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O método na loucura (1): uma série sobre


ambivalências na psicologia da criatividade em arte
e ciência

Por Gabriel Peters (UFPE)

“Loucura embora, tem lá seu método”


William Shakespeare (na boca de Polônio em Hamlet)

“Domine o instrumento, domine a música, depois esqueça essa porra toda e


toque”
Charlie Parker

Em O melhor do mau humor (1993), coletânea de rabugices espirituosas


organizada por Ruy Castro, há uma citação venenosa atribuída ao ensaísta
britânico Samuel Johnson. Numa carta a um aspirante a escritor que havia lhe
mandado um manuscrito, o veterano crítico literário teria afirmado: “Sir, seu
manuscrito é bom e original, mas a parte que é boa não é original, e a parte que é
original não é boa”. Embora Johnson fosse mais do que capaz de ditos maliciosos,
almas pacientes que procuraram a origem dessa pancada verbal não a
encontraram em suas obras ou nos registros biográficos que dele fizeram seus

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contemporâneos. Pouco importa. Crueldade à parte, a réplica serve como um


lembrete para a análise da criatividade em arte ou ciência: invenções artísticas ou
científicas tornam-se influentes não apenas porque são novas, mas porque sua
novidade é tida como valiosa segundo os critérios de uma audiência de receptores
e juízes.

Um dos motivos que tornam a realização criativa tão difícil é o fato de que os
atributos “originalidade” e “valor” frequentemente resistem ao casamento e, pior
ainda, empurram a cientista ou a artista em sentidos opostos. É por isso que essa
união improvável tende a resultar de dificílimas dialéticas da criação, isto é, de
sínteses felizes entre as facetas em tensão no processo criativo: rebelião e
conformidade; autoconfiança e autocrítica; inspirações súbitas e
transpirações pacientes; “loucura” e “método” (diria Shakespeare); estilos
“dionisíacos” e estilos “apolíneos” de pensamento (diria Nietzsche); associações
livres do “processo primário” e associações regradas do “processo secundário”
(diria Freud). De um lado, a expressividade liberta, a inventividade lúdica e
relativamente desregrada; de outro, as exigências rigorosas que regulam a
manifestação dessa inventividade em uma obra (um artigo científico, uma
pintura, um texto literário, um teorema matemático etc.) reconhecida como tal
em certo domínio simbólico (ciência, pintura, literatura, matemática etc.). Os
graus em que a imaginação “louca” e o rigor “metódico” se combinam em
realizações criativas é altamente variável, e pode inclusive ser tomado como chave
de interpretação de diferentes estilos de criação. Assim, para ficarmos no
exemplo mais óbvio (ah, a preguiça...), a literatura do romantismo salta às
páginas como exacerbação do aspecto livremente expressivo do trabalho artístico,
em detrimento da preocupação escrupulosa com a construção formal. Em
contraste, como diz Paul Valéry, “parnasianos e realistas consentirão em perder
em intensidade aparente, em abundância, em movimento oratório o que
ganharão em profundidade, em verdade, em qualidade técnica e intelectual”
(Valéry, 2007: 23).

A menção ao caráter “tenso” ou “dialético” da tensão entre “loucura” e “método”


nas realizações criativas reconhece quão escorregadias são as tentativas de
combinar ambos os ingredientes em um único trabalho. Uma intensificação da
expressividade livre frequentemente contribui para a originalidade da obra, mas

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apenas sob o risco de torná-la incompreensível segundo os esquemas vigentes de


interpretação ou intolerável segundo as regras correntes de atribuição de valor
(“isso não é arte”, “isso não é ciência”, “isso não é sociologia” etc.). Por outro lado,
o excesso de zelo na obediência às normas do domínio artístico ou científico, no
mesmo passo em que incrementa a “aceitabilidade” de uma obra, tende a
diminuir seu componente de originalidade. E o retrato fica ainda mais
complicado quando inserimos nele o fator “tempo”, com seu farto estoque de
exemplos de obras inicialmente rejeitadas como “desvios” inaceitáveis em relação
às normas do campo, mas posteriormente consagradas como inovações decisivas
– a mudança radical na fortuna crítica dos pintores impressionistas é didática
quanto a esse aspecto (Gladwell, 2015: cap.3).

