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DONA CLARA CLAREOU: UMA VOZ FEMININA NO PERÍODO DA

DITADURA MILITAR

Fernanda Bemfica Silva dos Santos (UFBA)


Profa. Dra. Isabela Santos de Almeida (Orientadora/UFBA)

1 INTRODUÇÃO

O texto teatral “Dona Clara Clareou ou Simplesmente Destroços”, de Jurema Penna,


traz um roteiro cuja protagonista Clara, uma mulher em torno de 45 anos, professora primária,
luta por sua sobrevivência e liberdade, ao tempo em que lida com a dor do exílio do filho e do
abandono do marido. Diante de toda dificuldade enfrentada, Clara decide alugar um dos
quartos de sua casa a um jovem bissexual chamado Lucas, e, desse convívio, surge um
relacionamento amoroso, situação considerada amoral para uma sociedade tradicional e
preconceituosa que vivencia os anos finais do período da Ditadura Militar no Brasil.
O presente trabalho tem como objeto de estudo o texto teatral “Dona Clara Clareou ou
Simplesmente Destroços”, o qual, juntamente com sua documentação paratextual, recortes de
jornais e documentação da censura, faz parte do acervo da Equipe Textos Teatrais Censurados
(ETTC), coordenado pela Profª. Drª. Rosa Borges. Foi feita a análise das questões de gênero
durante o período da ditadura militar, propondo uma leitura da personagem Clara, a partir de
um estudo crítico-filológico dos testemunhos e da documentação censória, entendendo esse
texto como produto da cultura de uma época.

2 DONA CLARA CLAREOU E A AÇÃO DA CENSURA

A partir de 1964 a 1985 tem-se no Brasil um cenário político dominado pelos


militares, o qual, é sabido, caracterizou-se por ser um período marcado pelo refreamento da
liberdade, legitimado pelo decreto do Ato Institucional nº 5 (AI-5), datado de 13 de dezembro
de 1968 e assinado pelo presidente Artur da Costa e Silva, que vigorou até o ano de 1978. O
AI-5 permitiu a censura prévia das chamadas “diversões públicas”, impossibilitando toda
expressão artística que fosse contra ao regime vigente.

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Destaca-se, nesse contexto, o teatro, bastante atingido pelas ações dos órgãos de
censura, que fiscalizavam a produção do texto do espetáculo, assim como sua montagem.
Sobre isso, Santos (2012, p. 26) afirma

[...] que uma das formas mais antigas de dominação é pela via cultural, uma vez que,
através das representações culturais, os membros de uma sociedade engendram e
perpetuam os valores e normas de conduta, de comportamento. Dentre as formas
culturais de maior impacto, porque consegue atingir um público considerável, está o
teatro, como hoje, é também a televisão, por seus filmes, séries e novelas.

Portanto, nesse contexto, o teatro se instala como uma das manifestações artísticas
mais visadas pela censura. A ação dos órgãos de censura se materializava de diversas formas,
através dos cortes morais e políticos, da faixa etária indicada para cada peça, e também das
suspensões de espetáculos. Esse trabalho de censura era realizado pelo setor da Divisão de
Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Departamento da Polícia Federal (DPF) que
expedia o Certificado de Censura da obra teatral, o qual tinha validade de cinco anos sob a
condição de ser acompanhado do enredo devidamente carimbado pela DCDP.
O texto teatral “Dona Clara Clareou ou Simplesmente Destroços” foi submetido à
censura no ano de 1982, não possui cortes em nenhum dos seus dois testemunhos datados de
1981, entretanto, um deles possui o carimbo da Superintendência Regional da Bahia – DPF,
em todas as suas folhas, assim como também o carimbo da Sociedade Brasileira de Autores
Teatrais na primeira e última folha, marcando a ação da censura (figuras 1 e 2).

Figura 1 – Testemunho 1981, f.1. Figura 2 – Testemunho 1981, f. 30.

