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OUTROS RECURSOS: CANTIGAS DE AMIGO

Recursos que acompanham as cantigas da Antologia da Educateca

1. «Fui eu, madre, lavar meus cabelos», de Joam Soares Coelho:


http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=709

Jovem no poço, Elizabeth Jane Gardner

http://www.artrenewal.org/pages/artist.php?artistid=372

2. «Levou-s’a louçana, levou-s’a velida», Pero Meogo


http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1217&pv=sim

3. «Levantou-s’a velida», Dom Dinis


http://cantigas.fcsh.unl.pt/versoesmusicais.asp?cdcant=593&vm5=204&vm7=318&vm8=319

4. Excerto do filme Silvestre de João César Monteiro, 1981, Produção V. O. Filmes e Paulo Branco
https://www.youtube.com/watch?v=kyLtxO7mmko

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5. «Ũa pastor bem talhada», Dom Dinis

O papagaio e a pastora: filtros de hoje para textos medievais1


Luciana Stegagno Picchio

[…]

4. A uma leitura feita com estranhamento, o primeiro aspeto que desperta a atenção no texto é o seu
carácter narrativo. Há uma fábula que pode ser assim exposta na sua ordem lógica e cronológica:

Num ambiente florido, uma jovem (uma pastora) lamenta-se pela


ausência do amigo (I). Um papagaio que ela traz consigo (II) conforta-a (III)
e aconselha-a a erguer os olhos porque o amado está ali, junto dela (IV).

A narração é posta na boca de um eu-narrante, com os modos e os estilemas da narração oral. Este
narrador fala para um público atual e congenial, a ele se dirigindo com um estilema de tipo coloquial e no
presente («bem vos digo», v.3). O acontecimento é, por outro lado, referido ao passado, história
concluída da qual o narrador foi testemunha e/mas não participante e que nos é comunicada com a
autoridade do testemunho autóptico («eu vi», v. 4), numa alternância de tempos passados: imperfeitos
durativos que indicam continuidade ou repetição dos atos referidos («cuidava», v. 2; «estava», v. 3;
«trazia», v. 9; «estava», v. 12; «nom falava», v. 18; «acordava», v. 19; «esmorecia», v. 20; «dizia», v. 23) e
tempos perfeitos que referem ações realizadas uma só vez pelas personagens-atores («diss’», vv. 5, 13,
21, 26, 29; «caeu», v. 16; «jouv’», v. 18), aos quais se deve acrescentar o já citado «eu vi» (v. 4), com o
qual o eu-narrante, referindo-se ao passado, insere cronologicamente a sua personagem na história
narrada e se desdobra em dois actantes, agentes em dois contextos sucessivos: a testemunha, e/mas não
participante de então, e o narrador de hoje.

O ponto de vista é o do eu-narrante de hoje, o qual, por seu lado, não se pode gabar de outro
conhecimento do acontecido senão o que lhe vem da experiência visual (e unicamente visual) do eu-
testemunha de ontem. Não é portanto omnisciência, mas só ciência daquilo que foi visto, daquilo que
apenas se pôde observar num certo ângulo de perspetiva, num determinado ponto da cena (podemos
dizê-lo, antecipando e forçando a metáfora cénica que o texto em tudo sugere. E eis assim a inserção da
fórmula subjetiva: «per quant’eu vi», v. 4.

Formalmente, a narração distribui-se em quatro blocos, fechados em si e correspondentes às 4 estrofes


(cobras de 8 versos) da composição. Cada bloco-cobra é, por sua vez, dividido em duas secções,
correspondentes metricamente à frente e à cauda da cobra, portanto com uma funcionalização
diversificada das duas semiestrofes: a primeira em direção narrativa e a segunda em direção diálogo-
dramática. A formalização, grosso modo, pode ser a seguinte:

1 PICCHIO, Luciana Stegagno (1979) — A Lição do Texto. Filologia e Literatura. Idade Média. Lisboa: Edições 70, pp. 27-67
[tradução de João Nuno Alçada; com supressões e adaptações].

