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Boletim Informativo da Rede VIGIFLUOR

Uma iniciativa da Rede Brasileira de Vigilância da Fluoretação da Água de Abastecimento Público


ISSN: 2675-8326 ⚫ Volume 7 ⚫ Nº 5 ⚫ 2023
Contato: Secretaria Executiva: cecolusp@usp.br

Fluoretação da água:
argumentos contrários no século XXI
Em artigo especial para o Boletim da Rede Vigifluor,
Paulo Capel Narvai e Marco Antonio Manfredini, pesquisadores
vinculados ao CECOL/USP, o Centro Colaborador do Ministério da Saúde
em Vigilância da Saúde Bucal, analisam argumentos que circulam em
redes sociais digitais e outros veículos de alcance massivo, relacionados à
fluoretação da água de abastecimento público. Uma dessas postagens,
feita em outubro de 2023 pelo coordenador estadual de Saúde Bucal
do Rio Grande do Norte, reproduz argumentos que aparecem frequentemente
em sites e blogs mantidos por grupos sociais conspiracionistas e que
se opõem à fluoretação adotando táticas de comunicação de massa
preconizadas por grupos antivacinistas, com adaptações para a
tecnologia da fluoretação da água. Causam enormes prejuízos tanto à
cobertura vacinal quanto à fluoretação. No quadro abaixo, a descrição dessas
táticas comunicativas, descritas originalmente por Chuck Lasker

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FLUORETAÇÃO DA ÁGUA:
ARGUMENTOS CONTRÁRIOS NO SÉCULO XXI
Paulo Capel Narvai
Marco A. Manfredini

“Não grite. Apenas melhore seus argumentos”


Bispo Desmond Tutu (1931-2021), Prêmio Nobel da Paz em 1984

“O problema não é que as pessoas tenham opiniões, isso é ótimo. O drama é que as pessoas
tenham opiniões sem saber do que falam!”
José Saramago (1922-2010), Prêmio Nobel de Literatura em 1998

Baixo Guandu, 70 anos


Em outubro de 2023, com a presença do A fluoretação da água nascida no Espírito
governador do Estado, de representantes do Santo logo ganhou a companhia de Marília, SP
Ministério da Saúde, de várias autoridades (1956), Taquara, RS (1957) e de Curitiba, PR (1958)
públicas e de pesquisadores científicos, foi e, consolidando-se nos anos 1960, foi instituída
comemorado no Espírito Santo, e em todo o como política pública em 1974, por meio da Lei nº
Brasil, o aniversário de 70 anos do início da 6.050, de 24 de maio. Mas as diferentes
fluoretação das águas de abastecimento público condições e características do saneamento em
no Brasil, ocorrido em 31 de outubro de 1953, em nosso país têm produzido efeitos negativos
Baixo Guandu, no Vale do Rio Doce. Uma justa também sobre a aplicação da fluoretação no
comemoração, aliás, pois essa tecnologia de Brasil, que registra importantes desigualdades
saúde pública, que consiste em ajustar os teores regionais, conforme mostra a Figura 1.
naturalmente existentes de fluoretos nas águas, Não obstante as desigualdades, o Brasil é
até que se situem em torno do valor aceito como
um dos líderes mundiais na cobertura da
ótimo para prevenir cárie dentária, tem feito
fluoretação da água, ficando em segundo lugar
muito pela saúde bucal de brasileiros que a ela
na classificação global liderada pelos Estados
têm acesso. O êxito no emprego da fluoretação
Unidos, registrando, segundo o Ministério da
no Brasil é amplamente reconhecido, seja por
relatos de experiências de especialistas dessa Saúde, mais de 100 milhões de pessoas
área do SUS, seja pela grande quantidade de beneficiadas em todo o país. Por essa razão, a
artigos científicos, livros e capítulos de livros fluoretação das águas é parte integrante das
publicados no Brasil e no exterior. A iniciativa de diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal
Baixo Guandu se deu apenas sete anos após a de (PNSB) em implementação no país, instituída
Grand Rapids, nos Estados Unidos, a pioneira em pela Lei nº 14.572, sancionada em 8 de maio de
nível mundial a fluoretar suas águas. Profissionais 2023 pelo presidente da República. A medida é
brasileiros de odontologia e saúde pública uma típica intervenção de saúde pública, adotada
daquele período foram, portanto, ativos, atentos para prevenção da cárie dentária, pois apresenta
e competentes para se manter em sintonia com o um poder preventivo de cerca de 60%, após um
que havia de mais avançado no mundo no âmbito período de 10 anos.
da ciência e das práticas de saúde pública e
realizar ações relevantes na área de saúde bucal
no Brasil.

