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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIAGES

ÂNIMA EDUCAÇÃO

RAUL DANTAS DOS SANTOS

ARQUÉTIPOS, INCONSCIENTE COLETIVO E MÍDIAS AUDIOVISUAIS: UM


CAMINHO PARA A INDIVIDUAÇÃO.

Paripiranga - BA

2022
RAUL DANTAS DOS SANTOS

ARQUÉTIPOS, INCONSCIENTE COLETIVO E MÍDIAS AUDIOVISUAIS: UM


CAMINHO PARA A INDIVIDUAÇÃO.

Monografia Apresentada ao Curso de Graduação da


Faculdade AGES como um dos pré-requisitos para
obtenção do título de Bacharelado em Psicologia.

Orientadora: Profª Catiele Reis

Paripiranga - BA
2022
RAUL DANTAS DOS SANTOS

ARQUÉTIPOS, INCONSCIENTE COLETIVO E MÍDIAS AUDIOVISUAIS: UM


CAMINHO PARA A INDIVIDUAÇÃO.

Monografia apresentada como exigência parcial para obtenção do título de


Bacharelado em Psicologia, à Comissão Julgadora designada pelo Colegiado do
Curso de Graduação da AGES – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.

Paripiranga – BA, 22 de junho de 2022.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________
Catiele Reis – Professora Orientadora
(credenciais)

__________________________________________
(Nome) Professor Avaliador
(Credenciais)

_________________________________________
(Nome) Professor Avaliador
(Credenciais)

Paripiranga - BA
2022
Faz o que tu queres, há de ser tudo da Lei.

(Aleister Crowley)
ARQUÉTIPOS, INCONSCIENTE COLETIVO E MÍDIAS AUDIOVISUAIS: UM
CAMINHO PARA A INDIVIDUAÇÃO.

Raul Dantas dos Santos1


Catiele Reis2

RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso consiste em uma pesquisa sobre como os


aspectos do mitológico e do sagrado se manifestam em uma das formas
contemporâneas de se contar histórias, as mídias audiovisuais, como filmes, séries,
desenhos animados, etc. O trabalho tem como objetivo e se dá através da análise
conceito de arquétipo de Jung e a forma como esse conceito também se apresenta
nessas novas formas de se contar histórias e como a análise dessa relação entre o
arquétipo, a mídia audiovisual e o sujeito pode ser benéfica para o processo de
individuação, fornecendo ferramentas de autoconhecimento e autorrealização. O
trabalho também tem como objetivo analisar e definir os conceitos de Arquétipo,
Inconsciente Coletivo, Individuação e Mito Moderno, exemplificando esses conceitos
em determinados personagens das mídias audiovisuais. Os principais teóricos
abordados neste trabalho são: Jung (2014), Silva (2019) e Neumann (1995), para os
assuntos relacionados à psicologia junguiana, e Higuet (2005), Campbell (2015),
Knowles (2008) e Cazelli (2020), sobre os assuntos relacionados à mitologia e o
conceito de mito moderno. A problemática que dá à luz norteadora deste trabalho é a
consideração de que as mídias audiovisuais, como uma forma contemporânea de se
contar histórias, também pode carregar de uma forma intrínseca, a habilidade de
transmitir um sentido simbólico. transcendental e universal, se comunicando com a
subjetividade do ser humano, proporcionando reflexões e novas formas de se
observar o mundo ou determinado assunto, algo que era bastante presente na forma
como povos antigos se relacionavam com seus mitos e em sua religiosidade. E essa
habilidade pode ser acessada através de uma análise arquetípica dos personagens
dessas histórias.

Palavras chave: Arquétipo. Inconsciente Coletivo. Mitologia. Mídias Audiovisuais.


Individuação.

1Graduando concluinte do curso de Bacharelado em Psicologia da Faculdade Ages, polo de


Paripiranga – BA. E-mail: raul.123.tr@gmail.com.

2Professora Orientadora do curso de Bacharelado em Psicologia da Faculdade Ages, polo de


Paripiranga – BA. E-mail: catiele.reis@gmail.com
ARCHETYPES, THE COLLECTIVE UNCONSCIOUS AND AUDIOVISUAL MEDIA:
A PATH TO INDIVIDUATION.

Raul Dantas dos Santos3


Catiele Reis4

ABSTRACT

This course conclusion work consists of a research on how aspects of the mythological
and the sacred are manifested in one of the contemporary ways of telling stories,
audiovisual media, such as movies, series, cartoons, etc. The work aims and takes
place through the analysis of Jung's concept of archetype and the way in which this
concept also presents itself in these new ways of telling stories and how the analysis
of this relationship between the archetype, the audiovisual media and the subject can
be beneficial to the individuation process, providing tools for self-knowledge and self-
realization. The work also aims to analyze and define the concepts of Archetype,
Collective Unconscious, Individuation and Modern Myth, exemplifying these concepts
in certain characters of audiovisual media. The main theorists addressed in this work
are: Jung (2014), Silva (2019) and Neumann (1995), for subjects related to Jungian
psychology, and Higuet (2005), Campbell (2015), Knowles (2008) and Cazelli (2020).
), on issues related to mythology and the concept of modern myth. The problem that
guides this work is the consideration that audiovisual media, as a contemporary way
of telling stories, can also carry, in an intrinsic way, the ability to transmit a symbolic
meaning. transcendental and universal, communicating with the subjectivity of the
human being, providing reflections and new ways of observing the world or a certain
subject, something that was quite present in the way ancient people related to their
myths and their religiosity. And that ability can be accessed through an archetypal
analysis of the characters in these stories.

Keywords: Archetype. Collective unconscious. Mythology. Audiovisual Media.


individuation.

3
Graduating graduating from the Bachelor's Degree in Psychology at Faculdade Ages, Paripiranga -
BA. Email: raul.123.tr@gmail.com.

4 Advising Professor of the Bachelor's Degree in Psychology at Faculdade Ages, Paripiranga - BA.
Email: catiele.reis@gmail.com.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................. ....08

CAPÍTULO 1. O INCONSCIENTE COLETIVO ....................................... 11


1.1. Sobre Jung ..................................................................................11
1.2. A estrutura da psique ................ ................................... ................. 12
1.3. O que é o inconsciente coletivo? .................................. .................. 13

CAPÍTULO 2: OS ARQUÉTIPOS ......................................... ................. 16


2.1. O equívoco sobre a ideia de arquétipo ........................................... 16
2.2. O que são arquétipos? .................................................................. 17
2.3. A Persona .................................................................................... 19
2.4. A Sombra ..................................................................................... 19
2.5. A Anima ....................................................................................... 20
2.6. O Animus .......................................................................................................... 21
2.7. Outros Arquétipos ........................................................................ 22
2.7.1. A Grande Mãe ...................................................................................... 23
2.7.2. O Velho Sábio ...................................................................................... 23
2.7.3. O Herói ................................................................................................. 24
2.7.4. O Trapaceiro ........................................................................................ 25

CAPÍTULO 3: INDIVIDUAÇÃO ................................................................................. 27


3.1. Definição de Individuação .................................................................................. 27
3.2. O Segredo da Flor de Ouro ................................................................................ 28
3.3. Atingindo a Individuação .................................................................................... 29

CAPÍTULO 4: ARQUÉTIPOS, MITOLOGIA E SUA RELAÇÃO COM O INDIVÍDUO


................................................................................................................................... 31
4.1. Mitologia e a Experiência do Sagrado ................................................................. 31
4.2. O Simbólico ........................................................................................................ 32
4.3. O Mito Moderno .................................................................................................. 33

CAPÍTULO 5: PERSONAGENS MODERNOS E SEUS ARQUÉTIPOS ................... 35


5.1 Hannah Montana, a Persona .............................................................................. 35
5.2. Doppio e Diavolo, a Sombra .............................................................................. 36
5.3. Ramona Flowers, a Anima ................................................................................. 38
5.4. Mr. Big, o Animus ............................................................................................... 39
5.5. Rose Quartz, a Grande Mãe .............................................................................. 40
5.6. Iroh, o Velho Sábio ............................................................................................ 41
5.7. Harry Potter, o Herói .......................................................................................... 42
5.8. O Máskara, o Trapaceiro ................................................................................... 43

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 45

REFERENCIAS................................................................................ ... 47
8

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como sua principal proposta analisar alguns conceitos
apresentados por Carl Jung, como o Arquétipo e o Inconsciente Coletivo, traçando um
paralelo entre esses temas e o como eles se apresentam na relação que o sujeito
estabelece com mídias audiovisuais modernas, como filmes, séries, desenhos
animados etc. Além disso, será discutido como a análise e o entendimento dessa
relação do sujeito com os arquétipos presentes nessas mídias audiovisuais podem
ser benéficas para o processo de autoconhecimento e para um outro processo que
Jung chama de Individuação. O inconsciente coletivo pode ser definido de forma breve
como uma parte da psique humana distinguida do inconsciente pessoal, onde a
natureza dos conteúdos lá presentes não se deve a experiência pessoal do sujeito,
mas são adquiridos de forma hereditária e são constituídos essencialmente por
arquétipos (JUNG, 2000). Os arquétipos são como imagens primordiais e são
definidos pela sua forma e não pelos conteúdos que carregam ao serem expressos
(JUNG, 2000).

O processo de individuação é definido por Sharp (1991) como o


desenvolvimento da personalidade individual através da análise de informações
arquetípicas e depende da relação vital entre ego e inconsciente. É um processo em
que o sujeito se torna a si mesmo, completamente inteiro e indivisível, alcançando o
ápice do autoconhecimento (SAMUELS; SHORTER; PLAUT, 1988).

As mídias audiovisuais são meios de comunicação onde há a utilização


conjunta de elementos visuais e auditivos, ou seja, a mídia que pode ser vista e ouvida
ao mesmo tempo, permitindo um envolvimento maior daquele que consome o
conteúdo. E nesse processo de consumir esse conteúdo o sujeito cria vínculos com
os personagens ali representados, que variam entre o amor e o ódio, a afinidade e o
repúdio. Compreendendo esses conceitos podemos estabelecer uma análise das
formas arquetípicas presentes nas mídias audiovisuais modernas e como o sujeito se
relaciona com isso e como essa análise é de grande valia para o processo de
individuação.

