-produção de sentido,
via acopulamentos estruturais. Observação e Educação. Em
conclusão evidencia-se que existem incongruências lógicas
e epistémicas entre o estudo da auto-regulação cibernéti- 1 Surgimento da Cibernética
ca e o das autopoiesis biológicas; que a conceitualização
da cibernética de 2ª ordem foi especialmente importante
para a compreensão da dimensão observacional na teoria
autopoiética, da qual decorre a educação; que os processos
Cibernética surgiu na história da

A
de educação só produzem aprendizagem efetiva quando os
educadores e/ou conteúdos informacionais possibilitam um humanidade apenas no século XX e quem
reforço, uma criação, ou uma flexibilização de sentido auto-
poiético do educando. percorra toda a vida ao longo do século
Palavras-chave: Autopoiesis. Cibernética. Aprendizagem.
Educação. atual pode muito bem nunca encontrar o seu
nome, dado muitos acreditarem que a sua
Abstract: The purpose of this article is to reflect how the
autopoiesis theory was influenced by the cybernetics and missão e sua função foram já substituídas
as both contributed to the explanation of the interaction
between learning and education phenomenon. We used
pelas Ciências da Computação.
hermeneutical methodology. We discuss the cybernetic’s Seja como for, a releitura das obras dos
emergence. The three cybernetics until 80-90. Cybernetics
and biology. Continuities and discontinuities between the pioneiros da Cibernética deixam-me sempre
biological autopoiesis and the cybernetic self-regulation. extasiada face ao mundo que naquelas páginas
Learning, individual’s and community’s self production of
meaning, through structural couplings. Observation and aqueles pensadores, imaginavam, criavam, e
Education. In conclusion, we point logical and epistemic in-
congruities between the study of cybernetic self-regulation fabulavam…e que se tornou real! E, no entanto,
and the one of the biological autopoiesis; that some con- como tantas vezes, tudo começou por causa
cepts of cybernetics of 2nd order were especially important
for the understanding of the observational dimension in the da guerra.
autopoiesis theory of which elapses education; that edu-
cation processes only produce effective learning when the
Com a II Guerra Mundial, tornara-se
educators and/or informational contents make possible a claro que a investigação científica deveria
reinforcement, a creation, or a flexiblization of the other
person’s autopoietic meaning. manter-se em estreita ligação com o mundo
Keywords: Autopoiesis. Cybernetics. Learning. Education. do armamento, não só para criar novas
máquinas para matar, mas sobretudo para
inventar máquinas que destruíssem máquinas
de efeito devastador. Muitos dos cientistas
(além de filósofos, compositores, etc) de
origem austríaca e alemã (sobretudo os que
eram simultaneamente judeus) tinham fugido
para os EUA; vários deles foram acolhidos
OLIVEIRA, Clara Costa. Da Cibernética à Autopoiesis: con- pela Companhia Bell, pioneira dos telefones,
tinuidades e descontinuidades. Informática na Educação:
teoria & prática, Porto Alegre, v. 12, n. 2, p. 23-34, jul./
ou seja, com um papel fundamental na
dez. 2009. comunicação humana. Esta experiência de

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aliar o saber electrónico à comunicação entre negava que a mensagem tinha uma significação,
pessoas, entre povos, é algo determinante nem tampouco que esse significado pudesse
para o surgimento… da Cibernética. “Nous ser aferido por bits informativos muito menos
avons décidé de désigner le champ entier de frequentes na mensagem do que aqueles que
la théorie du controle et de la communication, ocorriam mais vezes; no entanto, ele pretendia
aussi bien dans les machines que chez les aferir a informação quantitativa que se podia
êtres vivants, sous le nom de Cybernétique [ obter em mensagens, ignorando o seu eventual
. . . ]” (WIENER, 1971, p. 12); de notar que a significado, enquanto mensagem. Os estudos
palavra remete etimologicamente para aquele de Shannon foram muito importantes no campo
que controla, como um piloto. da zoologia, por exemplo, especialmente no
Por volta de 1943, um grupo de estudo dos cânticos dos pássaros e alguma da
investigadores, coordenados por Arthur investigação que primeiramente se fez em Palo
Rosenbleuth e Norbert Wiener, criaram a Alto era explicitamente centrada em Shannon,
Cibernética (embora o termo já tivesse sido dado que existem transcrições de comunicação
referenciado por Ampère, por exemplo), para cinestésica e não verbal de terapeutas, como
estudarem os mecanismos de regulação e de G. Bateson, acentuando-se a informação que
auto-regulação em máquinas e nos seres vivos, se obtinha na sequência comunicativa, pela
a comunicação e a construção de máquinas que repetição de determinados gestos, colocação
criassem comunicação, ou a incrementassem. de corpo, etc.
Naquela altura, aquele tipo de pesquisa era A importância de Shannon para a
muito importante para conseguir perceber Cibernética tem então a ver, antes de mais
como funcionavam armas programadas, armas nada, em ter fornecido um teorema que
de detonação programada à distância (como permite medir a quantidade de informação
mísseis) ou armas auto-programadas. entrada numa máquina (construída pelos seres
A questão da comunicação foi-lhes humanos); conseguimos também com esse
influenciada pela teoria da informação de instrumento matemático aferir quais dessas
Claude Shannon, que abordava a quantidade entradas são mais ou menos redundantes; a
de informação recorrendo aos conhecimentos função H proporciona-nos prever o programa
de termodinâmica, nomeadamente a de de respostas com que a máquina lidará com
L. Boltzmann (OLIVEIRA, 2009). O que é essas redundâncias, indicando as possíveis
muito importante perceber nas concepções e saídas.
experiências de Shannon é que a quantidade de Logo no ano seguinte após a publicação de
informação transmitida em vias comunicativas seu famoso artigo, A Mathematical Theory of
sujeitas a ruído não se relaciona com a sua Communication (1948), Shannon publica um
significação. Para Shannon, informação livro em parceria com Warren Weaver onde de
correspondia à medida de várias possibilidades novo estas questões são colocadas, mas com
de escolha que uma mensagem pode ser um posicionamento diferenciado por parte de
seleccionada por um sistema. O famoso 1º Weaver. Com efeito, este matemático norte-
teorema de Shannon estabelece um paralelismo americano faz questão de distinguir três níveis
entre a medição de redundância (aspectos de produção de informação: 1- a interação de
ruidosos) num processo comunicativo – função sinais dentro de um canal comunicacional (o
H (o exemplo clássico para se compreender a nível de Shannon); 2- nível do emissor que emite
teoria de Shannon é a comunicação por telex) sinais informacionais por meio de um, ou vários,
e a medição de entropia num sistema físico canais comunicacionais; 3- nível do receptor
aberto ou fechado – função S (obviamente que dos sinais emitidos pelo emissor e recebidos
a entropia, em termodinâmica, também não se por um, ou mais, canais de comunicação.
preocupa com significações, pois estamos na Estes dois últimos níveis acarretam consigo
área física que estuda fenómenos térmicos e as dimensões da compreensão (codificação/
gasosos). descodificação) dos sinais, dos seus sentidos
Explicitemos melhor esta questão: para possíveis e da eficácia na transmissão desses
Shannon, informação era o que se conseguia sinais. Todos estes elementos nos dirão se há,
obter pela quantidade com que um signo ou não, uma mensagem. É que pode haver
ocorre dentro de uma mensagem, numa via de comunicação apenas com informação, em
comunicação mais ou menos ruidosa. Ele não sentido shannoniano, e sem mensagem.