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Figura 1. Unidades Federativas segundo a porcentagem de cobertura da fluoretação da água em
municípios com mais de 50 mil habitantes, na segunda década do século XXI.

Fonte: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/181

Baixo Guandu, não!


O enfrentamento das desigualdades na pública, uma das mais longevas da saúde pública
fluoretação da água não parece estar, porém, na brasileira, que atravessou enormes dificuldades
agenda política de muitas lideranças nessas sete décadas, mas se manteve e se
odontológicas e de saúde pública. As expandiu, de uma manifestação contra a
desigualdades são reais e o descumprimento da fluoretação feita pelo coordenador estadual de
lei faz com que milhões de pessoas sejam saúde bucal do Rio Grande do Norte (RN). Não se
prejudicadas. As populações das regiões norte e tratou, nesse caso, das habituais perorações
nordeste são as mais atingidas. Por isso, foi com antiflúor costumeiras na internet, em sites e
surpresa e um certo espanto que tomamos redes sociais monetizadas, em busca apenas de
conhecimento, quando se comemoravam em audiência e falsas polêmicas. A postagem, feita
outubro de 2023 os 70 anos dessa política no grupo “Dentistas Pela Democracia”, abordou

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vários aspectos da Política Nacional de Saúde provavelmente, o mais significativo da
Bucal (PNSB)/Brasil Sorridente e se inicia com o odontologia em saúde pública no Brasil. A
autor se apresentando: “Olá, sou (...) servidor experiência de Baixo Guandu não foi, ao
público da secretaria Estadual da Saúde do RN.” contrário do que se pode pensar, um caminhar
Tendo em vista se tratar de um coordenador em linha reta, sem problemas e dificuldades. Bem
estadual de Saúde Bucal, a postagem é relevante ao contrário. Não foi nada fácil manter a
e contém afirmações que, se não forem fluoretação em Baixo Guandu nos últimos 70
questionadas, podem ganhar força na opinião anos. Houve, como ocorreu em dezenas de
pública e, inclusive, no plano institucional. Como municípios, pelo menos uma interrupção por um
foi uma postagem extensa, reproduzimos a longo período, nos anos 1980 e 1990, da
seguir apenas o trecho relativo à fluoretação: fluoretação em Baixo Guandu, conforme a notícia
do Jornal do Sinodonto, edição de outubro de
“(...) Deixo claro que respeito a ciência
1995, que reproduzimos na Figura 2. Mas
abomino o negacionismo e acompanho
suspeita-se que, durante a ditadura civil-militar
desde os anos 1980 as conjunturas políticas
(1964-1988), interrupções também teriam
do nosso país e os caminhos percorridos
ocorrido. Foi a ação política e institucional de
pela odontologia. (...) Agora vou comentar
profissionais de odontologia e de saúde pública
a proposta de fluoretação das águas de
do Espírito Santo, que enfrentaram a situação de
abastecimento, que pode ser bom para
interrupção, denunciando-a e agindo junto às
São Paulo, pro sudeste ou pro Sul. Resgatar
autoridades capixabas, que possibilitou a
pauta dos anos cinquenta ou sessenta é
retomada dessa medida na cidade. Relatórios de
nossa única alternativa na prevenção da
pesquisas de epidemiologia da cárie, realizadas
cárie? Estão comemorando o que? É a
pelas Universidades Federal do Espírito Santo
panacéia da Saúde bucal? Não há outra
(UFES) e de São Paulo (USP), foram decisivos
alternativa? O que é bom para o sul é bom
para mostrar os efeitos deletérios da interrupção
para Nordeste e para a Amazônia? No
da fluoretação e, em seguida, os benefícios que