Mas quais são os benefícios que o sujeito pode ter ao se iniciar nesse caminho
de se conhecer através da análise dos arquétipos com os quais ele se relaciona?
9

Como as teorias de Jung podem ter serventia na vida do sujeito de uma forma que
sua qualidade de vida seja afetada de uma forma positiva? É notório que ao longo de
sua vida o sujeito cria uma espécie de afinidade com certos personagens de séries,
desenhos animados, filmes, e outras formas de mídias audiovisuais no geral, mas por
quê?

Vamos criar uma situação hipotética onde um homem vê um filme do Superman


e cria uma afinidade com o personagem, tornando assim o Superman seu
personagem favorito. Quais características que o Superman carrega que tornaram
essa afinidade possível? O que o Superman representa para esse homem? E o que
isso pode dizer sobre essa pessoa?

Presente no personagem do Superman há um arquétipo, e ao analisar o


personagem se percebe que esse arquétipo é o do Deus Solar, o mesmo arquétipo
de Jesus Cristo, representando força, energia, vitalidade, capacidade de superar
adversidades, iluminação, exemplo a se seguir e muitas outras características. Se
pode notar então que o Superman aspira esse homem a sempre se tornar alguém
melhor, a persistir, e perseverar etc. Todo personagem tem algo a ensinar, da mesma
forma como os antigos povos usavam seus mitos para inspirar e trazer ensinamentos
para a população, o mesmo é possível de se fazer com os personagens modernos, e
as teorias de Jung são um caminho para isso.

Henderson (1969) diz que existem formas simbólicas que transcendem culturas
e sociedades sem sofrerem alterações, sejam em seus ritos ou em seus mitos. Jung
(2000) vai chamar essas formas simbólicas de arquétipos e que elas estão presentes
dentro de um inconsciente coletivo, um inconsciente compartilhado por toda a
humanidade com conteúdos herdados de forma hereditária. Já que é possível
encontrar esses arquétipos se manifestando em diversas culturas e sociedades
antigas que vivam de lados opostos do planeta onde o contato entre elas seria
impossível, também é possível encontrar essas mesmas formas simbólicas nas
mídias audiovisuais consumidas pelo homem.

O objetivo geral deste trabalho é analisar como o conceito de arquétipo e


inconsciente coletivo de Jung se apresenta na contemporaneidade e suas relações
mídias audiovisuais populares consumidas pelo sujeito. Os objetivos específicos são:
definir o que é um arquétipo, o que é inconsciente coletivo, o que é individuação,
10

mostrar a relação que o sujeito tem com os arquétipos tanto na antiguidade como na
contemporaneidade, definir o conceito de mito moderno através dos conceitos até aqui
citados, exemplificar esses arquétipos e mostrar a importância disso tudo para o
processo de individuação.

Esse estudo se faz importante pois as teorias de Jung são sempre vistas em
volta de um misticismo e de uma pseudociência que não representa a totalidade de
seu trabalho, ele sempre se definiu como um homem da ciência. Amenizar esse
estereótipo ajudaria a trazer para a luz da ciência suas ideias, mostrando que os
conceitos apresentados por ele quando aplicados da forma correta podem trazer
grandes benefícios para a vida das pessoas no que diz respeito ao autoconhecimento,
saúde mental e qualidade de vida.

O trabalho será dividido em três partes principais. A primeira irá definir o que é
arquétipo, inconsciente coletivo e individuação, um capítulo específico para cada
tema. A segunda parte irá abordar a relação do sujeito com o arquétipo a partir de
uma perspectiva histórica, estabelecendo a ideia de mito moderno e mostrando
exemplos, sendo subdividido em dois capítulos. A terceira parte irá agrupar essas
ideias mostrando como a análise da relação do sujeito com os arquétipos é benéfica
para o processo de individuação.
11

CAPÍTULO 1: O INCONSCIENTE COLETIVO.

1.1 SOBRE JUNG

Antes de dar início a qualquer explicação ou descrição sobre os assuntos e


conceitos que serão tratados nessa obra, é importante reservar um espaço para falar
daquele que culminou essas ideias, Carl Jung. Suas ideias sempre foram vistas de
forma controversa, tanto em sua época quanto hoje em dia. O fato dele ter bebido de
diversas filosofias místicas que estavam em alta em sua época nunca foi visto com
bons olhos, mas é aqui que ele exerce um de seus maiores feitos, conseguir trazer
essas ideias para dentro do escopo da ciência de uma maneira como nenhum outro
estudioso conseguiu fazer.

Carl Jung nasceu na Suíça em 1875, viveu em uma época onde havia muita
experimentação nas escritas nos assuntos de psicologia, filosofia e artes, algo que
veio a influenciar muito suas obras (SHAMDASANI, 2010). Ele era psiquiatra e
psicoterapeuta e por uma parte de sua carreira trabalhou ao lado de Sigmund Freud,
outro grande nome da mesma área, onde ambos estudaram muito sobre psicanálise.
A parceria foi desfeita quando Jung resolveu seguir um caminho que divergia das
ideias de Freud, assim Jung deu um passo para a fundação da Psicologia Analítica
ou Psicologia Junguiana (SHAMDASANI, 2010).

Sobre o misticismo presente nas obras de Jung, é notório a influência desses


temas nas ideias propostas por ele. Ele passou boa parte de sua vida viajando o
mundo e estudando a cultura e a filosofia de diversos povos, algo que foi de grande
valor na construção do conceito de inconsciente coletivo, pois foram nessas viagens
que Jung percebeu que certos temas se repetiam em diversas culturas, mas com uma
face diferente (SHAMDASANI, 2010). Não se deve ver essas influências como algo
negativo ou inferior, muito pelo contrário, a riqueza das ideias de Jung se dão
justamente por ele ter bebido dessas fontes, algo que até então para o europeu médio
de sua época tais filosofias não saiam do escopo do fantasioso.

Durante eras foi através dos mitos que o ser humano deu sentido ao universo
ao seu redor. Tratar todo esse conhecimento que foi produzido ao longo de séculos
como algo que não tem validade por não se encaixar nos padrões de uma ciência
positivista é desrespeitar a própria capacidade do ser humano em encontrar sentido
12

naquilo que o cerca. Óbvio que eles não tinham os instrumentos e as técnicas que
temos hoje em dia, mas eles possuíam algo tão valioso quanto; a capacidade de
enxergar o mundo externo como reflexo do mundo interior, algo que Jung (2000) se
apropria para construir a sua ideia de inconsciente coletivo.

Há muito sobre o que se pode falar da vida e das obras desse homem de
fascinantes ideias, ideias que até hoje causam controvérsias. Mas em toda ordem
alguém precisa exercer o papel de antagonista, e Jung cumpre bem esse papel de
antagonizar as ideias de uma psicologia que só enxerga o homem como um corpo
que reage a impulsos reprimidos ou um corpo que reage ao ambiente e precisa ser
domado pela razão. Quando não há quem se oponha, toda ordem se transforma em
repressão.

1.2 A ESTRUTURA DA PSIQUE.

Para definir o que é o inconsciente coletivo é necessário primeiro mostrar a


estrutura da psique humana de acordo com Jung. Ele via a psique humana como um
sistema que se auto regula e busca manter o balanço entre qualidades divergentes,
visando o próprio crescimento, o que ele vai chamar de Individuação; o sujeito em
completo conhecimento de si e de sua totalidade (JUNG, 2000). Ele dividia a psique
humana em Ego, Inconsciente Pessoal e Inconsciente Coletivo, com os arquétipos da
Persona, Anima, Animus e Sombra habitando o Inconsciente Coletivo, sendo esses
quatro os principais arquétipos que dão estrutura a psique (JUNG, 2000).

Quando Jung apresentou ao mundo suas ideias sobre como a psique humana
se estrutura e funciona, elas não foram muito bem-vindas, principalmente pelas
pessoas das ciências materialistas. Para essas pessoas era um absurdo conceber a
ideia de um inconsciente compartilhado, tudo parecia ser muito místico, fantasioso e
nada científico. Mas nem as próprias ideias de Freud sobre a existência de uma mente
inconsciente foram bem-vindas em sua época, e hoje ele é visto por muitos como o
pai da psicanálise.

Jung parte de um ponto que para as pessoas de sua época tais concepções
eram um absurdo, mesmo com a quantidade de experimentação nos escritos de
psicologia que ocorriam durante seu tempo. Falar sobre o conceito de alma e sobre
13

aquilo que pode ter sido o fundamento nas quais os deuses e deusas foram criados,
dentro da psicologia científica, era ir contra os grandes nomes de sua época que se
valiam exclusivamente do empirismo positivista para falar de algo tão abstrato que é
a própria consciência humana.

O Ego é a organização da mente consciente, suas percepções, recordações,


pensamentos e sentimentos, ocupando somente uma pequena parte de toda a psique
(HALL; NORDBY 1992). É pelo Ego que o sujeito constitui sua personalidade e
identidade, através da seletividade de material psíquico que é levado à consciência,
funcionando como um filtro, prezando pelo bem-estar da mesma (HALL; NORDBY
1992). O material psíquico que é descartado pelo Ego é encaminhado e armazenado
no Inconsciente Pessoal e lá são reprimidos. Esses conteúdos costumam ser
experiências que geram traumas, pensamentos que ameaçam o bem-estar da psique
e experiências que para o Ego não tem importância, e cada um desses conteúdos
podem ser levados a consciência em determinadas situações e circunstâncias (HALL;
NORDBY 1992). Há muito o que se pode falar sobre o Inconsciente Pessoal, mas é
preciso somente conceituar ele de forma básica para dar um escopo do que ele é e
poder diferenciá-lo do Inconsciente Coletivo.

1.3 O QUE É O INCONSCIENTE COLETIVO?

O Inconsciente Coletivo é uma parte da psique distinguida do Inconsciente


Pessoal, nela estão armazenados conteúdos que não são adquiridos através da
experiência pessoal, são recebidos hereditariamente e se comportam de maneira
semelhante a instintos, esses conteúdos são os arquétipos (JUNG, 2000). Foi Jung
quem trouxe essa ideia de a mente ter uma funcionalidade a partir de configurações
hereditárias vindas do seu intermédio físico, o cérebro. Uma mente prefigurada pela
evolução, no sentido biológico da palavra (HALL; NORDBY 1992).

Jung trouxe uma concepção bastante nova sobre como a psique funciona,
ideias fundamentadas a partir de seus estudos sobre a cultura, filosofia e religião de
diversos povos diferentes. Algo que até então era visto por um olhar místico, ele
conseguiu trazer isso para dentro da ciência. E embora haja aqueles que digam o
contrário, o trabalho de Jung é sim científico. Ele analisou minuciosamente tudo aquilo
14

que ele percebeu nessas culturas e filosofias que divergiam bastante das dele, uma
barreira que muitos cientistas daquela época não ousaram cruzar, o eurocentrismo
era dominante.