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1.1 O BCL – Biological Computer Von Foerster (1960) fez em seguida a mesma
Laboratory (1958-1976) experiência mas com os cubos magnetizados
apenas numa das faces. O resultado foi uma
Este era pois o tipo de questões com que configuração de cubos ordenada, dado que
os pioneiros da Cibernética se encantavam e haverá cortes de redundância fornecida pelas
a sua construção maquínica no BCL tinha-as configurações obtidas com as faces dos cubos
presentes. Mas o fato de estes homens vindos magnetizados; consegue-se um conjunto de
da Matemática, Física e Engenharia eletrônica cubos que constroem algo com sentido para
terem apelidado o seu laboratório como um observador.
biológico deve-nos fazer pensar um pouco. A As lições epistemológicas desta experiência
principal razão para tal fato é que muitos deles de von Foerster são sobretudo duas: 1- quem
tinham estudado processamento informacional atribui sentido ao mundo é um observador, e
em sistemas vivos; tal acontecera no MIT, o sentido depende do contexto observacional
nomeadamente com o então jovem Humberto em que ele se encontra (quais as variáveis
Maturana que investigava com Wiener – e informacionais que ele possui, e qual o saber
McCulloch, entre outros – o processamento que ele detém, sobre aquilo que observa;
informacional da retina de rãs. O que este 2- a aleatoriedade (o lançamento dos dados
tipo de estudos indicava era que a informação ao acaso) pode produzir produtos ordenados
processava-se de modo diferente do modo (princípio de order from noise de von
como era processada nos sistemas físicos. A Foerster).
diferença parecia residir em que, de algum Nenhuma destas questões eram novas,
modo, os seres vivos construíam a informação pois ambas tinham sido já enunciadas e
que emitiam por processos de auto-regulação desenvolvidas no âmbito da Física, por Einstein
interna. Assim, por exemplo, no estudo da e Schrodinger, por exemplo, mas o impacto das
cor na percepção visual percebia-se que concepções de von Foerster foi muito grande
ela emergia na relação entre a estrutura na Biologia e (restantes) ciências humanas,
interna do olho para dentro (portanto, no seu talvez por na época a própria Biologia estar
enraizamento cerebral) com a retina (exposta mais focalizada nos modelos interpretativos
a factores ambientais, como a luz). que advinham da teoria da informação do
Perceber que tipo de processos eram esses, que das explicações astrofísicas, quânticas e
conseguir descrevê-los e posteriormente termodinâmicas. Voltando à Cibernética, o que
construir máquinas que os conseguissem von Foerster (1984) considerava importante
empreender era o principal sonho dos que no seu modelo era exatamente ele indicar-nos
trabalhavam no BCL, em Illinois. Quem o que os sistemas vivos poderiam eventualmente
terá perseguido, dentro do BCL, com mais atuar como os cubos magnetizados, e nós é que
persistência talvez tenha sido Heinz von não os sabíamos magnetizados, continuando
Foerster. na metáfora. Daí a importância de se conseguir
Enquanto Shannon tentara aferir valores construir máquinas que conseguissem criar
positivos informacionais pela anulação dos ordem a partir de desordem, de redundância
aspectos ruidosos (que são os redundantes, informacional. À magnetização dos cubos ele
no caso do telex, por exemplo), von Foerster começou a apelidar, auto-organização e nunca
(1960) vai tomar como desafio o não controle a equipe do BCL conseguiu construir uma
dos aspectos ruidosos, deixando-os atuar. máquina que se auto-organizasse de um modo
Criou um modelo qualitativo, com cubos tão complexo como a mais básica da estrutura
magnetizados em mais que uma face. Colocou-o do ser vivo, a célula.
dentro de uma caixa, fechou-a, abanou-a O fato de ele ter salientado a importância
e deixou rolar os cubos. Que configuração do observador (latu sensu, e não só no que
tomaram os cubos para um observador que respeita à dimensão visual) na atribuição
desconheça que os cubos estão magnetizados? da informação fornecida por um sistema
Em princípio, considerará que eles estão comunicacional abriu as portas para aquilo
desordenados (ou seja, aplicando Shannon, que ficou conhecido como a cibernética de 2ª
a quantidade de signos é muita, mas é ordem
totalmente redundante, pelo que a informação
é praticamente nula). .

