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Um dos motivos que tornam a realização criativa tão difícil é o fato de que os
atributos “originalidade” e “valor” frequentemente resistem ao casamento e, pior
ainda, empurram a cientista ou a artista em sentidos opostos. É por isso que essa
união improvável tende a resultar de dificílimas dialéticas da criação, isto é, de
sínteses felizes entre as facetas em tensão no processo criativo: rebelião e
conformidade; autoconfiança e autocrítica; inspirações súbitas e
transpirações pacientes; “loucura” e “método” (diria Shakespeare); estilos
“dionisíacos” e estilos “apolíneos” de pensamento (diria Nietzsche); associações
livres do “processo primário” e associações regradas do “processo secundário”
(diria Freud). De um lado, a expressividade liberta, a inventividade lúdica e
relativamente desregrada; de outro, as exigências rigorosas que regulam a
manifestação dessa inventividade em uma obra (um artigo científico, uma
pintura, um texto literário, um teorema matemático etc.) reconhecida como tal
em certo domínio simbólico (ciência, pintura, literatura, matemática etc.). Os
graus em que a imaginação “louca” e o rigor “metódico” se combinam em
realizações criativas é altamente variável, e pode inclusive ser tomado como chave
de interpretação de diferentes estilos de criação. Assim, para ficarmos no
exemplo mais óbvio (ah, a preguiça...), a literatura do romantismo salta às
páginas como exacerbação do aspecto livremente expressivo do trabalho artístico,
em detrimento da preocupação escrupulosa com a construção formal. Em
contraste, como diz Paul Valéry, “parnasianos e realistas consentirão em perder
em intensidade aparente, em abundância, em movimento oratório o que
ganharão em profundidade, em verdade, em qualidade técnica e intelectual”
(Valéry, 2007: 23).
À parte o “fiat lux” divino que abre o Livro do Gênesis, nenhuma inovação surge
do nada. Ao contrário, toda criação histórica é um produto novo da combinação
de elementos já existentes. Tanto a inovação científica quanto a artística são
processos que a teoria sociológica denominaria de emergentes, isto é, processos
em que um arranjo singular de componentes gera algo distinto de qualquer desses
componentes considerado isoladamente: uma infinidade de peças musicais
diferentes pode ser composta a partir de um número restrito de notas, uma
montanha de textos literários emerge de um mesmo estoque disponível de
palavras, e assim por diante. Nesse sentido, os criadores têm de ter à sua
disposição, no ambiente sociocultural em que se encontram, um conjunto de
elementos que empregarão no seu trabalho criativo. Tais ingredientes da criação
podem ser materiais, como os artefatos técnicos que vão do pincel ao
microscópio, ou ideais, como informações especializadas e estilos aprendidos de
raciocínio.
social daquelas ideias que se mostrem mais “aptas” segundo algum critério de
juízo (“retenção seletiva”). Utilizando os instrumentos matemáticos do que ele
chama de “historiometria”, Simonton encontra uma confirmação do seu modelo
darwiniano da criatividade na alta correlação entre níveis de produtividade
“bruta” e quantidade de trabalhos socialmente valorizados: indivíduos com maior
produção ao longo de suas carreiras possuem, segundo ele, as maiores chances
estatísticas de se saírem com criações historicamente significativas. Nesse
sentido, os dados de Simonton parecem dar razão a autores como o poeta W. H.
Auden – para o qual é “provável que, no curso da sua vida, um grande poeta
escreva mais poemas ruins do que um poeta menor” – ou o químico Linus Pauling
– que, perguntado sobre como fazia para gerar tantas boas ideias, respondeu que
primeiro gerava um monte delas, depois descartava as que não eram boas
(Robinson, 2010: xi).
Ainda que haja alguma dose de verdade na concepção de James, outros estudos
revelam um retrato infinitamente mais complexo e ambíguo da relação entre
indivíduos criadores e seus ambientes socioculturais. Para começo de conversa,
um naco de sociologia já indica que as produções originais de uma artista ou
cientista jamais são intocadas por quaisquer influências sociais. Ao contrário,
uma das razões que levam à consagração social de uma obra criativa é seu
reconhecimento como um acréscimo diferencial a um estoque historicamente
acumulado de produções. É praticamente impossível gerar aquele acréscimo
diferencial sem que se parta de um conhecimento substancial deste estoque.