semiárido vamos fluoretar água dos carros
vieram com sua retomada, conforme se pode
pipa? Da transposição do São Francisco? Os
constatar na Figura 3. Já no começo do século
rios secaram. Aonde bebo? Aonde o boi
XXI, pesquisadores da Universidade Estadual
bebe? Não avançamos nada? A fluoretação
Paulista (UNESP), do campus de Araçatuba,
é também a panacéia mundial? Estou
avaliaram a situação epidemiológica da cárie na
atento, querendo contribuir, mas aqui
população de Baixo Guandu, em 2005.
estamos cansados, dessas propostas que
Constataram que enquanto no Brasil, na idade-
sabemos ser inexequíveis. Pronto. Tem
índice de 12 anos, apenas 23,6% das crianças não
mais coisas mas por enquanto é isso. PS: Se
apresentavam a doença, em Baixo Guandu essa
alguém for defender a fluoretação não
porcentagem atingia 46,8%. A esse respeito, cabe
comece falando da experiência do baixo
registrar a importância, decisiva, de ações de
Guandu.”
vigilância sanitária e de vigilância epidemiológica,
pois detectam efeitos da ausência da medida
Baixo Guandu, sim quando ela deve ser executada ou quando a
execução não vem sendo feita a contento. É
Começamos justamente não atendendo ingenuidade, portanto, supor que no Sul e no
ao pedido contido na frase final da postagem, Sudeste as coisas acontecem apenas porque,
pois começamos este artigo falando da afinal, é o Sul e o Sudeste. A geografia,
experiência de Baixo Guandu. E o fazemos por despolitizada, não explica coisa alguma.
reconhecermos naquele fato de interesse
sanitário e na referida comemoração, um fato
extraordinário, de grande importância e,

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Figura 2. Reprodução de notícia publicada no Jornal do Sinodonto/Espírito Santo, em 1995.

Fonte: Jornal do Sinodonto, out 1995.

Figura 3. Índice CPOD aos 12 anos idade em diferentes anos em Baixo Guandu, ES,
no período de 1953 a 2006.

Fontes: Freire & Freire 1961, Chaves 1960, Dantas 1998, FSP-USP/Sinodonto-ES 1999; 2003, Casotti 2006.

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Não apenas Baixo Guandu
O argumento que se refere à fluoretação o Sul e o Sudeste, com suas limitações e muitas
como uma tecnologia que pode ser boa para São dificuldades operacionais. Aliás, vem sendo boa
Paulo, o Sudeste ou o Sul, mas não seria boa para para o Nordeste, a julgar pelos níveis de
o Nordeste e a Amazônia parece, em princípio, prevalência de cárie em capitais nordestinas que
cabível. Afinal, são contextos macrorregionais fluoretam as águas (como Aracaju, por exemplo)
com muitas diferenças. Mas, no caso da em comparação com as que não o fazem (como
fluoretação, qual argumento sustenta o Natal e João Pessoa, por exemplo), conforme
questionamento de que o bom para o Sul não mostra a Figura 4. Decerto que nessas cidades,
seria bom para o Nordeste? Não foi apresentado muitas outras variáveis precisam ser
qualquer argumento. Pode-se afirmar, porém, consideradas para compreender os diferentes
com base em conhecimentos científicos, que se níveis do índice CPOD. Não obstante, uma dessas
trata do oposto. Nesse caso, a tecnologia da variáveis é a fluoretação das águas, com a força
fluoretação, por suas características (de ajustar preventiva descrita na literatura científica. A
algo que naturalmente ocorre nas águas), pode, geografia, despolitizada, reiteramos, não explica
e em nosso entender deve, ser tão boa para o coisa alguma.
Nordeste e o Norte, quanto vem sendo boa para

Figura 4. Evolução do índice CPOD aos 12 anos de idade, no período 1996-2010 em


João Pessoa, Aracaju e Natal.

