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CONTRATOS

Reequilíbrio em concessões: o barquinho em apuros


precisa desvirar rápido
É hora de cristalizar a instrumentação de medidas céleres para o reequilíbrio dos contratos no país

MARCO AURÉLIO DE BARCELOS SILVA

Crédito: Unsplash

Contratos de concessão, devido à sua natureza, são de longo prazo. Eles


pressupõem a aplicação inicial de recursos Cnanceiros intensivos, cuja
amortização depende do tempo, por pressupor valores pagos pelos
usuários dos serviços gerados. O prazo de uma concessão está
relacionado à modicidade das tarifas, já que, quanto menor a duração,
maior tendem a ser as tarifas exigidas. Tarifas exorbitantes, por sua vez,
tornam inconveniente uma concessão.

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Assim, contratos de concessão não são de pronta entrega. Não se
contratualiza uma rodovia como quem compra uma coxinha de frango na
lanchonete. E o ingrediente tempo, nesse panorama, faz toda a diferença:
o tempo abre-se à intercorrências e imprevisões.

Mal algum haveria nas vicissitudes temporais, se as cláusulas dos


contratos fossem capazes de captá-las. A racionalidade humana, contudo,
não costuma ter acerto nessa função, e ante a realidade que se impõe, os
contratos falham. Para não ruírem, é preciso construir respostas para a
sua sustentação.

A incompletude de contratos como os de concessão tem instigado


especialistas brasileiros, sensíveis ao contexto contratual do País e ao
acúmulo de frustrações que ele ostenta. Ao invés de apenas denunciar as
falhas na execução de tais arranjos, reconhece-se que o problema subjaz
em uma dimensão antecedente: a incapacidade intrínseca de os contratos
de longo prazo atravessarem ilesos o mundo dos fatos.

É elucidativa, a respeito, a explicação que Marcos Nóbrega, Frederico


[1]
Turolla e Rafael Véras fazem da teoria dos contratos incompletos.
Admitindo a superveniência de “cenários adversos” a um contrato longevo,
os autores defendem a imprescindibilidade da “restauração da
estabilidade contratual”, aludindo a reZexões criativas.

Por todas, chama a atenção o “problema do barquinho do Amyr Klink”, em


que se narra a pretensão do navegador de atravessar o Atlântico Sul em
um barco à prova de ondas, que não virasse. Para os engenheiros que
ajudaram no projeto, tal aspiração seria inviável, e Klink teria sido
convencido a conceber, não um barquinho que não virasse, mas um que,
virando, pudesse “desvirar”. Tal proposta funcionou, e Amyr Klink foi o
primeiro a atravessar o Atlântico Sul em um barco a remo.

Nas concessões, talvez a disciplina dos riscos represente um dos


mecanismos mais evoluídos, até então, para dar conta das intercorrências
a que tais contratos estão sujeitos. O regramento dos riscos seria capaz
de “desvirar” os contratos, e a lógica funcionaria assim: são listados, em
uma cláusula, os eventos que, mesmo afetando negativamente a
execução do negócio, não disparariam qualquer resposta em socorro do
concessionário — seriam os riscos alocados sob a responsabilidade dele,
e, de outro lado, são listados eventos que, irrompendo-se, ensejariam
algum tipo de resposta regulatória, levando, por exemplo, ao reequilíbrio
contratual — seriam os riscos alocados ao poder público.

Mais do que diferenciar esses dois conjuntos de cláusulas (riscos do


concessionário versus riscos do poder público), é essencial compreender
os desdobramentos que proporcionam o andamento de um contrato
como o de concessão. Para os riscos que são seus, o concessionário deve
estimar a probabilidade de sua ocorrência futura, criando uma espécie de
contingência que se reZetirá no preço da sua proposta: “Se o barquinho
virar, não vá buscar ajuda; você, concessionário, terá de dispor dos meios
para desvirá-lo”. Por essa razão, diz-se que “os riscos são preciCcados”. Em
contrapartida, para os riscos que não são seus, não é necessário prever
contingências, e o contrato, se tais riscos ocorrerem, será reequilibrado:
“Fique tranquilo, se o barquinho virar, o poder concedente providenciará
uma solução”.

Tal mecânica é elegante e contribui para reduzir os custos de transação


diante de um cenário adverso. Basta analisar a matriz de riscos e a
regulamentação do contrato para se identiCcar o tratamento apropriado
para a questão. Quando o “barquinho” vira por risco atribuído ao poder
concedente, a expectativa é que ele será “desvirado”, mediante alguma
ação regulatória.