Não há outra forma de colocar o inconsciente coletivo que não seja no instinto
(JUNG, 2000). Animais simplesmente sabem o que precisa ser feito a partir do
momento em que nascem, há uma prefiguração para o que ele deve fazer e esses
comportamentos são construídos a partir da evolução, e nós chamamos isso de
instinto. Mas com humanos há toda essa preocupação em se separar do reino animal,
se impor como seres racionais, capazes de se comunicar de forma complexa e
dotados de cultura. A Razão acima de tudo. Humanos também são animais, então é
de se esperar que haja uma parte instintiva do nosso cérebro incapaz de ser
racionalizada plenamente.

Jung (1969) afirma que o homem tem dificuldade de admitir que ele é
dependente de forças que estão além de seu controle. E é isso que o inconsciente
coletivo representa, muito mais do que o próprio inconsciente pessoal, algo que habita
o limiar da quase inexistência devido a sua distância da percepção do ego. E entender
que uma força tão profunda e “enterrada” dentro de nossa psique tem tanto controle
sobre a gente ao ponto de religiões terem surgido ao redor de tais conteúdos, é algo
muito forte para o ego dar conta, afinal é ele quem “controla” (HALL; NORDBY 1992).

Admitir que não temos absoluto controle sobre nós mesmos é o primeiro passo
para conseguir explorar a psique humana de forma “completa”. Jung (2010) em seu
compilado de estudos sobre si mesmo O Livro Vermelho relata diversas experiências
de contato com arquétipos do inconsciente coletivo em suas experimentações com a
técnica de Imaginação Ativa, e o próprio dizia que esses arquétipos, mesmo fazendo
parte de sua própria consciência, pareciam estar vivos e existindo de forma
independente.

Para trazer à luz a existência do Inconsciente Coletivo é preciso observar a


forma como os conteúdos nele presentes se manifestam, ou seja, buscar onde e ver
como os Arquétipos se manifestam. Jung (2000) diz que a maneira mais comum de
encontrar esses arquétipos manifestados é através dos sonhos, pois os mesmos são
produtos espontâneos do inconsciente. Também é possível através de uma técnica
15

proposta por ele chamada de Imaginação Ativa, dos delírios dos que são afligidos por
doenças mentais, além dos mitos e símbolos expressos em todas as religiões.

Para exemplificar essas manifestações pode-se trazer as próprias


experimentações que Jung (2010) fez como ele mesmo e estão escritas em O Livro
Vermelho. Em uma visão ele entra em conversação com um Eremita, que incorpora
um dos arquétipos que ele propõe, o do Velho Sábio. Eles conversam por longos
períodos compartilhando conhecimento um com o outro, onde ele chegou a
conclusões profundas sobre suas próprias limitações.

Tendo noção do que é o inconsciente coletivo e do que se trata os conteúdos


presentes dentro dele, podemos partir para uma análise mais profunda desses
conteúdos; os arquétipos.
16

CAPÍTULO 2: OS ARQUÉTIPOS.

2.1 O EQUÍVOCO SOBRE A IDEIA DE ARQUÉTIPO.

Há dentro do imaginário da maioria das pessoas hoje em dia uma ideia bastante
equivocada sobre o que é um Arquétipo. O conceito Junguiano foi difundido em massa
por pessoas sem nenhuma base de estudos aprofundada ou conhecimento adequado
buscando fundamentar ideias extremamente pseudocientíficas. E muito do que se vê
sobre arquétipos por aí não é a proposta de Jung (2000) sobre conteúdos presentes
dentro de um inconsciente coletivo que são herdados de forma hereditária, mas sim
que arquétipos são um aglomerado de estereótipos.

É notório como essa difusão dos conceitos de Jung por pessoas que não são
especializadas nos conhecimentos dele ajuda a perpetuar o estigma de misticismo e
fantasia presente em suas obras. Hoje em dia para se pesquisar sobre Jung é preciso
muito discernimento para saber separar o joio do trigo.

A quantidade de materiais existentes por aí afirmando a existência de


arquétipos completamente inexistentes é avassaladora. Muito disso são somente um
conjunto de estereótipos presentes no imaginário das pessoas sobre o que algo
representa.

Quando se é bombardeado por representações falsas e mal interpretadas


sobre as ideias de alguém, é comum agir a partir de um preconceito e não buscar se
aprofundar nas propostas desse autor. Dentro da própria psicologia Jung é visto por
muitos com escárnio. E é de se perguntar se essas pessoas realmente entenderam o
que ele tentava falar. Óbvio que todas as ideias são passíveis de críticas, mas até
para criticar algo e essa crítica ter valor, é preciso primeiro entender a fundo aquilo
que está sendo criticado. Por isso até críticos de Jung, cujas críticas merecem ser
levadas em consideração, são poucos.

São diversos os fatores que ajudam a perpetuar uma ideia falsa sobre o que
Jung traz. Em todo conhecimento discernimento é a chave, mas quando se trata de
Jung, todo cuidado ainda é pouco.
17

2.2. O QUE SÃO ARQUÉTIPOS?

Jung (2000) define que os arquétipos são os conteúdos presentes dentro do


inconsciente coletivo e não são concebidos através da experiência pessoal, são
herdados de forma hereditária. São formas primordiais, estruturas de informação que
evocam um significado simbólico de determinada força que acompanha a
humanidade, sendo passada de geração para geração. O arquétipo está para além
da forma pela qual ele se manifesta, essa forma é como uma face daquilo que o
arquétipo é em sua essência.

O arquétipo em si é inconsciente, ou seja, está para além do que o ego, nossa


parte consciente da psique, consegue perceber (JUNG, 2000). Nós somente
percebemos suas manifestações, uma face do que o arquétipo é em sua essência.
Um dos locais mais comuns onde podemos perceber as manifestações dos arquétipos
são os mitos. Existem diversos temas comuns encontrados nos diversos mitos de
povos em locais e períodos históricos completamente distantes uns dos outros. Foi
percebendo uma espécie de “receita” nesses mitos que Jung (2000) começou a
elaborar suas teorias do inconsciente coletivo e dos arquétipos.

Jung (2000) traz que os mitos não são meras alegorias de acontecimentos
naturais, eles representam uma trajetória simbólica presente no âmago de todo ser
humano. Ele afirma que o sujeito “primitivo” é dotado de subjetividade, esse
conhecimento é a linguagem de um processo inconsciente, tão inconsciente que o
homem não pensou em uma subjetividade intrínseca para poder explicar os mitos. Era
ignorado o fato de que poderia haver dentro de uma moção inconsciente as estruturas
imagéticas que dariam origem aos mitos.

Podemos olhar para um rio, e ao observar esse rio percebe-se que a forma
como ele flui evoca um significado simbólico tão profundo que o observador entra em
êxtase. Nesse momento um arquétipo se expressa através desse símbolo que o rio
evocou, uma estrutura primordial existente no inconsciente coletivo foi trazida à tona
através do ato de observar um rio. E assim um deus nasceu.

Embora a mitologia seja a maior fonte de reconhecimento desses arquétipos,


Jung (2000) também percebeu a repetição desses temas nos delírios e alucinações
de diversos pacientes seus, principalmente aqueles que acometidos por
18

esquizofrenia. Para ele, notar essas repetições em seus pacientes foi a grande chave
que o fez perceber que de fato há um inconsciente compartilhado por todas as
pessoas.

Nos sonhos também habitam diversas evidências dos arquétipos. Jung (2000)
notou diversos temas se repetindo nos sonhos de seus pacientes, pessoas próximas
e também em seus próprios sonhos. Sonhos são os produtos mais espontâneos do
inconsciente, o sujeito não possui controle dos conteúdos que se manifestam diante
de sua percepção consciente. Mas é preciso bastante conhecimento analítico e
simbólico para separar quais conteúdos são manifestações do inconsciente pessoal e
quais são manifestações do inconsciente coletivo.

Para entender fielmente o que é um Arquétipo, não basta estudar o que Jung
tem a dizer sobre eles, estudar a vida do próprio autor é necessário para entender
como se deu a formulação de tais ideias. Jung (2010) em sua coletânea de textos
escritos ao longo de sua vida, Liber Novus ou O Livro Vermelho, ele traz bastante
conteúdo produzido através de suas experiências pessoais. É possível dizer que o
maior paciente de Jung foi o próprio Jung. Nessa obra ele fala sobre diversos sonhos,
visões e fantasias produzidas pela técnica da Imaginação Ativa, onde afirma ter
entrado em contato com diversas representações desses arquétipos. A mais antiga
relatada por ele foi em um sonho que teve durante a infância, onde ao descer uma
escadaria encontrava um ciclope sentado sobre um trono de ouro com seu único olho
voltado para cima, e a voz de sua mãe dizia: "este é o devorador de homens”. Para
Jung (2010) essa foi uma representação da Sombra do arquétipo que Jesus Cristo,
seu antônimo, sua contraparte. Uma imagem que o próprio relata ter sido a causa de
muito assombro e aflição durante boa parte de sua vida.

Para concluir a definição do conceito de arquétipos, Jung (2000) traz quatro


arquétipos principais responsáveis pela estrutura da psique. São eles: a Persona, a
Sombra, A Anima e O Animus. Juntos, eles codificam e exprimem a experiência do
sujeito consigo mesmo e com o ambiente em que se inserem.
19

2.3. A PERSONA.

A Persona é o arquétipo do ser humano em sua caracterização social, uma


máscara que é usada para se apresentar diante do povo, da sociedade e da cultura
(JUNG, 2000). É uma forma de se firmar enquanto um sujeito portador de uma
personalidade e características próprias, embora essas características não sejam tão
próprias assim. A Persona funciona a partir da aceitação social, seja de uma cultura
inteira em específico, ou grupo de pessoas da qual o sujeito se vê pertencente, o que
o leva a adotar certas características que não necessariamente dele. A Persona não
é o sujeito em si, mas uma representação de si mesmo, é o que o próprio sujeito e as
outras pessoas acham que o Eu é (JUNG, 2000).