Fonte: elaborado pelos autores a partir de dados do Ministério da Saúde,


divulgados em 1997, 2004 e 2010.

Outro argumento que não encontra se refere à fluoretação como uma tecnologia que
sustentação na ciência contemporânea é o que decorreria de uma política de “resgatar pauta dos

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anos cinquenta ou sessenta” como “nossa única educação, pois além da comprovada eficácia
alternativa na prevenção da cárie”. Em primeiro dessa tecnologia, sua aplicação leva e uma
lugar, ninguém argumenta que o emprego da economia média de US$ 32 por pessoa por ano,
fluoretação seria a “única alternativa na ao evitar gastos com assistência odontológica.
prevenção da cárie”. Ao contrário, o que é Embora o argumento do “alto custo” da
fartamente reiterado na literatura é que a fluoretação da água não tenha sido utilizado no
fluoretação não é um equivalente a uma vacina caso analisado neste artigo, cabe registrar o
contra a cárie, pois a cariologia e a epidemiologia slogan adotado pelo Estado do Mississippi, nos
seguem reiterando que essa doença tem causas EUA, de que o custo para manter uma pessoa
multifatoriais e que não há um fator de risco beneficiada pela fluoretação ao longo de toda a
específico a ser enfrentado. Por isso, essa sua vida é menor do que o de uma restauração
afirmação não contribui para aprofundar o dentária.
debate sobre fluoretação. No Brasil, país autossuficiente na
Quanto à fluoretação ser uma “pauta dos produção dos insumos necessários à fluoretação
anos cinquenta ou sessenta” trata-se, das águas, o custo da fluoretação é compatível
certamente, de desinformação, pois está em com os custos operacionais do tratamento da
curso, nos anos 2020, um fecundo debate, no água e, para os usuários, praticamente não
campo científico e nas práticas sanitárias, no alteram os valores das tarifas de água.
Brasil e no mundo, sobre o papel da tecnologia Uma revisão sobre custos e benefícios da
da fluoretação das águas na redução de fluoretação, que levou em conta 14 pesquisas
desigualdades intraurbanas, interurbanas e inter- cujos resultados foram publicados entre 2001 e
regionais, como o que se trava atualmente no 2017, realizadas em sete países (EUA, Brasil, Nova
Canadá, envolvendo as cidades de Edmonton Zelândia, Canadá, Chile e África do Sul), concluiu
(fluoretada) e Calgary (não fluoretada). No site que o custo per capita anual da fluoretação
do CECOL/USP, o Centro Colaborador do variou de US$ 212,00 em comunidades com 50
Ministério da Saúde em Vigilância da Saúde Bucal, indivíduos, a US$ 0,03 em locais com mais de 10
estão disponíveis informações que indicam que a milhões de habitantes. Os gastos evitados com
fluoretação é uma pauta contemporânea, como cuidados odontológicos variaram de US$ 0,00,
revela o anúncio feito em 6 de setembro de 2023 em comunidades de pequeno porte
pela cidade de Nottingham, na Inglaterra, de que demográfico, a US$ 159,00 em localidades de
“dará início à fluoretação das águas de grande porte populacional. As evidências
abastecimento público” e a notícia, divulgada científicas indicam que, mesmo na perspectiva de
pelo The Guardian, de que o Reino Unido quer múltipla exposição ao flúor, a fluoretação
expandir a cobertura da fluoretação da água para continua sendo uma importante tecnologia de
prevenir cárie dentária e diminuir desigualdades saúde pública, uma vez que, na maioria dos
na distribuição da doença. cenários, o seu custo foi menor que os custos
Nos Estados Unidos da América (EUA), o com tratamentos odontológicos.
documento Healthy People 2030, fixa como um Estas são apenas algumas informações
objetivo nacional de saúde alcançar a meta de que se contrapõem à noção, equivocada, de que
77% da população daquele país com acesso à água a fluoretação seria algo anacrônico. Ao contrário,
fluoretada em 2030. Essa porcentagem era de ela é atualmente, central no debate sobre
65% em 2000 e 73% em 2018. Em notícia desigualdades e iniquidades em saúde bucal e
publicada no dia 12 de junho de 2023, o Centro sobre eficácia alocativa de recursos públicos em
para Prevenção e Controle de Doenças (CDC), sistemas de saúde que consideram o conceito
vinculado ao governo dos EUA, reiterou que a ampliado de saúde.
fluoretação da água de abastecimento público é Como o Brasil é um dos países que, hoje,
a maneira mais eficiente e econômica de fornecer graças ao trabalho incansável de muitos
flúor a todos em uma comunidade, profissionais de odontologia e de saúde pública,
independentemente de idade, renda ou está na vanguarda mundial no emprego da