Mas essa solução, que à primeira vista parece simples, faz emergir um
ponto de alerta, ainda pouco evoluído na regulação brasileira. Sem
embargo, não basta desvirar o barquinho nas intempéries. Isso precisa ser
feito rápido, isto é, as medidas de reequilíbrio precisam ser implementadas
com celeridade, para se evitarem sequelas graves ao Zuxo de caixa
contratual que possam pôr em xeque a continuidade dos serviços
prestados. De fato, choques incisivos afetam, por exemplo, compromissos
assumidos pelo concessionário junto a Cnanciadores, tal como o índice de
cobertura do serviço da dívida. Isso é um problema grave, pois pode
disparar o vencimento antecipado da dívida, crítico para as concessões.

Em que pese, no entanto, a velocidade reclamada, procedimentos de


reequilíbrio enfrentam roteiro sinuoso, com a ativação de múltiplos órgãos.
É comum se deparar, também, com dois espectros de análise: o “mérito”,
de um lado (a conCrmação da concretização de um risco fora da
responsabilidade do concessionário); e a apuração dos impactos e o
cálculo da resposta requerida, de outro. Quando ambos se fazem
presentes, mais demorado é o processo – embora haja hipóteses menos
problemáticas, quando em jogo fatos incontroversos (a exemplo do
incremento de tributos, a caracterizar “fato do príncipe”; ou quando a
questão de fundo, em outros momentos, já tenha sido superada). Nessas
situações, como desvirar rapidamente o barquinho em apuros?

Apesar de a experiência prática ser pobre em referências, algumas


soluções para o imbróglio vêm sendo intentadas. Destaca-se o conceito de
“reequilíbrio cautelar” dos contratos de concessão, positivado na realidade
do estado de São Paulo. A dinâmica envolvida é também elegante e deita
raízes no poder geral de cautela da Administração Pública. Reequilibrar
contratos agilmente dialoga, ainda, com valores jurídicos caros, como a
continuidade da prestação de serviços relevantes, assim como a
segurança jurídica. Respostas rápidas para o reequilíbrio, ademais, evitam
represamento de passivos regulatórios e futuros sobressaltos das tarifas,
dado o efeito do “dinheiro no tempo”.
Dado esse contexto, a Resolução nº 19, da Secretaria de Parcerias em
Investimentos de São Paulo, de 29/5/23, Cxa critérios lógicos para o dito
reequilíbrio cautelar e prevê a limitação da medida a 80% do impacto
estimado do desequilíbrio. Não há, portanto, um cheque em branco para o
concessionário beneCciário da solução, o qual terá o ônus de demonstrar a
conveniência, bem como o montante considerado na recomposição. Ao
Cnal, eventuais saldos, para mais ou menos, serão depurados no processo
ordinário, eliminando-se possíveis injustiças ou distorções.

Em certa medida, a ideia do reequilíbrio cautelar para contratos já havia


sido conjecturada, sem muito sucesso, no bojo da pandemia de Covid-19,
que pôs à prova, diversos setores regulados no Brasil. Episódios de
desequilíbrios sistêmicos e incisivos, como tal, impõem ações ágeis para
evitar o acirramento dos prejuízos, os quais se desdobram sobre um
número signiCcativo de contratos e de pessoas.

Por isso, vale o esforço para se consolidar o instituto, a Cm de que ele se


torne, de uma vez por todas, realidade em âmbito nacional. Veja-se, nessa
linha, os temores quanto à Reforma Tributária em curso no País, cujas
resultantes são incertas, mas que, conforme o caso, podem ferir o Zuxo de
caixa de projetos de setores essenciais da infraestrutura. Para essas
ocorrências, a retratar “fato do príncipe”, o ordenamento já consagra o
direito ao reequilíbrio dos contratos. Mas passaria a haver um esforço de
priorização à restauração da estabilidade contratual, antecipando a
solução que viabilizasse a sustentação dos empreendimentos no cenário
adverso.

Quer, portanto, na lei, quer no âmbito infralegal, é hora de se cristalizar a


instrumentação de medidas céleres para o reequilíbrio dos contratos no
Brasil. Muito se pode perder ao deixar temas de alto impacto transitarem
desordenados nas prateleiras dos reguladores, num vai-e-vem que remete
às ondas do mar.

E por falar em mar: volta-se ao barquinho virado no oceano revolto. O


navegador tem a água entrando pelo nariz e luta para contatar o
continente, em busca da ajuda prometida. “Socorro, meu barco virou!” –
ele grita pelo rádio minguante. A resposta do outro lado chega seca e
proverbial: “Peço que aguarde, senhor. A diretoria de barquinhos virados
estará analisando o seu caso”. Fim.

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[1]
“Contratação incompleta de projetos de infraestrutura”, disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/372401108_Contratacao_incompleta_d
e_projetos_de_infraestrutura.

MARCO AURÉLIO DE BARCELOS SILVA – doutor em Direito pela USP, mestre em Direito pela
University College London e professor do IDP. Foi Secretário de Estado de Infraestrutura e
Mobilidade de Minas Gerais e, atualmente, é diretor-presidente da Associação Brasileira de
Concessionárias de Rodovias - ABCR.

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