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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Reitora: Anna Maria Marques Cintra

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Direção: Miguel Wady Chaia

Conselho Editorial
Anna Maria Marques Cintra (Presidente)
Cibele Isaac Saad Rodrigues
Ladislau Dowbor
Mary Jane Paris Spink
Maura Pardini Bicudo Véras
Norval Baitello Junior
Rosa Maria B. B. de Andrade Nery
Sonia Barbosa Camargo Igliori
Copyright © 2013. Eloisa M. D. Penna. Foi feito o depósito legal.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP

Penna, Eloisa M. D.
Epistemologia e método na obra de C. G. Jung / Eloisa M. D. Penna. - São Paulo:
EDUC: FAPESP, 2013.
Bibliografia.

ISBN 978-85-283-0472-5

Originalmente Dissertação de Mestrado - PUC-SP, 2003.

1. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 - Crítica e interpretação. 2. Psicologia junguiana. 3.


Arquétipos (Psicologia). I. Título.
CDD 150.1954
154.3

EDUC – Editora da PUC-SP

Direção
Miguel Wady Chaia

Produção Editorial
Sonia Montone

Preparação e Revisão
Sonia Rangel

Editoração Eletrônica
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Produção do ebook
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AGRADECIMENTOS

Este trabalho contou com a contribuição direta e indireta de


muitas pessoas, às quais sou muito grata. Entre os colaboradores
anônimos, estão os meus alunos do curso de psicologia da PUC-SP
e os trainees do Instituto de Formação C. G. Jung da SBPA, que,
com suas dúvidas, inquietações e curiosidade intelectual, são um
incentivo constante para mim. Agradeço aos meus colegas da
equipe de professores de Psicologia Analítica, assim como os da
equipe de professores da disciplina de Teorias e Técnicas
Psicoterápicas da PUC-SP e da Comissão de Ensino da SBPA,
pelas discussões enriquecedoras, os problemas e as polêmicas
educacionais teórico-práticas compartilhados.
Agradecimentos especiais a Felícia Araújo, pela colaboração,
pelo incentivo ao projeto inicial deste livro e pela ajuda inestimável
na revisão das referências bibliográficas. Sou também
especialmente grata a Luisa de Oliveira, Durval L. de Faria e Ida
Cardinalli, pelas conversas produtivas e esclarecedoras sobre a
organização e a publicação editorial.
PREFÁCIO

C. G. Jung, no desenvolvimento de sua obra, que se tornou


conhecida como “psicologia analítica”, não se preocupou, a
princípio, em descrever um método que permitisse aos seus
seguidores dar continuidade conceitual e acadêmica aos seus
achados. Jung, como pensador intuitivo que era, foi desvendando o
inconsciente, tanto no nível pessoal quanto coletivo, com análises
profundas, utilizando-se para isso de seu conhecimento médico,
psicológico, filosófico, biológico e mitológico, entre outros. Como ele
mesmo afirmou em sua última entrevista, em 1959, à BBC de
Londres, quando jovem pensava em estudar antropologia ou
mitologia, mas a necessidade de ganhar seu sustento o levou à
medicina, em que, segundo ele, poderia unir seus vários interesses
em uma profissão mais lucrativa.
Esses múltiplos interesses, aliados a um raciocínio agudo e
perspicaz, tornaram sua obra por vezes extremamente complexa.
Essa complexidade de pensamento, embora crie uma leitura fluente
e profunda, ao mesmo tempo provoca em seus discípulos o desafio
de traduzi-la em objetivos claros e em experimentos de possível
comprovação científica.
Como sabemos, logo no início de sua carreira, Jung já fazia
restrições ao método psicanalítico, considerado por ele como
unilateral e determinista. Dezenove anos mais jovem que Freud e
influenciado pelos últimos achados da física e da biologia de sua
época, desenvolveu um raciocínio não casualista, mas finalista e
construtivista. Sem rejeitar totalmente o método freudiano, Jung
propõe sua ampliação, indo de uma orientação subjetivista a uma
objetivista, de um modelo clínico ao experimental e vice-versa.
Mas, no mundo acadêmico, a necessidade de comprovar
cientificamente os conceitos analíticos não fica esclarecida. Qual é o
método junguiano? Isto é, há um método junguiano?
O que nós clínicos fazíamos, de um certo modo intuitivo, na
universidade mostrava grandes desafios. Como planejar um
experimento? Como orientar nossos alunos em suas pesquisas sem
a forma mais objetiva e descritiva de um método?
Aqui está o valor deste livro e de sua autora, a professora
doutora Eloisa Penna. Há anos lecionando na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, onde há uma equipe de
professores que seguem a orientação da psicologia analítica, a
autora fornece uma base epistemológica segura para todos ao
refletir sobre essas questões e extrair da obra junguiana os
princípios básicos que podem guiar um trabalho acadêmico.
É uma obra original e que foi bastante elogiada
internacionalmente na ocasião de sua apresentação na I Academic
Conference, na Essex University na Inglaterra, organizada pela
International Association for Jungian Studies e pela Internacional
Association of Analytical Psychology. Colegas de várias
universidades, em especial da Inglaterra e dos Estados Unidos,
debateram o assunto com a autora, reconhecendo o valor deste
trabalho como um avanço imprescindível no movimento junguiano.
Com este livro, passamos a ter um guia para as nossas
observações e reflexões experimentais. Com ele, o mundo
acadêmico passa a ter agora uma referência fundamental,
confirmando mais uma vez a cientificidade e o modernismo da
abordagem analítica, como também a excelência acadêmica de sua
autora.

Denise Gimenez Ramos


Professora titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-
SP; membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

A psicologia analítica de C. G. Jung

FORMAS DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO: SER E CONHECER

Mito, religião, arte e filosofia

Filosofia e ciência na passagem da mentalidade medieval para a modernidade

Ciência, epistemologia, método e tecnologia

Concepção de ciência na modernidade

A vertente romântica do conhecimento na arte e na ciência modernas

Sobre teoria e prática

Sobre paradigma

Ciência, epistemologia e método na pós-modernidade

ORIGENS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

Filosofia alemã: Goethe, Kant e os filósofos românticos

Psiquiatria dinâmica

Psicologia
Psicologia profunda: a psicologia do inconsciente

EIXO CRONOLÓGICO DA OBRA: DO MÉTODO EXPERIMENTAL À AMPLIFICAÇÃO


SIMBÓLICA

Uma visão de ciência para além do positivismo lógico


Fraternidade Zofíngia (1896-1900)

Novas perspectivas na compreensão e no tratamento da doença mental


Burghölzli (1900-1909): método experimental e associativo na psiquiatria

Consolidação da hipótese do inconsciente e sua investigação na psicologia


Freud e a psicanálise (1906-1912): método associativo e interpretativo

O inconsciente mitológico
Divergências com a psicanálise (1909-1913): método associativo e comparativo

Abordagem simbólica da psique: causalidade e finalidade


Psicologia analítica (1914-1928): método sintético hermenêutico
Integração das perspectivas energético-final e redutivo-causal

Revisão, ampliação e consolidação do paradigma (1930-1949)


Método hermenêutico construtivo, amplificação

A síntese final (1950-1961)


A sincronicidade amplia e conclui o paradigma junguiano

PARADIGMA JUNGUIANO

Perspectiva ontológica
Totalidade, unidade – diversidade, complexidade
Concepção de mundo
Concepção de ser humano
Realidade psíquica
Psique e alma
Inconsciente coletivo e arquétipo. Inconsciente pessoal e complexo
Dimensão simbólica

Perspectiva epistemológica
Sobre conhecimento
Origem, limites e funções da consciência
Processo de individuação, conhecimento e autoconhecimento
Possibilidades e limites do conhecimento do inconsciente
Símbolo: a ponte epistemológica para o inconsciente
Função transcendente, função criadora de símbolos
Causalidade, finalidade e sincronicidade
Relação eu—outro, sujeito—objeto
Perspectiva metodológica
Apreensão do símbolo
Meios de captar os símbolos
Sobre observação
Das particularidades do objeto de investigação
Da equação psíquica do sistema observador
Da dinâmica entre o sistema observado e o sistema observador
Considerações sobre a apreensão do fenômeno/símbolo
Considerações sobre o contexto do símbolo
Compreensão do fenômeno/símbolo
Pensamento simbólico: caráter hermenêutico do método
Os parâmetros de causa e finalidade: caráter sintético construtivo do método
O parâmetro da sincronicidade: caráter hermenêutico construtivo do método
Tradução, interpretação e elaboração dos símbolos
Sobre amplificação simbólica, método e técnica

Perspectiva simbólico-arquetípica

UM PARADIGMA CONTEMPORÂNEO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANEXOS

Obras de C. G. Jung

Vida e obra de C. G. Jung – Cronologia


INTRODUÇÃO

Este livro é fruto de minha dissertação de mestrado, realizada


no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da
PUC-SP, entre 1999 e 2002. A transposição do texto original da
dissertação para este livro tem o objetivo principal de torná-lo
acessível a um público mais amplo.
A Faculdade de Psicologia da PUC-SP foi pioneira, no Brasil
e no mundo, no ensino da psicologia analítica em seu curso de
graduação. A oportunidade de ter participado dessa iniciativa
pioneira, primeiro na qualidade de estudante e, depois, como
docente, está na gênese deste livro. O estudo sobre epistemologia e
método na obra de C. G. Jung configurou-se um tema de interesse
para mim, tendo surgido da minha prática clínica, como analista
junguiana, e da experiência acadêmica, sobretudo na orientação de
projetos de pesquisa dos alunos do curso de psicologia da PUC-SP,
bem como nos exames de qualificação e nas bancas de mestrado e
doutorado. Com essas experiências, ficou evidente, para mim, a
necessidade de uma publicação que contemplasse esse assunto.
A comunidade junguiana vem recentemente se preocupando
com a inserção da psicologia analítica na Academia e com sua
aplicação à pesquisa científica, no intuito de ampliar seu campo de
atuação para além da psicoterapia. Assim, um texto que se propõe a
organizar o material sobre epistemologia e método na obra de C. G.
Jung é relevante, em primeiro lugar, porque o material bibliográfico
disponível sobre esses temas se encontra amplamente disperso na
obra de Jung e na literatura junguiana em geral, salvo algumas
poucas exceções, como é o caso do livro de Jolande Jacobi, The
Psychology of C. G. Jung, publicado pela primeira vez em 1940 e
revisto pela autora em 1972, e, mais recentemente, em 2006, a
publicação da obra The Handbook of Jungian Psychology, editada
por Renos K. Papadopoulos. Ambas as publicações se dedicam a
sistematizar os principais conceitos de Jung e privilegiam sua
aplicação em psicoterapia.
A primeira vez que apresentei, para um público mais amplo,
meus estudos e minhas pesquisas sobre o método de investigação
junguiano foi na First International Conference for Jungian Studies,
na Inglaterra, em 2002. Nessa ocasião, Renos Papadopoulos
apoiou com entusiasmo o enfoque de meu trabalho. Em 2003,
minha dissertação de mestrado, Um estudo sobre o método de
investigação da psique na obra de C. G. Jung, foi apresentada na
PUC-SP; em 2004, colaborei com um artigo sobre a perspectiva
metodológica na obra de Jung na revista editada por Renos, Harvest
International Journal for Jungian Studies. O incentivo recebido por
Renos foi muito importante para a continuidade de meu trabalho
nesse tema e, hoje, culmina na publicação deste livro.
A questão do método na obra de C. G. Jung nunca foi um
tema propriamente negligenciado, mas também não foi priorizado
pela comunidade junguiana, que demonstrou pouco interesse por
sua sistematização. De forma nenhuma se pode falar em lacuna no
método da psicologia analítica, mas, sim, de escassez de literatura
dedicada a esse tema.
Quanto à epistemologia junguiana, a maioria das publicações
concentra-se na definição de conceitos, por vezes apresentados e
discutidos separadamente, o que, sem dúvida, é importante e útil
para o estudo da psicologia analítica. Entretanto, neste livro, o
objetivo principal se concentra em apresentar o desenvolvimento do
pensamento de Jung, articulando suas ideias numa perspectiva
cronológica e destacando suas bases ontológicas, seus
pressupostos e fundamentos epistemológicos e sua proposta
metodológica, visando à compreensão de seu modelo teórico como
um paradigma científico.
O entendimento da obra junguiana é possível se, e somente
se, o leitor acompanhar as inúmeras modificações que ele fez em
sua obra, revendo, refletindo e reformulando seus conceitos e seu
método ao longo de sessenta anos de estudos e pesquisas sobre a
psique humana. Em razão dessa característica da obra de Jung, um
erro comum que se observa, tanto entre os críticos como entre os
adeptos da psicologia analítica, é o recorte descontextualizado de
suas afirmações. O viés que esse tipo de leitura acarreta é por
vezes altamente desastroso, sobretudo quando se trata de
conceitos básicos como arquétipo e símbolo, que foram lentamente
construídos e repetidamente reformulados.
Cumpre salientar, ainda, que o enfoque clínico, pautado por
sensibilidade e empatia, requer flexibilidade e atenção às
particularidades da individualidade. O enfoque científico, por seu
turno, exige organização e generalização conceitual, a fim de
oferecer a consolidação de um conhecimento consistente e crítico
que contribua na formação de profissionais éticos, produtivos e
criativos, sendo, dessa forma, um subsídio para o desempenho
clínico também.
O presente texto insere-se nesse contexto e, portanto, irá se
ater à análise e discussão da epistemologia e do método de
investigação da psique de C. G. Jung, objetivando a sistematização
de seus pressupostos epistemológicos e metodológicos no contexto
científico atual, segundo o conceito de paradigma científico que
destaca as perspectivas ontológica, epistemológica e metodológica
como os aspectos que se articulam na composição de um
paradigma.
Espero que este livro possa servir como material didático
importante para o ensino da psicologia analítica; que possa se
constituir como subsídio para pesquisadores da psicologia analítica
e, ainda, para estudiosos que se interessem em aplicá-la em outras
áreas de conhecimento, para além da psicoterapia.
O foco central da narrativa situa-se na obra de Jung, assim, a
discussão e a sistematização foram organizadas em torno dos
textos e das palavras do autor.
O texto original de 2003 foi reorganizado, de modo a se
adequar ao formato livro, mas foi muito pouco alterado, exceção
feita a alguns acréscimos de referências mais atuais para as ideias
já colocadas no texto original e a alguns cortes para eliminar
repetições desnecessárias.
Todas as citações referentes às Obras completas de C. G.
Jung estão indicadas pelo número do volume, seguido do número
do parágrafo. No Anexo, encontra-se uma lista com todos os
volumes da coletânea de suas obras, contendo informações
bibliográficas detalhadas.
A psicologia analítica de C. G. Jung
Jung, além de exímio psicoterapeuta, foi um pensador que
construiu uma teoria psicológica inédita, em termos tanto
ontológicos, quanto epistemológicos e metodológicos, sendo
possível se falar na construção de um paradigma científico da
atualidade.
O desenvolvimento da psicologia analítica, ao longo do
século 20, deu-se, basicamente, em torno da psicoterapia. Em geral,
o modelo junguiano é abordado em sua aplicação clínica,
destacando-se, sobretudo, as técnicas utilizadas no processo
analítico.
A proposta teórica de C. G. Jung encontrou forte resistência
nos círculos acadêmicos ao longo do último século, sendo
considerada pouco científica para os critérios de cientificidade
vigentes na primeira metade do século 20 (Tacey, 1997). Sua forma
de abordar os fenômenos psicológicos, de acordo com Clarke
(1993), antecipou as propostas revolucionárias de Karl Popper e
Thomas Kuhn, cujas propostas em relação à produção de
conhecimento científico inauguraram uma nova concepção de
ciência e método de investigação. Ellenberger (1970) aponta Jung
como precursor do método interpretativo na psiquiatria dinâmica no
início do século 20. Von Franz ([1975]1992), por sua vez, afirma que
a compreensão do inconsciente formulada e praticada por Jung
marca o fim do racionalismo científico do século 19.
A reabilitação da psicologia analítica no campo científico e
acadêmico só começa a ser notada, no entanto, a partir das duas
últimas décadas do último século. Suas ideias têm atraído a atenção
sobretudo da geração jovem, interessada em questionar os valores
científicos dominantes e comprometida com uma concepção de
mundo e conhecimento mais flexível e aberta à diversidade de
opiniões (Hauke, 2000).
Jung foi duramente criticado pela comunidade científica,
sendo frequentemente tomado por místico ou religioso. Vários
fatores contribuíram para isso. O primeiro deles data de seu
rompimento com Freud, quando o grupo psicanalítico de Viena
passou a considerá-lo obscuro e místico em razão de suas
pesquisas com temas considerados pouco científicos e sérios, tais
como mitologia e religião. Esses mesmos temas foram fortemente
criticados pela ciência vigente na primeira metade do século 20. Um
fator muito plausível para grande parte das críticas endereçadas a
C. G. Jung reside no fato de que o modelo teórico proposto por ele
se mostra mais afinado com a concepção de ciência atual do que
com a de ciência moderna.
Apesar dessas críticas, desde seu ingresso no Burghölzli
Mental Hospital da Universidade de Zurique, em 1900, até seus
depoimentos em 1961, Jung define-se como um cientista
preocupado com a produção, a divulgação e a discussão de suas
ideias. Nota-se, no desenvolvimento de sua obra, uma constante
atenção à consistência epistemológica e à coerência metodológica
de sua proposta teórica. São testemunho dessas preocupações as
diversas reformulações que Jung realizou em sua obra, e, se tivesse
vivido mais vinte ou trinta anos, talvez ele tivesse continuado a rever
e reformular suas proposições.
Ao contrário de outros pensadores de sua época – que, ante
o rígido conceito de ciência predominante no início do século 20,
optaram por se colocar indiferentes à ciência e mesmo abrir mão da
cientificidade, a fim de dar livre curso à sua criatividade –, Jung
sempre demonstrou desejo e preocupação em assegurar estatuto
científico ao seu trabalho, ainda que criticasse o modelo científico de
seu tempo.
Em 1896, na palestra Zonas Fronteiriças das Ciências
Exatas, proferida na fraternidade estudantil Zofíngia e publicada, em
1983, no volume suplementar A das Obras completas, Jung critica o
modelo científico materialista e declara seu intuito de “tentar delinear
um quadro mais claro deste gigante absurdo de pés de barro”,
embora reconheça que “qualquer revolução deste tipo levará muito
tempo e custará o trabalho de várias décadas até que a massa
inerte se mova” (vol. A, p. 6). Declara, ainda, que “tentará fornecer
uma descrição crítica das teorias e hipóteses das ciências exatas”
(p. 7), com o objetivo de apontar algumas contradições desse
modelo de ciência. O “gigante de pés de barro” a que ele se refere é
a ciência materialista positivista, considerada insuficiente para lidar
com questões de ordem subjetiva ou imaterial.
Jung insiste na necessidade de aliança entre princípios
metafísicos e princípios físicos no campo científico, sobretudo nas
ciências humanas. Para sustentar sua argumentação, cita Kant:
“Toda substância, mesmo um elemento simplesmente material, deve
possuir uma atividade interna como causa de sua operação
externa”, e “tudo que no mundo contenha um princípio de vida se
mostra de natureza imaterial” (ibid.).
Ao longo de sessenta anos de prática clínica e extensa
produção de conhecimento, C. G. Jung formulou conceitos teóricos,
pesquisou métodos e técnicas para a investigação da psique, bem
como propôs uma nova forma de abordagem dos fenômenos
psicológicos, em busca de parâmetros científicos mais adequados
para o estudo do inconsciente.
A maior parte das críticas dirigidas à psicologia analítica, até
hoje, deve-se à proposta de uma concepção de ciência menos
racionalista. O compromisso de Jung com o conhecimento científico,
entretanto, esteve sempre presente, defendendo ele “uma ciência
imparcial e sem preconceitos” (vol. 3; 25).
Serrano declara-se impressionado

pelo magnífico rigor da mente de Jung. No próprio limiar da morte, ele ainda
buscava e ainda esperava acreditar; mas sua objetividade científica impediu-o de
pronunciar uma só palavra que não correspondesse a experiências demonstráveis.
(McGuire e Hull, [1977]1993, p. 46)

Dessa forma, pode-se concluir que não procede a avaliação


de aversão ou mesmo de desatenção à cientificidade ou, ainda, aos
aspectos epistemológicos e metodológicos de sua teoria
psicológica.
Considerando-se o modelo teórico de Jung como um
paradigma científico, cumpre salientar, desde já, que um paradigma
é um todo composto de elementos ontológicos, epistemológicos e
metodológicos. Os aspectos ontológicos e epistemológicos de sua
obra foram bem mais explorados do que os metodológicos. Desse
modo, aqui serão apresentados e discutidos os aspectos
ontológicos, epistemológicos e, com maior ênfase, o aspecto
metodológico do paradigma, em razão da maior escassez de
publicações a esse respeito.
Algumas hipóteses podem ser levantadas, a título de
reflexão, quanto à escassez de bibliografia sobre o método na
psicologia analítica e sua dificuldade de inserção no mundo
acadêmico, estando ambas relacionadas.
Em primeiro lugar, a observação de que Jung era avesso a
métodos é bastante comum entre os junguianos. O próprio Jung, em
alguns de seus textos, recomenda o abandono de métodos na
prática clínica, enfatizando a personalidade do analista e o vínculo
estabelecido com o paciente como as ferramentas básicas para o
exercício da profissão. Algumas de suas afirmações, retiradas de
seu contexto, alimentaram entre seus seguidores algumas crenças
quanto à sua aversão a métodos.
Disse Jung:

O melhor que o médico pode fazer nesses casos é dispensar todo seu equipamento
de métodos e teorias e confiar, velando unicamente por sua personalidade, para
que ela tenha firmeza suficiente para servir de ponto de referência ao paciente. (vol.
16; 11)

À primeira vista, pode-se interpretar essa afirmação como


uma recomendação em direção ao desapego a qualquer método.
No entanto, na leitura integral do texto em que esse trecho está
inserido verifica-se que o tema básico em discussão é a defesa do
método dialético como ponto de partida para qualquer psicoterapia.
No mesmo parágrafo, ele afirma:

Em toda e qualquer circunstância são normas supremas de um método dialético


que a individualidade do doente tenha a mesma dignidade e o mesmo direito de
existir que a do médico (...). (vol. 16; 11)

Já em suas memórias, Jung diz: “Cada caso exige uma


terapia diferente. Quando um médico diz que ‘obedece’ estritamente
a este ou aquele ‘método’, duvido de seus resultados terapêuticos”
([1961]1981, p. 120). E prossegue: “Em psicoterapia, como o
essencial não é ‘aplicar um método’, a formação psiquiátrica por si
só não é suficiente” (p. 121). Embora tal recomendação seja
aplicável às particularidades do contexto psicoterapêutico, diz
respeito mais às técnicas do que ao método propriamente dito.
Observa-se que tanto Jung como seus seguidores muitas
vezes empregam os termos método e técnica de forma equivalente,
e alguns recursos técnicos são denominados como método. Nesse
sentido, muitas das suas declarações foram equivocadamente
interpretadas como evidências de sua aversão a métodos em geral.
Uma avaliação crítica e contextualizada de seus textos demonstra,
todavia, sua preocupação constante com as questões
epistemológicas e metodológicas em sua obra.
Deve-se ressaltar ainda que, na primeira metade do século
20, o método científico professado e aceito pela comunidade
científica é o experimental. Ao preconizar, portanto, o abandono de
“métodos”, é provável que Jung esteja se referindo à metodologia
experimental positivista, que, para ele, mostrou-se inadequada ao
estudo do inconsciente:

A psicologia experimental hodierna está longe, porém, de poder comunicar uma


visão articulada daquilo que constitui, praticamente, os processos mais importantes
da psique (...). Portanto, quem quiser conhecer a psique humana infelizmente
pouco receberá da psicologia experimental. (vol. 7, p. 112)

Esses aspectos devem ser considerados e analisados antes


de aceitarmos a hipótese de Jung ser avesso a métodos.
Em segundo lugar, é relevante refletir sobre a hipótese de
que a psicologia analítica “pós-junguiana” tenha se revelado mais
avessa às questões metodológicas do que o próprio Jung teria sido.
Nessa segunda questão, insere-se um outro fator a ser analisado,
ou seja, o estatuto científico da psicologia junguiana.
Nagy levanta alguns pontos interessantes a esse respeito,
em seu livro Philosophical Issues in the Psychology of C. G. Jung
(1991), referindo-se ao isolamento da psicologia analítica em
relação à comunidade científica. Ela pondera que “mesmo hoje,
ainda nos falta um contexto filosófico ou biológico apropriado aos
conteúdos estudados por Jung” (p. 31), dificultando sua inserção
nos quadros científicos da Academia. Esse panorama vem se
alterando nos últimos anos, em face da crescente repercussão do
paradigma junguiano e sua afinidade com as concepções filosóficas
e científicas da pós-modernidade.
Quanto ao rumo imprimido à psicologia analítica por seus
seguidores, Nagy aponta uma questão interessante que deve ser
considerada, qual seja, a atitude de alguns grupos em relação à
obra de Jung: “O que por vezes acontece em grupos junguianos,
entretanto, é semelhante ao que Igrejas de tradição confessional
fazem. A experiência de fé se torna uma posição doutrinal que
exclui e discrimina a pesquisa aberta e o pensamento sólido ou
firme” (p. 32).
Na opinião de Jaffé (1989), a resposta a que Jung chegou
para sua pergunta sobre a psique humana é harmônica em relação
ao seu conhecimento científico, “embora sem pretender ser
científica”. Essa ressalva, quanto à ausência de pretensão científica
por parte de Jung, corrobora as hipóteses sobre o encaminhamento
dado à psicologia analítica por seus seguidores imediatos. Sua obra
foi muito discutida no contexto de sua vida e de sua personalidade,
o que talvez tenha sido inadvertidamente incentivado pelo próprio
Jung.
Em suas memórias, ele afirma: “Minha vida e minha obra são
uma e a mesma coisa” ([1961]1981, p. 16); “O que sou e o que
escrevo são uma coisa só”. E mais: “Minha vida é a história de um
inconsciente que se realizou” (p. 19); “(...) nem tudo que exponho foi
escrito com a cabeça, uma parte ampla saiu também do coração”
(vol. 7; 200).
Essas e outras declarações exerceram grande fascínio sobre
seus leitores, privilegiando uma visão anticientífica de sua
mensagem. Eisendrath comenta que tanto os seguidores de Jung
como seus críticos “se preocupam em demasia com sua vida e
presença pessoal” (1997, p. ix).
Nagy, em sua avaliação sobre o isolamento da psicologia de
Jung em relação à comunidade científica, ressalta ainda que:

Entre os junguianos, nas sociedades profissionais e nas comunidades que rodeiam


os vários institutos de formação, o argumento subjetivista tem acarretado um efeito
devastador e esmagador sobre o pensamento crítico, criando uma atmosfera
confessional. (1991, p. 32)

Dessa forma, parece que a psicologia de C. G. Jung foi


preferencialmente analisada, discutida e compreendida em estreita
relação com o homem que viveu e criou a obra, emprestando um
caráter excessivamente subjetivista à sua proposta e reduzindo sua
amplitude a uma mera confissão de fé.
Cumpre salientar, no entanto, que lado a lado às declarações
subjetivas de Jung, tão fascinantes quanto pouco científicas, no
prólogo de suas memórias, ele esclarece o leitor quanto ao caráter
“não científico” que pretende imprimir a esse relato autobiográfico,
em contraste com o restante de sua obra, demonstrando, assim, a
clara discriminação que fazia entre sua vida pessoal e o caráter
científico de sua teoria. Disse ele: “A fim de descrever esse
desenvolvimento (da totalidade), tal como em mim se processou,
não posso servir-me da linguagem científica; não posso me
experimentar como um problema científico” ([1961]1981, p. 19).
A inclusão de temas considerados “não científicos”, tais como
religião, alquimia, mitologia e astrologia, em suas pesquisas também
contribuiu para sua exclusão do mundo científico, apesar das
repetidas advertências que fez quanto ao caráter psicológico desses
estudos: “Estudo a religião como um aspecto psicológico e a abordo
empiricamente, meu interesse é científico e não filosófico sobre o
assunto, restrinjo-me à observação de fenômenos e evito as
considerações metafísicas” (vol. 11; 2).
Algumas concepções teóricas precisam de tempo para se
sedimentarem e encontrarem meios de realização e aceitação.
Freud foi duramente combatido por suas ideias a respeito da
sexualidade, assim como Copérnico foi punido pelo que pensou a
respeito da visão heliocêntrica do universo. Essas ideias
demandaram muito tempo para serem digeridas, aceitas e
incorporadas pela ciência. O próprio Jung (vol. 8) comenta que as
ideias novas não são apenas inimigas das antigas; elas surgem, em
geral, também numa forma praticamente inaceitável para a atitude
da consciência coletiva antiga.
De acordo com Papadopoulos (2006), Jung demonstra uma
sensibilidade epistemológica particularmente acurada, entretanto,
em seus manuscritos, a importância e as implicações
epistemológicas de seu método nem sempre são sublinhadas o
suficiente. O autor pondera que talvez o receio de ser considerado
mais filósofo do que cientista tenha levado Jung a não enfatizar
suas bases epistemológicas, preferindo ressaltar o caráter empírico
de seus estudos.
Na concepção de paradigma proposta por Kuhn ([1970]2001),
a atividade científica e sua aplicação prática envolvem,
necessariamente, princípios filosóficos e teóricos sobre os quais se
apoia o conhecimento. Entretanto, a concepção de ciência no início
do século 20, com seu método empírico experimental, enfatizava a
aplicação prática em detrimento de seus fundamentos filosóficos.
Assim sendo, parece que as repetidas afirmações de Jung, de que
sua obra sempre foi fruto das observações empíricas de sua prática
e a ela se referiam, podem ter sido o principal motivo pelo qual ele
não deu o devido valor a suas concepções epistemológicas e
metodológicas, parecendo que se dedicava apenas a instrumentar
psicoterapeutas na prática clínica. Isso pode ser observado quando
ele diz:

A realidade da psique é minha hipótese de trabalho, e minha atividade precípua


consiste em coletar, descrever e interpretar o material que os fatos me oferecem.
Não elaborei um sistema nem uma teoria geral. Formulei apenas conceitos
auxiliares que me servem de instrumento de trabalho. (vol. 18; 1507)

Clarke (1993) avalia que a metodologia de Jung não é


vulnerável à acusação de que a prova sobre a qual se baseia sua
teoria carece da objetividade e da certeza que são esperadas nas
ciências humanas Com o advento dos métodos qualitativos da pós-
modernidade, o paradigma junguiano está alinhado à concepção de
ciência atual. Jung nunca teve a ilusão de que, no ambiente
psicológico, algo próximo do rigor da comprovação experimental
pudesse ser conseguido. Sugeriu que, mesmo nas ciências físicas,
um elemento de incerteza e subjetividade se insinua inevitavelmente
nos dados de observação. A física quântica demonstrou que o
observador interfere no fenômeno observado. A noção de
objetividade preconizada pelo positivismo lógico foi bastante
abalada desde então.
Embora Jung defina sua abordagem dos fenômenos
psíquicos como empírica e baseada nos fatos, sua obra foi criticada
por revelar acentuada inclinação para a especulação e para a
formulação de conjecturas. A especulação era condenada em favor
da comprovação nos moldes da ciência positivista. Para Jung, o
trabalho com o inconsciente exige, porém, uma atitude aberta para o
desconhecido, uma disponibilidade para o aspecto imponderável do
conhecimento e, principalmente, uma aceitação de novas
perspectivas epistemológicas e metodológicas. Então diz: “Quanto
mais o conhecimento penetra na essência do psiquismo, maior se
torna a convicção de que a multiplicidade de estratificações e as
variedades do ser humano também requerem uma variedade de
pontos de vista e métodos” (vol. 16; 11).
Hoje, essa postura é amplamente compartilhada por quase
todas as disciplinas contemporâneas, conforme avalia Tarnas:

A prodigiosa complexidade, sutileza e polivalência da realidade transcende de longe


a apreensão de qualquer interpretação intelectual; somente uma abertura
empenhada na interação das muitas perspectivas pode resolver as extraordinárias
questões da Era Pós-moderna. (2001, p. 432)

Essa atitude de abertura para o desconhecido, necessária ao


trabalho com a pesquisa sobre o inconsciente, assemelha-se à
máxima socrática “Eu sei que nada sei”, que Papadopoulos (2006)
nomeia como a ignorância socrática presente na epistemologia
junguiana.
O espírito inquieto, criativo, especulativo e isento de
preconceitos de Jung levou-o a ousar em relação aos parâmetros
científicos vigentes em sua época, propondo uma epistemologia e
uma metodologia inovadoras no campo da doença mental e da
psicologia em geral. Essa postura, por um lado, rendeu-lhe muitas
críticas, por parte tanto da ciência como da filosofia e até da
metafísica, mas, por outro lado, abriu a possibilidade de se pensar e
observar o mundo por uma nova óptica – a perspectiva simbólico-
arquetípica da realidade.
A perspectiva simbólico-arquetípica para abordar a realidade
psíquica permite a integração de vários aspectos antes dissociados,
tais como: subjetividade e objetividade; razão e espírito; individual e
coletivo; pessoal e universal. A inclusão de temas como religião,
alquimia, mitologia e astrologia, enquanto fenômenos psicológicos
passíveis de serem investigados cientificamente, representa um
avanço na concepção de fenômenos psíquicos e, também, uma
ampliação da visão de ciência.
De acordo com a noção de Kuhn ([1970]2001), o surgimento
da psicologia profunda, que deu origem à psicanálise em 1900 e à
psicologia analítica em 1914, pode ser considerado um período de
“revolução científica” que implicou uma mudança de paradigma. Os
períodos de revolução científica, segundo Kuhn, são caracterizados
por mudanças de paradigmas em que novos fenômenos são
descobertos, conhecimentos antigos são abandonados, e há uma
mudança radical na prática científica e na visão de mundo do
cientista.
A hipótese do inconsciente constitui, sem dúvida, a inserção
de um novo elemento no campo do conhecimento, o qual requer
uma mudança radical na forma de fazer ciência. A hipótese do
inconsciente coletivo altera drasticamente a visão de mundo e de
ser humano. Segundo Kuhn, embora o mundo não mude com a
mudança de paradigma, depois dela “os cientistas passam a
trabalhar em um mundo diferente” (ibid., p. 171).
Aos pesquisadores e estudiosos contemporâneos, compete a
tarefa de dar continuidade às propostas inovadoras, bem como de
prosseguir na missão de esclarecer e ampliar as possibilidades de
sua aplicação e compreensão crítica. Com este trabalho, espera-se
que novas luzes possam ser lançadas na compreensão da
psicologia analítica de C. G. Jung, no que diz respeito a seus
pressupostos epistemológicos e a seu método de investigação da
psique.
FORMAS DE PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO: SER E
CONHECER

O conhecimento é a marca característica do ser humano e


define sua trajetória. Ser e conhecer são indissociáveis para o
homem. Buscar o conhecimento do mundo e de si mesmo foi o
motor inicial da humanidade e continua a movê-la em todas as suas
atividades.
Segundo Mariotti (2001), a vida é um processo de
conhecimento, e, se o objetivo é compreendê-la, é necessário
entender como os seres humanos conhecem o mundo. E o
conhecer se produz de diversas formas. Dificilmente somos capazes
de discriminar por completo todas as vertentes pelas quais o
conhecimento vem se operacionalizando ao longo da história da
humanidade. Dentre as diversas formas pela qual ele vem se
produzindo, atualmente, a ciência representa uma vertente de
grande repercussão e credibilidade, constituindo um dos melhores
instrumentos para explorar os aspectos desconhecidos da realidade.
Cassirer aponta a ciência como a última etapa do desenvolvimento
mental do homem – “a mais alta e mais característica façanha da
cultura humana” (1997, p. 337).
O Ocidente, desde a Antiguidade grega, segue uma tradição
de produção de conhecimento calcada nas funções cognitivas que
privilegiam o pensamento racional. Entretanto, o pensamento não foi
a forma original de o ser humano se relacionar com a vida e a
natureza e, além disso, de construir conhecimento. Na história da
humanidade, outras formas de conhecer antecederam o
pensamento filosófico e científico. A percepção, a intuição e a
emoção precedem o pensamento como meio de aquisição de
conhecimento, tanto no desenvolvimento individual como na história
da humanidade. A criança é movida por funções perceptivas,
intuitivas e afetivas, antes de se orientar pela função cognitiva ou
intelectiva.
Não se pretende, aqui, esmiuçar a história do conhecimento
humano, nem as teorias do conhecimento, mas apenas destacar
alguns pontos relevantes do percurso trilhado pela civilização
ocidental no processo de desenvolvimento da consciência coletiva
na constituição da cultura ocidental, que culmina com a hegemonia
do conhecimento científico na modernidade. Com isso, tem-se um
contexto mais amplo para a discussão da epistemologia e do
método na obra de C. G. Jung.

Mito, religião, arte e filosofia


Ao destacar mito, religião, arte e filosofia como formas de
produção de conhecimento, tem-se em mente o próprio percurso de
Jung na construção de seu modelo teórico e sua recomendação
quanto à necessária articulação entre vários pontos de vista e
diferentes áreas para a melhor compreensão da psique humana:
Quanto mais o conhecimento penetra na essência do psiquismo, maior se torna a
convicção de que a multiplicidade de estratificações e as variedades do ser humano
também requerem uma variedade de pontos de vista e métodos. (vol. 16; 11)

Mitologia e religião lidam, desde tempos imemoriais, com o


conhecimento e o autoconhecimento do ser humano. Os mitos e as
doutrinas religiosas consideram uma obrigação fundamental do
homem conhecer suas origens e a origem do universo. Essas
questões, atualmente, estão a cargo da ciência, que talvez possa
ser considerada um mito contemporâneo.
Os mitos forneciam aos seres humanos um corpo de
conhecimentos e métodos para lidar com a natureza e construir
modos comunitários de vida produtivos e criativos. São resultantes
da compilação do conhecimento acumulado sobre a constituição do
mundo e dos seres vivos, sobre seu funcionamento e integração. A
mitologia é uma produção coletiva anônima e espontânea de
conhecimento que brota do inconsciente coletivo e constrói
consciência coletiva. Podemos indiscutivelmente considerar os
mitos como uma forma de conhecimento produzido e acumulado
pela humanidade desde seus primórdios. Assim sendo, a mitologia
constitui uma das primeiras formas de produção de conhecimento
registrado e compilado.
Mito e religião são formas de conhecimento que mantêm uma
estreita correlação tanto em sua origem, como em sua finalidade.
Ambos provêm dos mesmos fenômenos fundamentais da vida
humana. No desenvolvimento da cultura humana, não é possível
fixar claramente um ponto em que o mito acaba ou começa a
religião. Em todo o curso de sua história, a religião permanece
ligada a elementos míticos, sendo impregnada deles. Mesmo em
suas formas mais grosseiras e rudimentares, o mito traz em si
alguns motivos que antecipam os ideais religiosos superiores que
surgiram posteriormente; desde o início, ele é religião em potencial
e, segundo Eliade ([1963]1986), conta uma história sagrada. Murray
(1930) afirma que é comum considerarmos o mito como o começo
de toda religião, ou quase como a matéria bruta de que é feita a
religião.
Tanto Cassirer ([1944]1997) como Eliade ([1963]1986)
comentam que antropólogos e etnólogos, em suas pesquisas com
material religioso e mitológico, surpreenderam-se ao encontrar os
mesmos pensamentos básicos dispersos por todo o mundo, embora
em condições culturais e sociais diferentes. Parece que algumas
formas de elaborar conhecimento emergiram simultaneamente em
vários pontos do planeta, indicando um modo de elaboração típico
de uma época. Essas pesquisas corroboram significativamente o
caráter arquetípico da vida humana proposto por Jung.
À medida que o pensamento religioso vai se separando do
mito, surge um corpo de conhecimento religioso que vai se
aproximando do pensamento filosófico. Do conhecimento mítico
para o filosófico, Goldfarb (2001) insere um tipo de agente do
conhecimento, que ela denomina o sábio. Aponta a “sabedoria”
como um corpo de doutrina que tem um autor – o sábio –, de quem
traz a marca da individualidade e das circunstâncias culturais em
que ele viveu, o que não está presente na produção mítica. A
“sabedoria” indica o início de uma sistematização do conhecimento
adquirido sob uma autoria individual precedente à formulação de
uma teoria. O que distingue o mito do “saber”, no sentido que
Goldfarb propõe, seria o caráter coletivo do conhecimento mítico e o
caráter individual de uma “sabedoria”, além da maior especificidade
da sabedoria versus a generalidade do mito, que é um
conhecimento universal, genérico e abrangente, enquanto a
sabedoria é específica, relativa a um aspecto particular da vida e da
natureza.
Na Grécia, a filosofia é um sucedâneo natural da mitologia. O
pensamento filosófico, desde a escola de Mileto, é a expressão do
desejo de conhecimento do homem na Antiguidade. Trata-se de
uma forma mais sistematizada e individualizada de produzir
conhecimento.

Na história da cultura grega encontramos um período em que os deuses antigos, os


deuses de Homero e de Hesíodo, começam a declinar. Surge um novo ideal
religioso formado por homens individuais. A humanização dos deuses foi um passo
indispensável na evolução do pensamento religioso. (Cassirer, [1944]1997, p. 150)

Há um período, na Grécia, em que mitologia e filosofia


coexistiram e, gradativamente, a mitologia foi cedendo espaço à
filosofia. Na filosofia pré-socrática, já se observa uma crítica
contundente à tradição mítica. Segundo Gorresio, foi na escola de
Mileto “que o logos teria se diferenciado do mito” (1999, p. 49). De
acordo com Cornford (apud Gorresio, ibid.), na filosofia o mito foi
racionalizado, isto é, os elementos primordiais antropomorfizados,
na narrativa mítica, transformam-se em princípios abstratos
(conceitos ou ideias). Nessa época, observa-se também uma
discriminação entre religião e filosofia, e esta passa a ser
considerada uma forma de conhecimento mais confiável. Hoje, não
temos dúvidas quanto às diferenças entre mitologia e filosofia como
formas de conhecimento distintas, entretanto, em suas origens, há
parentescos, e observa-se que uma sucedeu à outra.
A obra de Heródoto apresenta uma verdadeira mestiçagem
entre mitologia e história. Os fatos relatados por ele são
simultaneamente ocasionados pelos deuses e pelos homens. A
realidade mítica e a realidade empírica se sobrepõem. Personagens
históricos convivem com entidades sobrenaturais. Segundo
Azevedo,

Heródoto, vendo em todas as coisas humanas o efeito e a influência do demonium,


revela tendências inteiramente diversas das de um historiador moderno, que
coloque os acontecimentos sob a dependência de fatores naturais e econômicos.
Coexistem em sua personalidade, juntamente com o cronista atento e minucioso,
um teólogo e um poeta. (1964, p. xx)

Algumas características dos mitos, tais como sua


dramaticidade, plasticidade e emocionalidade, permitem-nos
considerá-los, hoje, mais aparentados da arte, enquanto a religião,
por seu aspecto mais regrado e sistematizado, aproxima-se da
filosofia.
A arte também pode ser vista como uma forma de
conhecimento que detém modos de estruturação, realização e
métodos bastante particulares. As expressões artísticas desde a
pré-história são formas de manifestação da visão de mundo, assim
como das preocupações, dos sentimentos e das emoções mais
poderosas do ser humano. A expressão pictórica cumpria também
uma função ritua­lística de propiciação e preparação para as
atividades de caça ou enfrentamento do mundo natural.
A filosofia é herdeira da mitologia e da religião, no entanto,
seu caráter de autoria individual distingue a produção filosófica do
conhecimento mítico e religioso. O atributo da individualidade está
necessariamente associado à ideia de opinião e pontos de vista.
Julgamentos baseados no livre-arbítrio darão origem às concepções
filosóficas como uma nova forma de produzir conhecimento.
As bases epistemológicas da mitologia e da religião não são
de todo dessemelhantes, mas o fundamento epistemológico da
ciência ocidental é totalmente diferente dessas formas de
conhecimento, sobretudo a partir da modernidade.
A mentalidade ocidental foi forjada pelo entrelaçamento do
pensamento filosófico grego e da tradição judaico-cristã, com seu
mito monoteísta que dá origem a uma nova forma de conhecimento,
mesclando religião e filosofia na proposição de princípios morais e
de convivência social. A mentalidade romana também exerce
grande influência na formação do cânone cultural do Ocidente. O
cristianismo entra no Império Romano e passa de mito a religião
institucionalizada e, em seguida, dá origem a todo um corpo
filosófico que dominará a Europa durante séculos. A associação
duradoura e intensa entre filosofia e religião sintetizada na
mentalidade cristã medieval vai desencadear um movimento de
suma importância em todas as áreas do conhecimento europeu – a
Renascença. Deste renascimento, tanto na arte como na filosofia,
nascerá a ciência moderna.

Filosofia e ciência na passagem da


mentalidade medieval para a modernidade
Uma profunda crise filosófico-religiosa, no período final da
Idade Média, dá origem à mentalidade renascentista, que por sua
vez conduz a civilização ocidental aos ideais da modernidade. Na
Renascença, aos poucos, vai se instalando a secularização do
conhecimento tanto na vertente filosófica quanto na arte. As
manifestações humanas vão se desvinculando do sentido religioso,
que até então carregavam. A arte religiosa dá lugar a expressões
artísticas laicas; temas da natureza e da vida cotidiana passam a
prevalecer sobre os religiosos. Aos poucos, a desvinculação entre
religião e ciência passa a conferir supremacia a esta que será a
detentora do conhecimento “verdadeiro” e promove a
desvalorização daquela.
Cassirer ([1944]1997) coloca a ciência como a última etapa
do desenvolvimento mental do homem – sendo a mais alta e mais
característica forma de conhecimento da cultura humana atual. O
conhecimento científico moderno e seus métodos de pesquisa
subsidiaram um desenvolvimento tecnológico nunca antes
observado na humanidade. Embora os princípios básicos da
modalidade científica do conhecimento tenham suas origens nos
grandes pensadores gregos e seus modelos filosóficos, o
conhecimento, em sua vertente científico--tecnológica moderna, é
um produto mais recente e requintado da humanidade.
Para Platão, a ciência é uma introdução, ou um pressuposto
da filosofia; é ela (ciência) que permite o discurso verdadeiro da
filosofia. No modelo filosófico platônico, a ciência é a ponte entre o
sensível e o discurso absolutamente verdadeiro, que é o da filosofia.
Com Descartes, a situação se inverte: a filosofia deixa de ser o
acabamento para se tornar o pressuposto da ciência. Sua imagem
sobre o conhecimento é famosa: o saber é como uma árvore, cujas
raízes são a metafísica; o tronco, a ciência física; e os ramos, as
ciências aplicadas. Segundo Davy (1983), para Platão, a “ciência
das ideias” era a única e verdadeira ciência, sendo o único meio de
salvação para o homem e a cidade; na sociologia positiva, Augusto
Comte (século 19) coloca a “ciência dos fatos” como a salvação
para a sociedade. Ainda segundo Davy, tanto Platão como Augusto
Comte devotam uma fé absoluta na ciência como encarregada de
“inspirar, dirigir e executar as reconstruções necessárias” para que
se realizem as transformações reclamadas pelos homens, para
Platão, e pela sociedade, para Comte.
A ciência como promotora de conhecimento vai se instalando
de modo lento e gradual na mentalidade do Ocidente, convivendo
com a filosofia e, mais recentemente, substituindo-a. Santos afirma
que, de meados do século 19 até hoje, a ciência adquiriu total
hegemonia no pensamento ocidental, tornando-se a produção de
conhecimento por excelência. O paradigma moderno “pressupõe
uma única forma de conhecimento válido, o conhecimento científico”
(2000, p. 28).
Cumpre salientar que o conhecimento humano continua se
realizando por meio da arte e da religião, embora haja preconceitos
quanto à validade e à seriedade, principalmente desta última.
A herança cultural da Renascença situa-se: na reforma
protestante, que disciplinou a religiosidade promíscua da Igreja
Romana, e no iluminismo, que deu força de lei à razão cartesiana.
Ciência e religião se divorciaram. A polaridade espiritual religiosa
exacerbada na era medieval deu lugar à polaridade racional
materialista anteriormente reprimida. Da idade das trevas passamos
para o tempo da luz (iluminismo) da razão.
Do ponto de vista epistemológico, a marca fundamental da
transição entre a filosofia medieval e a moderna é o caráter
construtivo do conhecimento, que tem como autor principal a razão
humana e não mais uma entidade divina exterior. Em Descartes, o
conhecimento é construído por uma razão lógica; em Kant, pelas
relações dialéticas entre a razão pura e a razão prática.
Dentre as diversas formas de produção de conhecimento, na
modernidade, a ciência passa a ocupar lugar de destaque. Em todas
as formas de produção de conhecimento – mito, religião, filosofia,
arte e ciência –, o ser humano tem como objetivo “entender e
interpretar, articular, organizar, sintetizar e universalizar sua
experiência humana” (Cassirer, [1944]1997, p. 359), com a
finalidade última de apreender e compreender seu mundo e a si
mesmo.
O objetivo principal da ciência, portanto, coincide com as
metas das outras formas de conhecimento – ou seja, conhecimento
do mundo e dos seres – e se distingue delas por sua ênfase, quase
exclusiva, no aspecto cognitivo intelectual como o meio pelo qual
este se produz. Nesse percurso, o ser humano é sempre o sujeito e
o alvo mais importante do conhecimento.
A mentalidade moderna, no entanto, opera a desvinculação
definitiva entre religião e ciência, conferindo supremacia a esta, que
será a detentora do conhecimento “verdadeiro” e promove uma
desvalorização crescente daquela.
Com a visão cartesiana de conhecimento, em que as raízes
do conhecimento (ciência) são a metafísica (filosofia), e sua atenção
sobre o método de se produzir um conhecimento eminentemente
racional, algumas questões passam a ocupar lugar de destaque na
filosofia e na ciência. A primeira delas é a própria instituição de um
ramo da filosofia denominado filosofia da ciência – epistemologia.
Em segundo lugar, observa-se a distinção entre os pressupostos
filosóficos (epistemologia), os modos de produção de conhecimento
(métodos) e a aplicação do conhecimento científico na vida prática
(tecnologia).
Com isso, é oportuno tecer algumas considerações sobre
esses termos.

Ciência, epistemologia, método e


tecnologia
A ciência moderna privilegia um tipo de conhecimento
produzido por meio de um pensamento racional e lógico, identificado
como uma atividade estritamente intelectual. Contudo, já na filosofia
grega, observa-se a presença de uma forma de produção de
conhecimento baseada no logos. Para Jung (vol. 5), o logos está
associado ao pensamento conceitual, distinto do pensamento
mítico, e radica-se principalmente na extensão e na intensidade da
consciência, sendo característico do dinamismo patriarcal operante
na consciência.
O vocábulo grego logos, frequentemente traduzido por
estudo, ciência, disciplina, discurso e investigação sistemática
(Papadopoulos, 2006), surge entre os séculos 8 e 7 A. C. para
designar um novo tipo de palavra, marcando o declínio da “palavra
mágico-religiosa” (fase mitológica) e a ascensão da “palavra
argumento” (fase filosófica). Usada nas discussões e nos debates,
essa palavra argumento dá origem aos diálogos e, nesse sentido,
adquire o significado de discurso e de instrumento do conhecimento.
“Na retórica sofista, pelo logos (discurso ou debate) é delimitado um
plano de pensamento mais secularizado, em que a Alétheia
(verdade suprema) é excluída” (Gorresio, 1999, p. 67).
Logos é a palavra instrumental pela qual o homem pode se
exercer no mundo de modo mais ativo e prático – um instrumento de
conhecimento e controle no plano cotidiano da palavra prática e
coloquial, distinto do conhecimento verdadeiro associado a Alétheia
(verdade). Segundo Vernant (apud Gorresio, 1999), o pensamento
do tipo logos surge quando o homem alcança certa autonomia em
relação às forças divinas; o controle e o domínio da vontade, do
pensamento e da ação denotam uma consciência do eu separada
do mundo. O conhecimento que se produz por meio do logos é um
conhecimento associado à razão – um pensamento emancipado das
forças divinas. Segundo Gorresio, “para a razão nascer, houve
necessidade de diferenciar-se dos deuses” (p. 84). O conhecimento
que se produz via logos é um tipo de conhecimento derivado de
competências essencialmente humanas que se discrimina do
conhecimento oriundo de potências divinas.
A discriminação entre competências humanas e divinas,
assim como a emancipação do humano em relação ao plano divino,
ocorridas na Grécia filosófica, não anula o plano divino, pois o
conhecimento “verdadeiro” ainda pertence ao âmbito divino (ibid.). O
conhecimento lógico (advindo do logos) na Antiguidade grega não
se configura uma vertente isolada ou dissociada de outros tipos de
conhecimento, como foi o caso do conhecimento científico na
modernidade europeia.
O conhecimento produzido pela via do logos, com sua
característica eminentemente humana, deriva da capacidade de um
ente conhecedor na relação com um ente a ser conhecido. A
resultante dessa relação – conhecimento – refere-se não apenas à
possibilidade de conhecimento, mas também ao fato de o humano
saber que sabe, ou seja, ter ciência do próprio conhecimento.
Do latim, scientia é sinônimo de conhecimento, de onde
deriva o termo consciência, que se refere, do ponto de vista
psicológico, àquilo de que se tem conhecimento, abarcando também
o autoconhecimento. Poderia se pensar, então, que ciência, como
concebida hoje, refere-se a um tipo de conhecimento associado ao
logos. Todavia, o conhecimento em grego é episteme, e seu
correlato latino – scientia – não traduz sua profundidade e riqueza,
como diz Papadopoulos (2006). Etimologicamente, episteme
relaciona-se com o verbo epistemi e epistamai, que significam
respectivamente “estabelecer ou localizar” e “saber como”,
sugerindo que episteme poderia ser entendida como o ato de
marcar um território para ser observado ou compreendido, e, ainda,
as possibilidades de conhecer – donde epistemologia seria a
demarcação de um campo a ser conhecido ou para fins de
conhecimento, ou para a compreensão e o estabelecimento dos
pressupostos básicos sobre o que é possível conhecer.
Método, do grego methodos, significa literalmente caminho
tortuoso, artifício e perseguição (Lalande, 1938; Pereira, 1969). O
prefixo meta, como advérbio de lugar, significa no meio, entre, por
detrás; como advérbio de tempo, significa a seguir, durante; como
preposição, significa por meio de, com, em companhia de, de
acordo com. Odos significa via, caminho, estrada, marcha, viagem,
caminhada (Pereira, 1969). O termo método, tomando por base sua
origem no grego clássico, comporta sentidos relativos a percurso
(espaço) e duração (tempo). Diz respeito ao caminho a ser seguido
ou percorrido durante a caminhada em direção a uma meta, ou à
estrada a ser trilhada para se chegar ao destino; ao caminho que
está de acordo com a viagem a ser empreendida e onde se quer
chegar. O método está associado ao modo como o viajante
empreende sua viagem. O termo fala da adequação (de acordo
com) da caminhada e alude, ainda, à finalidade (para, por meio de)
da viagem empreendida. O sentido literal – caminho tortuoso;
perseguição – evoca o significado de esforço despendido; artifício
remete à habilidade, sagacidade e engenhosidade. Nesse sentido,
método diz respeito a uma ação deliberada, pensada, arquitetada e
refletida, que exige esforço e habilidade.
Tékhné – em grego, arte manual, habilidade, artesanato –
refere--se à habilidade de fazer com as mãos ou manusear;
tradicionalmente associado ao artesão, o termo é usado na forma
tecne ou tecnic(o) a partir de 1881. Tekhnikós, relativo à arte, à
ciência ou ao saber, ao conhecimento ou à prática de uma profissão,
na forma technico foi usado pela primeira vez em 1783, de acordo
com o Dicionário Houssais.
Com essa exposição resumida sobre os significados originais
dos termos logos, episteme, scientia, methodos e techne, talvez seja
possível esclarecer os sentidos e as funções que esses termos
compreendem no campo do conhecimento científico hoje. Logos
refere-se a uma forma de abordar a realidade por meio da “palavra
argumento”, sob o domínio da razão humana diferenciada da razão
divina. Episteme é o conhecimento demarcado ou localizado, isto é,
caracteriza um campo de conhecimento. E scientia é conhecimento
no sentido de um saber adquirido. Methodos é o caminho a ser
trilhado deliberadamente de modo adequado, em busca de um
conhecimento específico. Tékhné, como habilidade para fazer ou
manusear, refere-se à capacidade de aplicação prática de um
conhecimento específico. Assim, a ciência moderna se define como
um tipo de conhecimento produzido por uma abordagem,
preferencialmente, racional de um campo demarcado da realidade,
por meio de um caminho adequado para os fins que se pretende e
com os instrumentos necessários para a efetivação do
conhecimento no plano prático.
Mais adiante, epistemologia e método serão abordados em
maior profundidade no contexto do conceito contemporâneo de
paradigma.