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A B
1 1 ... … … … … … …
(
2 2 ………………… MSN SN
3 3 «digo» (eu-narrante) 1.ª 3.ª personagem
( personagem
I
4 4 ………………… MSN
BN
5 5 «e diss’» (pastora) 3.ª personagem
6 6 ... … … … … … … SD d
7 7 ………………… 1.ª personagem
8 8 …………………
1 9 ………………… MSN
(
2 10 ………………… SN
3 11 ………………… MSN 3.ª personagem
4 12 ………………… MSN
II
5 ( 13 «e diss’» (pastora) 3.ª personagem SD m
BN
6 14 ………………… 1.ª personagem
7 15 …………………
8 16 «E» … … … … … … … SN 3.ª
personagem
1 17 ... … … … … … … MSN
2 18 ... … … … … … ... SN
3 19 «E» … … … … … … … MSN 3.ª personagem
III 4 20 «E» … … … … … … … MSN
BN 5 ( 21 «e diss» (pastora) 3.ª personagem MSD m
6 22 ………………… SD
7 23 «e […] dizia» (papagaio) MSD m
8 24 ……………………
1 25 ……………………
2 26 «diss» (pastora) MSD
3 27 …………………
IV 4 28 … … … … … … …. SD m
BN 5 29 «diss’el» (papagaio-cavaleiro) MSD 2.ª personagem
6 30 …………………
7 31 …………………
8 32 …………………

A: verso estrofe BN: bloco narrativo d: diálogo


B: verso poema MSN: micro-sequência narrativa SN: sequência narrativa
m: monólogo MSD: micro-sequência dramática SD: sequência dramática

A passagem do primeiro ao segundo dos dois modos, ou seja, a introdução do discurso direto, é
assinalada em cada uma das 4 cobras, com iteração simétrica, pela presença anafórica da forma verbal,
perfeito, 3.ª pessoa «diss’» (I, v. 1; II, v. 5; III, v. 1; e «diss’» com uma repetição especular a IV, v. 5:
«diss’el»).

Todavia, à medida que avança a narração, assiste-se a uma substituição do regime narrativo pelo
dramático e, dentro deste último, à passagem do monólogo ao diálogo.

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5. Também visualmente assistimos a uma progressiva vivificação da narrativa, sempre ritmada pelas
alternâncias das formas verbais do verbo dizer (presente, imperfeito, perfeito, 1.ª e 3.ª pessoa: «bem vos
digo», v.3; «diss’», vv. 5, 13, 21, 26, 29; «dizia», v. 23). O tempo presente («digo», v. 3) é a forma
atualizante com a qual o eu-narrante abre uma janela no passado da narração e nela se debruça por um
instante, garantindo um testemunho autóptico («eu vi», v. 4), ao passo que as outras formas nos fazem
assistir à passagem de um regime narrativo a um outro. Se, de facto, no primeiro BN a narração na 3.ª
pessoa e o monólogo feminino em 1.ª pessoa (discurso direto) repartem entre si simetricamente a
sequência, de seguida há uma alternância cada vez mais frequente de segmentos narrativos e de
segmentos dramáticos. Pelo que diz respeito aos actantes, e para além do espaço no qual se oculta o
narrador, assistimos à emersão, ao lado da donzela monologante, de uma segunda personagem, um
deuteragonista, também esse primeiramente monologante numa espécie de aparte dramático (II, v. 8),
mas depois (IV) comprometido em diálogo paritário. E assistimos enfim à degradação dos segmentos
narrativos a didascálias, rubricas, indicações cénicas de um texto dramático; ou, numa outra perspetiva,
suportes narrativos de texto lírico com citações.

Neste sentido, a superfície do texto, isto é, a brilhante couraça da narração à qual até agora se limitou o
nosso exame, o discurso, segundo uma já codificada terminologia semiológica, contrasta singularmente
com aquilo que está por baixo, isto é, com a história, ou, se se quiser, o conteúdo da narração.

Porque aqui o modo narrativo que expõe os factos em rigorosa progressão temporal, sem deslocações
lógico-cronológicas de materiais, parece não propor nenhuma dicotomia entre um enredo, ou seja, um
conteúdo em ordem de apresentação, e uma fábula, conteúdo reorganizado em ordem cronológica e
lógica. É um artifício (seja-me perdoada aqui a antecipação enquanto ainda se descreve) que contribui
para dar ao texto, a um certo nível de leitura, o seu divertido carácter épico-popularesco e o seu sabor,
altamente literário, de fruto agreste e antigo.

6. Prolongando uma leitura feita com estranhamento, sem inserir o poema ainda numa dada cultura e na
tradição de um determinado género literário, podemos também arriscar uma leitura dramática, baseada
na sua simples conotação teatral. Iremos assim ler este texto como um guião em quatro atos:

I Ato: uma só personagem, a moça-pastora cantante e chorosa e, fora da boca de cena, a testemunha-
historiador que a mostra ao seu público.

II Ato: a mesma cena, tempo de Primavera e a pastora chorosa; e, ainda fora de cena, a testemunha que,
sempre para o seu público, põe em realce, aponta, um pormenor do ambiente: o papagaio-falcão, não
personagem, mas simplesmente pássaro cantante, indício de estação e complemento heráldico e/ou
projeção sentimental da pastora.

