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INCERTEZAS TRIBUTÁRIAS: PARADOXOS DO PROVISIONAMENTO E


AS REPERCUSSÕES DA ICPC 22
Heron Charneski
Fernando Dal-Ri Murcia

9.1 INTRODUÇÃO

Lidar com incertezas aproxima o Direito e a Contabilidade. Se o Direito referencia


a pacificação dos conflitos sociais, a Contabilidade menciona as alocações de fenômenos
econômicos a períodos passados e futuros, assim como mensurações que muitas vezes
exigem estimativas de valores futuros.1 No campo das incertezas, pode-se dizer, o dilema
jurídico está em como entregar segurança jurídica, e o dilema contábil está em como en-
tregar informação útil e relevante.
Esses permanentes dilemas das duas ciências são agravados quando se encontram, na
encruzilhada das incertezas, de um lado, um sistema jurídico-tributário produtor e repro-
dutor de conflitos e, de outro, normas contábeis que infletem sobre esse estado de coisas.
Muitos tributos, legislação complexa, alterações frequentes de normas e de interpretações,
multas elevadas e ausência de mecanismos de composição mais céleres de disputas carac-
terizam no Brasil um excesso de dúvidas em torno do tratamento da matéria tributária. A
incidência sobre essa realidade da norma contábil – de linguagem cada vez mais universa-
lizada a partir da propagação dos padrões contábeis internacionais, o “padrão IAS/IFRS”,2
adotado no Brasil desde a Lei nº 11.638/2007, pode tornar-se, ela própria, fator de incertezas.
Nesse contexto, é compreensível a curiosidade despertada em torno da Interpretação
Técnica ICPC 22 – Incerteza sobre Tratamento de Tributos sobre o Lucro, elaborada a
partir da correspondente norma internacional IFRIC 23 – Uncertainty over Income Tax
Treatments. Aprovada pela Deliberação CVM nº 804, de 27/12/2018, e pela ITG 22 do

1. O Pronunciamento Técnico CPC 23 – Políticas Contábeis, Mudanças de Estimativa e Retificação de Erro,


aprovado pela Deliberação CVM nº 592/2009 e pela Resolução CFC nº 1.179/2009, dispõe que “como con-
sequência das incertezas inerentes às atividades empresariais, muitos itens nas demonstrações financeiras
não podem ser mensurados com precisão, podendo apenas ser estimados” (§ 32).
2. Refere-se ao conjunto de normas contábeis denominadas IAS (International Accounting Standards) e IFRS
(International Financial Reporting Standards), emitidas pelo órgão regulador IASB (International Accounting
Standards Board), e adotadas na maioria dos principais mercados globais.

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CFC, de 19/12/2018, a denominada ICPC 22 passa a ter aplicação obrigatória no país aos
exercícios sociais iniciados a partir de 1º de janeiro de 2019.
Em linhas gerais, a Interpretação busca esclarecer como a entidade deve aplicar os
requisitos de reconhecimento e mensuração do Pronunciamento Técnico CPC 32 – Tri-
butos sobre o Lucro, aprovado pela Deliberação CVM n° 599/2009 e pela Resolução CFC
n° 1.189/2009, quando há incertezas sobre os tratamentos fiscais. A ICPC 22, aplicável
apenas a tributos sobre o lucro, situa-se em território normativo diverso ao das provi-
sões e contingências, regido pelo Pronunciamento Técnico CPC 25 – Provisões, Passivos
Contingentes e Ativos Contingentes, aprovado pela Deliberação CVM nº 594/2009 e pela
Resolução CFC nº 1.180/2009. Apesar disso, há uma inevitável oportunidade de voltar a
refletir sobre como a contabilidade avalia e quantifica contingências na esfera tributária, a
partir da intersecção de conceitos do CPC 25 e da novel ICPC 22, e dos desafios relacio-
nados à aplicação dessas normas. Esse, pois, constitui-se o pano de fundo dos aspectos a
serem discutidos neste capítulo.
No seu desenvolvimento, o capítulo objetiva realizar uma sucinta exposição dos princi-
pais conceitos oriundos do CPC 25, de modo a permitir uma compreensão de aproximações
e distanciamentos no tratamento de incertezas entre esta norma e a ICPC 22, e dos conceitos
oriundos do próprio CPC 32, pois é este o escopo de aplicação da Interpretação Técnica.
Ao final, buscaremos analisar os impactos e alguns pontos controvertidos da ICPC 22.

9.2 O CPC 25 – PROVISÕES, PASSIVOS CONTINGENTES E ATIVOS CONTINGENTES E OS


PARADOXOS DO PROVISIONAMENTO

Para que se possa estabelecer uma análise crítica da ICPC 22, cabe situar, mesmo que
brevemente, os conceitos relacionados a “provisões” e “contingências”, e ilustrar alguns de
seus aqui denominados “paradoxos”.
Como se sabe, em geral, para que um ativo ou passivo seja reconhecido em uma demons-
tração contábil, este ativo ou passivo deve satisfazer à definição própria, e ser mensurável.
No que diz respeito ao ativo, trata-se, no âmbito da convergência ao padrão IAS/IFRS,
de “um recurso controlado pela entidade como resultado de eventos passados e do qual
se espera que fluam futuros benefícios econômicos para a entidade” (§ 4.4, a, Pronuncia-
mento CPC 00 (R1) – Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório
Contábil-Financeiro, aprovado pela Deliberação CVM n° 675/2011 e pela Resolução CFC nº
1.374/11). A caracterização contábil do chamado “ativo contingente” revela um ativo “possí-
vel”, “cuja existência será confirmada apenas pela ocorrência ou não de um ou mais eventos
futuros incertos não totalmente sob controle da entidade” (§ 10, CPC 25). É curioso notar,
nesse esquema definitório, que, mesmo diante da probabilidade de entrada de benefícios
econômicos, a contingência restringe o reconhecimento de um ativo nas demonstrações
contábeis, “uma vez que pode tratar-se de resultado que nunca venha a ser realizado” (§ 33,
CPC 25). O ativo deixa de ser “contingente” e passa a ser reconhecido apenas se a entrada
de benefícios econômicos for “praticamente certa”.

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Já no que diz respeito ao passivo, este é definido pela Estrutura Conceitual como “uma
obrigação presente da entidade, derivada de eventos passados, cuja liquidação se espera
que resulte na saída de recursos da entidade capazes de gerar benefícios econômicos” (§
4.4, b, CPC 00(R1)). Note-se que dois são os elementos essenciais de um passivo: (i) repre-
senta uma obrigação presente perante um terceiro, (ii) cuja liquidação resultará na saída
de recursos da entidade.
Provisão é provavelmente um dos termos mais conhecidos do jargão contábil. De
maneira geral, provisão é “espécie” do gênero “passivo”, com a particularidade de ser um
passivo “de prazo ou de valor incerto” (§ 10, CPC 25).
Em um registro histórico, os autores do Manual de contabilidade societária advertem
que o termo “provisão” sempre foi utilizado na prática por contadores como qualquer
obrigação ou redução do valor de um ativo. Nesse aspecto, os autores compreendem que,
à luz do padrão IAS/IFRS e da Deliberação CVM n° 594/2009, há necessidade de as contas
retificadoras do ativo serem consideradas como perdas estimadas, sendo o termo provisão
utilizado, pois, somente para as obrigações.3
Já no âmbito jurídico, como noticia Elidie Palma Bifano, a terminologia surgiu inicial-
mente em norma tributária, o art. 60 da Lei nº 4.506/1964, que admitia a dedutibilidade
fiscal de provisões para créditos de liquidação duvidosa, para responsabilidade pela eventual
despedida dos empregados, e para o ajuste do custo de ativos ao valor de mercado, nos casos
previstos em lei.4 Com o advento da regulação societária da matéria contábil, o art. 184,
I, da Lei nº 6.404/1976, nesse aspecto ainda em vigor, ao tratar dos critérios de avaliação
do passivo, determina que “as obrigações, encargos e riscos, conhecidos ou calculáveis,
inclusive imposto de renda a pagar com base no resultado do exercício, serão computados
pelo valor atualizado até a data do balanço”.
Veja-se, portanto, que provisão é justamente uma espécie de passivo – obrigação pre-
sente da qual se espera que resulte na saída de recursos da entidade – cujo prazo ou valor
são incertos.
Dessa forma, todas as provisões são, por definição, contingentes, porque são incertas
quanto ao seu prazo ou valor. Para fins contábeis, entretanto, o termo “contingente” é uti-
lizado para passivos e ativos não reconhecidos nas demonstrações financeiras (off balance).
Na prática, é comum a utilização do termo provisão para se referir aos passivos oriundos
de disputas administrativas e judiciais. Esses são exemplos clássicos de provisões, uma vez
que o valor a ser pago pela entidade poderá variar sensivelmente dependendo da decisão
final. O prazo é igualmente incerto, geralmente superior a um ano.