Concepção de ciência na modernidade


A atividade científica, a partir da modernidade, deve ser
totalmente isenta de crenças religiosas. Os limites do conhecimento
científico estão demarcados, assim como seus métodos, posto que
a ciência moderna pretende um conhecimento operacionalizado
pela razão humana.
Na Idade Moderna, a separação entre ciência e religião
caminha no sentido de estabelecer duas formas de conhecimento
independentes, cujos campos não se cruzam. Primeiro Descartes,
depois Pascal, Montaigne, Copérnico e Galileu, e mais tarde
Newton, vão modelando as bases da filosofia e da epistemologia
modernas nas quais o poder da razão humana é estabelecido e
confirmado. Apesar de existir conflitos e tensões profundos e
intensos, o homem ocidental entra numa época em que o
conhecimento estará centrado na razão. Com Darwin,
definitivamente, o ser racional supera o ser religioso.
A partir do século 17, implanta-se a solução racionalista para
o conhecimento em geral. A razão matemática e a física mecanicista
são o elo entre o ser humano e o universo. Filosofia e ciência
começam a trilhar caminhos paralelos, mas separados, a partir da
modernidade.
No século 18, ciência e religião estão completamente
separadas; espírito e razão são polaridades não apenas
discriminadas, mas dissociadas. A ciência moderna afasta o polo
subjetivo da observação científica, pois este não somente
“atrapalha”, como compromete a produção de conhecimento
fidedigno e confiável. De acordo com Byington (1986), o preconceito
contra a subjetividade, que se instaura no paradigma cartesiano, vai
acarretar um desvio na epistemologia altamente prejudicial para
todo o caminho da humanidade em direção ao autoconhecimento. A
unilateralidade que passa a vigorar promove um grande vazio, que
culmina com um sentimento profundo de perda do sentido individual
da vida, como aponta Bauman em seu livro O mal-estar da pós-
modernidade (1998).
O racionalismo e o iluminismo, que deram origem à ciência e
à tecnologia modernas, foram uma contrarrevolução à Inquisição
medieval, que professava a supremacia da religião sobre outras
formas de conhecimento. O polo anteriormente oprimido (razão,
lógica, secularidade) foi trazido à luz; entretanto, nesse movimento,
mais uma vez houve a hipertrofia de uma das partes da totalidade.
Dessa vez a polaridade racional exclui o polo irracional e espiritual
antes exacerbado, assim como as funções cognitivas e perceptivas
eclipsam as funções sentimento e intuição.
No século 19, a ciência passou a ser socialmente
reconhecida pelas virtualidades instrumentais da sua racionalidade,
ou seja, pelo desenvolvimento tecnológico por ela mesma
impulsionado. Segundo Japiassu e Marcondes (2001),
modernamente, a ciência é a modalidade de saber constituída por
um conjunto de aquisições intelectuais que tem por finalidade propor
uma explicação racional e objetiva da realidade.
Nesse panorama, os objetivos da ciência como produtora
exclusiva de conhecimento sério, confiável e verdadeiro, de acordo
com Mazzotti e Gewandsznajder (1998), chegaram à ambição
máxima de conseguir alcançar um conhecimento empírico certo,
comprovado e com o maior número possível de enunciados
verdadeiros acerca do mundo. Já o racionalismo crítico pretendia
alcançar enunciados verdadeiros, embora admitindo que não fosse
possível chegar a um conhecimento absolutamente certo, ou seja,
mesmo que se conseguisse descobrir uma teoria verdadeira, nunca
se poderia ter certeza absoluta. Mas o conhecimento científico
mantinha também como um de seus objetivos básicos a
previsibilidade e a capacidade de generalização, segundo relatam
Mazzotti e Gewandsznajder, buscando teorias mais amplas,
precisas ou exatas, que alcançassem um maior número de
fenômenos.
Observa-se que a produção de conhecimento científico, por
um lado, apoia-se em teorias que são validadas por meio do método
científico; inversamente, o conhecimento produzido com base no
rigor metodológico produz teorias precisas, exatas e verdadeiras,
formando um círculo vicioso entre teoria e método, em que um
valida e referenda o outro sucessivamente. Segundo Santos, a partir
de então, o conhecimento científico opera uma verdadeira inversão
de valores, pois pode dispensar a investigação das suas causas
como meio de justificação, passando a “justificar-se não pelas suas
causas, mas pelas suas consequências” (2000, p. 28). Assim
também “a tecnologia da ciência e a tecnologia produtiva progridem
juntas, amparando-se e incentivando-se reciprocamente”
(Figueiredo, 1989, p. 15), posto que ambas compartilham objetivos e
modos de abordagem.
Resumindo, a ciência moderna, alicerçada na filosofia
iluminista e racionalista, é orientada por uma mentalidade,
essencialmente do tipo pensamento-sensação extrovertida. A
produção do conhecimento científico é nitidamente associada ao
pensamento e à percepção de um modo extrovertido. Intuição e
sentimento foram aspectos bastante negligenciados pela
consciência coletiva na construção do conhecimento científico,
assim como a abordagem introvertida dos fenômenos. Por isso,
sempre nos referimos a um pensamento científico ou a uma
percepção científica da realidade ou dos fenômenos. Não há
menção a um sentimento científico ou a uma intuição científica. O
aspecto extrovertido desse conhecimento qualifica como fenômeno
real os fatos da realidade externa, daí a grande ênfase na
objetividade. O aspecto perceptivo destaca o dado observável –
perceptível – como o fenômeno passível de investigação científica,
elegendo o método empírico que enfatiza a observação perceptiva
dos fatos e sua sofisticação crescente, que está expressa na
tecnologia cada vez mais avançada de instrumentos de observação
e mensuração.
O pensamento dá o tom principal à produção científica
moderna, fortemente associada à racionalidade e à lógica, e define
o método científico baseado no determinismo lógico e na
causalidade. “O processo científico leva a um equilíbrio estável, a
uma estabilização e consolidação do mundo, de nossas percepções
e pensamentos (...) o fator material é dado por nossa percepção
sensorial; o formal é representado por nossos conceitos científicos”
(Cassirer, [1944]1997, p. 338).
A era moderna marcou a época em que o conceito de ciência
se configurou como a melhor forma de produzir conhecimento.

A vertente romântica do conhecimento na


arte e na ciência modernas
A vertente romântica do conhecimento está relacionada aos
filósofos alemães (Bornheim, 1993), que formulam um conjunto de
sistemas idealistas.
Tarnas (2001) situa o início do romantismo em paralelo ao
iluminismo, tendo ambos surgido da complexa matriz do
renascimento. Para Nunes (1993), o romantismo, propriamente dito,
surge como uma reação ao iluminismo.
A principal distinção entre a perspectiva filosófica romântica e
as perspectivas cartesiana e positivista reside na visão pluralista da
filosofia romântica, que contempla o objeto de vários pontos de vista
e tem preferência por uma abordagem circular, em lugar do
pensamento lógico linear da perspectiva positivista mais
racionalista. Nesse particular, a visão junguiana é especialmente
influenciada pela filosofia romântica.
No panorama filosófico do século 19, paralelamente à
filosofia positivista associada ao empirismo lógico inglês, destacam-
se os desdobramentos neokantianos da filosofia de Kant e o
neorromantismo, que revive e resgata o romantismo dos séculos
anteriores. Os filósofos neorromânticos operam uma pequena
revolução no andamento da filosofia em geral, retomando algumas
questões esquecidas pela filosofia racionalista, herdeira do
iluminismo. Dentre elas, destacam-se as questões relativas à
espiritualidade e à individualidade. A filosofia romântica foi uma
reação ao iluminismo; este, porém, vai sobreviver através do
positivismo, do pragmatismo e da ciência tecnológica dos dias
atuais.
A concepção de ciência prevalecente até meados do século
20 identificou-se com a vertente filosófica racionalista e positivista,
sendo a filosofia alemã romântica mais assimilada pela arte. Outras
áreas do conhecimento influenciadas pela filosofia romântica, como,
por exemplo, a psiquiatria dinâmica e a psicologia profunda, foram
duramente criticadas pela ciência tradicional em razão de sua
recusa em se adequar aos padrões metodológicos de cientificidade
propostos pela concepção racionalista positivista.

Sobre teoria e prática


A discussão entre teoria e prática remete à distinção entre
ciência pura e ciência aplicada, que por sua vez conduz às
modalidades metodológicas empírica e teórica. Santos (2000)
manifesta opinião contrária a essa diferenciação, pois argumenta a
favor da superação da dicotomia ação/contemplação. Embora a
concepção de ciência desde Bacon e Descartes afirme que “a
ciência pretende conhecer o mundo, não para contemplá-lo, mas
para dominá-lo e transformar, e nesse sentido a sua racionalidade é
instrumentalista” (ibid., p. 43), a dicotomia entre ciência (teoria) e
tecnologia (aplicação) acentuou-se no último século.
A distinção entre ciência pura e ciência aplicada só faz
sentido se uma estiver a serviço da outra. No que diz respeito à
psicologia, a teoria visa, inevitavelmente, à sua aplicação prática. Os
modelos teóricos da psicologia, em geral, foram construídos com
base na observação e nas necessidades práticas, resultando na
formulação de pressupostos epistemológicos – conceitos – e
métodos.
Embora a maioria das escolas de psicologia tenha um
fundamento epistemológico filosófico, esses modelos estão em
estreita relação com sua aplicabilidade e são reformulados e/ou
referendados pela prática. A construção das teorias psicológicas,
sobretudo na psicologia clínica, tem por finalidade o atendimento de
necessidades práticas iminentes.
A psicologia analítica, assim como a psicanálise, é movida
pela necessidade de compreender e dar solução aos problemas
humanos. Tanto Freud como Jung têm como meta principal de suas
investigações e estudos o tratamento (psicoterapia) de seus
pacientes. Da aplicação de procedimentos e da observação de
resultados, suas propostas vão se construindo e se constituindo
num conjunto de proposições que se autovalidam, dialeticamente,
na prática e na reflexão crítica.
Sobre paradigma
O termo paradigma começa a ser divulgado na ciência
contemporânea a partir da publicação do livro de Thomas Kuhn, A
estrutura das revoluções científicas, em 1962, revisto pelo autor em
1970, quando passa a ser utilizado por diversos outros autores,
ganhando crescente penetração na filosofia das ciências.
Atualmente, o uso desse termo cobre uma grande variedade de
sentidos, às vezes contraditórios, mas também resultantes da
reflexão crítica de autores contemporâneos. Torna-se oportuno,
portanto, fazer uma retrospectiva sobre o termo e um
esclarecimento do sentido em que o conceito de paradigma será
aqui utilizado.
Segundo Kuhn, “alguns exemplos (exemplares) que incluem,
ao mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação,
proporcionam modelos dos quais surgem as tradições coerentes e
específicas de pesquisa científica” ([1970]2001, p. 30). Para ele, “um
paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham
e, inversamente, uma comunidade científica consiste em indivíduos
que partilham um paradigma” (p. 219). Embora essa definição, à
primeira vista, pareça circular, ela expressa com propriedade a
proposta do autor, que ressalta a relação de reciprocidade entre
conhecimento científico e comunidade científica.
A noção de paradigma deve ser abordada em razão de sua
importância para o conceito de ciência na atualidade. Paradigma,
originalmente, significa modelo ou exemplo (Abbagano, 1999), e
esse termo foi usado por Platão, no primeiro sentido, e por
Aristóteles, no segundo. Para Platão, as formas ou ideias são
paradigmas, ou seja, “arquétipos, modelos perfeitos, eternos,
imutáveis dos objetos existentes no mundo natural que são cópias
desses modelos” (Japiassu e Marcondes, 2001 p. 206).
Segundo Mazzotti e Gewadsznajder, a proposta de Kuhn
considera que a “pesquisa científica é orientada não apenas por
teorias, no sentido tradicional deste termo (conjunto de leis e
conceitos), mas por algo mais amplo, o paradigma, que constituiria
uma ‘teoria ampliada’” (1998, p. 24). A noção de teoria ampliada, na
definição kuhniana de paradigma, envolve vários fatores, quais
sejam: uma matriz disciplinar; generalizações simbólicas que
constituem leis e definições conceituais; compromissos coletivos
com crenças e valores; coerência interna; exemplos compartilhados
(exemplares), que são as soluções concretas dos problemas;
percepção e compreensão de semelhanças e analogias. Tais fatores
resultam num corpo de conhecimento amplo que norteia o cientista
em suas investigações. Nas palavras de Kuhn, do “(...) relevante
conhecimento da natureza que se adquire ao compreender a
relação de semelhança, [resulta um] conhecimento que se encarna
numa maneira de ver as situações físicas e não em leis ou regras”
([1970]2001, p. 236).
“Um conhecimento que se encarna numa maneira de ver”
significa que a produção de conhecimento é resultante de uma
cosmovisão, ou, de outro ângulo, que ontologia (maneira de ver ou
conceber), epistemologia (capacidade e possibilidade de
conhecimento) e método (modo de conhecer ou viabilizar o
conhecimento) são aspectos de um todo que se articulam de modo
necessário e dinâmico.
Khun, em 1962, critica a ciência vigente (positivismo e
empirismo), em virtude da estreiteza de seus limites e da exigência
de uma objetividade impossível de ser mantida ou mesmo
alcançada. Em contrapartida, a sua visão de ciência foi duramente
criticada pela comunidade científica, por ele defender uma visão
excessivamente relativista, negar a existência de critérios objetivos
para a avaliação de teorias e, sobretudo, por ressaltar a forte
influência que fatores psicológicos e sociais exercem na produção
de conhecimento em qualquer tipo de investigação científica que se
queira fazer.
As premissas da física quanto à interferência do observador
no objeto observado ainda não haviam abalado, nessa época, a
crença na objetividade científica. Vale também lembrar Nietzsche,
que já havia levantado essa questão em relação aos modelos
filosóficos no final do século 19. Para ele era impossível separar
assepticamente a obra e a pessoa do filósofo, pois todo modelo
filosófico, de acordo com Nietzche (1978), equivale a uma confissão
pessoal do autor. Jung, em Tipos psicológicos (vol. 6), publicado em
1920, aborda a questão da personalidade do pesquisador,
determinando o ponto de vista da teoria, a relação estabelecida com
seu objeto de estudo e a perspectiva pela qual os fenômenos serão
analisados e compreendidos. A formulação das teorias é
influenciada pela personalidade do autor, que condiciona um ponto
de vista pelo qual os fenômenos serão estudados e pesquisados –
tipologia. Essa questão será abordada na discussão sobre
subjetividade e objetividade na epistemologia e no método
junguiano.
Bateson define paradigma como “uma rede de premissas
epistemológicas e ontológicas que – a despeito de sua veracidade
ou falsidade última – se tornam autovalidadas” (1972, p. 314) e
configuram procedimentos metodológicos compatíveis. Segundo
Denzin e Lincoln, a noção de paradigma envolve três elementos
fundamentais – ontologia, epistemologia e metodologia –, que
devem estar articulados e entrelaçados de forma consistente e
coerente. Esses três elementos constituem seus aspectos principais
e são denominados: perspectiva ontológica, perspectiva
epistemológica e perspectiva metodológica do paradigma.

Ontologia levanta questões básicas sobre a natureza da realidade.


Epistemologia pergunta: como conhecemos o mundo?
Qual a relação entre o pesquisador e o conhecido?
Metodologia concentra-se em como adquirimos conhecimento sobre o mundo.
(1998, p. 185)

O método científico, como forma de acessar e produzir


conhecimento científico, deve ser condizente com as premissas
epistemológicas que consideram as possibilidades e os limites do
conhecimento, e de acordo com as concepções ontológicas do
paradigma.
Devido às violentas críticas que o termo paradigma recebeu
por parte da comunidade científica, em 1969, Kuhn retoma o texto
de 1962 e acrescenta um posfácio, com o objetivo de elucidar as
dúvidas e polêmicas que o termo suscitara. Inicialmente, ele havia
proposto o conceito de matriz disciplinar, cujos componentes eram:
generalizações simbólicas (leis ou definições), compromisso coletivo
(modelo), valores e exemplares (exemplos partilhados). Em seguida,
Kuhn enfatiza o papel dos exemplares e amplia seu significado,
afirmando que

alguns exemplos (exemplares) que incluem, ao mesmo tempo, lei, teoria, aplicação
e instrumentação, proporcionam modelos dos quais surgem as tradições coerentes
e específicas de pesquisa científica. ([1970]2001, p. 30)

Em sua revisão, Kuhn propõe, no entanto, duas acepções


distintas para a noção de paradigma: “matriz disciplinar”, como
sinônimo aproximado de teoria ampliada, e “exemplares”, como as
“soluções concretas de problemas que os estudantes encontram
desde o início de sua educação e formação” e que funcionam como
visão de mundo, praticada e vivida, determinando quais tipos de
ideias são válidos; que questões são pertinentes; quais
procedimentos devem ser aplicados para a solução de problemas. E
chega a propor que o termo paradigma seja substituído por
“exemplares”. Curiosamente, a noção de “exemplares” foi
praticamente abolida da literatura da filosofia das ciências, enquanto
a noção de paradigma, apesar de criticada no início, foi adotada e
discutida, sendo amplamente aceita atualmente.
A ideia básica de paradigma, para Kuhn, é de um conjunto de
crenças, valores e concepções que, como um todo, rege e orienta
uma dada comunidade, e é aceito tacitamente em suas ações e
intervenções no mundo. A noção de compartilhamento e
compromisso é central na ideia kuhniana de paradigma. Ao
compartilhar concepções, valores e modos de resolver problemas, a
comunidade forma um paradigma e, automaticamente, está sob a
égide de um paradigma que determinaria até mesmo a forma como
um fenômeno é percebido pelos cientistas.
Os períodos de revolução científica são caracterizados por
mudanças de paradigmas, quando novos fenômenos são
descobertos, conhecimentos antigos são abandonados e há uma
mudança radical na prática científica e na visão de mundo do
cientista. Embora o mundo não mude com a mudança de
paradigma, depois dela “os cientistas passam a trabalhar em um
mundo diferente” (ibid, p. 171).
Segundo Japiassu e Marcondes, atualmente, é utilizado esse
termo no sentido de modelo teórico, abarcando um corpo de
conhecimentos, ao mesmo tempo abrangente e consistente, que
envolve “lei, teoria, aplicação e instrumentação” (2001, p. 206),
coincidindo com Denzin e Lincoln (1998), para quem a noção de
paradigma envolve três elementos fundamentais – ontologia,
epistemologia e metodologia –, que devem estar articulados e
entrelaçados de forma consistente e coerente. Vasconcellos, citando
Morin,

considera que os paradigmas são princípios “supralógicos” de organização do


pensamento, princípios ocultos que governam nossa visão de mundo, que
controlam a lógica de nossos discursos, que comandam nossa seleção de dados
significativos e nossa recusa dos não-significativos, sem que tenhamos consciência
disso. (2005, p. 34)

Figueiredo utiliza a expressão matrizes do pensamento


psicológico para discutir “os modelos de inteligibilidade e os
interesses expressos nas várias posições teóricas e metodológicas
geradores (...) de escolas e ‘seitas’ psicológicas” (1989, p. 11), cada
uma delas representando um conjunto cultural, de caráter científico
ou não, que, de alguma forma, se originaram de um cânone
científico ou cultural, legitimando-o, ou que influenciaram a formação
de um novo cânone cultural ou científico.
Nesse sentido, a noção de paradigma, às vezes, equivale a
um modelo teórico amplo, incluindo metodologia e aplicação prática;
outras vezes, refere-se a uma mentalidade, a um cânone cultural ou,
ainda, ao espírito de época, sendo utilizado tanto no âmbito da
ciência como em sentido laico. Seu compartilhamento pode
abranger desde grandes comunidades até pequenos grupos. E
também se refere a concepções e formas de agir, mais ou menos
conscientes, embora uma certa porção de consciência seja
indispensável para que o paradigma se estabeleça. Suas raízes, no
entanto, de acordo com Kuhn ([1970]2001), não são
necessariamente racionais. Sua efetividade se revela na capacidade
desse corpo de conhecimentos se mostrar útil ou apropriado para a
solução de problemas.
Considerando-se que as mudanças de paradigma são raras e
se processam lentamente (ibid.), pode-se supor que as descobertas
científicas e novas epistemologias que eclodiram no início do século
20 têm suas raízes nos séculos precedentes. Dentre elas, o
surgimento da psicologia profunda – que deu origem à psicanálise
em 1900 e à psicologia analítica em 1914 – pode representar um
período de “revolução científica” que implicou uma mudança de
paradigma.
Os paradigmas científicos traduzem uma mentalidade
científica, que inclui aspectos ontológicos e epistemológicos, os
quais encaminham métodos e estratégias de investigação científica.
A comunidade que o compartilha, em primeira instância, é uma
comunidade de cientistas, no entanto, a efetividade desse
paradigma tende a transpor as fronteiras do mundo científico e
impregnar a cultura.
De acordo com Pieri (2002), na psicologia junguiana, o
paradigma centrista e determinista cede lugar ao paradigma da
complexidade e diversidade dinâmica.

Ciência, epistemologia e método na pós-


modernidade
Santos (2000) concebe a ciência atual como pós-moderna e
aponta a desdogmatização como sua característica principal. Com o
interesse crescente por parte de alguns filósofos da ciência em
questionar as bases do pensamento científico, o movimento de
desdogmatização da ciência intensificou-se na segunda metade do
século 20. Para Samuels (1995), o termo “moderno tardio” é
equivalente a pós-moderno, caracterizando-se pela reorganização
das categorias de tempo espaço e lugar. Tais categorias, antes
absolutas, agora adquirem caráter relativo. Outras características da
pós-modernidade apontadas por Samuels são: o autoconhecimento;
a presença penetrante da dúvida, caracterizando a época atual
como “era da incerteza”; o não saber e a interpretação e
reinterpretação constantes são seus atributos principais.
O pensamento científico atual tem demonstrado grande
interesse em questionar seus fundamentos em busca do que alguns
cientistas chamam de “uma nova racionalidade” (Prigogine, 1996).
Começa a despontar a necessidade e a possibilidade de
reformulação das bases do paradigma racionalista, posto que seus
limites estritos são insuficientes e insatisfatórios para as
necessidades do homem atual.
Os germes dessa revolução científica se apresentam na
passagem entre o século 19 e o 20, com Einstein e Freud (teoria da
relatividade e psicanálise). Ao longo do século 20, observa-se uma
crise epistemológica e metodológica na ciência ocidental, quando a
ciência moderna começa a ser ampla e severamente criticada
(Tarnas, 2001). Segundo Prigogine, o pensamento científico
encontra-se no “ponto de partida de uma nova racionalidade que
não mais identifica ciência e certeza, probabilidade e ignorância”
(1996, p. 14).
Desponta uma concepção de ciência menos idealizada e
mais realizável, que admite a incerteza, a diversidade e a
complexidade do mundo e do ser humano. Essa concepção
compreende os assim chamados “paradigma da complexidade” ou
“paradigma da diversidade”; do ponto de vista metodológico, surgem
os paradigmas qualitativos (Denzin e Lincoln, 1998). Para Prigogine
(1996), trata-se de uma ciência que permite a criatividade como
expressão singular de um traço humano comum e fundamental a
todos os níveis de conhecimento.
Nesse sentido, o paradigma junguiano se insere nessa visão
de ciência, embora, na época em que foi proposto, tenha sido
bastante criticado pelos diversos âmbitos do saber, pela teologia,
pela filosofia e pela ciência do início do século 20. O modelo
junguiano desagradou o clero católico e protestante, assim como a
comunidade científica. Pelo clero, Jung foi acusado de psicologismo
e ateísmo, enquanto a comunidade científica o acusou de místico e
religioso (Letters 1 e 2, 1991).
Os horizontes da cientificidade parecem estar se ampliando
em relação aos limites estritos propostos pela filosofia iluminista e
pelo rigor científico do positivismo lógico. Eles têm se mostrado não
apenas insuficientes e insatisfatórios, mas sobretudo impeditivos
para o desenvolvimento do conhecimento.
O século 20 é apontado como a época em que a pós-
modernidade se instituiu no bojo de uma crise epistemológica
importante. Vários autores (Santos, 2000; Tarnas, 2001; Omnés,
1996; Schnitman, 1996; Hauke, 2000) têm se dedicado à análise
dessa crise epistemológica no panorama científico atual.
As principais características do pensamento pós-moderno
são: pluralidade, imprecisão, paradoxalidade, incerteza, relatividade,
ênfase na polivalência do significado, e integração da
individualidade na coletividade. O iluminismo tentou isolar o
indivíduo do coletivo e vice-versa (Hauke, 2000).
Jung reafirma o paradoxo e a contradição do homem, sua
infinita complexidade e diversidade, mas em sua psicologia
prevalece uma visão integrativa e construtiva. “Apesar de toda
incerteza, sinto a solidez do que existe e a continuidade do meu ser,
tal como sou” ([1961]1981, p. 310).
Algumas dessas questões já haviam sido levantadas na
filosofia moderna pela dialética kantiana e neokantiana, outras foram
retomadas pela filosofia romântica e neorromântica. A ciência,
porém, permaneceu mais aderida aos pressupostos iluministas, que
preconizavam a quantificação e o predomínio dos fatos objetivos e
concretos em sua investigação. Ou seja, a ciência moderna preferiu
seguir a tendência filosófica racional materialista. A vertente
romântica idealista ficou identificada com uma forma não científica
de conhecimento.
Na pós-modernidade, observam-se os desdobramentos das
vertentes filosóficas idealistas em duas direções. Numa delas, o
desconstrutivismo e o niilismo são aguçados, predominando a
angústia, o vazio e a falta de sentido (Hauke, 2000). Outra vertente
da pós-modernidade se afirma pelo construtivismo e pela busca do
sentido da vida, na qual Jung se insere. A psicologia analítica está
incluída no paradigma da multiplicidade e diversidade de
alternativas. O balanço das polaridades entre sentido e falta de
sentido acusa a inevitabilidade do paradoxo, levando o homem a se
perder e se encontrar continuamente em níveis cada vez mais
complexos e sofisticados de desenvolvimento.
A obra de Jung se identifica com a corrente construtivista na
qual, apesar do paradoxo, da dúvida e da angústia, o sentido
prevalece: “A vida tem e não tem sentido, ou então possui e não
possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e
ganhe a batalha” ([1961]1981, p. 310).
As revoluções dos paradigmas científicos, cujos princípios
fundamentais foram questionados e avaliados criticamente, são a
marca do pensamento científico do século 20. Tarnas aponta o
conceito kuhniano de paradigma como uma das características
principais do pensamento pós-moderno, “refletindo uma consciência
crítica da natureza essencialmente interpretativa da cultura” (2001,
p, 424) contemporânea, que não se satisfaz mais com a simples
constatação dos fatos, mas deseja compreendê-los e interpretá-los
criticamente.
ORIGENS DA PSICOLOGIA
ANALÍTICA

Para um melhor entendimento do contexto científico cultural


em que floresce o pensamento de C. G. Jung, faz-se necessário
tecer algumas considerações em relação à filosofia, psiquiatria e
psicologia no período que antecede a formulação da psicologia
analítica, ou seja, o final do século 19 e início do século 20. O
modelo psicológico proposto por Jung tem forte influência dessas
três áreas do conhecimento.
A localização do pensamento junguiano no contexto científico
de sua época possibilita uma reflexão sobre os critérios de
cientificidade a que sua teoria estava submetida por ocasião de sua
formulação e esclarece sobre algumas preocupações demonstradas
por Jung, sobretudo na definição de seus conceitos e na discussão
de sua concepção de ciência.
O ambiente científico em que Jung fez sua formação médica
era essencialmente positivista, com uma visão predominantemente
materialista de ciência. O método de estudo e abordagem dos
fenômenos era exclusivamente experimental. O positivismo,
herdeiro do iluminismo, conformava toda possibilidade de produção
científica séria e confiável.
O treinamento que recebeu na universidade – a disciplina e a
racionalidade do empirismo lógico – rendeu a Jung preocupação
com o rigor nas investigações experimentais; observação clínica
acurada e cuidadosa, além de grande habilidade diagnóstica. A
atitude científica desenvolvida nesse contexto está presente em
seus trabalhos e na consciência de seu papel como médico e como
cientista.
A filosofia romântica, cujos pressupostos contrastam
frontalmente com o positivismo e o materialismo da ciência
experimental, é um polo de tensão que C. G. Jung não se furtou a
discutir em sua obra. A tentativa de reconciliação entre opostos
moveu seus estudos e sua pesquisa. O racionalismo empírico
versus o romantismo introspectivo talvez tenha sido a primeira díade
trabalhada e elaborada por ele na constituição de sua teoria.
Através do método experimental, que representava o cânone
científico de sua época, Jung investiga e comprova a realidade do
inconsciente. Seus estudos experimentais sobre associação e a
conceituação de complexos de tonalidade afetiva de origem
inconsciente o notabilizaram no mundo científico e também o
incentivaram a abandonar esse método em favor da psicanálise e,
depois, na formulação de uma teoria e um método próprio de
investigação científica e compreensão da psique: a psicologia
analítica.
O pensamento de C. G. Jung antecipa algumas formulações
epistemológicas e propostas metodológicas que surgem na segunda
metade do século 20, nas ciências humanas, como aponta Clarke
(1993) em relação às proposições de Karl Popper e Thomas Kuhn.
No entanto, raramente se observa referência aos seus trabalhos em
estudos sobre esse tema. O pensamento junguiano é ainda pouco
reconhecido fora do círculo da psicologia analítica, com exceção de
Ellenberger (1970), Clarke (1993), Tarnas (2001), Shelburne (1988),
Homans (1979) e Nagy (1991), que discutem a obra de Jung no
contexto histórico, filosófico, cultural e científico atual.
Ao discutir as transformações da era moderna e suas
implicações, no que denomina revolução científica moderna, Tarnas
aponta Goethe, Hegel e Jung como aqueles que “procuraram
transpor o cisma ligando imperativos científicos e humanistas tanto
no método com na teoria” (2001, p. 393).
O século 20 pode ser considerado um tempo de grandes
transformações e mudanças em todas as áreas do conhecimento.
Essas mudanças, porém, foram gestadas principalmente na
segunda metade do século 19. No campo científico, pelo menos
duas grandes revoluções abrem o século 20, sem mencionar outras
tantas inovações importantes em outras áreas do conhecimento. As
ideias de Freud e de Einstein podem ser consideradas símbolos
inaugurais da revolução científica operada no século 20, anunciando
algumas das mudanças de rumo ocorridas na ciência
contemporânea.
Freud publica, em 1900, seu livro A interpretação dos sonhos,
inaugurando a psicanálise como ciência da alma. Em 1905, Einstein
apresenta a teoria da relatividade, que opera uma transformação
radical na concepção das leis físicas que regem o universo. O
conhecimento do homem e do mundo físico sofre uma grande
transformação a partir de então. A teoria da relatividade traz
profundas alterações na concepção tanto do universo como do
mundo físico. A psicanálise provoca uma guinada violenta na
concepção do humano – suas relações sociais, afetivas e
introspectivas. O inconsciente, que já havia preocupado o ser
humano durante milênios, entrava em cena agora para compor a
epistemologia científica moderna.
Tanto na física como na psicologia, as resultantes da
relatividade e do inconsciente se traduziram em novos paradigmas
científicos. De acordo com a noção de paradigma de Kuhn
([1970]2001), as descobertas científicas, ocorridas na alvorada do
século 20, configuraram uma mudança significativa de paradigma na
ciência contemporânea. Conforme Kuhn, o mundo não muda com a
mudança de paradigma, mas a relação que é estabelecida com o
mundo se transforma radicalmente. Segundo Mazzotti e
Gewandsznajder (1998), as mudanças de paradigma são raras e se
processam lentamente. Com base nessa afirmação, pode-se supor
que as mudanças que eclodem, no início do século 20, têm suas
raízes nos séculos precedentes.

Filosofia alemã: Goethe, Kant e os


filósofos românticos
A psicologia surge do entrelaçamento entre vertentes
biológicas e filosóficas, e a psicologia analítica tem suas raízes na
psiquiatria dinâmica e na filosofia alemã. A ciência moderna
absorveu a vertente racionalista e positivista da filosofia moderna,
sendo a vertente romântica mais assimilada pela arte.
A forte associação da psicologia analítica com os ideais
românticos pode ter sido um dos fatores que suscitaram tantas
críticas ao pensamento junguiano, considerado pouco científico.
Jung se declara um seguidor das ideias de Kant em vários
momentos de sua obra: “epistemologicamente, apoio-me em Kant”
(Letters 1, 1991, p. 294). No entanto, de acordo com Clarke, ele deu
um passo decisivo para além do mestre: “Para Jung, e também para
Hegel e outros sucessores de Kant no período romântico, o
entendimento humano tinha que ser compreendido em termos
históricos” (1993, p. 54).
A filosofia e a literatura alemãs fizeram parte da formação
“pré-universitária” de Jung. Goethe e Kant foram lidos na
adolescência. Nas conferências proferidas na fraternidade Zofíngia,
em 1896-1899, ele faz inúmeras referências a Kant, Goethe,
Shopenhauer, Von Hartman, dentre outros, demonstrando que seus
conhecimentos sobre a filosofia alemã precedem sua formação
médica. Sua obra é fortemente influenciada pelos filósofos
românticos alemães e pelo pensamento neokantiano, mais do que
propriamente por Kant, embora, em sua obra, Jung cite
repetidamente Kant e faça raras referência aos neokantianos.
Quanto a Goethe (1749-1832), é importante ressaltar a
extensa e intensa repercussão de seu pensamento entre os
alemães e, especialmente, para Jung. Goethe foi um grande artista,
cientista e notável filósofo (Challaye, 1966). É um dos precursores
do romantismo alemão. Empenhou-se em unir poesia e ciência,
integrando a observação empírica e a intuição espiritual (Tarnas,
2001). Considerado um representante da filosofia da experiência,
seu método, no entanto, não é um empirismo puro (Challaye, 1966),
uma vez que ele tenta integrar sujeito e objeto no processo
construtivo do conhecimento. O empirismo de Jung está mais
afinado com a visão de Goethe do que com o empirismo lógico.
Quanto à construção do conhecimento, Goethe concorda com Kant,
mas diverge dele sobre a relação entre o ser e a natureza (Tarnas,
2001). Como artista, Goethe destaca o mundo transcendente, a
intuição e, principalmente, a questão do mal que provoca forte
impressão em Jung.
Kant (1724-1804) é um grande divisor de águas na filosofia
ocidental. Rompe definitivamente com a tradição cartesiana ao
propor uma perspectiva transcendental, retoma o idealismo
platônico e o reformula em sua dialética crítica. Destaca elementos
a priori contidos no conhecimento, que transcendem a experiência.
Ao racionalismo de Descartes, opõe a experiência sensível,
destacando a percepção e o sentir na experiência (Challaye, 1966).
Razão, espírito, experiência sensível e transcendente são questões
profundamente debatidas por Kant. Sua noção de categorias a priori
chama a atenção de Jung, que vai discuti-las mais à luz do
romantismo do que da metafísica kantiana. A filosofia de Kant terá
influência decisiva no pensamento ocidental, tanto na direção do
romantismo como da dialética fenomenológica existencial. A
vertente romântica da filosofia alemã será construída por Goethe,
Fichte e Schelling, que derivam do idealismo e do criticismo de Kant.
Hegel (1770-1831) será o grande sucessor de Kant na
metafísica dialética. Vai aprofundar a discussão das antinomias
kantianas, considerando os opostos não como uma contradição a
ser eliminada (lógica formal) ou como um limite intransponível do
conhecimento (Kant), mas antes como necessários e
inevitavelmente implicados no conhecimento. A verdade, para
Hegel, é extremamente paradoxal (Tarnas, 2001).
A dialética hegeliana, sua noção de necessidade e
paradoxalidade, assim como a concepção histórica do
conhecimento, estão presentes na teoria de C. G. Jung. Essa
concepção histórica do ser humano, no entanto, é também uma
forte característica da filosofia romântica. Ao que tudo indica, a
concepção romântica da história é mais evidente na obra de Jung.
Ele utiliza a imagem de vestimenta do espírito de Schopenhauer
para compreender os períodos históricos (Maroni, 1998).
A noção de desenvolvimento, em Jung, seja no plano
individual, seja no cultural, segue também a linha de pensamento de
Schopenhauer no que diz respeito ao princípio de individuação
como um desenvolvimento necessário, movido por uma “vontade
cega” rumo à complexidade. O aspecto fenomenológico dialético da
concepção de psique de Jung tem dupla raiz: a filosofia neokantiana
e a psiquiatria dinâmica, esta, por sua vez, altamente influenciada
pela visão romântica de ser humano e mundo.
O impasse kantiano entre a coisa-em-si e o conhecimento,
isto é, a possibilidade de conexão entre o mundo subjacente e o
mundo aparente, vai ser alvo de debate entre os românticos. Dentre
eles, Schiller, Schelling, Von Hartman, Carus e Bergson,1 de
diferentes formas, vão contribuir para essa questão na obra de
Jung, com relação à teoria das polaridades, à sua noção de
inconsciente coletivo, contribuindo, principalmente, na diferenciação
entre arquétipo em si e manifestação arquetípica, bem como na
formulação do símbolo como a ponte epistemológica para a
possibilidade de integração entre os dois mundos – consciente e
inconsciente.
Segundo Tarnas (2001) e Clarke (1993), é nesse ponto que a
epistemologia junguiana supera o impasse epistemológico de Kant.
A discussão sobre a formação e a função do símbolo na psicologia
analítica e suas implicações epistemológicas e metodológicas será
feita mais adiante, no capítulo ”O paradigma junguiano”, seção
“Perspectiva epistemológica”.
O romantismo do século 18 não é apenas um estilo, uma
escola ou tendência, é uma emergência histórica – um evento
sociocultural (Guinsburg, 1993) que se configura como uma visão de
mundo. Essa concepção está fortemente presente na perspectiva
ontológica da obra de Jung. O neorromantismo do século 19 é fruto
de dois grandes acontecimentos na história da humanidade, ou seja,
a Revolução Francesa (século 18) e a Revolução Industrial (século
19).
O romantismo como filosofia está necessariamente associado
a filósofos alemães (Bornheim, 1993). Há uma veia romântica
presente em toda cultura alemã. A mentalidade romântica está
profundamente enraizada na formação pessoal e científica de C. G.
Jung.
Tarnas (2001) situa o início do romantismo em paralelo ao
iluminismo, tendo ambos surgido da complexa matriz do
renascimento. Para Nunes (1993), o romantismo, propriamente dito,
surge como uma reação ao iluminismo, sendo o ponto nascente da
filosofia romântica a tentativa de Fichte de discutir as antinomias de
Kant.
A filosofia romântica designa um conjunto de sistemas
idealistas posteriores a Kant, incluindo a teologia sentimental de
Schleiermacher e o realismo mágico de Novalis, mas excluindo o
idealismo de Hegel (Guinsburb, 1993), que será mais absorvido pela
dialética materialista de Engels e Marx e pela fenomenologia
existencial de Heidegger.
O discurso romântico é essencialmente interpretativo e
formativo. As fontes propulsoras do romantismo estão no indivíduo.
O ser humano é fantasioso, imprevisível, de alta complexidade
psicológica, dotado de um mundo interno rico e exuberante e, por
isso, centrado em sua imaginação, sensibilidade e intuição; um
organismo dotado de corpo e alma, sendo o espírito seu centro
nevrálgico. A visão romântica implica uma forma de concepção de
mundo (Nunes, 1993) preponderantemente idealista e metafísica,
percorrida por um afã de totalidade e de unidade. As matrizes
filosóficas da visão romântica, que legitimam a originalidade e o
entusiasmo, são o caráter transcendente do sujeito humano e o
caráter espiritual da realidade, que quebram a uniformidade da
razão, e a consequente forma de individualismo racionalista, e
rompem com a concepção mecanicista da natureza.
Jung absorve as mais diversas nuanças da filosofia alemã
desse período. Assim como Nietzsche, também Jung foi proscrito
por suas ideias, e ambos estão sendo reabilitados no panorama
cultural contemporâneo do Ocidente (Maroni, 1998).
O romantismo foi uma reação ao iluminismo, que vai
sobreviver através do positivismo, do pragmatismo e da ciência
tecnológica dos dias atuais. O romantismo cede lugar ao
existencialismo niilista, tendo antes sido relativizado por Nietzsche.
No panorama filosófico do fim do século 19, destacam-se a filosofia
de Kant, em seus desdobramentos neokantianos, e o
neorromantismo, que revive e resgata o romantismo dos séculos
anteriores.
De ambos, Jung recebe grande influência em sua visão sobre
a natureza humana e sua relação com o mundo. A tradição
romântica e kantiana será decisiva em sua escolha pela psiquiatria
como área de especialização. Suas críticas e restrições à visão
materialista e positivista na ciência encontram ressonância na
filosofia neorromântica e neokantiana, sobretudo no que diz respeito
à subjetividade e à vida interior.
A concepção de um mundo subjacente integrado ao mundo
manifesto, que valoriza a interioridade em seus aspectos
imaginativos e intuitivos, e a realidade da alma segundo uma
perspectiva mais humanista do que teológica, são os pontos de
partida em sua teoria. Nesse sentido, a psiquiatria dinâmica também
teve grande influência na formulação da psicologia analítica.

Psiquiatria dinâmica
O modelo proposto por Jung resgata concepções de
saúde/doença e cura, vigentes na Antiguidade, atualizando-os para
o panorama científico atual. A psicoterapia como tratamento da alma
é uma atividade da qual já se ocuparam nossos antepassados, em
consonância com as circunstâncias culturais de cada período da
história da humanidade. “Os cuidados com a alma estiveram
historicamente a cargo das religiões e somente há cerca de 300
anos é que esta situação vem sofrendo mudanças” (De Marco,
2003, p. 19).
Na mitologia, na religião e na filosofia, observam-se inúmeras
indicações da preocupação dispensada aos padecimentos
espirituais do ser humano. A necessidade de compreender o
sofrimento humano e as tentativas de cuidar e tratar de sua saúde
acompanham toda a história da humanidade. Assim sendo, esse
tema tem um caráter arquetípico que se atualiza a cada momento
histórico.
Na Antiguidade grega, o Oráculo de Delfos tratava os
padecimentos do corpo e da alma como uma coisa única. A Grécia
Antiga não fazia distinção entre os males do corpo e os do espírito.
Ars curandis (artes curativas) se referia a todos os procedimentos
aplicados aos padecimentos dos homens; incluía conhecimentos
médicos, religiosos, mágicos e principalmente mistérios; congregava
saber, arte e fé; resultava de uma cosmovisão que ultrapassava os
limites do corpóreo, abrangendo o ser humano como um todo.
A separação entre psique e corpo é relativamente recente na
história da humanidade. Historicamente, é a medicina de Hipócrates
que inicia, no mundo ocidental, a caminhada rumo à distinção entre
os padecimentos do corpo e os da alma, tendo a medicina se
ocupado daqueles e a religião, destes.
Na Idade Média, a Europa opera uma restauração da
demonologia com uma aparente integração das esferas corporal e
espiritual. O que se observa, no entanto, é a hegemonia da
dimensão anímica, em que a esfera orgânica não só é secundária,
como determinada pelo aspecto espiritual, reafirmando a separação
corpo/espírito. Os males do espírito na Europa medieval são
atribuídos à possessão pelo demônio. Sua terapêutica consiste na
expulsão do mal por procedimentos exorcistas.
À óptica religiosa, prevalecente na Idade Média, sucede, na
modernidade, uma medicina rudimentar, que começa a considerar a
necessidade de um tratamento em outros moldes para a loucura,
que passa a ser considerada doença mental. A hipótese medieval
de castigo divino ou possessão pelo demônio ainda não é
completamente descartada, embora a ela se acrescente a hipótese
de causalidade orgânica.
Sob a designação de “primeira psiquiatria dinâmica”,
Ellenberger (1970) situa um movimento da medicina, que se
estende de 1775 a 1900, em que a atenção às doenças mentais
promove o desenvolvimento de um corpo de conhecimentos bem
estruturado, com a finalidade de compreender e tratar o doente
mental, na perspectiva dos pressupostos epistemológicos e
procedimentos baseados numa concepção de ser humano e de
mundo calcados mais na filosofia romântica do que no iluminismo e
no empirismo, característicos da ciência moderna. Ellenberger
destaca o período de 1880-1900 como uma “nova psiquiatria
dinâmica”.
O surgimento de uma psiquiatria dinâmica, de acordo com
Ellenberger, remonta ao ano 1775, com um confronto entre o
médico Franz Anton Mesmer (1734-1815), adepto do iluminismo, e o
famoso exorcista Johann Joseph Gassner (1727-1779).
Na passagem da mentalidade medieval, com sua ênfase na
concepção religiosa da vida e do conhecimento, para a mentalidade
moderna, em que a ênfase recai na concepção racionalista do
mundo e do conhecimento, instala-se um vácuo epistemológico. As
perturbações ou os sofrimentos da alma, antes atribuídos a
instâncias transcendentes, passam a ser considerados problemas
de ordem orgânica. A possessão por espíritos malignos constituía a
base da epistemologia da loucura na Idade Média; na modernidade,
o mesmo fenômeno será denominado doença mental ou nervosa,
assentada na hipótese epistemológica de uma afecção orgânica. No
entanto, sua etiologia e terapêutica se revestem ainda de uma aura
de mistério. Parece, portanto, que a mentalidade cristã medieval
ainda está presente no racionalismo organicista moderno.
Jung, em 1908, faz uma avaliação bastante interessante
sobre esse tema.

Com o surgimento da era moderna e das primeiras instituições científicas, a


personificação bárbara inicial de poderes desconhecidos foi gradualmente
desaparecendo, dando lugar a uma concepção de doença mental, baseada numa
atitude mais filosófica e moral. A antiga concepção de que todo infortúnio traduz a
vingança de deuses ofendidos, entretanto, permaneceu nos séculos posteriores,
com uma nova roupagem. (...) a doença psíquica, como se acreditou, pode ser
atribuída a uma lesão de caráter moral, ou a um pecado. Atrás dessa concepção,
porém, encontram-se ainda os mesmos deuses irados. (vol. 3, p. 321)

No período entre o século 16 e 17, com o nascimento da


ciência moderna, grandes mudanças são observadas no tratamento
das doenças em geral e, particularmente, das doenças mentais.
Segundo Ellenberger, nessa passagem ocorre “uma dicotomia entre
terapia física e psíquica. A ênfase na psiquiatria é no tratamento
físico da doença mental” (1970, p. 47).
É importante destacar esses eventos, pois o surgimento da
psicologia profunda, como área do conhecimento que vai se dedicar
ao estudo e à pesquisa do inconsciente, assim como ao tratamento
das doenças mentais, opera, por um lado, uma grande revolução na
epistemologia e nos métodos de pesquisa científica, mas, por outro
lado, é também uma tentativa de reabilitar, em novos moldes,
práticas curativas antigas que foram banidas do âmbito da ciência
moderna.
A primeira psiquiatria dinâmica baseia-se ainda nas noções
medievais de possessão; no conceito de imaginação surgido na
Renascença; nas ideias modernas de sugestão (hipnotismo) e
autossugestão e, ainda, no magnetismo animal. Este último, lembra
Ellenberger, é, historicamente, uma evolução da antiga prática do
exorcismo. Vale salientar que práticas religiosas utilizadas para esse
fim, como o exorcismo, tinham caído em desuso há muito pouco
tempo, e a mentalidade de expulsar o mal através de técnicas
exorcizantes ainda predominava. O espiritismo, que deu origem à
parapsicologia, é um evento importante nesse período da história da
psiquiatria e que influenciará muitos estudos nesta área, inclusive
Jung, na sua pesquisa realizada sobre “a psicopatologia dos assim
chamados fenômenos ocultos” em 1902 (vol. 1).
Justinus Kerner (1786-1862), citado diversas vezes por Jung
em seus primeiros trabalhos, “tratava os possuídos com um método
que era uma mistura curiosa de magnetismo e exorcismo”
(Ellenberger, 1970, p. 111).
Uma nova psiquiatria dinâmica começa a surgir de dentro da
primeira, mediante uma transição lenta e gradual ao longo das duas
últimas décadas do século 19. A nova psiquiatria dinâmica incorpora
muitos procedimentos e ideias da antiga psiquiatria, os quais serão
integrados a novos conhecimentos, advindos de várias áreas e
adaptados aos ditames do método científico moderno.
No período de 1882 a 1893, acontece na Europa aquilo que
Ellenberger (1970) chama de “ressurreição do magnetismo animal”,
sob a designação de hipnose e sugestão. Na França, Jean Martin
Charcot (1825-1893) e Bernhein (1840-1919) são dois
representantes dessa tendência na medicina. A hipnose, nesse final
de século, é reabilitada como um método de investigação na
neurologia e na psiquiatria.
Freud reputa a Charcot sua iniciação nos domínios da
psicologia. Ele o conhece, em 1885, e declara ter sido seu aluno
entre 1885-1886 (Freud, [1899]1972). Esse encontro produziu efeito
marcante no criador da psicanálise e teve grande importância na
mudança de rumo na obra freudiana em direção à psicanálise,
sobretudo a partir de 1900. Freud ([1893]1972) destaca a
importância do papel de Charcot para o desenvolvimento da
neuropatologia. Em 1888, ele traduziu o livro de Bernhein para o
alemão e, no prólogo, elogia o autor pela ênfase dedicada ao fator
psíquico da sugestão, comentando que, ao descuidá-lo, incorre-se
em erro, em razão do caráter caprichoso da neurose (Freud,
[1889]1972).
Charcot é um pioneiro no encaminhamento do hipnotismo
como prática científica, considerado até então um assunto obscuro e
controvertido no ambiente científico. Sua forma de conduzir os
estudos sobre as “afecções nervosas” marca a transição da antiga
psiquiatria dinâmica para a nova psiquiatria dinâmica.
Advinda da França, a hipnose alcança popularidade na
Europa Central e na Inglaterra. O método visa à investigação de
estados alterados de consciência e demonstra ser adequado para
acessar material psíquico que se encontra fora do alcance da
consciência.
Charcot percebe que o estágio sonambúlico da hipnose
facilitava particularmente a realização de atos automáticos
(Ellenberger, 1970), o que auxiliava muito a compreensão das
afecções nervosas. Ele alcança grande prestígio com seus estudos,
suas pesquisas e publicações sobre a hipnose. E Charcot fornece
prova científica da psicogênese dos distúrbios histéricos; seus
estudos o levaram a concluir que “existiam fatores desconhecidos e
poderosos de cura que a medicina do futuro deveria aprender a
controlar” (ibid., p. 764).
A doença mental é objeto de estudo da psiquiatria moderna,
que, a partir do século 19, vai apresentar grande desenvolvimento,
principalmente com os estudos da Escola de Nancy e do Salpêtrière
na França. A psicologia profunda, da qual Freud e Jung são os
principais representantes, tem suas raízes na psiquiatria dinâmica. A
noção de inconsciente começa a ser introduzida na psiquiatria. Na
filosofia, a ideia de inconsciente vem sendo discutida pelos filósofos
românticos. Segundo Freud ([1893]1972), os estudos de Charcot
destacam a importância de fatos até então “descuidados e
depreciados”.
É importante ressaltar que a hipótese da gênese psíquica dos
distúrbios nervosos proposta por Charcot tem valor heurístico
fundamental numa mudança epistemológica importante em relação
à realidade da psique e de seu tratamento. Desempenha também
papel decisivo no desenvolvimento das teorias psicológicas de
Freud e Jung, bem como de seus respectivos métodos
psicoterapêuticos. A gênese das perturbações nervosas (neuroses)
atribuída a fatores psíquicos recompõe o vácuo epistemológico
deixado pela mudança de paradigma na passagem da mentalidade
medieval para a mentalidade moderna. Ou seja, os fenômenos de
possessão por espíritos malignos, ou a recém-nomeada doença
mental, passam a pertencer a um novo campo epistemológico, qual
seja, o âmbito psíquico; dessa forma, é plausível um método de
tratamento psíquico – a psicoterapia.
Auguste Forel (1848-1931) leva, para Zurique, seu
entusiasmo pela hipnose, divulga o método e discute o fenômeno da
resistência consciente e inconsciente a esse procedimento. Forel é
responsável pelo crescente prestígio do Burghölzli (Hospital
Psiquiátrico da Universidade de Zurique), que, no início do século
20, sob a direção de E. Bleuler, será considerada uma instituição de
vanguarda no tratamento psiquiátrico. Jung desenvolve seus
estudos sobre associação de palavras no laboratório de
psicopatologia experimental montado por ele e Riklin com
autorização e anuência de Bleuler nessa instituição.
A questão do inconsciente está sendo debatida e investigada
na psiquiatria, embora ainda pouco aceita pela comunidade
científica em geral. As pesquisas e publicações sobre hipnose e
métodos sugestivos vão se disseminando pela Europa e alcançando
aceitação científica. Na Áustria, Kraft-Ebbing (1840-1902) se
destaca pelos estudos dos distúrbios psiquiátricos segundo uma
perspectiva mais filosófica da doença mental; a sexualidade e a
subjetividade são enfatizadas pelo psiquiatra austríaco.
Em suas memórias, Jung aponta o Manual de psiquiatria de
Kraft-Ebbing como responsável por sua decisão pela psiquiatria
como a especialidade a ser seguida em 1900:

Li então no prefácio: “Sem dúvida, é devido à particularidade desse domínio da


ciência e à imperfeição de seu desenvolvimento que os manuais de psiquiatria têm
sempre um caráter mais ou menos subjetivo”. Algumas linhas adiante, o autor
denominava as psicoses “doenças da personalidade”. ([1961]1981, p. 103)

A visão de Kraft-Ebbing sobre a psiquiatria, como disciplina


subjetiva que se dedica ao estudo da personalidade, teve influência
decisiva sobre Jung.
Pierre Janet (1859-1947) é outro personagem de destaque
nesse período, na França. Professor de Filosofia, ele alcança fama
com sua tese sobre automatismo psicológico. Janet influenciou
Freud e contribuiu também para o pensamento de Jung, através de
seus estudos sobre o automatismo psicológico, “um estado em que
elementos subconscientes da personalidade afloram à consciência”
(Clarke, 1993, p. 24). Jung (vol. 1) cita os estudos sobre
automatismo de Janet para corroborar a discussão do material de
sua pesquisa sobre estados sonambúlicos e mediúnicos em sua
tese de doutorado.
A colaboração entre Charcot e Janet promove um encontro
importante entre duas áreas de conhecimento – a Medicina e a
Filosofia –, que será a pedra fundamental da psicodinâmica,
originando um ramo da psicologia que vai integrar os conhecimentos
médicos, filosóficos e psicológicos e se dedicar ao tratamento da
doença mental: a psicoterapia. A tradição filosófica de Pierre Janet
imprimirá um caráter mais humanista à psiquiatria, que será
bastante influenciada pelo neorromantismo, em ascendência no final
do século 19 em toda a Europa.
Os laços de ligação entre psiquiatria e filosofia se estreitam, e
há também uma aproximação com a psicologia. A cooperação entre
essas áreas de conhecimento está na base do surgimento de uma
nova forma de encarar e tratar as doenças mentais e nervosas.
O fim do século 19 é marcado, segundo Kerr (1994), por uma
explosão internacional de interesse pela compreensão e pelo
tratamento das desordens nervosas. Na Europa e nos Estados
Unidos, estudos e experimentos sobre métodos de tratamento para
aliviar as queixas nervosas se desenvolvem amplamente. Filósofos,
neurologistas, psiquiatras e praticantes leigos de hipnotismo e
magnetismo encontram-se em congressos científicos para, juntos,
discutirem temas como: hereditariedade psicológica; alucinação em
indivíduos normais; hipnotizabilidade das pessoas “sãs e
perturbadas”. A nova psiquiatria dinâmica congrega psiquiatria,
neurologia, psicologia e filosofia, constituindo uma nova vertente da
medicina que inaugura uma perspectiva psicológica para as
afecções nervosas e mentais, que no futuro serão denominadas
neuroses e psicoses. É oportuno mais uma vez salientar que essa
perspectiva viabiliza as psicoterapias como tratamento da alma e do
espírito no campo científico moderno.
Roazen (1978) destaca a dedicação de Janet à compreensão
psicológica dos sintomas mentais, sobretudo na dissociação. Ele
propõe a “análise psicológica” da doença mental, baseando-se,
principalmente, na hipótese da gênese psíquica das afecções
lançada por Charcot, preocupando-se com o aspecto subjetivo e
qualitativo dos distúrbios psíquicos.
Os métodos sugestivos entram em desuso, e o método
catártico, formulado por Janet, tem por objetivo “descobrir e atacar
as raízes inconscientes dos sintomas” (Ellenberger, 1970). Mais um
passo é dado em direção à sistematização dos métodos
psicoterapêuticos aplicados à doença mental. A dúvida sobre em
que medida as curas catárticas eram alcançadas mais pelo vínculo
relacional estabelecido entre o médico e o paciente do que,
propriamente, pela catarse em si leva Janet à reformulação de suas
hipóteses e ao desenvolvimento de um procedimento terapêutico
que enfatiza o rapport, isto é, o relacionamento médico—paciente.
Esse setor da psiquiatria, aos poucos, vai se desenvolvendo na
direção da psicologia, e não mais numa visão estritamente médica
dos problemas psíquicos.
A psicologia profunda será bastante influenciada por essa
tendência que privilegia a subjetividade, a relação transferencial, os
aspectos afetivo-emocionais e o inconsciente na abordagem dos
distúrbios psíquicos. De acordo com Kerr, “estava claro que o modo
de fazer progressos na compreensão das doenças nervosas era
através da psicologia” (1994, p. 89), embora o substrato orgânico do
sistema nervoso ainda desempenhasse papel importante na doença
mental nessa época.
Ainda que Freud não tenha sido o único a se preocupar com
essas questões, a formulação do método psicanalítico representa a
elaboração e a sistematização de estudos e pesquisas conduzidos
na perspectiva desses pressupostos. Uma nova abordagem dos
fenômenos psicológicos é instituída com a psicanálise.
A psicoterapia moderna, a partir do século 20, tem como
pressupostos epistemológicos básicos a hipótese de Charcot sobre
a gênese psíquica da doença mental; a hipótese de um âmbito
psíquico extraconsciente (inconsciente); a noção de individualidade;
o autoconhecimento como meta da psicoterapia; e a possibilidade
de transformação interna dos indivíduos. Esses pressupostos
implicam uma concepção de ser humano que integra corpo e psique
e, ainda, uma visão de mundo que abrange mundo interno e mundo
externo.
Apesar dos esforços de Charcot e Janet, entre outros, pela
constituição de uma abordagem dinâmica na psiquiatria, em que a
compreensão e o tratamento da doença mental fossem
privilegiados, a vertente organicista e positivista da psiquiatria, com
uma psicopatologia preferencialmente descritiva, prevaleceu por
muito tempo e ainda tem grande repercussão hoje. A importância da
psiquiatria dinâmica reside no fato de seu maior legado ter sido o
surgimento de uma psicologia dinâmica, que foi denominada
psicologia profunda e deu origem à psicanálise e à psicologia
analítica.
Durante muito tempo, a psiquiatria limitou-se a detectar os
sintomas e a organizá-los numa psicopatologia descritiva. A
terapêutica utilizada resumia-se a procedimentos ou medicamentos
para conter ou manter o mal dentro de certos limites; os “asilos”,
como a própria palavra indica, objetivavam abrigar os doentes e,
simultaneamente, mantê-los de certa forma afastados, poupando a
sociedade dos inconvenientes que os “loucos” lhes causavam.