Variação louca e seleção metódica: notinha “darwiniana”

À parte o “fiat lux” divino que abre o Livro do Gênesis, nenhuma inovação surge
do nada. Ao contrário, toda criação histórica é um produto novo da combinação
de elementos já existentes. Tanto a inovação científica quanto a artística são
processos que a teoria sociológica denominaria de emergentes, isto é, processos
em que um arranjo singular de componentes gera algo distinto de qualquer desses
componentes considerado isoladamente: uma infinidade de peças musicais
diferentes pode ser composta a partir de um número restrito de notas, uma
montanha de textos literários emerge de um mesmo estoque disponível de
palavras, e assim por diante. Nesse sentido, os criadores têm de ter à sua
disposição, no ambiente sociocultural em que se encontram, um conjunto de
elementos que empregarão no seu trabalho criativo. Tais ingredientes da criação
podem ser materiais, como os artefatos técnicos que vão do pincel ao
microscópio, ou ideais, como informações especializadas e estilos aprendidos de
raciocínio.

Psicólogos que concebem a criação cultural em termos de uma ars combinatoria


frequentemente recorrem a analogias com a “seleção natural” tal como descrita
por Darwin na sua teoria da evolução. Segundo Simonton (1999), por exemplo,
uma inovação bem-sucedida no domínio da arte ou da ciência seria fruto de um
processo em duas etapas: a) a geração mais ou menos incontrolada de um vasto
número de ideias (“variação aleatória”); b) uma impiedosa seleção individual e

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social daquelas ideias que se mostrem mais “aptas” segundo algum critério de
juízo (“retenção seletiva”). Utilizando os instrumentos matemáticos do que ele
chama de “historiometria”, Simonton encontra uma confirmação do seu modelo
darwiniano da criatividade na alta correlação entre níveis de produtividade
“bruta” e quantidade de trabalhos socialmente valorizados: indivíduos com maior
produção ao longo de suas carreiras possuem, segundo ele, as maiores chances
estatísticas de se saírem com criações historicamente significativas. Nesse
sentido, os dados de Simonton parecem dar razão a autores como o poeta W. H.
Auden – para o qual é “provável que, no curso da sua vida, um grande poeta
escreva mais poemas ruins do que um poeta menor” – ou o químico Linus Pauling
– que, perguntado sobre como fazia para gerar tantas boas ideias, respondeu que
primeiro gerava um monte delas, depois descartava as que não eram boas
(Robinson, 2010: xi).

As afirmações de Auden e Pauling são importantes para que combatamos as


mitologias do processo criativo como inspiração inefável e espontaneidade
miraculosa. No entanto, elas próprias tendem a simplificar as coisas. Como
veremos em outro texto dessa série, o mesmo acontece com as analogias
darwinistas de Simonton. Seja como for, o modelo é útil porque suas duas etapas
lembram, uma vez mais, a dialética entre loucura e método: a inventividade
desregrada e a imaginação lúdica favorecem a produção de combinações ideativas
originais e surpreendentes, enquanto a avaliação rigorosa serve para selecionar
quais dessas combinações têm valor.

Indivíduo criador e contexto social

Segundo uma concepção tradicional da criatividade, os ingredientes de


originalidade e valor que se combinam na obra artística ou científica emanariam
de fontes inteiramente distintas. Por um lado, a novidade da obra seria uma
expressão individualíssima da subjetividade criadora, não maculada pelo seu
contexto social. Por outro lado, a esse contexto caberia apenas a avaliação crítica
dos produtos originais gerados pelos indivíduos criativos, isto é, a aprovação ou
a rejeição de suas obras. Submetidas ao crivo de uma coletividade de receptores
e juízes, tais obras seriam, de acordo com seus critérios particulares de avaliação,
incorporadas ao patrimônio coletivo ou, ao contrário, lançadas para o refugo da

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história. Na longa carreira das reflexões sobre criatividade, o psicólogo e filósofo


William James se destacou entre os defensores dessa visão dualista. Para ele, há
uma separação nítida entre a criatividade como atributo exclusivamente
individual e o julgamento do valor das criações como atributo exclusivamente
coletivo:

A evolução social é a resultante da interação de dois fatores inteiramente


distintos: o indivíduo, derivando seus dons peculiares do jogo de forças
psicológicas e infrassociais, mas portando todo o poder de iniciativa e
originalidade em suas mãos; e, em segundo lugar, o ambiente social, com seu
poder de adotar ou rejeitar tanto ele como seus dons (James, 2007: 232; grifos
meus).