3. GELBCKE, Ernesto Rubens et al. Manual de contabilidade societária: aplicável a todas as sociedades: de
acordo com as normas internacionais e do CPC. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 367.
4. BIFANO, Elidie Palma. Distinção Jurídico-tributária de Provisões e o Pronunciamento Técnico CPC n. 25 –
Essência e Forma Essencial. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel. Controvérsias
jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2013. v. 4. p. 60-61.

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O CPC 25 determina que a entidade reconheça uma provisão quando for provável que
haverá uma saída de recursos da entidade. O referido CPC define, no seu § 23, uma saída
de recurso como provável se “o evento for mais provável que sim do que não de ocorrer,
isto é, se a probabilidade de que o evento ocorrerá for maior do que a probabilidade de
isso não acontecer”.
Na IAS 37 – Provisions, Contingent Assets and Contigent Liabilities, norma interna-
cional correlacionada ao CPC 25, probable é definido como more likely than not.
Note-se que, caso a probabilidade de saída de recursos seja apenas possível, estaremos
diante de um passivo contingente que deverá ser divulgado em Nota Explicativa, mas não
registrado nas Demonstrações Financeiras. No caso de a saída de recursos ser remota, nem
a divulgação é obrigatoriamente exigida.
É relevante salientar, portanto, a existência de assimetria entre os critérios de reconhe-
cimento da provisão (passivo contingente) e de um ativo contingente. Em outras palavras,
as exigências mínimas (threshold) para registro contábil de ativos e passivos oriundos de
contingências é distinta; a norma (CPC 25) requer uma “maior certeza” para o registro de
ativos.
A título ilustrativo, considere-se duas empresas que litigam entre si. A empresa ré (polo
passivo) deverá registrar uma provisão caso entenda ser provável a perda da referida ação.
Em contrapartida, a autora da ação (polo ativo) não reconhecerá o referido ativo decorrente
dos valores a receber. Regra geral, como o critério para o registro contábil é que o ganho
seja “praticamente certo”, a entidade deverá, na maioria dos casos, esperar o trânsito em
julgado da ação. Essa assimetria implica o registro de uma despesa e de um passivo pela
parte “perdedora” do processo – sem correspondente ativo e receita pela “ganhadora”. Como
se diz anedoticamente na prática, “o Balanço do mundo não fecha”.
Atribui-se essa assimetria entre os critérios contábeis para registro de um ativo e de
um passivo ao que se convencionou denominar na contabilidade de conservadorismo,
termo geralmente empregado para dizer que os contadores devem divulgar o menor dos
valores possíveis para os ativos e as receitas, e o maior para os passivos e despesas. Ou
seja, por trás do conservadorismo e diante de incertezas, “supõe-se que o pessimismo
seja melhor do que o otimismo, na divulgação de informações financeiras”, nas palavras
de Eldon S. Hendriksen e Michael F. van Breda.5 O pessimismo seria uma proteção aos
credores e ao mercado em geral, por contrabalancear o excesso de otimismo de admi-
nistradores e proprietários.
Os mesmos autores desenvolvem duras críticas ao “conservadorismo”, que reputam
“um método muito pobre para lidar com a existência de incerteza na avaliação de ativos
e passivos e na mensuração do lucro”, e que sequer deveria ter lugar na teoria da conta-
bilidade. O ponto é que a subestimação deliberada pode conduzir tão frequentemente a

5. HENDRIKSEN, Eldon S.; VAN BREDA, Michael F. Teoria da contabilidade. 1. ed. 12. reimpr. São Paulo: Atlas,
2015. p. 104.

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decisões incorretas quanto à superestimação, o que conflita com o objetivo da contabilidade


de divulgar informações confiáveis e relevantes.6
Nessa linha, apresenta-se o conservadorismo como o primeiro paradoxo do provisio-
namento, pois a superestimação de riscos e de perdas futuras pode conduzir a decisões tão
incorretas, sob o viés informacional, quanto à sua superestimação.
Ademais, verifica-se, a partir das exigências do CPC 25, que o registro de provisões,
passivos e ativos contingentes decorre de julgamentos acerca da probabilidade de saída (ou
entrada) de recursos e inclui cenários como remoto, possível, provável e praticamente certo.
Essas avaliações das probabilidades de ocorrência de saída (ou entrada) de recursos
nada mais são do que estimavas contábeis. Sobre esse aspecto, o CPC 23 dispõe que “a es-
timativa envolve julgamentos baseados na última informação disponível e confiável” (§ 32).
De fato, sem estimativas, pouco ou quase nada do que se faz na contabilidade atu-
almente seria possível. O uso de estimativas razoáveis é parte essencial da elaboração de
demonstrações financeiras e não reduz sua confiabilidade, como preleciona o mesmo CPC
23 no seu § 33.
Acontece que – apesar do uso de estimativa ser parte essencial da contabilidade – a
subjetividade inerente ao julgamento humano acaba permitindo o chamado gerenciamento
de resultados, também conhecido na prática como gerenciamento de lucros, contabilidade
criativa, earnings management, cooking the books ou income smoothing, aqui identificado
como o segundo paradoxo do provisionamento.
Pode-se dizer que o gerenciamento de resultados é algo inerente à contabilidade. Isso
porque, apesar de os administradores da entidade serem contratados pelos donos (acionis-
tas) para tomar as melhores decisões econômicas e maximizar o valor da entidade, estes
possuem seus próprios interesses e incentivos – que muitas vezes são conflitantes com os
interesses dos acionistas. A literatura econômica conceitua essa relação conflitante de agency
conflict (conflito da agência).
Nesse cenário de conflito, caracterizado por assimetria informacional, os administra-
dores possuem acesso privilegiado às informações e respondem a incentivos que podem
levar ao “gerenciamento contábil”.
Para Paul Healy e James Wahlen, o gerenciamento de resultados ocorre quando ad-
ministradores usam de julgamento nas demonstrações financeiras e na estruturação de
transações para alterar as informações reportadas, tanto como forma de deturpar a visão
dos stakeholders sobre a realidade econômica de uma firma, quanto para influenciar os
resultados contratuais que dependem das informações contábeis reportadas.7 De acordo

6. HENDRIKSEN, Eldon S.; VAN BREDA, Michael F. Teoria da contabilidade. 1. ed. 12. reimpr. São Paulo: Atlas,
2015. p. 105.
7. HEALY, Paul; WAHLEN, James. A review of the earnings management literature and its implications for stan-
dard setting. Accounting horizons, 1999. p. 368.