Do ponto de vista clínico que então predominava, os médicos não se ocupavam


com o doente mental enquanto ser humano, como individualidade: tratava-se do
doente número x, munido de uma longa lista de diagnósticos e sintomas. Uma vez
“rotulado” e carimbado com o diagnóstico, o caso era de certa forma encerrado.
(Jung, [1961]1981, p. 108)

Na avaliação que Jung faz do período que trabalhou no


Bürgholzli Mental Hospital, ele declara que “nesta época, não havia
ainda qualquer interesse terapêutico em relação a estas variantes
patológicas daquilo que era chamado de ‘normalidade’” (p. 107).
Em 1896, Jung já manifesta suas críticas à vertente
materialista e racionalista que impera na ciência. Considera essa
visão insuficiente e mesmo inadequada para o estudo de temas de
ordem subjetiva e imaterial. Sua crítica apoia-se no argumento
kantiano de que toda substância material tem uma atividade interna
como causa de sua manifestação externa, sendo esta de natureza
imaterial (vol. A).
Uma longa cadeia, desde o xamanismo, passando pelas
práticas exorcistas sacerdotais até o magnetismo animal e as
técnicas sugestivas e hipnóticas (Eisendrath e Dawson, 1997),
configura um percurso dos estudos da psique no âmbito de uma
tradição romântica. Um ponto residual nesse caminho que deve ser
ressaltado é a relação entre curador e ferido. A terapêutica nessa
tradição é sempre conduzida pela empatia. Seu correlato na
psicologia profunda é a transferência como condutora das
transformações. No paradigma junguiano, isso será visto mais
adiante na relação eu—outro (sujeito—objeto), que permeia a
epistemologia e o método da psicologia analítica.
Como toda grande mudança de paradigma, sua implantação
é lenta e gradual, por isso tanto a psicanálise de Freud como a
psicologia analítica de Jung enfrentaram grandes resistências por
parte da comunidade científica. A medicina e a psicologia durante
muito tempo permaneceram ligadas aos critérios de cientificidade
estritamente racionalistas e materialistas, que buscavam no
ambiente ou nos fatores orgânicos a explicação para os fenômenos
psíquicos e preconizavam o método experimental como o único
considerado científico. É interessante notar que a psiquiatria
dinâmica e suas ramificações se mantiveram como um saber
marginal na perspectiva da ciência moderna, fortemente
influenciada pelo positivismo de Augusto Comte e pelo racionalismo
cartesiano.
A filosofia romântica, que surge como uma reação ao
iluminismo e se afirma em oposição ao positivismo, exerce forte
influência sobre esse ramo da psiquiatria que vai se desenvolver em
direção à psicologia profunda do século 20. Esse talvez seja um dos
motivos pelos quais a psicologia clínica, herdeira da psicologia
médica, raramente estará condicionada aos métodos científicos
tradicionais da ciência empírica e experimental, e, por essa razão, é
muitas vezes considerada pouco científica para os padrões de
ciência da modernidade.

Psicologia
A psicologia como ciência moderna surgiu em meados do
século 19. Entretanto, como na medicina, observa-se que a preo-­
cupação com o aspecto psicológico do ser humano pode ser
observada desde os primeiros registros históricos da humanidade.
Assim, cabe mais uma vez a suposição de que o ser humano tenha
se ocupado com as questões relativas ao espírito e à alma desde os
tempos mais remotos, mesmo que delas não se tenha registro. “É
sabido que durante dois milênios a psicologia foi inseparável da
filosofia, tanto assim que não existia termo que desta a distinguisse”
(Mueller, 1978, p. xvii). O termo psicologia, de acordo com Mueller,
foi criado, no século 16, pelo professor de lógica Rodolfo Goclenius,
mas, até o século 18, foi muito pouco empregado na literatura.
O campo epistemológico da psicologia moderna remonta às
mais antigas religiões do totemismo, e o animismo às religiões
monoteístas, assim como em menor escala às concepções míticas e
filosóficas da tradição oriental e ocidental. A vastidão de suas raízes
obriga necessariamente uma delimitação. Conforme disse Paul
Masson-Oursel (apud Mueller, 1978, p. xviii), apenas a Europa
adotou a concepção de psicologia como “ciência dos fenômenos
psíquicos em paralelo às ciências da natureza”. Muller considera a
psicologia científica como uma criação da mentalidade ocidental
moderna.
A partir da segunda metade do século 19, observa-se na
Europa Central o surgimento de uma preocupação crescente com
os aspectos psicológicos em várias áreas. Na medicina, essa
tendência vai se manifestar na psiquiatria dinâmica, como já foi
visto. Na fisiologia, aparecem estudos integrando o aspecto
psicológico e o fisiológico, resultando na psicofisiologia. Na filosofia,
o movimento romântico enfatiza o aspecto psicológico do ser
humano, o liberalismo ressalta a noção de individualidade e o
positivismo, herdeiro do iluminismo, destaca a disciplina e o
racionalismo como determinantes do comportamento. Cada uma
dessas vertentes filosóficas e biológicas influencia a estruturação de
diferentes correntes psicológicas na passagem do século 19 para o
20.
Segundo Woodworth e Marquis (1965), a psicologia científica
funda-se no conhecimento e na compreensão do ser humano em
seu aspecto psicológico. Ele qualifica a psicologia como uma ciência
interme­diária que focaliza a atenção nas atividades dos indivíduos.
Wertheimer (1972), por sua vez, afirma que a psicologia surgiu da
confluência de dois grandes rios – da ciência e da filosofia. Na
psicologia experimental, a margem científica era composta pela
fisiologia, biologia e abordagem atomista, com grande interesse pela
quantificação, incentivando pesquisas de laboratório e treinamento.
A margem filosófica dessa psicologia derivava do empirismo crítico,
do associacionismo e do materialismo científico.
“Até meados do século XIX a psicologia foi cultivada por
pensadores capazes que, entretanto, não compreenderam a
necessidade de trabalhar com fatos cuidadosamente observados”,
relatam Woodworth e Marquis (1965, p. 5). Por não estar afinada
com o método positivista considerado científico na época, até
meados do século 19 não era considerada ciência, mas um tipo de
saber filosófico. A adoção do método experimental aplicado aos
fenômenos estudados pela psicologia passa a lhe conferir a
qualificação de ciência. “Finalmente os psicólogos se convenceram
de que também eles precisavam seguir o caminho tomado pelos
físicos, químicos e fisiólogos e transformar a psicologia em ciência
experimental” (ibid., p. 6).
As formulações da psicologia científica se concentram em
descrever e compreender, assim como discriminar e classificar os
elementos e as características psíquicas humanas em geral. Daí
resultam extensos estudos sobre a inteligência humana, que se
desdobram em pesquisas acerca de capacidades como memória,
atenção e percepção; dos processos mentais, da associação de
ideias, dos atos reflexos; estudos sobre aprendizagem,
desenvolvimento e, principalmente, sobre as características e os
padrões de comportamento humano. Conforme Hilgard e Atkinson
(1976), antes do aparecimento da psicologia experimental havia
duas teorias da mente: a teoria das faculdades inatas (pensamento,
sentimento e vontade) e a teoria associacionista, para a qual o
conteúdo mental resultava das associações realizadas pelos
sentidos. Ambas as teorias influenciaram o desenvolvimento das
diversas correntes psicológicas posteriores no século 20.
O objetivo principal da psicologia, nessa época, está voltado
para os padrões de comportamento. O ponto focal dos estudos
psicológicos concentrava-se em torno do ser humano em geral e
comum. Aquilo que se localizava fora do espectro da normalidade
ainda não se constituía seu alvo. Os desvios em relação à média se
remetiam à medicina, não constituindo assunto da psicologia nesse
momento.
A psicologia aplicada dedica-se à educação – aprendizagem
– e ao aconselhamento. A psicoterapia tem origem na psicologia
profunda. O interesse e a necessidade de desenvolver
procedimentos terapêuticos localizam-se na psicologia médica. As
doenças nervosas, as demências e a loucura eram da alçada da
medicina, mais especificamente da neurologia e da psiquiatria. A
neurologia se ocupava das doenças nervosas; a psiquiatria, das
doenças mentais. A psicologia reconhece tais eventos como
alterações significativas de comportamento, com comprometimento
das faculdades ou capacidades cognitivas, e também da
sociabilidade, mas não se ocupa deles.
O método experimental domina em todas as áreas do
conhecimento. Assim, também a psicologia vai seguir esse
parâmetro. Objetividade, observação, comprovação empírica e
estatística são as práticas mais valorizadas pela concepção de
ciência positivista.
Gustav Fechner (1801-1887) é um nome importante nos
primórdios da psicologia experimental como ciência do
comportamento. Embora fosse oficialmente um físico, tinha muito
mais de filósofo e místico do que de cientista, e lutava contra o
materialismo de seu tempo em prol do espiritualismo. Contudo, foi
sua abordagem psicofísica que o notabilizou e influenciou outros
pesquisadores, como Wundt, que se tornou o principal nome na
psicologia, uma ciência emergente nessa época.
Wilhelm Wundt (1832-1920) tem papel importante na
psicologia experimental na segunda metade do século 19. Segundo
Wertheimer (1972), ele personificou o espírito da psicologia alemã
pós-fechneriana. Em 1875, fundou o primeiro laboratório de
pesquisa psicológica na Universidade de Leipzig. Um dos primeiros
e mais importantes experimentos do laboratório foi sobre tempo de
reação, realizado em 1888. Wundt despreza a definição de ciência
da mente ou da alma por considerá-las excessivamente metafísicas.
Sugere, então, que a psicologia seja definida como a ciência da
consciência.
Baseado nos experimentos de Wundt, Jung organiza, em
1904, o laboratório experimental de psicopatologia no Bürgholzli, e
realiza seu experimento de associação de palavras. Esse
experimento constitui a primeira pesquisa do inconsciente nos
moldes experimentais. Interessante notar que, com Wundt, a
psicologia é definida como ciência da consciência, e por meio de
seu experimento de associação Jung comprova, experimentalmente,
a hipótese do inconsciente.
Muitos dos pioneiros da psicologia europeia e norte-
americana estudaram no laboratório de Wundt, dentre os quais se
destacam: G. Stanley Hall, Cattell, Titchener, Emil Kraepelin, William
James, entre outros.
A psicologia norte-americana é fortemente influenciada e
apoiada nos princípios de Wundt, por intermédio de William James
(1842-1910), que se torna o pioneiro da ciência do comportamento
na América do Norte. Crítico de Wundt, James prioriza a observação
como método para compreender o funcionamento da consciência,
sendo considerado o fundador do funcionalismo (Davidoff, 2001).
Stanley Hall (1844-1924), o primeiro doutor em psicologia nos
Estados Unidos (Marx e Hillix, 1974), é outro grande nome no
panorama norte-americano. Foi o fundador do American Journal of
Psychology e da Associação Psicológica Americana, ambos órgãos
importantes de pesquisa, estudo e divulgação da psicologia até
hoje. Em 1909, como diretor da Clark University, ele convida Freud,
Jung e Ferenczi para uma série de conferências na universidade
que dirige. Notabilizado por suas pesquisas sobre associação de
palavras, Jung apresenta seus estudos sobre complexos.
Reconhecido por seus estudos sobre histeria e sonhos, Freud
apresenta sua teoria sobre histeria e o método psicanalítico. Esse
evento marca a entrada da psicologia do inconsciente na América
do Norte. A psicanálise e a psicologia analítica têm grande
repercussão na psicologia norte-americana, até então fortemente
influenciada pela psicologia experimental.
Embora a psicologia do inconsciente provoque grande
impacto no início do século 20, em toda essa área, e exerça forte
influência no desenvolvimento posterior de diversas tendências e
abordagens psicológicas, sua aceitação como científica ainda vai
demandar muito tempo no panorama mais amplo da psicologia.
Alguns autores são ambivalentes em relação à proposta da
psicologia profunda: por um lado, sentem-se atraídos pela inovação
apresentada, mas, por outro, são cautelosos quanto à sua
credibilidade científica.
Thorpe afirma que:
A psicologia clínica é uma forma de psicologia aplicada que tenta definir
capacidades e características de um indivíduo pelo uso de vários métodos de
medida, análise e observação, e que, baseando--se numa integração desses
aspectos com dados seguros de exame físico e história social, faz recomendações
para o reajustamento do indivíduo. (1950, p. 22)

O elemento da psicodinâmica que está presente na definição


de Thorpe é a consideração do indivíduo como alvo da prática
clínica, entretanto, a abordagem e o método indicados por ele são
bastante afinados com uma visão experimental, comportamental e
diretiva da psicologia. As considerações que faz sobre Freud, Adler
e Jung demonstram seu interesse pela psicologia psicodinâmica,
porém, em seu resumo sobre a psicanálise, Thorpe acaba por dar
uma feição enfaticamente comportamental à psicanálise. Pode-se
perceber um misto de interesse e receio em aceitar as propostas da
psicanálise e, nitidamente, a necessidade de condicioná-la aos
critérios da ciência experimental. Relata Thorpe:

(...) recentemente, os conceitos da psicanálise têm sido submetidos à investigação


experimental em animais. Diversos projetos de pesquisa compreensiva têm sido
conduzidos, num esforço de submetê-los [os conceitos psicanalíticos] a análises
rigidamente científicas. (1950, p. 54)

De modo geral, observa-se que o binômio “aspectos


biológicos e aspectos ambientais” constitui a base da concepção
ontológica da psicologia nessa época. A proposta do inconsciente
como uma variável importante na vida psíquica, embora atraente e
interessante, ainda não consegue ser inserida na mentalidade
científica da época.
O inconsciente é uma realidade psíquica que atua, interfere e
se relaciona com as outras variáveis já conhecidas: consciência,
ambiente e instinto. A equação tradicional de causas e
consequências se complexifica. Não se trata mais, simplesmente,
de uma relação linear e mecânica de causalidade, há uma relação
de interdependência dinâmica.

Psicologia profunda: a psicologia do inconsciente


O termo psicologia profunda é usado pela primeira vez, por
Jung, em seu livro Sobre a doutrina dos complexos, escrito em
março de 1911, e ele refere a autoria do termo a Eugène Bleuler,
como designação da psicologia do inconsciente. Freud faz menção
a esse termo em fevereiro 1912, numa carta dirigida a Jung
(McGuire, 1973).
Ante as teorias de conhecimento consideradas científicas, a
psicologia do inconsciente se vê pressionada entre o reducionismo
positivista, por um lado, e uma metafísica transcendente, por outro.
A compreensão das variáveis que compõem a natureza humana e
sua complexidade é o desafio principal dessa nova psicologia.
A aceitação da psicologia do inconsciente pela comunidade
científica foi bastante difícil. A publicação do livro A interpretação
dos sonhos, de Freud, em 1900, teve repercussão muito modesta
no ambiente científico naquele momento, exceto por alguns poucos
amigos que ele tinha em Viena e nas redondezas (Roazen, 1978).
Com o tempo, porém, o movimento psicanalítico se desenvolve,
gerando de início muita oposição e rejeição por parte dos
profissionais da área, mas gradualmente sendo assimilado.
A doença mental, em meados do século 19 e início do 20, era
objeto de estudo exclusivo da medicina, em suas especialidades da
neurologia e psiquiatria: a primeira se dedicava às doenças
nervosas (neuroses), enquanto a segunda se ocupava da doença
mental (psicoses).
A psicologia profunda inaugura um campo do conhecimento
que se dedica ao estudo dos problemas de ordem psíquica,
tornando--se uma área de estudo e prática entre a medicina e a
psicologia. A psicologia profunda, tendo como ponto de partida e
objeto inicial de estudo, a doença mental, evolui em duas direções
em suas investigações e aplicação de conhecimentos:
– o objeto do conhecimento passa a ser a psique, em seus
aspectos conscientes e inconscientes;
– o campo de pesquisa se amplia para incluir, além da
psicopatologia, a normalidade.
Assim, a psique humana passa a ser objeto de estudo da
psicologia profunda, que abrange patologia e normalidade, assim
como o âmbito consciente e inconsciente da psique.
A psicanálise e a psicologia analítica se desenvolvem com
base em questões práticas, relacionadas primordialmente ao
tratamento das doenças nervosas e mentais. Premidos por
necessidades de ordem clínica, Freud e Jung buscam
procedimentos que sejam adequados para o tratamento de seus
pacientes. É importante ressaltar o caráter eminentemente prático
de suas pesquisas iniciais, que se desdobram em formulações
teóricas de ordem epistemológica e resultam num modelo teórico
que integra epistemologia e método.
A psicologia do inconsciente desempenhou o papel de uma
revolução científica, encabeçando uma mudança de paradigma a
partir das primeiras décadas do século 20, fundando uma nova
epistemologia que resulta em métodos novos de aquisição e
aplicação do conhecimento em relação ao psiquismo humano.
Esses métodos estão baseados numa concepção ontológica e em
pressupostos epistemológicos que situam o inconsciente como um
fator preponderante na vida humana, interferindo e alterando o
funcionamento da consciência em todos os seus aspectos. As
relações interpessoais, os comportamentos e as atitudes e as
relações intrapsíquicas são consideradas manifestações no nível
consciente de demandas inconscientes, que se associam às
situações existenciais e à vivência subjetiva dos indivíduos.
A psicologia do inconsciente vai colaborar para uma
concepção de mundo e de ser humano mais abrangente, mais
complexa e mais profunda. Aos aspectos biológicos, sociais,
comportamentais e ambientais acrescentam-se a noção de
inconsciente e a concepção de um psiquismo dinâmico. A dinâmica
psíquica expressa relações funcionais interligadas, nas quais a
interdependência dos fenômenos tende a relativizar o determinismo
e a suplantar a primazia do conceito de causa (Abbagano, 1999). Do
ponto de vista metodológico, observa-se a preferência por uma
abordagem qualitativa e subjetiva, cuja ênfase está na compreensão
e na interpretação dos fenômenos.
Na filosofia da ciência, somente na segunda metade do
século 20 começam a surgir discussões mais sistemáticas e
consistentes quanto à metodologia qualitativa aplicável às ciências
humanas.
Essa breve retrospectiva histórica acerca dessas três áreas
de conhecimento – filosofia, psiquiatria e psicologia – tem por
finalidade situar e contextualizar o surgimento da psicologia analítica
no ambiente cultural e científico em que o pensamento de Jung
surge e se desenvolve como um novo paradigma científico na pós-
modernidade.
1 Sobre esse assunto veja: Ellenberger (1970); Clarke (1993); Maroni (1998) e Tarnas
(2001), indicados na bibliografia.
EIXO CRONOLÓGICO DA OBRA:
DO MÉTODO EXPERIMENTAL À
AMPLIFICAÇÃO SIMBÓLICA

O eixo cronológico da obra de C. G. Jung pretende fornecer


uma visão panorâmica do percurso por ele trilhado na construção de
seu modelo teórico, destacando os aspectos ontológicos e
enfatizando os aspectos epistemológicos, além do método de
investigação da psique em sua obra, de uma perspectiva
cronológica. O rastreamento cronológico da construção da
psicologia analítica tem a finalidade precípua de acompanhar a
formulação e a reformulação dos conceitos, e a elaboração do
método junguiano, com suas reflexões e revisões constantes. Para
tanto, da leitura atenta e persistente dos dezoito volumes que
compõem as obras coletadas de Jung e dos dois volumes
complementares, são aqui reproduzidos trechos considerados
ilustrativos do caminho pelo qual ele chegou à formulação da
psicologia analítica como um paradigma científico contemporâneo.
Num intervalo de aproximadamente 65 anos (1896-1961), C.
G. Jung divulgou suas ideias e formulou um modelo teórico que
revolucionou a mentalidade contemporânea acerca da psicologia.
Sua vida e sua obra foram extensamente analisadas, avaliadas e
discutidas nos últimos quarenta anos, começando pelo próprio Jung
em suas memórias. Sua obra tem sido avaliada por vários autores e
dividida em períodos nos quais se observa a construção gradual de
um paradigma sobre a alma humana. Ao longo desses 65 anos,
muitas foram as reformulações e reflexões que ele fez durante esse
processo. Cada etapa pode ser vista como uma peça que se
encaixa e dá consistência ao conjunto final.
Jung, ao fazer uma retrospectiva de sua obra, aponta em
suas memórias Os estudos experimentais com associação como o
início de sua investigação psicológica dos fenômenos inconscientes:
“Com as experiências de associações (1903), começou minha
atividade científica propriamente dita. Considero-as como meu
primeiro trabalho realizado na linha das ciências naturais”
([1961]1981, p. 182).
Considera Mysterium coniunctionis como a conclusão de sua
jornada, constituindo o limite extremo daquilo que entendia como
possível de ser atingido nos moldes científicos em sua psicologia:

Só com Mysterium coniuntionis minha psicologia foi definitivamente colocada na


realidade e estabelecida em seu conjunto graças a seus fundamentos históricos.
Assim, minha tarefa foi cumprida e minha obra terminada. (Ibid., p. 194)

A trajetória desde 1903, data da publicação dos Estudos


experimentais com associação, até 1956, quando termina Mysterium
coniunctionis, é descrita por Jung em suas memórias (ibid.),
destacando os títulos que considera como principais em sua obra na
seguinte sequência: estudos experimentais com associações;
estudos sobre dementia praecox; símbolos de transformação; dois
ensaios de psicologia analítica; tipos psicológicos; energética
psíquica; processo de individuação; estudos sobre psicologia e
religião; estudos sobre alquimia; pesquisas sobre transferência;
sincronicidade e, finalmente, a síntese representada por Mysterium
coniunctionis.
Ellenberger (1970) destaca como ponto de partida na obra de
Jung a noção de realidade psíquica, apresentada em seus estudos
sobre fenômenos ocultos (em 1902). Ele organiza os trabalhos de C.
G. Jung em seis períodos, da seguinte forma:
1. Burgholzli;
2. Psicanálise;
3. Período intermediário (1914-1920);
4. Psicologia analítica: energia psíquica; inconsciente coletivo
e arquétipos; estrutura e dinâmica da psique e processo
de individuação;
5. Sabedoria oriental e ocidental;
6. Psicologia da religião.
Wehr (1988), em sua biografia sobre Jung, analisa a obra
junguiana nos seguintes aspectos:
1. Estudos na Basileia – palestras na fraternidade Zofíngia;
2. Experimentos em parapsicologia (tese de doutorado,
1902);
3. Burgholzli;
4. Freud;
5. Confronto com o inconsciente;
6. Psicologia analítica;
7. Viagens;
8. Encontro com a alquimia;
9. Religião.
Wehr também aponta Mysterium Coniunctionis como a
conclusão da obra junguiana. Eisendrath e Dawson (1997), por sua
vez, dividem seu trabalho em seis períodos:
1. Burgholzli (1900-1903);
2. Anos psicanalíticos (1904-1913);
3. Primórdios da psicologia analítica (1913-1919);
4. Psicologia analítica e individuação (1920-1933);
5. Sobre inconsciente e arquétipo (1933-1949);
6. Últimos trabalhos (1950-1956).
Bair (2003), na mais recente biografia publicada sobre Jung,
optou por uma organização do texto baseada exclusivamente em
sua vida, na qual a obra se insere, mas não é o destaque principal.
É extremamente difícil e até certo ponto artificial dividir a obra
de C. G. Jung em períodos ou etapas cronológicas, pois seu
percurso no desenvolvimento e na estruturação da psicologia
analítica não é linear, assim como seu modo de pensar, refletir, rever
e reformular ideias e procedimentos sempre foram muito dinâmicos.
Teoria e prática desenvolveram-se dialeticamente, incentivando e
exigindo transformações em ambas, na perspectiva das
necessidades e das inquietações suscitadas pela vida profissional e,
também, das reflexões constantes sobre sua epistemologia e, ainda,
de seu método de investigação e compreensão da psique.
Dessa forma, a proposta de dividir sua obra em períodos tem
uma finalidade estritamente didática, não pretendendo cristalizar o
material, mas, ao contrário, facilitar sua sistematização e
compreensão. Aliás, uma das tarefas mais difíceis de ser
empreendida é uma sistematização didática de sua obra sem
prejudicar seu caráter orgânico e dinâmico. Da leitura e releitura de
sua produção, focalizando a construção da psicologia analítica como
um paradigma científico, resultou essa organização da obra de Jung
em etapas cronologicamente dispostas. Cumpre mais uma vez
ressaltar que a análise do paradigma junguiano se dará,
preferencialmente, com base na produção científica do autor, e não
na sua vida, que é mencionada ao longo do texto apenas a título de
contextualização da construção da obra.
Embora sua visão de mundo e de ciência fosse contrária ao
materialismo e ao racionalismo positivista reinante no ambiente
universitário no fim do século 19, na Europa, Jung preferiu criticá-lo
e questioná-lo de dentro para fora. Isto é, estudou e utilizou o
método experimental em suas investigações para depois concluir
por sua ineficiência e inadequação para a psicologia do inconsciente
e, assim, elaborar uma proposta alternativa de investigação e
compreensão dos fenômenos psíquicos. Em 1912, ele conclui:
“Portanto, quem quiser conhecer a psique humana infelizmente
pouco receberá da psicologia experimental” (vol. 7; 112).
Em relação à psicanálise, ocorreu o mesmo. Jung estudou e
praticou a fundo a teoria e o método freudiano, ainda que, desde o
princípio, não concordasse com todas as suas premissas. Contudo,
foi como psicanalista que pôde ser seu crítico e dissidente. Em
1906, em resposta às críticas de Aschaffenburg sobre o papel da
sexualidade na “gênese das psiconeuroses” (vol. 4), Jung, embora
discordasse da supremacia da sexualidade nas perturbações
psíquicas, aponta os méritos de Freud como um pioneiro no
levantamento de “problemas geniais” na psicologia (vol. 4) e coloca
suas ressalvas quanto à proposta freudiana.

Freud possui méritos singulares que só podem ser postos em dúvida por aqueles
que se deram ao trabalho de analisar experimentalmente o curso de suas ideias.
Quando eu falo em “mérito”, não quero dizer que subscrevo incondicionalmente
todos os teoremas de Freud. Mas um de seus méritos – e não menores – foi o de
levantar problemas geniais. (vol. 4; 2)

Mais tarde, na época do rompimento com a psicanálise, Jung


vai retomar essa questão para fundamentar sua dissidência do
movimento psicanalítico. De certa forma, sente-se autorizado a
criticar o método psicanalítico graças à criteriosa avaliação realizada
através do uso desses procedimentos em sua prática clínica.
Suas pesquisas em direção ao método construtivo sintético
(amplificação) evoluem após observações empíricas e investigações
com material clínico e cultural. Seus estudos são realizados por
intermédio de uma imersão pessoal nos temas pesquisados. As
conclusões a que chega e a formulação de seu método são
invariavelmente colocadas como fruto de sua experiência e
resultantes de seu ponto de vista em relação ao tema em questão.
Para Jung, seu trabalho sempre representou uma
contribuição à psicologia do inconsciente, considerando-o como
uma dentre várias possibilidades. Afirmou e reafirmou diversas
vezes que seu papel como cientista consistia, sobretudo, em abrir
caminhos que pudessem ser um incentivo para pesquisas
posteriores no campo da psicologia do inconsciente. Em 1902, na
conclusão do estudo sobre a psicologia e a psicopatologia dos
fenômenos chamados ocultos (Estudos psiquiá­tricos, vol. 1), Jung
diz:

Longe estou de acreditar que com este trabalho tenha conseguido um resultado
definitivo ou cientificamente satisfatório. (...) Espero que meu trabalho ajude à
ciência encontrar caminhos que a levem a compreender e assimilar sempre mais a
psicologia do inconsciente. (vol. 1; 150)
Em 1949, ele ressalta a inevitabilidade de os sistemas
teóricos serem hipóteses que se constroem necessariamente na
intersecção do temperamento subjetivo de seu autor e dos dados
objetivos, sendo, portanto, a validade e a fidedignidade científicas
fruto da cooperação entre vários pontos de vista: “Este fator é da
maior importância em psicologia, pois a ‘equação pessoal’ dá cores
ao modo de ver. A verdade última, se é que existe tal coisa, exige
um concerto de muitas vozes” ([1949]1989, p. xiv).
Em 1950, é possível constatar que sua atitude se mantém
quanto ao papel do cientista em relação à transitoriedade da
verdade e à importância da comunicação das pesquisas para a
continuidade do processo de acumulação de conhecimento.

Estou plenamente consciente de que este trabalho está longe de ser completo,
constituindo apenas um esboço (...) não há dúvida de que qualquer pesquisador
deve documentar, tanto quanto possível, os resultados a que chegou e suas
opiniões; mas pode aventurar-se ocasionalmente a emitir alguma hipótese, mesmo
com o risco de errar. Afinal de contas, são os erros que nos proporcionam os
fundamentos da verdade (...). (vol. 9/2; 429)

Nota-se em seus escritos uma preocupação explícita em


refletir e avaliar constantemente seu trabalho do ponto de vista
científico. Sua atitude como cientista demonstra claramente uma
concepção de ciência mais afinada à mentalidade pós-moderna.

Uma visão de ciência para além do


positivismo lógico
Fraternidade Zofíngia (1896-1900)
Principal obra desse período:
Conferências de Zofíngia (vol. A, 1896-1899)

O interesse de Jung pelas questões relativas ao inconsciente


remonta à sua juventude, como podemos observar nos temas por
ele desenvolvidos nas Conferências do Grupo Zofíngia (vol. A),
entre 1896 e 1899, período em que cursou a Faculdade de Medicina
na Universidade da Basileia (1895-1900). Nas palestras proferidas
nessa época, ele faz críticas veementes ao materialismo da
sociedade contemporânea, chegando a considerá-lo uma “morte
intelectual” (vol. A). “É impressionante como Jung, naquela época,
em que o materialismo na ciência estava apenas começando,
conseguia ver pontos fracos nesta abordagem” (Von Franz,
[1975]1992, ver p. 152).
Em suas palestras, ele discute o aspecto imaterial da
natureza (Kant) e a noção de “força vital” (Schopenhauer e
Bergson); critica a psicologia “racional” e “experimental” por
considerá-la insuficiente e estreita demais para abordar a natureza
humana. Com seus conhecimentos da obra de Kant, permitia-se e
até mesmo ousava criticá-lo. Sobre força vital, Jung diz: “Então não
deveríamos buscar o princípio da vida dentro da consciência, e nem
particularmente na consciência de si-mesmo, como fez Kant. O
princípio vital se estende muito além da consciência” (vol. A, p. 31).
Em 1896, expressa sua tentativa de fazer “uma descrição
crítica das teorias e hipóteses das ciências exatas” (vol. A, p. 7) e,
além disso, insiste na necessidade de aliança entre os princípios
metafísicos e os princípios físicos no campo científico, sobretudo
nas ciências naturais. Ao longo de sua vida, seus estudos cumprem
essa promessa feita na juventude. A erudição de Jung já é patente
nessas conferências, em que revela conhecimento abalizado de
filosofia, religião, literatura e ciência, o que pode ser verificado pelas
citações e articulações que faz entre diversas áreas do
conhecimento. Desde já podemos perceber sua facilidade em
articular seus conhecimentos e suas experiências em termos de um
pensamento amplificante e simbólico.
Dessa época, pode-se apontar uma concepção de ser
humano e psique que necessariamente inclui a hipótese do
inconsciente. Nas conferências de Zofíngia, pode-se rastrear uma
nova visão de ciência para além do positivismo lógico e materialista
e vislumbrar as bases ontológicas e epistemológicas de todo o seu
trabalho, assim como suas premissas filosóficas e científicas. De
acordo com Papadopoulos, “essas conferências lançam as
fundações da maior parte de seu trabalho subsequente” (2006, p.
15).

Novas perspectivas na compreensão e no


tratamento da doença mental
Burghölzli (1900-1909): método experimental e associativo na
psiquiatria

Principais obras desse período:


Sobre a psicologia e psicopatologia dos fenômenos ocultos (vol.
1, 1902)
Estudos em associação diagnóstica (vol. 2, 1904)
Psicogênese das doenças mentais (vol. 3, 1907)
Em 1895, Jung ingressa na Faculdade de Medicina e, em
1900, decide especializar-se em psiquiatria. Começa então a
trabalhar na clínica psiquiátrica do Hospital Burghölzli, da
Universidade de Zurique, onde permaneceu até 1913.1 A Clínica do
Burghölzli tinha reputação de instituição de vanguarda na área da
doença mental, embora Jung ([1961]1981) tenha manifestado
diversas vezes seu descontentamento em relação aos métodos
convencionais e os horizontes estreitos que o ambiente da
psiquiatria lhe proporcionava. Entretanto, de acordo com Ellenberger
(1970), sob a direção de Eugène Bleuler as pesquisas e o
tratamento dos doentes mentais eram encaminhados de um modo
bastante revolucionário no Burghölzli, comparativamente ao resto da
Europa. A visão psicodinâmica da doença mental predominava na
instituição. Bleuler era adepto da psiquiatria dinâmica e estava a par
dos estudos da escola de Nancy e da Salpêtrière, assim como dos
trabalhos de Freud.
Ao ingressar na Clínica Burghölzli, Jung já havia lido a
Interpretação dos sonhos, de Freud, recentemente publicada, em
1900. Em janeiro de 1901, escreveu uma resenha e dissertou sobre
o tema do livro, a pedido de Bleuler, numa reunião da equipe de
profissionais do hospital (ibid.). No ambiente progressista do
Bürgholzli, conheceu os trabalhos de Charcot e Janet, e ficou
bastante impressionado pelo trabalho de Théodore Flournoy sobre a
capacidade mitopoética do inconsciente e sua hipótese de
criptomnésia (memória oculta) em relação aos conteúdos dos
transes mediúnicos.
Em sua tese de doutorado, defendida em 1902, intitulada
Sobre a psicologia e psicopatologia dos fenômenos chamados
ocultos (vol. 1), há grande influência das investigações de Flournoy
(Stevens, 1993) nas observações e análise feitas sobre os transes
da médium espírita Helen Smith (pseudônimo). Nesse estudo, Jung
realizou uma pesquisa empírica, em que observou e anotou, durante
quase dois anos, sessões de espiritismo nas quais uma médium
incorporava espíritos dos mortos. Ele analisou e interpretou os
dados coletados à luz dos estudos de Charcot sobre sonambulismo;
das investigações de Janet sobre automatismos psicológicos; dos
“estados protraídos de delírio histérico” de Kraft-Ebing; do
experimento com associações adjacentes de Binet e sobre escrita
automática de Myers (vol. 1).
Jung ainda elaborou uma análise comparativa de seus dados
com a epilepsia, histeria e esgotamento do sistema nervoso, nas
quais também ocorriam alterações do funcionamento da
consciência. Seu objetivo, nesse estudo, era discutir a gênese
psíquica dos estados alterados de consciência presente no
sonambulismo, na epilepsia, na histeria e nos transes mediúnicos,
correlacionando-os sob a hipótese de uma origem comum, qual
seja, o inconsciente. A cada passo em seus estudos, é nítida sua
meta de desenvolver uma epistemologia que abarque o
inconsciente. Para tanto, ele se dedicou à investigação de
fenômenos psíquicos que o intrigavam e aos quais a ciência
tradicional e seus métodos não forneciam respostas, a seu ver,
satisfatórias. Seu método de observação e análise, nesse período,
estava baseado nos estudos psiquiátricos da época e na
metodologia científica experimental, que procuravam compreender
os fenômenos paranormais.
Através desses dois métodos (Forel e Janet) foi possível demonstrar com exatidão
que nossa hipótese de uma orientação inconsciente, mas nem por isso menos
segura – inclusive ao tempo do estado crepuscular mais profundo – está correta.
Descobrimos assim o importante fato de que o distúrbio aparentemente grave do
processo psíquico no estado crepuscular de Ganser-Raecke é uma afecção apenas
superficial, que atinge exclusivamente a extensão da consciência e que, portanto, a
atividade mental inconsciente é pouco ou nada prejudicada. (vol. 1; 296)

Jung é bastante cauteloso quanto a suas conclusões,


sugerindo que a hipótese do inconsciente necessita de pesquisas
mais conclusivas, permanecendo ainda como uma possibilidade a
ser mais investigada no futuro: “Muitos desses estados, porém,
ainda carecem de um trabalho científico mais profundo; por
enquanto, permanecem mais ou menos no campo do boato
científico” (vol. 1; 34).
Jung continua estudando e lendo tudo que diz respeito ao
inconsciente, tanto na psiquiatria como na psicologia e na filosofia.
Seu interesse principal recaía sobre o mistério da doença mental.
Decifrar esse enigma a fim de tratar esses pacientes era sua meta
como psiquiatra: “O problema que ocupava o primeiro plano de meu
interesse e de minhas pesquisas era o seguinte: o que se passa no
espírito do doente mental?” ([1961]1981, p. 108).
Na conclusão de sua tese sobre os fenômenos ocultos, Jung
declara que está ciente do caráter introdutório e superficial desse
seu trabalho, mas destaca sua importância para a ciência da época
e ressalta seu interesse pela psicologia experimental como meio de
viabilizar o acesso e o estudo da psique inconsciente:

Longe estou de acreditar que este trabalho tenha conseguido um resultado


definitivo ou cientificamente satisfatório. Meu esforço visou sobretudo a opinião
superficial daqueles que dedicam aos fenômenos chamados ocultos nada mais que
um sorriso de escárnio, e também teve como objetivo mostrar várias conexões que
existem entre esses fenômenos e o campo experimental do médico e da psicologia
e, finalmente, apontar para as diversas questões de peso que este campo
inexplorado ainda nos reserva. Este trabalho me convenceu de que neste campo
está amadurecendo rica colheita para a psicologia experimental e que nossa ciência
alemã se interessa muito pouco por esse problema. Esse escasso interesse da
ciência alemã levou-me a discutir um caso de sonambulismo a partir do campo
puramente patológico, a fim de orientar para a patologia a situação dos sonâmbulos
em geral. Espero que meu trabalho ajude a ciência a encontrar caminhos que a
levem a compreender e assimilar sempre mais a psicologia do inconsciente. (vol. 1;
150)

Com a pergunta “o que se passa no espírito do doente


mental?”, Jung coloca seu problema de pesquisa inicial, uma
questão a ser investigada que traz em seu bojo alguns pressupostos
epistemológicos – há algo no espírito do doente mental para ser
conhecido –, e essa noção de espírito alude diretamente ao conceito
de inconsciente, muito incipiente no campo científico de então.
Outra questão epistemológica que está colocada é: quais os limites
e as possibilidades desse conhecimento? Em seu primeiro trabalho
de cunho científico, Jung faz sua primeira tentativa de “encontrar
caminhos que levem [a ciência] a compreender e assimilar sempre
mais a psicologia do inconsciente” (vol. 1; 150), e acena com a
possibilidade desse caminho ser viabilizado por meio da psicologia
experimental. Essa busca de caminhos diz respeito claramente à
busca de um método de investigação do inconsciente, ou seja, um
modo de acessar o inconsciente (espírito) do doente mental.
Observam-se nesse trabalho, paralelamente aos
procedimentos de cunho experimental, extensas referências aos
psiquiatras dinâmicos, sobretudo Charcot, Janet, Flournoy, Forel e
Kerner, dentre outros. Jung busca nesses autores fundamentos que
sustentem sua hipótese do inconsciente. Sua meta reside na
compreensão da doença mental com a finalidade de viabilizar o
tratamento dessas pessoas – da psicopatologia descritiva para uma
psicopatologia compreensiva; de uma visão organicista para uma
visão psicodinâmica e, assim, rumo ao tratamento psicoterapêutico
dos pacientes e à psicologia aplicada à doença mental.
Embora ele já estivesse a par das ideias de Freud, os textos
publicados nesse período não fazem menção ao método
psicanalítico. Seus estudos são conduzidos essencialmente pelo
método experimental, embora comente a possível associação de
suas ideias às freudianas. “Se isto representa um paralelo aos
resultados da pesquisa de Freud sobre os sonhos, fica em aberto,
pois não temos condições de julgar até onde a emoção mencionada
pode ser considerada ‘reprimida’” (vol. 1; 97).
Incentivado por Bleuer, entre 1902-1903, dando continuidade
aos seus objetivos de pesquisar os conteúdos psíquicos
inconscientes, Jung foi à França para estudar com Pierre Janet,
personagem de destaque na psiquiatria dinâmica. Em 1903, foi à
Alemanha conhecer os experimentos de Wundt sobre associação,
inspirados nos trabalhos de Francis Galton (1822-1911). Em 1904,
organizou um laboratório de psicopatologia experimental no
Burhölzli, onde, juntamente com Riklin, passou a pesquisar as
reações psíquicas, baseando-se nos estudos de Wundt sobre as
associações mentais.
Seu interesse nessa pesquisa recai sobre aquilo que Wundt
considerava como “erro”, isto é, as associações em que os sujeitos
“falhavam”. Essas falhas no funcionamento da consciência o
intrigavam; com a investigação desse “mau funcionamento” da
consciência, Jung pretendia lançar luz sobre o funcionamento
psíquico psicótico e, com isso, talvez, alcançar a compreensão do
fenômeno doença mental.
A introdução do método associativo à pesquisa psiquiátrica
demonstra sua insatisfação em relação à psiquiatria descritiva
predominante nas instituições psiquiátricas da época, e representa
um passo importante na história da psiquiatria ao introduzir nesse
campo os conhecimentos da psicologia experimental (vol. 1).
Baseado no teste de associações de Wundt, Jung chega à
concepção de complexos de tonalidade afetiva de origem
inconsciente. Com o teste de associação de palavras, ele comprova,
experimentalmente, a atuação de conteúdos inconscientes sobre o
funcionamento da consciência. Esse instrumento foi testado e
validado com todo o rigor científico da época – o método
experimental –, sendo publicado, pela primeira vez, em 1904, sob o
título Estudos em associação diagnóstica (vol. 2). Essa publicação
rende a Jung reconhecimento internacional; será responsável por
sua aproximação com Freud e, ainda, por convites para divulgar
suas pesquisas na Europa e nos Estados Unidos.
Já nessa época, começa a ficar evidente, porém, sua
insatisfação quanto ao método experimental, principalmente para a
análise e a compreensão do material. Sua epistemologia tem como
meta principal perscrutar as possibilidades de conhecimento do
inconsciente, e seu método se delineia na direção não apenas de
obter meios de acessar esse inconsciente, mas sobretudo de
alcançar uma interpretação compreensiva do material psíquico.

Com este experimento, embora, aparentemente tão simples, há uma grande


dificuldade – a interpretação dos distúrbios; ou para expressar de outra forma (...)
sugerimos que a interpretação no presente é antes arte do que ciência. No futuro,
talvez, leis serão descobertas para o método de interpretação. (vol. 2; 1024)
(...) frequentemente a relação entre os dois [estímulo/distúrbio] não é clara à
primeira vista, mas é mais de um caráter “simbólico”, é de fato uma “alusão” (...)
com prática e experiência pode-se facilmente ater à faculdade de coletar aquelas
palavras-estímulo que serão mais acompanhadas por distúrbios, então combinando
seu significado e deduzindo delas os assuntos íntimos do sujeito. (vol. 2; 135)

O primeiro grande mérito desse trabalho reside na


constatação da atividade inconsciente e de sua interferência na
consciência. Contudo, não era suficiente apenas detectar tais
fenômenos, era necessário sobretudo compreendê-los e, para tanto,
interpretá-los no nível qualitativo e subjetivo. Para Jung, a
interpretação simbólica dos fenômenos já está anunciada mesmo na
esfera do procedimento experimental, embora nessa época a
abordagem simbólica ainda não fosse considerada científica. A
constatação que essa pesquisa proporciona tem grande significado
para o estabelecimento das bases ontológicas e epistemológicas de
sua psicologia, o caráter dinâmico da psique com uma relação de
interferência do inconsciente na consciência.
A conceituação dos complexos de tonalidade afetiva de
origem inconsciente deveu-se, em grande parte, à sua persistência
em compreender as reações dadas pelos sujeitos ao teste de
associação e, principalmente, pela aplicação do “método
interpretativo” ao material coletado experimentalmente, o que
significou um “avanço revolucionário no emprego de técnicas
experimentais” no estudo do inconsciente (vol. 2; p. 9).
Para alcançar tais resultados, Jung reformulou e criou
procedimentos no experimento idealizado por Wundt. O recurso da
“reprodução” foi decisivo para o embasamento de suas hipóteses
em relação às “falhas” apresentadas pelos sujeitos. Tais “falhas”
forneceram material importante tanto em relação à ocorrência da
invasão do inconsciente na consciência, como em relação ao tipo de
conteúdo que aparecia e a possibilidade de estabelecer conexões
de significado na compreensão do material.

O “processo de reprodução”, como gostaria de chamar este “método”, consiste em


que, após a tomada completa das associações (em geral 100), faz novo exame
para ver se a pessoa experimental se lembra como reagiu a cada palavra-estímulo.
(vol. 2; 641)

Em diversas ocasiões, observa-se o uso do termo “método”


com o sentido de recurso técnico (instrumento ou procedimento); o
processo de reprodução é antes um procedimento ou recurso
técnico do que propriamente um método. A criação de séries de
palavras específicas para cada sujeito, dependendo de sua história
e queixa, também foi um procedimento valioso para a interpretação
do material. Ao caráter geral das interferências, é acrescentado o
significado particular pela análise de seus conteúdos. A comparação
dos dados recolhidos entre os doentes mentais com o material de
pessoas sadias (Jung, vol. 2) teve papel importantíssimo na
conceituação dos complexos como estruturas psíquicas inerentes
ao ser humano, seja na personalidade patológica, seja na normal.
Essa constatação terá papel relevante na concepção geral de saúde
e doença na psicologia analítica de Jung, e ela influenciará de modo
determinante seu conceito e manejo dos mecanismos de defesa.
Nesse período, o método experimental é praticado e também
criticado. As primeiras sementes de sua investigação da psique são
lançadas e a primeira vitória é conquistada, quais sejam, a
comprovação empírica experimental da interferência de conteúdos
inconscientes no funcionamento da consciência e a conceituação
dos complexos inconscientes de tonalidade afetiva. Uma nova visão
de patologia é lançada e uma abordagem inédita dos distúrbios
psíquicos é proposta, com a verificação de que os complexos estão
presentes na personalidade “sadia” e ”doente”, variando apenas a
intensidade com que cada um é afetado por eles (complexos). O
método experimental, entretanto, mostra-se insuficiente para a
psicologia dos processos inconscientes.

Quem houver penetrado mais fundo na essência da psicologia e exigido que seja
considerada ciência, sem depender, em sua existência, dos limites impostos pela
metodologia das ciências naturais, terá percebido que jamais haverá um “método
experimental” que satisfaça à essência da alma humana ou que trace uma imagem
bastante fiel dos complicados fenômenos anímicos. (vol. 6; 741)

O conceito de complexo formulado nessa época, revisto em


1934 (vol. 8), é a pedra fundamental da psicologia analítica de C. G.
Jung. Do ponto de vista ontológico, a concepção do inconsciente
está colocada. Do ponto de vista epistemológico, abre-se um
caminho de possibilidade de conhecimento do inconsciente, na
medida em que é possível observar empiricamente sua interferência
no funcionamento da consciência. Do ponto de vista metodológico, a
utilização do método experimental, aceito e validado pela
comunidade científica da época, garante sustentação e incentiva
Jung a dar continuidade aos estudos sobre o inconsciente, para
além de uma metodologia experimental.
A partir de então, a epistemologia junguiana se desenvolve,
ligada estreitamente às investigações clínicas e às pesquisas em
diversas áreas da cultura – mitos, literatura, religião, folclore e
alquimia. Dessa forma, pode-se dizer que a epistemologia da
psicologia analítica é construída tendo por base a experiência
prática de Jung, suas reflexões e a articulação de diversas áreas do
conhecimento sobre a constituição e o funcionamento da psique
humana.

Consolidação da hipótese do inconsciente


e sua investigação na psicologia
Freud e a psicanálise (1906-1912): método associativo e
interpretativo

Principais obras desse período:


A análise dos sonhos (vol. 4, 1909)
O significado do pai no destino do indivíduo (vol. 4, 1909)
Contribuição à psicologia do boato (vol. 4, 1910)
Sobre os conflitos da alma infantil (vol. 17, 1910)
Tentativa de apresentação da teoria psicanalítica (vol. 4, 1912)
Símbolos de transformação (vol. 5, 1911-1912)

Na clínica psiquiátrica de Zurique desenvolveu-se um segundo método: o chamado


método associativo. Este método indica com precisão a presença de conflitos, na
forma dos denominados complexos ideo-afetivos, manifestados nas perturbações
típicas das vivências. Mas o método mais importante para se chegar ao
conhecimento dos conflitos patogênicos é a análise dos sonhos. Foi Freud o
primeiro a demonstrá-lo. (vol. 7; 20)

A partir de 1906, data do início de sua colaboração com


Freud, Jung passa a estudar e a utilizar o método psicanalítico para
a compreensão da psique. Seu livro sobre a demência precoce pode
ser considerado um trabalho que marca o período de transição entre
a psiquiatria do Burghölzli e a psicologia freudiana.
Observa-se a integração do método associativo, elaborado
com base no teste de associação de palavras, com o método
psicanalítico. Ou seja, a coleta de material se dá pela associação, e
sua compreensão se dá pela psicanálise. Em todos os textos desse
período, Jung é bastante rigoroso na descrição e na observação dos
casos, no relato das condições de coleta de material, a fim de
delimitar o contexto em que se dá o seu trabalho, bem como na
divulgação de sua metodologia. De acordo com Kerr (1994), até
1905 Freud não havia publicado seu método, isto é, tinha
mencionado um método revolucionário e altamente eficiente no
tratamento das doenças nervosas, mas não havia ainda descrito em
público como se operava a prática da psicanálise.
Em junho de 1905, Jung descreve, num periódico médico, o
atendimento de seu segundo caso tratado em psicoterapia, no qual,
após a realização da anamnese dos sintomas, do histórico pessoal
e do teste de associação de palavras, ele procedia à “associação
livre, no que se poderia considerar como uma outra etapa do
tratamento, ou seja, numa situação não estruturada
experimentalmente (teste ou anamnese)” (Kerr, 1994, p. 95),
orientando o paciente da seguinte forma: “Diga-me, calmamente,
tudo o que vier à sua mente, não importa de que se trate” (vol. 2).
Seu procedimento terapêutico consistia na integração de
recursos da psiquiatria clássica (anamnese e histórico pessoal), da
psicologia experimental (teste de associação), adaptada à prática
clínica, e da psicanálise (associação livre).
Jung faz constantes referências ao método de Freud, mas
apresenta certa cautela quanto ao seu uso, provavelmente pela
dificuldade da comunidade científica em considerá-lo válido e,
também, por suas restrições pessoais em relação a algumas
premissas da psicanálise. “O método psicanalítico está
inseparavelmente ligado a esta concepção (gênese psíquica, trauma
sexual e repressão). Ele nos propicia o conhecimento do material de
ideias reprimidas e tornadas conscientes” (vol. 2; 662).
A questão da repressão é intrigante para Jung nessa época.
O experimento com associações e a consequente detecção dos
complexos “ideo-afetivos” inconscientes denunciam a presença de
conteúdos mantidos fora da consciência, no entanto, o mecanismo
da repressão não estava ainda claro para ele. Nos anos seguintes,
Jung vai discutir bastante com Freud o papel e o alcance da
repressão na dinâmica psíquica. Alerta (vol. 2) quanto às
dificuldades que o método psicanalítico apresenta em razão das
características típicas do paciente histérico de substituir, na
consciência, os sintomas físicos pelo conflito inconsciente, o que
encobre a natureza psicógena da histeria, razão pela qual “muitos
médicos se deixam iludir sempre e de novo” (vol. 2; 662).
Jung tece comentários sobre a riqueza e também sobre as
dificuldades de utilização do método psicanalítico. Pondera, ainda,
quanto a alguns limites do método.