Ainda que haja alguma dose de verdade na concepção de James, outros estudos
revelam um retrato infinitamente mais complexo e ambíguo da relação entre
indivíduos criadores e seus ambientes socioculturais. Para começo de conversa,
um naco de sociologia já indica que as produções originais de uma artista ou
cientista jamais são intocadas por quaisquer influências sociais. Ao contrário,
uma das razões que levam à consagração social de uma obra criativa é seu
reconhecimento como um acréscimo diferencial a um estoque historicamente
acumulado de produções. É praticamente impossível gerar aquele acréscimo
diferencial sem que se parta de um conhecimento substancial deste estoque.
Apesar do que diz James, na relação entre a criatividade individual e o contexto
social, o último não pode ser visto apenas como restritivo, mas também como
capacitador.

É nesse contexto, afinal de contas, que os criadores encontram os recursos


cognitivos, práticos e expressivos que utilizarão na geração de suas obras
originais. Os apoios sociais ao trabalho criativo individual podem advir de
oportunidades externas, como, por exemplo, as estruturas de suporte e incentivo
à originalidade artística oferecidas por pequenos grupos, a despeito da
indiferença ou hostilidade enfrentadas por eles diante de um ambiente social
mais amplo (uma vez mais, o “Salão dos Recusados” instituído pelos pintores
impressionistas no século XIX serve de ilustração didática). Mas é claro que
aqueles apoios sociais também são internalizados na própria subjetividade dos

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criadores. Este é o caso, por exemplo, do uso espontâneo que uma cientista
individual faz de teorias, métodos e dados duramente colhidos por uma
comunidade científica ao longo da história de uma disciplina. Graças ao seu
aprendizado dos resultados acumulados por gerações anteriores de cientistas, ela
não precisa refazer todo o percurso histórico de sua ciência por conta própria e
pode, assim, avançar na exploração do desconhecido, vendo mais longe ao “subir
nos ombros de gigantes” que a precederam. De um modo ou de outro, a
importância de um contexto social propício à criatividade é tornada óbvia pela
concentração desproporcional de inovadores geniais em certos cenários sócio-
históricos: filósofos na Atenas do século IV a.C, pintores e escultores na Itália da
Renascença, dramaturgos na Inglaterra elisabetana, compositores na Viena dos
séculos XVIII e XIX etc. Um exemplo igualmente óbvio, mas bem menos
inocente, do peso de fatores socioculturais na geração da “genialidade” intelectual
e artística é o fato de que as listagens-padrão de gênios (Shakespeare e Goethe,
Mozart e Beethoven, Newton e Einstein etc.) apresentam, devido aos efeitos
históricos do racismo e da misoginia, uma concentração desproporcional de
homens brancos. O assunto é importante demais para ser tratado de passagem,
então deixemo-lo para outro texto.

“Grandes ‘homens’” ou “espírito do tempo”?

Tais concentrações de gênios em certos contextos socioculturais devem ser tidas


como coincidências milagrosas? Ou, ao contrário, dão prova de que Sócrates e
Platão, Da Vinci e Michelangelo ou Mozart e Beethoven são “encarnações” ou
“personificações” individuais do “espírito do tempo” (Zeitgeist)? A história da
teoria sociológica é marcada pelo confronto entre abordagens que acentuam os
poderes criativos do indivíduo em face da sociedade, de um lado, e abordagens
que enfatizam os poderes condicionantes da sociedade sobre o indivíduo, de
outro. No entanto, ao menos desde o chamado “novo movimento teórico”
(Alexander, 1987), as ciências sociais têm sido caracterizadas por tentativas de
síntese entre os dois tipos de abordagem. Essas perspectivas sintéticas, como a
teoria da prática de Bourdieu e a teoria da estruturação de Giddens,
buscam unificar as competências criativas do agente individual e os poderes
condicionantes das estruturas coletivas em um mesmo retrato.

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Pois bem: o problema da relação indivíduo/sociedade – ou agente/estrutura –