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com Katherine Schipper, o gerenciamento de lucros resulta de decisões deliberadas dentro


da flexibilidade permitida pelas normas contábeis.8
Diversos poderiam ser os incentivos para o gerenciamento como, por exemplo: (i) di-
minuir o lucro para reduzir o pagamento de tributos; (ii) aumentar o lucro para permitir o
pagamento de bônus; (iii) diminuir o lucro para não “chamar a atenção” do governo (custo
político), o que poderia implicar no aumento de tributação; (iv) aumentar o lucro para bater
a “meta” dos analistas de mercado; (v) aumentar o lucro para não quebrar covenants; (vi)
suavizar o resultado para retirar percepção de volatilidade, e outros.
Efetivamente, não é fácil distinguir de forma clara a fronteira que separa o gerencia-
mento de lucros e a fraude contábil. Aparentemente, o gerenciamento de lucros seria a
manipulação da situação econômica da empresa evidenciada nas demonstrações contábeis
dentro do permitido legalmente; já a fraude violaria as normas contábeis – e, porventura,
também as normas legais. Na prática, entretanto, como as normas são sujeitas a interpre-
tação e julgamento, tal distinção torna-se complexa.
No que tange ao tema de fundo, fica claro que, se a empresa intencionalmente não
registrar uma provisão decorrente de um processo cuja perda é considerada provável, ela
estaria violando as normas contábeis vigentes, em especial o CPC 25.
Exatamente pela preocupação com a prática de “suavização de resultados”, o padrão
IAS/IFRS não se refere ao termo “conservadorismo”, mas ao conceito de prudência.9 Na
atual redação da Estrutura Conceitual, o IASB retirou a referência expressa ao princípio da
prudência, contida na versão anterior, como condição da representação fidedigna (Prefácio,
CPC 00 (R1)), pois o uso da prudência no sentido de “conservadorismo” seria incompatível
com a neutralidade, uma característica fundamental das demonstrações financeiras que
significa a ausência de viés na direção de um resultado predeterminado. Nesse sentido, a
norma de revisão da Estrutura Conceitual, a ser aplicada a partir de 2020, propõe utilizar
o termo “prudência” para associá-lo não ao conservadorismo, mas à neutralidade: se a
prudência representa o exercício de precaução no exercício de julgamentos sob condições
de incerteza, a neutralidade não tolera a subestimação deliberada de ativos e receitas ou a
superestimação deliberada de passivos e despesas, que podem conduzir a distorções nos
resultados de períodos futuros. Remete assim, de certa forma, à noção de prudência contida
na redação inicial da Estrutura Conceitual, aprovada no Brasil pela Deliberação CVM nº
539/2008, como o “emprego de um certo grau de precaução no exercício dos julgamentos
necessários às estimativas em certas condições de incerteza, no sentido de que ativos ou
receitas não sejam superestimados e que passivos ou despesas não sejam subestimados”.
Ressalte-se, por fim, a existência de um terceiro paradoxo do provisionamento: o
potencial conflito no que tange à avaliação da probabilidade de perda de uma situação
litigiosa – que é geralmente realizada pelo advogado patrono da causa. Isso porque ambos,

8. SCHIPPER, Katherine. Commentary on earnings management. Accounting horizons, v. l3, n. 4, 1989, p. 92.
9. CHARNESKI, Heron. Normas internacionais de contabilidade e direito tributário brasileiro. São Paulo: Quar-
tier Latin, 2018. v. XXIV. p. 130. Série Doutrina Tributária.

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empresa e advogado, podem ter interesses comuns para que o processo não seja avaliado
como provável, e sim como possível ou remoto.
Para a empresa, isso diminuiria o passivo registrado contabilmente. Para o advogado,
poderia aumentar suas chances de contratação e de retenção da causa. Isso porque, caso ele
já indique no momento da contratação que a perda da ação é provável, a empresa poderia
simplesmente não o contratar. Afinal, a empresa busca ganhar o processo. E se o advogado
já lhe afirma ex ante que a perda é provável, a empresa poderia ter incentivos para procurar
outro profissional. O tema é complexo, pois, ao mesmo tempo, o advogado patrocinador
da causa é o que deve deter a maior expertise para a avaliação das suas probabilidades.

9.3 O CPC 32 – TRIBUTOS SOBRE O LUCRO: RECONHECIMENTO DOS EFEITOS


FISCAIS ATUAIS E FUTUROS DOS EVENTOS CONTÁBEIS E AS DIFERENTES
“CONTABILIDADES”

A segunda norma contábil a ser considerada na discussão é o CPC 32 – Tributos sobre


o lucro. Afinal, esta é a norma “interpretada” pela ICPC 22, e é o próprio CPC 25, no § 5,
b, que exclui do seu escopo as “provisões” tratadas pelo CPC 32.
O objetivo do CPC 32 é estabelecer o tratamento contábil para os tributos sobre o lucro.
No caso brasileiro, esse escopo se refere ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ
e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL. Os valores a pagar (“provisões”)
desses tributos também se inserem na classificação do passivo sob a lei societária (art. 184,
I, da Lei das S.A.), mas a questão principal na contabilização desses tributos diz respeito
ao reconhecimento e à mensuração não apenas dos efeitos fiscais atuais (IRPJ e CSLL
correntes), mas também dos efeitos fiscais futuros (IRPJ e CSLL diferidos) de elementos e
operações reconhecidos nas demonstrações contábeis de determinado período-base. Assim,
se for provável que a recuperação ou a liquidação do valor contábil de um ativo ou de um
passivo tornará futuros pagamentos de tributos maiores (ou menores) do que eles seriam
se tal recuperação ou liquidação não tivessem efeitos fiscais, o CPC 32 exige que a entidade
reconheça um passivo fiscal diferido, ou ativo fiscal diferido, conforme o caso.
O tema remete à problemática das diferenças quanto à mensuração da renda para fins
tributários e contábeis.
Essas diferenças levam ao fenômeno denominado alocação de imposto entre períodos, no
qual é criada uma conta de imposto diferido para levar em consideração as discrepâncias obser-
vadas.10 A ideia básica é que, no caso de diferenças temporárias, a alocação permita reconhecer
a despesa de imposto a pagar correspondente ao lucro de cada período em que se baseia.
Os principais argumentos da alocação de impostos entre períodos são: vinculação,
que exige o registro das despesas (no caso, do imposto) no mesmo exercício em que são

10. HENDRIKSEN, Eldon S.; VAN BREDA, Michael F. Teoria da contabilidade. 1. ed. 12. reimpr. São Paulo: Atlas,
2015. p. 428.