Fonte: Arquivo Textos Teatrais Censurados (PENNA,1980)

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Além das marcas deixadas pelos órgãos de censura nos testemunhos, observa-se na
documentação paratextual a ação da censura. Já que, em 19 de março de 1982, a peça recebeu
o parecer 01/82 da Superintendência Regional da Bahia, a qual sinalizou que pela peça ter
"linguagem livre, violência policial, relacionamento homossexual, pessimismo e revolta
contra tudo e contra todos", esta deveria ser imprópria para menores de 18 anos e, talvez, ser
liberada após o ensaio geral.
Em seguida, em 24 de março de 1982, no parecer 03/82 da Superintendência Regional
da Bahia, a peça foi contraindicada para menores de 18 anos, pois a cena traz a personagem
Clara incentivando o personagem Lucas a aceitar sua bissexualidade sem medo. O
posicionamento da censura ao caracterizar a personagem Clara como lasciva e culpada pelo
comportamento visto como impudico de Lucas sublima o olhar misógino de um grupo social
conservador para as mulheres, considerando-as, na maioria das vezes, como responsáveis e
motivadoras dos atos libidinosos e transgressões cometidas pelos homens.
O parecer 02/82 da Superintendência Regional da Bahia, indica que o espetáculo foi
liberado apenas para maiores de 18 anos, já que, segundo os censores, “é demonstrado cênico
e cinicamente através dos personagens que transformam o relacionamento sexual em
atividade venais, em completa degradação de costumes”. Em um novo parecer, desta vez de
número 05/82, de 27 de março de 1982 da Superintendência Regional da Bahia, indica-se que
a peça foi liberada apenas para maiores de 18 anos por conta do seu conteúdo.

Em 23 de abril de 1982, a DPF emitiu o parecer 604/82 ratificando os documentos


anteriores da Superintendência Regional da Bahia a respeito da classificação etária atribuída
e sinalizou que a peça, por possuir uma inversão de valores, já que os personagens “passam da
situação de concubinos a situação de mãe e filho”, e fazer críticas aos órgãos de segurança,
deveria ser reexaminada e somente seria liberada após ser condicionada ao exame do ensaio
geral.
As interdições da censura ao emitir os pareceres que postergaram a encenação do
espetáculo Dona Clara Clareou ou Simplesmente Destroços são fontes que testemunham
ações, política, social, entre outras, características de um contexto histórico repressivo do
Brasil e que elucidam o posicionamento ideológico dos censores, uma vez que, a maioria das
questões levantadas por eles condenam o comportamento da personagem principal, Clara, tida
em muitas passagens como a algoz e até minorizada ao papel de coadjuvante.

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3 DONA CLARA CLAREOU E O FEMINISMO

A estreia de Dona Clara Clareou ou Simplesmente Destroços, em Salvador, ocorreu


em 25 de março de 1982, na Sala do Coro do TCA, sob direção de Leonel Amorim, trazendo
a autora da peça, Jurema Penna, interpretando dois personagens diferentes, Clara, a
protagonista, e Cândida, nora de Clara cujo marido foi exilado.
Como já dito, a obra foca no relacionamento de Clara e Lucas, ela, uma mulher de
meia idade solitária que passa por dificuldades financeiras, e ele, um jovem estudante de mais
ou menos vinte anos. A trama tem início quando Lucas aluga um quarto na casa de Clara, o
que culmina em um envolvimento afetivo entre os dois. Em um primeiro momento, Clara, não
tem conhecimento de que Lucas é bissexual e mantém também um relacionamento com
Fernando, um homem casado que o sustenta financeiramente.
Diante da revelação da poligamia de seu parceiro, os preconceitos morais de Clara se
manifestam, criando problemas sérios entre ela e Lucas. Entretanto, a convivência com Lucas
se torna mais importante para a protagonista do que sua intolerância, já que sua experiência de
vida e a solidão que vivenciou ao ser abandonada pelo marido e ao ter seu filho exilado faz
com que ela supere essa situação. Soma-se ao estado subjetivo da personagem a sua luta
diária pela liberdade de expressão, financeira, amorosa e a repressão sofrida em um período
totalitário, que contribui para que esta mulher desconstrua seus preconceitos e aceite uma
relação amorosa considerada amoral.
A obra desafia uma sociedade patriarcal, que ainda vive os anos finais da Ditadura
Militar, trazendo a voz feminina em primeiro plano, esta que anseia por sua liberdade que por
muitas vezes fora calada em função de padrões comportamentais, que criam barreiras à
liberdade, autonomia e sexualidade da mulher, sobretudo.
A respeito do movimento feminista, Teles (1999) o define como uma filosofia que
considera a existência de uma opressão específica a todas as mulheres que se manifesta
ideologicamente, culturalmente e politicamente, assumindo formas de acordo com as classes
sociais, nos diferentes grupos étnicos e culturais. Ainda segundo a autora, em seu conceito
mais amplo, o feminismo questiona as relações de poder, contrapondo-se radicalmente ao
poder patriarcal.
Essa opressão está presente em toda narrativa de Dona Clara Clareou, não só através
dos atos dos militares apontados na narrativa e na recepção da peça na realidade, mas também
em como o comportamento de Clara é visto pela sociedade, uma vez que não se espera que