III Ato: animação do elemento ambiental papagaio. Mas animação de objeto mecânico, de animal falante,
espelho da pastora. Cena ainda limitada a uma só personagem.

IV Ato: humanização do papagaio e sua oposição à pastora como co-protagonista: cortesmente cavaleiro.

Epílogo: no momento em que a última réplica do papagaio-cavaleiro fecha a cena («erged’olho e vee-lo-
edes», v. 32), o texto lírico, na sua ambiguidade, supera o dramático. O primeiro pode deixar em suspenso
a solução. O segundo, na pessoa do realizador, é forçado a escolher entre duas, talvez três diferentes
saídas:

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a) 4 personagens com 4 específicas e distintas funções (4 actantes): sem entrar em cena, o
historiador-testemunha (1) vê e descreve o papagaio servidor-mago-adivinho, mas sempre só
intermediário (2), o qual convida a moça que está à espera (3) a olhar o cavaleiro amigo (4), que
nunca a abandonou e agora está aqui diante dela, surgido em cena como que por encanto.
b) 3 personagens em 4 diferentes funções, 4 actantes: o cavaleiro-amigo identifica-se com o
historiador, é o próprio eu-narrante que avança do proscénio para a pastora e se insere na cena,
de maneira que toda a história narrada se torna um conto autobiográfico.
c) 3 personagens, 4 funções, 4 actantes: variante. Como em qualquer fábula do género «pele de
burro», na qual o amante tenha tido de dizer uma primeira parte da cena encerrado, por vontade
própria ou por feitiço, num invólucro que lhe oculta a fisionomia, o feitiço no fim quebra-se e eis
que, onde primeiramente existia o animal falante, existe agora o cavaleiro enamorado.
Personagem-Ersatz do amigo longínquo, enquanto testemunha e confidente da moça, o papagaio
é, neste momento, ele próprio o amigo, o desejado.

Definir a interpretação, como o fizemos, pela sua explicitação e banalização dramática, é empobrecer o
texto. Mas o nosso exercício terá servido ao menos para mostrar como, mesmo só a nível de conteúdos,
um texto poético lírico-narrativo difere de um guião dramático: ou como é difícil contornar os montículos
da poesia vindos a depositar-se na planície da prosa, segundo a fulgurante metáfora de Roman Jakobson1.
[…] Na nossa pastorela, diversamente do que ocorre num texto dramático, no qual, como dizia Diómedes,
só falam as personagens, há sempre um eu-narrante (épico-lírico) que tem solidamente nas mãos os fios
da representação, identificando-se com as próprias personagens, porque ele próprio é estas personagens.

7. Portanto, a primeira achega é que este é um texto que só pode ser definido como confluência de
géneros diversos: épico-lírico; lírico-narrativo; lírico-dramático, com uma contínua troca de papéis entre
primeira pessoa-tempo presente (constantes da poesia lírica) e terceira pessoa-tempo passado
(constantes da épica). E é no momento em que procuramos definir mais precisamente o tipo cultural, ou
então, à maneira de Goethe, o modo poético dentro do género, que a composição começa a revelar a sua
natureza de monstrum, de portento heterogéneo; no mesmo sentido em que a tragicomédia era definida
pelos tratadistas como monstro, porque híbrida, centáurica […].

O texto integra-se na tradição lírica galego-portuguesa e foi composto por um dos mais tardios, mas dos
maiores poetas da escola […].

Estamos dentro de uma exata tradição cultural, onde cada palavra conquista imediatamente valor de
termo, funcionando como indicativo de género, não só pelo contexto mas também pela sua mera posição
no verso. E constatamos que dois elementos mínimos, dois motivos da tradição lírica galego-portuguesa
[…] marcam respetivamente o primeiro e o segundo verso, fornecendo aparentemente duas indicações
diferentes, senão opostas:

Ua pastor bem talhada


cuidava em seu amigo (…)

1 Acerca da teoria dos motivos vagantes de A. Veselovskjj (Poética, 1913). No quadro da tradição lírica galego-portuguesa, a
imagem da «jovem que pensa no amigo que está longe» e a imagem, coordenada no nosso texto, da «jovem triste por pensar no
amigo que está longe» (este segundo segmento engloba a experiência do primeiro, conferindo à justaposição de segmentos o
carácter histórico de narração imersa no tempo a nível de discurso e a nível de fábula) podem considerar-se «situações de vida» e
portanto (cf. Segre, cit.) solidariamente motivos.