não é apenas uma questão teórica abstrata, mas tem de ser enfrentado, implícita
ou explicitamente, na pesquisa de qualquer fenômeno social particular. Não
surpreende, portanto, que o dualismo entre “individualismo voluntarista” e
“determinismo coletivista” também ganhe corpo em linhas de pesquisa empírica.
Com efeito, o contraste é particularmente intenso nos estudos da “genialidade”
intelectual e artística, isto é, de criadores excepcionais na história da arte e da
ciência. De um lado, temos o retrato clássico de criadores geniais como “grandes
indivíduos” ou, na habitual expressão androcêntrica, “grandes homens” cujos
poderes criativos não deveriam nada aos contextos sociais em que estavam
imersos – contextos nos quais eles (sic) só teriam encontrado, ao contrário,
pobreza de estímulos ou resistência ignorante às suas inovações. Tal visão, que
provavelmente permanece hegemônica no senso comum, foi sistematizada por
Thomas Carlyle (1841) e chegou a exercer certo fascínio sobre nosso querido herói
Max Weber (Gerth; Mills, 1982: 71). Por outro lado, devemos a autores como o
antropólogo Alfred Kroeber (2013 [1917]) um questionamento pioneiro da
mitologia simplória do criador que paira completamente acima da sociedade.
Contra tal mitologia, Kroeber mostrou o papel decisivo de circunstâncias
socioculturais na produção de inovações intelectuais e artísticas. Muito
preocupado em torcer o bastão para o outro extremo, entretanto, o
antiindividualismo de Kroeber pareceu levá-lo a transferir a verdadeira ação
criativa a uma coletividade dotada de vida e consciência próprias. No seu retrato,
descobertas científicas e inovações artísticas tendem a resultar do “espírito do
tempo” como tal, com os indivíduos criadores sendo tomados como meros
“veículos” ou “personificações” do desenvolvimento histórico e cultural. Contra
essa visão, assim como fizeram os heróis do “novo movimento teórico”, devemos
dizer à alternativa entre hiperindividualismo e hipercoletivismo no estudo da
criatividade intelectual e artística: nem oito nem oitenta. Vejamos um exemplo.

O teste dos múltiplos

Uma das melhores ilustrações da importância do contexto sociocultural para a


criatividade é o fenômeno comum das descobertas e invenções múltiplas na
história da ciência e da tecnologia: dois ou mais inventores ou cientistas,
trabalhando independentemente, chegam à mesma ideia. Lá pelo final dos anos

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1850, por exemplo, Alfred Russel Wallace havia formulado, por conta própria, o
essencial da teoria da evolução via seleção natural a que também tinha chegado
Charles Darwin. O cálculo diferencial e integral (ou simplesmente cálculo, para
os íntimos) foi desenvolvido independentemente por Leibniz e Newton, embora
o último tenha acusado injustamente o primeiro de plágio. A inventora Elisha
Grey e o inventor Alexander Graham Bell apareceram no escritório de patentes
para o registro de seus projetos de telefone no mesmo exato dia (Bell ganhou os
direitos exclusivos da invenção por ter lá chegado duas horas antes). Em torno do
ano de 1900, os botânicos Hugo de Vries, Carl Correns e Erich von Tschermak,
que trabalhavam em países diferentes sem saberem uns dos outros, depararam
com as leis da hereditariedade...apenas para descobrirem posteriormente que
estas leis haviam sido divulgadas para um público indiferente por um obscuro
monge chamado Gregor Mendel em 1866.

O fenômeno dos “múltiplos” na história da ciência e da tecnologia sugere que, em


tal ou qual momento do desenvolvimento intelectual de um ramo científico ou
tecnológico, uma nova ideia circula no “ar”, pronta para ser colhida por um
punhado de inteligências antenadas. Kroeber vai mais além, sustentando que o
estado do Zeitgeist não é apenas uma condição necessária para que este ou aquele
indivíduo chegue eventualmente à sua descoberta ou invenção, mas também a
condição suficiente que tornaria tal descoberta/invenção simplesmente
inevitável naquele ponto preciso do tempo. Buscando explicar como a genética
mendeliana foi ignorada durante mais de trinta anos, antes de ser
espetacularmente descoberta na virada para o século XX, Kroeber afirma que “a
hereditariedade mendeliana não data de 1865 [quando Mendel publicou seus
resultados]. Ela foi descoberta em 1900 porque apenas então podia ser
descoberta e porque apenas então teria infalivelmente de ser descoberta” (2013:
7; grifos meus).

Então, o hipercoletivismo ganhou a disputa analítica? A bem da verdade, o grande


antropólogo carrega demais nas tintas. Quando nos aproximamos dos
“múltiplos” na história da ciência e da tecnologia, as coisas se revelam mais
complexas e nuançadas. Para começo de conversa, vários dos exemplos de
múltiplos não são descobertas ou invenções efetivamente idênticas. A versão
newtoniana do cálculo, por exemplo, era um bocado diferente daquela de Leibniz,

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sendo esta última a que serviu de base para a disciplina dada nas universidades.
Wallace e Darwin, por seu turno, não concordavam a respeito de todos os pontos
da teoria da evolução: diferentemente do segundo, o primeiro negava, por
exemplo, a possibilidade de explicação evolucionária do surgimento do cérebro
humano, já que a inteligência do homo sapiens se estendia, segundo ele, para
muito além do que seria suficiente para a sobrevivência da espécie.