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uma mulher de meia idade tenha uma vida sexual ativa, principalmente, com um rapaz que
teria idade de ser filho dela. Sobre este último ponto, o parecer 604/82, emitido pela DPF, ao
fomentar a figura de Clara como a de uma mulher perversa, incita que a relação entre Clara e
Lucas inicialmente foi maternal e que passou a ser sexual por conta da influência negativa de
Clara sobre Lucas.
Desta forma, a motivação ideológica dos censores é norteadora das ações cerceadoras
destes, principalmente, ao condenar uma mulher por esta não se comportar de maneira
recatada, subjugada por uma figura masculina, comumente, referida como o líder e provedor
da família.
Sobre isso, Beauvoir (1970, p. 14-15) afirma que

Economicamente homens e mulheres constituem como que duas castas; em


igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais
altos, maiores possibilidades de êxito que suas concorrentes recém-chegadas.
Ocupam na indústria, na política etc, maior número de lugares e os postos mais
importantes. Além dos poderes concretos que possuem, revestem-se de um prestígio
cuja tradição a educação da criança mantém: o presente envolve o passado e no
passado toda a história foi feita pelos homens. No momento em que as mulheres
começam a tomar parte da elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que
pertence aos homens.

O posicionamento apontado por Beauvoir (1970) acima é concretizado na recepção da


peça Dona Clara Clareou ou Simplesmente Destroços observada nos pareceres dos censores.
No parecer 03/82 da Superintendência Regional da Bahia, datado de 24 de março de 1982, é
perceptível a tentativa de calar a voz feminina do texto, designando a Lucas o papel de
protagonista. Em uma das descrições desse parecer, o comportamento de Clara é visto como
amoral e Lucas é posto como protagonista e caracterizado como uma vítima de uma mulher
mais velha que o induz a ter comportamentos imorais, posto que ele é dependente
financeiramente dela.

A peça em exame é uma exposição do drama de um rapaz que para sobreviver rompe
com seus valores e é estimulado a aceitar a sua condição amoral por Clara. [...] Clara
passa a ser um misto de mãe e amante de Lucas que vive num conflito provocado por
sua bissexualidade que Clara estimula-o a aceitar sem medo. (Arquivo Nacional de
Brasília, DPF, parecer 03/82, 1982)

É possível afirmar que inicialmente o relacionamento de Clara e Lucas é maternal, já


que o filho da protagonista possui idade parecida com a de seu inquilino, e pela saudade que
ela tem do filho, é justificável ela querer transpor todo o cuidado que ela teria com o filho
para o Lucas. Com o passar do tempo, essa relação deixa de ser maternal, já que a solidão de

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Clara aliada ao seu desejo de ter novas experiências afetivo-sexuais e de se libertar de um
passado de injustiças e solidão, faz com que ela se aproxime mais desse rapaz, que mesmo
não oferecendo exclusividade a ela, torna-se uma companhia satisfatória.
Assim, toda a história é escrita na perspectiva dessa mulher, que não corresponde ao
modelo tradicional imposto pelo patriarcado e que não se coloca apenas na posição de mãe,
mas também na posição de mulher que deseja libertar-se de toda a opressão que a cerca.
Nesse contexto, é importante enfatizar a grande importância dos movimentos
feministas, já que eles cobram a grande dívida social e econômica que tem o patriarcado para
a humanidade diante das injustiças por ele cometidas. Para Miriam Botassi (apud Teles, 1993,
p. 165),

A maior das dívidas sociais (grifo meu) é “a imposição do ‘grande silêncio’


histórico e cultural sobre as mulheres (heterossexuais e homossexuais); os papéis
estereotipados que mantêm as mulheres à distância da ciência, da tecnologia e dos
outros estudos ‘masculinos’, ligações sócio-profissionais masculinas que excluem as
mulheres.