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O primeiro verso anuncia em abertura a pastorela, composição que tem como fulcro a personagem
actante da pastor; o segundo (também e sobretudo pela posição em fim-de-verso e em rima do termo
amigo) anuncia a cantiga de amigo, cuja constante temática está no referente, no amigo da mulher, que
por ele se entristece ou regozija.

Desde o início, pastorela e cantiga de amigo aparecem assim como modelos literários interligados, sendo
impossível demarcar-lhes os respetivos limites. Nós sabemos por outro lado que este não é um elemento
característico do texto de D. Dinis, mas de toda a tradição lírica galego-portuguesa, onde assistimos a uma
contínua passagem de estilemas de uma para outra categoria, induzindo deste modo os antologistas
modernos a incluir todas as pastorelas entre as cantigas de amigo, sob o signo daquele popularismo que,
em toda a tradição nacional, seria o sinal da cantiga medieval «de mulher».

Ora não se trata aqui de refazermos a história diferenciada da pastorela ou da cantiga de amigo; não se
trata de discutir a tese do indigenismo e do popularismo1, mas apenas de verificar como D. Dinis tinha
consciência da conexão-sobreposição dos dois géneros dentro da mesma «langue» literária que lhe
fornecia os materiais, e como poeticamente ele se comprazia em baralhar ainda mais as cartas, em jogar
ao «popular».

Chegados a este ponto, terá ainda sentido discutir se esta é uma pastorela ou uma cantiga de amigo? Ou
não será mais útil simplesmente peneirar os materiais das duas diferentes tradições (e também da
tradição cortês da cantiga de amor) empregues pelo rei trovador na construção do seu novo texto,
assinalar cada uma com a sua marca de origem, e saborear o jogo do «making it new» dentro da nova
estrutura?

[…]

8. Já no tempo em que D. Dinis escrevia, a pastorela, tomada como signo literário histórico supra-nacional
(francês, provençal, galego-português), se definia por algumas invariantes. Estas invariantes eram: o
ambiente rústico, os dois (pelo menos) actantes (a pastor e o cavaleiro-narrador, simples espectadores ou
comparticipantes da história), o pattern narrativo com dupla saída (1. pastora solitária e/ou desdenhosa;
2. pastora condescendente2). Todavia o poeta tinha consciência de que estas invariantes (e outras não
essenciais) se qualificavam no signo literário «pastorela» de modo diferente, segundo o códice literário ou
etnográfico com o qual se ligavam: que, por exemplo, era diferente o significado do mesmo termo
pastor/pastora em âmbito francês, ou provençal, ou galego-português.

Eis, por outro lado, da parte do poeta, a utilização, num texto galego-português, do primeiro indicativo
(pastor, v. 1) a nível terminológico, mais que descritivo. A explicação mais imediata parece ser a de que no
século XIV do trovador D. Dinis de Portugal, embebido de cultura occitânica e francesa, já não era
necessário descrever a pastor/pastora. […]

1 Permito-me remeter para o meu estudo: Per una storia della «serrana» peninsular: la «serrana» de Sintra in «Cultura Neolatina»,
Roma, XXVI, 1966, fasc. 2-3, pp. 105-128, [onde] creio ter provado ser um texto mais recente, com relação à tradição lírica galego-
portuguesa, a chamada «serrana» de Álvaro Afonso, na qual D. Ramón Menéndez Pidal (La primitiva poesia lírica española, 1919,
várias vezes reeditado) e, na sua esteira, todos os posteriores estudiosos do problema, tinha reconhecido o primeiro modelo literário
conhecido do género, arquétipo rústico das «apuradas» pastorelas ibéricas que se seguiram. Como aí digo, vem assim a faltar, pelo
menos nesta direção, a pedra angular em que se basearam e continuam baseando edifícios críticos de inspiração neo-romântica,
aferrados à «continuidade en la evolución de la pastorela hispânica» e à ideia de que «la pastorela aparece por primera vez en las
cantigas galaico-portuguesas compuestas en el siglo XIII y a princípios del XIV.»
2 A tipologia foi fixada de modo magistral, na esteira dos estudos precedentes, por Maurice Delbouille […]

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A pastor do exórdio aparece aqui categorial, abstratizante: exclui ulteriores qualificações profissionais da
pastora (vaqueira, guardadora de porcos, gansos ou ovelhas, complemento implícito da personagem
noutros textos, nos quais a função da protagonista está ligada socialmente à sua qualidade de pastora.
Aqui a função da protagonista é, em termos gerais, a da «jovem enamorada», de modo que se poderia
contextualmente substituir pastor por molher ou moça, dona, menina ou donzela, sem depauperar o
poema de um pilar narrativo essencial: antes pelo contrário, restituindo-o à sua natureza de texto lírico
cortês (se bem que isto fosse uma simplificação que a poesia maliciosa e ambígua de D. Dinis não admite).