Mas com isso desconhecem por completo os condicionantes psicológicos da


histeria, que consistem apenas no fato de serem reprimidas ideias incompatíveis
com a consciência do eu e, por isso, não podem ser reproduzidas. As inibições que
partem da consciência do eu para as ideias reprimidas não são abordadas pelo
método psicanalítico de Freud. (vol. 2; 662)

Nesse sentido, ele opta pela utilização da interpretação


psicanalítica do material obtido pelo método de associação, pois
este fornece a chave para o material reprimido e sua conexão com a
consciência. Para Jung, a associação de palavras revela-se também
excelente instrumento diagnóstico. Ele sempre preferiu esse tipo de
associação (de palavras) à associação livre. Mais tarde, vai
desenvolver o procedimento da circumambulação e amplificação
como a forma de compreender os símbolos e favorecer sua
elaboração.
Com a formulação dos conceitos de inconsciente coletivo e
arquétipo, a definição dos complexos se amplia, e seus conteúdos
são tão variados quanto as possibilidades arquetípicas da psique.
Desse modo, a aplicação da associação livre, como meio de
investigar os conteúdos dos complexos, torna-se inviável, pois a
variedade, por definição infinita, das vivências associadas aos
complexos e potencialmente formadoras de conflitos exige que se
mantenha a atenção concentrada no tema central do complexo
(arquétipo), a fim de se processar seus sentidos e significados;
sendo assim, a circumambulação do material passa a ser a melhor
forma possível de se proceder à compreensão do conteúdo
inconsciente. No capítulo do livro O homem e seus símbolos –
“Chegando ao inconsciente” –, o último texto escrito por Jung pouco
meses antes de sua morte, ele tece longos comentários sobre a
associação livre e seus limites.
Jung está empenhado na investigação do inconsciente, e a
psicanálise fornece meios de compreensão da psique. O
relacionamento com Freud possibilita excelente oportunidade de
debate e aprofundamento das questões epistemológicas relativas ao
tema que investiga. Jung, nesse período, é defensor e praticante
explícito da psicanálise.
Em 1906, no prefácio de A psicogênese das doenças
mentais, Jung reafirma o caráter experimental de suas pesquisas e
a importância da observação clínica psiquiátrica, enfatizando o
aspecto psicológico e inovador de seus estudos. Com suas
observações clínicas e investigações experimentais, ele considera
plausível estender a hipótese de Charcot sobre a gênese psíquica
da histeria para a esquizofrenia (demência precoce). “Obtive
algumas intuições que considero capazes de oferecer um novo e
frutífero direcionamento para as questões sobre os fundamentos
psicológicos individuais da dementia praecox” (vol. 3, p. xiii). Nesse
prefácio, Jung também defende a psicanálise de Freud e faz um
alerta à comunidade científica quanto à falta de cientificidade das
críticas apriorísticas e preconceituosas às ideias freudianas.

Contudo, achava que Freud apenas poderia ser refutado por alguém que tivesse
utilizado amplamente o método psicanalítico e realmente houvesse investigado
como Freud investiga, isto é, empreendendo uma longa e minuciosa análise da vida
diária, da histeria e do sonho a partir de seu ponto de vista. Quem não procede
assim ou não pode proceder assim, também não pode julgar Freud, pois se
comporta como os famosos cientistas que por desprezo se recusaram a olhar pelo
telescópio de Galileu. (vol. 3, p. xiii)

Desde o início de sua colaboração com Freud, há todavia


divergências entre os dois. “A lealdade em relação a Freud não
significa, como muitos temem, uma incondicionada submissão a um
dogma; pode-se muito bem conservar um juízo independente” (vol.
3, p. xiv). Jung resume suas divergências com Freud em uma carta
de dezembro de 1906, logo após ter enviado ao mestre da
psicanálise um exemplar de seu livro sobre dementia praecox,
explicando por que algumas de suas hipóteses e interpretações
apareciam sob uma luz diferente em relação à psicanálise:
As reformulações específicas de seus enfoques procedem do fato de não haver
entre nós uma concordância absoluta quanto a certos pontos. E talvez isso se deva
a que: 1. o material de que disponho é totalmente diferente do seu. Trabalho em
condições extremamente difíceis, quase sempre com pacientes insanos sem
instrução, e ainda por cima com as evidências invulgarmente ardilosas da demência
precoce. 2. minha educação, meu ambiente e minhas premissas científicas são
radicalmente diferentes dos seus. 3. minha experiência comparada à sua é mínima.
4. quer em quantidade, quer em qualidade de talento psicanalítico, a balança pende
distintamente a seu favor. 5. há de pesar muito na balança a ausência de contato
pessoal com o senhor, uma falha lamentável em minha formação preparatória.
(McGuire, 1993, p. 53)

O segundo item apontado por Jung no elenco de suas


diferenças com Freud é particularmente interessante e denota uma
clareza aguda sobre seus princípios filosóficos, suas crenças
pessoais e sua concepção de ciência, que considera não apenas
divergentes, mas “radicalmente diferentes” dos de Freud.
Papadopoulos (2006) avalia essa afirmação de Jung como indicativa
não apenas de sensibilidade epistemológica, mas também da
marcante consciência que tinha de sua posição epistemológica.
É bastante razoável concluir que a aproximação com Freud e
a psicanálise foi devida ao interesse de ambos pela compreensão
do inconsciente, mas as concepções de psique, de ser humano, de
ciência e mesmo de inconsciente de cada um eram muito diversas
desde o início.

O inconsciente mitológico
Divergências com a psicanálise (1909-1913): método associativo e
comparativo
Principais obras desse período:
Transformações e símbolos da libido (vol. B, 1912)
Conferências na Fordham University (vol. 4, 1912)
Novos rumos na psicologia (vol. 7, 1912)

Jung jamais abdicou do método associativo, e a psicanálise


representou uma possibilidade de ampliação na interpretação e no
aprofundamento dos estudos do inconsciente. A libido sexual e a
exclusividade da sexualidade na gênese das neuroses sempre lhe
pareceram uma visão restritiva e por demais unilateral para a
compreensão das doenças mentais. Essa unilateralidade da
concepção freudiana lhe parecia incompatível também com sua
concepção de ciência. O rompimento com Freud após sete anos de
amizade pessoal e cooperação profissional se dá por divergências
pessoais e teóricas. A propósito desse rompimento, Clarke diz: “Na
verdade dadas essas diferenças (...) surpreendente não é que Freud
e Jung tivessem rompido, mas até mesmo que viessem a estar
ligados” (1993, p. 25).
A possibilidade de terem trabalhado juntos, colaborado e
convivido profissional e pessoalmente foi fruto da grandeza de
ambos, da tentativa de lidarem com diferenças de temperamento e
com concepções filosóficas e teóricas muito diferentes, tudo em
nome da pesquisa e do aprofundamento da compreensão da
psique, sobretudo do inconsciente. A ciência do século 20, em geral,
e a psicologia, em particular, foram as maiores beneficiárias da
relação e da separação desses dois grandes pensadores do século
20.
Desde o princípio, Jung não concorda com a universalidade
psicológica da sexualidade proposta por Freud, embora reconheça
seu mérito inigualável pela descoberta de “princípios psicológicos
inéditos” (vol. 3) e, sobretudo, pela reafirmação da gênese psíquica
das perturbações histéricas lançada inicialmente por Charcot.
Em 1909, Jung começa a trabalhar no material de uma
paciente de Flournoy (Miss Miller), que resulta em seu livro
Símbolos de transformação (vol. 5). Esse material era composto de
“fantasias poéticas inconscientemente formuladas” (vol. B) e foi
publicado na forma de artigo num periódico de Genebra.2 Nessa
época, Jung está bastante entusiasmado com os estudos de
arqueologia e mitologia. Esse tema é repetidamente discutido com
Freud em sua correspondência:

A arqueologia, ou mais propriamente a mitologia, já deitou garras sobre mim (...),


passei minhas noites imerso na história dos símbolos, isto é, na mitologia e na
arqueologia (...) aqui se encontram fontes valiosas para a fundamentação
filogenética da teoria das neuroses. (McGuire, 1993, pp. 273 e 279)

Freud inicialmente se mostra interessado, mais tarde


reticente e, depois, crítico quanto às ideias de Jung em relação ao
substrato mitológico do inconsciente. Segundo Ellenberger, vários
psicanalistas, encorajados por Freud, envolveram-se no estudo de
mitos entre 1909 e 1910, “particularmente Abraham, Rank e
Silberer, assim como Riklin e Jung em Zurique” (Ellenberger, 1970,
p. 695).
Em 1910, Jung começa a pesquisar mais profundamente os
temas míticos, baseando-se na hipótese de correlação entre o
material individual e o material mitológico.
Em Transformações e símbolos da libido, publicado
inicialmente como um artigo do Jharbuch em 1911 (1ª parte) e em
1912 (2ª parte), ele realiza o estudo do caso descrito por Flournoy,
utilizando o método comparativo, no qual são feitas correlações
entre material individual e material mítico. Aqui, podemos
testemunhar as raízes da amplificação simbólica, recurso utilizado
na análise do material inconsciente que será definido e estruturado
mais tarde. Ao mencionar, para Freud, a possibilidade de uma
“fundamentação filogenética da teoria das neuroses” e, em seguida
aventar a hipótese de um substrato mitológico do inconsciente, vê-
se que a noção de inconsciente coletivo tem sua origem nesse
estudo.
A extensa investigação que fizera com o material de Miss
Miller, associada à sua experiência clínica com os pacientes
psicóticos do Burghölzli, e ainda as pesquisas com mitos e
arqueologia o convenceram de que havia um fundamento coletivo
ou universal para a psique humana (Stevens, 1993) que se estendia
para além das reminiscências pessoais a que Freud se reportava.
As primeiras e principais divergências teóricas entre Freud e
Jung residem na supremacia do conteúdo sexual da libido; Jung
discute a questão do incesto extensamente com Freud em uma
carta de junho de 1910; e mostra-se veementemente contra sua
posição sobre o incesto em outra carta, de maio de 1912 (McGuire,
1993). Nessa discussão, está implícita também sua discordância
quanto à perspectiva estritamente causal de Freud, à qual Jung
propõe integrar a teleológica, assim como sua perspectiva coletiva,
e não apenas pessoal, dos fenômenos psíquicos.
Na primeira edição de Símbolos de transformação (vol. B),
estão colocadas algumas noções básicas da psicologia analítica,
tais como: a ontogênese repete a filogênese, a simultaneidade de
causa e finalidade nas ocorrências simbólicas, a libido não
exclusivamente sexual e a hipótese de um inconsciente mitológico –
noções essas que representam a ruptura com a psicanálise e vão se
constituir nos alicerces da psicologia analítica.
Os primeiros indícios da orientação teleológica do
inconsciente já estão esboçados em sua conclusão sobre as
personalidades parciais da médium observada em sua tese de
doutorado. Segundo Jung (vol. 1), uma parte mais madura e sábia
da personalidade dessa médium estava fora da consciência e se
expressava através das personalidades incorporadas em transe,
como forma de se fazerem presentes, que com o tempo a ajudaram
no desenvolvimento e no equilíbrio da personalidade, quando então
os transes desapareceram.
Os anos de 1912 e 1913 representam um período de
transição na obra de C. G. Jung. São desse período a publicação da
segunda parte de Símbolos de transformação (vol. B), as nove
conferências na Fordham University (vol. 4) e o artigo “Novos rumos
na psicologia” (vol. 7).
Na Fordham University, em 1912, Jung mostra uma versão
muito pessoal da psicanálise, apresentando detalhadamente suas
principais divergências com os princípios freudianos (McGuire,
1993). Freud o critica por ter amenizado excessivamente a base
sexual de sua teoria sobre a libido:

O senhor reduziu uma boa quantidade de resistência com suas modificações, mas
não o aconselharia a contar isso como crédito, porque, como sabe, quanto mais a
gente se afasta do que é novo na psicanálise mais certeza se tem do aplauso e
menos resistência se encontra. (Ibid., p. 523)

A publicação da segunda parte de Transformações e


símbolos da libido representa, do ponto de vista teórico, o
rompimento definitivo com a psicanálise freudiana.
Em 1913, no auge do conflito com Freud, no congresso
psicanalítico de Munique, pela primeira vez Jung avalia a questão
dos tipos psicológicos, apresentando sua tese sobre os tipos de
atitude introvertida e extrovertida como responsáveis pelas
discrepâncias de pontos de vista na abordagem dos fenômenos
psicológicos. Nessa ocasião, Jung analisa as teorias de Freud e
Adler segundo a perspectiva dos tipos de atitude, concluindo com a
proposta: “A difícil tarefa do futuro será criar uma psicologia que
possa fazer justiça aos dois tipos” (vol. 6; 950).

Abordagem simbólica da psique:


causalidade e finalidade
Psicologia analítica (1914-1928): método sintético hermenêutico

Principais obras desse período:


Tipos psicológicos (vol. 6, 1921)
Psicologia do inconsciente (vol. 7, 1916)
Instinto e inconsciente (vol. 8, 1919)
A estrutura da alma (vol. 8, 1927)
O Eu e o inconsciente (vol. 7, 1928)
A energia psíquica (vol. 8, 1928)
No período de 1914-1928, Jung estabelece as bases
fundamentais de seu modelo psicológico – a psicologia analítica –,
as quais vinham sendo esboçadas desde suas investigações dos
fenômenos mediúnicos (vol. 1).
Esse período foi extremamente produtivo, representando a
elaboração das principais premissas da psicologia analítica. Jung
reafirma algumas concepções precedentes e explicita a base
ontológica de sua teoria – a totalidade que abrange o mundo
subjacente e o manifesto –, define os principais conceitos,
formulando sua epistemologia, e esquadrinha seu método de
investigação da psique.
O termo “psicologia analítica” foi usado por Jung, talvez pela
primeira vez, em 1913, numa palestra proferida na Sociedade Psico-
Médica de Londres, mas ainda como uma espécie de especificação
da psicanálise. “A psicanálise é hoje uma ciência e uma técnica. A
partir dos resultados da técnica, desenvolveu-se, no decorrer dos
anos, uma nova ciência psicológica que poderíamos chamar
‘psicologia analítica’” (vol. 4; 523).
Em 1914, ele passa a denominar definitivamente seu modelo
teórico de psicologia analítica. No ano seguinte, apresenta suas
primeiras críticas ao método redutivo causal de Freud e propõe um
modo de compreensão do material psíquico que enfatiza o aspecto
prospectivo e simbólico da psique, denominando-o método
construtivo.

O investigador que procede de modo puramente redutivo descobre o seu sentido


apenas nesses aspectos gerais do humano e nada mais exige de uma explicação
senão a redução do desconhecido ao conhecido e do complexo ao simples. Chamo
esse tipo de compreensão de “compreensão retrospectiva”. No entanto, existe um
outro tipo de compreensão que não é de natureza analítico-redutiva, mas simbólica
ou construtiva. Chamo esse tipo de compreensão de “compreensão prospectiva” e
o método que lhe corresponde de método construtivo. (vol. 4; 391)

Em 1916, o artigo “Transformações e símbolos da libido” é


ampliado e editado sob o título Psicologia do inconsciente: um
estudo das transformações e simbolismos da libido, sendo uma
tentativa de encontrar coerência entre ideias de diferentes áreas do
conhecimento – religião, psicanálise, filosofia, história, literatura e
experiências pessoais de Jung (vol. B). Essa obra, desde sua
gestação, representava o rompimento com a psicanálise e
anunciava uma nova concepção da psique e uma nova
compreensão dos fenômenos psicológicos. A hipótese de um
inconsciente mitológico de caráter universal é a base epistemológica
para a utilização do método comparativo e hermenêutico como meio
de traduzir e desvendar o sentido universal das manifestações
inconscientes nesse trabalho.
A versão publicada em 1916 traz o capítulo As duas formas
de pensar, que, do ponto de vista epistemológico e metodológico,
tem papel relevante na construção do modelo junguiano. A
designação de duas formas de pensar amplia a noção do
pensamento como uma função estritamente racional e intencional
para as esferas da irracionalidade, que se estende para além dos
domínios da consciência.

A questão sobre a origem da tendência e da capacidade do espírito de


manifestarem-se simbolicamente levou à distinção de dois tipos de pensamento: o
pensamento dirigido e adaptado, e o pensamento subjetivo, movido por razões
interiores. A última forma de pensamento – desde que não seja corrigida
constantemente pela adaptação – necessariamente deve produzir uma imagem do
mundo alterada. (...) O pensamento não dirigido é motivado, sobretudo
subjetivamente, e isto menos por motivos conscientes do que inconscientes. (vol. 5;
37)

A formulação de um tipo de pensamento movido por razões


inconscientes – responsável pela atividade da fantasia,
manifestando--se de modo produtivo e criativo, e não apenas de
forma patológica, e que funciona em paralelo ao pensamento,
movido por razões adaptativas – representa um passo decisivo na
concepção da psique, na compreensão do seu modo de
funcionamento e na possibilidade de uma nova compreensão da
dinâmica consciente–inconsciente.
A atividade inconsciente se manifesta simbolicamente e,
assim, pode ser percebida e compreendida pela consciência através
do método associativo e comparativo. A hermenêutica é aplicada ao
material inconsciente, que se apresenta de forma simbólica para ser
compreendido. Os símbolos devem ser tratados de um modo que
seja possível traduzi-los em termos compreensíveis para a
consciência na qual emergem. Essa segunda forma de pensar, Jung
(vol. 5) vai defini-la como o pensamento simbólico, que flui por
imagens em sucessão de analogias e metáforas, enquanto o
pensamento dirigido e adaptativo é sequencial e conceitual, fluindo
por palavras. Para Jung, o pensamento não dirigido é o modo de
pensar da atividade onírica, da fantasia e da imaginação.

O primeiro (pensar dirigido) trabalha para a comunicação, com elementos


linguísticos, é trabalhoso e cansativo; o segundo (sonhar ou fantasiar) sem esforço,
por assim dizer, espontaneamente, com conteúdos encontrados prontos, e é
dirigido por motivos inconscientes. O primeiro produz aquisições novas, adaptação,
imita a realidade e procura agir sobre ela. O último afasta-se da realidade, liberta
tendências subjetivas e é improdutivo com relação à adaptação. (vol. 5; 20)
Os conteúdos inconscientes tendem, assim, a se manifestar
através dessa forma de pensar; o pensamento não dirigido é um
veículo mais propício para a esfera inconsciente acessar a
consciência. É ainda uma forma de pensar irracional que se associa
aos afetos, às sensações e à intuição. Explica Jung: “(...) imagem
segue imagem, sensação a sensação, mais e mais ousa manifestar-
se uma tendência que cria e coloca todas as coisas não como elas
são, mas como gostaríamos que fossem (...)” (vol. 5; 19).
Após a conceituação das duas formas de pensar, mais tarde
Jung elabora o conceito de função transcendente (vol. 8). A função
psíquica que promove a síntese entre consciente e inconsciente e
cria os símbolos.
No período entre 1914 e 1920, Jung desenvolveu a teoria dos
tipos psicológicos, desde a definição das atitudes introvertida e
extrovertida como ponto de partida para a observação e
consideração dos fatos, até as funções da consciência –
pensamento, sentimento, sensação e intuição –, como modeladoras
da forma de apreensão e compreensão da realidade. O livro Tipos
psicológicos (vol. 6), publicado em 1921, “é um marco na obra de
Jung e de interesse histórico” (Prefácio dos editores). O conceito
junguiano de introversão e extroversão foi o mais difundido e aceito
na psicologia em geral, tendo passado a fazer parte do cânone
cultural do século 20.
Em 1913, no congresso psicanalítico de Munique, pela
primeira vez, Jung avalia a questão dos tipos psicológicos. Discute,
inicialmente, as atitudes, introvertida e extrovertida, na perspectiva
da psicopatologia: “Conforme se sabe, se compararmos o aspecto
geral da histeria e da dementia praecox (esquizofrenia), saltará aos
olhos o contraste de seu relacionamento com o objeto” (vol. 6; 931).
Em seguida, Jung aborda as diferenças de temperamento à
luz do pensamento de vários autores (William James, Binet, Otswald
e Nietzsche, entre outros); propõe a introversão e a extroversão
como “dois modos psíquicos de reação que podem ser encontrados
num único e mesmo indivíduo” (vol. 6; 933) e que estão presentes
tanto na psicopatologia como na psique sadia, concluindo pela
necessidade de “admitir a existência dos dois tipos psicológicos
também na psicologia analítica” (vol. 6; 948).
A motivação pessoal de Jung, que deu origem à sua
pesquisa sobre os tipos de atitude e funções da consciência, parece
ter sido a necessidade de compreender as diferenças de ponto de
vista entre Freud e Adler e, principalmente, as divergências básicas
e irreconci­liáveis entre o seu modo de pensar e o de Freud.

Como ambas as teorias [Freud e Adler] são amplamente certas e, ao que parece,
explicam a matéria, é óbvio que a neurose deve ter dois aspectos contraditórios, um
dos quais é apreendido pela teoria de Freud, e o outro, pela teoria de Adler. Como é
que um cientista só vê um lado e um outro só o outro? Por que cada um pensa que
a sua posição é a única válida? (vol. 7; 57) (...) essa disparidade não pode ser outra
coisa senão uma diferença de temperamento, (60) (...) observando o dilema, eu me
pergunto: será que existem pelo menos dois tipos diferentes de pessoas, um dos
quais se interessa mais pelo objeto e o outro por si-mesmo? (61) (...) essa questão
constituiu minha grande preocupação durante muito tempo. Finalmente,
fundamentado em muitas observações e experiências, cheguei a apresentar dois
tipos básicos de atitude, ou seja, a introversão e a extroversão. (62)

Em 1921, no prólogo de Tipos psicológicos, Jung faz uma


descrição bastante elucidativa sobre o processo de gestação e
elaboração da teoria psicológica dos tipos:
Este livro é fruto de quase vinte anos de trabalho no campo da psicologia prática.
Foi surgindo aos poucos no plano mental: às vezes, das inúmeras impressões e
experiências que obtive na práxis psiquiátrica e no tratamento de doenças
nervosas; outras vezes, do relacionamento com pessoas de todas as camadas
sociais; de discussões pessoais com amigos e inimigos e, finalmente, da crítica às
minhas próprias idiossincrasias psicológicas. (vol. 6, p. 17)

Nessa publicação (vol. 6), Jung faz uma extensa análise de


vários modelos filosóficos à luz de sua tipologia, com o objetivo de
demonstrar que o conhecimento é condicionado pela psique do
sujeito conhecedor, concordando com Nietzsche (1978): “toda
filosofia é a confissão pessoal de seu autor”. A questão básica em
discussão é a relação sujeito—objeto na construção de
conhecimento psicológico.
Do ponto de vista epistemológico, Jung empreende uma
discussão crítica importante sobre as vicissitudes da psicologia
como ciência e seu objeto de estudo – a psique –; ele discorre
longamente sobre as implicações epistemológicas e metodológicas
acarretadas pela inclusão do inconsciente na investigação
psicológica e suas consequências nas formulações teóricas de uma
psicologia científica. Do ponto de vista metodológico, a teoria dos
tipos psicológicos representa um avanço na forma de conduzir as
investigações, no que diz respeito tanto à observação como à
compreensão dos fenômenos.
A intenção fundamental desse estudo foi propor uma
abordagem epistemológica mais ampla e diversificada – uma
perspectiva psicológica do conhecimento –, que considerasse os
aspectos inconscientes na construção do conhecimento e evitasse a
unilateralidade que, geralmente, configura posições redutivas ou
deterministas em relação aos fenômenos psíquicos.
A tipologia psicológica não tem a finalidade, em si bastante inútil, de dividir as
pessoas em categorias, mas significa antes uma psicologia crítica que possibilite
uma investigação e ordenação metódicas dos materiais empíricos relacionados à
psique. É, antes de tudo, instrumento crítico para o pesquisador em psicologia, que
precisa de certos pontos de vista e diretrizes para ordenar a profusão quase caótica
das experiências individuais. (vol. 6; 1057)

Apesar da intenção de buscar diretrizes ordenadoras que


pudessem admitir certo nível de generalização na psicologia, Jung
não preconizava a assepsia sujeito—objeto da abordagem empírica
tradicional. O conhecimento, assim como as ações humanas, é
condicionado tanto pelo objeto como pelo sujeito (vol. 7), podendo
haver oscilações individuais em razão da tipologia que caracteriza
uma preferência por um ou outro ponto de vista. O binômio
objetividade—subjetividade é extensamente discutido por Jung no
âmbito da psicologia.

Em parte alguma, como no campo da psicologia, é exigência absolutamente básica


que o observador e pesquisador sejam adequados a seu objeto, no sentido de
serem capazes de ver uma e outra coisa. Exigir que só se olhe objetivamente nem
entra em cogitação, pois isto é impossível. Já deveria bastar que não se olhasse
subjetivamente demais. O fato de a observação e a interpretação subjetivas
concordarem com os fatos objetivos prova a verdade da concepção apenas na
medida em que esta última não pretenda ser válida em geral, mas tão-somente
para aquela área do objeto que está sendo considerada. (vol. 6; 8)

O problema dos tipos de atitude e a tipologia psicológica


trazem para o campo científico a questão dos pontos de vista
segundo os quais o conhecimento é produzido e condiciona a
observação dos fenômenos, a condução das pesquisas e a
formulação das teorias. A diversidade de abordagens na ciência,
principalmente na psicologia, pode ser considerada como visões
enriquecedoras, em vez de contraditórias. A preocupação de Jung a
partir de então reside no esclarecimento de seus pontos de vista e
de seus pressupostos epistemológicos, e na explicitação dos
métodos utilizados para referendar suas investigações e
conclusões. Tomando por base a teoria dos tipos psicológicos de
Jung, o caráter científico de uma abordagem teórica em psicologia e
sua aplicação resultam de uma coerência interna entre visão de
mundo, possibilidades e limites do conhecimento, e modos de
operacionalização do conhecimento, ou seja, resultam da
articulação entre ontologia, epistemologia e método. A validade é
transitória no processo de produção de conhecimento. Nesse
sentido, Jung antecipa as propostas de Karl Popper e Thomas
Kuhn. Uma análise cuidadosa do estudo e da pesquisa sobre os
tipos psicológicos aponta para a noção de paradigma nos termos
propostos por Denzin e Lincoln (1998).
Algumas justificativas de Jung sobre a tipologia psicológica
parecem revelar, num primeiro momento, uma atitude pretensiosa e
quase arrogante em relação à análise das teorias de Freud e de
Adler. “Esta constatação (dos tipos antagônicos) redundou na
necessidade de nos colocarmos acima das posições antagônicas,
criando uma teoria que fosse justa, não para com uma ou com outra
(atitude), mas para com as duas igualmente” (vol. 7; 65).
Verifica-se, além disso, que Jung fez jus à sua pretensão ao
elaborar a teoria das polaridades e da autorregulação, mantendo-se
fiel à tese da integração dos opostos até o fim de sua obra, a qual,
segundo ele próprio, culmina com a publicação de Misterium
coniunctionis (o mistério da conjunção dos opostos).
Concluída a elaboração dos tipos psicológicos, Jung
desenvolve o conceito de energia psíquica e sua dinâmica
compensatória – progressão e regressão da libido – como
funcionamento básico da psique, e chega ao conceito de processo
de individuação, no qual a constante busca de integração das
polaridades é a meta do desenvolvimento humano. Jung
frequentemente enfatizou o risco da unilateralidade do
conhecimento e condenou o redutivismo e o determinismo nas
teorias psicológicas. “A alma humana, seja doente ou sã, não pode
ser esclarecida ‘apenas’ redutivamente (...), a alma não é isso ou
aquilo, ou, se preferirem, isso e aquilo, mas também tudo que ela já
fez e ainda vai fazer com isso” (vol. 7; 67).
A formulação da função transcendente data de 1916, embora
tenha sido publicada somente em 1957. Pode-se supor que, apesar
de não divulgar o conceito de função transcendente, essa noção
esteja presente na elaboração da psicologia analítica desde 1916,
quando Jung formulou o conceito. O modelo de totalidade e
polaridades em oposição, cuja dinâmica é operada pela dialética
constante entre homeostase e homeorrese, está na base da função
transcendente. A função compensatória autorreguladora do sistema
psíquico é considerada preponderante no funcionamento da psique
desde a primeira versão de Símbolos de transformação. O conceito
de símbolo como transformador de energia inconsciente em energia
consciente é explicitado e aprofundado em seu ensaio sobre a
energia psíquica (vol. 8), em 1928. Todas essas formulações estão
em estreita conexão com a noção de função transcendente. Seu
modelo já se baseia nesse conceito antes mesmo de ter sido
apresentado ao público.
Cumpre salientar ainda, nesse período, a publicação da
primeira parte de Dois ensaios sobre psicologia analítica (vol. 7), em
1916. Esse texto é fruto de um trabalho que se inicia em 1912
(Novos rumos da psicologia), sendo reformulado e ampliado cinco
vezes até 1942. Ainda hoje ele tem um valor histórico importante,
por mostrar o desenvolvimento dos conceitos básicos da psicologia
analítica sendo formulados e reformulados ao longo de trinta anos –
dos dois pontos de vista, introversão e extroversão, até o conceito
de arquétipo e Self.
Em 1912, o texto “limitava-se a mostrar um aspecto essencial
da interpretação psicológica introduzida por Freud” (vol. 7, p. vii).
Em 1916, com o título A psicologia dos processos inconscientes, a
intenção é “dar alguma orientação sobre as mais recentes
interpretações da essência da psicologia do inconsciente” (vol. 7).
Em 1918, a reedição ressalta o interesse pelo problema da alma
humana como “um sintoma da necessidade de uma volta instintiva
para si-mesmo [resultante] do abalo em nossa consciência
provocado pela Guerra Mundial” (vol. 7, p. ix).
Aos leitores interessados em um maior aprofundamento
sobre o assunto, Jung recomenda aguardar a publicação de Tipos
psicológicos, que acontece em 1921. A terceira edição, em 1926,
pretende dar “uma ideia aproximada do assunto e servir de
estímulo” (vol. 7, p. X), mas jamais penetrar em pormenores, pois
trata-se de “matéria altamente complexa e que ainda se encontra
em estado de elaboração no plano científico” (vol. 7). Em 1936, é
acrescentado ao texto um capítulo sobre o inconsciente coletivo e
reafirmado o objetivo “modesto” do livro: “As informações contidas
neste livro não pretendem abranger a totalidade da psicologia
analítica”. Finalmente, em 1942, o texto adquire sua forma atual.
Jung apresenta sua versão final como resultante de repetidas
reformulações, devidas a uma sequência alternada de erros e
acertos, e o define como estritamente introdutório.
Psicologia do inconsciente (vol. 7/1) é um livro que
acompanha o desenvolvimento das bases epistemológicas da
psicologia analítica de Jung. Durante os trinta anos em que ele foi
sendo escrito e reescrito, com suas inúmeras revisões, os conceitos
fundamentais da psicologia analítica foram formulados e
reformulados, da psicanálise de Freud ao conceito de inconsciente
coletivo e arquétipo.
Do ponto de vista epistemológico, é possível observar no
texto o desenvolvimento do conceito de inconsciente coletivo e
arquétipo ao longo de três décadas, desde a noção de imagens
primordiais, passando pela concepção hereditária das imagens
universais ou coletivas, até a definição de arquétipo, como se pode
observar na sequência de trechos reproduzidos a seguir.
Na perspectiva metodológica, nos primeiros capítulos é
apresentada a questão focal do texto: “qual o caminho mais rápido e
seguro para se chegar ao conhecimento do que ocorre no
inconsciente do paciente?” (vol. 7; 20). As pesquisas de Jung têm
como objetivo central a investigação do inconsciente e a
compreensão deste pela consciência. Ele está buscando meios de
captar e compreender o material inconsciente à luz da consciência.
Essa meta já havia sido esboçada nas conferências de Zofíngia e
em sua tese de doutorado.
Os métodos historicamente utilizados pela psicologia
profunda para essa finalidade são elencados – a hipnose, o método
associativo, a análise dos sonhos pelo método psicanalítico e pelo
método analítico.
O método analítico em geral, e não só a psicanálise freudiana, consiste
precipuamente em numerosas análises de sonhos, já que são eles que vão
trazendo à tona, sucessivamente, os conteúdos do inconsciente no decorrer do
tratamento, expondo-os à força purificadora da luz do dia (...). (vol. 7; 26)

Jung discute o método sintético ou construtivo, que visa


integrar um “procedimento redutivo exclusivamente causal” com o
“tratamento sintético” do material inconsciente. Explica:

(...) a “análise”, na medida em que se restringe à decomposição, deve ser


necessariamente seguida por uma síntese (...). Como a análise decompõe o
material simbólico da fantasia em seus componentes, o processo sintético integra-o
numa expressão conjunta e coerente. (vol. 7; 122)

Em 1928, o ensaio sobre a energética psíquica (vol. 8) traz


sua visão de psique como um sistema energético análogo ao
conceito de energia da física quântica. Nesse trabalho, Jung
esclarece seus leitores sobre as controvérsias entre sua visão do
dinamismo psíquico e o conceito de libido de Freud. A noção
dialética do sistema psíquico, que alterna fluxos energéticos de
progressão e regressão rumo ao desenvolvimento da personalidade,
integra o ponto de vista redutivo causal e o energético final,
atribuindo ao inconsciente uma função teleológica e uma função
histórica, que antecipa sua ideia de processo de individuação.
O aspecto teleológico do símbolo é discutido à luz da ideia do
excedente de energia que é canalizado para representações e não
mais para a satisfação de necessidades puramente instintivas,
conduzindo o ser humano a níveis de desenvolvimento cultural e
espiritual mais complexos: “Chamei o símbolo que converte a
energia de ‘análogo da libido’. Como tal entendo aquelas
representações que podem dar uma expressão equivalente à libido
e assim canalizá-la para uma forma diferente da original” (vol. 8; 92).
A mitologia, a arte, os processos religiosos e seus rituais são
expressões desse excedente de energia, que se transformam em
atividade simbólica e contêm em si uma finalidade. A cultura é uma
resultante do “processo contínuo de formação de símbolos” (vol. 8;
94), uma vez que se observa que o ser humano jamais pode se
“contentar com o curso natural das coisas” (vol. 8). A redução à
condição natural é contrabalançada pela “direção sintética”
(prospectiva) da energia no processo de individuação. Dessa forma,
a dinâmica natural da psique envolve movimentos retrospectivos e
prospectivos. Por conseguinte, a forma de abordar e compreender a
psique deve abarcar o ponto de vista da causa e da finalidade.
A noção de inconsciente coletivo e arquétipo também está na
base dessa proposta metodológica, uma vez que, para Jung, uma
parte dos conteúdos do inconsciente refere-se ao âmbito pessoal da
psique, e outra parte é de caráter suprapessoal ou impessoal, em
virtude do aspecto originário e criativo deste. O método redutivo
causal esgota sua eficiência no material de cunho pessoal.

Ele [procedimento redutivo] chega ao fim no momento em que os símbolos dos


sonhos não são mais passíveis de serem reduzidos a reminiscências ou anseios
pessoais, isto é, quando emergem as imagens do inconsciente coletivo. (...) Foi
realmente difícil para mim (só o consegui ao final de muitas hesitações e instruído
pelos fracassos) abandonar a orientação exclusivamente personalística da
psicologia terapêutica. (vol. 7; 122)

Feita a constatação dos conteúdos arquetípicos do


inconsciente coletivo, além dos conteúdos de natureza pessoal,
Jung passa a considerar as relações objetais por um enfoque
diferente da psicanálise. Para ele, a relação que se estabelece com
o outro (fora) é análoga e sintônica com a relação estabelecida com
o outro (interno) inconsciente – o si-mesmo. Daí resulta a
necessidade de duas formas complementares de interpretação, que
serão utilizadas pela psicologia analítica: a interpretação no “nível
do objeto” e a interpretação no “‘nível do sujeito”.

Por isso introduzi a seguinte terminologia: a interpretação em que as expressões


oníricas podem ser identificadas com objetos reais é por mim denominada
“interpretação ao nível do objeto”. A esta interpretação contrapõe-se a que refere ao
próprio sonhador cada um dos componentes do sonho; por exemplo, todas as
pessoas que nele aparecem. A este procedimento dei o nome de “interpretação ao
nível do sujeito”. A interpretação ao nível do objeto é “analítica”, pois decompõe o
conteúdo do sonho em complexos de reminiscências que se referem a situações
externas. A interpretação ao nível do sujeito, ao invés, é “sintética”, pois desliga das
circunstâncias externas os complexos de reminiscências em que se baseia e os
interpreta como tendências ou partes dos sujeitos, incorporando-os novamente ao
sujeito. (Numa vivência eu não experimento apenas o objeto, mas a mim mesmo,
em primeiro lugar; mas isso só quando tomo consciência da minha experiência.)
Neste caso, todos os conteúdos do sonho são concebidos como símbolos de
conteúdo subjetivos. (vol. 7; 130)

Observa-se que Jung vai dar mais ênfase à interpretação no


nível do sujeito em seu trabalho com os sonhos, considerando seus
elementos como partes da personalidade do sonhador, e o mesmo
se dá no trabalho com outros tipos de produtos do inconsciente, tais
como fantasias e imaginação em geral. “O ‘processo de
interpretação sintético ou construtivo’ consiste, portanto, na
interpretação ao nível do sujeito” (vol. 7; 131).
Devemos observar, também, que a interpretação no nível do
objeto não será totalmente descartada, mas considerada à luz da
teoria do inconsciente coletivo e do mecanismo de autorregulação
da psique, nos quais as conexões intrapsíquicas e objetais são
abordadas conjuntamente.
Deve-se aqui sublinhar a relevância atribuída aos sonhos e à
sua interpretação nos estudos de Jung. Desde 1900, quando ele leu
pela primeira vez A interpretação dos sonhos de Sigmund Freud, a
vida onírica do ser humano fascinou, intrigou e foi alvo de pesquisas
incessantes em sua obra. Seus estudos sobre esse tema têm como
pressuposto básico que os sonhos têm sentido e significado
valiosos, e essa assertiva epistemológica justifica e sustenta as
tentativas metodológicas para a compreensão e a interpretação do
material onírico, pelo simples fato que os sonhos têm sentido e
significado para o indivíduo e para a cultura.
Os estudos Aspectos gerais da psicologia dos sonhos (1928)
e Da essência dos sonhos (1945) são dedicados exclusivamente a
esse assunto. O tema sonho foi alvo de sua atenção ao longo de
toda sua obra. Jung considera o sonho um fenômeno psíquico de
altíssimo valor para a aquisição de conhecimento sobre a psique
individual, uma vez que “um produto puro do inconsciente” (vol. 8;
152) em conexão com a situação atual da consciência. Seu caráter
espontâneo e simbólico também é ressaltado.
“O sonho é uma autorrepresentação, em forma espontânea e
simbólica, da situação atual do inconsciente” (vol. 8; 505). Como
produto psíquico, é símbolo, e como tal não tem origem
exclusivamente no inconsciente ou na consciência, mas surge da
cooperação entre ambos, sendo o ponto de encontro do consciente
com o inconsciente. Portanto, o tratamento dispensado aos sonhos
é equivalente à forma de se trabalhar com as manifestações
simbólicas em geral.
Se quisermos interpretar um sonho corretamente, temos de possuir um
conhecimento acurado da consciência nesse preciso momento, porque o sonho
encerra o seu complemento inconsciente, ou seja, o material constelado no
inconsciente em correlação com o estado momentâneo da consciência. (vol. 8; 477)

Os conteúdos oníricos foram abordados por Jung em seus


aspectos prospectivo e retrospectivo, devendo assim ser analisados
do ponto de vista tanto causal como de sua finalidade (vol. 8). Os
sonhos devem também ser interpretados tanto no contexto histórico
da consciência em que ele surge, como na esfera das amplificações
culturais, a fim de que não só os aspectos pessoais (complexos),
mas também os coletivos (arquétipos) sejam explorados.
Todos os procedimentos metodológicos propostos por Jung
são aplicáveis aos sonhos e aos outros produtos psíquicos de cunho
individual, como fantasias, imaginação e imaginação ativa, sendo
então recomendável que sejam interpretados pelos mesmos
procedimentos:

É sobre este processo natural de amplificação que eu baseio meu método de


determinação do significado dos sonhos, pois os sonhos se comportam exatamente
da mesma maneira como a imaginação ativa. (vol. 8; 404)

O correlato coletivo dos sonhos são os mitos. Os sonhos são


os mitos individuais, os mitos são os sonhos da humanidade
(Penna, 1994).
Em 1919, Jung emprega o termo arquétipo pela primeira vez
(vol. 8), que fora usado por Philo Judaeus, Irenaeus e Santo
Agostinho, na Antiguidade, e aparece no corpus hermeticum em
Dionysius, o Aeropagita, na Idade Média (vol. 9). O conceito de
arquétipo remete aos conteúdos do inconsciente coletivo e vem
substituir, de modo mais esclarecedor, a expressão emprestada de
Jakob Burckardt, “imagens primordiais”, que aparece, desde 1912,
em Símbolo de transformação (vol. 5), e “dominantes do
inconsciente coletivo”, usada em 1916 (vol. 7). A princípio, a
associação deste à hereditariedade causou muita polêmica, e a
equivalência entre “‘imagem primordial” e arquétipo também
suscitou controvérsias.
Certamente, a ideia de arquétipo está longe de ser algo
simples ou de fácil compreensão: trata-se de uma hipótese teórica
altamente complexa e de difícil explanação. A conceituação de
arquétipo confere à psicologia analítica um caráter tão
revolucionário quanto polêmico, suscitando críticas veementes e
mal-entendidos frequentes. Jung reviu e reformulou diversas vezes
esse conceito de 1912 até 1954 (vol. 9). Dessa forma, torna-se
imprescindível acompanhar a construção do conceito de arquétipo e
suas reformulações, a fim de evitar uma compreensão equivocada
desse conceito fundamental da psicologia analítica.
Em Psicologia do inconsciente, Jung faz repetidas tentativas
de esclarecer os conteúdos do inconsciente coletivo:

Afora as recordações pessoais, existem em cada indivíduo as grandes imagens


“primordiais”, (...) ou seja, a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como
era nos primórdios. (...) Isso não quer dizer, em absoluto, que as imaginações
sejam hereditárias; hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens, o que é
bem diferente. (...) Essas imagens ou motivos, denominei-os arquétipos (ou então,
“dominantes”). (vol. 7/1; 101)

Apesar de certa ambivalência em suas afirmações quanto à


hereditariedade do arquétipo, deve-se notar o encaminhamento
dado à questão quando Jung afirma ser bem diferente “imaginações
hereditárias” de “capacidade para ter tais imagens”. Além do caráter
hereditário, nesse trecho está colocada outra questão que será
reformulada posteriormente, qual seja, os arquétipos como imagens
ou como capacidade para formar imagens.
Mais adiante, Jung retoma o conceito:

Muitas vezes já me perguntaram de onde provêm esses arquétipos ou imagens


primordiais. Suponho que sejam sedimentos de experiências constantemente
revividas pela humanidade. (...) O arquétipo é uma espécie de aptidão para
reproduzir constantemente as mesmas ideias míticas (...) Logo, é possível supor
que os arquétipos sejam as impressões gravadas pela repetição de reações
subjetivas. (...) Ao que parece, os arquétipos não são apenas impregnações de
experiências típicas, incessantemente repetidas, mas também se comportam
empiricamente como forças ou tendências à repetição das mesmas experiências.
(vol. 7; 109)

Esse trecho apresenta, mais uma vez, uma ambivalência


entre o caráter hereditário ou inato dos arquétipos, e ainda não
distingue imagem arquetípica de arquétipo em si. Paira uma dúvida
quanto ao seu caráter originário ou secundário, ou seja, os
arquétipos derivam da experiência ou estão na origem da
experiência? Mais uma vez, deve-se notar o reparo, ainda que
tímido, sobre o caráter originário do arquétipo, quando Jung diz que
são como “forças ou tendências à repetição das mesmas
experiências”, o que nos permite supor que as experiências seriam
resultantes dessas forças e não o contrário. Em razão das diversas
reformulações por que passou esse livro (vol. 7/1), é difícil precisar
em que época tais afirmações foram feitas. São evidentes, porém,
tanto as dificuldades como as tentativas de explanação do conceito.
Em nota de rodapé, Jung diz:

Fui muito combatido pela crítica por causa da ideia de arquétipo. Não hesito em
concordar que a ideia é controversa e causa perplexidade. Mas sempre tive
curiosidade de saber que conceitos os meus críticos teriam para exprimir o material
experimental em questão. (vol. 7; 118)

Apesar das controvérsias e ambivalências, o conceito de


arquétipo foi sendo gradualmente elaborado, até ser definido como
um “constructo teórico limite, de natureza psicóide” e impossível de
ser representado (vol. 8). Dessa formulação decorre a distinção
entre arquétipo em si e manifestação arquetípica, que tem
implicações epistemológicas e metodológicas altamente relevantes
no paradigma junguiano.

Integração das perspectivas energético-final e redutivo-causal


A questão da causalidade, como modo único de pensar o
fenômeno psíquico, é criticada e considerada insuficiente ou mesmo
inadequada para a investigação e compreensão da psique. O
símbolo é o ponto de conexão entre consciente e inconsciente, e
tem a função de transformar energia inconsciente em energia
consciente. A função transcendente é aquela que cria símbolos, e o
pensamento simbólico é a função que os compreende.
Em 1928, seu método está praticamente consolidado e seus
estudos se desenvolvem baseados na amplificação como modo de
compreender os conteúdos apresentados nas manifestações
simbólicas arquetípicas. O termo amplificação ainda não fora
empregado por Jung nesse período, mas esse procedimento vem
sendo praticado por ele desde 1912, na análise do material de Miss
Miller, na primeira versão de Símbolos de transformação (vol. B).
Embora em alguns momentos Jung privilegie a abordagem
finalista e descarte a abordagem causal dos fenômenos, por
considerá-la deveras redutiva, na verdade seu método de análise do
material psíquico constitui-se na integração das duas perspectivas.

Em primeiro lugar, tive que me convencer profundamente de que a “análise”, na


medida em que se restringe à decomposição, deve ser necessariamente seguida
por uma síntese. Em segundo lugar, tive que me convencer da existência de um
material psíquico praticamente desprovido de significado quando simplesmente
decomposto, mas que encerra uma plenitude de sentido ao ser confirmado e
ampliado por todos os meios conscientes (é a chamada amplificação). Os valores
das imagens ou símbolos do inconsciente coletivo só aparecem quando submetidos
a um tratamento sintético. Como a análise decompõe o material simbólico da
fantasia em seus componentes, o processo sintético integra-o numa expressão
conjunta e coerente. (vol. 7; 122)

Jung justifica o método sintético construtivo, em função dos


conteúdos inconscientes de caráter coletivo, e recomenda esse tipo
de abordagem, inicialmente, apenas ao material do inconsciente
coletivo. Mais tarde, será aplicado ao material simbólico em geral,
pois o único e o típico estão de tal forma intrincados que é
extremamente difícil distingui-los e, portanto, abordá-los de modo
isolado.

Em última análise, todos os acontecimentos psíquicos se fundam no arquétipo e se


acham de tal modo entrelaçados que é necessário um esforço crítico considerável
para distinguir com segurança o singular do típico. Disto resulta que toda vida
individual é, ao mesmo tempo, a vida do éon da espécie. O individual é sempre
“histórico”, por se achar rigorosamente vinculado ao tempo. Inversamente, a relação
entre o tipo e o tempo é diferente. (vol. 11; 146)

Para Jung, a integração entre análise e síntese será na


verdade o procedimento metodológico a ser utilizado, pois confere
uma visão mais abrangente da situação psicológica e está em
sintonia com sua noção ontológica de totalidade dinâmica do ser e
do mundo. A visão teleológica integrada à perspectiva histórico-
causal vai ser ampliada, mais tarde, pela noção de sincronicidade.
Do ponto de vista metodológico, as conexões acausais
sincronísticas, cuja relação se estabelece pelo significado, são o
fecho do método junguiano. O conceito de sincronicidade surge em
sua obra em 1952 (vol. 8).
O método junguiano, nesse período, recebe várias
denominações – método construtivo, método comparativo
hermenêutico, método construtivo hermenêutico, método construtivo
sintético, método energético finalista –, que, em primeira instância,
têm o objetivo de distinguir a visão junguiana da visão freudiana,
sobretudo em relação à questão da causalidade e da finalidade dos
processos psíquicos e quanto à natureza coletiva e pessoal dos
conteúdos inconscientes. O termo construtivo é utilizado por Jung
no sentido de designar um método que se propõe a trabalhar com
os aspectos prospectivos (teleológicos) da psique, a fim de
compreender o sentido do processo de individuação sob a
coordenação do Self como uma função organizadora da psique.
“O princípio da causalidade investiga apenas de que maneira
essa psique se tornou o que é agora, tal como ela hoje se
apresenta. A perspectiva construtiva, ao contrário, pergunta como
se pode construir uma ponte entre esta psique e o seu futuro” (vol.
4; 399). Esse aspecto construtivo do método também está referido à
noção de um inconsciente criativo que pode fornecer conhecimentos
totalmente novos à consciência e acrescentar novas possibilidades
a ela – ampliar consciência –, e que pretende construir
conhecimento.
Enquanto o método causal chega aos princípios universais da psicologia humana,
através da análise e da redução dos acontecimentos individuais, o método
construtivo alcança os objetivos universais por meio da síntese de tendências
individuais. Como a psique é o ponto de intersecção (entre o individual e o
universal; entre causa e finalidade), ela precisa ser definida tendo em vista ambos
os aspectos. (vol. 4; 404)

O termo sintético é utilizado para designar uma metodologia


que se preocupa em formular sínteses e não apenas análises, a
exemplo da dialética, na qual o confronto entre tese e antítese
resulta em novas sínteses. Jung define seu método psicoterapêutico
como essencialmente dialético, entretanto, às vezes, os termos
sintético e construtivo são utilizados como sinônimos. “A psique
humana é somente em parte algo passado e como tal sujeita ao
ponto de vista causal. Por outro lado, porém, a psique é um devir,
que apenas pode ser entendida de modo sintético ou construtivo”
(vol. 4; 399).
O termo hermenêutico é utilizado no sentido de demonstrar o
modo de pesquisar em psicologia, à semelhança do linguista ou do
arqueólogo que pretendem traduzir um fenômeno desconhecido,
partindo do conhecido, em busca da compreensão por analogias e
comparações de significados. “O tratamento hermenêutico das
fantasias conduz teoricamente, ao longo da análise, à síntese do
indivíduo com a psique coletiva” (vol. 7, p. 146).

Revisão, ampliação e consolidação do


paradigma (1930-1949)
Método hermenêutico construtivo, amplificação
Principais obras desse período:
Comentário sobre O segredo da flor de ouro (vol. 13, 1929)
Prática da psicoterapia (vol. 16, 1930/1934)
Considerações gerais sobre a teoria dos complexos (vol. 8/2,
1934)
Arquétipos do inconsciente coletivo (vol. 9/1, 1934)
Estudo empírico do processo de individuação (vol. 9/1, 1934)
Psicologia e religião ocidental e oriental (vol. 11, 1938)
Psicologia e alquimia (vol. 12, 1944)
A psicologia da transferência (vol. 16, 1946)
Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico (vol. 8/2,
1947)

No período de 1930 a 1948, Jung empreende uma ampla


revisão de textos anteriores em que reformula alguns conceitos –
complexo, inconsciente coletivo e arquétipo – e retoma, de modo
mais consistente, a natureza e a dinâmica da psique. As pesquisas
sobre os arquétipos são intensificadas pelos estudos sobre alquimia
e religião ocidental e oriental. A conexão entre psicologia e cultura é
abordada de diferentes ângulos, da perspectiva da arte, dos eventos
históricos relevantes e de outros campos da ciência. Do ponto de
vista metodológico, Jung define e explora a amplificação tanto no
plano individual – sonhos, fantasias e imaginação –, como no plano
coletivo – religião, alquimia, arte e história. O termo amplificação é
cunhado em torno de 1930 (vol. 8; 172 e vol. 4; 761).
Sua obra na maturidade é uma demonstração do emprego da
amplificação ao material simbólico-arquetípico. Esse período
começa com o trabalho conjunto de Jung e Richard Wilhelm, O
segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês, sua primeira
aproximação com a alquimia. “Só através do texto do Segredo da
Flor de Ouro, que faz parte da alquimia chinesa e que Richard
Wilhelm me enviou em 1928, pude aproximar-me da essência da
alquimia. Nasceu em mim o desejo de conhecer melhor os
alquimistas” ([1961]1981, p. 180).
O interesse de Jung pela cultura chinesa, despertado
inicialmente pela alquimia, conduz mais tarde a outras pesquisas
sobre o Oriente (Psicologia e religião oriental e Seminários sobre a
psicologia da ioga Kundalini), resultando na aproximação entre a
sabedoria oriental e a ocidental. Jung aprimora o conceito de si-
mesmo (Self) com base nas reflexões e pesquisas que o estudo da
alquimia chinesa lhe proporcionou. Em suas memórias, ele diz que
sua psicologia atinge o ponto central com o estabelecimento da
ideia de Self. A alquimia tem papel importante na consolidação da
psicologia analítica: “A alquimia como filosofia da natureza, em
vigência na Idade Média, lança uma ponte tanto para o passado, a
gnose, como para o futuro, a moderna psicologia do inconsciente”
([1961]1981, p. 117).
As pesquisas em alquimia medieval europeia levam Jung a
aprofundar seus estudos sobre a psicologia do inconsciente e a
estabelecer o processo de individuação como um padrão de
desenvolvimento da personalidade, arquetipicamente orientado, que
leva o indivíduo a se tornar aquilo que de fato ele é.
Cumpre salientar que tanto a noção de totalidade quanto do
processo de desenvolvimento individual já integram, há muito
tempo, suas concepções de ser e psique. O termo individuação é
familiar a Jung através da filosofia de Von Hartmann; a ideia de um
processo movido por demandas inconscientes rumo à complexidade
crescente da personalidade já está esboçada em suas conclusões
sobre a psicologia da médium, observada por ele em 1902. O
processo de individuação é o conceito junguiano de
desenvolvimento da personalidade, que implica a ampliação da
consciência tanto em direção ao inconsciente como em direção ao
mundo. Vale lembrar e sublinhar que o encontro com a alquimia
chinesa e a noção de Tao da filosofia chinesa consolidam, para
Jung, o caráter arquetípico de algumas de suas noções básicas e,
além disso, o encorajam a afirmar com mais clareza os conceitos de
Self e processo de individuação.
Em seus estudos e pesquisas sobre religião, Jung aborda um
dos temas mais controvertidos de sua teoria – psicologia e religião
–, e com um rigor científico invejável por qualquer pesquisador em
ciências humanas. Ele distingue o aspecto metafísico e teológico da
religião de seu papel psicológico. Discrimina os dois pontos de vista
e declara que se dedicará, exclusivamente, ao aspecto psicológico
da experiência religiosa, com o intuito de fazer uma leitura
psicológica do fenômeno religioso.

Embora me tenham chamado frequentemente de filósofo, sou apenas um empírico


e, como tal, me mantenho fiel ao ponto de vista fenomenológico. Mas não acho que
infringimos os princípios do empirismo científico, se de vez em quando, fazemos
reflexões que ultrapassam o simples acúmulo e classificação do material
proporcionado pela experiência. Creio, de fato, que não há experiência possível
sem uma consideração reflexiva, porque a “experiência” constitui um processo de
assimilação, sem o qual não há compreensão alguma. Daqui se deduz que abordo
os fatos psicológicos, não sob um ângulo filosófico, mas de um ponto de vista
científico-natural. Na medida em que o fenômeno religioso apresenta um aspecto
psicológico muito importante, trato o tema dentro de uma perspectiva
exclusivamente empírica: limito-me, portanto, a observar os fenômenos e me
abstenho de qualquer abordagem metafísica ou filosófica. Não nego a validade de
outras abordagens, mas não posso pretender a uma correta aplicação desses
critérios. (vol. 11; 2)

Jung, ao longo de sua obra, ressalta o caráter empírico de


seus estudos, e a designação de “fenomenológico” surge em seu
vocabulário na década de 1930 (Clarke, 1993), sendo, sem dúvida,
importante para o desenvolvimento de seu método. Não obstante,
quanto ao uso destes termos – empírico e fenomenológico – como
adjetivos de seu método, devem-se aduzir alguns esclarecimentos.
Para Jung, o termo “empírico” para qualificar seu método tem o
objetivo de distingui-lo de teorizações a priori, pois sempre
considerou que “seu estudo da psique não era filosofia, mas ciência
empírica” (ibid., p. 61), uma vez que sua pesquisa tinha por base os
fatos observados em seus pacientes ou em si mesmo, cuja
finalidade residia na aplicação prática de suas descobertas. Delírios,
sonhos, fantasias, imaginações são considerados fatos psíquicos,
tanto quanto os comportamentos e as verbalizações. O termo
“fenomenológico” guarda certa aproximação com o empírico no
sentido de se referir aos fatos, mas com a conotação de fatos
vividos, isto é, todo fato psicológico é uma experiência vivida por um
indivíduo. Apenas nesse contexto (vivencial) ele pode ser captado e
analisado.