Ademais, um dos motivos pelos quais os “múltiplos” são frequentemente


identificados na história da ciência e da tecnologia, mas não da arte, é nossa
propensão a utilizar categorias bem mais inclusivas para tratar das primeiras.
Ninguém além de Beethoven escreveu a “Pastoral”, é certo, mas, se formos
meticulosos, devemos concluir também que ninguém além de Newton escreveu
“Princípios matemáticos da filosofia natural”. As formulações físico-
matemáticas de Newton possuem um caráter bem mais abstrato e impessoal do
que as composições de Beethoven, de fato, mas as marcas da singularidade
individual não estão ausentes das ciências exatas. Ludwig Boltzmann afirmou que
“um matemático reconhecerá Cauchy, Gauss, Jacobi ou Helmholtz, após ler
algumas páginas, do mesmo modo que músicos reconhecem, desde os primeiros
compassos, Mozart, Beethoven ou Schubert” (apud Simonton, 1999: 179). Com
efeito, o já citado Newton enviou, certa feita, sua solução a um desafio lançado
por Johann Bernoulli à comunidade europeia de matemáticos. Embora a resposta
de Newton fosse anônima, Bernoulli não teve problemas em inferir a identidade
do solucionador: “reconhecemos o leão pela sua garra” (idem).

Como os exemplos indicam, levar em conta os condicionamentos socioculturais


da criatividade na arte e na ciência implica questionar a mitologia dos “grandes
homens”, mas sem deslizar para o ventriloquismo coletivista, isto é, para a
suposição de que iniciativas individuais são meros veículos da marcha inexorável
de algum “espírito do tempo”.

Solidão e sociedade

A formação de um cientista ou artista envolve uma internalização de


informações, técnicas e valores previamente formulados no seu domínio: os
raciocínios bem-sucedidos ao longo da história da matemática são estudados nos

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manuais, a ponto de se tornarem hábitos mentais do matemático profissional; a


filósofa que acumula milhares de horas de leitura da tradição filosófica passa a
pensar espontaneamente segundo os vocabulários dessa tradição; a pintora e o
escultor que reconstroem os procedimentos de grandes mestres estão buscando
transformar a sensibilidade artística destes em memória muscular. Graças a esses
processos de interiorização da perícia acumulada em um domínio simbólico
(pintura, filosofia, matemática etc.), a dialética entre inventividade e regra,
loucura e método, também se interioriza na própria psique do indivíduo criador.

A presença dos feitos acumulados pelo domínio de criação na subjetividade do


criador não se dá apenas na forma de hábitos adquiridos, estas disposições
mentais e corpóreas que, para além do conhecimento explícito, caracterizam, por
exemplo, o “ofício do sociólogo” (como disse o outro), mas também os ofícios da
bióloga, da filósofa, do escultor etc. A pintora que trabalha solitariamente no seu
atelier, assim como o acadêmico que escreve um artigo no seu escritório, não
estão imaginativamente sozinhos, mas se inserem em uma “comunidade
imaginada” de colegas, colaboradores, rivais, mentores, ouvintes etc. (o termo
entre aspas é tomado de empréstimo a Benedict Anderson, que o empregou a
respeito de nacionalidades [1987]). Nesse sentido, longe de se resumir a uma
psicologia de atos privatíssimos de elaboração criativa, a análise da criatividade
pode se desenvolver como uma espécie de sociologia da mente. Tal abordagem
capturaria os modos pelos quais a subjetividade criadora dialoga continuamente
com uma comunidade imaginada de predecessores, contemporâneos e
sucessores cujo julgamento é considerado implícita ou explicitamente.
Vandenberghe captou bem essa espécie de simulação intrasubjetiva da
intersubjetividade:

“Todo pensamento é essencialmente dialógico. Mesmo quando estamos


escrevendo textos, estamos sempre pensando e falando com outros. Sejam tais
outros nossos predecessores, contemporâneos ou sucessores, para usar as
tipificações de Schütz, sejam eles escritores do passado, leitores do futuro ou um
pouco de ambos, como é o caso do escritor que lê o que escreve enquanto pensa,
eles estão sempre lá, de algum modo, como membros de uma audiência virtual,
potencialmente universal, à qual nos dirigimos em pensamento quando
escrevemos” (Vandenberghe, 2014: 100).