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tecnologia de fluoretação das águas, há sim iniciada em Baixo Guandu. Dizia-se algo como “já
muito a comemorar. Não se trata apenas de que as pessoas não têm acesso à água, então o
Baixo Guandu. Este é um assunto de interesse melhor é fluoretar o sal, pois o sal é consumido
mundial. É muito bom termos o que comemorar. por todos”. Além de não se sustentar no plano
ético, o argumento chega a ser perverso, pois
aceita, tacitamente, que quem não tem acesso à
“Não avançamos nada?” água, pode seguir... sem acesso à água. Era, como
Na referida postagem, o autor pergunta se escreveu à época, a prática de “quebrar o
“No semiárido vamos fluoretar água dos carros termômetro e não enfrentar a febre”.
pipa? Da transposição do São Francisco? Os rios Na Paraíba, a fluoretação das águas das
secaram. Aonde bebo? Aonde o boi bebe? Não dez cidades de maior porte demográfico (João
avançamos nada?”. Pessoa, Campina Grande, Santa Rita, Bayeux,
Ninguém propõe fluoretar microssiste- Sousa, Cabedelo, Cajazeiras, Guarabira e Sapé)
mas, ou soluções alternativas de abastecimento corresponderia a beneficiar 44,3% da população.
de água. Nessas situações, como também nas Hoje, nenhuma conta com esse benefício.
águas provenientes de poços artesianos, em O que significa, nesse contexto, a
condomínios fechados, o cuidado requerido dos indagação “Não avançamos nada?”?
órgãos de vigilância sanitária é que, antes de Na 17ª Conferência Nacional de Saúde
distribuir qualquer água para consumo humano, (CNS), realizada em 2023, foi aprovada proposta
os teores de fluoretos naturalmente existentes favorável à medida (“Ampliar o acesso à atenção
nas águas sejam aferidos, para assegurar à integral da saúde bucal e investir em ações como
população água segura para consumo humano. a fluoretação das águas...)”, com base na decisão
Sem desconsiderar a importância do da Conferência Nacional, Livre e Democrática de
acesso à água fluoretada por todas as pessoas Saúde Bucal de indicar a “ampliação do acesso à
beneficiadas pelos sistemas de abastecimento água fluoretada” no Brasil.
público de água (SAA), cabe ponderar que, no Proposições em defesa da fluoretação da
caso específico do RN, apenas a fluoretação dos água têm sido aprovadas em todas as
SAA das dez cidades com maior porte conferências nacionais de saúde, desde a 8ª CNS,
demográfico no estado (Natal, Mossoró, realizada em março de 1986. Naquele ano, em
Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Macaíba, outubro, e como parte do processo da 8ªCNS, foi
Ceará-Mirim, Extremoz, Caicó, Assú e São José de realizada a 1ª Conferência Nacional de Saúde
Mipibu) corresponderia a beneficiar 1.772.263 Bucal (CNSB). No relatório final da 1ªCNSB os
habitantes. Ainda que as coberturas dos SAA não delegados, dentre os quais representantes da
atinjam 100% nessas cidades, a cobertura sociedade civil, incluindo trabalhadores,
potencial do benefício preventivo atingiria 53,7%, lideranças comunitárias e de movimentos sociais,
mais da metade de toda a população potiguar. aprovaram proposta denunciando o
Hoje, nenhuma conta com esse benefício. Cabe “descumprimento da legislação vigente no que
registrar que o RN, com 85,9%, é o estado da se refere à fluoretação das águas”.
região Nordeste com a maior porcentagem de Na 2ª CNSB, realizada em 1993, os
população servida por rede de abastecimento de delegados afirmaram ser “inadmissível o
água. comportamento adotado pelo poder público
Nesse contexto, chama a atenção o quanto à fluoretação das águas de
argumento contrário à fluoretação, que se abastecimento público, condenando 70% da
assenta na situação sanitária de 14,1% da população brasileira a sobreviverem sem esse
população. Argumentação similar foi usada benefício” e aprovaram proposta que pedia “o
durante o governo Fernando Collor (1990-92) cumprimento da Lei 6.050/74 que obriga a
quando se pretendeu implantar no Brasil a fluoretação das águas de abastecimento pelo
fluoretação do sal de cozinha, em detrimento da poder público” pedindo que seu controle
estratégia que, mais de três décadas antes, fora sanitário fosse “exigido como direito básico de