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registradas as receitas correspondente (no caso, do lucro tributável); o princípio da entidade


em funcionamento; e a prática gerencial de considerar o imposto de renda como despesa
na composição do lucro líquido final. Porém, a doutrina contábil apresenta diversos ar-
gumentos contrários ao reconhecimento dos impostos diferidos. Os que propugnam, em
essência, apenas a divulgação dos impostos de renda pagos como despesa do exercício,
utilizam como argumentos: a falta de entendimento do público quanto à divulgação de uma
despesa de imposto que não é definitivamente paga; que o imposto pago é uma destinação
do resultado do exercício, análoga à dos dividendos; a falta de relevância da divulgação de
impostos diferidos, já que a obrigação fiscal não se relaciona de maneira funcional com o
lucro líquido; a incerteza na elaboração de estimativas de obrigações fiscais e efeitos fiscais
futuros, até porque impostos futuros somente serão devidos se houver lucro.11
O CPC 32 representa a vitória da primeira corrente, ao sustentar a divulgação das des-
pesas tributárias correntes e diferidas, o que, a bem da transparência, permitiria ao público
entender se o relacionamento entre a despesa tributária da empresa e o lucro contábil é
“incomum” (§ 84, CPC 32) e os fatores significativos que poderiam afetar o relacionamento
entre as bases tributárias e contábil no futuro.
O CPC 32 enfatiza o conceito de “diferença temporária”. Se, por um lado, determinadas
diferenças ocorrem de forma permanente, por outro, grande parte das diferenças entre as
chamadas Contabilidade Societária e Contabilidade Fiscal se referem à alocação temporal
de elementos contabilizáveis em um e outro sistema. Podem ser citados como exemplos
dessas diferenças temporárias o uso de taxas de depreciação diversas para fins contábeis
e tributários, o tratamento das imparidades (perda reconhecida para fins contábeis, mas
tratada como provisão indedutível para fins tributários) e o tratamento dos ajustes a valor
justo que, mesmo quando reconhecidos pela contabilidade, só produzem efeitos tributários
diante de um evento de realização dos respectivos ativos e passivos.
Portanto, a “diferença temporária” é definida como “a diferença entre o valor contábil
de ativo ou passivo no balanço e sua base fiscal”, sendo a “base fiscal” de ativo ou passivo
“o valor atribuído àquele ativo ou passivo para fins fiscais” (§ 5º do CPC 32). Em outras
palavras, a diferença temporária surge quando o valor contábil de um elemento do patri-
mônio (ativo ou passivo) é diferente daquele que lhe atribui, em determinado período-base,
a regra tributária.
A diferença temporária será tributável, quando resultar em valores tributáveis na
determinação de lucros tributáveis de períodos futuros. Nesse caso, o contribuinte deverá
reconhecer um passivo fiscal diferido, que corresponderá ao valor dos tributos que serão
devidos em período futuro sobre a diferença tributável. Um exemplo é o do uso do regime
de caixa para fins de tributação de determinada receita: esta já teria sido apropriada na
contabilidade do período em que realizada, mas o tributo devido sobre o montante teria a

11. HENDRIKSEN, Eldon S.; VAN BREDA, Michael F. Teoria da contabilidade. 1. ed. 12. reimpr. São Paulo: Atlas,
2015. p. 431-433.

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sua exigibilidade diferida para quando do recebimento, o que levaria a empresa a registrar,
juntamente com a receita, o passivo fiscal diferido.
Tome-se o caso hipotético12 de uma empresa que, no ano 1, tenha adquirido uma má-
quina para a produção de bens, no valor de $ 200.000, com vida útil econômica estimada
de 5 anos e taxa anual de depreciação contábil de 20%. A legislação tributária prevê uma
taxa anual de depreciação de 25% para a máquina. A receita bruta de bens em cada ano é
de $ 800.000, e o custo de produção é de $ 300.000. Para simplificar, não existem outros
elementos de resultado e a depreciação será linear, sem ajuste do valor residual do bem. Até
que o valor de aquisição da máquina esteja totalmente depreciado na escrituração mercantil
no quinto ano,13 o cálculo tributário levaria ao seguinte resultado:

Quadro 9.1 – Demonstrativo de efeitos das diferenças temporárias sobre resultados acumulados

Saldos em 31/12 Ano 1 Ano 2 Ano 3 Ano 4 Ano 5 Acumulado


a) Receita bruta de vendas 800.000 800.000 800.000 800.000 800.000 4.000.000
b) Custo de produção (300.000) (300.000) (300.000) (300.000) (300.000) (1.500.000)
c) Depreciação contábil (40.000) (40.000) (40.000) (40.000) (40.000) (200.000)
d) Lucro Contábil (a+b+c) 460.000 460.000 460.000 460.000 460.000 2.300.000
e) Ajuste depreciação fiscal (10.000) (10.000) (10.000) (10.000) 40.000 -
f) Lucro Fiscal ou Real (d-e) 450.000 450.000 450.000 450.000 500.000 2.300.000
g) IR/CS corrente (f*34%) (153.000) (153.000) (153.000) (153.000) (170.000) 782.000
h) Diferença temporária 10.000 10.000 10.000 10.000 (40.000) 0
i) IR/CS diferidos (h*34%) (3.400) (3.400) (3.400) (3.400) 13.600 0
j) Total IR/CS (g+i) (156.400) (156.400) (156.400) (156.400) (156.400) 782.000

O exemplo demonstra que o ajuste fiscal de $ 10.000 na base do imposto entre os


anos 1 a 4 é apenas uma diferença temporária entre as bases tributária e contábil da má-
quina, e que, ao final do ano 5, todo o “benefício” da depreciação acelerada fiscalmente
terá sido “devolvido” na base de cálculo, pois não mais será possível aproveitar a dedução
da depreciação contábil de $ 40.000 nesse último ano. Não por outro motivo, se analisada
a coluna do resultado acumulado dos anos 1 a 5, o lucro líquido contábil e o lucro fiscal
(real) acumulados encerram no ano 5 com o mesmo valor: $ 2.300.000.

12. O exemplo foi livremente inspirado e adaptado a partir do item 30 do Parecer Normativo RFB nº 1/2011,
conforme apresentado em: CHARNESKI, Heron. Normas internacionais de contabilidade e direito tributário
brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2018. v. XXIV. p. 68. Série Doutrina Tributária.
13. De acordo com o § 16 do art. 57 da Lei nº 4.506/1964, inserido pelo art. 40 da Lei nº 12.973/2014, a partir
do período de apuração em que o montante acumulado das quotas de depreciação computado na deter-
minação do lucro real atingir o limite do custo de aquisição do bem, o valor da depreciação, registrado na
escrituração comercial, deverá ser adicionado ao lucro líquido para efeito de determinação do lucro real.

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190 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

Já a diferença temporária será dedutível, quando resultar em valores dedutíveis na de-


terminação de lucros tributáveis de períodos futuros. Nesse caso, se for provável a existência
de lucros tributáveis futuros, o contribuinte deverá reconhecer um ativo fiscal diferido,
correspondente ao valor dos mesmos tributos que serão recuperados em período futuro
sobre a diferença dedutível (Pronunciamento CPC 32, § 24).
De acordo com Eldon S. Hendriksen e Michael F. van Breda, “as diferenças temporárias
constituem o núcleo da teoria contábil a respeito da contabilização do imposto de renda,
pois os contadores exercem certo controle sobre como essas diferenças são tratadas”.14
Seja como for, todo esse contexto de reconhecimento dos tributos sobre o lucro pres-
supõe uma certa estabilidade na sistemática de apuração do IRPJ e da CSLL. Os críticos da
alocação de impostos entre períodos mencionam, é verdade, o elevado grau de incerteza
na elaboração de estimativas de obrigações fiscais e efeitos fiscais futuros, uma vez que
impostos futuros somente seriam devidos na medida em que houvesse lucros tributáveis
nos próximos períodos. Ao mesmo tempo, as próprias regras tributárias mudam com
o tempo, com novas deduções ou vedações a deduções, isenções sobre receitas antes
tributáveis, novas alíquotas, créditos fiscais, e assim por diante. Tais aspectos merecem
ponderação, mas não excluem o fato de que, na competência de contabilização dos tributos
sobre o lucro, os correspondentes tratamentos fiscais são conhecidos e calculáveis, ainda
que sujeitos a ajustes futuros.
Questão diversa é se, na mesma competência, determinado tratamento fiscal não é
conhecido e calculável, pois existe a probabilidade de as autoridades fiscais discordarem
do tratamento adotado pelo contribuinte. Nesse caso, incertezas na aplicação da própria
legislação tributária devem conduzir ao reconhecimento de uma “provisão” para o IRPJ e
a CSLL que seriam devidos?
Diante dessa potencial lacuna do CPC 32 – e do próprio CPC 25, quanto aos tributos
sobre o lucro – , surge a ICPC 22.