Jung (2000) afirma que um dos maiores perigos que podem ocorrer ao sujeito
é a identificação com a Persona. O mundo exige certos tipos de comportamentos, e o
sujeito se vê pressionado a cumprir certas demandas, cobrando de si mesmo tais
comportamentos e características, podendo chegar ao ponto que o sujeito acredita
ser a máscara que usa, e que ela é indivisível do seu Ego. Jung (2000) diz que quando
o sujeito chega nesse ponto ele vive a própria biografia, vive aquilo que outra pessoa
escreveu e definiu como ele deve ser, agir e se comportar. Se o sujeito se identifica
com sua máscara profissional, ele acredita que sua profissão é parte do que o define
como pessoa e passa a se portar com determinadas características que descrevem a
profissão, mas não descrevem a si próprio.

Separar aquilo que se acredita ser de quem se é de verdade é uma das


propostas das ideias de Jung. Não só separar, mas também caminhar em direção a
uma maior compreensão e assunção do Eu totalizado, plenamente individuado. De
forma alguma a Persona representa algum tipo de perigo, o sujeito precisa de algo
que dê forma a sua identidade para sua inserção na cultura e sociedade. O perigo
habita em acreditar que o sujeito é a máscara, que ele é aquilo que foi representado
para ser.

2.4. A SOMBRA.

A Sombra é o lado “escuro” da nossa psique, aquilo que o ego prefere não ver,
tudo que está fora do alcance da luz da consciência (SILVA, 2019). São as
20

características negativas do sujeito, seu lado que vai contra padrões morais, um lado
de si mesmo que devido as suas dimensões, nem o próprio sujeito o reconhece.
Embora a Sombra pertença à esfera do inconsciente pessoal, devido à natureza dos
conteúdos reprimidos, ela, por ser um fenômeno que se repete em toda humanidade,
também é caracterizada como um arquétipo (SILVA, 2019). Embora a Sombra pareça
ter essa conotação negativa devido a ela se tratar do oculto, do não visto, daquilo que
foge a luz da razão, ela não é algo ruim, muito pelo contrário, é parte fundamental da
estrutura da psique humana, sem ela o homem não é completo (JUNG, 2000).

Ao falar da Sombra no nível do inconsciente pessoal, estamos falando das


questões e assuntos reprimidos, mas ao se falar da Sombra no nível do inconsciente
coletivo, como um arquétipo, estamos falando de algo tão profundo que permeia a
própria ideia do bem, do mal e da moralidade do homem (SILVA, 2019). Aqui o
conceito de dualidade é muito presente, considerando que a Sombra diz sobre
características que não são reconhecidas, e tais características estão sujeitas a
projeção (SAMUEL; SHORTER; PLAUT, 1988), o mal será sempre o outro, estará
sempre do lado de lá e não aqui. E nessa separação entre bem e mal é criando um
embate entre eles, onde o bem há de ser supremo, pois esse bem é a representação
das ideias que condizem com a moral e que agradam a consciência do ego.

Jung (2000) vai afirmar que o confronto com a Sombra não é vencido através
do embate, mas da aceitação e da integração das características dessa Sombra.

2.5 A ANIMA

Jung (2000) define a Anima como a alma do sujeito, mas prefere adotar um
outro termo, pois o termo da alma lhe parecia muito vago. A Anima é a contraparte da
Persona, que é a máscara usada diante da cultura e da sociedade. Enquanto uma é
o sistema de relação entre o indivíduo e a sociedade, a outra se constitui como aquilo
que se pode denominar como o âmago divino de cada indivíduo.

Jung (2014) também define a Anima como o feminino que habita dentro de
cada homem. O homem e sua imagem ideal de homem enquanto sua Persona é
compensada interiormente através da Anima, onde o Homem torna-se Mulher. Aqui
encontra-se um ponto que se vale de crítica, deve se considerar que os ideais de
21

gênero na época de Jung eram completamente diferentes do que se tem hoje em dia.
E ele mesmo já havia pensando nesse assunto quando afirmou que esse trabalho era
pioneiro e que muitos viriam depois dele para complementá-lo. Pode-se então definir
a Anima, de uma forma simples, como a Imagem da Alma do ser humano que se
projeta através do feminino (JUNG, 2014).

Jung (2014) fala sobre como a Anima também é a personificação das


tendências psicológicas do feminino sob o olhar masculino. Essa imagem é construída
de acordo com a relação que o sujeito teve com sua mãe em seus primeiros anos de
vida, se esse relacionamento foi conturbado, o sujeito tende a atribuir características
negativas a esse aspecto. Não só essa personificação do feminino vai carregar
características negativas, mas o próprio sujeito dentro de si vai criar uma tendência
de aspectos depressivos, baixa autoestima e até mesmo ideação suicida, já que a
anima é um arquétipo que representa a vida, e se na própria vida do sujeito esse
arquétipo for negativado pelas suas experiências, a Anima vai carregar esse aspecto
sombrio (FRANZ, 1969).

Dentro da mitologia podemos perceber o arquétipo da Anima em deusas que


carregam de forma bastante forte essa energia do feminino, como Afrodite para os
gregos, ou Vênus, como ela era chamada pelos romanos. Uma deusa que carrega em
si aspectos de beleza, sensualidade, criatividade, vida, inspiração, e é uma musa sob
o olhar masculino. Como foi dito por Franz (1969) sobre o aspecto sombrio da Anima,
pode-se então imaginar essas qualidades que a deusa Afrodite, ou Vênus, representa
de uma forma negativa. A deusa Lilith, vista comumente como um demônio, carrega
muitos desses aspectos negativos; uma sucubus sexual, uma entidade que suga toda
energia criativa e vital do homem o deixando como uma casca vazia.

2.6. O ANIMUS

Jung (2014) define o Animus através dos mesmos ideais da Anima, como algo
que representa o âmago divino de cada indivíduo, a Anima sendo a contraparte
feminina nos homens e o Animus a contraparte masculina nas mulheres. Já foi falado
sobre as questões de gênero envolvendo esse tema, então pode-se dizer que o
Animus é Imagem da Alma do ser humano que se projeta através do masculino.
22

O Animus não se manifesta nas mulheres da mesma forma como a Anima se


manifesta nos homens, essa personificação das tendências psicológicas do masculino
sob o olhar da mulher é construída através da relação com o pai (JUNG, 2014). Nessa
situação a mulher, na sua infância, constrói convicções sobre a realidade através das
afirmações do seu pai, o que geralmente não leva em consideração as convicções
sobre a realidade da própria mulher. Se essa relação for disruptiva, o Animus
apresenta seu lado negativo (FRANZ, 1969).

Com o Animus em seu estado negativo, a mulher cria a tendência a se isolar


das relações, se reprimir e viver num mundo interno e fantasioso onde suas ambições
são possibilidade, pensando sempre em como tudo poderia ter sido, nutrindo desejos
de destruição que são mantidos em segredos até dela mesma de forma inconsciente
(FRANZ, 1969).

A Anima e o Animus conjuntamente carregam esse aspecto de serem aquilo


que é de divino, o que é de Essência dentro do sujeito, atuando em contraparte com
a Persona. Uma analogia simples, mas que ajuda a ilustrar isso seria a Persona como
um jarro e a Anima e o Animus sendo o conteúdo dentro desse jarro.

2.7. OUTROS ARQUÉTIPOS

Os quatro arquétipos anteriormente citados não são os únicos, teoricamente


podem existir uma quantidade infinita de arquétipos atuando dentro do inconsciente
coletivo das quais nunca teremos noção. Entre outros arquétipos que podemos citar,
e que em breve serão exemplificados dentro de mídias audiovisuais juntamente com
os quatro citados até então, os mais conhecidos são: A Grande Mãe, O Velho Sábio,
O Herói e O Trapaceiro.

2.7.1. A Grande Mãe

A Grande Mãe é derivada simbolicamente do arquétipo materno, onde a


primeira portadora desse arquétipo é a própria mãe do sujeito. A projeção desse
arquétipo para a própria mãe ocorre quando há a maior aproximação desse arquétipo
do consciente, quando se está distante do consciente esse arquétipo começa a adotar
23

suas características mitológicas (JUNG, 2000). Nesse estado o arquétipo adquire


características como a mãe de tudo, aquela que nutre todas as coisas, o útero de onde
tudo vem e para onde tudo vai retornar. A representação mais forte desse arquétipo é
a própria Mãe Natureza, carregando não só características de vida e força vital, como
também de morte e dos ciclos da vida.

É um arquétipo que aparece em quase todas as tradições, culturas e religiões


carregando esse aspecto da mãe divina, como Gaia para os gregos, Ísis para os
egípcios, e em religiões modernas como a Thelema temos Babalon, uma deusa que
em seu útero carrega o princípio e o fim de tudo. É interessante observar também que
em algumas culturas esse arquétipo aparece de uma forma tríplice, como na deusa
Hekate, onde cada face dessa deusa era responsável pelo cuidado de um aspecto
diferente das coisas do mundo, o lar, os amantes, os caminhos, e até o submundo
onde habitam os espíritos.

É um arquétipo que se manifesta no sujeito através de seu hábito de cuidar, de


nutrir e da necessidade de prover. Esse arquétipo é um dos mais primordiais
existentes, pois o sujeito mesmo em seu estado mais desenvolvido, ainda possui
tendências de imitar seu primeiro relacionamento, o materno (JUNG, 2000). É um dos
arquétipos presentes nos primeiros estados de formação da consciência do sujeito,
enfatizando a imagem da mãe doadora e da criança indefesa, a deusa mãe e sua
criança divina (NEUMANN, 1995). Esse é um arquétipo que podemos ver de forma
bem clara na Virgem Maria com o Menino Jesus.

2.7.2. O Velho Sábio

O Velho Sábio é o mestre superior e protetor da sabedoria, dotado de


conhecimento, de experiência, de espírito e é aquele a quem se busca para se obter
conselhos e orientação (JUNG, 2000). Embora o nome Velho Sábio, isso não quer
dizer necessariamente que aquilo ou aqueles que vestem esse arquétipo são de idade
avançada. Embora a sabedoria se expresse com mais facilidade nas pessoas que já
tenham vivência, uma criança em determinado momento de sua vida, dependendo
das circunstâncias e de sua experiência pessoal pode transmitir essa energia de
24

sabedoria do arquétipo do Velho Sábio. É um arquétipo que comumente está


trabalhando em conjunto com o arquétipo do Herói, o auxiliando em sua jornada.