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cidadania em todos os municípios” e que a teores de fluoretos em águas utilizadas para
“Coordenação Nacional de Saúde Bucal do consumo humano, está a suposição de que “flúor
Ministério da Saúde deverá prestar contas na água é uma medicação em massa”. Trata-se de
anualmente sobre a situação da fluoretação no um erro crasso que, cometido em meados do
país, a partir de dados coletados através de século XX segue na agenda, esta sim uma pauta
coordenações odontológicas de estados e anacrônica, de quem pensa defender “a
municípios, ou órgão similar”. Além disso, liberdade”, combatendo “quem quer colocar
indicaram que “os Conselhos de Saúde deem veneno na água”. Também frequentemente esse
especial atenção ao cumprimento da lei de erro é acompanhado de uma menção, que se
fluoretação das águas” e que deveriam valer-se pretende erudita, à mitologia grega e a Panaceia.
“dos dados fornecidos pelo Sistema de Vigilância Há nisso, portanto, um duplo erro.
Sanitária, para exercer rigorosa fiscalização”. O primeiro é a ideia despropositada de
Propostas de igual teor foram aprovadas “medicação em massa”, pois fluoretos ocorrem
também na 3ªCNSB, realizada em 2004, em que naturalmente em águas, com diferentes teores
se pediu “o cumprimento da Lei n.º 6.050/1974 dependendo de cada localidade, e nada têm de
(...) nas esferas federal, estadual e municipal medicamentos. Praticamente não há águas
realizando campanhas de esclarecimentos à isentas de flúor, ou fluoretos. O que a tecnologia
população sobre a importância do consumo de da fluoretação faz é, partindo desses teores
água fluoretada, tanto da rede pública como da naturais, proceder ao ajuste dos níveis de
comercializada (...)”, bem como “melhorar a fluoretos nas águas, para que sejam seguras ao
qualidade do tratamento da água garantindo a consumo humano e contenham fluoretos em
sua fluoretação e ampliar a rede de distribuição quantidades tais que produzam o efeito
visando à universalização do abastecimento em preventivo contra a cárie dentária. De modo
todos os municípios dentro das normas legais geral, esse ajuste deixa as águas com as
vigentes”, considerando-se necessário “garantir quantidades de fluoretos similares às contidas
a qualidade da água e a manutenção do nível nas águas dos mares e oceanos. Nada mais
ótimo de flúor, não somente nas áreas urbanas, natural; nada mais oposto à ideia de
mas também nas comunidades rurais que não medicamento ou remédio. A tese da “medicação
são assistidas pelas estações de tratamento de em massa” é um conceito que não resiste ao
água, com emissão de relatórios regulares, por exame de um bom estudante do ensino médio.
parte dos gestores, aos órgãos competentes, Mas é utilizada por espertalhões em busca de
inclusive aos conselhos de saúde”. audiência, para atemorizar incautos e criar pânico
A questão ética posta pela postagem sanitário em pessoas de boa-fé, mas ignorantes.
contrária à fluoretação diz respeito, portanto, ao O segundo erro, derivado do primeiro, diz
fato de que o descumprimento da lei, e de tudo o respeito a Panaceia.
que vem sendo recomendado há várias décadas Asclépio é na mitologia grega um
por conferências e conselhos de saúde, está semideus, filho de Apolo com a mortal Corônis.
sendo proposto, supostamente, em nome dos Sua habilidade em curar, utilizar ervas e realizar
14,1% que não dispõem de água proveniente de procedimentos cirúrgicos projetou sua fama,
SAA. Há, portanto, a aceitação, tácita, de que passando-se a crer que seria capaz até mesmo de
85,9% da população pode deixar de se beneficiar trazer os mortos de volta à vida. Foi punido por
de uma medida preventiva reconhecidamente Zeus que o matou, não se sabe bem por que
eficaz e eficiente. O que o leitor pensa disso, sob motivo. Asclépio teve com Lampecia duas filhas e
o imperativo ético da justiça? lhes ensinou o que sabia. Panaceia foi uma delas
e, segundo a literatura sobre o tema, seu nome
foi composto por duas partículas que são pan
Panaceia (todo) e akos (remédio), pois a essa filha de
Dentre os argumentos frequentemente Asclépio, que desenvolveu grande habilidade
brandidos pelos que se opõem ao controle dos com ervas, conhecendo-as profundamente, se