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1.2 A Cibernética de 2ª Ordem passada do organismo observado. Ele registou


que os sistemas auto-organizados tendem a
Assim, passou-se a convencionar que a conservar processos de adaptação viabilizados,
cibernética de 1ª ordem se referia à tentativa de e a reproduzi-los, pelo que a comunicação
construção de máquinas que permitissem criar entre seres vivos constitui-se como fator mais
e transformar informação, enquanto a da 2ª importante que conteúdos informacionais.
ordem se dedicava a estudar a possibilidade de
criar máquinas que simulassem a complexidade Split the equilibrium in two, call one part ‘organism’
humana. Ainda que o propósito possa parecer and the other part ‘environment’: You will find that
o mesmo, von Foerster (entre outros) veio this ‘organism’ is peculiarly able to survive against
claramente salientar que havia diferenças a the disturbance from this ‘environment’, The degree
assinalar, como vimos. of adaptation and complexity that this organism can
develop is bounded only by the size of the whole system
[ . . . ] I may briefly mention the two different schools and by the time over which is allowed to progress
of thought associated with this problem, namely the towards equilibrium [ . . . ] (ASHBY, 1984, p. 258).
one which considers energy flow and signal flow as
strongly linked, single-chair affair (i.e. the message Outra questão levantada por este investigador
carries also the food, or, if you wish, signal and food foi sobre se os mecanismos de aprendizagem
are synonymous) while the other view-point carefully em sistemas auto-organizados possuíam,
separates these two, although there exists in this theory ou não, uma dimensão auto-avaliadora (o
a significant interdependence between signal flow and organismo avalia o que é bom, ou mau, para
energy availability. I consider that I do belong to the si?); esta questão deve ser, ou não, abordada
latter school of thought [ . . . ] (VON FOERSTER, 1960, de modo diferente se o sistema em causa tiver
p. 33-34) capacidade (auto)observacional? Este tipo de
perguntas era muito frequente no BCL, onde
No âmbito desta linhagem, temos também um dos seus mais conhecidos investigadores,
que salientar que Wiener sempre considerou Gordon Pask (1970) criou o axioma de incerteza
que a informação, em sistemas complexos, observacional, que estipula a não existência
não poderia ser concebida como sendo apenas de um isomorfismo entre o funcionamento
apreendida. A dimensão de inter-constituição de um sistema observado e a sua descrição
sistema complexo-nicho (nicho, que aos observacional (ele ligou este teorema à teoria
olhos de um observador, é um meio) era algo dos jogos de von Neumann). Estes são apenas
por si defendida e que colocava questões alguns dos imensos contributos da cibernética
inovadoras quanto à compreensão da memória da 2ª ordem para a compreensão do mundo
e da aprendizagem, e da comunicação humana vivo.
(linguagens articuladas). É neste âmbito que
ele distingue acoplamentos de tipo energético 1.3 Cognitivismo Cibernético, IA e
dos de índole informativa, dado que os Neo-Conexionismo
primeiros originam sistemas comunicacionais
que se constituem, e se mantêm, pelas leis Abordaremos brevemente estas linhagens
de regulação dos sistemas parciais entre si. teóricas, orientando-as em exclusivo para o
Os acoplamentos informacionais, no entanto, propósito do artigo: identificar continuidades
referem-se a trocas informacionais de sistemas e rupturas entre o mundo das linhagens
subordinados à regulação de um sistema informáticas e a teoria da autopoiesis no que
maior.1 respeita aos fenómenos de aprendizagem e
No que se refere à memória, não podemos aos de educação.
deixar de mencionar as contribuições de A partir dos anos 50 do século passado,
Ashby, que a considerava estreitamente é a corrente cognitivista que impera no
ligada à dimensão observacional, pois é um mundo cibernético, tendo-lhe sido associada,
observador, ou um auto-observador, que com alguma falta de rigor epistemológico, a
constrói uma representação mental da atuação Inteligência Artificial (IA). A corrente cognitivista
teve (tem) grande peso na Psicologia e
Biologia, tendo influenciado (e vice-versa)
1 Ter em conta nota 2.
o cognitivismo cibernético. Tem evoluído por