9.4 A ICPC 22 – INCERTEZA SOBRE TRATAMENTO DE TRIBUTOS SOBRE O LUCRO:


CERTEZAS OU INCERTEZAS NA SUA APLICAÇÃO?

A Intepretação Técnica ICPC 22 – Incerteza sobre Tratamento de Tributos sobre o


Lucro, a ser aplicada pelas empresas a partir de 1º de janeiro de 2019, busca esclarecer a
aplicação dos requisitos de reconhecimento e mensuração previstos no CPC 32 – Tributos
sobre o Lucro, nos casos em que existe um tratamento fiscal incerto quanto a esses tributos.
A Interpretação abrange, no caso brasileiro, apenas o IRPJ e a CSLL, uma vez que está
circunscrita aos tributos sobre o lucro tratados no CPC 32, fato reconhecido no Relatório da
Audiência Pública, realizada pelo CPC em conjunto com CVM e CFC, na qual se apreciou

14. HENDRIKSEN, Eldon S.; VAN BREDA, Michael F. Teoria da contabilidade. 1. ed. 12. reimpr. São Paulo: Atlas,
2015. p. 429.

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Cap. 9 – INCERTEZAS TRIBUTÁRIAS: PARADOXOS DO PROVISIONAMENTO E AS REPERCUSSÕES DA ICPC 22 | 191

a minuta.15 Com isso, a ICPC 22 não se aplica a outros tributos, tão ou mais permeados de
incertezas no contexto nacional, como a contribuição ao PIS, a COFINS, o ICMS, o IPI e o
ISS, e os eventuais riscos e contingências associados a esses tributos devem continuar sendo
avaliados com base no CPC 25 – Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes.
Em linhas gerais, a ICPC 22 não traz grandes novidades no tocante à aplicação dos
requisitos previstos no CPC 32. E nem deveria, já que é uma Interpretação e não um Pro-
nunciamento propriamente dito.
A premissa básica da Interpretação é a de que “a aceitabilidade de determinado
tratamento tributário, de acordo com a legislação fiscal, pode não ser conhecida até que
a respectiva autoridade fiscal ou tribunal tome uma decisão no futuro” (§ 2, ICPC 22).
Consequentemente, a entidade deve considerar a probabilidade de que a autoridade fiscal
aceite um “tratamento fiscal incerto”, de modo que a contestação desse tratamento fiscal
pela autoridade fiscal pode afetar a contabilização do tributo corrente ou diferido ativo ou
passivo da entidade.
Duas definições são fundamentais para aplicação da ICPC 22.
“Tratamento fiscal incerto” se refere ao “tratamento fiscal para o qual há incerteza so-
bre se a respectiva autoridade fiscal aceitará o tratamento fiscal de acordo com a legislação
tributária. Por exemplo, a decisão da entidade de não apresentar qualquer apuração de
tributos sobre o lucro na jurisdição fiscal, ou de não incluir determinada receita no lucro
tributável, é um tratamento fiscal incerto se sua aceitabilidade for incerta de acordo com a
legislação tributária” (§ 3.c, ICPC 22). Não parece existir dúvidas de que a norma alcança,
com essa redação, incertezas não autuadas relacionadas a diversos temas controversos de
IRPJ e CSLL na jurisprudência, como a amortização de ágio em reorganizações societá-
rias e a tributação de lucros no exterior em face de tratados internacionais, mas também
determinados planejamentos tributários que poderiam ser objurgados pelo Fisco à luz de
critérios controversos, como a eventual falta de propósito negocial. Veja-se, uma questão
é identificar a existência de um tratamento fiscal incerto de IRPJ e de CSLL para fins de
aplicação da ICPC 22, e outra questão é a avaliação da probabilidade de aceitação desse
tratamento pela autoridade fiscal.
Nesse ponto, a definição de “autoridade fiscal” surge como relevante, referindo-se “ao
órgão ou órgãos que decidem se tratamentos fiscais são aceitáveis de acordo com a legislação
tributária. Isso pode incluir tribunais” (§ 3.b, ICPC 22). Não se pode descurar o âmbito de
uma linguagem mais universal da norma, pois o padrão IAS/IFRS é aplicado em diversos
países, com sistemas próprios de fiscalização e de resolução de conflitos tributários. Em
determinadas jurisdições, pode acontecer de as dúvidas tributárias não serem frequente-
mente judicializadas ou resolvidas em tribunais, mas a definição de “autoridade fiscal” é
abrangente e não exclui os tribunais como fonte última de decisão.

15. Relatório da Audiência Pública SNC nº 02/18. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/audiencias_publicas/


ap_snc/2018/snc0218.html. Acesso em: 25 mar. 2019.

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192 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

No caso brasileiro, o lançamento do tributo compete privativamente à autoridade ad-


ministrativa, que pode inclusive propor a aplicação de penalidades, se identificar tratamento
tributário por parte do contribuinte em desacordo com a legislação (art. 142 do Código
Tributário Nacional – CTN). Dessa forma, embora estejam enquadradas na definição de
“autoridade fiscal” da ICPC 22, as autoridades e órgãos de fiscalização não representam a
última instância de decisão sobre a aceitabilidade ou não de tratamentos fiscais. Contudo,
se é preciso incluir na definição não apenas as autoridades fiscais em sentido estrito, mas
também, e principalmente, os órgãos administrativos com poder de decisão e mesmo os
tribunais judiciais, a questão é saber qual instância possui a “última palavra” sobre a certeza
ou não do tratamento fiscal.
Por exemplo, na atual sistemática do processo de consulta sobre a interpretação da
legislação tributária no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil, disciplinada pela
Instrução Normativa RFB nº 1.396/2013, pode-se considerar como autoridade fiscal para
fins da ICPC 22 a Coordenação-Geral da Tributação (Cosit), a quem compete a solução
da consulta. Isso porque, existindo Solução de Consulta Cosit (ou, se cabível, Solução de
Divergência), “as consultas com mesmo objeto serão solucionadas por meio de Solução de
Consulta Vinculada”, nos termos do art. 22 da IN RFB nº 1.396/2013. Na realidade, nesse
sistema, se determinada Solução de Consulta da Cosit for favorável a uma posição fiscal
idêntica adotada por determinado sujeito passivo, sequer se haveria de falar em “tratamento
fiscal incerto” quanto à aceitabilidade de tal posição.
Já na hipótese de litígio, instaurado na esfera administrativa com a apresentação de
impugnação ao lançamento pelo sujeito passivo, o julgamento sobre a aplicação da legisla-
ção referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil compete
a outras “autoridades fiscais”: em primeira instância, às Delegacias da Receita Federal do
Brasil de Julgamento (DRJ’s); e, em segunda instância, ao Conselho Administrativo de Re-
cursos Fiscais (CARF), constituído por três seções especializadas por matéria e pela Câmara
Superior de Recursos Fiscais (CSRF).16 Todos esses órgãos podem vir a ser chamados a
decidir sobre a aceitabilidade de determinado tratamento tributário, mas a identificação
da definitividade da decisão administrativa apta a remover a eventual incerteza dependerá
da interposição de recursos e do entendimento da última instância cabível da discussão,
inclusive da instância especial, no caso, da CSRF.
Sendo a decisão definitiva na esfera administrativa contrária ao sujeito passivo, o
conceito de “autoridade fiscal” da ICPC 22 poderá vir a incluir tribunais judiciais, se o tra-
tamento for judicializado pelo contribuinte, pois é ditame constitucional a inafastabilidade
do Poder Judiciário para apreciação de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da CF
de 1988). E não apenas isso. O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição
e última instância para julgamento de causas que versem sobre a constitucionalidade de
leis (art. 102, III, a, da CF de 1988), poderá converter-se em “autoridade fiscal” segundo a
ICPC 22, se a incerteza de determinado tratamento fiscal repousar em uma definição de
matéria tributária constitucional. Com a valorização do sistema de precedentes e de vin-
culação das decisões, como previsto inclusive no novo Código de Processo Civil (CPC), as