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atribuía a capacidade de curar todas as Voltando às filhas de Asclépio, quem
enfermidades. Do nome de Panaceia derivou o associa a fluoretação com Panaceia está focando
substantivo panaceia, com o significado de algo na filha errada. A associação a ser feita não é com
com propriedades para curar todos os males Panaceia, mas com Higeia, a irmã dela, pois foi
físicos e morais, uma espécie de “remédio Higeia, cujo nome daria origem ao termo higiene,
universal”. que deixando de lado as ervas da sua irmã,
A associação de ideias entre fluoretação dedicou-se a aprender e desenvolver o poder da
da água e panaceia significa uma de duas prevenção das enfermidades, às coisas que se
possibilidades: ou quem faz essa associação não deveria fazer para evitar doenças, ao invés de
sabe o que é fluoretação, ou não sabe sobre o apenas perseguir a cura.
mito de Panaceia. Mas pode ocorrer de a pessoa A fluoretação da água visa à obtenção de
nada saber sobre ambas, como se vê em várias um efeito preventivo. Quem cuida desses
manifestações sobre o tema. Uma dessas assuntos de prevenção, na mitologia grega, é
manifestações, feita pela Fluoride Action Higeia, não Panaceia.
Network, uma organização que se opõe à
fluoretação, foi publicada na revista Ciência e
Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso Cansaço
da Ciência (SBPC). A entidade afirma (sic) que “o A postagem do coordenador estadual de
flúor é uma medicação; sua ação é tópica e não saúde bucal do Rio Grande do Norte é concluída
sistêmica; e sua adição seria responsável pela com um enigmático “Estou atento, querendo
fluorose dentária, alterações nos ossos, contribuir, mas aqui estamos cansados, dessas
cartilagens e cérebro”. Conforme argumen- propostas que sabemos ser inexequíveis. Pronto.
tamos, fluoretos não são medicamentos e, como Tem mais coisas, mas por enquanto é isso”.
qualquer elemento químico, em concentrações Contribuições são, decerto, sempre
não toleradas pelo organismo humano, pode muito bem-vindas. Uma contribuição importante
produzir efeito tóxico. No caso dos fluoretos, em poderia ser uma retratação dos erros contidos
concentrações muitas vezes superiores ao teor nas afirmações sobre fluoretação. Ou, se for o
ótimo de 0,7 mgF/L de água. Mas, no Brasil, o caso, apresentando ao público mais argumentos
valor máximo permitido (VMP) de fluoretos em – e melhores, sobretudo se relativos às restrições
águas para consumo humano, fixado pela à fluoretação. Um desses argumentos pode se
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) referir ao que foi mencionado como “propostas
é 1,5 mgF/L. Valores acima desse VMP não são que sabemos ser inexequíveis”.
preconizados, sendo esta, justamente, uma das Por que a fluoretação seria inexequível
razões por que essa tecnologia de saúde pública no Rio Grande do Norte? Afinal, quais seriam as
tem seu foco dirigido ao controle e regulação restrições operacionais à medida? O que a torna
desses teores – para que jamais excedam o VMP. “inexequível” no estado?
Sobre a ação dos fluoretos sobre o esmalte Como a postagem foi encerrada com um
dentário ser “tópica e não sistêmica” isso diz categórico “Pronto. Tem mais coisas...”, é
respeito ao mecanismo de ação e não ao modo preciso admitir que nessas coisas que faltam
de uso. Trata-se, portanto, de argumento podem estar argumentos que nos façam mudar
relevante em termos bioquímicos, mas não completamente o que pensamos sobre o tema.
associado à fluoretação da água, como Mas, para isso, precisamos conhecer os
tecnologia de saúde pública. Quanto à fluorose argumentos, as coisas que faltam. Compreendê-
dentária, há consenso na literatura científica de los.
que, nos níveis em que têm se expressado Até lá, porém, seguiremos defendendo o
contemporaneamente, inclusive no contexto que a lei determina, o que a ética impõe aos que
brasileiro, não representam problema de saúde tomam decisões em nome do Estado brasileiro,
pública. em qualquer âmbito, e ao que nossos