A psicologia não pode provar quaisquer verdades metafísicas nem tenta fazer isso.
Interessa-se apenas pela fenomenologia da psique. (vol. 18; 742)
Meu ponto de vista é exclusivamente fenomenológico, ou seja, interessa-se por
ocorrências, eventos, experiências – em uma palavra, por fatos. (vol. 11; 4)

O fato psíquico com que a psicologia analítica vai se ocupar é


a manifestação simbólica. Ou, dito de outra maneira: os fatos, na
abordagem junguiana, serão abordados psicologicamente pela
perspectiva simbólica. Seu enfoque fenomenológico é evidente nos
tipos de atitude – introversão e extroversão – e na definição das
funções tipológicas, pois estas constituem disposições da
consciência diante dos fatos, formas de estar no mundo, captar e
reagir às experiências vividas. No que tange à religião, em especial,
Jung sublinha a experiência religiosa em seu caráter numinoso
como relevante psicologicamente, sendo, portanto, um fenômeno
objeto de investigação da psicologia.
Outra designação lançada nesse período, quanto ao método
aplicado à psicoterapia, é a dialética.

Tenho que optar necessariamente por um método dialético, que consiste em


confrontar as averiguações mútuas. (vol. 16; 2)
Chegamos assim à formulação dialética, que no fundo significa que a interação
psíquica nada mais é do que a relação de troca de dois sistemas psíquicos”. (vol.
16; 1)

O processo analítico, para Jung (vol. 16), é definido como o


encontro de dois sistemas psíquicos cuja finalidade consiste em
buscar novas sínteses através do confronto entre teses conhecidas
(consciente) e antíteses (inconsciente), as quais se impõem,
gerando conflitos que, por sua vez, expressam a tensão entre as
polaridades opostas, consciente e inconsciente. Esse confronto
deve ser conduzido nos limites de um vínculo de cooperação
simétrica, em que a troca recíproca favorece a “transformação
terapêutica” (vol. 16) do paciente em sintonia com seu processo de
individuação.

Em toda e qualquer circunstância são normas supremas de um método dialético


que a individualidade do doente tenha a mesma dignidade e o mesmo direito de
existir que a do médico, e que, por essa razão, todos os desenvolvimentos
individuais do paciente sejam considerados legítimos, conquanto não se corrijam
por si mesmos. (vol. 16; 11)

O caráter dialético do método junguiano reside na


transitoriedade da verdade alcançada; na pluralidade de
possibilidades de acesso ao desconhecido; na inevitabilidade dos
paradoxos e das contradições humanas. “Outra fonte da ideia do
método dialético é o fato de existirem diversas possibilidades de
interpretação para os conteúdos simbólicos” (vol. 16; 9).
As revisões e reformulações realizadas nesse período
expressam a maturação de suas ideias e a consolidação de seu
método. Jung buscou na física fundamentos para a elaboração do
conceito de energia psíquica; encontrou na alquimia medieval a
conexão histórica e filosófica com a psicologia do inconsciente
contemporânea; percebeu nas religiões do Ocidente e do Oriente a
possibilidade de religação da psique consciente com o inconsciente;
nos mitos e nos sonhos, vislumbrou a síntese entre o coletivo
universal e o pessoal único. Seu pensamento flui em busca de
diversos parâmetros, nos quais encontra apoio e referendo para os
problemas de seus pacientes e suas ideias. A auto-observação, a
observação clínica e a pesquisa em diversos campos do
conhecimento são elementos constantes na investigação da psique
e na formulação do modelo teórico de C. G. Jung.

A síntese final (1950-1961)


A sincronicidade amplia e conclui o paradigma junguiano

Principais obras desse período:


Símbolos de transformação (revisão ampliada) (vol. 5, 1950)
Sincronicidade (vol. 8/3, 1952)
Aion – estudos sobre o simbolismo do si-mesmo (vol. 9/2, 1950)
Resposta a Jó (vol. 11, 1952)
A função transcendente (vol. 8, [1916]1957)
Mysterium coniunctionis (vol. 14, 1956)

Entre 1950 e 1961, Jung revê e reformula alguns de seus


estudos pela última vez, de modo a lapidar ideias e conceitos. Entre
1950-1955, revisou a obra Sobre a natureza da psique (vol. 8) e
vários capítulos de Arquétipos do inconsciente coletivo (vol. 9/1). A
teoria dos arquétipos estava finalmente concluída depois de 35 anos
(em 1919, ele usou o termo arquétipo pela primeira vez) de
pesquisas, formulações e reformulações. Em 1950, faz uma revisão
ampla e profunda de Símbolos de transformação: análise dos
prelúdios de uma esquizofrenia, fechando um ciclo iniciado em
1909, quando começa a pesquisar mitologia ao trabalhar com o
material de Miss Miller. No prefácio a essa última edição, Jung
retoma o objetivo principal dessa obra em sua primeira edição:
“Libertar a psicologia médica do caráter subjetivo e personalista com
que era considerada na época, ao menos a ponto de tornar possível
compreender o inconsciente como uma psique objetiva e coletiva”
(vol. 5, p. xiv).
A propósito da primeira edição, Jung comenta também a
“estreiteza sufocante” do causalismo redutivo da teoria freudiana,
que ignora a “finalidade tão característica de tudo que é psíquico”
(vol. 5, p. xiv). Além disso, mais uma vez, reconhece o mérito de
Freud no estudo da psique individual e na teoria dos sonhos. Atribui
a estreiteza da psicanálise aos limites do racionalismo e do
materialismo científico a que Freud se submeteu ao permanecer
aderido exclusivamente às causas explicativas em sua teoria.
“Assim esse livro se tornou um marco, colocado no lugar onde dois
caminhos se separaram” (vol. 5).
No epílogo que acrescentou na última edição de Símbolos de
transformação, em 1950, Jung sintetiza essa obra que marca a
origem da psicologia analítica e que é concluída na fase final de sua
obra:

Considero o exercício da ciência não como uma disputa sobre quem está com a
razão, mas como um trabalho que visa aumentar e aprofundar o reconhecimento.
Àqueles que assim pensam sobre ciência destina-se este trabalho. (vol. 5; 685)

Em Aion e Resposta a Jó, Jung discute temas importantes à


luz do simbolismo religioso, aprofunda seus estudos sobre o si-
mesmo como arquétipo central organizador da totalidade e suas
formas de manifestação através de símbolos do cristianismo.
Aborda a bipolaridade do arquétipo do si-mesmo, seus paradoxos e
suas contradições na figura simbólica de Cristo – o Deus feito
homem –, o arquétipo encarnado. Exorta a ética necessária à
consciência que se aproxima do inconsciente e se apodera do
mundo. Com Resposta a Jó, Jung foi criticado pelo clero e pela
ciência.

Cristo formulou complexivamente em uma única frase aquilo que constitui a


consciência reflexa ou sua ausência: “Se sabes o que fazes, és feliz, mas se não
sabes, és um maldito e transgressor da lei”. A inconsciência nunca pode valer como
desculpa perante o tribunal da natureza e do destino. Ao contrário, grandes castigos
pesam sobre ela e é por isso que toda a natureza inconsciente anseia pela luz da
consciência, à qual, no entanto, se contrapõe. (vol. 11; 745)
Em Resposta a Jó são discutidos temas tão importantes
quanto polêmicos. Jung, com a leitura simbólica do livro bíblico de
Jó, faz uma profunda reflexão sobre a responsabilidade e o
compromisso ético do ser humano ante a consciência reflexiva e os
poderes que lhe foram concedidos pelo criador. A bipolaridade do
arquétipo (criador) é complementada pela paradoxalidade do ego
(criatura) e resulta na ética inevitável do processo de individuação
(aquisição de conhecimento).

E como ele [Deus] quer tornar-se homem, é no homem que deve realizar-se a união
de suas antinomias. Isto constitui uma nova responsabilidade para o homem. Este
não pode mais se escusar, apelando para sua pequenez e nulidade, pois o deus
tenebroso colocou-lhe nas mãos a bomba atômica e o material para uma guerra
química, dando-lhe assim o poder de despejar a taça da ira apocalíptica sobre seus
semelhantes. Como lhe foi posto na mão um poder por assim dizer divino, ele não
pode mais continuar cego e inconsciente. Deve conhecer a natureza de Deus e o
que se passa no interior da metafísica, a fim de compreender-se a si mesmo,
chegando deste modo ao conhecimento de Deus. (vol. 11; 474)

Por meio da amplificação, Jung propõe que se olhe para a


consciência desde o inconsciente.

Efetivamente, o ser só tem validade na medida em que alguém tome consciência de


sua existência. Por isso o criador necessitou da consciência humana, embora,
levado por sua inconsciência, preferisse impedir que ele se tornasse consciente.
(vol. 11; 575)

Trata-se de uma proposta bastante ousada e um exercício de


flexibilidade bastante difícil para a consciência habituada a relações
fixas e tradicionais, egoicamente estabelecidas.

A vitória do inferior e oprimido é evidente: moralmente Jó se achava numa posição


superior a Javé. A criatura sobrepujara o Criador sob este ponto de vista. Como
sempre acontece, um conhecimento inconsciente pode tornar-se consciente quando
em contato com um acontecimento exterior. (vol. 11; 640)

Nessas duas obras (Aion e Resposta a Jó), Jung aprofunda o


conceito de si-mesmo e totalidade, discute a dinâmica consciente—
inconsciente e a relação entre ego e si-mesmo, fazendo um
exercício magistral de amplificação simbólica de temas coletivos
significativos da cultura ocidental. Sua maior contribuição do ponto
de vista epistemológico, nessas obras, reside na ética que o
conhecimento requer, e alerta sobre a responsabilidade quanto ao
uso e à aplicação que se pode e se deve fazer dos conhecimentos
adquiridos.
Do ponto de vista metodológico, sua maior e mais definitiva
contribuição nesse período se dá pela formulação do conceito de
sincronicidade, em 1952. Para explicar a sincronicidade, Jung
retoma o método experimental como aquele que se baseia
exclusivamente nas relações de causa e efeito. Ainda que grande
parte dos fenômenos físicos possa ser explicada com base nesse
modelo, Jung (vol. 8) aponta para a existência de uma gama de
acontecimentos que escapa à causalidade e requer outra forma de
apreensão, explicação e compreensão.
Já, em 1916, ele havia apontado a restrição que o método
experimental imprimia aos fenômenos psíquicos.

A psicologia experimental hodierna está longe, porém, de poder comunicar uma


visão articulada daquilo que constitui, praticamente, os processos mais importantes
da psique (...) ela procura isolar os processos (...) a fim de estudá-los
separadamente (...) e carece de conexão orgânica. Portanto, quem quiser conhecer
a psique humana infelizmente pouco receberá da psicologia experimental. (vol. 7, p.
112)
Suas críticas ao método experimental – estático, redutivo,
causal – são todavia efetivamente concluídas apenas com o
conceito de sincronicidade.
A proposta de conexões que operam pelo significado,
independentemente de fatores causais, vem acrescentar uma
terceira possibilidade de abordagem dos fenômenos psíquicos, além
da causalidade e da finalidade observadas antes. O papel do
símbolo se amplia e adquire possibilidades mais amplas e
diversificadas de ser compreendido.

A sincronicidade, portanto, significa, em primeiro lugar, a simultaneidade de um


estado psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos
significativos de um estado subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias,
também vice-versa. (vol. 8; 850)

O tema das conexões acausais intrigaram e instigaram o


espírito curioso de Jung por muito tempo, sem que ele conseguisse
lhe dar um fundamento científico. Os estudos sobre alquimia,
astrologia e, sobretudo, a filosofia chinesa e a física quântica lhe
deram, sucessivamente, subsídios para investigar com atenção
essas ocorrências e estabelecer o conceito de sincronicidade.

O problema da sincronicidade tem me ocupado há muito tempo, sobretudo a partir


de meados dos anos vinte, quando, ao investigar os fenômenos do inconsciente
coletivo, deparava-me constantemente com conexões que eu não podia
simplesmente explicar como sendo grupos ou “séries” de acasos. Tratava-se antes,
de “coincidências” de tal modo ligadas significativamente entre si, que seu
concomitante “casual” representa um grau de improbabilidade que seria preciso
exprimir mediante um número astronômico. (vol. 8; 843)

Importante salientar que Jung não exclui a causalidade, ainda


mais no que diz respeito aos fenômenos físicos cotidianos.
Naturalmente procuraremos em vão, no mundo macrofísico, acontecimentos
acausais, pela simples razão de que somos incapazes de imaginar acontecimentos
inexplicáveis e sem relação causal. Tudo isso não quer dizer que tais
acontecimentos não existam. Sua existência – pelo menos como possibilidade –
deriva logicamente da premissa da verdade estatística. (vol. 8; 820)

No que diz respeito ao campo psicológico dos


acontecimentos e mesmo na microfísica, as ocorrências acausais
podem ser cogitadas.

Nem mesmo o determinismo da época científica foi capaz de extinguir inteiramente


a força persuasiva do princípio da sincronicidade. Com efeito, trata-se, em última
análise, não de uma superstição, mas de uma verdade que permaneceu oculta
porque tem menos a ver com o aspecto material dos acontecimentos do que com
seu aspecto psíquico. Foram a psicologia moderna e a parapsicologia que
provaram que a causalidade não explica uma determinada classe de
acontecimentos, e que, neste caso, é preciso levar em conta um fator formal, isto é,
a sincronicidade, como princípio de explicação. (vol. 8; 934)

A sincronicidade como mais um fator de explicação para


fenômenos psíquicos amplia enormemente o âmbito de análise e
compreensão da dinâmica consciente—inconsciente. O aspecto
teleológico da energia psíquica, associado ao mecanismo de
autorregulação operante na totalidade, e ambos ancorados na teoria
dos arquétipos, parece se consolidar com a hipótese da
sincronicidade. O método junguiano está concluído com o
estabelecimento da sincronicidade como um parâmetro de
explicação dos fenômenos psíquicos.
Em Mysterium coniucntionis, obra que Jung nomeia como a
síntese conclusiva de sua jornada, o tema principal é a integração
dos opostos como a finalidade última do processo de indivi­duação.
O paradigma junguiano está completo, em termos tanto ontológicos,
como epistemológicos e metodológicos. Sua construção fluiu por
décadas, das partes (complexos autônomos) para o todo
(inconsciente coletivo e arquétipos) e vice-versa, em movimento
espiral, para uma totalidade composta por partes que se
contrapõem (tensão entre opostos) até o mistério da união
(mysterium coniunctionis), num processo constante de diferenciação
e diversificação das partes no todo.
Para Jung, o conhecimento resulta de um processo constante
de aquisições que vão se acrescentando. Cada acréscimo produz
ampliação de possibilidades para explorar outras mais novas. É um
processo de transformação contínuo, em que o novo se acrescenta
ao velho, renova-o e impulsiona-o novamente ao desconhecido,
numa espiral que se estende para cima, para baixo e para os lados,
em direção à complexificação infinita, enquanto houver uma
consciência ávida de conhecimento.
A epistemologia junguiana propõe uma noção de
conhecimento não apenas intelectual; sua criatividade e
produtividade se efetivam somente à medida que incluir todas as
funções psíquicas (intelectivas, emocionais, intuitivas, perceptivas e
imaginativas).
O processo de desenvolvimento do indivíduo, Jung
denominou-o “processo de individuação”; esse mesmo processo
Neumann ([1949]1989) descreveu na história da humanidade. A
consciência individual e a consciência coletiva seguem os mesmos
passos em seu processo de desenvolvimento.
O método junguiano de investigação psicológica abrange
tanto a esfera individual quanto a cultural. As manifestações
simbólicas da psique humana podem ser investigadas no contexto
individual ou no contexto cultural – símbolos individuais e símbolos
culturais.
1 Segundo Ellenberger (1970) ao entrar no Burghölzli, Jung define o que é psicologia para
ele: “o estudo científico da alma humana tomando como ponto de partida as manifestações
do que ele chamou de Realidade Psíquica” (p. 691).
2 Archives de Psychologie, vol. 5, 1906, segundo diz Jung no volume B das Obras
completas, embora haja controvérsia quanto a essa fonte. Ver introdução dos editores no
vol. B.
PARADIGMA JUNGUIANO

Tomando por base a discussão sobre a construção da


psicologia analítica de C. G. Jung – a formulação de seus conceitos
teóricos e de seu método de abordagem da psique –, fica evidente
sua preocupação em se definir como cientista e abordar a psicologia
do inconsciente do ponto de vista científico. Para tanto, ele
demonstra preocupar-se com a divulgação e a aceitação de suas
ideias e pesquisas, com a inserção dessas no campo científico e
com um debate crítico com diversos campos da ciência, na tentativa
de adequar a psicologia do inconsciente ao escopo científico de sua
época. Observa-se uma dialética constante entre adaptação e crítica
ao modelo científico vigente, percebendo-se também ambivalências.
O percurso de Jung é marcado por contraposição e
comparação entre a psicologia profunda, as ciências naturais e as
ciências físicas, buscando delinear suas particularidades e
semelhanças. Não se pode deixar de ter em mente que seu
vocabulário, por um lado, é impregnado pelos termos da época e,
por outro lado, que ele está em busca de palavras que traduzam
suas concepções e descobertas, lançando mão, muitas vezes, de
analogias e metáforas para se expressar. Nesse diálogo com a
concepção de ciência de seu tempo, Jung confronta e compara a
psicologia analítica com as ciências naturais, pois o conceito de
ciências humanas estava ainda em construção e gozava de baixa
credibilidade científica. Raramente ele se refere às ciências
humanas.

Enquanto a tipologia fisiológica é obrigada a empregar, essencialmente, métodos


científicos para obter seus resultados, a natureza invisível e imensurável dos
processos psíquicos nos constrange a empregar métodos derivados das Ciências
Humanas, ou, mais precisamente, à crítica analítica. (vol. 8; 222)

Para Jung, é claro que o objeto de estudo da psicologia do


inconsciente é muito distinto daquele das ciências naturais e exatas;
ele é ciente, também, de que tal diferença acarreta particularidades
tanto na epistemologia como no método.
Percebe-se ainda que, ao distinguir a psicologia analítica das
ciências tradicionais, devido à impossibilidade de adequar seu
método aos padrões de cientificidade destas, muitas vezes Jung
localiza sua área de pesquisa fora da ciência, mais especialmente
no que se refere à psicoterapia. “Mas a ciência termina nas
fronteiras da lógica, o que não ocorre com a natureza, que também
floresce onde teoria alguma jamais penetrou” (vol. 16; 524). Pode-se
observar, também, uma certa ambivalência quanto à cientificidade
que ele pretende atribuir ao seu trabalho, no entanto, é possível
que, ao contrário, essa se deva a seus esforços de formular um
modelo científico em outras bases.
O objeto de investigação da psicologia analítica se define
como a psique humana em suas relações com a vida. Para Jung, o
fato de a psique ser tanto sujeito como objeto do conhecimento
distingue a psicologia das outras ciências, exatas ou naturais, e
implica necessariamente uma epistemologia e um método que
considerem essa particularidade.
A análise e a discussão da obra junguiana devem considerar,
obrigatoriamente, o contexto em que ela surge; e deve atentar, por
um lado, para a concepção de ciência vigente e, por outro, para o
fato de que o estudo científico do inconsciente estava em estado
embrionário, requerendo muita ousadia e formulações novas que
não se adequavam à cosmovisão e à epistemologia praticadas pela
ciência. Cumpre lembrar que a proposta de Thomas Kuhn, de uma
concepção de ciência mais humanizada e menos calcada em ideais
rigorosos inalcançáveis, datada de 1962, um ano depois da morte
de Jung, foi violentamente rejeitada pela comunidade científica. Em
vários aspectos, as críticas recebidas por ambos são muito
semelhantes, assim como a concepção de ciência.
A psicologia analítica de C. G. Jung será discutida como um
paradigma que comporta as perspectivas ontológica, epistemológica
e metodológica, de acordo com a definição atual de paradigma
apresentada anteriormente.

Perspectiva ontológica
Originalmente, o termo ontológico refere-se ao “ser” em geral,
e o termo ontologia designa o estudo do ser. De acordo com a
noção de paradigma de Denzin e Lincoln (1998), a perspectiva
ontológica de um paradigma levanta questões básicas sobre a
natureza da realidade. Por perspectiva ontológica de um paradigma
entende-se, neste estudo, as concepções básicas relativas à
realidade, incluindo o ser humano e o mundo como um todo
integrado, no qual ele está inescapavelmente inserido. A perspectiva
ontológica do paradigma junguiano compreende, então, as
concepções de mundo; de ser humano e psique; de realidade
psíquica e de dimensão simbólica, além da noção de inconsciente.
A psicologia de C. G. Jung é, antes de tudo, uma psicologia
do inconsciente. O inconsciente é, portanto, um postulado de
natureza ontológica na psicologia analítica, por estar na base da
concepção de realidade psíquica e de ser humano. A epistemologia
desse paradigma se desenvolve com a meta principal do
conhecimento do inconsciente. A perspectiva ontológica da
psicologia analítica, de acordo com Jung, traduz-se pela
Weltanshauung (cosmovisão), definida por ele como “uma atitude
expressa em conceitos” (vol. 8).

Ter uma cosmovisão significa formar uma imagem do mundo e de si mesmo, saber
o que é o mundo e quem sou eu. Tomado ao pé da letra, isto seria exigir demais.
Ninguém pode saber o que é o mundo, nem tampouco quem é ele próprio. Mas cun
grano salis, isto significa o melhor conhecimento possível. (vol. 8; 698)

Dessa definição, decorrem algumas questões altamente


relevantes para a análise do paradigma. Primeiro, a inseparabilidade
entre ser e mundo; segundo, a estreita correlação entre as
concepções ontológicas e as premissas epistemológicas, e estas se
influenciam reciprocamente, ou seja, ao mesmo tempo que o
conhecimento decorre das concepções de mundo e ser, estas são
alteradas pelo conhecimento produzido e a inescapável relatividade
da cosmovisão e do conhecimento e seus limites; por último, a visão
profundamente psicológica e atual que está impressa em sua visão
sobre a articulação entre ontologia e epistemologia.
A ciência, segundo Jung (vol. 8), é um instrumento para se
construir uma cosmovisão; em contrapartida, a cosmovisão do
cientista influencia a construção da teoria científica. Essa visão de
ciência e conhecimento é muito semelhante à definição de
paradigma de Kuhn ([1970]2001), quando este afirma que um
paradigma é formado por aquilo que a comunidade partilha e,
inversamente, a comunidade científica consiste de indivíduos que
partilham um paradigma.
Formalmente, as premissas ontológicas localizam-se na base
do paradigma e sobre elas se apoiam as proposições
epistemológicas e o método, formando um todo. No entanto, essa
relação linear e causal é, na verdade, impossível de ser alcançada
na formação ou na elaboração de um paradigma. Deve-se sublinhar
que essa linha de raciocínio tem apenas, e tão-somente, a função
de organizar e sistematizar a análise do paradigma, correndo-se
inevitavelmente o risco de limitar sua amplitude e esvaziar sua
dinâmica.
Sobre a cosmovisão da psicologia analítica, Jung (vol. 8)
afirma que a coisa mais essencial que a psicologia analítica poderia
acrescentar à nossa cosmovisão é o reconhecimento da existência
de um inconsciente, que interfere e influencia a consciência de
modo inevitável e, às vezes, imperioso. Esse é o pilar básico da
ontologia junguiana.

Totalidade, unidade – diversidade, complexidade


A perspectiva ontológica da psicologia de C. G. Jung está
assentada, em primeiro plano, nas noções de totalidade e unidade,
uma totalidade dinâmica que contém elementos diversos.
Maroni (1998) pondera que, além da visão de unidade e
totalidade, deve ser sublinhada a visão de diversidade e pluralidade
na ontologia junguiana. Para fazer justiça à concepção de ser e
psique de Jung, deve ser ressaltada, desde já, a díade totalidade—
diversidade. A noção de unidade e multiplicidade constitui a base do
pensamento dialético junguiano, que dá origem à teoria das
polaridades e à ideia de totalidade dinâmica. Como foi visto
anteriormente, a concepção de totalidade e unidade sobre a qual se
assenta o pensamento de Jung tem suas raízes na tradição
filosófica romântica alemã e na corrente neokantiana, que,
epistemologicamente, tenta solucionar o impasse de Kant entre a
coisa-em-si e o conhecimento, através das possibilidades de
conexão entre o mundo subjacente e o mundo aparente. As noções
de realidade material e imaterial, de mundo subjacente e mundo
aparente, discutidas pelos sistemas kantiano e romântico, são
consideradas na psicologia analítica à luz dos conceitos de
consciente e inconsciente, formando um todo único.
O conceito de imaginação, surgido na Renascença e
desenvolvido pelos filósofos românticos, dá origem aos conceitos de
fantasia e inconsciente, que aparecem, inicialmente, na obra do
filósofo romântico Von Hartmann no século 19. Os atributos do
mundo subjacente, ou transcendente (Goethe), abrangem
imaginação, fantasia, sonhos, intuição e reflexão introspectiva, os
quais resultam no conceito de inconsciente na psiquiatria dinâmica.
De início, a noção de inconsciente refere-se a um mundo além da
consciência. Charcot e Janet, embora não tenham usado esse
termo, são os primeiros a introduzir na psiquiatria a noção de que a
atividade da consciência sofre interferência de conteúdos de fora
dela. Antes, porém, de entrar em contato com a psiquiatria, Jung,
em 1898, sintetiza a questão do inconsciente na filosofia da seguinte
forma:
A crítica epistemológica kantiana deixou sem solução o problema do “Ding an sich”
(coisa-em-si). O primeiro filósofo neokantiano a fazer um trabalho inteligente no
sentido de tornar esse problema novamente útil à filosofia foi Schopenhauer. Como
sabemos, Schopenhauer interpretou o “Ding an sich” como vontade cega. O
herdeiro intelectual de Schopenhauer, Eduard Von Hartmann, assumiu este
conceito de vontade, mas adicionou um elemento da ideia transcendental e
interpretou o “Ding an sich” como vontade e imaginação intrinsecamente
inconsciente. (vol. A; p. 199)

A concepção de uma realidade inconsciente original, como


dado a priori, criativo e atuante sobre a realidade consciente, é
fundamental na ontologia de Jung, para quem ser e mundo
constituem um todo que abrange os aspectos subjacentes e
manifestos (inconsciente e consciente). Os atributos do mundo
aparente ou manifesto compreendem os fenômenos observáveis
que se expressam no mundo externo. Na psicologia analítica, o
mundo manifesto abarca o da consciência e o da realidade
existencial do ser humano em suas relações com a vida. A noção de
processo construtivo é também um alicerce do modelo junguiano.
Esses processos operam, continuamente, diferenciação e
integração das partes no todo (processo de individuação).
A noção de dissociabilidade da psique decorre da noção de
totalidade, ou seja, a psique é composta de diversas partes – um
todo que contém partes – que se associam ou se dissociam em
maior ou menor grau. Isso fica evidente, para Jung, já na época do
experimento de associação de palavras, de onde deriva o conceito
de complexos autônomos de tonalidade afetiva e de natureza
inconsciente.
Para Jung, a ideia de totalidade está intrinsecamente
associada a uma visão dinâmica e sistêmica do ser e do mundo, em
que as partes se relacionam de forma compensatória e
complementar num todo único. Dessa forma, na psicologia
junguiana, o paradigma centrista e determinista cede lugar ao
paradigma da complexidade e da diversidade dinâmicas (Pieri,
2002), que revela uma perspectiva ontológica mais contemporânea.
A concepção de totalidade na psicologia analítica será
retomada na discussão sobre concepção de mundo, de ser humano
e de psique, uma vez que o postulado da totalidade/unidade,
diversidade/complexidade permeia toda a perspectiva ontológica
desse paradigma.

Concepção de mundo
Tanto o mundo como o ser humano são considerados em
termos de totalidade. O termo unus mundus (mundo uno ou unitário)
aparece, na obra de Jung, como um paralelo metafísico de seu
conceito de totalidade e tem alguns propósitos em sua ontologia. O
primeiro deles é buscar uma analogia para facilitar a compreensão
da ideia de totalidade. O segundo pretende ressaltar que cada
aspecto da existência “está intimamente ligado a todos os outros
estratos” (Samuels, Shorter e Plaut, 1988). A terceira função, da
associação da totalidade com o unus mundus, da filosofia medieval,
tem relação direta com a visão não causal de sua epistemologia,
pois o unus mundus é uma cosmovisão que não se encerra na
explicação das causas, mas ressalta sobretudo as relações. O unus
mundus abarca a totalidade cósmica na qual o ser humano está
inserido.
Outro paralelo traçado por Jung para esclarecer o significado
da noção de totalidade é o simbolismo das figuras mandálicas: “Se o
simbolismo da mandala é o correlato psicológico ao unus mundus
dos alquimistas, então a sincronicidade descrita por Jung é seu
correlato parapsicológico” (Wehr, 1988, p. 402).
A totalidade para Jung tem conotação tanto de campo como
de sistema de relações. Como campo, tem caráter “todo
abrangente”, incluindo, na concepção psicológica de ser humano, o
consciente e o inconsciente; a psique e o corpo. O mundo é
considerado em seus aspectos subjacente e manifesto (inconsciente
e consciente). Como sistema de relações, a totalidade implica
relações multivetoriais, em que as partes do todo interagem e se
entrelaçam em processos de diferenciação e integração constantes,
rumo a uma complexidade crescente. Essa dinâmica abarca
relações causais e não causais, isto é, relações contidas na
dimensão espaçotemporal e relações fundadas na dimensão
simbólica de caráter acausal, que se estabelecem por associação
de significado (sincronicidade).
A concepção de mundo na psicologia junguiana, alicerçada
na visão romântica de mundo manifesto e mundo subjacente, e
influenciada pela perspectiva kantiana do ser-em-si e o ser
fenomenológico, pretende buscar as possibilidades de integração
entre esses dois níveis. Em toda psicologia junguiana, a tentativa de
integração dos opostos está presente. Embora o modelo junguiano
tenha sido tradicionalmente classificado como idealista, por sua forte
associação ao pensamento kantiano e romântico, a forma como
Jung considera o mundo material e o mundo espiritual segue na
direção de superar o impasse kantiano. A perspectiva simbólica é a
ponte epistemológica entre os dois mundos (material e imaterial).
Mesmo que Jung tenha se posicionado frontalmente contra o
materialismo, ele jamais negou a importância e a função do aspecto
material na vida psíquica. Sua crítica ao materialismo racional
estende-se igualmente à metafísica transcendental idealista. Ao
discutir a noção de realidade psíquica no paradigma junguiano, mais
adiante, as polaridades idealista e materialista serão novamente
abordadas.
O termo mundo na psicologia junguiana adquire uma
acepção ampla que, dependendo do contexto, pode ser substituído
por realidade, ambiente ou dimensão. Por mundo, entende-se, de
um lado, o ambiente imediato em torno do indivíduo como realidade
fenomenológica vivenciada, estendendo-se no tempo e no espaço
até incluir a história e a cultura em que o indivíduo está inserido;
nesse sentido, o ambiente sócio-histórico-cultural é designado por
Jung de consciência coletiva. Por outro lado, mundo refere-se
também ao inconsciente como ambiente interno ou dimensão
extraconsciente, incluindo o mundo das imagens, da imaginação e
dos sonhos na esfera pessoal, e o mundo arquetípico na esfera
coletiva.
De acordo com Samuels, Shorter e Plaut (1988), mundo
interno e mundo externo, psicologicamente, não se distinguem, uma
vez que ambos na experiência psicológica são vividos no nível
simbólico. No entanto, a objetividade e a concretude do mundo
externo não se confundem com a subjetividade e a imaterialidade do
mundo interno. Ambas as esferas convivem na concepção de
mundo junguiana de modo complementar, sem se anularem
mutuamente.

Nossa filosofia deveria consistir em formular inferências sobre o desconhecido, de


acordo com o princípio da razão suficiente, baseando-se na “experiência real”, e
não encaminhar inferências sobre o mundo interno com base no externo, ou negar
a realidade externa pela afirmação exclusiva do mundo interno. (vol. A; p. 68)
O mundo, na perspectiva do eu (ego), é definido como toda a
dimensão do não-eu, pois como experiência psicológica todo tipo de
não-eu é vivido como mundo-outro. Para o eu, tanto o mundo
externo como o interno são considerados na categoria outro; o
inconsciente é vivido pelo ego como um outro, por se constituir
essencialmente como um não-eu.
Da noção de totalidade e unidade depreende-se, também,
uma advertência importante que Jung faz no sentido de que o ser
psicológico não existe fora de seu contexto histórico, social e
cultural. O mundo interno e externo é, psicologicamente, um mundo
humano, ou seja, o mundo vivido pelo ser humano.
Por fim, a noção de unus mundus como totalidade cósmica
está referida à correspondência íntima entre ontogênese e
filogênese; entre macrocosmo e microcosmo; entre consciente e
inconsciente; entre individualidade e coletividade formando um todo.
Dinamicamente essa correspondência opera em termos de tensão e
conciliação entre polaridades através do princípio da
autorregulação.

Concepção de ser humano

Jung concebe o ser humano no plano geral como uma


totalidade que contém aspectos herdados e inatos, assim como
aspectos adquiridos pela experiência vivenciada na relação com o
mundo. Nesse sentido, ele distingue o aspecto coletivo da psique
humana de seu aspecto pessoal, este último sendo responsável
pela individualidade.
No âmbito coletivo, o “homem ‘possui’ muitas coisas que ele
não adquiriu” (vol. 4), são aspectos herdados ou inatos que
constituem a espécie humana em sua acepção mais geral e
universal.

O homem não nasceu tábula rasa, apenas nasceu inconsciente. Traz consigo
sistemas organizados e que estão prontos a funcionar numa forma especificamente
humana. (...) denominei este modelo instintivo, congênito e preexistente (...) de
arquétipo. Esta é a imagem, carregada com o dinamismo, que não podemos atribuir
a um ser humano individual. (vol. 4; 728-729)

A concepção de ser humano em termos de individualidade


está alicerçada na noção de um ser único, indivisível e complexo:
uma totalidade eco-bio-psíquico-social, resultante de um potencial
arquetípico que se atualiza num corpo biológico e num contexto
histórico e social; um microcosmo dentro do macrocosmo. “Esta
psicologia diz respeito ao homem na sua totalidade existencial,
carne e espírito ao mesmo tempo, consciente, inconsciente e
realidade histórico-cultural” (Bonaventure, [1971]1985, p. xiv). É uma
totalidade altamente complexa e paradoxal, que contém facetas
diversas e potencialidades não realizadas no entrelaçamento das
várias esferas do ser. Alerta Jung: “(...) quando agora falamos de
homem nos referimos ao todo indefinível deste, uma totalidade
inefável, que pode apenas ser formulada simbolicamente” (vol. 11;
140).
Para Jung, a totalidade humana é designada pelo termo si-
mesmo (Selbst; Self). Ele usa esse termo para se referir à
individualidade e à generalidade do ser humano: “O Self como
individua­lidade é único e singular; porém como símbolo arquetípico,
é uma imagem de deus, e portanto geral e eterno” (vol. 9/2; 116). O
si-mesmo (Self), como totalidade, representa o ser humano
primordial, original e eterno, isto é, o humano arquetípico. No âmbito
da individualidade, abarca a personalidade individual na acepção
mais essencial e abrangente possível.

O Si-Mesmo, enquanto ser humano mais abrangente, que alcança o intemporal,


corresponde à ideia do homem primordial, que é perfeitamente redondo e bissexual,
pelo fato de representar uma integração recíproca do consciente e do inconsciente.
(vol. 16; 531)

Nessa passagem, Jung faz referência ao ser primordial de


Platão, o “andrógino” que deu origem ao ser humano atual,
incompleto e imperfeito, que busca eternamente a completude
primordial. Essa busca de integração dos opostos numa totalidade é
considerada, na psicologia analítica, como processo de
individuação, a meta ideal da autorrealização constantemente
buscada. Segundo Maroni (1998), o “homem individuado” é o
homem ideal para Jung – uma utopia.
O caráter funcional do si-mesmo se revela como ordenador e
unificador dos opostos no processo de individuação, sendo então
considerado o arquétipo central organizador da psique. O conceito
de si-mesmo guarda aspectos paradoxais, os quais foram avaliados
como fonte de confusão e ambivalência (Fordham, [1963]1994) na
teoria de Jung e levou alguns autores (Fordham e Byington) à
distinção do si-mesmo como totalidade e como arquétipo central.
Pode-se supor que não tenha passado despercebida por Jung essa
paradoxalidade, a qual exprime a própria natureza limite desse
conceito, sendo uma expressão da natureza complexa e, até certo
ponto, incógnita da psique humana. “A fenomenologia psíquica do
si-mesmo é paradoxal como o conceito indiano de Atman que ora
abrange o universo, ora reside no coração como o ‘pequeno
polegar’” (vol. 14; 141).
Jaffé (1989) considera o si-mesmo como o arquétipo que
representa a “essência da totalidade psíquica” e, simultaneamente,
o núcleo mais profundo da personalidade. O si-mesmo é a melhor
definição alcançada por Jung para sua visão de ser humano, mundo
e psique em termos de totalidade/unidade original e
totalidade/diversidade dinâmica. “O si-mesmo, per definitionem
(representação dos processos psíquicos conscientes e
inconscientes), ultrapassa o alcance do conhecimento” (vol. 14/1;
59).

Realidade psíquica

Para Jung, a realidade é considerada em seu aspecto


psicológico, por isso sua concepção do real está referida à ideia de
realidade psíquica. Ellenberger (1970), assim como Samuels,
Shorter e Plaut (1988), consideram a concepção de realidade
psíquica de Jung um ponto-chave em sua teoria. Suas implicações
são decisivas para toda a construção desse paradigma. Desde o
tempo de estudante na Basileia, Jung (vol. A) defende uma
concepção ontológica não materialista e insiste na necessidade de
aliança entre princípios metafísicos e princípios físicos e de
integração, entre o âmbito interno e externo da realidade no campo
científico, principalmente nas ciências naturais.
A realidade imaterial é inegável, para Jung, da mesma forma
que a realidade da alma é irrefutável para a filosofia romântica. A
afirmação da realidade psíquica como tão real quanto a realidade
física traz uma importante contribuição de Jung à psicologia
contemporânea. Segundo Tarnas, ele “realmente atribuiu um status
de fenômenos empíricos à realidade psicológica, o que foi um
grande passo além de Kant” (2001, p. 414), dando substância à
experiência interior.
Embora Jung tenha se posicionado frontalmente contra o
materialismo, ele jamais negou a importância e o papel da realidade
material na vida psíquica. Sua crítica ao materialismo racional
estende-se igualmente à metafísica transcendental idealista. Para
Jung, a realidade em psicologia deve ser uma “realidade viva”,
realidade esta que “não é dada exclusivamente pelo produto do
comportamento real objetivo das coisas, nem pela fórmula ideal,
mas pela combinação de ambos no processo psicológico vivo” (vol.
6; 73). Nesse âmbito, a experiência sensível da coisa e a força da
ideia se integram na concepção de realidade psíquica, em que “a
psique cria a realidade todos os dias”, e “mundo interior e exterior
formam uma unidade viva”, pois, se “ao esse in intelectu falta a
realidade tangível, ao esse in re falta espírito” (vol. 6; 73).
Jung opta, por meio da concepção de realidade psíquica,
pelo esse in anima e, dessa forma, tenta superar a dissociação
tradicional da filosofia das ciências entre a perspectiva materialista e
a perspectiva idealista.

Ideia e coisa confluem na psique humana que mantém o equilíbrio entre elas. Afinal
o que seria da ideia se a psique não lhe concedesse um valor vivo? E o que seria
da coisa objetiva se a psique lhe tirasse a força determinante da impressão
sensível? O que é a realidade se não for uma realidade em nós, um esse in anima?
(vol. 6; 73)

A concepção de realidade psíquica está em estreita


correlação com os conceitos de imagem e fantasia oriundos da
filosofia romântica e compartilha as premissas da psiquiatria
dinâmica sobre a atuação inegável do psiquismo inconsciente na
vida consciente.
A noção de realidade psíquica proposta por Jung representa
a realidade do ser humano; a realidade psíquica é a síntese,
realizada no humano, da realidade física, material e corpórea com a
realidade espiritual, imaterial e abstrata.

Psique e alma

Jung, assim como Freud, muitas vezes usou de modo


intercambiável os termos Seele (alma) e psyche (psique). Seele, em
alemão, admite a acepção tanto de alma como de psique,
significando também mente no sentido psicológico. Afora
dificuldades que possam ter havido nas traduções de seus escritos,
pois o termo seele “não tem um equivalente único em inglês”
(Samuels, Shorter e Plaut, 1988), Jung utiliza o termo alma (seele)
ora como equivalente a psique, ora para referir-se à parte
inconsciente dessa psique.
Valendo-se do conceito de “almas parciais” para explicar as
múltiplas personalidades presentes nos fenômenos mediúnicos e
sonambúlicos, Jung identifica alma com inconsciente – “as almas
dos primitivos correspondem aos complexos autônomos” (vol. 8;
591). Alma também se refere à psique inconsciente, quando Jung
discute a “psicologia sem alma” e a “psicologia com alma”, sendo
esta última a psicologia do inconsciente. “Todas as ‘psicologias sem
alma’ modernas são psicologias para as quais não existe a vida
psíquica inconsciente” (vol. 8; 658). Alma é igual a psique quando
Jung diz que o objeto da psicologia, a seu ver, é a alma (vol. 8). No
caso, ele imprime um sentido específico à sua concepção de
psicologia como estudo da alma (psique) e, por conseguinte, ao que
ele entende por psique: totalidade dos processos psíquicos
conscientes e inconscientes.
Ao discutir o sentido etimológico do termo alma (Seele) e seu
correlato latino (anima), Jung associa ambos ao termo psyche, que,
por sua vez, significa alma em grego, para enfatizar o aspecto
dinâmico da psique – “a alma é uma força que move, uma força
vital” (vol. 8; 663). Nesse sentido, alma significa fonte de vida,
princípio vital – primun movens – “a alma existe antes do eu” (vol. 8;
666), ressaltando também a natureza original do inconsciente
coletivo. Jung entende a alma como psique no sentido do aspecto
imaterial (espiritual), inerente ao ser humano e intrinsecamente
associado ao aspecto material, ao defender a unidade corpo e
psique na totalidade psicológica humana: “a alma humana vive
unida ao corpo numa unidade indissolúvel” (vol. 8; 232).

Em algum lugar a alma é corpo vivo, e corpo vivo é matéria animada; de alguma
forma e em algum lugar existe uma irreconhecível unidade de psique e corpo que
precisaria ser pesquisada psíquica e fisicamente, isto é, tal unidade deveria ser
considerada pelo pesquisador como dependente tanto do corpo como da psique.
(vol. 6; 1031)

O termo alma é utilizado por Jung em sentidos diversos ao


longo de sua obra, dando margem a mal-entendidos e
ambivalências quanto à identidade ou não entre alma e psique. Jung
esclarece a distinção conceitual entre alma e psique da seguinte
forma:

No decorrer de minhas investigações sobre a estrutura do inconsciente fui obrigado


a fazer uma distinção conceitual entre alma e psique. Por psique entendo a
totalidade dos processos psíquicos, tanto conscientes como inconscientes. Por
alma, porém, entendo um complexo determinado e limitado de funções que
poderíamos caracterizar melhor como “personalidade”. (vol. 6; 752)

Ao distinguir alma de psique e associar este último com


personalidade, Jung relaciona a alma à personalidade interna,
inicialmente se referindo ao inconsciente e mais tarde definida pelo
termo anima, enquanto a personalidade externa será designada
pelo termo persona.

Assim como a experiência diária nos autoriza a falar de uma personalidade externa,
também nos autoriza a aceitar a existência de uma personalidade interna. (...)
denomino persona a atitude externa, o caráter externo; e a atitude interna denomino
alma, anima. (vol. 6; 758)

Apesar das polêmicas sobre o significado atribuído por Jung


ao termo alma, verifica-se que este se refere, preferencialmente, à
dimensão inconsciente da psique em seu vocabulário.
Personalidade é um termo menos usado por Jung, tendo sido
substituído por individualidade ou indivíduo, referindo à pessoa
humana em sua totalidade consciente e inconsciente. Dimensão
psíquica expressa mais adequadamente o que se entende por
psique na psicologia analítica. A psique abrange estruturas
conscientes e inconscientes que funcionam de modo característico.
Samuels, Shorter e Plaut (1988, p. 179) sugerem que “há
uma tensão nas ideias de Jung sobre estrutura e dinâmica”. De fato,
em suas definições conceituais, o aspecto estrutural e o dinâmico se
entrelaçam, e um não pode ser compreendido sem o outro, devido à
noção de processo que permeia toda a sua proposta. O aspecto
dinâmico do psiquismo tem suas origens na dialética kantiana, em
sua noção de processo, de tensão entre opostos, de contradições e
de paradoxos, que resultam numa concepção de ser e mundo em
constante transformação. Esse fundamento ontológico tem reflexos
na epistemologia e no método junguiano, como será visto mais
adiante.
Estruturalmente, a dimensão psíquica compreende dois
níveis: um coletivo e outro individual. A psique coletiva, também
denominada psique objetiva por seu caráter impessoal, refere-se ao
âmbito do inconsciente coletivo e dos arquétipos. A psique pessoal
ou subjetiva, em razão de suas particularidades individuais, abarca
o inconsciente pessoal, a consciência e os complexos. A
consciência coletiva como mundo – sócio-histórico-cultural – faz
parte da psique coletiva, uma vez que todos os seres estão imersos
na dimensão coletiva, consciente e inconsciente.
Funcionalmente, o psiquismo opera regido pelo mecanismo
compensatório da autorregulação. A dinâmica consciente—
inconsciente é movida pela tensão energética que constantemente
se produz entre as polaridades e a busca de integração dos
opostos. Dessa forma, o psiquismo flui regido por causas (tensão) e
finalidades (integração), simultânea e constantemente.

Como a psique é o ponto de intersecção (entre o individual e o universal; entre


causa e finalidade), ela precisa ser definida tendo em vista ambos os aspectos. De
um lado, ela oferece um quadro de tudo o que passou e, na medida em que a
própria alma gera o futuro, ela apresenta também um quadro do conhecimento do
germe de tudo que está por vir. (vol. 3; 404)

A psique constitui a área de interesse da psicologia analítica.


A dimensão psíquica está delimitada, por um lado, pelo plano do
instinto biológico e, por outro, pelo plano espiritual. Jung postula
uma dimensão psicoide situada na fronteira entre o psíquico e o não
psíquico. Essa fronteira psicoide, segundo Stein (2000), define o
limiar entre o cognoscível e o incognoscível. O processo de
“psiquificação” (Jung, vol. 8) transforma em psíquico os conteúdos
não psíquicos situados na área psicoide. Assim, o campo
epistemológico da psicologia analítica é delimitado mais
precisamente com a definição dessa fronteira psicoide. De acordo
com Stein (2000), um conteúdo “psiquificado” passa da esfera
incognoscível para o campo do desconhecido (psique inconsciente),
podendo então se dirigir para o campo do conhecimento
(consciência do ego). Jung localiza o arquétipo psicoide, com suas
polaridades instintivas e espirituais, nessa área psicoide. A noção de
tal arquétipo resulta das inúmeras reflexões e reformulações feitas
por Jung na tentativa de explicitar e definir o conceito de arquétipo,
a pedra de toque de sua psicologia.

Inconsciente coletivo e arquétipo. Inconsciente pessoal e complexo


Cumpre salientar a importância do postulado do inconsciente
na perspectiva ontológica do paradigma junguiano. A noção de
inconsciente está na origem e na base ontológica de sua teoria.
Para Jung, o inconsciente constitui um postulado, em sua
visão de ser humano e de mundo, colocado desde o início em seus
estudos e pesquisas psicológicas. Toda sua obra se desenvolve
tendo por base o princípio do inconsciente, que passa a ser uma
hipótese teórica a ser investigada. O modelo junguiano se constrói
baseado na questão epistemológica das possibilidades e limites do
conhecimento do inconsciente e na busca de um modo (método) de
acessar e compreender o inconsciente.

Muito antes de conhecer Freud, eu considerava o inconsciente – da mesma forma


que os sonhos, sua expressão imediata – como um processo natural, desprovido de
qualquer arbitrariedade e, acima de tudo, de qualquer intenção de prestidigitação.
(Jung, [1961]1981, p. 145)

O inconsciente está na base de sua teoria, uma vez que


caracteriza sua epistemologia e método. “Jung foi o primeiro a
descobrir a espontaneidade criativa da psique inconsciente e a
segui-la conscientemente” (Von Franz, [1975]1992, p. 12). Do ponto
de vista científico, Jung argumenta em favor da hipótese do
inconsciente pela observação de seus efeitos na consciência: “A
probabilidade da existência de uma psique inconsciente talvez seja
comparável à de um planeta que ainda não se descobriu, mas de
cuja existência se suspeita devido às interferências em uma órbita
planetária conhecida” (vol. 16; 204).
O inconsciente passa a ser uma hipótese teórica cuja
“investigação é uma exigência” da psicologia, porquanto não é
possível atribuir as perturbações da psique exclusivamente a
alguma alteração orgânica ou ao processo consciente; é preciso
“recorrer a um terceiro fator” (vol. 8) – o inconsciente. E acrescenta
Jung: “(...) qualifico os processos inconscientes de ‘hipotéticos’,
porque o inconsciente, por definição, não é acessível à observação
direta” (vol. 8; 356, nota 12).
De acordo com Stein (2000), à medida que aprofunda suas
investigações com material inconsciente, Jung foi levado a teorizar a
respeito de algumas estruturas gerais da psique humana,
pertencentes a todos os seres humanos. Jung propõe, assim, a
distinção de três níveis da psique, a saber: consciência,
inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. Este último é
considerado o “elemento inicial, do qual brotaria a condição
consciente” (vol. 8), é um fator primário que está na origem da
psique e se refere à camada mais profunda da psique – o
inconsciente coletivo –, cujos conteúdos consistem nas estruturas
gerais da psique, como uma espécie de “combinação de padrões e
forças universalmente predominantes” (Stein, 2000, 83),
denominados arquétipos.
A definição de inconsciente coletivo e arquétipo é uma das
marcas mais distintivas da psicologia analítica, tendo suscitado
polêmicas e críticas frequentes. Segundo Stein, com a teoria do
inconsciente coletivo e dos arquétipos, Jung realizou uma das suas
contribuições mais originais à psicologia. A distinção entre
inconsciente coletivo e pessoal esclarece uma questão fundamental,
qual seja: o inconsciente como epifenômeno da consciência advindo
das repressões, e o inconsciente como matriz criadora autônoma da
vida psíquica normal (Von Franz, [1975]1992). O aspecto criativo do
inconsciente coletivo é sua característica mais marcante, que Jung
(vol. 8) denomina de “aspecto positivo” do inconsciente, em
distinção ao inconsciente pessoal, que é um fator secundário, sendo
mais reativo do que criativo em relação à consciência. Os conteúdos
do inconsciente coletivo são os arquétipos, que podem ser definidos
como potencialidades inatas a serem realizadas.
Os conteúdos do inconsciente pessoal são os complexos
inconscientes – constelações energéticas de material reprimido e/ou
esquecido pela consciência. A conexão entre a psique coletiva e a
psique pessoal se dá no complexo. O complexo é composto de um
núcleo central de caráter arquetípico e uma “concha” ou corpo,
formado pelas constelações energéticas (associações pessoais)
relativas ao tema do núcleo. As vivências existenciais pessoais não
assimiladas pela consciência agrupam-se em torno do núcleo
arquetípico, formando o corpo do complexo. Toda experiência
vivencial ativa um arquétipo correspondente e agrega energia
associada ao tema do arquétipo e às experiências pessoais. Dessa
forma, o complexo é a estrutura básica da psique pessoal e o ponto
de conexão entre o potencial arquetípico e as características
psíquicas adquiridas na vida individual.
Apesar das críticas, Jung insistiu na concepção de um
inconsciente anterior à consciência, como um aspecto da psique de
caráter universal e natural, e dedicou-se a rever e reformular essa
proposição, a fim de esclarecê-la. Suas tentativas de esclarecer
esses conceitos o levaram a intensificar suas investigações, no
intuito de encontrar paralelos dessa ideia em outras áreas de
conhecimento e buscar evidências dessa realidade coletiva que
dessem sustentabilidade à hipótese do inconsciente coletivo e dos
arquétipos.
As sucessivas tentativas de explicitar a noção de arquétipo
levaram Jung a buscar inúmeras analogias para essa noção, desde
as imagens eternas de Platão; o numen divino de Paracelso; as
centelhas divinas; as mônadas; as ideias inatas de Adolf Bastian,
até os padrões instintivos de comportamento. Fez extensas
explanações sobre a relação entre os arquétipos e os instintos,
considerando que estes formam analogias muito próximas àqueles,
tão próximas que há razões para se supor que os arquétipos sejam
“as imagens inconscientes dos instintos em si” (vol. 8).

A hipótese do inconsciente coletivo é, portanto, não mais ousada do que assumir


que há instintos. Admite-se prontamente que a atividade humana é influenciada em
alto grau pelos instintos, absolutamente apartada das motivações racionais da
mente consciente. Assim, se é feita a asserção de que nossa imaginação,
percepção e pensamento são igualmente influenciados por elementos formais
inatos e universalmente presentes, parece-me que uma inteligência normal pode
descobrir nesta ideia apenas tanto ou tão pouco misticismo quanto na teoria dos
instintos. Embora esta desaprovação do misticismo tenha sido frequentemente
dirigida ao meu conceito, eu devo enfatizar ainda que o conceito de inconsciente
coletivo não é uma questão especulativa, nem filosófica, mas um assunto empírico.
A questão é simplesmente essa: existe ou não existe inconsciente, formas
universais deste tipo? Se elas existem, então há uma região da psique que se pode
chamar inconsciente coletivo. (vol. 9/1; 92)

Quando Jung afirma que “o inconsciente não se identifica


simplesmente com o desconhecido; é antes o psíquico
desconhecido” (vol. 8; 123), ele enfatiza não apenas o caráter
psicológico do desconhecido, mas sobretudo a natureza absoluta
desse desconhecido, que jamais esteve na consciência; em
contrapartida, “os elementos do inconsciente pessoal são
relativamente inconscientes”, pois já estiveram na consciência e têm
relativa facilidade para ali retornarem. Dinamicamente, essa é a
distinção fundamental entre o inconsciente coletivo e o inconsciente
pessoal.