16. Arts. 56, 61 e 75 do Decreto nº 7.574/2011.

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Cap. 9 – INCERTEZAS TRIBUTÁRIAS: PARADOXOS DO PROVISIONAMENTO E AS REPERCUSSÕES DA ICPC 22 | 193

decisões vinculantes dos Tribunais Superiores (STF e Superior Tribunal de Justiça – STJ),
nas respectivas matérias de competência, poderão ampliar o rol de elementos a serem
considerados na avaliação de um tratamento fiscal incerto.
Com essas breves considerações, quer demonstrar-se que a definição de “tratamento
fiscal incerto” na ICPC 22 também desperta a intrigante questão de identificar, no sistema
brasileiro, qual seria a autoridade fiscal apta a aceitar definitivamente um tratamento fiscal
como “certo”. Esse será um dos grandes desafios na aplicação da norma.
Indo além, um outro ponto polêmico – e talvez a grande novidade – trazido pela ICPC
22 diz respeito às premissas que a entidade deve assumir sobre o exame de suas práticas
tributárias pelo Fisco. Dispõe o § 8 da ICPC 22:

8. Ao avaliar se e como o tratamento fiscal incerto afeta a determinação de lucro tributável


(prejuízo fiscal), base fiscal, prejuízos fiscais não utilizados, créditos fiscais não utilizados e alíquotas
fiscais, a entidade deve assumir que a autoridade fiscal examinará os valores que tem direito de
examinar e tenha pleno conhecimento de todas as informações relacionadas ao realizar esses
exames. (g.n.)

Assim, na contabilização dos tributos sobre o lucro a partir dos requerimentos previstos
no CPC 32 (tributos correntes e diferidos), a entidade deve assumir que a autoridade fiscal:

(i) examinará todos os seus documentos contábeis e fiscais, e


(ii) possui pleno conhecimento de todas as informações relacionadas a suas práticas
fiscais.

Veja-se, portanto, que a ICPC 22 estabelece a premissa de que o “Fisco sabe tudo” –
as autoridades fiscais terão conhecimento completo de todas as informações relevantes na
avaliação dos tratamentos tributários realizados pelo contribuinte. Nesse sentido, a empresa
não poderá considerar o “risco de detecção” na avaliação da probabilidade de que suas
transações incertas sejam “aceitas” pelo Fisco, já que, como premissa, deve assumir que (i)
será fiscalizada, tendo todos os seus registros examinados, e que (ii) os fiscais conhecem
todas as informações necessárias sobre tais transações “incertas”.
Sob a ótica contábil, a “novidade” da ICPC 22 é que essa premissa não se encontrava
reproduzida de forma explícita nem no CPC 32, nem no CPC 25. Há uma disposição sobre
“risco e incerteza” no CPC 25, no sentido de que “os riscos e incertezas que inevitavelmente
existem em torno de muitos eventos e circunstâncias devem ser levados em consideração
para se alcançar a melhor estimativa da provisão” (§ 42), porém esse dispositivo não men-
ciona expressamente o “risco de detecção tributária”, e ainda por cima está identificado com
os aspectos de mensuração, e não exatamente de reconhecimento de passivos.
No caso do CPC 25, por exemplo, ao analisar-se a probabilidade de uma saída de
recursos para fins de reconhecimento de uma provisão, ou de divulgação de um passi-
vo contingente, a entidade deveria assumir complementarmente o “risco de detecção” e
desprezar como remoto o risco de uma fiscalização? Dessa forma, constitui um tema de

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194 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

discussão definir se no âmbito do CPC 25 já haveria uma premissa implícita de exame e


pleno conhecimento das informações tributárias pelo Fisco, ou se ainda prevalecerá uma
eventual tendência prática de olhar-se mais para essa norma contábil apenas “após o auto
de infração”.
Seja como for, no âmbito da ICPC 22, a partir dessa premissa – “o Fisco sabe tudo” –,
a entidade deverá considerar a probabilidade de que a autoridade fiscal aceite o tratamento
fiscal incerto para os propósitos de contabilização dos tributos sobre o lucro.
Se a entidade concluir que é provável que a autoridade fiscal aceite o tratamento fiscal
incerto, o registro contábil, em linha com as exigências do CPC 32, será igual ao trata-
mento fiscal. Contudo, mesmo no caso de concluir pela provável aceitação do tratamento
fiscal incerto, a entidade deve determinar se deve divulgar o efeito potencial da incerteza
como contingência relacionada a tributos (A5 da ICPC 22), ou seja, poderá ter de divulgar
passivos contingentes de IRPJ e de CSLL, como o faria em relação a outros tributos, de
acordo com o CPC 25.
Em contrapartida, caso a entidade conclua não ser provável que o fiscal aceite o tra-
tamento fiscal incerto, o registro contábil deverá ser ajustado.
Conforme o § 11 da ICPC 22,
11. Se a entidade concluir que não é provável que a autoridade fiscal aceite o tratamento fiscal
incerto, a entidade deve refletir o efeito da incerteza na determinação do respectivo lucro tributável
(prejuízo fiscal), base fiscal, prejuízos fiscais não utilizados, créditos fiscais não utilizados e alíquotas
fiscais. A entidade deve refletir o efeito da incerteza para cada tratamento fiscal incerto, utili-
zando um dos seguintes métodos, dependendo de qual método a entidade espera que forneça a melhor
previsão da resolução da incerteza:
a) o valor mais provável – o único valor mais provável em um conjunto de resultados possíveis.
O valor mais provável pode fornecer a melhor previsão da resolução da incerteza se os resultados
possíveis forem binários ou estiverem concentrados em um valor;
(b) o valor esperado – a soma de valores de probabilidade ponderada na faixa de resultados
possíveis. O valor esperado pode fornecer a melhor previsão da resolução da incerteza se houver um
conjunto de resultados possíveis que não são nem binários nem concentrados em um valor. (g.n.).

Portanto, se não for provável que a autoridade fiscal aceite o tratamento dado pela
entidade na escrituração tributária, o montante dos tributos sobre o lucro nas demonstra-
ções financeiras não será idêntico ao da escrituração tributária; ao contrário, será distinto,
uma vez que os valores contábeis do IRPJ e da CSLL a pagar, ainda que diferidos, deverão
ser ajustados.
Importante salientar que a incerteza deverá ser refletida na mensuração do tributo cor-
rente e diferido; nesse sentido, não haverá necessidade de ser reconhecida uma “provisão”
separada para as posições incertas.
Nesse caso, a forma de contabilização das incertezas abrangidas pela ICPC 22, que
afetam as contas de tributos sobre o lucro, é diversa daquela das demais provisões reco-
nhecidas conforme o CPC 25, que afetam necessariamente o resultado do exercício em que
constituídas, diminuindo o resultado antes do Imposto sobre a Renda. Para fins tributários,