Apesar do que diz James, na relação entre a criatividade individual e o contexto
social, o último não pode ser visto apenas como restritivo, mas também como
capacitador.
criadores. Este é o caso, por exemplo, do uso espontâneo que uma cientista
individual faz de teorias, métodos e dados duramente colhidos por uma
comunidade científica ao longo da história de uma disciplina. Graças ao seu
aprendizado dos resultados acumulados por gerações anteriores de cientistas, ela
não precisa refazer todo o percurso histórico de sua ciência por conta própria e
pode, assim, avançar na exploração do desconhecido, vendo mais longe ao “subir
nos ombros de gigantes” que a precederam. De um modo ou de outro, a
importância de um contexto social propício à criatividade é tornada óbvia pela
concentração desproporcional de inovadores geniais em certos cenários sócio-
históricos: filósofos na Atenas do século IV a.C, pintores e escultores na Itália da
Renascença, dramaturgos na Inglaterra elisabetana, compositores na Viena dos
séculos XVIII e XIX etc. Um exemplo igualmente óbvio, mas bem menos
inocente, do peso de fatores socioculturais na geração da “genialidade” intelectual
e artística é o fato de que as listagens-padrão de gênios (Shakespeare e Goethe,
Mozart e Beethoven, Newton e Einstein etc.) apresentam, devido aos efeitos
históricos do racismo e da misoginia, uma concentração desproporcional de
homens brancos. O assunto é importante demais para ser tratado de passagem,
então deixemo-lo para outro texto.
1850, por exemplo, Alfred Russel Wallace havia formulado, por conta própria, o
essencial da teoria da evolução via seleção natural a que também tinha chegado
Charles Darwin. O cálculo diferencial e integral (ou simplesmente cálculo, para
os íntimos) foi desenvolvido independentemente por Leibniz e Newton, embora
o último tenha acusado injustamente o primeiro de plágio. A inventora Elisha
Grey e o inventor Alexander Graham Bell apareceram no escritório de patentes
para o registro de seus projetos de telefone no mesmo exato dia (Bell ganhou os
direitos exclusivos da invenção por ter lá chegado duas horas antes). Em torno do
ano de 1900, os botânicos Hugo de Vries, Carl Correns e Erich von Tschermak,
que trabalhavam em países diferentes sem saberem uns dos outros, depararam
com as leis da hereditariedade...apenas para descobrirem posteriormente que
estas leis haviam sido divulgadas para um público indiferente por um obscuro
monge chamado Gregor Mendel em 1866.
sendo esta última a que serviu de base para a disciplina dada nas universidades.
Wallace e Darwin, por seu turno, não concordavam a respeito de todos os pontos
da teoria da evolução: diferentemente do segundo, o primeiro negava, por
exemplo, a possibilidade de explicação evolucionária do surgimento do cérebro
humano, já que a inteligência do homo sapiens se estendia, segundo ele, para
muito além do que seria suficiente para a sobrevivência da espécie.
Solidão e sociedade
Paul Valéry também captou a loucura por trás do método, a “relatividade sob a
aparente perfeição”, em seu estudo sobre Leonardo da Vinci, gênio paradigmático
e prato cheio para quem explora os paralelismos entre arte e ciência. Graças aos
cadernos de Leonardo, Valéry descobriu que, tal qual outro criador famoso, Da
Vinci também escrevia certo por linhas tortas:
Referências:
CASTRO, Ruy. O melhor do mau humor. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
COOLEY, Charles Horton. “Genius, fame and the comparison of races”. The
Annals of the American Academy of Political and Social Science, 9 (1897), 1-42.
GLADWELL, Malcolm. David and Goliath. New York: Little Brown, 2015.
JAMES, William. The will to believe and other essays in popular philosophy.
New York: Cosimo, 2007.
SIMONTON, Dean Keith. Origins of genius. New York: New York University
Press, 1999.