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caminhos algo diferentes entre si e o que aqui Perceptão e a Adaline), e ele é considerado
descrevemos prende-se sobretudo com as suas como o precursor da IA no âmbito da engenharia
concepções nos anos 50-80, não pretendendo electrónica.
de forma alguma esgotar tal problemática com Emergindo do cognitivismo cibernético, a IA
esta breve descrição interpretativa. apostou pois na construção de máquinas (de
A cognição é descrita como sendo um tipo digital e de tipo analógico2) que fossem
tipo de cálculo logarítmico que um sistema capazes de revelar inteligência, isto é, de
efetua, articulando as suas representações processarem representações internas. As
internas com aquilo que ele pretende obter RNA (redes neuronais artificiais) fazem parte
face a questões que tem que resolver. O de uma fase mais avançada desse projecto,
que queremos aqui ressaltar não é tanto a e os engenheiros da neurocomputação mais
dimensão teleológica que esta corrente possui, ortodoxos fazem questão de recusar qualquer
mas o fato de ela ter que se relacionar com ligação de RNA com as redes neuronais
um determinismo representacional, já que as naturais. Hoje existe um número imenso
representações internas são como que fórmulas de RNA, entre elas RNA auto-organizadas
que expressam corretamente signos base – a partir do trabalho de Kohonen (1982) –
formal de tipo inato. Essa linguagem básica e as estocásticas – onde se inclui “[ . . . ] a
formal inclui regras morfológicas e sintácticas máquina de Boltzmann, de Hinton e Sejnowski
precisas. Garante-se assim uma adequação (OLIVEIRA, 1999, p. 110).
das representações ao mundo representado, No entanto, um grupo de investigadores
dado o paralelismo formal (do mesmo tipo transdisiciplinar (onde se incluíram os biólogos
que o existente no interior de um sistema de Henri Atlan e Francisco Varela e um dos
lógica formal) entre a sintaxe (a representação investigadores do BCL, Gordon Pask) decidiu
enquanto tal, como signo, por exemplo) e a centrar-se na aprendizagem de RNA face a
semântica do signo, o seu significado. Alguns perturbações aleatórias, retomando algumas
dos nomes mais importantes desta corrente das questões em que se focalizava o BCL, mas
são Chomsky, Minsky, John e Ray McCarthy. num contexto muito desenvolvido, do ponto
Notemos que a questão da regulação de vista técnico-computacional. A este grupo,
da informação é aqui tratada de um modo a história da ciência cognitiva apelidou-o
quase perfeito, logicamente falando, dado de neoconexionistas, e dele derivam os
que ela resulta de atualizações contínuas de enatistas e os emergentistas. Os primeiros
programação existente a priori. Aqui não há ensaiaram a criação de sistemas resultantes
lugar para a possibilidade de a ordem emergir de componentes aleatoriamente distribuídos
do ruído, nem tampouco existe necessidade numa RNA, tentando estabelecer ligações
de pensar no observador, no que respeita aos possíveis com a construção semântica nos seres
significados da informação. vivos. A segunda decorre desta, tendo sido
Esta crença na similitude entre cálculo muito utilizada na compreensão da diferença
proposicional lógico-formal (puramente de nível existente entre mente e cérebro, já
dedutivo) e a atuação cerebral considerada que a produção da mente não corresponde à
inteligente, está na base da IA (e dos famosos
testes de QI).
2 As máquinas de tipo digital da época funcionavam
Neste conexionismo artificial, criaram-se
com um número reduzido de variáveis; as suas sa-
máquinas que conseguem resolver problemas ídas eram muito precisas e fiáveis, ainda que sem
formulados por equações, e as suas RNA margem de novidade informacional; um exemplo é
possuem todas um programa, onde está uma máquina de calcular com apenas as 4 opera-
ções básicas. As de tipo analógico eram aquelas que
armazenado, o mais claramente possível, possuíam uma multiplicidade muito grande de va-
a sequência de ordens a executar. Atingiu riáveis informacionais; estas máquinas conseguiam
o seu apogeu por volta dos anos 80, mais produzir muitos outputs informativos mas muito
pouco fiáveis. A internet assenta numa estrutura de
concretamente com o ciclo de conferências de
tipo analógico. É de salientar que estes conceitos são
Hopfield, entre 1982 e 1986. usados no atual mundo computacional de modo di-
Minsky (1969) vai apelidar o projeto do ferente do mencionado, dada a incrível evolução que
se verifica nesta área. G. Bateson (1979) utilizou es-
BCL de época romântica (onde se construíram
tes conceitos para se referir às linguagens articula-
máquinas que se tentavam assemelhar ao das humanas (verbais e escritas) e às cinestésicas e
funcionamento dos seres vivos, como o não verbais, respectivamente.