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O percurso confuso da descoberta, a ordem límpida da justificação:


mote para estudos futuros

Vale a pena relembrar, nesse ponto, a distinção clássica que a epistemologia


estabeleceu entre “contexto da justificação” e “contexto da descoberta”, distinção
que reconhece a diferença entre a ciência feita e a ciência em seu processo de
feitura (Salmon, 1998: 391). Como notaram cientistas autoconscientes como
Michael Faraday (sim, o cara da gaiola), a ordem lógica com que descobertas
científicas são apresentadas ao mundo em livros ou artigos esconde quão
tortuosos e repletos de erros foram os caminhos que resultaram nelas (Simonton,
1999: 27-28). O ponto pode ser estendido para além da ciência: por detrás da
harmonia precisa de um teorema matemático, uma composição sinfônica ou um
poema, se oculta um drama confuso que envolve percursos abandonados, ilusões
perdidas e esperanças destroçadas, mas também insights intuitivos e
inspirações repentinas.

Em um notável estudo chamado Cadernos da mente (1985), a psicóloga Vera


John-Steiner se debruça em detalhe sobre uma dimensão crucial do caminho
complexo que vai da “descoberta” à “justificação”: a tradução do pensamento
privado em expressão pública. Einstein, por exemplo, afirmou que fazia vasto uso
de imagens na construção do seu pensamento, o qual, somente em uma etapa
mais avançada, era então elaborado e testado pelos instrumentos disciplinares da
física e da matemática:

As palavras da linguagem, do modo como são escritas ou faladas, não parecem


desempenhar qualquer papel nos meus mecanismos de pensamento. As
entidades físicas que parecem servir como elementos no pensamento são certos
sinais e imagens mais ou menos claros que podem ser voluntariamente
reproduzidos e combinados (apud John-Steiner, 1985: 4).

Paul Valéry também captou a loucura por trás do método, a “relatividade sob a
aparente perfeição”, em seu estudo sobre Leonardo da Vinci, gênio paradigmático
e prato cheio para quem explora os paralelismos entre arte e ciência. Graças aos
cadernos de Leonardo, Valéry descobriu que, tal qual outro criador famoso, Da
Vinci também escrevia certo por linhas tortas:

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conquanto pouquíssimos autores tenham a coragem de dizer como formaram a


sua obra, creio que já não existem muitos que se tenham arriscado a sabê-lo. Uma
pesquisa desse tipo começa pelo abandono penoso das noções de glória e dos
epítetos laudatórios...Leva a descobrir a relatividade sob a aparente perfeição. É
necessária para não fazer crer que os espíritos são tão profundamente diferentes
quanto seus produtos os fazem parecer. Certos trabalhos das ciências, por
exemplo, e os da matemática em particular, apresentam uma tal limpidez em sua
armação que poderíamos dizer que são obras de ninguém. Têm algo de inumano.
Essa disposição...fez supor uma distância tão grande entre determinados estudos,
como as ciências e as artes, que os espíritos originários foram dele totalmente
separados na opinião pública e exatamente na mesma medida em que os
resultados de seus trabalhos pareciam sê-lo. (...) [Na verdade] Interiormente,
existe um drama. Drama, aventuras, agitações...No mais das vezes esse drama se
perde. (...) No entanto, conservamos os manuscritos de Leonardo e as ilustres
notas de Pascal. Esses fragmentos...fazem-nos adivinhar por quais sobressaltos
de pensamento, por quais bizarras introduções dos acontecimentos humanos e
das sensações contínuas, depois de quais imensos minutos de languidez são
reveladas aos homens as sombras de suas obras futuras, os fantasmas que as
precedem (Valéry, 1998: 17-21).

Drama, aventuras, agitações, fantasmas...Temas interessantes para uma série de


estudos sociofílicos? Espero que sim. Nos falamos depois.

Referências:

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1987.

CARLYLE, Thomas. On heroes, hero-worship and the heroic in history. London,


James Fraser, 1841.

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Annals of the American Academy of Political and Social Science, 9 (1897), 1-42.

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GERTH, Hans; MILLS, C. Wright. “Introdução: o homem e sua obra”. In:


WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

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JOHN-STEINER, V. Notebooks of the mind: explorations of thinking.


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KROEBER, Alfred. “The superorganic”. Savage Minds Occasional Papers, 1.

ROBINSON, Andrew. Sudden genius? The gradual path to creative


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SIMONTON, Dean Keith. Origins of genius. New York: New York University
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VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo Da Vinci. São Paulo, Editora


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