Na tradição lírica galego-portuguesa, pastor, adjetivo, é equivalente de “moço, jovem, rapaz”. A aceção,
lexicalizada no masculino por C. Michäelis, ainda não foi, tanto quanto é do meu conhecimento,
suficientemente ilustrada na sua génese e implicações, e exigirá necessariamente um estudo próprio. À
primeira vista, parece-me que, pelo menos no âmbito da lírica galego-portuguesa, todos os contextos em
que pastor, pastorinho aparecem com este significado (cf. sobretudo V 922 / B 1317 e V 923 / B 1318 de
Estevam da Guarda), denunciam a assimilação medieval do pastor ao clérigo jovem que nas
representações litúrgicas de Natal tinha exatamente funções de pastorzinho.

Mas o que aqui sobretudo interessa é que a aceção serve igualmente para o feminino, como tinha já
sublinhado Pellegrini, para quem, em muitos textos definidos como «pastorelas», o indicativo pastor,
feminino, aparecia provavelmente só com o significado de “moça”1. O facto é que a juventude não é o
elemento essencial da «pastorela». E é fácil prová-lo, sem ser necessário ir desinquietar as ferozes
«serranas», que em lugar de matrizes arcaicas das posteriores e arrebicadas pastorelas, são pelo contrário
as suas filhas caricaturais. Mas a juventude é elemento essencial da cantiga da amigo, a qual, no círculo
afetivo da moça, pressupõe a existência não só de um amigo que está na guerra ou em casa do rei, mas
também de uma mãe, confidente e guardiã, sinal poético de um matriarcado que dela faz o único árbitro
das ações e do destino da prole. […]

D. Dinis sabia destas coisas; mas sabia também que no campo, em Portugal, residiam tradicionalmente
moças que confiavam ao canto o seu lamento pelo amigo longínquo; moças às quais os amigos-
trovadores, contaminando esses também indevidamente e já na origem os géneros que os estudiosos
gostariam de encontrar sempre bem distintos entre si, se dirigiam com estilemas de cantigas de amor:
talvez indo buscá-los à própria cantiga de amor que tinham composto pouco antes para uma «dona-
senhor».

E eis aqui todos os ingredientes que o rei trovador mistura, para fazer com pedaços velhos o seu
novíssimo poema. A situação é (mas sê-lo-á na realidade?) a da pastorela «objetiva» ou «desinteressada»,
segundo a fórmula introduzida por Gaston Paris «pour marquer ainsi l’absence chez le poéte de toute
intention et de toute action égoïstes»2. Um sub-género, este, que florirá sobretudo nas regiões marginais,
de costumes mais austeros que o centro inovador: na Picardia, conforme verificou Delbouille, na área
galego-portuguesa, segundo o testemunho dos nossos textos. De facto, entre estes, só um, a pastorela de
romaria de Pedro Amigo de Sevilha3, parecerá desenvolver até às últimas consequências o motivo clássico
do encontro dama-cavaleiro, utilizando exatamente aquele motivo da aceitação de presentes («que vos
darei boas toucas de Estela E boas cintas de Rocamador E doutras dõas a vosso sabor E fremoso pano
para a gonela») que é o reconhecimento implícito do jogo de classes sociais, o qual, por várias vezes, se

1
Silvio Pellegrini, «Chorava a estava cantando», em Studi […]
2 Gaston Paris, lembrado por M. Delbouille, Les Origines de la pastourelle, 1927 […]
3 B 1098 / V 689. V. na edição organizada por Giovanna Marroni Le poesie di Pedr’ Amigo de Sevilha, em «Annali Ist. Univ Orientale,
sez. Romanza», Nápoles, 1968, pp. 243-53

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reconheceu estar na base da pastorela clássica. Noutros três textos, além do nosso (que sugere várias
direções de leitura), o cavaleiro não interfere na ação «ca de a nojar non ouve sabor»1. Enquanto nos
quatro restantes ele é afastado, rejeitado por uma pastora receosa da opinião pública «ca os que aqui
chegarem, Pois que vos aqui acharem, Bem dirán que mais ouv’i»2, ou então fiel ao seu Robin: como
naquele outro poema de D. Dinis em que o diálogo entre as personagens (a pastora «sanhuda», segundo
a melhor tradição do género, e o cavaleiro que cortesmente dela se professa «Senhor, por vosso vou eu»)
se conclui com um nada do facto, «ca meu coraçom non é, nen será, per bõa fé, se non do que quero
bem»3.