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soma dos processos cerebrais, nem tampouco dos seres vivos. Ora bem, era este tipo
dos seus componentes (dizer que a mente de explicação formal que a Cibernética
possui componente é algo, no mínimo, bizarro) proporcionava à Biologia: era possível construir
(VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1991). máquinas de grande nível de complexidade
(aproximando-se inclusive da complexidade
2 Cibernética e Biologia humana), desde que fossem programadas
por alguém exterior à própria máquina. A
causalidade de tipo retroactivo oferecido
Como já tivemos oportunidade de ir pela Cibernética exigia a existência de um
constatando pela leitura deste artigo, a relação programador da máquina, o que afastou os
da Cibernética com a Biologia não foi nunca embriologistas da Cibernética.
simples e linear. Proponho-me agora destrinchar No entanto, os embriologistas tinham noção
um pouco mais esta relação intrínseca, ainda de que os princípios explanatórios típicos do
que polêmica, começando por fazer uma breve mecanicismo clássico (newtoniano), como a
referência à Embriologia e à Biologia molecular explicação formal (ou linear), não lhes serviam,
para depois nos focalizarmos na Teoria da dado que o desenvolvimento dos embriões era
Autopoiesis. muito variado e bastante imprevisível; quando
um estado de um embrião acontece (e.g.:
gástrula) não é possível saber a que tipo de
2.1 A Embriologia órgão (ou tecido) ele dará origem.
É pois face a este impasse conceitual
A embriologia, na primeira metade do que vários embriologistas procuram ajuda
século XX, procurou estabelecer princípios em outras áreas, como vimos; alguns deles
explanatórios baseando-se na termodinâmica, esperavam encontrar um organizador biológico
sobretudo nos estudos de Boltzmann e básico, que explicaria o desenvolvimento
Prigogine (com a sua teoria das estruturas morfogenético dos seres vivos. A busca desta
dissipativas), bem como nas pesquisas de substância base organizadora de tipo físico-
filósofos como Henri Bergson e Whitehead. química foi levada a cabo por investigadores
A quem esteja menos familiarizado com a da escola de Bruxelas (liderados por Dalcq e
história da Biologia, esta ligação (de Weiss Pasteels) e nunca foi encontrada.
e Needham, entre outros) pode parecer
estranha, mas resulta de algo muito peculiar: 2.2 A Biologia Molecular
a embriologia emergira como área de ponta
dentro da Biologia após a árdua derrota das Sobretudo a partir dos anos 50, o cenário
teorias criacionistas face ao sucesso das da Biologia altera-se profundamente. O físico
concepções evolucionistas. Estudar embriões Francis Crick foi um dos pais da biologia
(humanos e de outras espécies) constituía o molecular, ao aplicar à biologia bacteriana à
aprofundamento do evolucionismo ao nível teoria da informação. Três fatores têm que
mais micro que era então possível. Destes ser imediatamente identificados: primeiro,
anos de poderio embriológico, resultaram Crick apoiou-se no livro de Schrodinger
dados extraordinários, como o fato de os What is Life?, onde se defendia que a ordem
embriões só poderem ser reconhecidos como biológica era de um tipo diferente da ordem
pertencendo a determinada espécie a partir termodinâmica; segundo, Crick utiliza a
de um determinado grau de desenvolvimento teoria da Shannon, mas misturando-a com
morfológico (OLIVEIRA, 1999). a de Weaver, ou seja, misturando a sintaxe
Ser evolucionista significa não fora ser com a semântica; terceiro, ao fazê-lo, ignora
vitalista, que conota as teorias criacionistas totalmente a dimensão observacional, quer
e as de geração espontânea (entre outras) do emissor, quer do receptor, tendo como
ao vitalismo aristotélico-cristão, pelo menos principal consequência que a interpretação
naquela época. Assim, o que o vitalismo do cientista sobre a informação produzida é
pressupõe, em Biologia, é a existência de uma considerada nula. A descrição observacional
entidade exterior (de tipo transcendental, corresponde isomorficamente ao que
usualmente) que funciona como princípio onticamente ocorre no objecto de estudo
explanatório da capacidade auto-organizadora observado.

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Com o estabelecimento da estrutura e da Daí se afirmar, epistemologicamente,


função do ADN, considerou-se que ele constitui que o evolucionismo possui uma vertente
a substância explanatória de características teleonómica, ou seja, o princípio explanatório é
transmitidas hereditariamente, de modo de tipo a priori (a manutenção da espécie pela
geracional. A relação entre a sequência de sua optimização), mas utilizando-o como se ele
bases no DNA e a sequência correspondente fosse ontologizado fisicamente, em vez de ser
da aminoácidos, nas proteínas, corresponde ao um princípio explanatório a priori criado por
código genético. As proteínas exprimem pois observador, ou atribuído a uma outra entidade
a informação onde seria mantida a sucessão transcendente ao mundo físico-químico do qual
de acontecimentos, raros e aleatórios, que emerge o vivo (o que o tornaria um princípio
constituíram as mutações favoráveis à espécie teleológico), mantendo-nos sempre na lógica
(OLIVEIRA, 1999). desta corrente atualmente paradigmática da
A teoria da informação aplicada à Biologia Biologia (MONOD, 1970, ATLAN, 1979).
constitui-se como princípio explanatório A partir dos meados dos anos 70,à biologia
realmente extraordinário pois conseguiu fundir molecular começam a ser feitas muitas críticas,
o evolucionismo com a genética de Mendel. sobretudo no que respeita às explicações que
A partir de então, temos cada vez mais pretende fornecer de fenômenos biológicos mais
pessoas no mundo convencidas que os que as complexos. Surgem novas teorias – como a da
identifica como seres vivos (e até humanos) é autopoiesis, em 1972 – , ganham relevo outras
o seu DNA, relações de substâncias puramente – como a de Atlan (1972) – e ressurgem outros
físico-químicas, havendo poucos que pensem domínios da Biologia, como a Embriologia.
por que é que o DNA do Tutankamon, que foi Destaco aqui Conrad Waddington que, desde
colhido no seu sarcófago passados milhares de 1947, utilizava o conceito epigenético para
anos, é o DNA de alguém morto, e o nosso definir o processo com que os fenótipos atuam
DNA é o de alguém vivo? O que distingue o na selecção da informação genética disponível
DNA de um ser vivo do de um cadáver tornado nos genótipos, optimizando as ontogenias dos
mero pó? Estas perguntas não incomodam os organismos com as perturbações ambientais.
biólogos moleculares, assim denominados, por Waddington direciona então a Biologia – e acaba
acreditarem que a explicação de tudo quanto por o conseguir mesmo em alguns sectores
é vivo e humano (como a ética, por exemplo) da biologia molecular – para a sua profunda
caminha largos passos para ser demonstrado conectividade com o meio, diminuindo a carga
emergir da interacção molecular intra-celular. hereditária que os biólogos moleculares mais
Neste contexto, o genótipo surge como a ortodoxos ainda defendem (ATLAN, 1979).
fonte ordenatória de cada ontogenia face às
perturbações a que cada indivíduo vai estando 2.3 A Teoria da Autopoiesis
sujeito. O carácter determinístico do genótipo
garante a realização do projecto teleonómico A primeira obra de Maturana foi publicada
da espécie, ou seja, como a manutenção da em 1972, numa edição limitada, em parceria
espécie surge como fio orientador da evolução com o seu aluno F. Varela, e resultava do
filogenética, essa finalidade é garantida pelo grupo de pesquisa coordenado pelo mestre, e
genótipo, em termos ontogénicos. O meio onde outros pesquisadores estavam também
apenas pode acionar, ou inibir, condutas integrados – sobretudo ao nível laboratorial –
possíveis de ocorrer pré-programadas, De Maquinas y Seres Vivos (traduzida, mas com
recorrendo-se pois claramente à metáfora um acrescento assinalado, para Autopoiesis
cibernética, mas evitando a questão vitalista, and Cognition, em 1980). Contém toda a teoria
ao assumir como programador o princípio de biológica da autopoiesis, e dela sobretudo me
optimização da espécie, de origem biológica, servirei aqui, pois muitas das obras posteriores
e não transcendente. “O ‘programa genético’ destes autores estabelecem pontes com outras
é na realidade um ‘invólucro genético’, um áreas, sobretudo ao nível das entrevistas que
conjunto hierarquizado de subprogramas, dos foram feitas a Humberto e Francisco.
quais só alguns são revelados em função das Antes de mais nada, começo por assinalar
condições iniciais e das interacções com o que a obra se assume como mecanicista, algo
ambiente” (STENGERS; PRIGOGINE, 1993, p. que tem sido ignorado por vários autores
117). das ciências sociais; ora bem, trata-se de