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Cap. 9 – INCERTEZAS TRIBUTÁRIAS: PARADOXOS DO PROVISIONAMENTO E AS REPERCUSSÕES DA ICPC 22 | 195

tanto as provisões contabilizadas segundo o CPC 25 e indedutíveis fiscalmente nos termos


do art. 56 da Lei nº 12.973/2014, quanto às despesas de IRPJ e CSLL, indedutíveis das bases
dos próprios tributos, não produzirão efeitos fiscais.
Em termos literais, a ICPC 22 se refere à contabilização apenas do próprio valor dos
tributos sobre o lucro e não, ao menos de forma explícita, a juros e multas. Não obstante,
eventuais multas e juros relacionados às posições fiscais incertas de tributos sobre o lucro
também poderiam ser reconhecidos no âmbito de aplicação do CPC 32. Ao menos essa
seria a conclusão obtida a partir dos itens 7 a 9 da Basis for Conclusion da IFRIC 23, em
que o Comitê de Interpretação do IASB informa a decisão de não incluir na Interpretação
requerimentos relacionados a multas e juros associados a tratamentos incertos, pois tais
acréscimos legais estariam no escopo da Interpretação (e do CPC 32), desde que a entidade
os considerasse como integrantes da definição de “tributos sobre o lucro”. Caso contrário,
a orientação indica que, se forem aplicados os requisitos do CPC 25 (IAS 37) para conta-
bilizar juros e multas, a empresa não aplicará o ICPC 22 para a sua contabilização, mesmo
diante de uma incerteza fiscal.
Por fim, após estabelecer a aplicação da Interpretação para períodos de relatórios anuais
com início em, ou após, 1º de janeiro de 2019, o Apêndice B da ICPC 22 trata da transição
para a norma e determina sobre a sua aplicação retrospectiva, com a reapresentação de
comparativos na forma do CPC 23, “se isso for possível sem o uso de fatos e conhecimentos
posteriores”, ou mediante ajuste ao saldo de abertura de lucros acumulados ou outra conta
do patrimônio líquido na adoção inicial, sem a reapresentação de comparativos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo pretendemos explorar, de forma abrangente, determinadas relações entre


as normas que tratam da contabilização de tributos em cenários de avaliação de probabi-
lidades de perda e de contingências (CPC 25), assim como de incertezas não autuadas no
âmbito de tributos sobre o lucro (CPC 32 e a sua recente Interpretação Técnica ICPC 22).
No âmbito dessa normatização, os paradoxos do provisionamento (conservadorismo,
gerenciamento de resultados e conflito de interesses) devem ceder lugar à ideia de neutrali-
dade. Sob a ótica informacional, nem a presença do “risco de detecção” deve significar uma
superestimação de riscos, nem se deve prestigiar a prática de provisionamento de valores
normalmente não detectáveis para sua reversão após expirados os prazos decadenciais e
prescricionais.
Especificamente quanto à novel ICPC 22, trata-se, antes de mais nada, de certo fe-
chamento de uma lacuna das normas contábeis, pois nem o CPC 25, que excluiu de seu
alcance os tributos sobre o lucro, nem o CPC 32, objeto da Interpretação, foram explícitos
no tratamento das incertezas fiscais não autuadas. Ainda que se argumente que, no Brasil,
outros tributos, como PIS, COFINS e ICMS, possuem relevância até maior sob a ótica de
posições incertas, não se descura que a ICPC 22, em linha com o padrão IAS/IFRS, volta-se

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196 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

tão-somente ao IRPJ e à CSLL, e que riscos e incertezas relacionados aos demais tributos
podem continuar sendo avaliados com base no CPC 25.
Nesse escopo de aplicação, procuramos discutir algumas “incertezas no tratamento
contábil das incertezas”, relacionadas à ICPC 22. Ao propor uma avaliação da probabilida-
de de aceitação de posições fiscais incertas de IRPJ e de CSLL, com potenciais reflexos na
mensuração das despesas correntes e diferidas desses tributos, a ICPC 22 desafia o aplicador
a encontrar no ordenamento pátrio a “autoridade fiscal” capaz de, definitivamente, atestar a
certeza ou a incerteza de uma posição fiscal. Em paralelo, a suposição de que as autorida-
des fiscais têm pleno conhecimento das posições fiscais do contribuinte e examinarão um
tratamento incerto se afirma como uma premissa explícita da ICPC 22, e deverá represen-
tar a grande novidade de repercussão prática na aplicação da Interpretação. O recurso ao
julgamento contábil, na avaliação de premissas e estimativas, revela-se importante vetor de
alcance da representação fidedigna.
A ICPC 22 não traz requisitos específicos de divulgação, mas, mesmo que a entidade
conclua pela probabilidade de aceitação de um tratamento fiscal incerto, poderá ter de di-
vulgar passivos contingentes de IRPJ e de CSLL, como o faria em relação a outros tributos,
de acordo com o CPC 25. No caso de incertezas não autuadas, mesmo que seja provável a
sua aceitação e, pois, dispensado o reconhecimento de uma despesa tributária, as próprias
exigências de divulgação dessas posições poderão suscitar discussões quanto a uma eventual
violação do direito fundamental à privacidade (art. 5º, X, da CF de 1988) e da garantia de
não autoincriminação.
Essas potenciais alegações, que de resto poderiam estar mais voltadas para as compa-
nhias de capital aberto (ou, se de capital fechado, obrigadas à publicação de demonstrações
financeiras), não devem descurar do real objetivo da ICPC 22, que é contábil e societário,
como apresentado neste capítulo. É informação útil e relevante para os acionistas e para
os investidores (atuais e futuros) tomarem as suas decisões econômicas o conhecimento
de exposições fiscais da companhia investida, mas sem tirar daí quaisquer consequências
jurídico-tributárias.
Elidie Palma Bifano explica, com razão, que se, para fins contábeis se registram no
passivo obrigações e provisões, em linha até com o disposto no art. 184, I, da Lei das S.A.,
sob a ótica jurídica há distinção entre riscos, conhecidos ou calculáveis, que se identificariam
como provisões, mas em que não se permite obrigar eventual devedor ao cumprimento
de qualquer prestação e obrigações em que não há risco, mas compromisso de liquidar, a
partir do vínculo jurídico que permite ao credor exigir algo do devedor.17
Assim, o que se deve ter sempre presente para fins jurídicos é que o mero registro de
uma provisão ou de um passivo fiscal diferido, conquanto caracterize uma obrigação para
fins contábeis e observe preceitos de normas como o CPC 25, o CPC 32 ou a ICPC 22,

17. BIFANO, Elidie Palma. Distinção Jurídico-tributária de Provisões e o Pronunciamento Técnico CPC n. 25 –
Essência e Forma Essencial. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel. Controvérsias
jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2013. v. 4. p. 63-67.

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Cap. 9 – INCERTEZAS TRIBUTÁRIAS: PARADOXOS DO PROVISIONAMENTO E AS REPERCUSSÕES DA ICPC 22 | 197

não se traduz de plano em uma obrigação jurídico-tributária. Essa obrigação surge apenas
a partir da ocorrência do fato gerador descrito em lei.
Incertezas no tratamento fiscal possuem meios jurídicos para a sua resolução. O seu
mero reconhecimento ou divulgação na contabilidade não possui qualquer relação com o
estabelecimento de uma relação jurídica obrigacional e tampouco constitui prova de uma
obrigação em sentido jurídico.

REFERÊNCIAS

BIFANO, Elidie Palma. Distinção jurídico-tributária de provisões e o Pronunciamento Técnico CPC n.