O arquétipo é comumente representado e expresso nos hierofantes, em


mestres e professores e no ancião quando se está próximo da consciência, no
inconsciente ele comumente se manifesta como um mago, um espírito em forma
humana ou criaturas mitológicas que tragam em si esses aspectos de sabedoria e
experiência (JUNG, 2000). Como exemplos dessas representações pode-se trazer o
mago Merlin do mito do Rei Arthur, que ajudou o jovem herói em sua jornada para se
tornar rei. Como exemplo de algo mais recente pode-se citar o Mestre Yoda da saga
de ficção científica Star Wars, onde ele ajuda o protagonista Luke Skywalker em seu
processo de aprimoramento.

2.7.3. O Herói

O Herói é aquele que se transforma em ritual sagrado, aquele que recebe um


chamado interior e segue uma jornada enfrentando perigos, obtendo espólios de
conhecimento que o transforma. E tais espólios de conhecimento, não são só úteis
para si, mas também para a sua comunidade (JUNG, 2000). É preciso entender que
isso se manifesta na nossa vida em diversos aspectos, desde as situações mais
simples até as mais complicadas, como aprender um hábito novo ou enfrentar
ansiedade social.

O arquétipo do Herói está muito associado à construção de autonomia e


maturidade em nossas vidas, uma espécie de bússola interna que nos guia em direção
às transformações necessárias. É um dos arquétipos mais conhecidos e bastante
utilizado como fundamento e estrutura na criação de qualquer tipo de história.

Campbell (2005) traz o conceito da jornada do Herói após uma longa pesquisa
sobre a psicologia de Jung e o arquétipo do Herói em específico. Nesse conceito ele
traz que o Herói passa por um ciclo específico para atingir essa transformação em
ritual da qual Jung (2000) fala. Esse processo é dividido em; O Mundo Comum,
Chamado à Aventura, Recusa do Chamado, Encontro com o Mentor, Travessia do
Primeiro Limiar, Provas, Aliados e Inimigos, Aproximação da Caverna Secreta,
Provação, Ressurreição e Recompensa e o Retorno com o Elixir (CAMPBELL, 2005).
25

O Mundo Comum é o ambiente natural em que o Herói está inserido, o


Chamado à Aventura é quando algum desafio se apresenta e o Herói é desafiado a
sair da zona de conforto do Mundo Comum. a Recusa do Chamado é insistência em
se permanecer na zona de conforto, quando então acontece o Encontro com o Mentor,
onde algo, ou até o próprio Herói oferece um insight sobre a situação e a decisão que
precisa ser tomada. Geralmente é o arquétipo do Velho Sábio que ocupa esse papel.
A Travessia do Primeiro Limiar é quando a decisão da mudança é feita e a saída da
zona de conforto do Mundo Comum ocorre. Provas, Aliados e Inimigos é onde o Herói
descobre quais aspectos podem ajudar ou podem atrapalhar os ordálios de se estar
longe da zona de conforto do Mundo Comum. A Aproximação da Caverna Secreta é
uma etapa de preparação para a Provação final, onde o Herói precisa mostrar que
superou o desafio que o levou a essa jornada. A Ressurreição e Recompensa é o
quando o Herói se transforma após passar por sua provação final, após determinada
experiência ele já não é mais o mesmo. O Retorno com o Elixir e a volta ao mundo
comum, porém com um novo olhar, uma nova perspectiva, um novo conhecimento
que não só é útil para o Herói, como também para aqueles que o cercam (CAMPBELL,
2005).

Próximo ao consciente podemos ver o Herói como a pessoa que mergulhou


nas profundezas do seu inconsciente superando alguma adversidade em sua vida e
o conhecimento produzido nessa proeza não foi só benéfico para si, como também
para pessoas ao seu redor. Longe do consciente o Herói se manifesta de forma
bastante abundante em mitos de diversas culturas, como Hércules para os gregos e
Arjuna para os indianos.

2.7.4. O Trapaceiro

O trapaceiro é aquele que é dominado por seus desejos inconscientes, é cruel


e falso, o famoso arruaceiro (HENDERSON, 1969). Próximo ao consciente podemos
perceber esse arquétipo nos clássicos sabotadores, pessoas muitas vezes dominadas
por inveja e com baixa moral que são capazes de passar por cima de qualquer um
para satisfazer determinado desejo.
26

A forma citada anteriormente é a imagem mais comum que se tem do arquétipo


do trapaceiro. A imagem do bobo, tolo ou louco também se encaixa no arquétipo do
Trapaceiro. Alguém capaz de ver o mundo por perspectivas inimagináveis e não
conformistas com o status quo (JUNG, 2000). Alguém cujas visões sobre o mundo
são vistas pela sociedade e cultura onde ele se insere de forma repressiva; o que ele
pensa não deveria ser pensado.

No nível inconsciente o Trapaceiro pode se manifestar como um princípio de


energia caótica e desafiante, mas que de alguma forma as ações desse princípio
acabam beneficiando o crescimento e elevação daqueles a quem esse Trapaceiro
antagoniza. Como exemplo temos os mitos nórdicos do deus da mentira Loki.
27

CAPÍTULO 3: INDIVIDUAÇÃO.

3.1 DEFINIÇÃO DE INDIVIDUAÇÃO.

A Individuação seria o resultado almejado e alcançado no fim do processo


analítico, o sujeito tornando-se uno consigo mesmo (JUNG, 2000). Esse processo não
é algo que se conquista em meses ou anos, ele dura a vida toda, e o sujeito
provavelmente nunca o alcançará. Mas não é sobre o destino, e sim sobre a jornada.
As recompensas em questão de autoconhecimento e construção de ferramentas
internas para uma melhor qualidade de vida são inúmeras.

O sujeito traz consigo essa ideia de que ele em seu estado consciente e suas
experiências adquiridas ao longo de sua vida o representam como um todo (JUNG,
2000). Todo processo inconsciente também faz parte do Eu como um todo, embora
por sua natureza inconsciente o sujeito tenha a tendência de ignorar sua existência.
Mesmo sendo negados, esses conteúdos inconscientes ainda se manifestam na
natureza humana. É um erro acreditar que algo que nunca foi pensado
conscientemente não exista, é evidente e já foi discutido por diversos teóricos que
aquilo que está sob a luz da consciência, não é de fato tudo que existe na psique
humana (JUNG, 2000).

Dentro das teorias Junguianas grande parte dessas informações inconscientes


é o que constitui a Sombra, o arquétipo daquilo que está oculto da luz da consciência
(SILVA, 2019). O início do processo de Individuação é a iluminação da Sombra, trazer
para a luz da consciência os conteúdos que estão ali armazenados e reprimidos
(JUNG, 2000). É iluminar esses processos inconscientes para que eles não tenham
mais controle sobre o sujeito, é tomar consciência daquilo que já foi reprimido com o
intuito de não se sabotar, de não se tornar instrumento de si mesmo.

Para exemplificar o que seria a Individuação, Jung (2000) traça um paralelo


entre as propostas de suas teorias em relação a tomada da consciência plena de si,
com os iogues, que são chamados por ele de “mestres do domínio da consciência".
Ele aponta a dificuldade que é trazer, à luz da consciência, conteúdos do inconsciente,
afinal como trazer à tona algo que não se conhece? Seria como buscar algo invisível
usando a visão. Ele também aponta o estado de "consciência universal” atingido pelos
iogues, onde o inconsciente integra a consciência do Eu, o Ego, um estado de
28

iluminação de si mesmo que é atingido através da dissolução da personalidade. Ele


aponta que por mais que o método deles seja fascinante, para nós do ocidente seria
algo que beira o impossível devido a divergências culturais.

Definindo a ideia do que seria a totalidade do Eu, Jung (2000) diz que essa
totalidade não é obtida através da eliminação de tudo que é inconsciente, no sentido
de trazer tudo isso para a consciência, mas iluminando o inconsciente de uma maneira
onde ele coopere com o consciente. É tornar-se um indivíduo que consegue cooperar
de forma direta com aquilo que ele não conhece sobre si mesmo. A realização de
todas as qualidades presentes dentro do ser humano, sejam elas conscientes e
inconscientes (JUNG, 2014).

Para o processo de Individuação vale também considerar que o ser humano


também é coletivo, composto também por fatores universais, tanto conscientemente
quanto inconscientemente (JUNG, 2014). A Individuação também é a realização e
cooperação desses fatores coletivos, o sujeito ao buscar sua Individuação não só
beneficia a si mesmo, como também ao coletivo em que se insere. Mas ao lidar com
questões do inconsciente coletivo durante a Individuação, o processo fica mais
complicado, afinal são imagens primordiais que fogem do escopo de tudo aquilo que
o sujeito pode ter lidado em vida (JUNG, 2014).

A Individuação não é só se despir das máscaras da Persona ou das amarras


da Sombra, também é se libertar das influências das imagens primordiais, ou seja, os
arquétipos (JUNG, 2014). É atingir um nível de totalidade em tudo aquilo que compõe
o sujeito como sujeito, encontrar o si mesmo que está enterrado dentro daquilo que o
sujeito acredita que ele é. Em uma linguagem mais coloquial, seria o desabrochar de
uma semente que habita dentro de cada pessoa, onde essa semente define o que
essa pessoa realmente é. Essa semente seria o seu Self, seu si mesmo que vive sob
todas as camadas de máscaras e complexos que são impostas sobre ele.

3.2. O SEGREDO DA FLOR DE OURO.

Jung durante muito tempo buscou algo que desse respaldo sobre suas teorias
sobre a Individuação. Era algo que ele encontrava nas evidências de suas
experiências, mas não encontrava algo prévio a ele que falasse sobre esse despertar
29

do si mesmo em direção a ele próprio buscando a totalidade (JUNG; WILHELM, 1998).


Mas isso tudo mudou quando Wilhelm enviou para ele seu manuscrito da tradução do
livro O Segredo da Flor de Ouro, uma obra que aborda uma filosofia chinesa que fala
justamente desse despertar do si mesmo, de um sujeito alinhado com sua verdadeira
natureza e consequentemente alinhado com a natureza que o cerca (JUNG;
WILHELM, 1998).

Jung afirma que inconscientemente vinha buscando algo que já era tratado por
milênios por grandes pensadores orientais, esse despertar da consciência rumo a sua
totalidade (JUNG; WILHELM, 1998). Ele diz que a obra representa a essência daquilo
que ele almejava alcançar em seus pacientes, quase que como um paralelo, um
objetivo tão semelhante surgindo entre culturas tão distintas (JUNG; WILHELM, 1998).
Algo que Jung por muito tempo percebia acontecer em suas práticas, mas não podia
imaginar que um povo inteiro seguia esse mesmo objetivo muito antes dele nascer.