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode ser negativamente distinta
do inconsciente pessoal pelo fato de que ela não deve sua existência à experiência
pessoal, como este último e, consequentemente, não é uma aquisição pessoal. (vol.
9; 88)

A distinção que Jung faz do arquétipo em si e da


manifestação arquetípica é fundamental para distinguirmos entre
constructo teórico limite (arquétipo), que fica fora da experiência
observável e, portanto, fora dos limites do conhecimento
(consciência), e as manifestações dessa entidade teórica, que são
acessíveis à consciência e, por isso, passíveis de observação e
conhecimento. De acordo com Jaffé, a distinção entre o conteúdo
arquetípico na consciência e o arquétipo em si “caracteriza o
fundamento epistemológico da obra de Jung desde os seus
primórdios” (1989, p. 42).
Cabe mais uma vez sublinhar a importância da distinção
entre a esfera psíquica e psicoide do arquétipo. Essa proposição
tem valor epistemológico fundamental no paradigma junguiano. O
arquétipo psicoide situa-se epistemologicamente fora do campo
psíquico, e nesse sentido pode ser definido como dado a priori e
fundante do psiquismo. Pelo processo de psiquificação, o arquétipo
passa a fazer parte da dimensão psíquica.
Mais adiante, as implicações epistemológicas derivadas das
noções ontológicas de arquétipo e inconsciente coletivo do
paradigma junguiano serão esclarecidas e discutidas
detalhadamente.

Dimensão simbólica
O caráter simbólico atribuído ao ser humano por Jung está
presente também na concepção de ser e mundo de Ernst Cassirer
(1874-1945). Sua perspectiva simbólica pode ser considerada a
contrapartida filosófica da psicologia de Jung (Clarke, 1993). A
filosofia das formas simbólicas de Cassirer parte do pressuposto de
que, se existe alguma definição da natureza ou essência do homem,
esta só pode ser compreendida como funcional e não substancial. A
marca distintiva do ser humano é sua produção e sua criatividade
incomparáveis. As manifestações humanas expressam a natureza
simbólica do humano. O filósofo e antropólogo alemão,
contemporâneo de Jung, Ernst Cassirer define o ser humano como
“animal symbolicum” que vive num “universo simbólico” – uma nova
dimensão de realidade –, a dimensão simbólica. Ele considera o ser
humano um ser essencialmente simbólico, que, “não estando mais
num universo meramente físico, (...) vive em um universo simbólico”
([1944]1997), p. 48).
Para Jung, como também para Cassirer, o mundo da
experiência humana compartilhada não é um mundo que guarda
verdades à espera de serem descobertas ou mesmo
compreendidas, posto que a realidade é permeada pela dimensão
simbólica e, como tal, pode ser conhecida (Clarke, 1993). A
dimensão simbólica, na psicologia analítica, é a própria realidade
psíquica, pois “tudo aquilo que tocamos ou com que entramos em
contato transforma-se imediatamente em conteúdo psíquico, de
modo que somos isolados por um mundo de imagens psíquicas”
(Jung, Letters 1, 1991, p. 255). Por um lado, o limite do
conhecimento se situa na psique e não no sensível e, por outro lado,
o limite não está estritamente no individual, pois o aspecto
arquetípico coletivo e simbólico da psique torna o mundo
compartilhado por todos os membros da espécie humana. Dessa
forma, não se pode, a rigor, falar em isolamento em mundos
privados individuais, uma vez que o estrato coletivo da psique
proporciona um certo nível de partilha no âmbito coletivo, do
inconsciente e da cultura.
Clarke, ao discutir as denominações tradicionais para as
escolas filosóficas de “idealista” ou “materialista”, pondera que é
possível “perguntar se o mundo fora desse contexto simbólico é
‘realmente’ matéria ou ‘realmente’ espírito” (1993, p. 56). Entretanto,
essas especulações, para Jung, são consideradas totalmente
infrutíferas, uma vez que o mundo e o ser humano são abordados,
em sua psicologia, na perspectiva psicológica que integra espírito e
matéria.
A concepção de mundo e de ser humano da psicologia
analítica é de um ser simbólico que vive numa dimensão simbólica.
Tal dimensão abarca os aspectos biológicos, ambientais, culturais
(sócio-históricos) e psicológicos do ser humano. A concepção do ser
humano como ser simbólico e do mundo humano como a dimensão
simbólica em que este está psicologicamente inserido define a
própria dimensão psicológica do paradigma junguiano. A realidade
psíquica postulada por Jung traduz-se nessa dimensão psicológica
de caráter fundamentalmente simbólico. O valor epistemológico e
metodológico do conceito de símbolo tem alta relevância na
compreensão do paradigma como um todo. A dimensão psíquica
como uma dimensão simbólica integra e sintetiza aspectos coletivos
e individuais do ser humano. “A natureza simbólica do ser humano
já se encontra entre as relíquias do homem pré-histórico” (vol. 6;
449).

Perspectiva epistemológica
Por epistemologia entende-se o estudo crítico dos princípios,
hipóteses e resultados de diversas ciências (Lalande, 1938). Nesse
sentido, é estreita a correlação entre epistemologia, filosofia da
ciência e teoria do conhecimento. De modo geral, a epistemologia
refere-se ao estudo dos fundamentos, origem, natureza, valor e
limites do conhecimento no âmbito de um modelo científico ou
filosófico. A questão epistemológica está intimamente relacionada
às concepções ontológicas do paradigma e mantém ainda estreita
conexão com a proposta metodológica, sendo, às vezes, difícil
distinguir seus limites, exceto pelo aspecto da aplicação dos
pressupostos epistemológicos à prática, esses mais ligados à
metodologia.
Segundo Japiassu metodologia e epistemologia estão
intimamente relacionadas, pois “a metodologia não tem um fim em si
mesma, ela é apenas um meio para se atingir determinado fim”
(1975, p. 22).
A perspectiva epistemológica de um paradigma, segundo
Denzin e Lincoln (1998), discute questões relativas ao valor e aos
limites do conhecimento. De acordo com as considerações atuais
sobre método, este está em associação direta com a epistemologia,
pois, de outra forma, torna-se estéril. A epistemologia pergunta
como o mundo é conhecido e qual é a relação entre o conhecedor e
o conhecido. O processo de produção de conhecimento decorre
diretamente da concepção de mundo assumida pelo paradigma e
encaminha o método de investigá-lo.
No paradigma junguiano, epistemologia e método estão de tal
modo intrincados que é muito difícil discuti-los separadamente. No
entanto, vale a pena tentar, mesmo que se incorra no risco de ser
repetitivo e/ou redutivo. “Jung, embora metafisicamente mais flexível
do que Freud, era epistemologicamente mais exigente; durante toda
sua vida afirmou repetidamente os limites epistemológicos
fundamentais de suas próprias teorias” (Tarnas, 2001, p. 413).
Em sua obra, Jung discute, extensa e detalhadamente, as
premissas epistemológicas da psicologia analítica. Demonstra preo-­
cupação com as especificidades da psicologia como uma ciência
nova e as particularidades de seu objeto de estudo, sobretudo
quanto à necessidade de clareza e precisão conceitual.

Pode parecer supérfluo ao leitor que acrescente ao texto de minha pesquisa um


capítulo especial de definições de conceitos. Contudo, é grande minha experiência
para comprovar que, exatamente em trabalhos psicológicos, todo cuidado com
expressões e conceitos nunca é demasiado, pois é no campo da psicologia, como
em nenhum outro, que aparecem as maiores variações de conceitos e que
ocasionam, muitas vezes, os piores mal-entendidos. Este inconveniente não parece
provir apenas do fato de ser a psicologia uma ciência nova, mas também porque o
material experimental, o material da reflexão científica não pode ser oferecido
concretamente aos olhos do leitor. (vol. 6; 741)
(...) temos que recorrer a conceitos bem seguros. Para chegar a esses conceitos, é
necessário o trabalho de muitos, uma espécie de consensus gentium (consenso
dos povos). Como isto não é possível sem mais, é preciso, ao menos, que o
pesquisador individual se esforce em dar aos seus conceitos solidez e precisão, o
que pode ser feito discutindo o sentido em que emprega o conceito, de modo que
todos estejam em condições de entender o que pretende exprimir. (vol. 6; 743)

Não obstante, tais preocupações, Jung foi bastante criticado


por falta de clareza, ambivalência e incoerência em relação aos
seus conceitos, que não passaram despercebidos por seus críticos
nem mesmo por seus seguidores. As primeiras críticas vieram de
Freud, que qualificou as opiniões de Jung como “obscuras,
ininteligíveis e confusas” ([1914]1972, p. 1926). Dentre seus
seguidores, Jaffé admite que “não pode escapar ao leitor atento que
a aplicação de conceitos e terminologia nem sempre foi
desenvolvida de modo coerente, e surgem contradições e
obscuridades ocasionais” (1989, p. 27). O próprio Jung, em várias
ocasiões, reconhece sua dificuldade de sistematização, o que gera
uma “aparente falta de cuidado e nebulosidade de meus próprios
conceitos” (vol. 18; 1732).
Clarke, a esse respeito, qualifica Jung como um pensador de
problemas e não um pensador de sistemas. O pensador de
problemas “interessa-se mais em experimentar diferentes ideias e
em explorar diferentes caminhos (...) do que chegar a uma solução”
(1993, p. 40). Na categoria de pensadores de problemas, Clarke
inclui Platão, Kierkegaard, Nietzsche e Wittgenstein, além de Jung.
Pode-se acrescentar a essa característica – pensador de problemas
– a preocupação inicial e constante de Jung na elaboração de seu
modelo com a meta principal de trabalhar com seus pacientes, ou
seja, seu ponto de partida residia nos problemas práticos que
enfrentava, os quais o levavam a sucessivas tentativas de aplicação
prática, em busca de um modo de conhecer e compreender o ser
humano psicologicamente.
Para Stein (2000), ele não era um pensador sistemático, mas
certamente era um ambicioso, e sua ambição o impelia a avançar
para além do conhecimento científico de seu tempo, correndo o
risco de ser criticado e não compreendido.
Clarke (1993) conclui pela coerência e unidade geral do
sistema junguiano, ainda que elas não resultem de um
encadeamento lógico sequencial e de um desenvolvimento
sistemático das ideias. Diversidade e complexidade parecem ser as
marcas principais do pensamento junguiano, que jamais teve a
pretensão de dar uma visão acabada, definitiva ou verdadeira da
psique humana.
Papadopulos (2006), por sua vez, sublinha a sensibilidade
epistemológica de Jung na construção de seu paradigma
As revisões e reformulações de conceitos e método que Jung
empreendeu em seus textos, ao longo de sua vida, denotam sua
atenção para com a coerência e a consistência de sua proposta. O
exemplo mais marcante disso são as diversas reformulações no
conceito de arquétipo ao longo de mais de quarenta anos, que
culminaram na concepção de arquétipo psicoide. Esse reparo foi
necessário a fim de que o campo epistemológico da psicologia
analítica fosse delimitado com a maior precisão possível para um
objeto de estudo tão pouco delimitável.
Mais uma vez, é importante destacar que o caráter orgânico e
dinâmico do paradigma junguiano requer do estudioso da psicologia
analítica uma atenção minuciosa às inúmeras reformulações que
Jung fez de seus conceitos a fim de serem evitadas compreensões
redutivas ou equivocadas de seus conceitos básicos.

Sobre conhecimento

A discussão da perspectiva epistemológica do paradigma


junguiano começa pela definição de conhecimento na psicologia
analítica – sua origem; sua natureza e seu valor –, a fim de que se
possa observar e discutir como esse conhecimento é produzido e
manejado em termos de possibilidades e limites do conhecimento
na visão junguiana.
Conhecimento em psicologia analítica é equivalente a
consciência. Conhecimento e autoconhecimento são inseparáveis.
Essa inseparabilidade tem origem na filosofia grega. Desde Platão e
Aristóteles, até os dias atuais, o conhecimento do mundo e de si
mesmo estão interligados, embora essa relação tenha apresentado
diferentes graus e formas de associação nos diferentes sistemas
epistemológicos ao longo da história do conhecimento ocidental.
De acordo com Cassirer ([1944]1997), o conhecimento de si
próprio é uma das preocupações mais antigas e fundamentais do
ser humano e precede o conhecimento do mundo. A máxima
“Conhece-te a ti mesmo”, para Cassirer, é um imperativo categórico
– “uma obrigação fundamental do homem” –; para Jung, é um
impulso arquetípico que se atualiza na consciência do ego.
De acordo com Jung, o conhecimento é fruto de um processo
dinâmico que se estende por toda a existência do ser humano e
acompanha toda a história da humanidade. O conhecimento
humano é limitado pelas possibilidades da consciência de acessar
os conteúdos do inconsciente e assimilar as experiências vividas no
mundo externo. Todavia, a capacidade de conhecer do ser humano
não se esgota enquanto houver uma consciência viva.

Todos os nossos conhecimentos devem ser incompletos, em proporção que é


impossível determinar (...), pois o inconsciente é inesgotável, por outro lado, a
própria infinitude do inconsciente incentiva a inquietação pelo conhecimento. (vol. 8;
358)
(...) o conhecimento em geral é o resultado de uma espécie de ordem imposta às
reações do sistema psíquico que fluem para a consciência. (vol. 8; 362)

O impulso arquetípico que está na base da busca pelo


conhecimento é incentivado também pelas circunstâncias
ambientais, e ambos movem a humanidade para suas realizações.
A tendência natural para o conhecimento no ser humano está
estreitamente relacionada à busca de sentido na vida. Para Jung, a
neurose deve ser compreendida como uma expressão do sofrimento
da psique quando esta não consegue “descobrir o seu sentido” (vol.
11). Nesses termos, a concepção de conhecimento, no paradigma
junguiano, refere-se a um conhecimento significativo que tem por
finalidade a compreensão do sentido da vida.
As teorias do conhecimento consideram, hoje, relevante a
validade do conhecimento buscado e alcançado pelas teorias
científicas. Conhecimento válido é o conhecimento que faz sentido
num determinado contexto e época. É aquele que tem um alto valor
simbólico para uma dada comunidade humana.
O desafio epistemológico, para Jung, concentra-se na
possibilidade de conhecimento do inconsciente por parte da
consciência. Trata-se de uma epistemologia que aborda o
conhecimento em seu aspecto essencialmente psicológico. A
consciência é a sede do conhecimento e a promotora de
conhecimento; dessa forma, é importante compreender as
características e funções da consciência no paradigma junguiano, a
fim de que se possa delinear as possibilidades e os limites do
conhecimento nesse paradigma.

Origem, limites e funções da consciência


A consciência como sede do conhecimento é limitada, de um
lado, pelo inconsciente e, de outro, pelo mundo. O alargamento do
campo da consciência equivale ao aumento de conhecimento, e isso
se dá pela integração de conteúdos inconscientes e,
simultaneamente, pela incorporação de aspectos do mundo externo.
A origem da consciência na psicologia analítica é arquetípica,
por conseguinte a origem da busca de conhecimento é também
arquetípica – um impulso para o conhecimento que é inerente ao ser
humano.
A psique contém em si o potencial para formar ego. A
potência criadora é o arquétipo. Os elementos propiciadores,
indispensáveis para o surgimento do eu consciente, são corpo e
mundo; quanto às circunstâncias favorecedoras à constelação
gradual e crescente do complexo do ego e seu campo de atração –
a consciência –, verifica-se um intrincado entrelaçamento dinâmico
dos aspectos acima citados (arquétipo, corpo e mundo). “A
consciência do eu parece depender de dois fatores: em primeiro
lugar, depende das condições da consciência coletiva, isto é, social;
em segundo lugar, depende dos arquétipos do inconsciente coletivo”
(vol. 8; 154).
O conjunto, formado pelo complexo do eu e seu campo
energético, a consciência, é denominado sistema ego-consciência,
uma vez que nada que faça parte da consciência deixa de manter
conexão com o ego.

O termo ego refere-se ao eu consciente. Ou seja, diz respeito a tudo que sabemos
sobre nós mesmos; tudo aquilo que consideramos como sendo “eu”. Longe de se
tratar de algo simples, é algo altamente complexo. Entrelaçado com as
possibilidades arquetípicas do inconsciente coletivo e as vivências pessoais
existenciais oriundas do ambiente externo, o ego forma-se, constela-se e funciona”.
(Penna, 1998b)

Como um subsistema na totalidade, ego e consciência são


fatores secundários, oriundos de um fator primário, o inconsciente
coletivo: “a consciência é filogenética e ontogeneticamente
secundária” (Jung, [1961]1981, p. 300).
Esse sistema está contido num sistema maior, que abrange a
psique em sua totalidade (consciente e inconsciente pessoal e
coletivo). Dessa forma, entre a totalidade (Self—si-mesmo) e o
complexo ego-consciência se estabelece uma relação dinâmica de
trocas energéticas.

A consciência não encerra a totalidade do homem, pois esta é constituída, de um


lado, de seus conteúdos conscientes e, do outro, por seu inconsciente, cuja
extensão é ignorada e cujos limites não sabemos até onde vão. A consciência está
contida nesta totalidade, tal como um círculo menor em outro mais extenso. (vol. 11;
390)

Segundo Bonaventure ([1971]1985), o que distingue a


psicologia analítica de outras é a mudança do centro da psique, do
ego para o si-mesmo, e a dialética incessante entre ambos. O
conhecimento do ego é resultante, em grande parte, da relação
estabelecida entre o ego e o si-mesmo, o qual, como “pré-figuração
inconsciente do ego” (vol. 11), contém as potencialidades que serão
realizadas pelo ego após ativação de núcleos arquetípicos na vida
existencial.
Para descrever a relação entre ego e si-mesmo, Jung se
utilizou de diversas analogias, pois se trata de uma relação que não
é passível de observação sensível, podendo ser apenas inferida por
meio de suas manifestações simbólicas. Diz Jung que: “O ego está
para o Self assim como o movido está para o movente” (vol. 11;
391); “O Self está para o ego, assim como o sol está para a terra”
(vol. 7; 400).
Considerando-se os limites da consciência, de um lado o
inconsciente e de outro o mundo, dinamicamente a consciência
mantém um sistema de relações com essas duas dimensões ou
âmbitos em que a consciência se situa. Como agente do
conhecimento, a consciência tem capacidade de conhecer o
inconsciente e o mundo e, para tal, dispõe de meios para fazer
conexão com esses âmbitos, tendo em vista o conhecimento
pretendido. Jung denominou funções ectopsíquicas da consciência
os canais pelos quais o sistema ego-cons­ciência se relaciona com o
mundo externo.
As funções da consciência são equipamentos egoicos de
acesso ao ambiente que possibilitam o conhecimento. As funções
ectopsíquicas são quatro, dispostas em pares opostos: pensamento
—sentimento e sensação—intuição. Por meio de cada uma dessas
funções, o ego acessa a realidade de um ponto de vista ou de uma
perspectiva específica. Ou seja, por meio do pensamento, as coisas
do mundo são conhecidas do ponto de vista cognitivo, intelectual e
racional. Do ponto de vista do sentimento, o conhecimento é
formulado na perspectiva de seus valores. A função sentimento
disponibiliza ao ego a avaliação do objeto a ser conhecido. O ponto
de vista da sensação diz respeito ao conhecimento pelo viés
sensoperceptivo. A intuição, por sua vez, é uma forma de abordar a
realidade em seus aspectos amplos e sintéticos, para além de seus
detalhes físicos e concretos, configurando uma perspectiva mais
teórica e abstrata do conhecimento.
A formulação desses pontos de vista do conhecimento
constitui, epistemologicamente, tanto as diferentes possibilidades de
conhecimento como alguns limites da consciência conhecedora. As
funções da consciência dizem também das formas de abordar os
objetos a serem conhecidos. Diferentes formas de abordagem dos
eventos resultam em diferentes pontos de vista sobre o fenômeno
observado e, ao mesmo tempo, constituem perspectivas diversas de
observação dos fenômenos. Dessa forma, as funções conhecedoras
da consciência (pensamento, sentimento, sensação e intuição) têm
papel altamente relevante nas possibilidades e nos limites do
conhecimento na epistemologia junguiana.

Processo de individuação, conhecimento e autoconhecimento


O conceito de processo de individuação é altamente
relevante na epistemologia junguiana. O termo individuação é
familiar a Jung graças à filosofia de Von Hartmann. A ideia de um
processo movido por demandas inconscientes rumo à complexidade
crescente da personalidade já está esboçada em suas conclusões
sobre a psicologia da médium, observada por ele em 1902 (vol. 1).
Em Mysterium coniunctionis (vol. 14), a obra que Jung nomeia como
a síntese conclusiva de sua jornada, o tema principal é a integração
dos opostos como a finalidade última do processo de individuação.
A aquisição de conhecimento, na psicologia analítica,
equivale ao processo de ampliação da consciência; esse processo é
denominado por Jung “processo de individuação” – um processo
gradual e constante de integrar aspectos do inconsciente à
consciência e simultaneamente integrar-se à comunidade humana.
“A individuação é o tornar-se um consigo mesmo, e ao mesmo
tempo com a humanidade toda, em que também nos incluímos” (vol.
16; 227).
A principal meta do processo de individuação é a construção
da individualidade integral através de um caminho em que cada
indivíduo “se torna aquilo que de fato é” (vol. 16; 11). O que ele
expressa é o desenvolvimento da personalidade individual.
Neumann foi o primeiro junguiano a descrever esse mesmo
processo na história da humanidade. A consciência individual e a
consciência coletiva seguem passos arquetípicos análogos em seu
processo de desenvolvimento.

No curso de seu desenvolvimento ontogenético, a consciência egoica individual tem


que passar pelos mesmos estágios arquetípicos que determinaram a evolução da
consciência na vida da humanidade. O indivíduo, em sua própria vida, tem que
seguir o caminho que a humanidade trilhou antes dele (...). ([1949]1989, p. xvi)

No processo de individuação, realiza-se a integração do eu


com as demandas arquetípicas e, ainda, com as necessidades e
exigências do mundo externo. “A individuação consiste,
basicamente, em tentativas, constantemente renovadas e exigidas,
de combinar as imagens interiores com a experiência exterior”
(Jaffé, 1989, p. 79). Jaffé reafirma a dialética do processo de
individuação apontada por Jung; a integração
consciente/inconsciente e indivíduo/mundo que a psicologia
analítica propõe como ponte epistemológica entre o mundo interno e
o mundo externo, entre a realidade imaterial e a realidade material,
e entre psique e mundo.
Como aponta Jung, “O processo de individuação possui dois
aspectos principais: por um lado, é um processo interno e subjetivo
de integração, mas, por outro, é um processo indispensável ao
relacionamento objetivo” (vol. 16 p. 249). Mas o conceito de indivi-­
dua­ção foi criticado como uma proposta na direção do
individualismo e do isolamento egocêntrico que despreza a relação
do indivíduo com a sociedade. Essa crítica parece ser fruto de uma
apreciação não apenas parcial e incompleta do conceito de
individuação, mas também equivocada.

Muito embora a tomada de consciência da individualidade possa corresponder ao


destino natural do ser humano, ela não é o fim último. Isso porque não é possível
que o objetivo da educação do homem se reduza a produzir um conglomerado
anárquico de existências individuais. Isso equivaleria a um ideal confesso de
extremado individualismo (...) o processo natural de individuação produz uma
consciência do que seja a comunidade humana, porque traz justamente à
consciência o inconsciente, que é o que une todos os homens e é comum a todos
os homens. (vol. 16; 227)

O processo de individuação, ao promover a integração de


conteúdos inconscientes à consciência, através de seus aspectos
arquetípicos, torna o mundo compartilhado por todos os membros
da espécie humana. Dessa forma, não se pode falar em isolamento
em mundos privados individuais, uma vez que o estrato coletivo da
psique proporciona um nível de partilha entre os membros da
comunidade humana no âmbito coletivo, do inconsciente e da
cultura.

Possibilidades e limites do conhecimento do inconsciente


A possibilidade de acessar os elementos do mundo
subjacente repousa na hipótese de que esses se expressam na
realidade manifesta. De acordo com Cassirer, a única forma de
conhecer o ser humano é através de suas manifestações e, para
isso, esse autor propõe que sejam estudadas e pesquisadas as
manifestações humanas em suas diversas formas (mito, religião,
arte, história e ciência), pois “são os variados fios que tecem a rede
simbólica da experiência humana” ([1944]1997, p. 48). Do ponto de
vista individual, o conhecimento do ser humano se dá através de
suas manifestações subjetivas – sonhos, fantasias, sintomas ou
comportamentos.
“O sintoma visível e observável é como que o ‘broto que
surge na superfície da terra’, mas a planta mesma se assemelha a
um extenso rizoma subterrâneo (...) se conseguirmos penetrar no
rizoma, teremos alcançado, literalmente a raiz da enfermidade” (vol.
11; 37). Quando Jung diz que o sintoma visível e observável é como
o “broto que surge na superfície da terra”, mas a “planta mesma se
assemelha a um extenso rizoma subterrâneo”, podemos ver seu
método de investigação psicológica sendo delineado. A apreensão
do “broto que surge na superfície da terra” visa à compreensão da
realidade subjacente que interfere e compromete a realidade
explícita, ou seja, a compreensão e consequente intervenção
psicoterapêutica depende daquilo que subjaz ao sintoma.
Do ponto de vista coletivo, o conhecimento resulta da
observação e compreensão das manifestações humanas coletivas
(culturais), tais como mitologia, folclore, arte, ciência, eventos
históricos e sociais.
Jung propõe que o inconsciente, apesar de não ser acessível
à observação direta, pode ser observado, de modo indireto, por
suas manifestações na consciência individual ou coletiva:

A psicologia como ciência relaciona-se, em primeiro lugar, com a consciência; a


seguir, ela trata dos produtos do que chamamos psique inconsciente, que não pode
ser diretamente explorada por estar a um nível desconhecido, ao qual não temos
acesso. O único meio de que dispomos, neste caso, é tratar os produtos
conscientes de uma realidade, que supomos originários do campo inconsciente,
esse campo de “representações obscuras” ao qual Kant, em sua Antropologia, se
refere como sendo um mundo pela metade. Tudo que conhecemos a respeito do
inconsciente foi-nos transmitido pelo próprio consciente. A psique inconsciente, cuja
natureza é completamente desconhecida, sempre se exprime através de elementos
conscientes, sendo esse o único elemento fornecedor de dados para nossa ação.
Não se pode ir além desse ponto, e não nos devemos esquecer que tais elementos
são o único fator de aferição crítica de nossos julgamentos. (vol. 18; 8)
A consciência egoica, por um lado, parece constituir tanto a
possibilidade quanto o limite do conhecimento; entretanto, por outro
lado, quando Jung diz que “a psique inconsciente, cuja natureza é
completamente desconhecida, sempre se exprime através de
elementos conscientes”, abre-se uma brecha epistemológica para o
conhecimento do inconsciente pela hipótese da comunicação entre
as esferas consciente e inconsciente, que se dá pela expressão de
aspectos do inconsciente na consciência. E ao afirmar que essa
conexão entre consciente e inconsciente é o “único elemento
fornecedor de dados” para o conhecimento do inconsciente e que
“não se pode ir além desse ponto”, aí a possibilidade e o limite do
conhecimento do inconsciente se deslocam para as expressões ou
manifestações do inconsciente na consciência.

Símbolo: a ponte epistemológica para o inconsciente


A realidade inconsciente se exprime e se dá a conhecer por
meio das expressões simbólicas. Tudo aquilo que pertence à esfera
inconsciente e não se formula como símbolo não pode ser
conhecido. Cassirer ([1944]1997), em sua filosofia das formas
simbólicas, afirma que o conhecimento do humano só é possível
através de suas manifestações (linguagem, mito, religião, arte,
ciência), que são unidas entre si por um laço comum, que é a
capacidade simbólica. Dessa forma, Cassirer conclui pela
consideração simbólica das manifestações humanas – e todo o
conhecimento converge para uma visão simbólica.
O símbolo na psicologia analítica de C. G. Jung também
constitui a chave para o conhecimento, pois “sempre exprimimos
através de símbolos as coisas que não conhecemos” (vol. 8; 366). O
símbolo é a ponte epistemológica entre o conhecido e o
desconhecido, é o meio através do qual a transformação do material
inconsciente em material conhecido se torna viável.
A palavra símbolo – symbolom, em grego, e symbolum, em
latim – é o particípio passado do verbo grego symbállein, lançar
com, arremessar ao mesmo tempo (Brandão, 1986). Literalmente,
símbolo quer dizer “lançado junto”, “posto junto”, o que revela seu
significado de síntese, união, ponte e ligação, entre coisas, ou
aspectos de uma mesma coisa.
Na psicologia analítica, o símbolo tem função de síntese,
união e conexão entre conteúdos conscientes e inconscientes; é o
produto da tensão entre os opostos em busca de integração: “O
símbolo é o caminho intermediário, em que se unem os opostos em
vista de um movimento novo, uma corrente de água que, logo após
uma longa seca, faz brotar fertilidade” (vol. 6; 492).
O símbolo é o canal através do qual o mundo subjacente e o
mundo explícito se encontram, congregando o âmbito pessoal e o
âmbito coletivo; a dimensão histórica e a dimensão universal do
psíquico. À função conectiva soma-se o caráter revelador do
símbolo, pois, ao congregar os opostos na consciência, revela
aspectos inconscientes. Goethe afirma que “no símbolo o particular
representa o geral como uma viva e momentânea revelação do
inescrutável” (apud Cirlot, 1984). Para Jung, o caráter revelador do
símbolo reside no fato de ser ele a melhor expressão possível de
coisas relativamente desconhecidas (vol. 6). Ao caráter revelador do
símbolo soma-se sua função transformadora; o papel de
transformador da energia inconsciente em energia consciente, que o
símbolo desempenha na psique, resume a epistemologia da
psicologia analítica e circunscreve o seu método.
De acordo com Pieri (2002), na literatura junguiana,
observam-se dois usos para o termo símbolo e que remetem às
funções psíquicas do símbolo, quais sejam: função substitutiva e
função formadora e transformadora do símbolo. A função
substitutiva refere-se ao uso de uma expressão ou imagem em lugar
de outra. Essa função remete ao significado histórico do símbolo
como análogo ou semelhante a algo que não está presente ou não é
conhecido, e, nesse sentido, o símbolo expressa um “conceito de
equivalência” (Brandão, 1986), equivalência por semelhança ou por
analogia, não por igualdade. A função transformadora inclui a
função substitutiva e reveladora do símbolo, constituindo a inovação
trazida por Jung à visão de símbolo até então considerada na
psicologia (Pieri, 2002).
Jung distingue símbolo de sinal ou alegoria. Por sinal, ele
entende a indicação de alguma coisa conhecida; o sinal tem um
significado determinado (vol. 5) e até certo ponto fixo. E esclarece:

Por símbolo não entendo uma alegoria ou um mero sinal, mas uma imagem que
descreve da melhor maneira possível a natureza, obscuramente pressentida, de
algo (...) a imagem de um conteúdo em sua maior parte transcendental ao
consciente. (vol. 8; 644)

O conceito de símbolo está associado à ideia de imagem


como representação de algo inconsciente; como “expressão
concentrada da situação psíquica como um todo” (vol. 6), não
excluindo seu aspecto consciente. Vale salientar que por imagem
não se entende uma figura visual, mas a representação de um
estado psíquico que pode ser formulada em sensações, ideias,
sentimentos, movimentos ou figuras pictóricas.
Em resumo, Jung aponta três funções do símbolo na
dinâmica da psique: conectiva, que se refere à síntese de material
consciente e inconsciente; reveladora, ligada à qualidade do
símbolo de canal pelo qual conteúdos inconscientes chegam
(revelam-se) à consciência; e transformadora. Para uma
compreensão mais aprofundada da função transformadora do
símbolo, é preciso analisar seu processo de formação na dinâmica
psíquica.
O símbolo é um produto psíquico que surge da cooperação
entre consciente e inconsciente; forma-se do mecanismo de
autorregulação da psique, sendo a própria expressão desse
mecanismo. Diz Jung: “a energia criada pela tensão dos opostos flui
para um produto intermediário” (vol. 6; 914), que é a formulação
simbólica. Destarte, o símbolo é a resultante de uma tensão
energética entre polaridades opostas, uma consciente e outra
inconsciente, e tal tensão é vivenciada pelo indivíduo, no nível
consciente, como um conflito. O símbolo é formulado nessa tensão
pelo mecanismo psíquico da autorregulação, que tem como
finalidade a tentativa de restabelecer a homeostase do sistema
psíquico: “Os símbolos representam tentativas naturais para a
reconciliação e união dos elementos antagônicos da psique” (Jung,
[1964]1977, p. 99).
Considerando as polaridades em oposição, como tese e
antítese, o símbolo representa a síntese alcançada pela totalidade.
Essa síntese contém aspectos da tese e da antítese, ou seja,
elementos conscientes e inconscientes. Os elementos inconscientes
presentes no símbolo constituem aquilo de que a consciência
necessita, nesse momento, para alcançar um nível de integração
mais complexo e mais adequado para a situação geral em que se
encontra. A necessidade de adequação diz respeito tanto ao
ambiente interno (inconsciente) quanto ao ambiente externo (vida
existencial, relacional).
Jung adverte que a formulação do símbolo exige “uma
cooperação uniforme” (vol. 6) das esferas consciente e inconsciente.
“Se for verificada a subordinação de uma das partes, deixará de ser
símbolo, faltando-lhe o efeito libertador, uma vez que já não traduz o
pleno direito à vida de todas as partes da psique” (vol. 6; 912).
Aí reside o caráter unificador e transformador do símbolo e
também o fato de que a emergência do símbolo constitui uma
experiência que não dispensa a participação da consciência do ego.
O símbolo aparece para a consciência como algo intrigante e
inquietante, e sua natureza paradoxal e ambivalente produz no ego
uma sensação simultaneamente de plenitude e vazio.

Não pode haver formação do símbolo, sem que a alma se detenha, por um tempo
bastante prolongado, nos fatos elementares, isto é: até que a necessidade interior
ou exterior do processo vital produza uma transformação na energia. Se o homem
vivesse de modo meramente instintivo e automático, as transformações poderiam
dar-se segundo as leis meramente biológicas. (vol. 8; 47)

A necessidade de transformação está na raiz da formulação


simbólica, e a oportunidade de transformação se apresenta para o
ego na vivência simbólica; no entanto, a efetivação da
transformação depende de uma atitude favorável do ego em relação
ao símbolo. “Que uma coisa seja ou não simbólica depende, em
primeiro lugar, da disposição da consciência que a considera” (vol.
6; 907).
É importante atentar para esses aspectos para que se tenha
claro que qualquer conhecimento novo só se produz com a
anuência e a participação ativa do ego, embora a necessidade de
um novo conhecimento não seja dada exclusivamente pela
consciência. Aqui se coloca uma distinção relevante entre a
necessidade de ampliação da consciência (símbolo) e sua
efetivação (elaboração simbólica), que será discutida mais adiante.
O símbolo se apresenta como elemento (fenômeno psíquico) que
pode ser apreendido pela consciência e será compreendido quando
elaborado.
A perspectiva epistemológica da obra de Jung, em grande
parte, se concentra no conceito de símbolo, considerando-se sua
formação e suas funções na psique. Para Jung, o símbolo é um
transformador de energia por excelência.

A transformação da libido se opera através do símbolo. A transformação dos


símbolos é um problema fundamental (...). (vol. 8; 113)
A transformação da energia por meio do símbolo é um processo que vem se
realizando desde o início da humanidade, e ainda continua. Os símbolos nunca
foram inventados conscientemente (...). (vol. 8; 92)

Embora possa parecer que a mera formação do símbolo já


resulte em transformação, o que se observa é que o símbolo é
condição necessária, mas não suficiente, para a transformação
ocorrer. Nem sempre a consciência é capaz de levar a cabo a
transformação anunciada ou mesmo exigida pela psique na
formulação simbólica. A dinâmica do símbolo e sua função
transformadora atuam tanto na esfera individual, quanto na esfera
coletiva (cultural) da humanidade.

No trabalho prático com nossos pacientes topamos, a cada passo, com formações
de símbolos cujo objetivo é a transformação da libido. (vol. 8; 93)
A humanidade se libertou destes temores pelo processo contínuo de formação de
símbolos que leva o homem à cultura. (vol. 8; 95)

O símbolo é a forma como o inconsciente se manifesta e se


expressa na consciência. O símbolo traz para a consciência
conteúdos do inconsciente coletivo (arquétipo) e conteúdos do
inconsciente pessoal (complexo). Assim como o arquétipo está no
núcleo do complexo, ele está também na raiz do símbolo. “A alma
cria símbolos cuja base é o arquétipo inconsciente e cuja imagem
aparente provém de ideias que o consciente adquiriu” (vol. 5; 344).
A distinção que Jung fez do arquétipo em si e da
manifestação arquetípica é fundamental para que haja possibilidade
de distinção e conexão entre o constructo teórico limite (arquétipo),
que está fora da experiência observável e dos limites do
conhecimento (consciência), e as manifestações dessa realidade,
que são acessíveis à consciência e, portanto, passíveis de
conhecimento. O símbolo é a forma como o arquétipo se manifesta.
Cabe retomar aqui o processo de “psiquificação” (vol. 8) que
transforma em psíquico os conteúdos não psíquicos situados na
área psicoide. Um conteúdo “psiquificado”, de acordo com Stein
(2000), passa da esfera incognoscível para o campo do
desconhecido (psique inconsciente), podendo então se dirigir para o
campo do conhecimento. O processo de psiquificação, que opera a
transformação de um conteúdo incognoscível para a esfera
inconsciente, não é passível de observação. A passagem de um
conteúdo da psique inconsciente para a consciência se dá por meio
dos símbolos. O conteúdo inconsciente que não se formula como
símbolo não é passível de conhecimento.

Quando o arquétipo aparece no aqui agora do espaço e do tempo, podendo ser, de


algum modo, percebido pelo consciente, falamos então de símbolo. Dessa forma,
cada símbolo é também um arquétipo, mas isso não quer dizer que um arquétipo é
idêntico a um símbolo (...) quando existe uma constelação psíquica geral ou uma
posição adequada do consciente, ele (arquétipo) está sempre pronto a aparecer
como símbolo. (Jacobi, [1957]1986, p. 72)

O símbolo na psicologia analítica é o fenômeno psíquico que


permite o acesso ao inconsciente; através desse fenômeno, o
conhecimento do inconsciente torna-se possível por via indireta. O
caráter fenomenológico que Jung atribui à sua teoria diz respeito ao
fenômeno psíquico – símbolo – como fato psicológico passível de
ser experimentado pelo indivíduo e pela cultura. “A psicologia não
pode provar quaisquer verdades metafísicas nem tenta fazer isso.
Interessa-se apenas pela fenomenologia da psique” (vol. 18; 742).
Ou seja, a psicologia atém-se aos fatos vividos, e somente no
contexto da vivência psicológica os fenômenos fazem sentido e são
incorporados à consciência como conhecimento e
autoconhecimento. Esclarece Jung: “Meu ponto de vista é
exclusivamente fenomenológico, ou seja, interessa-se por
ocorrências, eventos, experiências – em uma palavra, por fatos”
(vol. 11; 4).
Outro aspecto importante a ser considerado em relação aos
fatos psicológicos é seu contexto. Para Jung, todo conhecimento é
contingente, isto é, ocorre num contexto determinado. O contexto
mais amplo e geral de um fenômeno psicológico qualquer é o
arquetípico, e o contexto mais estrito e específico do fenômeno é o
individual. Entre esses dois polos extremos, temos algumas
gradações que devem ser consideradas, de acordo com a situação
em que o fenômeno é observado.
O símbolo emerge “no aqui agora do espaço e do tempo,
podendo ser, de algum modo, percebido pelo consciente” (Jacobi,
[1957]1986), fruto da constelação atual da energia psíquica no
sistema como um todo, decorre, portanto, da situação – do contexto
– em que surge.
Sobre os sonhos, Jung diz que são “autorrepresentações da
situação atual” (vol. 8) da psique, incluindo o contexto consciente e
inconsciente dos quais é produto. O contexto da consciência é a
dimensão espaçotemporal, o contexto arquetípico é atemporal e
aespacial. Portanto, o contexto do fenômeno deve ser considerado,
primeiramente, em relação à dimensão espaçotemporal, em que ele
ocorre, isto é, às contingências sócio-históricas em que ele surge.
A perspectiva simbólica, que congrega relações de causa,
finalidade e sincronicidade, deve ser considerada na avaliação do
contexto em que o fenômeno está inserido.

Função transcendente, função criadora de símbolos


A psique funciona, naturalmente, pela oscilação entre tensão
e autorregulação da energia circulante no sistema psíquico, que foi
denominada por Jung de função compensatória.

(...) considero [compensação] em geral como equilibração funcional, como


autorregulação do aparelho psíquico. Neste sentido, considero a atividade do
inconsciente como compensação da unilateralidade da atitude geral, ocasionada
pela função da consciência. (...) A atividade da consciência é “seletiva”. A seleção
exige “direção”. E a direção exige “exclusão” de tudo que não lhe convenha. Disso
resulta obviamente certa unilateralidade da orientação da consciência. (vol. 6; 774)

À medida que a unilateralidade da consciência se acentua,


maior é a oposição dos conteúdos inconscientes em relação à
consciência, e mais forte é a tensão entre esses opostos. Dessa
situação energética decorre a função compensatória da psique, que
tenta equilibrar a força opositora das polaridades em questão: “(...) a
tensão aumenta de maneira tal que os conteúdos inconscientes
inibidos se comunicam, com a consciência, por meio de sonhos ou
de imagens de ‘livre ascensão’” (vol. 6; 774).
O símbolo é o produto forjado pela tensão energética entre as
polaridades consciente e inconsciente, formulando a síntese das
polaridades.

O símbolo pressupõe uma função que cria símbolos, e além desta, uma função que
os compreende. Esta última função não participa da criação do símbolo, é uma
função por si mesma, que pode se chamar pensamento simbólico ou entendimento
simbólico. (vol. 6; 171)

A função que cria símbolos é denominada transcendente; a


que os compreende – o pensamento simbólico – é a leitura
simbólica, que realiza a elaboração simbólica ou o processamento
simbólico. A função criadora dos símbolos é operada pela psique
como um todo (consciente e inconsciente); a função que os
compreende é eminentemente consciente. Esta última função será
discutida na perspectiva metodológica do paradigma, na medida em
que se refere aos modos pelos quais a consciência faz a “leitura
simbólica” a fim de compreender os símbolos. Entretanto, do ponto
de vista epistemológico, é oportuno ressaltar que a função que
compreende os símbolos é denominada por Jung “pensamento
simbólico ou entendimento simbólico”.
Vale a pena abrir parênteses aqui e ponderar sobre o termo
“pensamento” para designar essa função. Por um lado, pode-se
associar pensamento à cognição e, dessa forma, com uma acepção
ampla do conhecer; mas, por outro lado, a concepção de
conhecimento, no paradigma junguiano, não se limita à cognição
enquanto pensamento, incluindo todas as funções da consciência
(pensamento, sensação, sentimento e intuição) pelas quais, por
definição, o ego conhece. Há que se considerar, também, que o
pensamento simbólico a que Jung se refere diz respeito à
formulação que fez de duas formas de pensar, já discutida antes, o
que, por sua vez, amplia o escopo da possibilidade e o limite do
conhecimento para além da racionalidade, propondo um tipo de
conhecimento não racional. De qualquer forma, cabe também
ponderar sobre os motivos pelos quais Jung denominou
pensamento simbólico o modo de compreensão e entendimento dos
símbolos. Se, por um lado, ao propor as duas formas de pensar, ele
questiona e amplia a noção tradicional de pensamento racional e
intelectual, por outro lado, ao denominar pensamento simbólico a
função psicológica que realiza o entendimento dos símbolos, Jung
reduz paradoxalmente a uma das funções da consciência a
possibilidade de conhecimento do inconsciente. Cumpre esclarecer,
no entanto, que o termo “pensamento simbólico” é usado por Jung
no início de sua obra; desde a conceituação de amplificação (1930),
ele passa a usar “elaboração” ou “compreensão simbólica” como a
meta da amplificação, que resume seu método de trabalhar com os
símbolos.
Retomando: epistemologicamente, a função formadora de
símbolos – a função transcendente – decorre do conceito de energia
psíquica e da dinâmica compensatória entre consciente e
inconsciente. Como função criadora de símbolos, guarda estreita
correlação com a definição, a formação e a função do símbolo.

A experiência no campo da psicologia analítica nos tem mostrado abundantemente


que o consciente e o inconsciente raramente estão de acordo no que se refere a
seus conteúdos e tendências. Esta falta de paralelismo, como nos ensina a
experiência, não é meramente acidental ou sem propósito, mas se deve ao fato de
que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em
relação à consciência. Podemos inverter a formulação e dizer que a consciência se
comporta de maneira compensatória com relação ao inconsciente. (vol. 8; 132)

Essas tendências, nem sempre coincidentes entre o


consciente e o inconsciente, ocasionam tensões energéticas
(conflitos) que o mecanismo da autorregulação tenta neutralizar, em
busca da homeostase do sistema psíquico. Nesse movimento,
consciente e inconsciente tendem a se aproximar. A formação de
uma “zona de intersecção”, na qual os conteúdos do consciente e
do inconsciente se encontram, é realizada pela função
transcendente. “A função transcendente aparece como uma das
propriedades características dos opostos aproximados” (vol. 8; 189).
Essa aproximação é possível porque “a parede divisória
situada entre a consciência e o inconsciente é permeável” (vol. 8;
134), permitindo a troca de energia entre os dois sistemas da
totalidade. O produto gerado por essa situação de união entre as
duas esferas é o símbolo: “A confrontação entre as posições
contrárias gera uma tensão carregada de energia que produz algo
de vivo, um terceiro elemento: o tertium non datur” (vol. 8; 189), que,
como síntese dos contrários, é o símbolo.
A função unificadora que ultrapassa e supera a oposição, isto
é, transcende os opostos, é uma função complexa que envolve
outras funções da psique (função compensatória e função simbólica)
e cria a passagem entre a tendência inconsciente e a consciente,
por meio da qual se dá a interação entre consciente e inconsciente.

É chamada transcendente, porque torna possível organicamente a passagem de


uma atitude para outra, sem perda do inconsciente. (vol. 8; 145)
Denominei essa função de mediação dos opostos de função transcendente. Com
isso não entendo nada de misterioso, mas apenas uma função de elementos
conscientes e inconscientes. (vol. 6; 174)

Em relação à função transcendente, Jacobi afirma:

A essa capacidade da psique de formar símbolos, isto é, unir pares de opostos no


símbolo para uma síntese, Jung chama de função transcendente (...), uma função
complexa, composta de várias funções (...), por meio dessa função, se cria uma
passagem de um lado para outro [consciente e inconsciente]. ([1957]1986), p. 91)

Para Von Franz, a função transcendente “possui uma


tendência proposital de manter unidos a consciência e o
inconsciente”, sendo “o espírito formador de símbolos que torna
organicamente possível a transição de uma atitude unilateral para
uma atitude nova e mais completa” ([1975]1992, p. 80)
A função transcendente dá oportunidade à personalidade de
transformação, através do encontro de conteúdos inconscientes
com a consciência, na medida em que amplia os horizontes desta
para além de sua unilateralidade habitual e de seus limites
anteriormente estabelecidos. O conceito de autorregulação e de
função transcendente conduz, naturalmente, à noção de causa e
finalidade interligadas.
Causalidade, finalidade e sincronicidade
O quadro epistemológico do paradigma junguiano não está
completo sem a discussão sobre as relações a que estão sujeitos os
conteúdos da psique ao se apresentarem para a consciência na
forma de símbolos. Todo evento psíquico é forjado numa relação
causal e final, ou seja, ao mesmo tempo que o símbolo é causado
por uma situação de tensão energética, ele é também fruto de uma
relação de finalidade, isto é, tem um propósito teleológico de
conduzir a psique a níveis mais complexos de desenvolvimento. De
forma mais pontual, o símbolo tem a finalidade de oferecer à
consciência a oportunidade de ampliação pela integração dos
opostos em tensão.
Os fenômenos psíquicos não podem ser compreendidos
apenas com base em suas causas. “A alma humana, seja doente ou
sã, não pode ser esclarecida ‘apenas’ redutivamente (...), a alma
não é isso ou aquilo, ou, se preferirem isso e aquilo, mas também
tudo que ela já fez e ainda vai fazer com isso” (vol. 7; 67). A
abordagem exclusivamente causal do psiquismo é considerada
redutiva e unilateral, insuficiente e inadequada para a compreensão
da psique. Redutiva porque reduz os fatos às suas causas, e
unilateral porque se esgota na perspectiva retrospectiva e
personalista da psique.

Ele [procedimento redutivo] chega ao fim no momento em que os símbolos dos


sonhos não são mais passíveis de serem reduzidos a reminiscências ou anseios
pessoais, isto é, quando emergem as imagens do inconsciente coletivo. (vol. 7; 122)
(...). Foi realmente difícil para mim (só o consegui ao final de muitas hesitações e
instruído pelos fracassos) abandonar a orientação exclusivamente personalística da
psicologia terapêutica. (vol. 7)
A perspectiva arquetípica amplia a dimensão psíquica para
além do âmbito pessoal; o caráter criativo do inconsciente coletivo
confere um aspecto prospectivo à psique. A dinâmica energética,
que alterna fluxos de progressão, regressão e autorregulação rumo
ao desenvolvimento da personalidade, integra o ponto de vista
redutivo causal e o energético final, atribuindo ao inconsciente uma
função teleológica e uma função histórica.
Paralelamente a essas relações de causa e finalidade,
ocorrem ainda relações sincrônicas em que as conexões se dão
pelo significado e não pela temporalidade. Causa e finalidade
implicam relações temporais, enquanto a sincronicidade envolve
relações de significado: “A causalidade não explica uma
determinada classe de acontecimentos (...) nesse caso, é preciso
levar em conta um fator formal, isto é, a sincronicidade, como
princípio de explicação” (vol. 8; 934).
Jung considera a sincronicidade um princípio de explicação
necessário no conhecimento psicológico (vol. 8).

Por isso, não se pode falar de causa e efeito, mas de uma coincidência no tempo,
uma espécie de contemporaneidade. Por causa do caráter desta simultaneidade,
escolhi o termo sincronicidade para designar um fator hipotético de explicação
equivalente à causalidade. (vol. 8; 840)

O conceito de sincronicidade, no entanto, vai além da simples


coincidência de fatos, por isso Jung preferiu o termo sincronicidade
a sincronismo, pois se refere a eventos relacionados pela via do
significado e não pela via da causalidade:

Escolhi este termo, porque a aparição simultânea de dois acontecimentos, ligados


pela significação, mas sem ligação causal, me pareceu um critério decisivo.
Emprego, pois, aqui, o conceito geral de sincronicidade, no sentido especial de
coincidência, no tempo, de dois eventos ou vários eventos, sem relação causal,
mas com o mesmo conteúdo significativo, em contraste com “sincronismo”, cujo
significado é apenas o de ocorrência simultânea de dois fenômenos. (vol. 8; 849)

Jaffé distingue dois aspectos da sincronicidade na obra de


Jung: a organização não causal dos eventos e o significado
preexistente no fenômeno sincronístico. O primeiro refere-se à
ocorrência simultânea de fenômenos relacionados por seu
significado comum. O segundo supõe um significado
“transcendental independente da consciência (...) que subsiste por si
mesmo”. A questão do significado preexistente foi menos absorvida
pela comunidade junguiana, tendo “passado gradativamente para o
segundo plano” pelos junguianos em seus estudos e pesquisas.
Tradicionalmente, admite-se que a consciência cria o significado, e a
perspectiva arquetípica admite “a hipótese de um significado que
subsista em si mesmo e independentemente do homem” (1989, pp.
152-153).
Essa noção está apoiada na função teleológica da psique, no
conceito de arquétipo, “a forma introspectivamente reconhecível da
organização psíquica apriorística” (vol. 8; 955), e sobretudo no
conceito de símbolo e função transcendente. O símbolo, forjado pela
função transcendente, guarda significados que se insinuam para a
consciência, mas não são imediatamente revelados. Tais
significados, contidos a priori no símbolo, são desvendados pela
consciência no trabalho de elaboração simbólica. Dessa forma, não
é a consciência que cria o significado, e ele emerge da psique
inconsciente para ser conhecido (ou não) pela consciência.

Um significado a priori parece se manifestar principalmente nos fenômenos


descritos por Jung como “sincronísticos” (...) com esses fenômenos fronteiriços, que
ocorrem de maneira irregular e relativamente com pouca frequência, dois ou mais
acontecimentos independentes, cada qual com sua própria cadeia causal, são
mutuamente relacionados pelo significado. (Jaffé, 1989, p. 152)

Jaffé sugere com propriedade que possam ocorrer


sincronicidades mais frequentemente do que a consciência humana
consegue perceber, e cabe a esta desenvolver uma atitude
favorável à percepção e à compreensão desses eventos. A
consciência coletiva, a partir da modernidade, incentiva a
compreensão de relações causais. As relações de finalidade ainda
são pouco exploradas, embora já um tanto admitidas, como, por
exemplo, nas previsões (climáticas, econômicas, demográficas,
prognósticas) e avaliações de consequências futuras, mas as
relações de significado independentes do fator temporal são muito
pouco cogitadas e, por isso, muitas vezes consideradas mágicas.

Relação eu—outro, sujeito—objeto


Uma questão epistemológica relevante a ser considerada diz
respeito à relação entre o conhecedor e o conhecido. Em psicologia,
pode-se falar do eu que conhece e do outro que pode ser
conhecido. Essas relações implicam o alcance e o tipo de
conhecimento possíveis num dado paradigma.
O estabelecimento da díade eu—outro, ou sujeito—objeto,
supõe um nível de distinção entre as duas entidades. O outro se
refere a algo ou alguém distinto do eu ou nós (Papadopoulos, 2002),
que é sujeito do conhecimento. As relações entre esses dois termos
incluem uma ampla gama de possibilidades, tais como: oposição e
complementaridade; diferença e semelhança; união e separação;
familiaridade e estranheza, entre outras.
Para a psicologia analítica, tanto o mundo externo como o
interno (inconsciente) são considerados como um outro, que
frequentemente desperta reações ambivalentes, tanto de
estranheza e afastamento, como de curiosidade e interesse por
parte do eu. Na psicologia, a psique é tanto sujeito como objeto do
conhecimento, e esse paradoxo é o ponto crucial desta ciência que
se distingue das outras, exatas ou naturais. Jung considerava esse
o grande desafio epistemológico na busca de métodos em
psicologia.
No paradigma da totalidade/diversidade, o outro, de alguma
forma, está contido no todo do qual faz parte o eu. Nesse sentido, o
outro é o restante do eu (ibid.), que falta ou sobra ao eu; portanto,
lhe é desconhecido. Não se trata, no entanto, de anular as
diferenças entre eu e outro, pois “a identidade sujeito—objeto torna
impossível o conhecimento” (vol. 6; 449). Trata-se de analisar as
relações que se estabelecem entre esses dois âmbitos.
O outro interno ou externo, como objeto do conhecimento,
remete à inseparabilidade entre conhecimento e autoconhecimento;
além disso, condiciona um tipo de relação entre o sujeito
conhecedor e o objeto a ser conhecido. A perspectiva simbólica da
psicologia analítica muda o vetor das relações entre sujeito e objeto
(eu—outro), não priorizando um em detrimento do outro. Ao discutir
a perspectiva do sujeito e do objeto e, ainda, a questão da
objetividade e da subjetividade, a posição de Jung aponta para a
relação dialética e integrativa das polaridades eu—outro. A
perspectiva simbólica como ponto de vista da psicologia analítica
supera a dicotomia sujeito—objeto, chegando mesmo a propor uma
relação de troca e interferência mútua entre os dois protagonistas
básicos do conhecimento.
“O símbolo vive graças a uma desvalorização relativa do
objeto” (vol. 6; 449). Não se trata, porém, de anular as diferenças
entre eu—outro e conhecido—desconhecido, pois o processo de
conhecimento supõe algo desconhecido que pode ou deve ser
conhecido e, portanto, admite a natureza diversa e distinta de
ambos. A anulação das diferenças inviabiliza o conhecimento. Trata-
se, na verdade, de não priorizar um ou outro.
A psicologia analítica preconiza uma relação simétrica entre o
eu (conhecedor) e o outro (a ser conhecido). É praticamente
impossível postular a supremacia da consciência sobre o
inconsciente e vice-versa, desde que haja um sistema ego-
consciência suficientemente estruturado e atuante. A relatividade
dessas polaridades configura a diversidade da totalidade psíquica
em estado dinâmico de oposição/tensão/autorregulação/integração.
No entanto, o pressuposto da totalidade todo abrangente e da
realidade arquetípica indicam que, apesar da oposição e diversidade
entre sujeito e objeto, ambos compartilham algo comum.
A dialética da energia psíquica formulando, constantemente,
tese/antítese/síntese – símbolo – implica uma relação dialética
transformadora entre o eu e o não eu (outro e inconsciente). Na
medida em que o eu (ego) mantém trocas energéticas com o
inconsciente, seus conteúdos não exercem pressão excessiva sobre
a consciência. Dessa forma, “a relação com o mundo externo fica
livre das misturas fantásticas” (vol. 6; 469), diminuindo o nível de
“mistura” entre eu e outro.
A relação sujeito—objeto remete a um outro atributo da
epistemologia junguiana a ser ressaltado: a posição do observador
em relação ao fenômeno observado. Jung discute longamente a
questão do ponto de vista objetivo e subjetivo na ciência, à luz dos
conceitos de introversão e extroversão e da tipologia psicológica.
A questão da relatividade da objetividade na ciência foi
debatida por Kant, pelos filósofos românticos e por Nietzsche, que
afirma a impossibilidade de objetividade, uma vez que o
conhecimento produzido por um pensador está inevitavelmente
impregnado de sua personalidade. Para Jung, o conhecimento é
influenciado pela psique do sujeito conhecedor, mas, diferentemente
de Nietzsche, ele considera o conhecimento, assim como as ações
humanas, condicionados tanto pelo objeto como pelo sujeito (vol. 7),
podendo haver oscilações numa ou noutra direção, de acordo com a
tipologia individual.
Uma abordagem mais calcada no objeto (outro) externo –
extrovertida – tende a uma observação mais objetiva; em contraste,
uma abordagem condicionada preferencialmente pelas disposições
do eu – introvertida – tende a uma visão mais subjetiva. Em
qualquer circunstância, o observador necessariamente interfere no
fenômeno observado, sobretudo quando se trata da percepção de
elementos psíquicos inconscientes. Nesse sentido, Jung se apoiou
na física quântica, que vinha revolucionando o pressuposto da
neutralidade e objetividade do observador na ciência experimental.
Jaffé comenta que, assim como Heisenberg afirmou que não
é mais possível “falar do comportamento de uma partícula atômica
independentemente do processo de observação”, também não
podemos “falar do comportamento do inconsciente,
independentemente do processo de observação e da consciência
que observa; assim como na física nuclear a observação altera o
comportamento das partículas, o mesmo ocorre na psicologia”
(1989, p. 41).
Jung afirma que “o arquétipo se altera ao se tornar
consciente e ser percebido, e toma as cores da consciência
individual na qual ele aparece” (vol. 9; 6). O objeto de investigação
da psicologia é a psique, este reino intermediário entre a matéria e o
espírito; entre o imanente e o manifesto. A relação entre sujeito e
objeto – pesquisador e fenômeno – vai se dar numa relação
dialética e simbólica em que o eu e o outro participam ativamente do
conhecimento. Entretanto, essa dialética deve ser balanceada, de
tal forma que não se caia em posições unilaterais, evitando-se tanto
o subjetivismo como o objetivismo.