Em um jornal baiano da década de 1980, um dos documentos paratextuais utilizados


como corpus do presente artigo, ao ser indagada acerca dos movimentos feministas, Jurema
Penna afirmou que sua vida foi marcada por reivindicações em prol dos direitos das mulheres
e acrescenta
Tudo o que enfrentei nas minhas atitudes, no meu ser: fumar em público (um
escândalo naquela época), ir saborear as deliciosas batidas do Mercado Modelo, com
tira-gosto de lambreta; entrar para a faculdade de Direito, quando as mulheres quase
que não tinha acesso à ela, não era de “bom tom” mulher pensar em advocacia [...]
Tudo isso já era uma luta visceral, minha, em prol os direitos da mulher, quando
ainda nem se sonhava organizar movimentos feministas [...] E tem mais, antes que
esqueça: o fato de há 30 anos eu já estar fazendo teatro, na Bahia, com todo o falso
puritanismo da sociedade soteropolitana, já era uma barra pesadíssima!. (PENNA,
1982)

Portanto, é evidente que uma produção teatral que estimule ações feministas, que
despertam nas mulheres um forte anseio de mudar suas condições de vida, conquistando sua
independência, lutando por seus direitos e afrontando o poder masculino, é algo que preocupa
uma sociedade machista, principalmente, num momento em que esta ainda estava dominada
por militares, mesmo sendo uma peça datada de 1982, período final da ditadura militar.
Sobre os movimentos feministas durante a ditadura militar, Soares (1998) aponta a sua
importância, principalmente, como motivador das mulheres para subverter-se contra a ordem
social, política e econômica vigente, afirmando que

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As mulheres novas atrizes, ao transcenderem seu cotidiano doméstico, fizeram
despontar um novo sujeito social: mulheres anuladas emergem como inteiras,
múltiplas. Elas estavam nos movimentos contra a alta do custo de vida, pela anistia
política, por creches. Criaram associações e casas de mulheres, entraram nos
sindicatos, onde reivindicaram um espaço próprio. [...] O movimento de mulheres
nos anos 70 trouxe uma nova versão da mulher brasileira, que vai às ruas em defesa
de seus direitos e necessidades e que realiza enormes manifestações de denúncia das
desigualdades (SOARES, 1998, p. 35-38).

Todos esses intensos movimentos feministas da década de 70, podem ser vistos como
uma motivação para que Jurema Penna tenha encenado Dona Clara Clareou ou Simplesmente
Destroços em 1982, dado que um texto teatral que aborda temas definidos como polêmicos,
como bissexualidade e poligamia, provavelmente, seria vetado na década de 60, anos iniciais
da Ditadura Militar, em que a censura era mais intensa comparada com a realizada na década
de 80.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa, em fase inicial de desenvolvimento, intencionou realizar uma


análise crítico-filológica das questões de gênero em Dona Clara Clareou ou Simplesmente
Destroços, a partir da leitura da personagem Clara, considerando o contexto sócio-histórico e
cultural em que o texto se inclui, assim como seus paratextos, entendendo a materialidade do
texto citado e sua importância histórica como retrato de uma época.
Destaca-se aqui o lugar de importância de Jurema Penna como dramaturga baiana,
evidenciando sua coragem de denunciar em sua obra os valores retrógrados de uma época
marcada pela repressão, desconstruindo através de seus personagens, principalmente, os
femininos, os comportamentos padrões de uma sociedade patriarcal e intolerante. Por fim,
após realizadas todas as etapas filológicas, intenciona-se produzir uma edição com o intuito
de conservar e preservar os textos trabalhados.

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REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 1972.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: Fatos e Mitos. Tradução Sérgio Milliet. Ed:
Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1970.

BORGES, Rosa; SOUZA, Arivaldo Sacramento de. Filologia e Filologia como Crítica
Textual. In: BORGES, Rosa et al. Edição de Texto e Crítica Filológica. Salvador: Quarteto,
2012.

CUNHA, Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais. Da crítica feminista e a escrita


feminina. Revista Criação e Crítica. 2012.

EM "DONA Clara Clareou" o fim fica por conta do tempo. In: Correio da Bahia. 25 de
março, 1982.

SANTOS, Rosa Borges dos. Edição e estudo de textos teatrais censurados na Bahia: A
Filologia em diálogo com a Literatura, a História e o Teatro. Ed: EDUFBA, Salvador, 2012.

SCOTT, JOAN. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of
history. Tradução: DABAT, Christine Rufino; Ávila, Maria Bethânia. New York, Columbia
University Press. 1989.

SOARES, Vera. Muitas faces do feminismo no Brasil. In: Mulher e Política – Gênero e
feminismo no Partido dos Trabalhadores. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve histórico do feminismo no Brasil. Ed: Brasiliense,
São Paulo, 1993.

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