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uma obra de biologia e, nesse contexto, ser formalmente por Morin (1990) – , recusando
mecanicista significa não ser vitalista (como uma síntese dialética, em termos hegelianos
acima expliquei); o mecanicismo em Biologia (OLIVEIRA, 2003).
não corresponde epistemologicamente ao A recusa obsessiva de Humberto Maturana
mecanicismo moderno. Biologicamente, em utilizar a teoria da informação na teoria
significa que (tal como é mencionado na obra) por si construída – ou mesmo conceitos
se defende que as explicações fornecidas para aparentemente tão inofensivos como
a ocorrência e funcionamento de fenômenos informação – deriva da sua repugnância
biológicos só podem recorrer a componentes face à deturpação que a biologia molecular
e processos físico-químicos, e seus níveis de empreendeu da teoria de Shannon (1948) –
complexidade, sem recurso a qualquer entidade o mesmo posicionamento, mas mais leve,
que lhes seja transcendente ou transcendental. verifica-se nas obras do biólogo Henri Atlan;
Mas os seres vivos são máquinas de tipo clássico, a aproximação de Varela à linhagem das
com funcionamentos causais formais, e demais RNA, acima descrita constituiu, aliás, uma
características do mecanicismo newtoniano? das principais causas de afastamento teórico
Não, embora essas máquinas existam; são as dos autores da teoria da autopoiesis. Note-se
construídas pelos seres humanos e são de tipo que a definição de sistemas vem, de base, da
alopoiético. termodinâmica, muito antes de von Bertalanffy
As máquinas vivas são assim definidas (1950) a divulgar – e a criar de modo mais
por serem capazes de auto-produzirem os complexo e alargado.
componentes e processos que precisam Assim, o que caracteriza as máquinas
para surgirem, para se manterem e para se autopoiéticas com organização fechada e
complexificarem continuamente, ou seja, estrutura aberta é, antes de mais, a sua
são máquinas autopoiéticas (poiesis significa capacidade em se fazerem unidades, de se
produzir). Essa auto-produção não requer constituírem como sistemas sem intervenção
senão elementos físico-químicos e processos de nenhum programador externo – o que
auto-produzidos que as mantêm vivas e daí nenhuma máquina cibernética consegue – ;
serem máquinas, mas autopoiéticas. “Nuestro nelas, a interação que a estrutura, como as
enfoque será mecanicista: no se aducirán membranas celulares, possuem com os nichos
fuerzas ni princípios que no se encuentren en é metabolizada e integrada (ou rejeitada) na
el universo físico” (MATURANA; VARELA, 1972, organização do organismo vivo em função
p. 12) Caracterizam-se por serem fechadas de uma atuação selectiva organizacional
informacionalmente ao nível organizacional, – compare-se o conceito organização
ainda que abertas ao nível estrutural, sendo autopoiética com o padrão de G. Bateson
que este se subordina àquele. (1972) e compreenderemos melhor esta
Um sistema fechado distingue-se de influência assumida pelos cientistas envolvidos
sistemas isolados (que são solipsistas, e dos (BATESON, 1972). No entanto, essa atuação
quais os autores da autopoiesis se demarcam selectiva não é determinada a priori, mas
claramente) e dos sistemas abertos. Os antes se vai constituindo ao longo da ontogenia
fechados não trocam matéria directamente do organismo, o que afasta esta teoria da
com os nichos (ou meios, observacionalmente influência do cognitivismo cibernético.
falando), enquanto os abertos assim o Organismos vivos saudáveis seleccionam
permitem. O que torna a teoria da autopoiesis as perturbações a que as estruturas os
tão interessante é exatamente este carácter podem sujeitar. Quando não o conseguem
ambivalente na descrição do funcionamento fazer temporariamente, adoecem; quando
dos seres vivos, e tão confuso para quem deixam de o conseguir fazer, morrem. O
está habituado a mover-se em modelos sistema nervoso não capta informações; ele
epistemologicamente dualistas (no que respeita especifica as configurações metabolizadas pela
à origem, natureza e limites do conhecimento). estrutura do meio-nicho que são perturbações,
Por defenderem uma ambivalência contínua especificando também as mudanças que elas
entre a dimensão fechada e aberta (ainda que podem provocar no organismo. É a atuação da
a última subordinada à primeira) é que estes organização que assegura a auto-regulação de
autores são considerados como se movendo toda a complexidade de um ser vivo e Maturana
no paradigma da complexidade – enunciado sempre teve a preocupação de a justificar,