Em parte alguma, como no campo da psicologia, é exigência absolutamente básica


que o observador e pesquisador sejam adequados a seu objeto, no sentido de
serem capazes de ver uma e outra coisa. Exigir que só se olhe objetivamente nem
entra em cogitação, pois isto é impossível. Já deveria bastar que não se olhasse
subjetivamente demais. (vol. 6; 8)

Uma vez que subjetividade e objetividade são qualidades


humanas, estas estarão sempre presentes em qualquer atividade.
Se, por ventura, a subjetividade for desconsiderada, ela
permanecerá inconsciente no processo de conhecimento, e, como
se sabe, uma polaridade inconsciente tende a se manifestar de
forma muitas vezes primitiva. Maroni (1998) sustenta que a
subjetividade, quando inconsciente, corre o risco de se expressar
com feições de universalidade e generalidade.
Hoje, nas ciências humanas em geral, está claro que, entre a
objetividade e a subjetividade, o máximo que se pode almejar é uma
intersubjetividade em termos de consenso. Isso vale também para a
psicologia. A relação dialética eu—outro é circunscrita pela
objetividade possível de ser alcançada e a subjetividade possível de
ser mantida.
A objetividade possível na psicologia analítica está assentada
também na hipótese do inconsciente coletivo (psique objetiva),
como a esfera psíquica suprapessoal comum à humanidade e
independente da subjetividade e da singularidade do indivíduo.
Se um indivíduo fosse totalmente diferente de qualquer outro
indivíduo, a psicologia seria impossível como ciência, isto é, ela
consistiria num caos inextrincável de opiniões subjetivas. Mas como
a individualidade é apenas relativa, isto é, apenas complementa a
conformidade ou semelhança entre os homens, as afirmações de
validade universal, ou seja, as constatações científicas, tornam-se
possíveis (vol. 16; 1).
A antinomia (objetividade—subjetividade) permanece,
todavia, na medida em que a psique humana é constituída de um
substrato coletivo (arquétipo, inconsciente coletivo e consciência
coletiva) e um estrato pessoal (complexos, inconsciente pessoal e
consciência). A perspectiva simbólico-arquetípica permite o
conhecimento num escopo variável entre o mais objetivo ou o mais
subjetivo.
Em resumo, na epistemologia junguiana, o conhecimento da
psique envolve o acesso a aspectos inconscientes relativos à psique
coletiva e pessoal. Conhecimento e autoconhecimento são indisso-­
ciá­veis, e o conhecimento do inconsciente é possível por via indireta
através de suas manifestações na consciência, ou seja, o símbolo.
O limite do conhecimento é dado pela capacidade da consciência de
captar e integrar os aspectos inconscientes dos símbolos que se lhe
apresentam. Eu e outro (consciente e inconsciente; ego e mundo)
relacionam-se dialeticamente num processo de discriminação e
integração dos elementos desconhecidos à consciência.
Subjetividade e objetividade são interfaces que devem ser
articuladas nos limites da consciência conhecedora. O processo de
aquisição de conhecimento – processo de individuação – é
transformador, movido por demandas inconscientes e pela vivência
existencial.

Perspectiva metodológica
A perspectiva metodológica de um paradigma concentra-se
no modo como o conhecimento pode ser adquirido e nos meios
pelos quais as premissas epistemológicas propostas pelo paradigma
podem ser concretizadas na forma de produção de conhecimento
novo e significativo.
Por método, entende-se o modo de produção de
conhecimento; como buscar conhecimento; o caminho a ser seguido
para aquisição de conhecimento. Desse ponto de vista, método
relaciona-se à forma de buscar o conhecimento.
Em psicologia, o método é o meio através do qual se cumpre
a meta da compreensão psicológica do ser humano em sua relação
com o mundo. Os diferentes enquadres teóricos da psicologia, de
acordo com suas concepções ontológicas e premissas
epistemológicas, formulam métodos para acessar um conhecimento
de caráter primordialmente compreensivo, interpretativo e
significativo. Considerando-se o caráter compreensivo do
conhecimento, o método deve ser abordado em dois aspectos,
quais sejam: modos e meios de apreensão do fenômeno a ser
conhecido e formas de compreensão do fenômeno investigado.
Pela análise da construção de seu método e da formulação
de seus conceitos teóricos, fica sempre evidente a preocupação de
Jung em se definir como cientista e abordar a psicologia do
inconsciente do ponto de vista científico. Está claro, para Jung, que
o objeto de estudo da psicologia do inconsciente é muito distinto do
objeto das ciências naturais e exatas; ele é ciente também, de que
tal diferença acarreta particularidades tanto na epistemologia como
no método da psicologia analítica, como foi observado na
construção de seu método e na discussão das perspectivas
ontológica e epistemológica do paradigma junguiano.
Percebe-se, igualmente, que ao distinguir a psicologia
analítica das ciências tradicionais, devido à impossibilidade de
adequar seu método aos mesmos padrões de cientificidade, Jung
viu-se obrigado, muitas vezes, a localizar sua área de pesquisa fora
da ciência, principalmente no que se refere à psicoterapia. “Mas a
ciência termina nas fronteiras da lógica, o que não ocorre com a
natureza, que também floresce onde teoria alguma jamais penetrou”
(vol. 16; 524).
Observa-se, nesse sentido, uma certa ambivalência quanto à
cientificidade que ele pretende alcançar com seu trabalho, quando,
por vezes, denomina a psicoterapia mais como arte do que como
ciência. Percebe-se, contudo, também seus esforços para formular
um modelo científico, assentado em bases distintas da
epistemologia e da metodologia científicas dominantes.
O objeto de investigação da psicologia analítica se define
como a psique humana em suas relações com a vida. Para Jung, o
fato de ser a psique tanto sujeito como objeto do conhecimento
distingue a psicologia de outras ciências e, necessariamente, requer
um método que considere essa particularidade.
A compreensão da psique inconsciente é o desafio inicial e o
alvo principal da psicologia junguiana. O interesse pelo inconsciente
ocupava o primeiro plano dos estudos de Jung. A questão básica
que motivou sua investigação desde o início de sua atividade
profissional era: “o que se passa no espírito do doente mental?”
([1961]1981, p. 108).
A consciência tinha sido alvo de investigações psicológicas
extensas durante o século 19, sobretudo pela psicologia
experimental; o inconsciente, entretanto, carecia de estudo e
pesquisa. Em 1902, com o estudo sobre a psicopatologia dos
fenômenos ocultos (vol. 1), o objetivo do trabalho de Jung é poder
ajudar “a ciência a encontrar caminhos que a levem a compreender
e assimilar sempre mais a psicologia do inconsciente” (vol. 1; 150).
Em 1912, ele conclui sobre a inadequação do método experimental
para a investigação psicológica do inconsciente: “Quem quiser
conhecer a psique humana infelizmente pouco receberá da
psicologia experimental” (vol. 7, p. 112).
O inconsciente, para Jung, estava relacionado,
primeiramente, à espiritualidade e à transcendência da religião;
depois, ao mundo anímico subjacente dos românticos; ao mundo
transcendente intuitivo de Goethe; à realidade imaterial das
categorias a priori do ser-em-si de Kant; em seguida, ao mundo dos
sonhos e das fantasias (inconsciente) de Von Hartmann e
Shopenhauer. O mundo do inconsciente estava associado a suas
vivências pessoais internas, que lhe causavam estranheza, medo e
fascínio, e aos fenômenos paranormais do espiritismo.
Na psiquiatria, Jung buscava encontrar respostas para os
problemas dos doentes mentais. As premissas da psiquiatria
dinâmica se adequavam aos pressupostos filosóficos que
compartilhava. Em seus primeiros trabalhos sobre fenômenos
ocultos, demência precoce e associação de palavras, sua meta é a
investigação do inconsciente à luz da ciência empírica experimental.
A psicanálise de Freud congregava seu interesse sobre o
inconsciente aplicado ao tratamento da doença mental; além disso,
acenava com a possibilidade de um método de investigação mais
adequado do que o empirismo experimental.
Seu método não se limita à pesquisa exclusiva do
inconsciente, pois esse só é passível de conhecimento por
intermédio da consciência, portanto, seus estudos e suas pesquisas
abrangem as duas esferas. O inconsciente é uma dimensão
psíquica extraconsciente, não acessível ao conhecimento por meios
diretos. Assim, a possibilidade de acessar os elementos
inconscientes repousa na hipótese de que estes se expressam na
realidade manifesta. O modo como a realidade inconsciente se
expressa e se dá a conhecer é o desafio epistemológico a que Jung
vai se dedicar na elaboração do modelo teórico da psicologia
analítica.

A psique inconsciente, cuja natureza é completamente desconhecida, sempre se


exprime através de elementos conscientes, sendo esse o único elemento
fornecedor de dados para nossa ação. Não se pode ir além desse ponto, e não nos
devemos esquecer que tais elementos são o único fator de aferição crítica de
nossos julgamentos. (vol. 18; 8)

O símbolo é a ponte epistemológica entre o conhecido e o


desconhecido – o meio através do qual a transformação do material
inconsciente em material conhecido é viável, pois, de acordo com
Jung, “sempre exprimimos através de símbolos as coisas que não
conhecemos” (vol. 8; 266) e, assim, o conhecimento do inconsciente
é possível. O símbolo é, por essa razão, o fenômeno psíquico que
pode ser apreendido pela consciência e compreendido quando
elaborado. O conteúdo inconsciente que não se formula como
símbolo não é passível de conhecimento.
Para Jung, a compreensão simbólica dos fenômenos já está
anunciada desde seus estudos experimentais com associação de
palavras. Embora, nessa época, a abordagem simbólica ainda não
pudesse ser considerada científica, o caráter hermenêutico do
método de investigação da psique na psicologia analítica está
presente desde sua origem.

(...) frequentemente a relação entre os dois [estímulo/distúrbio] não é clara à


primeira vista, mas é mais de um caráter “simbólico” (...). (vol. 2; 135)
(...) há uma grande dificuldade – a interpretação dos distúrbios; ou para expressar
de outra forma (...) sugerimos que a interpretação no presente é antes arte do que
ciência. No futuro, talvez, leis serão descobertas para o método de interpretação.
(vol. 2; 1024)

O símbolo traz, para a consciência, conteúdos do


inconsciente coletivo (arquétipo) e conteúdos do inconsciente
pessoal (complexo). Segundo Jacobi, “quando o arquétipo aparece
no aqui agora do espaço e do tempo, podendo ser, de algum modo
percebido pelo consciente, falamos então de símbolo” (1986, p. 72).
Através desse fenômeno psíquico (símbolo), o conhecimento do
inconsciente torna-se possível por via indireta. Para Jung, “A alma
cria símbolos cuja base é o arquétipo inconsciente e cuja imagem
aparente provém de ideias que o consciente adquiriu” (vol. 5; 344).
Superado o impasse epistemológico sobre a viabilidade de
conhecimento da dimensão inconsciente da psique, abre-se a
possibilidade de um método compatível de investigação da psique
como um todo, integrando consciente e inconsciente.
Considerando-se que a única forma de conhecer o ser
humano é através de suas manifestações – “fios que tecem a rede
simbólica da experiência humana”, como diz Cassirer ([1944]1997,
p. 48), e que o inconsciente não é passível de observação direta,
podendo ser apenas inferido por meio de suas manifestações
simbólicas, o método no paradigma junguiano converge para uma
perspectiva simbólica do conhecimento. Por essa razão, o modo de
conhecer, na psicologia de C. G. Jung, se dá através do
reconhecimento e da compreensão das manifestações simbólicas.
O objeto de investigação do método junguiano é, então, o símbolo,
pois este permite a apreensão e a compreensão da realidade
psíquica, congregando consciente e inconsciente.
A distinção que Jung faz entre arquétipo em si e
manifestação arquetípica teve papel fundamental, tanto na
epistemologia como em seu método de investigação da psique.
Essa distinção define a fronteira entre psíquico e não psíquico, ao
mesmo tempo que delimita o campo de investigação psicológica. A
fronteira psicoide delimita aquilo que é potencialmente cognoscível
daquilo que é totalmente incognoscível (Stein, 2000).
As representações simbólicas desse constructo teórico
(arquétipo) são acessíveis à consciência por intermédio de suas
expressões simbólicas e, dessa forma, passíveis de observação e
compreensão. O estudo da psique se efetiva através da pesquisa
dessas manifestações na esfera consciente, tanto no âmbito
pessoal como no coletivo. Os meios pelos quais é possível captar as
manifestações simbólicas e traduzi-las de forma compreensiva
constituem o método da psicologia analítica.
A perspectiva metodológica do paradigma junguiano será
discutida em dois níveis, quais sejam: apreensão do fenômeno
psíquico e sua compreensão.
O método de investigação da psique de C. G. Jung, como foi
visto no capítulo sobre o desenvolvimento do paradigma, recebeu
várias denominações por parte do próprio autor – dialético,
construtivo, comparativo hermenêutico, energético finalista,
construtivo sintético, construtivo hermenêutico –, que, em primeira
instância, têm o objetivo de definir a perspectiva metodológica do
paradigma junguiano e distingui-la das outras abordagens
psicológicas atuais.
As características do método da psicologia analítica serão
dis­cutidas e analisadas à luz de sua epistemologia.

Apreensão do símbolo

Meios de captar os símbolos


Como foi visto na perspectiva epistemológica do paradigma
junguiano, a relação eu—outro, sujeito—objeto e suas implicações
sobre objetividade e subjetividade no processo de produção de
conhecimento está diretamente associada ao modo como (método)
essa relação se estabelece a fim de que o conhecimento se realize.
Desse modo, dos pressupostos epistemológicos sobre as
possibilidades e limites do conhecimento decorrem, naturalmente,
as propostas metodológicas do paradigma.

Sobre observação
A apreensão do fenômeno psíquico na psicologia analítica se
dá basicamente pela observação. Da mesma forma que o
conhecimento não se distingue do autoconhecimento na
epistemologia junguiana, a observação também não dispensa a
auto-observação em seu método.
Jung demonstrou aguçada sensibilidade para detectar sinais,
em si mesmo e nos pacientes, de evidências de conteúdos
inconscientes emergentes na consciência, e fez uso dos
conhecimentos de outras áreas de conhecimento para ampliar as
formas de apreensão das manifestações simbólicas da psique
humana.
A observação tem papel relevante em sua finalidade básica:
promover condições minimamente adequadas para que se tenha
acesso aos fenômenos psíquicos e o conhecimento seja viabilizado.
Pode-se resumir a observação como o meio através do qual é
possível captar o material inconsciente que se apresenta à
consciência para a ela ser integrado. De acordo com a concepção
ontológica de totalidade dinâmica e os pressupostos
epistemológicos sobre as relações dialéticas entre as esferas
consciente e inconsciente da psique, do ponto de vista
metodológico, a observação é compreendida como um processo
dinâmico entre sistemas (observador e observado).
Pieri (2002, Cap. 1) distingue dois tipos de observação: a
observação “natural” e a “experimental”, ambas constituídas por um
sistema observante e um sistema observado. As relações de
“indeterminação” da física quântica – ação recíproca entre os dois
sistemas (observador e observado) – apontam para uma distinção
flexível e dinâmica entre as partes envolvidas no processo de
observação. Segundo esse autor, o sistema observado não é
apenas perturbado pelo sistema observante, é também produto
deste. A observação, portanto, é fruto de um interesse, uma questão
ou um problema colocado pelo observador – o pesquisador –; e a
teoria (ontologia e epistemologia) interfere na investigação. Essa
posição coincide com as concepções atuais de método científico.
Jung discute extensamente essa questão e sua visão se
assemelha bastante às premissas da física e da filosofia da ciência
contemporâneas.
O processo de observação na psicologia analítica se define
por suas características:
1. relativa às particularidades do objeto de investigação – a
psique consciente e inconsciente;
2. relativa à equação psíquica (pessoal) do sistema
observador;
3. relativa à dinâmica entre o sistema observado e o sistema
observador.
As implicações discutidas quanto à relação epistemológica eu
—outro (sujeito—objeto) estão diretamente relacionadas à questão
metodológica da observação, embora não se trate exatamente do
mesmo tipo de relação.
A relação que se estabelece entre o sistema observante e o
sistema observado vai além da relação sujeito—objeto (eu—outro).
Entre os dois sistemas, pode se interpor um instrumento (relato,
foto, filme, teste psicológico, técnica expressiva) como equipamento
técnico favorecedor e facilitador da observação do símbolo. A
equação pessoal de ambos os sistemas também se interpõe, tanto
na emissão da imagem a ser observada como na sua captação. O
campo de observação psicológica é um campo simbólico, que
preenche de significados o processo de observação.

O ideal e o objetivo da ciência não consistem em dar uma descrição, a mais exata
possível, dos fatos – a ciência não pode competir com a câmera fotográfica ou com
o gravador de som – mas em estabelecer a lei que nada mais é do que a expressão
abreviada de processos múltiplos que, no entanto, mantêm certa unidade. Este
objetivo se sobrepõe, por intermédio da concepção, ao puramente empírico, mas
será sempre, apesar de sua validade geral e comprovada, um produto da
constelação psicológica subjetiva do pesquisador. Na elaboração de teorias e
conceitos científicos há muita coisa de sorte pessoal. (vol. 6; 8)

O processo de observação no método junguiano cresce em


complexidade devido à multiplicidade de fatores envolvidos. A
unidade que pode ser mantida se refere ao referencial teórico
subjacente ao método que condiciona a observação. Assim, o termo
empírico adquire outras tonalidades de significado, distintas do
empirismo experimental, as quais serão abordadas mais adiante.

Das particularidades do objeto de investigação


Na psicologia, a psique observa a si mesma, e isso
caracteriza o tipo e o modo de observação no método de
investigação psicológica.
Dadas as particularidades da psicologia, tanto no que diz
respeito a seu objeto de estudo quanto à sua finalidade de
conhecimento e aplicação, o processo de observação em si implica
um tipo de relação eu—outro, entendendo-se nesse binômio a
relação que se estabelece entre o ego e o inconsciente, e entre o
ego e o mundo existencial, em que neutralidade e objetividade não
se constituem ambição do sistema observador, sobretudo quando se
está em busca do conhecimento do inconsciente. Isso já foi
demonstrado na epistemologia do paradigma (quarto capítulo). “Em
consequência, do ponto de vista da Psicologia, o sistema observado
consistiria não de objetos físicos, como também incluiria o
inconsciente, ao passo que à consciência caberia o papel de
instrumento de observação” (Pauli in Jung, vol. 8; 439, nota 129).
Pauli corrobora a própria visão de Jung de que a psique é
sujeito e objeto do processo de observação, acrescentando-se a
isso o fato de que a consciência como instrumento de observação
do inconsciente tem seus limites e tendências unilaterais naturais. A
observação do inconsciente torna-se, assim, uma questão altamente
complexa e delicada para o método científico.
A apreensão de material inconsciente demanda do
observador certas habilidades que vão além da acuidade perceptiva
e perspicácia intelectual, exigindo sensibilidade e empatia com o
sistema observado.

Com esta questão relativa à natureza do inconsciente começam as extraordinárias


dificuldades intelectuais que a psicologia dos processos inconscientes coloca em
nosso caminho. Estas dificuldades surgem inevitavelmente todas as vezes que a
mente tenta, audaciosamente, penetrar no mundo do desconhecido e do invisível.
(vol. 8; 381)
(...) a simples auto-observação e a auto-análise intelectual são meios inteiramente
inadequados para estabelecer o contato com o inconsciente. (vol. 8; 165)

A esfera intelectual, na verdade, é insuficiente como


instrumento de captação dos fatos observados. Ou seja, todas as
funções da consciência (sentimento, pensamento, sensação e
intuição) devem estar disponíveis para o sistema observador ser
capaz de captar de forma abrangente o fenômeno psicológico.
Evidentemente, essa é uma recomendação ideal, possível de
ser atingida apenas nos limites da consciência do próprio
observador. E daí já decorre um tipo de limite no processo de
apreensão do fenômeno psíquico – as limitações do sistema
observador. O treinamento do observador é recomendação
indispensável ao profissional na psicologia analítica e em quaisquer
atividades a que ele se dedique com a finalidade de aperfeiçoar sua
capacidade de observação. Nesse contexto, é oportuno sublinhar
novamente a consciência como o instrumento primordial de
observação.

Da equação psíquica do sistema observador


“O efeito dessa equação pessoal já começa na observação.
Vemos aquilo que melhor podemos ver a partir de nós mesmos”
(vol. 6; 8). A observação é condicionada pela visão do observador. A
equação psíquica do sistema observador inclui dois aspectos que se
somam: a personalidade do observador (subjetividade) e seu ponto
de vista teórico na observação em curso. O primeiro aspecto é de
natureza, até certo ponto, imponderável e subjetiva. O segundo
aspecto é compartilhado pela visão teórica da comunidade a que
pertence o pesquisador, conferindo intersubjetividade à observação.
A óptica do observador é o instrumento que apreende o
fenômeno, ela determina seu ponto de vista e a perspectiva de
abordagem do fenômeno. A forma de perceber o fenômeno por
parte do observador está assentada também na ontologia, que
conforma a visão de mundo e de realidade do sistema observador. A
visão do observador na psicologia analítica está assentada na
noção de totalidade, na realidade psíquica como uma dimensão
simbólica na qual está inserido o ser humano como um ser
simbólico. Dessa forma, o fenômeno a ser observado será captado
pela lente da perspectiva simbólico-arquetípica.
O sistema observador considera o fenômeno a partir das
premissas epistemológicas adotadas que definem o que pode ou
deve ser alvo de observação. Na perspectiva simbólica, o fenômeno
psíquico passível de observação e apreensão é o símbolo.
A relação entre o sistema observador e o fenômeno
observado é estreita, dinâmica e de mútua interferência. Está fora
de cogitação uma observação exclusivamente objetiva, como já foi
visto a respeito da objetividade possível na psicologia do
inconsciente. O processo de observação integra sujeito e objeto em
sua totalidade consciente e inconsciente, podendo ser almejado
apenas um equilíbrio entre subjetividade e objetividade, que oscila
entre a objetividade possível e a subjetividade controlável.

Em parte alguma, como no campo da psicologia, é exigência absolutamente básica


que o observador e pesquisador sejam adequados a seu objeto, no sentido de
serem capazes de ver uma e outra coisa. Exigir que só se olhe objetivamente nem
entra em cogitação, pois isto é impossível. Já deveria bastar que não se olhasse
subjetivamente demais. O fato de a observação e a interpretação subjetivas
concordarem com os fatos objetivos prova a verdade da concepção apenas na
medida em que esta última não pretenda ser válida em geral, mas tão-somente
para aquela área do objeto que está sendo considerada. (vol. 6; 8)
A relação eu—outro no método junguiano é flexibilizada, mas
não anula a distinção entre um e outro, tanto na esfera intrapsíquica
(consciente—inconsciente) como na das relações interpessoais (eu
—mundo). A anulação da diferença entre ambos anula também a
possibilidade de que qualquer conhecimento seja produzido, pois “a
identidade sujeito—objeto torna impossível o conhecimento” (vol. 6;
449).

Da dinâmica entre o sistema observado e o sistema observador


O sistema observado e o sistema observador no processo de
observação se transformam pela ação da própria observação, que é
do tipo dialeticamente participante, no qual os sistemas se tornam
relativamente abertos entre si. No processo analítico, em particular,
a dinâmica entre os dois sistemas se realiza através de trocas que
se efetivam pelo vínculo estabelecido entre ambos. O conhecimento
se produz pela troca entre paciente e analista e, ainda, pela troca
entre consciente e inconsciente de ambos.
As resultantes dessa dinâmica têm diversos vetores, que
operam transformações com base na relação entre os sistemas
implicados (e—outro). A observação, nesse caso, pode ser definida
como do tipo “dialogante”. Seja no processo de autoconhecimento
(ego-inconsciente), seja no processo de conhecimento de um objeto
externo, a ética do observador (consciência conhecedora) é fator
preponderante, que exige dele que esteja empenhado e
comprometido com suas próprias observações, pois a assimilação
de um conhecimento novo (inconsciente) nem sempre é uma tarefa
fácil ou agradável para a consciência.
A confrontação com o arquétipo ou com o instinto é um
problema ético de primeira ordem, cuja urgência, porém, só é
sentida por aquelas pessoas que se vêem em face da necessidade
de tomar uma decisão quanto à assimilação do inconsciente e à
integração de sua personalidade. (vol. 8; 410)

Tão logo abordamos esta questão, devemos abandonar o terreno da Ciência,


porque agora precisamos da questão criadora de confiar nossa vida a esta ou
àquela hipótese. Em outras palavras é aqui que começa o problema ético sem o
qual é inconcebível qualquer cosmovisão (atitude em relação ao mundo). (vol. 8;
740)

Outro tipo de dinâmica que se estabelece entre o sistema


observado e o sistema observador é apontado por Jung na
divulgação de uma teoria e suas pesquisas – produção de
conhecimento científico. Jung (vol. 8) discute a teoria psicológica
como representante de um sistema observador, interagindo com
sistemas observados quando de sua formulação; em sua
divulgação, a teoria se torna um sistema observado pelo público
que, por sua vez, reage a ela.
“Esta equação pessoal psicológica aparece mais ainda
quando se trata de expor ou comunicar o que se observou” (vol. 6;
8). A teoria é produzida de acordo com a equação pessoal de seu
autor, e o público a recebe de acordo com sua equação psicológica.
Essa relação abrange, segundo Jung (vol. 8), a questão dos
complexos e da tipologia psicológica envolvidos na formulação de
um modelo teórico e na sua avaliação.

Por isto é que a teoria psicológica expressa, antes e acima de tudo, uma situação
psíquica criada pelo diálogo entre um determinado observador e certo número de
indivíduos observados. Como o diálogo se trava, em grande parte, no plano das
resistências dos complexos, a teoria traz necessariamente a marca específica dos
complexos: ela é chocante, no sentido mais geral da palavra, porque atua, por sua
vez, sobre os complexos do público. Por isto, todas as concepções da psicologia
moderna são, não apenas controversas, mas provocantes. Causam no público
reações violentas de adesão ou de repulsa, e, no domínio da discussão científica,
provocam debates emocionais. (vol. 8; 214)

O aspecto provocante, controverso e instigante da teoria lhe


confere um valor simbólico; assim, pode-se dizer que a ciência
adquire o estatuto de manifestação simbólica, de acordo com o
conceito de símbolo da psicologia analítica e, como afirma Cassirer
([1944]1997), a respeito das produções humanas e seu caráter
simbólico.
O caráter dialético e construtivo do método junguiano já está
expresso na forma de apreensão dos fenômenos investigados. A
relação de troca dinâmica e transformadora, estabelecida entre o
sistema observador e o sistema observado, caracteriza seu aspecto
dialético. O aspecto construtivo reside no fato de que o
conhecimento é forjado desde a situação de observação.

Considerações sobre a apreensão do fenômeno/símbolo


Algumas questões se colocam quanto ao método de
captação do símbolo, que, em certa medida, predispõe e orienta a
observação desse método. A primeira questão metodológica que se
coloca é: Como detectar a presença de um símbolo para que seja
possível observá-lo e apreendê-lo adequadamente?
Sem essa reflexão, não será possível definir os fenômenos
que são passíveis de investigação e compreensão, escolher os
objetos de observação e mesmo decidir sobre a relevância de tais
fenômenos para a investigação.
Considerando que a formulação de um símbolo depende da
cooperação entre consciente e inconsciente para se realizar –
atitude favorável da consciência (Jung, vol. 6) –, pode-se dizer que a
emergência de um símbolo conta com a anuência da consciência,
no sentido de que o ego deseja e precisa da mensagem contida no
símbolo, embora isso não seja garantia de que ele tenha
disponibilidade para compreender a mensagem e, por isso, muitas
vezes precise de ajuda para compreendê-lo. Considerando, ainda,
que o aspecto consciente do símbolo consiste na formatação
reconhecível de que ele está revestido e pela qual é captado pela
consciência que o reconhece, seu aspecto desconhecido representa
o enigma a ser decifrado, que se constitui justamente daquilo de que
a consciência se ressente no momento. Essa conjunção de fatores
via de regra provoca, no ego, uma sensação vivencial de
inquietação, um certo fascínio, no sentido de que, simultaneamente,
atrai e ameaça a estabilidade da consciência.

O símbolo age de modo sugestivo, convincente e ao mesmo tempo exprime o


conteúdo da convicção. Ele age de modo convincente graças ao numen que é a
energia específica própria do arquétipo. A vivência do último (arquétipo) não é só
impressionante, mas de tipo comovente. (vol. 5; 344)

O aspecto numinoso da vivência simbólica é o fator mais


indicativo da presença de um símbolo, no entanto, há gradações
variadas de numinosidade na experiência cotidiana, razão pela qual
o símbolo pode ser indicado por diferentes graus de mobilização
emocional da consciência pessoal e coletiva.

O símbolo é sempre algo intrigante e instigante para a consciência que o vivencia;


seu caráter ambivalente e paradoxal produz uma sensação simultânea de plenitude
e vazio. Nós que escolhemos trabalhar nesta profissão temos quase obrigação de
nos exercermos na reflexão e auto-observação desses estados de espírito. (Penna,
1997)
Em resumo, o sinal indicativo da presença de algo que tem
valor simbólico para a consciência é uma sensação de inquietação,
um sentimento de curiosidade e estranheza; trata-se de uma
experiência mobilizadora de energia que atrai a atenção da
consciência (caráter numinoso do símbolo). Via de regra, um evento
com alto valor simbólico é considerado pelo ego como ao menos
significativo, algo que faz sentido tanto para um indivíduo, no caso
de símbolos individuais, como para uma comunidade, no caso de
símbolos coletivos. Ou seja, pode-se dizer que um símbolo nunca
passa despercebido para o sistema ego-consciência.
Pelo mecanismo de autorregulação, um conflito não
elaborado tende a reconstelar a tensão entre os opostos
repetidamente, em busca de integração das polaridades. Dessa
forma, eventos repetitivos são sinais importantes da presença de um
símbolo que “precisa” ser compreendido a fim de ser integrado à
consciência. Outro aspecto importante a ser considerado na
apreensão dos símbolos, no paradigma junguiano, é o contexto do
fenômeno, ou seja, o contexto em que eles emergem.

Considerações sobre o contexto do símbolo


Na investigação psicológica, no âmbito do paradigma
junguiano, o contexto do evento psíquico deve ser considerado no
processo de observação (apreensão) e, ainda, no processo de
elaboração de seu sentido e significado simbólicos (compreensão).
Para Jung, epistemologicamente, todo conhecimento é
contingente, isto é, acontece dentro de um contexto específico. A
consciência é um produto psíquico resultante do inconsciente e da
evolução humana, considerada por ele como um fato contingente da
psique, modelado pelo tempo e relacionado com as condições
históricas da humanidade.
O contexto mais amplo e geral de um fenômeno psicológico
qualquer é o contexto arquetípico, e o mais estrito e específico é o
contexto individual. Entre esses dois polos extremos, há gradações
que devem ser observadas de acordo com a situação e o objetivo
da investigação em curso.
O contexto da consciência é a dimensão espaçotemporal,
enquanto o contexto arquetípico é atemporal e aespacial. O
contexto do fenômeno a ser pesquisado deve ser considerado, em
primeiro lugar, em relação à dimensão espaçotemporal em que ele
ocorre, isto é, a consciência coletiva a que a consciência
conhecedora individual está referida (contexto sociocultural); em
segundo lugar, coloca-se o contexto intrapsíquico em que o símbolo
emerge, ou seja, a situação do sistema psíquico no que se refere à
compensação energética entre consciente e inconsciente. O
contexto intrapsíquico envolve o campo dos complexos e dos
arquétipos.
Jung apontou a importância da delimitação do contexto do
símbolo notadamente no trabalho com sonhos, mas a atenção para
com esse aspecto se aplica a todo o método junguiano. A
delimitação do contexto em que o fenômeno é observado favorece a
elaboração de seu significado na etapa de compreensão do material
inconsciente.

O contexto psicológico de conteúdos oníricos consiste no tecido de associações em


que a expressão onírica se acha naturalmente incluída. Teoricamente nunca
podemos sabê-lo de antemão; deve-se então tomar como regra absoluta que, de
início, todo sonho ou fragmento onírico seja considerado como algo desconhecido;
além disso, deve-se fazer uma tentativa de interpretação apenas depois de captar o
contexto. (vol. 12; 48)

A atenção cuidadosa no estabelecimento do contexto


psicológico do símbolo evita distorções, indesejáveis ou excessivas,
na relação entre os sistemas observador e observado, discutida
anteriormente.

Quero chamar a atenção para o fato de que não é seguro interpretar um sonho sem
percorrer todos os detalhes de seu contexto, com todo cuidado possível. Nunca
aplique nenhuma teoria, mas pergunte sempre ao paciente como ele se sente em
relação às imagens que produz. (vol. 18; 271)
(...) a psicologia em si apresenta dificuldades suficientes quando se trata da
questão de como interpretar os sonhos de outra pessoa ou, em outras palavras, de
como entender símbolos. Nesse empreendimento somos dificultados por nossa
tendência quase insuperável de preencher com projeções as lacunas
inevitavelmente presentes em nossa compreensão: pela suposição de que nossos
pensamentos são também os do nosso interlocutor. Essa fonte de erro é possível
eliminá-la com o meu método de averiguar o contexto das imagens oníricas e de
renunciar a pressupostos teóricos (com exceção da hipótese heurística de que os
sonhos têm algum sentido). (vol. 8; 471)

A delimitação do contexto geral do símbolo é particularmente


necessária na sua compreensão, através da amplificação simbólica
dos conteúdos do inconsciente.

É indispensável, no entanto, dar às fantasias emergentes, estranhas à consciência


e aparentemente ameaçadoras em relação a ela, um contexto que as aproxime da
compreensão. Como a experiência mostra, isto ocorre favoravelmente através do
material mitológico comparativo. (vol. 12; 38)

Tomando-se os sonhos como exemplo de manifestação


simbólica de caráter essencialmente individual e, por sua vez, os
mitos como símbolos de caráter coletivo, os primeiros se expressam
na consciência individual e seu contexto é a psique individual,
enquanto os últimos são expressões da consciência coletiva e seu
contexto é a cultura. A compreensão do material simbólico, à luz da
psicologia analítica, encaminha-se de tal modo que este faça
sentido para a consciência que o experimenta e, ainda, que possa
cumprir sua finalidade de ampliação da consciência e o
consequente encaminhamento do processo de individuação. Para
tanto, o tratamento dado aos símbolos é de uma “reinterpretação
psicológica” deles (Von Franz, [1975]1992). Nesse sentido, a
contextualização das manifestações simbólicas é necessária em
dois níveis: o contexto vivencial, em que o símbolo emerge, e o
contexto histórico-cultural individual e/ou coletivo, em que ele se
situa – ambos os contextos, vivencial e histórico, interpenetrando-
se. “Quando nos esforçamos para compreender os símbolos,
confrontamo-nos não só com o próprio símbolo como com a
totalidade do indivíduo que o produziu. Nesta totalidade, inclui-se
um estudo do seu universo cultural” – diz Jung ([1964]1977, p. 92).
Sobre a necessidade de circunscrição do contexto do
símbolo, Von Franz adverte, em primeiro lugar, que “as
representações arquetípicas fogem a toda tentativa de apreensão
acadêmica, isto é, puramente intelectual” ([1975]1992, p. 107), ou
seja, o contexto vivencial de interpretação do símbolo não se
restringe ao âmbito racional. Em segundo lugar, o autor afirma que
as manifestações arquetípicas “são delimitadas e genuinamente
apreensíveis na cultura concreta de um povo ou no trabalho e na
experiência de um indivíduo. Sem essa ‘espécie de base’ na
realidade psicológica” (p. 107) e na realidade histórica, pode-se
apenas descrever tais manifestações de modo aleatório e arbitrário
sem que seja alcançada a elaboração e compreensão do material.
A consideração do tom emocional (numinosidade) de uma
manifestação é fundamental, como foi visto, para que seja possível
detectar a presença de um símbolo e seu valor psicológico para a
investigação. Do contrário, “tudo e qualquer coisa” pode ser tomado
como evento simbólico.

A psicologia é a única ciência que precisa levar em conta o fator “valor” (isto é, o
sentimento), pois é ele o elemento de ligação entre ocorrências físicas e a vida. Por
isso acusam-na tanto de não ser científica; seus críticos não compreenderam a
necessidade prática e científica de se dar ao sentimento a devida atenção. (Jung,
[1964]1977, p. 99)

Compreensão do fenômeno/símbolo
Quanto à compreensão do fenômeno, a leitura simbólica será
aplicada ao material com o objetivo de elaborar o símbolo e traduzi-
lo para a consciência. Será buscada a melhor forma de
compreender os fenômenos investigados.
A compreensão do fenômeno psíquico diz respeito à
interpretação e à elaboração dos símbolos observados (captados),
tendo por objetivo traduzir os fatos em termos psicológicos e
compreendê-los de tal forma que o material desconhecido
(inconsciente) possa ser integrado à consciência, promovendo sua
ampliação. Esse é o processo de produção e acumulação de
conhecimento (criação e ampliação da consciência) na psicologia
analítica, pois “chamamos tudo que não conhecemos de
inconsciente” (vol. 18; 248).
A perspectiva simbólica da realidade e do ser humano é o
ponto de vista desde o qual a compreensão do fenômeno psíquico
se realiza. A visão simbólica dos fenômenos considera o fenômeno
psíquico como uma expressão da conjunção entre o arquétipo e a
experiência existencial.

Pensamento simbólico: caráter hermenêutico do método


O método junguiano é hermenêutico desde sua base, ao
propor a tradução dos aspectos incógnitos do símbolo para a
linguagem da consciência e ao valorizar o sentido e o significado
das experiências humanas. Barcellos (1991) define o método
junguiano como essencialmente simbólico, em que toda prática está
voltada para a busca do significado. A questão do significado não se
encerra no aspecto filosófico ou teórico, mas constitui um problema
de natureza prática e, portanto, concernente ao método. Por isso,
seu método é essencialmente hermenêutico, ao visar, em primeiro
plano, à compreensão do sentido e do significado da vida humana,
tanto no âmbito individual quanto no coletivo.
Essa hermenêutica consiste na tradução “em uma linguagem
atual” das mensagens contidas nos símbolos, “ou talvez mesmo na
criação de uma nova linguagem em geral” (vol. 8; 740). Somente
após essa tradução se torna possível a assimilação do
conhecimento novo de que o símbolo é portador.
O método proposto por Jung para a compreensão do material
inconsciente envolve a decodificação da linguagem simbólica
mediante tradução e compreensão de seu significado para a
personalidade como um todo. A meta da interpretação é propiciar a
integração de conteúdos inconscientes na consciência, ampliando-a,
ou seja, produzindo autoconhecimento e favorecendo o processo de
individuação.
A integração ou assimilação do conhecimento novo depende
de um processo de elaboração do símbolo pela consciência:

O símbolo pressupõe uma função que cria símbolos, e além desta uma função que
os compreende. Esta última função não participa da criação do símbolo, é uma
função por si mesma, que pode se chamar pensamento simbólico ou entendimento
simbólico. (vol. 6; 171)

A função transcendente é a função psíquica que cria


símbolos e, como tal, é coordenada pela totalidade, sendo de
natureza espontânea e natural. O pensamento simbólico, como a
função psicológica que compreende os símbolos, tem sua origem na
discriminação que faz Jung (vol. 5) a respeito de dois modos de
pensar: o pensamento dirigido e o pensamento não dirigido
(simbólico).
Para Jung, o pensamento dirigido é racional, adaptativo,
predominantemente lógico e objetivo; está ancorado na linguagem
conceitual e comprometido com o mundo externo, sendo uma
expressão de funções conscientes superiores. Por sua vez, o
pensamento não dirigido é associativo, analógico, flui por imagens e
tem proximidade com o mundo interior da fantasia e da imaginação;
é movido pelas demandas do inconsciente, ainda que seja realizado
pela consciência, e não está sob seu controle total ou exclusivo.
O pensamento científico moderno baseia-se,
preferencialmente, no pensamento racional dirigido. O pensamento
não dirigido, embora natural e espontâneo, sendo, portanto,
inevitável, tem sido pouco valorizado pela cultura ocidental. Ambas
as formas de pensar funcionam em paralelo e podem ser
complementares, dependendo da atitude da consciência.
Por pensamento simbólico, Jung entende uma forma de
pensar que integre os dois tipos. O pensamento simbólico, como
função que compreende os símbolos, possibilita a tradução desses
em suas vertentes racionais e irracionais, imagéticas e conceituais,
e ainda inclui o sentimento e a intuição. Dessa forma, nota-se que o
termo “pensamento simbólico” não é o mais indicado para expressar
exatamente a função psicológica que compreende o símbolo, uma
vez que esse “entendimento” requer a ativação de funções da
consciência para além do pensamento, incluindo percepção,
sentimento e intuição. Pode-se supor que a escolha do termo
“pensamento simbólico” tenha tido a intenção crítica de contrapor,
ao pensamento científico vigente, um outro tipo de pensamento
mais amplo, menos exclusivamente racional e, sobretudo, não
necessariamente lógico, mas também analógico. Entretanto, trata-
se, sem dúvida, de uma função operada pela consciência.
O processamento simbólico1 será, então, a forma de abordar
os símbolos em sua compreensão. Esse tipo de pensamento deve
ser exercitado e desenvolvido pelo psicoterapeuta e pelo
pesquisador em psicologia analítica, a fim de capacitá-los na
captação e na compreensão do material simbólico.
Resumidamente, o método de compreensão dos fenômenos
psíquicos da psicologia analítica consiste de quatro etapas
interligadas entre si no processo de compreensão dos símbolos:
tradução, interpretação, elaboração do material simbólico e, por fim,
sua integração na consciência. Alguns parâmetros devem ser
observados no processo compreensivo das manifestações
simbólicas, os quais circunscrevem o contexto do símbolo e
encaminham a compreensão de seu significado.
Os parâmetros de causa e finalidade: caráter sintético construtivo do método
Ante o fenômeno psíquico observado, três perguntas básicas
são colocadas para que se alcance sua compreensão: Por quê?
Para quê? Qual o sentido ou significado deste símbolo?

Para que serve este sonho? Que significado tem e o que deve operar? Estas
questões não são arbitrárias, porquanto podem ser aplicadas a qualquer atividade
psíquica. Em qualquer circunstância, é possível perguntar-se “por quê?” e “para
quê?”, pois toda estrutura orgânica é constituída de um complexo sistema de
funções com finalidade bem definida e cada uma delas pode decompor-se numa
série de fatos individuais, orientados para uma finalidade precisa. (vol. 8; 462)

A primeira pergunta – “por quê?” – aponta para as origens e


causas do fenômeno. A segunda – “para quê?” – dirige-se para a
finalidade do fenômeno. E a terceira – “qual o sentido?” – atenta
para as relações de significado que possam estar implicadas no
fenômeno, a sincronicidade, que está além da dimensão de causa e
finalidade.
Causa, finalidade e sincronicidade são determinantes do
fenômeno, que devem ser consideradas no processo de sua análise
e compreensão. Esses três aspectos configuram os parâmetros de
interpretação ou de processamento.
O método junguiano de abordagem dos fenômenos psíquicos
integra as polaridades causalidade–finalidade.
Os primeiros indícios da orientação teleológica do
inconsciente já estão esboçados na conclusão de Jung sobre as
personalidades parciais da médium observada em sua tese de
doutorado. Segundo Jung (vol. 1), uma parte mais madura e sábia
da personalidade da médium estava fora da consciência e se
expressava através das outras incorporadas em transe, como forma
de se fazerem presentes. Com o tempo, elas a ajudaram em direção
ao desenvolvimento e ao equilíbrio da personalidade, quando então
os transes desapareceram.
Para Jung, a abordagem redutivo-causal esgota sua
eficiência quando “os símbolos dos sonhos não são mais passíveis
de serem reduzidos a reminiscências ou anseios pessoais, isto é,
quando emergem as imagens do inconsciente coletivo” (vol. 7; 122).
De acordo com a concepção da psique como um sistema
dinâmico, em que a energia flui em busca de equilíbrio e as tensões
entre polaridades acionam, naturalmente, o mecanismo de
autorregulação, todo evento psíquico é forjado numa relação de
causa e finalidade. O símbolo é causado por uma situação de
tensão energética e, simultaneamente, tem por finalidade alcançar a
homeostase do sistema em busca de um nível de desenvolvimento
da personalidade mais íntegro.
A perspectiva causal esclarece sobre a etiologia do conflito
(sintoma) e auxilia no diagnóstico; o ponto de vista finalista está
diretamente relacionado ao prognóstico e ao processo de
transformação (cura).

Sabemos que todo produto psíquico, encarado do ponto de vista causal, é a


resultante de conteúdos psíquicos que o precederam. Sabemos, além disso, que
esse mesmo produto psíquico, considerado sob o ponto de vista de sua finalidade,
tem um sentido e um alcance que lhe são próprios dentro do processo psíquico.
(vol. 8; 451)

Metodologicamente, Jung integra a perspectiva da


causalidade e da finalidade na análise dos aspectos retrospectivos
(causas) e em sua síntese com os aspectos prospectivos
(finalidade) do material psicológico.
O investigador que procede de modo puramente redutivo descobre o seu sentido
apenas nesses aspectos gerais do humano e nada mais exige de uma explicação
senão a redução do desconhecido ao conhecido e do complexo ao simples. Chamo
esse tipo de compreensão de “compreensão retrospectiva”. No entanto, existe um
outro tipo de compreensão que não é de natureza analítico-redutiva, mas simbólica
ou construtiva. Chamo esse tipo de compreensão de “compreensão prospectiva” e
o método que lhe corresponde de método construtivo. (vol. 4; 391)

Essa forma de abordagem – denominada por Jung “método


sintético-construtivo” – decorre dos pressupostos epistemológicos
acerca do conceito de símbolo, da concepção de energia psíquica,
da hipótese de inconsciente coletivo e do processo de individuação.
A abordagem dos eventos psíquicos, do ponto de vista simbólico,
resulta num método em que causa e finalidade estão
simultaneamente implicadas e são rigorosamente observadas na
compreensão dos fenômenos.

Em primeiro lugar, tive que me convencer profundamente de que a “análise”, na


medida em que se restringe à decomposição, deve ser necessariamente seguida
por uma síntese. Em segundo lugar, tive que me convencer da existência de um
material psíquico praticamente desprovido de significado quando simplesmente
decomposto, mas que encerra uma plenitude de sentido ao ser confirmado e
ampliado por todos os meios conscientes (é a chamada amplificação). Os valores
das imagens ou símbolos do inconsciente coletivo só aparecem quando submetidos
a um tratamento sintético. Como a análise decompõe o material simbólico da
fantasia em seus componentes, o processo sintético integra-o numa expressão
conjunta e coerente. (vol. 7; 122)

A integração entre análise e síntese é um procedimento


metodológico que confere uma visão mais abrangente da situação
psicológica; está em sintonia com sua noção ontológica de
totalidade dinâmica do ser e do mundo, e com o pressuposto
epistemológico do símbolo como a ponte compreensiva entre
consciente e inconsciente. Assim se configura o caráter sintético
construtivo do método junguiano com base nos parâmetros da
causalidade e da finalidade.

O parâmetro da sincronicidade: caráter hermenêutico construtivo do método


À perspectiva sintética que integra causa e finalidade, Jung
acrescenta a da sincronicidade, em que a relação de coincidência
significativa se coloca. “A causalidade não explica uma determinada
classe de acontecimentos, e que, nesse caso, é preciso levar em
conta um fator formal, isto é, a sincronicidade, como princípio de
explicação” (vol. 8; 934).
A visão teleológica integrada à perspectiva histórico-causal
vai ser ampliada pela noção de sincronicidade. Do ponto de vista
metodológico, as conexões acausais sincronísticas, cujas relações
se estabelecem pelo significado, completam o método junguiano no
que diz respeito aos parâmetros norteadores da interpretação dos
fatos psíquicos.
O método de análise compreensiva dos fatos psicológicos
com a sincronicidade abrange um leque de possibilidades
interpretativas, considerado adequado às características próprias do
fenômeno psíquico (símbolo) na psicologia analítica. A “função que
compreende” os símbolos – processamento simbólico – é definida
no entrelaçamento das causas, das finalidades e das possíveis
sincronicidades presentes no fenômeno.
A hipótese de um “significado preexistente que subsiste em si
mesmo” (Jaffé, 1989, p. 152), independente da consciência (p. 153)
constitui não apenas um princípio epistemológico necessário ao
conhecimento psicológico, mas também uma variável metodológica
importante na compreensão dos fenômenos.
Os significados a priori do símbolo podem ser desvendados
pela consciência no trabalho de elaboração simbólica. A
amplificação simbólica, proposta por Jung, apoia-se, em larga
escala, na função transcendente e na hipótese da sincronicidade.

Tradução, interpretação e elaboração dos símbolos


A interpretação e a elaboração dos símbolos observados e
captados têm por objetivo traduzi-los e compreendê-los de tal forma
que o material desconhecido (inconsciente) do símbolo possa ser
integrado à consciência, promovendo sua ampliação. Somente após
a tradução “em uma linguagem atual” (vol. 8; 740) das mensagens
contidas nos símbolos, torna-se possível a assimilação do
conhecimento novo de que ele é portador.
A primeira etapa do processo de compreensão dos símbolos
consiste em traduzi-los. O material simbólico é encarado como se
fosse um texto em idioma desconhecido que deve ter uma tradução:

Meu modo de proceder não difere daquele usado para decifrar um texto difícil de
ler. O resultado obtido com este método nem sempre é um texto imediatamente
compreensível, mas muitas vezes não passa de uma primeira, mas preciosa
indicação que comporta numerosas possibilidades. (vol. 8; 542)

A tradução dos símbolos é conduzida hermeneuticamente,


por associações, analogias e comparações. O pensamento
associativo tem o objetivo de estabelecer conexões e tecer uma
rede associativa entre o conhecido e o desconhecido.
O método associativo foi utilizado por Jung já com a
formulação do teste de associação de palavras. Para ele, o mistério
do inconsciente só poderia ser desvendado por meio de
associações com os elementos conscientes.
Associação e comparação propiciam a percepção dos
aspectos ocultos do símbolo e têm uma função preparatória no
processo de elaboração simbólica. Nessa fase, procede-se a um
mapeamento da manifestação simbólica, considerando-se
primeiramente seu contexto mais imediato: no caso das
manifestações individuais (sonhos, fantasias, fatos), delimita-se o
contexto subjetivo através de associações pessoais do indivíduo.

Para determinar o sentido do sonho, eu desenvolvi (...) um procedimento que


designo pelo nome de reconstituição do contexto e que consiste em procurar ver,
através das associações do sonhador, para cada detalhe mais saliente, em que
significações e com que nuança ele lhe aparece. (vol. 8; 542)

Com a reconstituição do contexto, é processada a tradução,


então o material simbólico é preparado para ser interpretado como
um “texto legível” e, portanto, compreensível. A etapa seguinte do
processo é a interpretação do material obtido pela tradução.
Considerando-se que “um dos princípios da psicologia analítica é
que os sonhos devem ser interpretados de modo simbólico, e não
podem ser tomados ao pé da letra” (vol. 5; 4), a interpretação é
conduzida primordialmente por meio de uma atitude simbólica.
Jung considera a delimitação do contexto “um trabalho
simples e quase mecânico que tem um valor meramente
preparatório” (vol. 8; 542), mas a verdadeira interpretação demanda
uma combinação complexa de capacidades.

(...) a verdadeira interpretação do sonho, pelo contrário, é geralmente uma tarefa


exigente. Ela pressupõe empatia psicológica, capacidade de combinação,
penetração intuitiva, conhecimento do mundo e dos homens e, sobretudo, um saber
específico que se apoia ao mesmo tempo em conhecimentos extensos e numa
certa intelligence du cœur. (vol. 8; 543)
No processo de interpretação, as condições de formação e
função do símbolo são consideradas. Dessa forma, as
manifestações simbólicas são interpretadas com base em aspectos
que configuram os critérios ou parâmetros de interpretação, ou seja,
suas causas, suas finalidades e possíveis relações sincronistícas –
método analítico-redutivo e sintético hermenêutico. A função
compensatória da psique também deve ser considerada, pois ela
favorece a interpretação ao considerar o material simbólico como
resultante (causalidade) da autorregulação e portador de elementos
dos quais a consciência necessita para que sejam alcançados
equilíbrio e integridade da totalidade (finalidade).

É verdade que, na minha opinião, todos os sonhos têm um caráter compensador


em relação aos conteúdos conscientes (...). Embora o sonho contribua para a
autorregulação psicológica do indivíduo, reunindo (...) tudo aquilo que andava
recalcado, desprezado, ou mesmo ignorado, contudo, o seu significado
compensador muitas vezes não aparece imediatamente”. (vol. 8; 483)

Na condução do processo de interpretação dos símbolos,


deve-se, então, levantar algumas questões que orientam a
elucidação de seu significado atual, são elas:
– Que atitude da consciência esse símbolo vem compensar?
– Qual o tema arquetípico subjacente nesse símbolo?
– Que transformação ele anuncia?
Deve-se ter sempre em mente que “qualquer interpretação é
uma hipótese, apenas uma tentativa de ler um texto desconhecido”
(vol. 16; 322).
A meta da interpretação dos símbolos é a viabilização de
transformações internas (autoconhecimento), e tal transformação
requer aproximação e sintonia entre consciente e inconsciente
(ego/si-mesmo) no que se refere a significado e valor. Desse modo,
a interpretação só faz sentido se conduzir à elaboração dos
conteúdos inconscientes e, para tanto requer dedicação e reflexão.
Diz Jung: “(...) sei que quase sempre dá bons resultados fazer uma
meditação verdadeira e profunda sobre o sonho, isto é, quando o
carregamos dentro de nós por muito tempo” (vol. 16; 86).
A elaboração simbólica consiste num processo de
assimilação e integração dos elementos inconscientes do símbolo
na consciência; e ela requer uma atitude reflexiva do ego para
descobrir o sentido e a finalidade da mensagem simbólica.