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conhecimentos, inclusive os derivados da porque interromper a fluoretação, ou não realizá-
experiência de Baixo Guandu, nos recomendam la onde deve ser feita, constitui ato juridicamente
fazer, pois entendemos que se colocar contrário ilegal, cientificamente insustentável e socialmen-
ou omisso frente à fluoretação constitui uma te injusto, conforme procuramos demonstrar
afronta às necessidades do povo brasileiro, e em neste artigo.
especial das populações mais vulneráveis,

EXPEDIENTE

É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja para venda
ou qualquer fim comercial
Comitê Editorial: Paulo Frazão e Paulo Capel Narvai
Diagramação e revisão: Bianca Braga de Carvalho (bolsista de IC da USP); Gabriella Pereira dos Santos
(2022-23), Luciana Lima Marques (2021-22), Fernando Alcantara (2020-2021)
Comitê Gestor da Rede: Angelo Roncalli (UFRN), Celso Zilbovicius (FO-USP), Helder Pinheiro (UFPA),
Helenita Correa Ely (PUCRS), Jaime Cury (UNICAMP), Luiz Roberto A. Noro (UFRN), Paulo Capel
Narvai (FSP-USP), Paulo Frazão (FSP-USP)
Secretaria Executiva: Bianca Braga de Carvalho - Centro Colaborador do Ministério da Saúde em
Vigilância da Saúde Bucal – cecolusp@usp.br
Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Política de Apoio à
Permanência e Formação Estudantil da Universidade de São Paulo

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