Tendo isso em mente, mais uma vez ele traz o Inconsciente Coletivo como
fundamentador desse acontecimento, esse substrato comum presente na psique de
todas as pessoas independentemente de sua cultura, essas propensões latentes e
quase instintivas do ser humano de se relacionar com ele mesmo e com o mundo a
sua volta (JUNG; WILHELM, 1998). Conclui-se então que a Individuação também
funciona como um Arquétipo, uma força latente presente em todo ser humano que o
faz buscar a si mesmo, a se conhecer, a viver da maneira que ele sente de uma forma
quase inexplicável que é o certo a se fazer.

Tanto a obra O Segredo da Flor de Ouro quanto a Individuação de Jung falam


sobre algo que no centro são semelhantes, a busca e a realização do si mesmo. É um
propósito que eleva o ser humano a patamares de consciência sobre si e sobre o
mundo que muda completamente a visão que ele tem de ambos, e inevitavelmente o
faz perceber a grandeza que habita em todas as coisas.

3.3 ATINGINDO A INDIVIDUAÇÃO.

Jung (2000) afirma que o processo de individuação se inicia quando o ego se


separa do arquétipo da Grande Mãe, criando assim sua primeira percepção do que
seria sua individualidade. A individuação não é um processo retilíneo, mas sim uma
30

espiral até o centro do sujeito, como uma mandala. É uma caminhada evolutiva onde
o destino é o próprio processo, considerando que o sujeito provavelmente nunca
atingirá o estado pleno da Individuação, mas a cada passo ele estará mais próximo
do seu si mesmo.

A Individuação é um contínuo processo de análise pessoal e de descoberta na


busca de aceitar e assimilar a totalidade da psique do sujeito, tanto em seus aspectos
individuais quanto coletivos (JUNG, 2000). Ela não só é um processo inato a todo ser
humano, como um arquétipo, mas também pode ser buscada conscientemente, e
essa era a proposta de Jung. Cada sujeito conscientemente decidindo buscar esse
centro dentro dele mesmo e a cada dia enfrentando as adversidades que são
consequências de tal decisão. Durante o processo o sujeito estará em confronto com
diversos aspectos de sua personalidade que não são agradáveis, muitos deles
reprimidos. Mas o confronto com a própria sombra é parte do processo. E é através
da superação dessas adversidades que o crescimento ocorre.

O início do processo analítico é a decisão consciente de levar a sério e analisar


os próprios sentimentos e fantasias (JUNG, 2000). Por isso neste trabalho é
apresentado a possibilidade de analisar a relação estabelecida sentimentalmente e
fantasiosamente com os arquétipos que surgem nas mídias audiovisuais. Há ali
conteúdos que se analisados, serão agentes de transformação na vida do sujeito.
Considerando que conteúdos inconscientes são projetados (JUNG, 2000), o sujeito
também projeta esses conteúdos sobre as mídias audiovisuais que ele consome,
produzindo uma relação de afeição ou desafeto a determinados personagens. E
através da análise dessa projeção, é possível identificar diversos traços da
personalidade do sujeito, promovendo um confronto com esses traços em benefício
da Individuação.
31

CAPÍTULO 4: ARQUÉTIPOS, MITOLOGIA E SUA RELAÇÃO COM O INDIVÍDUO.

4.1 MITOLOGIA E A EXPERIÊNCIA DO SAGRADO.

Eliade (1972) traz uma afirmação sobre como hoje em dia os mitos não são
mais vistos da mesma forma que os povos que os originaram, eles são vistos como
se esses povos as quais os mitos pertencem, atribuíssem uma realidade concreta aos
fatos e acontecimentos narrados, ignorando todo o valor simbólico.

Isso é herança de como as mentes eruditas e estudiosas do século XIX viam


essas histórias, por atribuírem o juízo de valor “arcaico” e “primitivo” a esses povos,
fazendo todo um apagamento da experiência com o sagrado que esses povos tinham
com essas histórias. Ela também fala sobre as influências do cristianismo nessa
concepção, sobre como tudo que não está na bíblia é uma ilusão, é falso, é irreal.

Eliade (1972) traz a necessidade de compreender e reconhecer os mitos como


fenômenos humanos e da cultura, criações advindas do seu espírito, não como
contradições científicas e patológicas. Mas infelizmente essa é a herança que temos
hoje em dia sobre a mitologia, são contos fantasiosos sem valor de povos que não
tinham conhecimento científico e era dessa forma que eles percebiam a realidade. É
preciso recuperar o sentido sagrado dos mitos a fim de realmente entendê-los.

Para se entender o sagrado presente nos mitos, a observação externa não é


suficiente para absorver tudo que é necessário, é preciso uma perspectiva
fenomenológica (CAZELLI, 2020). Não basta ler o mito e racionalizar o que o conteúdo
ali contido pode significar, é preciso entender o que cada coisa ali presente significava
para o povo que o concebeu, na época em que tais conhecimentos se difundiam.

É da natureza do mito ser extremamente simbólico, e o símbolo pode ser


interpretado de forma diferente dependendo de quem o interpreta e quais são
experiências prévias dessa pessoa. Um gato hoje em dia não carrega o mesmo valor
simbólico que carregava no antigo Egito, então ao ver uma deusa com cabeça de
gato, a deusa Bastet, de forma alguma vemos o mesmo potencial simbólico de alguém
que vivenciou a cultura de onde essa deusa vem.

Cazelli (2020) fala sobre como a experiência com o sagrado dentro dos mitos
e das religiosidades parte de um irracional necessário, pois a experiência é
32

sentimental. Essa experiência exerce um impacto sobre o sujeito e esse impacto só é


possível caso haja algo externo e transcendente a ele com o qual ele possa se
relacionar, uma qualidade superior. Ele também fala sobre como essa experiência
sentimental não pode ser ensinada, ela só é percebida em sua totalidade caso seja
experienciada.

O objetivo dessa perspectiva fenomenológica é justamente resgatar a


experiência que esses povos tinham com seus mitos (CAZELLI, 2020). Com os
estudos antropológicos, históricos e arqueológicos corretos é possível “se colocar no
lugar” das pessoas que viviam nessas épocas e então resgatar o significado real por
trás de seus mitos. Tanto Eliade (1972) quanto Jung (2000) falam que o mito se trata
justamente de algo simbólico que reflete a psique do ser humano, são alusões de
fenômenos da natureza alinhados à própria natureza do ser humano.

O sagrado era vivo na mitologia desses povos (ELIADE, 1972), e alguns desses
ainda perduram até hoje e através de muita luta para simplesmente conseguirem se
manter existentes. Pois não só a religião majoritária promoveu um apagamento
dessas culturas, a própria ciência fez isso em determinados momentos da história ao
impor seus rótulos e seus juízos de valor sobre essas culturas.

Embora, hoje em dia, a ciência reconheça o valor histórico dessas culturas, os


problemas de confronto contra a religião majoritária ainda existem. O cristianismo
fundamenta a partir de si mesmo o desprezo por tais religiões e práticas não-cristãs,
e o discurso de ódio direcionado para qualquer dessas práticas que até hoje ainda se
mantém vivas é absurdo.

4.2. O SIMBÓLICO.

O símbolo são imagens que necessitam de uma certa conduta interpretativa,


pois seu significado não é explícito, não se faz presente à primeira vista (HIGUET,
2015). É algo que traz um significado para além do que está sendo mostrado ali de
forma explícita, normalmente caracterizado por interpretação subjetiva, ou seja,
independente do significado que o símbolo evoca, o modo como ele vai ressoar no
sujeito vai ser característico a sua experiência pessoal e a sua vivência. Pode-se dizer
33

que o símbolo é um atributo não caracterizado pelo seu significado específico, mas
aponta para a dimensão de um sentido (CAZELLI, 2020).

Com o símbolo não há algo de realidade concreta sendo representado, ele não
é um significado que pode ser absorvido de forma empírica, mas um sentido ou um
ideal que pode somente ser manifestado através de uma linguagem simbólica. É um
sentido que ao ser comunicado de forma racional, é impossível não comunicá-lo de
forma inequívoca, já que não se trata de algo que pode ser objetificado. Ou seja, o
símbolo ou o simbólico é a forma mais adequada de transmitir conteúdos de
características transcendentes (CAZELLI, 2020). E como já foi comentado
anteriormente, o simbólico é a principal característica dos mitos.

Os símbolos presentes nos mitos não são fabricados, são manifestações


espontâneas da psique humana, derivando-se dos arquétipos. Isso não é algo feito
de forma proposital, é algo que simplesmente acontece quase que inconscientemente
(CAZELLI, 2020). E tendo o simbólico como principal ferramenta de transmissão de
significado dentro dos mitos, é oferecido uma gama infinita de interpretações,
considerando que cada mito vai ressoar de forma diferente dentro de cada pessoa.
Através do mito que está sendo comunicado o sujeito pode criar insights sobre a
própria vida que podem ajudar ele na resolução de questões internas no que diz
respeito a essas questões, afinal a principal função do mito é levar o sujeito a reflexão
de determinados aspectos através do símbolo.

4.3 O MITO MODERNO.

Campbell (2004) fala sobre como o mito também influencia a


contemporaneidade, que ele está presente na vida cotidiana e que isso constrói novas
formas do sujeito perceber sua individualidade, criando também novas maneiras de
se olhar o fenômeno do sagrado. Campbell (2004) também se aproxima das ideias de
Jung sobre arquétipo, trazendo o sentido dessas imagens presentes no inconsciente
se expressando de uma forma contemporânea. Pode-se então dizer que hoje em dia
esses mesmos arquétipos que se manifestavam através dos mitos e expressavam um
valor simbólico profundo também se manifestam nas histórias contadas hoje em dia.
34

No ato de contar histórias o sujeito busca estabelecer conexão e sentido com


o mundo. Tal busca é um ato intrínseco à natureza humana, algo que faz com que os
mitos sejam parte de diversas culturas e povos ao redor do mundo (CAZELLI, 2020).
Dentre as formas que temos hoje em dia de se contar histórias, uma das mais
populares são as mídias audiovisuais, como filmes, séries, desenhos animados, etc.
Mas não é toda história que vai se caracterizar como um novo mito, é preciso primeiro
analisar o paradigma proposto nessa história, se sua narrativa se aproxima com a
função que o mito exerce sobre o sujeito, se a história conversa com a capacidade do
ser humano de dar sentido às coisas (CAZELLI, 2020).