9. As três pastorelas de D. Dinis, pela graça e pela subtil ironia que as caracteriza, pela contínua troca de
segmentos de uma para a outra, pela cultura comum que as identifica, não podem ser separadas entre si.
E como se tivessem sido compostas na mesma época e oferecidas em conjunto, requintado ramo de
flores silvestres, a uma senhora jovem e esquiva. Cantigas de amor disfarçadas de cantigas de amigo ou
de pastorela para uma senhora «en plein air» disfarçada de pastora. A hipótese é sugestiva: também
porque arrasta consigo a equivalência pastorela = jogo cortês = mascarada, que não pode ficar fora do
nosso discurso.

Em toda a Idade Média, enquanto o povo se aglomerava nas praças à volta dos mimos que macaqueavam
os animais, e também os padres e os nobres, isto é, uma sociedade estilizada em categorias, os nobres
encontravam-se no paço e divertiam-se com disfarces exóticos ou rústicos. «Justear del día y momear de
la noche», eis a receita cortesã para a saúde física e intelectual. E a ânsia dos Orientes perdidos ou ainda
não conquistados que sugere então a mascarada oriental, destinada depois a confluir no momo ibérico,
no mumming e desguising inglês, na momaria veneziana: tudo géneros nos quais o toque orientalizante
faz fulgurar com o seu brilho o ludismo das classes superiores. Mas é a urgência de um retorno à
«natureza» que irá chegar até aos mitos de Quinhentos, e depois iluministas, do Éden reencontrado e do
bom selvagem; urgência misturada com o desejo de afirmação de classe, implicado por sua vez no
«escárnio do vilão», a sugerir o preciosismo em roupagens de pastor; isto quaisquer que tenham sido as
origens do género da pastorela. E eis que a metáfora ou banalização dramática do nosso texto uma vez
mais nos ajuda na necessidade de explicitar um aspeto deste mesmo texto: o da sua dimensão cortês, a
qual, depois de tanto ressurgimento das teses popularistas, parece querer apoiar a tese de Delbouille,
para quem a pastorela «n’etait en somme que la modification courtoise des chansons latines dont nous
avons retrouvé des vestiges au XIe et même au Xe siècle»4.

Experimentemos de novo imaginar esta pastorela como se fosse um guião, mas agora para uma
representação na Corte. Na primeira cena temos a senhora só, disfarçada de pastora, que entrelaça
grinaldas e suspira no seu «fremoso virgeu». Na segunda cena, aparece o cavaleiro escondido dentro da
máscara de papagaio. Na terceira, o cavaleiro comporta-se como uma máquina falante, como uma
daquelas maravilhosas máquinas que tanto impressionavam a fantasia dos homens medievais. Na quarta
cena, por fim, o cavaleiro abandona o invólucro de papagaio e volta a ser o servidor da dama, que é por

1 «Oy og’eu hua pastor cantar», B 868 – 869, 870 / V 454 de Ayras Nunez. Na edição de Giuseppe Tavani, Le poesie di Ayras Nunez,
Milão, 1964, pp. 63-69
2 B 967 / V 554, «Pelo souto de Grexente», de Johan Ayras
3 B 547 / V 150, «Vi oj’eu cantar d’amor», de D. Dinis
4 M. Delbouille […]

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natureza. No momento em que se aproxima dela e lhe estende a mão, álibi e ambientação pastoris são
abandonados.

Há um regresso da dama ao lugar fechado, à sala, onde é do ritual a fórmula cortesã, o vós, e igualmente
a relação de vassalagem dama-cavaleiro («ca o que vos á servida», v. 31). Aqui encontram-se no interior
do texto os outros elementos corteses, trazidos da cantiga de amor, como o «comprida / de bem» de 27-
28, presente no próprio manifesto da poesia cortês de D. Dinis1.