A maneira pela qual o sonhador lida com os objetos dessa experiência interior não
pode ser caracterizada senão como um verdadeiro trabalho, devido ao modo exato,
cuidadoso e consciencioso mediante o qual o sonhador colige e elabora o conteúdo
que abre passagem do inconsciente para o consciente. (vol. 12; 219)

Aspectos do inconsciente e da realidade existencial,


anteriormente desconhecidos, tornam-se conscientes na elaboração
simbólica, promovendo transformação e ampliação da consciência.
As metas do método de investigação da psique são realizadas ao se
atingir a elaboração do material simbólico e, com isso, a consecução
do processo de individuação.
Embora, em sua obra, Jung tenha formulado e discutido
extensamente a forma como os símbolos devem ser interpretados,
observa-se que, em vários momentos, ele recomenda cautela em
relação à interpretação, pois esta pode abortar o processo de
elaboração dos símbolos.

(...) eu aproveitava uma imagem onírica ou uma associação do paciente para lhe
dar como tarefa elaborar ou desenvolver estas imagens, deixando a fantasia
trabalhar livremente (...). Em muitos casos, isto produzia um efeito terapêutico
notável, encorajava tanto a mim como o paciente a prosseguir no tratamento,
malgrado a natureza incompreensível dos conteúdos trazidos à luz do dia. Tive
necessidade de insistir em seu caráter incompreensível, para evitar que eu próprio,
baseado em certos pressupostos teóricos, recorresse a interpretações das quais eu
tinha consciência não só de que eram inadequadas, mas podiam levar a prejulgar
as produções ingênuas do paciente (...). Eu me via obrigado a tentar oferecer, na
medida do possível, interpretações pelo menos provisórias, entremeando-as com
muitos “talvez”, “se” e “mas”, sem jamais passar além dos limites da configuração
que se apresentava diante de mim. Eu me preocupava sempre em fazer com que a
interpretação desembocasse em uma questão cuja resposta fosse deixada à livre
atividade da fantasia do paciente. (vol. 8; 400)

Essa atitude diante do fenômeno psíquico baseia-se na


concepção de um inconsciente criativo e na hipótese de um
princípio organizador na psique, e disso decorre a hipótese do
símbolo conter um sentido a priori, “independente da consciência”
(Jaffé, 1989).

Por sobre todo o processo parece que paira uma precognição obscura, não só
daquilo que vai tomando forma, mas também de sua significação. A imagem e a
significação são idênticas, e à medida que a primeira assume contornos definidos, a
segunda se torna mais clara. A forma assim adquirida, a rigor, não precisa de
interpretação, pois ela própria descreve o seu sentido. Assim, existem casos em
que posso simplesmente renunciar à interpretação como exigência terapêutica. (vol.
8; 402)

Há também um critério ético envolvido nessa atitude em


relação à interpretação dos símbolos. O valor da vivência simbólica,
isto é, seu aspecto numinoso, indica a necessidade de integração
(conhecimento) do símbolo, mas as condições atuais da consciência
devem ser respeitadas, ou seja, suas limitações e dificuldades.

A confrontação com o arquétipo ou com o instinto é um problema ético de primeira


ordem, cuja urgência, porém, só é sentida por aquelas pessoas que se vêem em
face da necessidade de tomar uma decisão quanto à assimilação do inconsciente e
à integração de sua personalidade. (vol. 8; 410)

Qualquer precipitação no processo de elaboração incorre no


risco de interrompê-lo ou promover uma compreensão puramente
intelectual do símbolo, o que pode ser ainda pior, uma vez que
impede a real transformação da personalidade como um todo coeso
e íntegro.
Uma distinção a ser feita diz respeito ao contexto do
fenômeno investigado. No caso de símbolos individuais trabalhados
no contexto psicoterapêutico, a cautela quanto à interpretação em
nome da melhor elaboração possível não só é recomendada, como
justificada eticamente. No caso de símbolos coletivos ou na
circunstância de investigação e divulgação científica, isso pode se
dar de forma diferente, pois os objetivos da pesquisa científica
divergem da situação clínica, exigindo um tipo de clareza e
organização em sua exposição e, ainda, uma generalidade, que não
cabem no processo psicoterapêutico.

Com o conhecimento científico, porém, o processo é diferente. Aqui temos de


extrair, da soma total de nossas experiências, certos conceitos de validez a mais
ampla possível, e que não são dados a priori. Esta atividade especial implica uma
tradução do arquétipo operativo atemporal e preexistente na linguagem científica do
presente. (vol. 8; 402)

O recurso metodológico, utilizado por Jung, para favorecer a


elaboração simbólica, sobretudo em relação aos seus aspectos
arquetípicos, é a amplificação simbólica. Embora, desde o início,
seja evidente em sua obra o uso da amplificação (vol. 5), esse termo
surge em 1930 e, a partir de então, é definido, apresentado e
discutido na obra junguiana.
Sobre amplificação simbólica, método e técnica
A amplificação simbólica foi utilizada por Jung na
interpretação dos sonhos, em especial. Considerando-se os sonhos
como manifestações simbólicas de cunho individual, eles são
símbolos individuais por excelência. Com a amplificação, buscam-
se, sobretudo, os significados arquetípicos do símbolo. Os
significados pessoais, associados aos complexos, podem ser
investigados pelas associações que o sonhador (indivíduo) faz em
relação ao seu sonho (símbolo).
Jacobi prefere incluir as associações pessoais no processo
de amplificação como um todo, distinguindo amplificações subjetivas
e amplificações objetivas:

pelas amplificações subjetivas, o analista pergunta ao sonhador o que cada


elemento do sonho significa para ele pessoalmente (...), pela amplificação objetiva,
os elementos do sonho são enriquecidos com o material simbólico universal (...).
([1942]1973, p. 89)

O procedimento da amplificação tem suas raízes no método


associativo usado por Jung no teste de associação de palavras e,
ainda, no conceito de pensamento não dirigido que flui por imagens,
analogias e metáforas. A amplificação apoia-se também na hipótese
do significado preexistente do símbolo, ou seja, seu caráter
arquetípico, e na possibilidade de conexões sincronísticas nos
eventos psicológicos.
Antes mesmo de explicitar e descrever a amplificação,
observa-se o uso desta em seus estudos. O tratamento dado ao
material de Miss Miller (vol. 5) é o primeiro exemplo de amplificação
mítica na obra de Jung. O modo como ele interpreta as fantasias de
Miss Miller demonstra sua primeira tentativa de encontrar coerência
entre ideias de diferentes sistemas de conhecimento (religião,
filosofia, história, literatura e mitologia).
A amplificação simbólica é um tipo específico de
procedimento metodológico, que é aplicado ao material psíquico
com a finalidade de favorecer a tradução dos símbolos.
Segundo Pieri (2002), a amplificação é o método introduzido
por Jung para o desenvolvimento, em amplitude e intensidade, das
expressões inconscientes, a fim de viabilizar sua leitura psicológica.
O termo “amplificação” indica, em geral, na retórica, o
conjunto dos procedimentos e efeitos de dilatação, tanto da
expressão como dos conteúdos do discurso. A retórica antiga
encontrou efeitos particulares no enriquecimento das ideias e na
intensificação das emoções através da amplificação, que consistia
em

aumento gradual ou desenvolvimento da matéria, o confronto entre o argumento


desenvolvido e outro análogo, a remitência dedutiva à importância do objeto em
questão, e a acumulação ou adição de elementos diferentes entre si. (Ibid., p. 32)

O processo de amplificação simbólica, proposto por Jung,


consiste em ampliar e enriquecer os elementos do símbolo, através
de associações e analogias que fluem numa cadeia contínua de
similaridades, visando traduzir e interpretar o material simbólico
desconhecido. O ato de ampliar e enriquecer o símbolo por meio de
analogias diversas favorece a compreensão de seu significado
arquetípico, pela diversidade de possibilidades oferecidas ao ego
para captar seu aspecto oculto e encontrar o significado que mais
sentido faça para a consciência atual.
Considerando-se o símbolo como “o arquétipo que aparece
no aqui e agora do espaço e do tempo” (Jacobi, [1957]1986, p. 72) e
“uma imagem que descreve da melhor maneira possível a natureza,
obscuramente, pressentida de algo” (Jung, vol. 5), ele é uma
expressão que esconde e revela significados para a consciência e
que só pode ser traduzido por meio de associações e analogias.

A amplificação é recomendada sempre que se trate de uma vivência obscura, cuja


vaga insinuação deva ser multiplicada e ampliada para ser colocada num contexto
psicológico a fim de tornar-se compreensível. (vol. 12; 403)

Na amplificação, os motivos do símbolo são enriquecidos por


imagens análogas de lendas, mitos, contos ou qualquer material
cultural disponível. Tais analogias não são selecionadas com base
em critérios temporais lógicos ou históricos (Jacobi, [1942]1973), em
virtude do caráter atemporal e universal do arquétipo.

Para interpretar razoavelmente os “produtos” do inconsciente, tive necessidade de


fazer uma leitura bem diferente dos sonhos e fantasias, de acordo com a natureza
do caso – não os reduzia, como Freud, ao pessoal, mas colocava-os em analogias
com símbolos da mitologia, da história comparada das religiões e de outras fontes,
para conhecer os sentidos que eles pretendiam exprimir, este método deu
resultados muito interessantes, porque permitiu uma leitura totalmente nova dos
conteúdos do sonho e da fantasia, o que possibilitou uma união das tendências
arcaicas (...) com a personalidade consciente. (Jung, vol. 4; 761)

Por meio da amplificação, Jung propõe que se olhe para os


produtos simbólicos desde o inconsciente. Trata-se de um exercício
de flexibilidade e reversibilidade para a consciência, habitualmente
unilateral. A amplificação é utilizada no processo de compreensão
dos fenômenos psíquicos como um recurso facilitador da tradução
da mensagem simbólica e um orientador da interpretação do
símbolo.
As amplificações são situadas de modo sequencial na narrativa, que oferece ela
mesma uma certa seleção de imagens amplificadoras. Quando o conjunto tiver sido
enriquecido dessa maneira, vem a interpretação – ou seja, a tradução em
linguagem psicológica moderna, o que significa a vinculação ou associação das
imagens com a experiência psíquica que pode ser vivida no presente. Em
consequência, uma interpretação jamais é absolutamente correta, mas tem em
maior ou menos grau, um efeito “esclarecedor” ou “iluminador” e vivificador. Com
efeito, a interpretação não tem um alvo que ultrapasse a religação da consciência
com a fonte de energia que é o arquétipo. (Von Franz, [1975]1992, p. 108)

Observa-se por vezes, no entanto, que o próprio processo


amplificatório produz um efeito numinoso esclarecedor (insight) para
a consciência, realizando a elaboração do símbolo sem que seja
necessária uma interpretação externa. Mais uma vez é apontada a
possibilidade e/ou necessidade de ser dispensada a interpretação
do símbolo em favor da amplificação.
Com a amplificação, Jung pretende alcançar o tema
arquetípico que está na raiz do símbolo. O processo amplificatório
busca as formas gerais coletivas, contidas na subjetividade e na
particularidade dos símbolos individuais.
A amplificação é valiosa, também, para a compreensão de
símbolos coletivos (culturais), nos quais o contexto histórico social
imediato equivale ao contexto pessoal do símbolo individual. Os
símbolos coletivos ou culturais revelam, na amplificação, seus
aspectos arquetípicos prospectivos, fornecendo um entendimento
ampliado da situação atual e futura da coletividade, além de sua
conexão com a história passada.
No caso dos símbolos individuais, as amplificações não são
fornecidas apenas pelo indivíduo, mas também pelo analista, que
ajuda na orientação das analogias, evitando que se caia na rede dos
complexos (Jacobi, [1942]1973). Na pesquisa científica, elas são
conduzidas quase exclusivamente pelo pesquisador.
Com a amplificação simbólica, Jung abre um caminho de
ligação do indivíduo com o aspecto coletivo, da cultura e do
inconsciente, permitindo uma saída para o isolamento da
subjetividade. As manifestações arquetípicas são a “brecha, a
passagem, a forma de comunicação” entre o indivíduo e a cultura, e
entre a patologia e a normalidade (Maroni, 1998).
O símbolo é o produto intermediário comum entre o
inconsciente e o consciente, é a síntese entre o coletivo e o
individual. Dessa forma, a amplificação simbólica possibilita o
trânsito construtivo e criativo entre essas esferas da psique e da
vida humana.
Para Maroni (1998), assim como para Clarke (1994), a
amplificação equivale ao método hermenêutico construtivo. A
compreensão construtiva busca os aspectos arquetípicos do
fenômeno e procura tecer analogias com outros sistemas de
conhecimento. Feita a análise comparativa dos vários sistemas, as
formações típicas resultantes apontam para o significado arquetípico
do símbolo amplificado.
A amplificação como recurso metodológico na elaboração
dos símbolos, nos sonhos ou nos mitos está em perfeita sintonia
com a noção de ampliação da consciência como meta do processo
de individuação. O objetivo amplificador, através do efeito
esclarecedor da amplificação, é condizente com a perspectiva
simbólico-arquetípica da psicologia junguiana. Por meio da
amplificação, o núcleo arquetípico do símbolo é vivificado e
integrado aos aspectos pessoais atuais da consciência, trazendo à
luz um sentido renovador e transformador para a psique que vive o
símbolo, seja em relação a um sonho, uma fantasia ou uma vivência
existencial (individual), seja em relação a um mito, conto ou evento
histórico (coletivo).
Outro aspecto importante a ser destacado em relação à
amplificação é a vivência psicológica global que ela proporciona,
porque “uma interpretação meramente intelectual jamais é
satisfatória, pois o valor emocional do conteúdo arquetípico é tão
importante quanto sua compreensão” (Von Franz, [1975]1992, p.
108). Nesse sentido, a amplificação cumpre seu papel de promotora
de elaboração simbólica. O processo amplificatório produz uma
compreensão objetiva do material simbólico, uma vez que
estabelece conexões simbólicas com a esfera arquetípica da psique
(psique objetiva), e nisso reside seu papel para a pesquisa
científica.
A maioria dos autores é unânime em considerar a
amplificação simbólica como a característica mais distintiva do
método junguiano de investigação da psique. Com a amplificação, o
caráter hermenêutico do método de Jung adquire um aspecto
construtivo e criativo, denominado por alguns autores de “método
hermenêutico construtivo” (Clarke, 1994; Maroni, 1998).
Até agora a amplificação simbólica foi tratada como um
recurso metodológico, ou como procedimento técnico a serviço da
compreensão dos símbolos, embora seja considerada por C. G.
Jung e pelos pós-junguianos, em geral, como método. Essa questão
merece análise e discussão.
Primeiro, deve-se ressaltar que o fato de Jung chamar a
amplificação de método não é esclarecedor, pois é sabido que ele
usa os termos método e técnica de forma muitas vezes
intercambiável. Ao longo de sua obra, ele denomina como método
vários procedimentos técnicos que utiliza na sua investigação da
psique.
Em que medida, então, a amplificação simbólica, proposta
por Jung, é um recurso técnico utilizado para análise e interpretação
dos símbolos, e até que ponto ela pode ser considerada como o
modo de pensar e construir conhecimento na psicologia analítica?
O processo amplificatório pode ser considerado, por um lado,
como um recurso metodológico que facilita e favorece a tradução e
posterior interpretação do material simbólico, ou, ainda, como uma
técnica propiciatória da elaboração simbólica – entendendo-se por
recurso metodológico um procedimento que auxilia no tratamento
dos fenômenos investigados. Por outro lado, a amplificação pode
ser considerada o próprio método de investigação psicológica de
Jung, referindo-se, nesse caso, a um modo de pensar, de acessar o
conhecimento psicológico e de compreender os fenômenos
psíquicos.
Com base na análise da construção do paradigma junguiano
e do desenvolvimento de seus conceitos e pesquisas, e através da
discussão de sua ontologia, sua epistemologia e seu método, pode-
se concluir que as concepções ontológicas e o modo de pensar o
conhecimento, assim como de acessá-lo e construí-lo, é algo
essencialmente amplificatório. Isto é, flui por analogias e
comparações, além de priorizar a integração dos opostos através da
ampliação do conhecimento e do autoconhecimento dos aspectos
inconscientes, sejam eles de natureza pessoal ou de natureza
coletiva. As investigações junguianas foram conduzidas
preferencialmente por comparação e integração de diversas áreas
do conhecimento, a fim de produzir uma compreensão ampliada da
psique, sobretudo, do inconsciente.
Pode-se considerar, portanto, o caráter hermenêutico
construtivo da investigação da psique, na psicologia analítica, como
um método de construção de conhecimento baseado na
amplificação simbólico-arquetípica dos fenômenos psicológicos.
Entretanto, na prática clínica ou na pesquisa científica, o uso da
amplificação, como instrumento facilitador da compreensão dos
fatos psíquicos, pode ser considerado um procedimento
metodológico, e, dessa forma, será uma técnica a serviço do
método. As técnicas expressivas, em geral, têm esse mesmo
objetivo, sendo por vezes consideradas como a própria amplificação
simbólica pelos junguianos. Na verdade, são recursos técnicos
alternativos de que se lança mão a fim de ampliar e aprofundar o
entendimento dos símbolos.
Jung (vol. 8) descreve seu procedimento amplificatório ante o
material simbólico de pacientes, assim como o uso de recursos
expressivos facilitadores da interpretação dos símbolos:

(...) eu aproveitava uma imagem onírica ou uma associação do paciente para lhe
dar como tarefa elaborar ou desenvolver estas imagens, deixando a fantasia
trabalhar livremente. De conformidade com o gosto ou os dotes pessoais, cada um
poderia fazê-lo de forma dramática, dialética, visual, acústica, ou em forma de
dança, de pintura, de desenho ou de modelagem. (vol. 8; 400)

As técnicas expressivas são instrumentos que visam


favorecer a amplificação dos conteúdos inconscientes contidos no
símbolo e lançar luz sobre seus motivos arquetípicos. Tais técnicas
se demonstram úteis no levantamento de temas arquetípicos
análogos, em diferentes expressões simbólicas, dentro de um
mesmo contexto. Relata Jung: “A multidão caótica de imagens
encontradas com que nos deparamos no início se reduzia, no
decorrer do trabalho, a determinados temas e elementos formais
que se repetiam de forma idêntica ou análoga nos mais variados
indivíduos” (vol. 8; 401).
O material obtido por essas técnicas revela também
semelhanças temáticas entre indivíduos e, por fim, analogias entre
as produções individuais e culturais, apontando a raiz arquetípica
das manifestações simbólicas individuais e coletivas.

Estes fatos mostravam, de modo inequívoco, como as fantasias dirigidas por


reguladores inconscientes coincidem com os documentos da atividade do espírito
humano em geral, conhecidos através da tradição e da pesquisa etnológica. (vol. 8;
402)

A técnica da imaginação ativa, formulada por Jung, baseada


no pressuposto dessas correspondências arquetípicas, é um
instrumento favorecedor da emergência de fantasias e imagens
arquetípicas correlatas na esfera individual. Jung denomina a
imaginação ativa um “método” de produção de configurações
arquetípicas correspondentes (vol. 8).
As técnicas expressivas e a imaginação ativa promovem uma
“amplificação espontânea” dos arquétipos; dessa forma, Jung
considera a amplificação um “método” interpretativo:

É sobre este “processo natural de amplificação” que eu baseio meu método de


determinação do significado dos sonhos, pois os sonhos se comportam exatamente
da mesma maneira como a imaginação ativa, faltando apenas o apoio dos
conteúdos conscientes. (vol. 8; 404)
Em vista do acima exposto, percebe-se que Jung formula a
amplificação como um modo de compreensão das manifestações
simbólicas, assim sendo, ela constitui um método de abordagem
dos fenômenos, que são coletados através de diversas técnicas
(instrumentos). Com o material emergente das técnicas (desenho,
modelagem, dramatização ou imaginação ativa), ele faz uma leitura
amplificatória dos símbolos, ou seja, aborda o material por meio de
um processamento simbólico que opera por analogias e
semelhanças, em busca de regularidades, isto é, em busca do tema
arquetípico comum subjacente. Dessa forma, pode-se admitir o
caráter instrumental da amplificação, dependendo do contexto e da
forma como é utilizada. Mas isso não invalida seu caráter modelador
no paradigma.
Pieri (2002) faz um distinção entre a característica
instrumental e a modeladora da amplificação psicológica do material
inconsciente: o caráter instrumental designa um instrumento da
prática e, desse modo, uma técnica; o caráter modelador, por sua
vez, está associado à própria forma de argumentação da teoria,
sobretudo a teoria dos arquétipos, que pressupõe a emergência de
símbolos com características análogas universalmente perceptíveis.
Assim, entende-se que a amplificação é intrínseca ao modelo
junguiano, fazendo parte da própria epistemologia do paradigma e,
por consequência, do modo de acessar e acumular conhecimento
sobre o inconsciente arquetípico e pessoal na psicologia analítica.
O pensamento simbólico, definido por Jung como a função
que compreende os símbolos, é, em si, uma forma amplificatória de
pensar que flui por imagens, por comparações e por analogias, e tal
forma congrega todas as funções da consciência para rodear o
símbolo num movimento circunambulatório, em busca do sentido
mais essencial e profundo desse. Sua função é desvendar os
significados ocultos dos símbolos, a fim de alcançar sua integração
na consciência e, assim, ampliá-la, cumprindo a meta do processo
de individuação. De acordo com Jung, essa é também a função da
amplificação simbólica. Destarte, pode-se considerar que a
amplificação abarca o pensamento simbólico em seu sentido
metodológico, mas também transcende o pensamento, incluindo
todas as funções da consciência, e ainda exige uma atitude
simbólica ante os eventos psíquicos que condiciona o modo de
compreendê-los.

Perspectiva simbólico-arquetípica
A visão arquetípica faz parte da perspectiva simbólica da
psicologia analítica, pela própria definição de símbolo. Entretanto,
vale enfatizar o ponto de vista arquetípico do método junguiano,
uma vez que o plano arquetípico amplia sobremaneira os horizontes
de possibilidades da investigação psicológica, configurando um
método de abordagem dos fenômenos psíquicos que pode ser
chamado de simbólico-arquetípico.
A perspectiva arquetípica é uma característica distintiva da
psicologia analítica e tem implicações substanciais no método de
Jung. “A perspectiva arquetípica liberta-nos da limitação de
considerar como única a perspectiva do ego. O plano arquetípico é
inerentemente pluralista, politeísta e, desta forma, inevitavelmente
critica a dominação da psique pelo ego” (Downing, 1994, p. 16).
Mais do que uma mudança de eixo do ego para o si-mesmo
(Self), a perspectiva arquetípica amplia os limites da dimensão
psicológica para além do indivíduo e sua subjetividade pessoal. A
psique coletiva (inconsciente coletivo e arquétipos) é denominada
por Jung “psique objetiva”, por seu caráter impessoal. A objetividade
desses elementos se refere a aspectos essencialmente humanos da
psique que transcendem o nível pessoal. A esfera arquetípica trata
do psiquismo humano naquilo em que a individualidade não
participa. Dessa forma, o termo arquetípico indica uma qualidade da
perspectiva simbólica e amplia seu escopo. Por perspectiva
simbólico-arquetípica, entende-se a abordagem arquetípica do
símbolo, e não apenas o seu enfoque pessoal. Tal perspectiva
permite a integração entre subjetividade e objetividade, assim como
entre individualidade e coletividade (cultural e arquetípica).
A conexão epistemológica que o símbolo realiza entre o
arquétipo em si e a manifestação arquetípica é efetivada, no
método, pela forma como tais manifestações serão trabalhadas, isto
é, pela perspectiva simbólico-arquetípica, que norteia o tratamento
(metodológico) dispensado ao material psicológico no paradigma
junguiano.
A investigação psicológica na psicologia analítica abarca a
esfera dos fenômenos individuais (sonhos, fantasias, experiências
pessoais) e dos fenômenos coletivos (mitos, contos de fadas,
acontecimentos sociais e políticos), desde que configurados por seu
valor simbólico, quer seja para o indivíduo, quer seja para a
coletividade que os produz e os vivencia psicologicamente.
Na perspectiva simbólico-arquetípica, o evento simbólico é
compreendido na óptica de suas causas, de sua teleologia
(finalidade) e da sincronicidade; é analisado e compreendido no
entrelaçamento de seus aspectos históricos, atuais e arquetípicos,
buscando sempre situar seu sentido na totalidade de que faz parte.
1 Esse termo me foi sugerido por Ceres Araújo, por ocasião da apresentação da
dissertação de mestrado em 2003. Agradeço a sugestão, que foi por mim adotada desde
então.
UM PARADIGMA
CONTEMPORÂNEO

O paradigma junguiano apresenta uma proposta de


construção do conhecimento afinada com a epistemologia científica
pós-moderna em vários aspectos. A noção de ciência e de
conhecimento em Jung demonstra, desde a sua juventude, a nítida
convicção de que a exatidão das ciências – o pressuposto
materialista e racionalista – contém premissas por demais estreitas
para o entendimento da vida humana em seu aspecto psicológico,
sobretudo ante a hipótese do inconsciente (vol. A).
A concepção de conhecimento científico, no início do século
20, era predominantemente racional e materialista, destacando,
como ferramentas metodológicas básicas da ciência, o pensamento
lógico e a observação pura, que definiam o método empírico lógico-
positivista. Jung, em seus estudos desde cedo, fez repetidas críticas
à estreiteza e à unilateralidade dessa perspectiva, tendo advertido
quanto à sua inadequação para a psicologia científica. A ciência
moderna privilegia as funções cognitivas e perceptivas da
consciência conhecedora; em contraste, a proposta da psicologia
analítica visa também à inclusão do sentimento e da intuição como
funções indispensáveis ao conhecimento psicológico.
A partir da segunda metade do século 20, toma corpo um
movimento importante na filosofia da ciência, em que as bases do
pensamento científico moderno são questionadas e criticadas. Carl
Popper, Thomas Kuhn, Heisenberg e Bohr, dentre outros, são
alguns dos principais articuladores de uma nova visão de ciência.
Jung antecipa as proposições de Popper e Kuhn (Clarke, 1993), e
compartilha as ideias da física quântica (Heisenberg e Bohr) quanto
à relatividade e à incerteza do conhecimento. Juntamente com
Nietzsche, ele critica a exigência de objetividade dos métodos
científicos, declarando que conhecimento e autoconhecimento são
indissociáveis e condicionados pela psique do pesquisador.
A concepção romântica de uma realidade subjacente
interferindo na realidade manifesta, e a noção de uma totalidade
todo abrangente, movida por padrões organizadores (Bohm,
[1980]2001) (arquetípicos) fora do âmbito da consciência,
constituem a base da ontologia junguiana, que atualmente começa a
ser aceita por outros paradigmas.
Jung foi considerado um dos pioneiros na investigação do
inconsciente. Ellenberger (1970) o aponta como precursor do
método interpretativo na psiquiatria dinâmica do século 20. Por seu
turno, Von Franz ([1975]1992) afirma que a compreensão do
inconsciente, formulada e praticada por Jung, marca o fim do
racionalismo científico do século 19. E Méier comenta, a respeito do
trabalho realizado por Jung no Hospital Burghölzli, que, “pela
primeira vez na história da psiquiatria, material ilusório é tratado
como mais do que coisas ininteligíveis e examinado como algo
digno de interpretação” (apud Clarke, 1993, p. 27).
A relatividade do conhecimento humano ante a infinitude do
inconsciente coletivo; a busca de integração e harmonização dos
opostos, sem anular as diferenças; a aceitação de paradoxos e
contradições inerentes à diversidade e à complexidade da natureza
humana, esses são alguns dos aspectos do paradigma junguiano,
afinados com algumas características da ciência pós-moderna.
Quanto à incompreensão e desaprovação da psicologia
junguiana por parte da comunidade científica, Von Franz avalia que:

O crescimento de sua influência encontra-se ainda em seus estágios iniciais; daqui


a trinta anos poderemos, com toda probabilidade, discutir sua obra em termos bem
diferentes dos atuais (...). Jung estava a tal ponto à frente de sua época que as
pessoas somente aos poucos começam a alcançar suas descobertas. ([1975]1992,
p. 11)

Byington (1989)1 considera a psicanálise de Freud uma


mensagem condizente com a mentalidade ocidental do século 20,
enquanto a psicologia de Jung é para ser compreendida no século
21.
O paradigma junguiano tem alcançado popularidade na
geração jovem e exerceu grande influência no desafio aos valores
dominantes do século 20, empreendido a partir do final da década
de 1970 (Hauke, 2000). Tarnas (2001) situa Jung dentre os
formadores da mentalidade pós-moderna.
A psicologia analítica – estruturada em suas origens como
uma epistemologia essencialmente psicológica, visando à
construção de um método de psicoterapia – vem sendo aplicada
pouco a pouco em outras áreas de conhecimento.
Conforme afirma Von Franz, o trabalho de Eric Neumann
demonstra que a “teoria dos arquétipos vem se tornando, de forma
gradual e crescente, a base de uma nova antropologia geral”
([1975]1992), p. 109). Segundo Neumann, a investigação dos
estágios arquetípicos de desenvolvimento, aplicada à história da
humanidade, “proporciona uma melhor orientação psicológica em
várias disciplinas, por exemplo, a história das religiões, a
antropologia, o folclore e outras” ([1949]1989, p. xvii).
De acordo com Nagy (1991), a psicologia analítica pode ser
considerada, hoje, um sistema filosófico que vai além da
psicoterapia. Wehr (1988) sugere que a psicologia de Jung
transcende as fronteiras da psicoterapia e se constitui um corpo
teórico aplicável à pesquisa em vários outros campos. Progoff
(1985), por sua vez, considera Jung um dos pioneiros da
abordagem “holista” do ser humano e defende a aplicação da
psicologia analítica à sociologia. O valor da psicologia junguiana,
como método psicoterapêutico e teoria de conhecimento
psicológico, é indiscutível, e permanece sua área de maior
concentração de estudos e pesquisas.
A teoria dos arquétipos foi além da acumulação e da
classificação de dados empiricamente coletados ou de experiências
fenomenológicas, apresentando uma hipótese ousada, inicialmente
de caráter especulativo, mas destinada a explicar uma ampla faixa
de fenômenos que se encontravam excluídos da investigação
científica. O trabalho de Jung não se limitou a levantar questões e
fazer especulações. Em sua obra, verificamos o empenho na
investigação e na aplicabilidade das hipóteses na prática.
O método junguiano abrange uma ampla gama de
características, tendo recebido diversas denominações por parte do
próprio Jung e de seus seguidores.
O caráter dialético reside na transitoriedade da verdade
alcançada; na pluralidade das possibilidades contidas no ser e no
mundo; na inevitabilidade dos paradoxos; nas contradições da
psique; na dinâmica compensatória do sistema psíquico; nas
relações de troca criativas e transformadoras que se estabelecem
entre o eu e o outro no processo de conhecimento.
O enfoque fenomenológico está presente na concepção de
realidade psíquica, que se define com base na experiência vivencial
do indivíduo. O símbolo se configura por sua expressão e
manifestação no que se refere à experiência numinosa altamente
relevante para o conhecimento psicológico. A tipologia junguiana
tem caráter fenomenológico na medida em que constitui disposições
da consciência diante dos fatos, uma forma de estar no mundo,
captar e reagir às experiências vividas.
O aspecto empírico consiste na prioridade dada aos fatos, e
não às ideias, exigindo observação e auto-observação. Difere do
empirismo lógico-positivista pela definição de realidade psíquica,
que abrange consciente e inconsciente. A observação não se
restringe à percepção objetiva e concreta da realidade externa,
estendendo-se às percepções do mundo interno subjetivo. O
empirismo de Jung é influenciado pela visão de Goethe, cujo
método experimental não aplica um empirismo puro, em razão de
valorizar a experiência subjetiva e de integrar sujeito e objeto no
processo de conhecimento (Challaye, 1966).
Seu caráter hermenêutico é evidente, na tentativa de
tradução e interpretação do material inconsciente para a linguagem
da consciência, assim como na valorização do sentido e do
significado das experiências humanas.
A epistemologia e o método no paradigma junguiano são
nitidamente construtivos e dinâmicos, sobretudo na concepção de
processo de individuação como o processo de desenvolvimento da
personalidade, centrado na formação e na transformação da
consciência, em sua dialética com o inconsciente e o mundo.
O processo de produção de conhecimento, para Jung, resulta
de uma dinâmica de aquisições que vão se acrescentando
constantemente, formando um todo. Cada acréscimo produz
ampliação de possibilidades, que se tornam, em si, oportunidades
para a exploração de outras novas possibilidades. Trata-se de um
processo de transformação contínuo, no qual o novo se acrescenta
ao velho, renova-o e impulsiona-o ao desconhecido, numa espiral
que se estende para cima, para baixo e para os lados, em direção à
complexificação e à diversificação infinitas, enquanto houver uma
consciência ávida de conhecimento e em busca de seu sentido na
vida.
A concepção de conhecimento, nesse paradigma, não é
apenas intelectual; sua criatividade e produtividade se efetivam
somente na medida em que incluem todas as funções psíquicas
(intelectivas, emocionais, intuitivas, perceptivas e imaginativas). A
consciência individual e a consciência coletiva seguem os mesmos
passos em seu processo de desenvolvimento.
Os diversos aspectos do modelo psicológico de C. G. Jung,
aqui apontados, demonstram que muitos são os pontos de
aproximação entre o paradigma junguiano e as características da
pós-modernidade. Jung reafirma o paradoxo e a contradição do ser
humano, assim como sua infinita complexidade e diversidade, mas
sua psicologia está mais alinhada com uma visão integrativa e
construtiva.
“Apesar de toda incerteza, sinto a solidez do que existe e a
continuidade do meu ser, tal como sou” (Jung, [1961]1981, p. 310).
A diversidade, as contradições e as incertezas da atualidade exigem
flexibilidade, recusam ortodoxias e visões unilaterais. Nesse sentido,
a noção de relatividade e transitoriedade da verdade científica na
psicologia junguiana deve ser sublinhada. Para Jung, parece claro
que não é possível encontrar a verdade sobre a psique. O máximo
que se consegue são expressões verdadeiras na apresentação das
observações e das experiências subjetivas que se tem.

No tocante à psicologia, acho melhor renunciar à ideia de que estejamos hoje em


condições de fazer afirmações “verdadeiras” ou “corretas” sobre a essência da
psique. O melhor que conseguimos são “expressões verdadeiras”. (vol. 4; 771)

A verdade revela-se na maior aproximação possível que a


consciência humana pode atingir do desconhecido. A verdade na
ciência só pode ser considerada uma “hipótese, momentaneamente,
satisfatória, mas não um artigo de fé eternamente válido”, diz Jung
([1961]1981, p. 143).
A aproximação entre consciente e inconsciente se realiza
pela função transcendente que produz os símbolos, e sua
elaboração conduz a consciência ao que há de mais verdadeiro e
necessário para ela no contexto atual.
Apesar da relatividade, da incerteza e da desdogmatização
do conhecimento e da verdade, a ciência na pós-modernidade faz
exigências quanto à ética do cientista. Nesse sentido, o paradigma
junguiano exige uma atitude íntegra do indivíduo com relação ao
mundo e a si mesmo. Assim, a integridade do ser humano é definida
por sua atitude responsável e comprometida perante o mundo
externo e seu autoconhecimento.
Considerando-se que cada indivíduo faz parte de um todo
maior (totalidade), tanto em relação ao inconsciente coletivo como
em relação à consciência coletiva (cultura), centro da consciência
individual, cabe ao ego participar e colaborar ativamente com a
totalidade. Seu livre-arbítrio é limitado pelo coletivo, mas também o
influencia. As transformações se efetivam na dependência direta da
atitude da consciência. A passividade e/ou omissão do indivíduo
ante o conhecimento adquirido podem ser desastrosas, na medida
em que dão livre curso aos conteúdos não humanizados do
inconsciente. A humanização dos potenciais arquetípicos e dos
conteúdos dos complexos são operados pelo ego.

Não existe nenhuma razão para querer conhecer mais do inconsciente coletivo do
que se consegue por meio de sonhos e intuições. Quanto mais se sabe sobre ele,
maior e mais pesada se torna a carga moral, porque os conteúdos do inconsciente
se transformam em tarefas e responsabilidades individuais tão logo começam a se
tornar conscientes. (Jung, Letters 2, 1991, p. 172)

Tanto a arrogância prepotente ante o desconhecido como a


passividade impotente ante a oportunidade de conhecimento
configuram uma atitude irresponsável e antiética.
A acentuada tendência pós-moderna do modelo teórico-
prático de C. G. Jung justifica, em grande parte, as resistências e as
incompreensões que ele sofreu, sobretudo na primeira metade do
século 20, quando ainda prevaleciam na ciência ocidental os
padrões positivistas de cientificidade.
Do ponto de vista ontológico, o paradigma junguiano se
define pelo pressuposto da totalidade todo abrangente, que inclui as
dimensões consciente e inconsciente; pela concepção de um
inconsciente arquetípico como a estrutura psíquica básica e original
da qual a consciência emerge; de um inconsciente pessoal que é
apenas relativamente desconhecido; e também pela dimensão
simbólica do ser e do mundo. A noção de realidade psíquica confere
estatuto de fenômeno às manifestações psíquicas. A dimensão
simbólica do ser e do mundo configura uma concepção ontológica
em que o único (indivíduo) e o típico (coletivo) se entrelaçam e
compõem a totalidade.
Do ponto de vista epistemológico, a premissa de um
inconsciente inacessível à observação direta constitui o principal
desafio da psicologia junguiana. A perspectiva simbólica considera
que o inconsciente se torna acessível através de suas
manifestações. O conhecimento é então viável através das
manifestações simbólicas, sendo estas a via de todo conhecimento
possível na psicologia analítica. Como ponte entre o mundo
arquetípico, o mundo da consciência e o mundo externo, o símbolo
se constitui o fenômeno psíquico apreensível e compreensível. Os
fenômenos são considerados em seu âmbito individual (sonhos,
fantasias, experiências pessoais) e coletivo (mitos, contos de fadas,
acontecimentos sociais e políticos), desde que configurados por seu
valor simbólico, seja para o indivíduo, seja para a coletividade que
os produz e os vivencia psicologicamente. A função psíquica que
cria os símbolos é a função transcendente, que opera a
aproximação entre consciente e inconsciente com base na
necessidade de transformação da totalidade. O conhecimento se dá
por um processo natural e contínuo de integração gradual e
crescente de elementos do inconsciente e do mundo existencial na
consciência – o processo de individuação. Tal processo constrói a
individualidade do ser humano e tem correspondência na
constituição das particularidades sócio-históricas da cultura humana.
Do ponto de vista metodológico, o processamento simbólico é
o caminho pelo qual o conhecimento é alcançado e viabilizado,
ocasionando a ampliação e a complexificação da consciência
individual e coletiva. A perspectiva metodológica abarca as etapas
de apreensão e compreensão do fenômeno. A apreensão do
fenômeno é feita pela observação e auto-observação na óptica
simbólico-arquetípica. A observação se constitui por uma
experiência viva de participação e diálogo entre o sistema
observante e o observado, em que ambos são transformados pelo
processo de conhecimento. O método de investigação psicológica
de Jung é conduzido segundo alguns parâmetros que devem ser
rigorosamente observados, quais sejam: a causalidade, a finalidade
e a sincronicidade presentes nos eventos simbólicos.
A compreensão do fenômeno (símbolo) abrange as etapas de
tradução, interpretação, elaboração e integração do desconhecido à
consciência conhecedora. A função psicológica que compreende os
símbolos é o processamento simbólico que opera por associações,
comparações, analogias e, ainda, pela busca de sentido e
integração dos opostos em tensão. Tal processamento visa elucidar,
enriquecer, ampliar e aprofundar os significados ocultos do símbolo,
a fim de atingir sua integração na consciência. A elaboração
simbólica pela amplificação é o meio pelo qual o material simbólico
é processado e compreendido na psicologia analítica.
Concluindo, a epistemologia e o método na obra de C. G.
Jung são definidos pela perspectiva simbólico-arquetípica, que
norteia a abordagem e o tratamento dispensado ao material
psicológico. Tal perspectiva pode ser comparada ao olhar da águia,
que é simultanea­mente abrangente, para contemplar panoramas
amplos, e focalizado, para se concentrar e ver com nitidez o que é
essencial e importante. A denominação simbólico-arquetípica
sintetiza e abarca as diversas características do paradigma
junguiano, bem como expressa sua essência e amplitude.
1 Seminário dado pelo autor no Curso de Formação de Analistas Junguianos, na SBPA
(Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica), em 1989.
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Paulo, Cia. Editora Nacional.
1 Vide detalhamento no Anexo.
ANEXOS

Obras de C. G. Jung
Os volumes abaixo listados referem-se à edição brasileira da
Editora Vozes, Petrópolis/RJ. As datas entre colchetes indicam o
ano da primeira publicação do texto e as revisões feitas pelo autor e
as datas entre parênteses indicam a edição atual consultada.

Vol. 1 Estudos psiquiátricos [1902-1906] (1994)


Vol. 2 Estudos experimentais [1904-1910] (1997)
[1907-1919, 1928, 1939,
Vol. 3 Psicogênese das doenças mentais
1957] (1986)
[1906-1916, 1929, 1930]
Vol. 4 Freud e a psicanálise
(1990)
Vol. 5 Símbolos de transformação [1911-1912/1952] (1986)
Vol. 6 Tipos psicológicos [1921] (1991)
[1912/1916/1926/1943]
Vol. 7 /1 Psicologia do inconsciente
(1980)
Vol. 7 /2 O Eu e o inconsciente [1928] (1987)
Vol. 8 /1 A energia psíquica [1928] (1985)
Vol. 8 /2 A natureza da psique (1984)
A função transcendente (19161-19572)
Considerações gerais sobre a teoria dos
(1934)
complexos
O significado da constituição e da
(1929)
herança para a psicologia
Determinantes psicológicas do
(1936)
comportamento humano
Instinto e inconsciente (1919)
A estrutura da alma (1928)
Considerações teóricas sobre a natureza
(1946)
do psíquico
Aspectos gerais da psicologia do sonho (1928)
Da essência dos sonhos (1945)
Os fundamentos psicológicos da crença
(1919)
nos espíritos
Espírito e vida (1926)
O problema fundamental da psicologia
(1931)
contemporânea
Psicologia analítica e cosmovisão (1927)
O real e o supra-real (1933)
As etapas da vida humana (1930)
A alma e a morte (1934)
Sincronicidade: um princípio de conexões
Vol. 8 /3 [1952] (1984)
acausais
Arquétipos do inconsciente coletivo (2002)
Sobre os arquétipos do inconsciente
(1934/1954)
coletivo
O conceito de inconsciente coletivo (1936)
O arquétipo com referência especial ao
(1936/1954)
conceito de anima
Aspectos psicológicos do arquétipo
(1938/1954)
materno
Sobre o renascimento (1940/1950)
Vol. 9 /1 A psicologia do arquétipo da criança (1940)
Aspectos psicológicos da Core (1941)
A fenomenologia do espírito no conto de
(1945/1948)
fadas
A psicologia da figura do “Trickster” (1954)
Consciência, inconsciente e individuação (1939)
Estudo empírico do processo de
(1934/1950)
individuação
O simbolismo da mandala (1950)
Anexo: mandalas (1955)
Aion – estudos sobre o simbolismo do si-
Vol. 9 /2 [1951/1959] (1982)
mesmo
Vol. 10 /1 Presente e futuro [1957] (1988)
Aspectos do drama contemporâneo (1988)
Prefácio e posfácio a Ensaios sobre
(1946)
história contemporânea
Wotan (1936)
Depois da catástrofe (1946)
Vol. 10 /2
O significado da linha suíça no espectro
(1928)
europeu
A aurora de um novo mundo (1930)
Um livro novo de Keyserling: A revolução
(1934)
mundial e a responsabilidade do espírito
Civilização em transição (1993)
Sobre o inconsciente (1918)
Alma e terra (1927/1931)
O homem arcaico (1931)
O problema psíquico do homem moderno (1928/1931)
O problema amoroso do estudante (1928)
A mulher na Europa (1927)
A importância da psicologia para a época
(1933/1934)
atual
Vol. 10 /3
A situação atual da psicoterapia (1934)
A consciência na visão psicológica (1858)
O bem e o mal na psicologia analítica (1959)
Prólogo ao livro de Toni Wolff, Estudos
(1959)
sobre a psicologia de C. G. Jung
As complicações da psicologia
(1930)
americana
A Índia: um mundo de sonhos (1939)
O que a Índia pode nos ensinar (1939)
Um mito moderno sobre as coisas vistas no
Vol. 10 /4 [1958] (1991)
céu
Vol. 11 /1 Psicologia e religião [1939/1940] (1978)
Interpretação psicológica do dogma da
Vol. 11 /2 [1942/1948] (1988)
Trindade
Vol. 11 /3 O símbolo da transformação na Missa [1942/1954] (1985)
Vol. 11 /4 Resposta a Jó [1952] (1979)
Vol. 11 /5 Psicologia e religião oriental (1982)
Vol. 12 Psicologia e alquimia [1944] (1991)
Estudos Alquímicos (2003)
Comentário sobre “O segredo da flor de
(1929)
ouro”
Vol. 13 As visões de Zozimos (1938/1954)
Paracelsus um fenômeno espiritual (1942)
O espírito Mercurius (1943/1948)
A arvore filosófica (1945/1954)
Vol. 14 Mysterium coniunctionis [1955-56] (1990)
Vol. 15 O espírito na arte e na ciência [1929-1941] (1985)
Vol. 16 /1 A prática da psicoterapia [1929-1951] (1987)
Ab-reação – análise dos sonhos –
(1987)
transferência
O valor terapêutico da ab-reação [1921/1928]
Vol. 16 /2
A aplicação prática da análise dos
(1934)
sonhos
A psicologia da transferência (1946)
Vol. 17 O desenvolvimento da personalidade [1910-1934/1946] (1986)
Vida simbólica (1988)
Conferências de Tavistock [1935] (1981)
Vol. 18
Símbolos e interpretação dos sonhos (1961)3
Miscelânea de escritos (1905-1953)
Vol. A The Zofingia lectures [1896-1899] (1983)4
Vol. B Psychology of the unconscious [1912/1916] (1991)5

Vida e obra de C. G. Jung – Cronologia


Nascimento em 26 de julho, em Kesswill, pequeno cantão da Suíça.
1875
Filho primogênito de Jean Paul Jung e Emilie Preiswerk.
A família se muda para Klein-Huningen, perto da Basileia.
1879 Frequenta o ginásio da cidade.
Seu pai é o capelão protestante do Friedmatt Mental Hospital.
1884 Nascimento de sua irmã Gertrude.
1891/1994 Entra em contato com a obra de Goethe e com a filosofia de Platão,
Kant e Schopenhauer.
1895 Entra na Faculdade de Medicina da Basileia.
1896 Falecimento d e seu pai.
1897/1998 Presidente da Associação Estudantil Zofíngia.
1899 Encontro com Helene Preiswerk, sua prima médium.
Decide especializar-se em psiquiatria.
Forma-se médico psiquiatra.
Vai para Zurique como segundo assistente de Eugen Bleuler no
Hospital psiquiátrico Burghölzli da Universidade de Zurique.
1900
Lê, pela primeira vez, Interpretação dos Sonhos, de S. Freud.
A pedido de E. Bleuler, faz uma resenha do livro Interpretação de
Sonhos, de Freud, para apresentar numa reunião da equipe de
médicos da clínica do Burghölzli.
Tese de doutorado em medicina: Sobre a Psicologia e Patologia dos
assim chamados fenômenos ocultos.
1902
Torna-se primeiro assistente no Burghölzli.
Estuda um semestre com Pierre Janet na Salpétrière em Paris.
1903 Casa-se com Emma Rauschenbach. Terão quatro filhas e um filho.
Organiza um laboratório de psicologia experimental no Burghölzli, onde
vai realizar pesquisas sobre o Teste de Associação de Palavras de
Wundt.
1904 Publica a primeira parte de Estudos com Associação de palavras.
Sabina Spilrien está internada no Burghölzli sob os cuidados de Jung.
Nascimento de Agathe em dezembro.
Torna-se chefe da Clínica do Burghölzli e professor de psiquiatria na
1905 Faculdade de Medicina de Zurique: aulas de psicologia, psicopatologia
e psicanálise.
Envia a Freud um exemplar de seu livro Estudos de Diagnóstico de
Associação (C. W. 2).
Início da correspondência com Freud.
1906
Defende publicamente a psicanálise de Freud no congresso de
Munique.
Nascimento de Gret em fevereiro.
Março: encontro com Freud em Viena.
Publicação de Psicologia da Demência Precoce (C. W. 3).
1907
Primeiro Congresso Internacional de Psiquiatria e Neurologia (Berlim),
no qual Jung apresenta A Teoria Freudiana da Histeria (C. W. 4).
1908 Primeiro Congresso Internacional de Psicanálise (Salzburg).
Nascimento de Franz em novembro.
Muda-se para Küsnacht, para a casa recém-construída, onde vai morar.
Nessa casa funcionou seu consultório particular até sua morte em
1961.
Sai da Clínica do Burghölzli devido a diferenças pessoais com E.
Bleuler e excesso de trabalho.
1909
Viaja com Freud e Ferenczi aos E.U.A., a convite da Clark University.
Freud apresenta a psicanálise e Jung seu trabalho sobre associação de
palavras.
Torna-se redator-chefe de Jarbuch für Psychoanalytische und
Psycopathologishe Forchungen, fundado por Freud e Bleuler.
Segundo Congresso Internacional de Psicanálise (Nuremberg).
Por indicação de Freud, Jung assume a presidência da Associação
1910
Internacional de Psicanálise.
Nascimento de Marianne em setembro.
Terceiro Congresso Internacional de Psicanálise (Weimar).
Escreve a primeira parte de Metamorfoses e símbolos da libido (C. W.
1911 5).
Conhece Toni Wolff.
Escreve Sobre a Doutrina dos Complexos (C. W. 2).
Profere nove conferências sobre a teoria psicanalítica na Fordham
University (N.Y.).
1912 Essas conferências foram compiladas e publicadas em 1913. (C. W. 4).
Envia a Freud a segunda parte de Metamorfoses e símbolos da libido.
Reunião com Freud em Munique em novembro.
1912-1919 Período de intenso confronto com o inconsciente.
Ruptura das relações pessoais com Freud em janeiro.
Quarto Congresso Internacional de Psicanálise (Munique).
Confronto público entre Freud e Jung.
1913
Jung dá à sua psicologia o nome de “Psicologia analítica”.
Demite-se do cargo de redator-chefe do Jahrbuch e da Universidade de
Zurique como docente.
Demite-se da presidência da Associação Psicanalítica Internacional.
1914 Ruptura definitiva com Freud e a psicanálise.
Nascimento de Helene em março.
1916 Escreve sobre a psicologia do inconsciente (Primeira parte C. W. 7).
Funda o Clube Psicológico de Zurique.
Escreve Sete sermões aos mortos.
Escreve A função transcendente (C. W. 8).
Torna-se comandante do campo de internação de soldados ingleses em
1918 Chateau d’Oex.
Estuda as Escrituras gnósticas.
1920 Viaja à Argélia e à Tunísia.
1921 Escreve Tipos psicológicos (C. W. 6).
1922 Conhece Richard Wilhelm.
Morte de sua mãe.
Início da construção da Torre em Bollingen.
1923
R. Wilhelm profere uma série de conferências sobre I Ching no Clube
Psicológico de Zurique.
1924 Visita os índios Pueblo nos E.U.A.
1925-1926 Expedição à Uganda e ao Quênia. Visita aos elgonys no Monte Elgon.
Escreve Dialética do Eu e o inconsciente (segunda parte do C. W. 7).
1928
Escreve Sobre energia psíquica (C. W. 8).
1929 Escreve Comentário ao Segredo da Flor de Ouro (C. W. 13).
1930 Torna-se vice-presidente da Sociedade Médica Geral para Psicoterapia.
1930-1934 “Interpretação das visões”, seminários no Clube Psicológico.
1932 Prêmio de Literatura da cidade de Zurique.
Primeiro seminário na Escola Politécnica Universitária de Zurique.
1933 Primeira conferência Eranos em Ascona.
Viagem ao Egito e à Palestina.
Fundação e presidência da Sociedade Médica Geral para Psicoterapia.
Redator-chefe da Zentralblat für Psychotherapie und ihre zgebiete
(Leipzig).
1934 Segunda conferência Eranos sobre “Arquétipos do inconsciente
coletivo”.
Seminários no Clube Psicológico em Zurique, “Aspectos psicológicos
do Zarathustra de Nietzsche”.
Professor na Escola Politécnica Universitária de Zurique.
Funda a Sociedade Suíça de Psicologia Aplicada.
1935 Conferências de Tavistock, em Londres, ”Psicologia analítica teoria e
prática”.
Comentário psicológico sobre o Livro tibetano dos mortos.
1936 Conferência na Universidade de Harvard (U.S.A.).
Doutor Honoris Causa em Harvard.
Conferência Eranos sobre “Ideias religiosas na alquimia”.
1937 Conferência Terry na Universidade de Yale (U.S.A.).
Viagem à Índia, a convite do governo britânico.
Doutor Honoris Causa na Universidade de Calcutá.
1938 Presidente do Congresso Internacional de Psicoterapia em Oxford
(G.B.).
Doutor Honoris Causa em Oxford.
Publicação de Psicologia e religião.
1940 Conferência Eranos “Uma abordagem psicológica do dogma da
trindade”.
Publicação de Introdução à Essência da Mitologia com K. Kerényi.
1941
Conferências na Basileia pelos 400 da morte de Paracelso.
1942 Demissão da docência na Escola Politécnica de Zurique.
Membro da Academia Suíça de Ciências.
1943
Professor de psicologia da Faculdade de Medicina da Basileia.
Demissão da Faculdade de Medicina devido a “ataque do coração”.
1944
Publicação de Psicologia e alquimia.
Doutor Honoris Causa na Universidade de Genebra no seu 70o
1945
aniversário.
Publicação de A psicologia da transferência e de Psicologia e
1946
Educação.
1948 Fundação do Instituto C. G. Jung em Zurique.
Publicação de Aion.
1951
Conferência Eranos sobre “Sincronicidade”.
Publicação de Sincronicidade: um princípio de conexões acausais e de
1952
Resposta a Jó e revisão de Símbolos de transformação.
1953 Tradução inglesa do 1o volume das Obras completas.
Doutor Honoris Causa na Escola Politécnica de Zurique.
1955
Morte de Emma Jung em 27 de novembro.
1956 Publicação de Mysterium Coniunctionis.
1957 Começa a trabalhar nas memórias com Aniela Jaffé.
Publicação de Um mito moderno.
1958
Primeiro volume das Obras completas em alemão.
1960 Título de Cidadão Honorário de Küsnacht em seu 85o aniversário.
1961 Termina, dez dias antes de morrer, o Ensaio de exploração do
inconsciente para O homem e seus símbolos.
Morre em 6 de junho, em sua casa em Küsnacht.
Enterrado em 9 de junho, no cemitério de Küsnacht.
1 Data da elaboração do texto.

2 Data da primeira publicação do texto.

3 Este texto corresponde, basicamente, à versão alemã do capítulo “Chegando ao


inconsciente”, de O homem e seus símbolos, publicado em português pela Editora Nova
Fronteira, Rio de Janeiro, traduzida da edição inglesa.
4 Informação detalhada nas Referências bibliográficas.

5 Idem.

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