É possível então perceber que existe uma relação entre o fenômeno do


sagrado enquanto aquilo que é transcendental e simbólico, com as histórias que são
contadas hoje em dia. Knowles (2008) aponta que a popularidade dessas histórias,
principalmente as habitadas por super-heróis, está relacionada com a necessidade do
mito na estrutura da psique humana. Ele fala sobre uma necessidade de um
sentimento de encantamento, e que em sua experiência pessoal ele aprendeu mais
sobre valores morais e éticos tendo contato com essas novas formas de se contar
histórias, conceitos que são bastante falados e ensinados nas igrejas ou outros
centros religiosos.

Também é possível perceber os fenômenos do Inconsciente Coletivo se


manifestando através dessas histórias, sejam pelos arquétipos representados nos
personagens ou pelas temáticas tratadas na obra. Nota-se um alinhamento entre o
tipo de história que é mais consumida em determinada época com os acontecimentos
históricos dessa época. Como o Superman, que quando foi criado ele trazia esse
sentimento de segurança em relação à ameaça constante das guerras que ocorreram
no século passado (CAZELLI, 2020).

Essas novas histórias cumprem uma importante função na psique do sujeito


(CAZELLI, 2020). Há uma necessidade inata e quase instintual que leva o sujeito em
direção ao mito, ao sagrado e ao simbólico. Essa necessidade acaba se manifestando
nas novas formas que o sujeito encontrou de contar histórias, sendo o herói o tema
mais comum nas histórias de hoje em dia. Mas cada arquétipo vai achar um lugar em
algum personagem e o próximo capítulo irá trazer exemplos disso.
35

CAPÍTULO 5: PERSONAGENS MODERNOS E SEUS ARQUÉTIPOS.

O capítulo irá mostrar alguns exemplos de arquétipos sendo representados em


personagens. Será feito também uma análise dos símbolos desse personagem, seja
em sua roupa, personalidade ou em suas atitudes que evidenciem a transmissão
desse significado arquetípico.

5.1. HANNAH MONTANA, A PERSONA.

Hannah Montana foi uma série estadunidense que foi ao ar entre os anos de
2006 e 2011 e era estrelada pela atriz e cantora Miley Cyrus. A personagem que dava
nome a série era uma cantora muito famosa e que vivia uma vida dupla, nos palcos
ela era Hannah Montana e na sua vida privada era Miley Stewart. Considerando que
a Persona é a máscara que é usada para se apresentar ao mundo (JUNG, 2000),
pode-se perceber o arquétipo se manifestando através da personagem.

FIGURA 1 - HANNAH MONTANA.

Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em: <https://lumiere-a.akamaihd.net/v1/images/hm-


16x9_0bd6c84d.png?region=0,0,1920,1080&width=960>. Acesso em: 15/05/2022.

Durante a série há diversos momentos onde a personagem se encontra nessas


situações onde percebe a ambiguidade de sua identidade, onde ela se questiona
quem ela realmente é, se ela é Miley Stewart ou se ela é Hannah Montana. Pode-se
identificar aqui uma alegoria para quando o sujeito se identifica com a Persona,
quando ele se vê como a máscara, que para Jung (2000) é um dos maiores perigos
da relação do sujeito com esse arquétipo.
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Também é possível perceber as questões que Jung (2000) fala sobre a pressão
que a sociedade e a cultura fazem para cumprir certas demandas de imagem. Hannah
Montana é uma figura pública, ela vive dessa imagem e sua relevância depende dessa
imagem. Por isso Miley cria essa Persona para facilitar seu contato com esse mundo,
mesmo diversas vezes esses dois mundos, o externo sendo lidado pela Persona
Hanna, e o interno sendo lidado pela pessoa Miley, entram em conflito, onde ela não
sabe divergir essas duas identidades.

5.2 DOPPIO E DIAVOLO, A SOMBRA.

Doppio e Diavolo são personagens e os antagonistas da quinta parte da série


animada japonesa JoJo’s Bizarre Adventure. A história se passa na Itália no ano de
2001, onde o protagonista Giorno Giovanna, um adolescente de quinze anos e
imigrante japonês, tenta levar a vida dando pequenos golpes em turistas. Mesmo em
sua natureza criminosa ele é alguém de bom coração, o crime é somente uma forma
de sobreviver e ele sonha em mudar a situação do país no que diz respeito ao crime
organizado. Para seguir esse sonho ele acaba entrando para a máfia, em uma
organização criminosa chamada Passione, onde Diavolo é o líder e Doppio seu braço
direito, seu aliado mais próximo.

FIGURA 2 - DOPPIO E DIAVOLO.

Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em:


< https://pbs.twimg.com/media/Exz8LTwXAAAsK1y.png>. Acesso em: 15/05/2022.
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Durante toda a história a identidade do líder da Passione é mantida em


segredo, todo contato com esse líder é feito através de Doppio, mas na reta final é
revelado que Doppio e Diavolo são a mesma pessoa, duas personalidades
completamente diferentes e distintas habitando o mesmo corpo. E aqui podemos ver
uma boa representação do arquétipo da Sombra, mas numa análise mais minuciosa
desses dois personagens, que podem ser considerados como um só, veremos
representações bastante assertivas.

Durante toda a série Diavolo se esforça ao máximo para se manter oculto, o


traço mais marcante de sua personalidade é sua compulsão em se manter um mistério
diante de todos. Oculto até mesmo de Doppio, todo contato entre as duas
personalidades é através de um telefone imaginário que toca toda vez que Diavolo
necessita falar com Doppio. Ou seja, para Doppio, Diavolo não é uma parte dele
mesmo, mas algo externo. Aqui se percebe uma característica marcante da sombra,
que é a projeção, aquilo que está dentro do próprio sujeito, que por sua natureza
sombria ele nega e acaba sendo projetado como algo externo (JUNG, 2000).

A série também traz uma premissa fantasiosa, todos os personagens principais


têm superpoderes, uma projeção extrafísica chamada Stand que personifica parte da
personalidade de seu usuário. O Stand de Diavolo, chamado King Crimson, possui
uma habilidade cuja natureza é apagar momentos do tempo presente, tudo que
acontece durante alguns segundos no agora passa a não existir e as pessoas afetadas
por essa habilidade não tem recordações do que aconteceu nesse período, mas
conscientemente sabem que algo aconteceu. Essa é uma alegoria extraordinária ao
papel da Sombra de ser o reservatório daquilo que desagrada o Ego, conteúdos que
são enviados a um local de esquecimento (JUNG, 2000).

FIGURA 3 – KING CRIMSON, HABILIDADE DE DIAVOLO.


38

Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em:


<https://static.jojowiki.com/images/thumb/c/c6/latest/20191015213856/King_Crimson_Infobox_Anime.
png/400px-King_Crimson_Infobox_Anime.png>. Acesso em: 15/05/2022.

Doppio e Diavolo seguem a representação clássica do arquétipo da Sombra,


uma personalidade adjacente à principal que permanecesse oculta, como no clássico
da literatura O Médico e o Monstro, com os personagens Dr. Jekyll e Mr. Hyde. A
própria palavra Diavolo se traduz como Diabo, a representação mais antiga que se
tem do arquétipo da Sombra, uma imagem constantemente representada não só nas
mídias, mas também pelo cristianismo.

5.3 RAMONA FLOWERS, A ANIMA.

Ramona Flowers é uma personagem coadjuvante do filme Scott Pilgrim Vs.


The World. Ela é a personagem por quem o protagonista, Scott Pilgrim, é apaixonado,
inspirando nele diversas características comuns ao arquétipo da Anima. A primeira
que se pode perceber é a da personificação das tendências psicológicas do feminino
(JUNG, 2014), a expectativa interna que Scott Pilgrim tem sobre a mulher ideal, a
mulher dos seus sonhos.

FIGURA 4 – RAMONA FLOWERS

Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em:


< https://i.pinimg.com/736x/64/82/10/648210583979c9ad72526c51830424a7.jpg>. Acesso em:
15/05/2022.
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Ramona infundo Scott com vida, paixão, desejo e libido. Na premissa do filme,
Scott precisa enfrentar todos os ex-namorados de Ramona para que eles possam ficar
juntos. Ele se encontra ávido para executar tal tarefa, mesmo ainda tendo medo, pois
o objetivo e a recompensa de tal ordálio seria o amor da mulher perfeita aos olhos
dele, o feminino que acende sua alma.

5.4 MR. BIG, O ANIMUS.

Mr. Big é um dos personagens da série americana Sex and the City,
protagonizada por Carrie Bradshaw. Durante toda a trama eles atuam como uma
espécie de casal platônico, um amor correspondido, mas que devido a natureza da
personalidade dos dois, parece ser um amor impossível. Mr. Big carrega muitas das
características dos aspectos negativos do Animus, um homem prepotentemente
masculino, dominado pelo seu ego e por sua necessidade de controle, poder e sua
incapacidade de demonstrar vulnerabilidade. Ele muitas vezes revela um lado de sua
personalidade onde impõe sua construção de realidade sobre Carrie,
desconsiderando as convicções que ela mesma pode ter, características que Franz
(1969) atribui ao Animus em seu aspecto negativo.

FIGURA 5 – MR. BIG.

Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em:


<https://i.pinimg.com/736x/61/14/80/6114800828864f65b57eb70053713d05--chris-noth-chris-
delia.jpg>. Acesso em: 15/05/2022.
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Mas Mr. Big não de todo negativo, ele também carrega características
positivas, ele inspira amor na Carrie, faz ela enxergar um mundo de possibilidades ao
seu lado. Todos os aspectos negativos da personalidade dele são trabalhados ao
longo da série, onde no fim eles superam essa característica platônica do amor deles
e acabam ficando juntos.

5.5. ROSE QUARTZ, A GRANDE MÃE.

Rose Quartz é uma personagem do desenho animado Steven Universe, que


conta a história de um garoto e sua família de “pedras alienígenas". Essas “pedras
alienígenas" são seres de um outro planeta que vieram para a terra para colonizá-la
e obter seus recursos naturais. Mas a invasão não deu certo por causa de uma guerra
civil entre esses seres pela defesa do planeta, e essa rebelião foi liderada por Rose
Quartz, mãe de Steven Universe.

FIGURA 6 – Rose Quartz.

Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em:


<https://i.pinimg.com/originals/05/b0/b5/05b0b54a43cdd680c5849980863e804a.jpg>. Acesso em:
15/05/2022.