E eis que aflorámos uma outra característica individualizante do nosso texto: a alternância dos pronomes
e das pessoas verbais nas fórmulas de tratamento. Na lírica galego-portuguesa nunca se usa o tu. O tu do
tratamento de intimidade, contraposto ao vós do tratamento de cortesia, embora usado já na Idade
Média2, aparece no século XVI e no teatro «realista« de Gil Vicente, no qual as mães-patroas costumam
apostrofar com o tu filhas e criadas (um tu que depois é maciçamente substituído por tratamentos
nominais de outro tipo). Nesta tradição lírica só aparece só aparece atribuído a abstrações como o Amor
personificado (Roy Martinz do Casal, Fernand’Esquio, poetas tardios e, o que nos não pode ser
indiferente, do ambiente cultural de D. Dinis); na cantiga de amor como na de amigo, todas as relações,
amigo-amiga, mãe-filha, moça-amigas, se colocam no plano do vós. No nosso texto, a pastora, enquanto
se dirige com o vós, na segunda pessoa do plural, ao amigo-esquecido, chama o confidente-papagaio com
uma segunda pessoa do singular, de intimidade. A invocação, dirigida como é aqui a um animal, abre-nos
uma fresta à compreensão, para lá das estilizações corteses, das formas de tratamento familiar no
Portugal medieval. Elas inserem-se em duas molduras do formulário mais típico da cantiga de amor («Se
me queres dar guarida», v. 25; «ca morte m’é esta vida», v. 28). Há um ponto de encontro (com uma
apóstrofe ao Amor personificado e, só por esta via, ao amor-amigo) numa outra pastorela de D. Dinis, a
primeira desta breve série, pela posição que ocupa nos dois cancioneiros. Convém também reler este
poema, porque é de tal maneira vizinho do nosso que parece constituir a sua primeira parte: o primeiro
ato de uma representação que, depois no nosso texto, terá o seu explicit feliz, o seu happy end. […]

Hunha pastor se queixava


muyt’ estando noutro dia,
e sigo medês falava,
e chorava e dizia
con amor que a forçava:
«Par Deus, vi-t’en grave dia,
Ay amor!»

Ela s’estava queixando


come molher con grã coyta,
e que a pesar, des quando
nacera, non fora doyta,
porén dezia chorando:
«Tu non és se non mha coyta
Ay, amor!»

Coytas lhe davan amores


que non lh’ eran se non morte,

1 «Quer’eu en maneyra de proençal», B 520 / V 123


2 Marilina dos Santos Luz, Fórmulas de Tratamento no Português Arcaico, Coimbra, 1958; e, sobretudo, também para a posterior
evolução mas com observações que abrangem todo o arco histórico da língua portuguesa, Luís F. L. Cintra, Sobre Formas de
Tratamento na Língua Portuguesa, Horizonte, Lisboa, 1972

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e deytou-ss’antr’unhas flores,
e disse com coyta forte:
«Mal ti venha per u fores,
Ca non és se non mha morte
Ay, amor!»1

Os segmentos que constituem os dois textos (e, duma certa forma, também a terceira pastorela do rei)
são os mesmos. Idêntico o início categórico («Hunha pastor», v. 1), a insistência das formas verbais de
dizer («e dizia», «dezia», e «disse»), idêntica a caracterização do «locus amoenus» (identificado em
«fremoso virgeu», no III texto): «e caeu aantrunhas flores»; e «deitou’sse antr’unhas flores»;
correspondente o artifício, muito mais característico da poesia cortês do que da «popular», do
enjambement entre verso e verso («Hunha pastor se quexava / muyt’»; assim como «Senhor comprida de
bem»). Mas semelhante, sobretudo, a ponto de reunir em bloco as duas composições, a extravagância da
segunda pessoa do singular, introduzida como a marcar um género e um nível estilístico diferentes; como
evocação, por um lado, de uma cultura muito transpirenaica e, por outro, de um mundo livre das
convenções de corte: como se conotando com o tu as suas pastoras, o poeta as fizesse falar em dialeto.
Ao estabelecer uma ligação entre estes textos e as cantigas de amigo, unificando-as sob a etiqueta do
popularismo e do tradicionalismo (ainda que só de maneira) na divisão das poesias de mulher, foi
invocado o carácter comum de «cantiga das cantigas», que tem um paradigma na «Sedia la fremosa seu
sirgo torcendo / Sa voz manselinha fremoso dizendo / Cantigas d’ amigo» de Estevam Coelho. Ainda uma
vez mais o poema de D. Dinis se subtrai à arrumação e se caracteriza pelo reemprego original de fórmulas
tradicionais (como o panromânico «bem talhada»). E, de facto, aqui, se aparentemente assistimos à
utilização do motivo da pastora que «chorava e estava cantando»2, o que a narração nos propõe não é a
história de uma moça que canta «cantigas alheias», isto é, canções tradicionais, ainda que esboçando a
sua própria história. Propõe-nos, sim, a história de uma moça que se lamenta em seu nome, com
expressões que são suas, embora entrelaçadas de segmentos tradicionais, quer dizer, construídas por ela
neste instante para exprimir o seu pensamento atual. Não se trata, portanto, de uma moça com voz doce
que diz inspiradamente «cantigas de amigo», mas de uma dramatis persona no ato de um solilóquio
amoroso.
E chegados a este ponto, parece inútil colher ao longo de todo o cancioneiro galego-português, entre as
cantigas de amigo e as de amor, os segmentos tradicionais de que é constituído o nosso poema, descobrir
as voluntárias e maliciosas coincidências com a poesia do velho Bernal de Bonaval, o representante mais
autorizado da «tradição». O que tem importância é tomar consciência de como esta cantiga é diferente
das outras: mais rica, mais sugestiva, mais poética. Exatamente no sentido em que Iurij Lotman propõe
identificar o «mais poético» com o «mais rico de informação». Porque diversamente das outras cantigas,
o poema de D. Dinis é ao mesmo tempo uma pastorela e uma cantiga cortês, uma cantiga de amigo e uma
tapeçaria oriental, uma novela e uma adivinha. Porque nela, como em mais nenhum texto, se exemplifica
a tendência para o pictórico que será uma constante de toda a posterior poesia portuguesa, obediente ao
preceito da Ut pictura poésis. 3