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enquanto biólogo, mas também enquanto a interconectividade entre sistemas vivos


colaborador do BCL. A recusa de Maturana face com organizações do mesmo tipo lógico (em
à utilização da teoria da informação é tão forte linguagem russelliana) permite que ocorram
que ele defende que todo o funcionamento acop(u)lamentos3 nas estruturas dos seres
biológico deve recorrer apenas aos princípios vivos.
biológicos que ele criou, sabendo complexificá-
los ao nível de todas as suas consequências. Cada vez que el comportamento de una o más unidades
Daí que nos seus textos, desde aqueles sobre es tal que hay un domínio en que la conduta de cada una
neurofisiologia da observação até aqueles es función de la conduta de las demás, se dice que están
sobre a moral humana, nunca seja utilizada acopladas en esse domínio. El acoplamiento surge como
qualquer metáfora informacional. resultado de las modificaciones mutuas que las unidades
Existem muitos investigadores a usar a interactuantes sufren, sin perder su identidad, en el
teoria da autopoiesis para a compreensão de transcurso de sus interaciones (MATURANA; VARELA,
mundos construídos pelos humanos, e tal é 1972, P. 66-67).
legítimo desde que não nos esqueçamos que
a utilização da teoria da autopoiesis não pode Do ponto de vista dos organismos acop(u)lados,
nunca ser desvinculada da dimensão biológica o que se verifica é a constituição de uma unidade
implícita em qualquer atividade humana. composta, e não a existência de dois sistemas
Uma das maiores contribuições que trocando informações, criando uma mensagem
esta teoria proporcionou na Biologia, e de um emissor para um receptor. É sobretudo
na epistemologia em geral, foi acentuar a nesta interação contínua e simultânea – e não
importância dos processos físico-químicos sequencial e por etapas, como em Piaget – que
auto-produzidos pelos organismos em vez de os seres vivos aprendem, mas sempre auto-
salientar a importância de alguns componentes regulados pela manutenção autopoiética do
(como causa primeira, como DNA, na Biologia sistema, enquanto tal. Em organismos acop(u)
molecular). Se os embriologistas se tivessem lados, uma perturbação num dos sistemas da
focalizado mais no dinamismo processual do unidade composta afetará o outro sistema,
que na busca de uma substância base auto- ainda que com intensidade diferenciada.
organizadora, talvez a biologia molecular O que acabamos de explicitar corresponde ao
nunca viesse a ocupar tanto poder. primeiro princípio da teoria da autopoiesis:
A estrutura aberta dos organismos vivos aprender é viver; em sistemas vivos de terceira
permite compreender que existe interação ordem (eg.: humanos, abelhas, formigas)
com o meio; é ela que leva a que a maioria vive-se sobretudo em acop(u)lamentos, em
das teorias biológicas considerem que os seres comunidades; são sistemas de terceira ordem
vivos são sistemas abertos (trocam matéria por neles a identidade biológica de cada
e energia com o meio). Acontece porém, na organismo integrar a sua vida comun-itária.
teoria da autopoiesis, que como a estrutura Assim, os seres humanos aprendem vivendo
se encontra subordinada à organização nas comunidades com as quais partilham
autopoiética, esta especifica o tipo de matéria sentidos, construindo mundos.
e energia que pode ser trocada pela estrutura; Note-se que a concepção cognitivista na
ao ser trocada, é imediatamente metabolizada Cibernética anula a possibilidade da existência
e portanto não há, do ponto de vista interno de unidades compostas sujeito-nicho dado
de qualquer organismo vivo saudável – que que as representações internas do sistema
significa estar em equilíbrio homeostático em determinam o seu funcionamento, impedindo
todas as suas dimensões (OLIVEIRA, 2004) a aprendizagem.
–, nem entrada de matéria, nem de energia, O segundo princípio da teoria autopoiética –
puras. Assim, o funcionamento processual das tudo o que é dito, é dito por um observador
máquinas autopoiéticas é de fora para dentro
e de dentro para fora, simultaneamente, com
controle destes processos sobre aqueles. 3 Há cerca de 20 anos que investigo e publico sobre a teoria
Esta capacidade de selecionar o tipo de da autopoiesis. Tenho utilizado as palavras acopulamento e
acoplamento, em vez de apenas a última; este uso pretende
perturbação a que se pode estar sujeito está diferenciar os acoplamentos energéticos dos informacionais,
que Wiener distinguiu, dado que aqueles descritos pela teo-
na base da constituição mútua de dois sistemas ria da autopoiesis são sobretudo os de tipo energético (OLI-
vivos, observacionalmente falando. De fato, VEIRA, 1993, 1996, 1999, 2004).