Steven é meio humano, filho de uma “pedra alienígena" como um humano. E


no próprio nascimento de Steven já vemos um dos maiores aspectos da Grande Mãe,
a doadora de vida. Devido à natureza de seu corpo extraterrestre, Rose Quartz não
poderia conceber um filho com o humano por quem ela era apaixonada, e seu maior
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sonho era se tornar mãe, pois foi o próprio fenômeno da vida orgânica na terra que a
fez se rebelar contra sua espécie. Mas sua espécie é capaz de alterar a forma física
de seu corpo, então ela simulou um sistema reprodutor dentro de si só para poder
conceber uma criança.

Para poder dar à luz a Steven, Rose Quartz teve que abandonar de vez sua
forma física e sua consciência para que ela em si se tornasse seu filho. Ela deu a
própria vida para gerar seu filho. Ela se apaixonou pela vida e cedeu a sua para poder
gerar uma. Mas esse ato não é a única representação de Rose Quartz como o
arquétipo da grande mãe, ela também tinha poderes curativos e a capacidade de fazer
a vida orgânica, como plantas, se tornar sentiente. Quase todos os aspectos ao redor
de Rose Quartz apontam direto para o arquétipo da Grande Mãe.

5.6 IROH, O VELHO SÁBIO.

Iroh é um personagem da série animada Avatar: The Last Airbender. Ele, como
nenhum outro personagem, cumpre tão bem a função de Velho Sábio. Todas as
características que Jung (2000) traz sobre esse arquétipo são representadas nele: a
experiência de vida, o protetor do conhecimento, a sabedoria, o conhecimento do
espiritual, etc. Quase todo personagem da série que experimenta a Jornada do Herói
de Campbell (2005) se encontra com ele na fase do Encontro com o Mentor.

FIGURA 7 - IROH.

Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em:


<https://i.pinimg.com/originals/09/92/3b/09923b7849459ce6539a999f946a9a6c.png>. Acesso em:
15/05/2022.
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Independentemente da natureza da dificuldade, Iroh tem sempre um conselho


para dar, seja sobre as atitudes compulsivas de seu sobrinho Zuko em querer capturar
o Avatar Aang, ou quando Toph, uma personagem que durante a fase da história onde
eles se encontram ela seria sua inimiga, pede conselhos a ele sobre a dificuldade de
lidar com seus amigos. Ele como nenhum outro personagem personifica tão bem esse
arquétipo do Velho Sábio.

5.7 HARRY POTTER, O HERÓI.

Como o arquétipo do Herói é o mais comumente representado nas mídias


audiovisuais, as possibilidades de escolha de um personagem que represente esse
arquétipo são várias. Harry Potter é uma das sagas mais populares que se tem hoje
em dia, mesmo após as controvérsias envolvendo transfobia por parte da autora que
deu vida a esse personagem, essa saga nunca saiu de seu apogeu, com diversas
novas histórias dentro desse mesmo universo saindo constantemente. Harry Potter é
uma saga com oito filmes, mas este trabalho irá focar no primeiro filme: Harry Potter
and the Sorcerer 's Stone.

FIGURA 8 - Harry Potter.

Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em:


<https://i.pinimg.com/originals/cf/a7/f8/cfa7f8e3c8d3735d3c3aa121995e5113.jpg>. Acesso em:
15/05/2022.
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O filme conta a história de um menino que acreditava que seus pais tinham
morrido em um acidente de carro e devido a isso morava com seus tios, que não
tratavam ele bem. Então ele descobre que é um bruxo e que na verdade seus pais
tinham sido assassinados por Lord Voldemort, o antagonista da série. Então ele vai
estudar em uma escola de magia e bruxaria, onde grande parte da história se passa.

Durante o filme Harry passa por todas as fases da Jornada do Herói de


Campbell (2005). O Mundo Comum seria sua estadia com seus tios no mundo não-
bruxo, o Chamado à Aventura seria a descoberta de que ele é um bruxo e o convite
para estudar na escola de magia Hogwarts. A Recusa do Chamado ocorre logo em
seguida quando ele nega sua natureza enquanto bruxo e a Travessia do Primeiro
Limiar sua decisão de ir para essa escola. Sua estadia na escola condensa as fases
Provas, Aliados e Inimigos e a Aproximação da Caverna. Sua Provação é quando ele
enfrenta Lord Voldemort no fim do filme, recuperando a Pedra Filosofal. O Retorno
com o Elixir seria sua volta para o Mundo Comum, para a casa dos seus tios.

5.8. O MÁSKARA, O TRAPACEIRO.

Stanley Ipkiss, interpretado por Jim Carrey, é o protagonista do filme. Um


homem comum que leva uma vida comum até o momento em que encontra uma
máscara de madeira viking, associada ao deus Loki, uma das representações
mitológicas do Trapaceiro. Essa máscara dá a ele as habilidades de conceder e se
entregar aos seus desejos mais íntimos, uma das características principais desse
arquétipo.

FIGURA 9 - O MÁSKARA.
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Fonte: IMAGEM DA INTERNET. Disponível em:


<https://i.pinimg.com/originals/01/5c/4e/015c4e2d83975aa67e2134d44af81f18.jpg>. Acesso em:
15/05/2022.

As características de entrega ao instinto e do arruaceiro não são as únicas


representadas por esse personagem, ele também carrega diversas das características
positivas do arquétipo, como o louco, bobo e visionário. O personagem em diversos
momentos enfrenta o crime das maneiras mais inusitadas e cômicas possíveis, nada
que ele faz segue a linha do previsível, é sempre fora do convencional, características
que Jung (2000) atribui ao arquétipo do trapaceiro.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O trabalho em questão buscou analisar o conceito de arquétipo, inconsciente


coletivo e individuação apresentados por Jung e como isso se apresenta nas mídias
audiovisuais modernas fundamentando-se no conceito do mito moderno. O objetivo
baseou-se na justificativa de que os conceitos de Jung estão sempre envoltos de um
estigma místico, o que acaba dificultando o acesso de um público mais científico ao
seu trabalho. Jung acaba sendo bastante descredibilizado pelos seus trabalhos por
beber de fontes filosóficas que não são eurocêntricas, mas são justamente essas
fontes que dão riqueza a suas ideias, ele consegue trazer diversos conceitos dessas
filosofias para o escopo da ciência como nenhum outro teórico já fez. Mas não só sob
a justificativa de desestigmatizar as ideias de Jung que se inspirou esse trabalho, mas
também os benefícios para a qualidade de vida no quesito de construção de
ferramentas para o autoconhecimento do sujeito que tais estudos podem trazer.

O método utilizado foi a revisão bibliográfica, foi consultado os principais textos


de Jung que abordam o tema, como também alguns outros autores que falam sobre
isso. Também foi consultado obras que falam sobre o conceito de mito, do simbólico,
do sagrado nos mitos e como esses conceitos ainda reverberam na
contemporaneidade. Obras audiovisuais foram exemplificadas no trabalho como
forma de fundamentar essa reverberação.

O objetivo geral foi analisar como o conceito de arquétipo, apresentado por


Jung, se apresenta na contemporaneidade e suas relações com as mídias
audiovisuais. Os específicos foram: definir o que é arquétipo, inconsciente coletivo e
individuação, mostrar a relação do sujeito com esses arquétipos tanto na antiguidade
como atualmente, definir o que é mito moderno, exemplificar esses arquétipos nas
mídias audiovisuais modernas e mostrar como essa análise pode ser benéfica para o
processo de individuação.

Todos os objetivos foram cumpridos e através disso foi possível perceber como
o mito e o sagrado presente nos mitos ainda reverbera na contemporaneidade, pois a
necessidade do sujeito do transcendental é intrínseca a ele. Embora a ideia que o
sujeito tem sobre o mito tenha mudado ao longo da história, essa busca dele por um
sentido maior e sagrado, no sentido do simbólico, ainda se manifesta. E através dos
exemplos de personagens e seus respectivos arquétipos, foi possível perceber isso.
46

Através do conhecimento aqui abordado é possível estabelecer a possibilidade


de analisar determinados aspectos da personalidade do sujeito através da forma como
ele se relaciona com os personagens das mídias audiovisuais que ele consome.
Digamos que o sujeito assista uma das obras aqui citadas, será usando Steven
Universe, como exemplo. E ao assistir ele desenvolve uma reação aversiva ao
personagem Rosa Quartz, considerando o que Rose Quartz representa
simbolicamente em sua representação do arquétipo da Grande Mãe, o que essa
reação aversiva poderia dizer sobre esse sujeito? A proposta do trabalho não é
responder essa pergunta, mas estabelecer a possibilidade de autoconhecimento
através dessa análise.

Partindo desse último ponto citado é possível abrir uma gama imensa de
estudos explorando essas possibilidades e suas nuances. Pode-se buscar
ferramentas de como estabelecer essa análise, pode-se buscar o que a popularidade
de determinado personagem em um local específico tem a dizer sobre aquela
população, ou até mesmo o que determinado personagem tem a dizer sobre a pessoa
que o criou. Este trabalho seria então como uma chave, algo que abre portas para
diversas possibilidades de estudos sobre a subjetividade do sujeito, tanto a nível
pessoal como coletivo.
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REFERÊNCIAS

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2005.

______. As máscaras de Deus. São Paulo: Palas Athena, 2004.

CAZELLI, F. R. Mito e Sagrado nas Histórias em Quadrinhos: uma abordagem


fenomenológica. Curitiba: CRV, 2020.

HIGUET, Etienne A. Imagens e Imaginário: subsídios teórico-metodológicos para a


interpretação de imagens simbólicas e religiosas. In: NOGUEIRA, Paulo A. de S.
(org.). Religião e linguagem. São Paulo: Paulus, 2015.

JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis, Vozes, 2014.

______. O livro vermelho (Liber Novus). Petrópolis: Vozes, 2010.

______.. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000, vol.


IX/1.

______. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 2000, vol. VIII/2.

______.; WILHELM, Richard. O Segredo da Flor de Ouro. Petrópolis: Vozes, 1998.

______.. O homem e seus símbolos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1969.

KNOWLES, Christopher. Nossos deuses são super-heróis. São Paulo: Cultrix,


2008.

NEUMANN, Enrich. História da origem da consciência. São Paulo, SP: Cultrix:


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SAMUELS, A.; SHORTER, B.; PLAUT, F. Dicionário crítico de análise junguiana.


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SILVA, S. L. O arquétipo da sombra. Revista Extensão - 2019 - v.3, n.1.

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