10. O papagaio? Claro: esse permanece o elemento singularizante do texto. Sobre ele se debruçou o
espanto de Ungaretti e sobre ele vale a pena determo-nos. É o papagaio que dá esplendor de veludo
barroco à opaca estamenha das pastoras medievais: o papagaio, a novidade e a invenção do rei trovador.
[…]
Mas o rei D. Dinis podia também ter presente a qualificação «oriental» do papagaio, se pensarmos que no
Oriente ele era tido não só como um dos mais notáveis símbolos eróticos, mas também como uma
personagem mágica, à qual, como à esfinge, era confiada a função de dar respostas: e que esta resposta
era sempre dada com uma ligeira conotação irónica, que mesmo os etimologistas sublinham. Estes, com

1 B 519 / V 102. Leitura minha


2 Pellegrini. V. também G. Tavani op. cit., especialmente pp. 36 e 66
3 V. Aurelio Roncaglia, Os Lusíadas de Camões: Ut pictura poësis, nos «Arquivos do Centro Cultural Português», IX, Paris, 1975, pp.
253-285

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efeito, não completamente convencidos da origem árabe do nome (ar. babbagâ), chegam a pensar num
étimo ou para-étimo papa gay, representando quer um pregador de bom carácter, quer um gay, “pega
falante”1. Há sempre nisto uma nota de exotismo oriental, de gravura persa, de novela de Mil e uma
noites. Continuando a escavar e a aprofundar a pesquisa, é preciso introduzir no discurso precedente
todos os papagaios-reis disfarçados por amor, que se casam com jovens donzelas ao longo do fabulário de
todos os países.
Mas aqui só se pretende, por um lado, sublinhar que a ideia de substituir, na coreografia da paisagem
primaveril própria da pastorela, o tradicional rouxinol pelo exótico e erótico papagaio2, estava
perfeitamente dentro do gosto de D. Dinis. E, por outro, saborear a utilização, a funcionalização, poderia
dizer-se com um feio neologismo terminológico, do elemento-papagaio como confidente numa pastorela-
cantiga de amigo. Não esqueçamos que a confidente da cantiga de amigo, por antonomásia, é a mãe, que
pode ser substituída pela irmã ou pela amiga. São personagens sempre femininas, como as amigas ou
irmanas (cujos contrapontos nas irmanillas das karajat moçárabes provocou tantas hipóteses sobre a
origem comum desta poesia de mulher)3; e estas amigas e personagens femininas têm que ser
assimiladas às ondas do mar ou às flores do verde pinho. Estas flores de D. Dinis, entre outras, têm a
prerrogativa, que as assemelha ao papagaio do nosso texto, de «responder» à interrogação da rapariga e
de dar-lhe a boa nova do regresso próximo do amado […].

1 Cf. p. ex. Corominas, Dic. Et. V. papagayo


2 O segmento «ca entrava o verão», que Ungaretti subjetiviza de novo ao próprio desejo do estio, ao próprio culto das «fábulas
meridionais» (v. acerca disso a informação contida no meu estudo Semantica, cit. na nota 4), é um indicativo da «estação
primaveril», como na melhor tradição pastoril.
3 Recorde-se apenas, entre os últimos e mais ricos estudos, o de Elvira Elicegui, Poesía griega «de amigo» y poesia arábico-
española, in «Emerita», Rev. de Linguística y Filologia clássica, Madrid, T. XL, 2.º 1972, pp. 329-396

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