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– recupera claramente as pesquisas da programadas. O cérebro humano existe como


Cibernética de 2ª ordem, acima expostas parte de um corpo que actua autopoieticamente,
sinteticamente, em especial o trabalho de de modo a manter o sentido que a sua
von Foerster e de o de Pask. Assim, como existência possui para o organismo em causa.
estes autores, entre outros, demonstraram, Tal tem sido especialmente estudado no que
não existe uma correspondência ôntica respeita à percepção visual; os desenhos e
entre aquilo que se descreve e aquilo que pinturas de Escher e Magritte, por exemplo,
é descrito por um observador. Maturana e testemunham a actuação activa do observador
Varela dedicaram muita da sua investigação a naquilo que vêem representado nessas obras.
estudar o mecanismo da observação humana e Essa multiplicidade de leituras decorre das
indicaram-nos também a multiplicidade causal vivências que fomos tendo ao longo da vida, dos
de que ele decorre. O que conseguimos fazer significados que lhes atribuímos e como isso foi
com a capacidade observacional é lidar com as sendo metabolizado neurofisiologicamente em
nossas representações mentais como se elas todo o nosso organismo (VARELA; THOMPSON;
fossem entidades ontológicas; relacionando- ROSCH, 1991).
as infinitamente entre si, dedutiva ou Da capacidade observacional de unidades
abdutivamente, conseguimos construir mundos compostas pode resultar aprendizagem,
fantásticos sem suporte ontológico, mas nos quando o que acontece ao nível observacional se
quais cremos veementemente. Estes estudos inscreve no nosso padrão auto-organizacional,
constituíram um duro golpe para as concepções reforçando-o, ou flexibilizando-o.
cibernéticas de tipo cognitivista. A maior parte dos atos educativos são de tipo
observacional, mas podem produzir muito
3 Conclusões pouca aprendizagem no educando dado que a
organização do educando é que especifica o que
é pertinente para a sua organização, abrindo-
O que não podemos esquecer é que tudo o se então estruturalmente para esses tipos de
que se passa num observador, está sujeito ao fenômenos, de modo a que o organismo do
primeiro princípio – aprender é viver –, dito de educando (onde se inclui a sua mente) possa
outro modo: a existência precede e auto-regula aprender. O modo mais fácil de isso ocorrer
o pensamento, em organismos saudáveis. Isso é quando o educador (formal, não formal, ou
não significa que aquilo que o pensamento informal) se acop(u)la estruturalmente com
produz é inimigo da vivência emotiva, afetiva, o educando, passando ambos a existirem
sensorial; pelo contrário, significa que lhes como unidades compostas; por isso é que
está subordinado. Por isso é que aquilo aprendemos muito mais com os amigos do que
que lemos, que pensamos, que criamos com os professores, por exemplo.
mentalmente (como fórmulas matemáticas e Convém também não esquecer que muito
sinfonias) nos pode marcar para sempre, do daquilo que observacionalmente podemos
ponto de vista existencial, se for enquadrado considerar como desordem, ou até ruído, para
na significação organizacional que construímos o educando, pode ser fonte de aprendizagem
até então (e que constitui o nosso padrão). – aplicando aqui o princípio de von Foerster
Pela mesma razão, muito do que lemos, de order from noise –, dado que algo avaliado
pensamos e criamos mentalmente é ignorado como estranho e perturbador para um
no momento seguinte pelo nosso organismo, observador/educador pode revelar-se fecundo
dado não ter sido registado como importante para o mundo de sentido construído até então
para a manutenção da nossa autopoiesis e/ pelo educando. Não nos deveríamos nunca
ou das unidades compostas autopoiéticas que esquecer, enquanto educadores, que foi caindo
constituímos. A capacidade auto-observacional que aprendemos a andar e balbuciando sons
complexifica todo este processo de modo assaz desarticulados que aprendemos a falar.
interessante mas não se dispõe aqui de espaço O contrário pode porém também ocorrer:
para abordar tal questão. informação transmitida de modo muito
Assim, o cérebro humano não é um computador organizado e esquematicamente comunicada
que processa informações que lhe chegariam pode revelar-se inútil face a pessoas que estão
por input, processamento que ocorreria a partir habituadas a aprender em contextos múltiplos,
das representações internas que lhe foram como os adolescentes urbanos que lêem, vêem

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televisão e ouvem música ao mesmo tempo. que nos deixem nele entrar, e de seguida pode
A única maneira que possuímos de perceber ser que nos sintamos lá bem, ou não. Caso
em que mundos de significações vivem os consigamos este acop(u)lamento estaremos
educandos (nossos filhos, nossos maridos, a construir mundos comuns, flexibilizando
amigos, professores, alunos, etc.) com os aqueles já existentes com as contributos que
quais queremos comunicar, é passarmos a trazemos das nossas vivências em outras
fazer parte desse mundo; para tal, é preciso comunidades (OLIVEIRA, 2008).

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Recebido em agosto de 2009


Aprovado para publicação em setembro de 2009

Clara Costa Oliveira


Prof. Associada; CIED - Universidade do Minho (Portugal); email: claracol@iep.uminho.pt

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