25 – essência e forma essencial. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel.
Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2013.
v. 4.
COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Relatório da Audiência Pública SNC nº 02/18. Disponível
em: Erro! A referência de hiperlink não é válida.http://www.cvm.gov.br/audiencias_publicas/
ap_snc/2018/snc0218.html. Acesso em: 25 mar. 2019.
CHARNESKI, Heron. Normas internacionais de contabilidade e direito tributário brasileiro. São Paulo:
Quartier Latin, 2018. v. XXIV. Série Doutrina Tributária.
GELBCKE, Ernesto Rubens et al. Manual de contabilidade societária: aplicável a todas as sociedades:
de acordo com as normas internacionais e do CPC. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
HEALY, Paul; WAHLEN, James. A review of the earnings management literature and its implications
for standard setting. Accounting horizons, 1999.
HENDRIKSEN, Eldon S.; VAN BREDA, Michael F. Teoria da contabilidade. 1. ed. 12. reimpr. São Paulo:
Atlas, 2015.
SCHIPPER, Katherine. Commentary on earnings management. Accounting horizons, v. l3, n. 4, 1989.

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10
AINDA O ÁGIO PAGO NA AQUISIÇÃO DE INVESTIMENTO
João Francisco Bianco

10.1 INTRODUÇÃO

Como se sabe, a dedução fiscal do ágio pago na aquisição de participações societárias


tem suscitado inúmeras controvérsias no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (CARF), que envolvem o uso de empresa veículo, o ágio interno, a transferência
do ágio em reorganizações societárias, a exigência de demonstrativo de rentabilidade fu-
tura, a necessidade de efetivo pagamento em dinheiro, o tratamento do ágio amortizado
contabilmente antes do evento societário, a identificação do real adquirente, entre outras.
Ocorre que diversas discussões que atualmente ocorrem no âmbito do contencioso
administrativo partem de uma premissa que, a meu ver, é equivocada. Creio que a excessiva
importância dada à fundamentação econômica do ágio, em conjunto com a ideia de que
esse sobrevalor representa um pagamento antecipado por lucros projetados, cuja dedução
fiscal deve ser emparelhada com a tributação dos referidos lucros, está desviando o foco
da questão principal, que é a determinação da natureza jurídica do ágio.
No presente capítulo, estudo a natureza jurídica do ágio e concluo que ele nada mais
é do que o preço pago na aquisição do investimento. Simplesmente isso. Trata-se, portan-
to, de custo de aquisição do investimento. Consequentemente, o custo de aquisição será
sempre integralmente dedutível para fins fiscais na alienação ou baixa do investimento,
em conformidade com o princípio da renda líquida, que deflui da estrutura normativa do
imposto de renda na Constituição Federal.

10.2 A NATUREZA JURÍDICA DO ÁGIO

Desde 1979, por ocasião do lançamento da 1ª edição do clássico Manual de conta-


bilidade das Sociedades por Ações, Sérgio de Iudícibus, Eliseu Martins e Ernesto Gelbcke
defendem que

o ágio pago por expectativa de lucros futuros da coligada ou controlada deverá ser amortizado
dentro do período pelo qual se pagou por tais lucros, ou seja, contra os resultados dos exercícios
considerados na projeção dos lucros estimados e que justificaram o ágio. O fundamento aqui é o
de que, na verdade, as receitas equivalentes aos lucros da coligada ou controlada não representam

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um lucro efetivo, já que a investidora pagou por eles antecipadamente, devendo, portanto, baixar o
ágio contra essas receitas.1

Na área jurídica, a ideia de que o ágio justificado na perspectiva de rentabilidade fu-


tura representa um pagamento antecipado por lucros futuros provenientes da participação
adquirida foi encampada e explorada por Luís Eduardo Schoueri, para quem “o ágio nada
mais é que o pagamento antecipado de um lucro que se espera vir a ser auferido no futuro.
[...] Em outras palavras, estima-se que o investimento continue a render lucros por um de-
terminado período, já que não é razoável estimar que se vá auferir lucros infinitamente”.2
Adiante, Schoueri acrescenta que o ágio justificado na perspectiva de rentabilidade
futura representa “uma remuneração, ao vendedor, por conta de lucros que o empreendi-
mento deve gerar, devidamente quantificados”.3
Sendo um pagamento antecipado por um lucro que se espera obter no futuro, a pessoa
jurídica adquirente não obtém qualquer acréscimo patrimonial enquanto os lucros apenas
recompõem o valor do ágio pago na aquisição do investimento. Daí a afirmação de Schoueri
no sentido de que “não há ganho para o investidor, quando ele meramente recupera o ágio
investido; acréscimo somente surge quando os resultados obtidos superam seu investimento”.4
A partir da constatação de que o ágio justificado na perspectiva de rentabilidade futura
constitui um pagamento antecipado por lucros futuros esperados, Schoueri conclui que,
antes do evento societário de incorporação, fusão ou cisão, a amortização contábil do ágio
deveria ser contraposta ao resultado de equivalência patrimonial, sendo ambos os valores
considerados neutros para fins fiscais.5 Assim, como os reflexos da avaliação do investi-
mento pelo método da equivalência patrimonial não são tributados, o ágio que originou
tais receitas de equivalência patrimonial não deveria ser deduzido para fins fiscais, o que
justificaria a restrição existente no art. 25 do Decreto-lei nº 1.598/1977.
Diversamente, após o ato societário de incorporação, fusão ou cisão, o ágio justificado
na perspectiva de rentabilidade futura deverá ser contraposto aos lucros que o fundamentam,
sob pena de tributação de uma não renda. Dessa forma, como após o evento societário
os lucros gerados pelo empreendimento lucrativo passam a compor o resultado da pessoa
jurídica adquirente, o valor pago a título de ágio deve ser dedutível para fins fiscais.6

1. IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu; GELBCKE, Ernesto Rubens. Manual de contabilidade das sociedades
por ações. São Paulo: Atlas, 1979. p. 223.
2. SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários). São Paulo: Dialética,
2012. p. 25.
3. SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários). São Paulo: Dialética,
2012. p. 25.
4. SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários). São Paulo: Dialética,
2012. p. 48.
5. SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários). São Paulo: Dialética,
2012. p. 59-62.
6. SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários). São Paulo: Dialética,
2012. p. 79-80.

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Cap. 10 – AINDA O ÁGIO PAGO NA AQUISIÇÃO DE INVESTIMENTO | 201

A despeito de sua clareza, a posição acima deve ser objeto de análise mais detida, pois
a ideia de que o ágio constitui um pagamento antecipado pelo lucro que se espera obter
tem gerado controvérsias, como se pode verificar das discussões atualmente existentes no
âmbito do CARF.
Parece-me que os autores que defendem a natureza de pagamento antecipado dos
lucros futuros tentaram expor uma possível lógica econômica subjacente ao regime jurí-
dico do ágio, antes e depois do ato societário de incorporação, fusão ou cisão, sem entrar
propriamente na análise da sua natureza jurídica. O problema está nos julgados que pre-
tenderam transformar essa possível lógica econômica em um pressuposto normativo para o
aproveitamento fiscal do ágio.
A rigor, o ágio constitui uma parcela do custo de aquisição incorrido pela pessoa
jurídica adquirente de uma participação societária, independentemente de qual seja a sua
fundamentação econômica. A ideia de que o ágio representa um pagamento antecipado
por lucros projetados, cuja dedução fiscal é condicionada à tributação dos referidos lucros,
não tem qualquer base legal e tem provocado inúmeras discussões sem sentido. Um bom
exemplo do problema pode ser encontrado na chamada tese do “real adquirente” atualmen-
te adotada pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), segundo a qual a confusão
patrimonial é condição para a dedução fiscal do ágio e deve ocorrer entre a pessoa jurídica
investidora originária (que incorreu na despesa e adquiriu o investimento) e a sociedade
investida (que é a potencial geradora dos lucros que justificaram a rentabilidade futura).
No acórdão n. 9101­002.387, de 13/7/2016, julgado pela 1ª Turma da CSRF, o voto
vencedor proferido por André Mendes de Moura afirma que “o requisito expresso de que
investidor e investida passem a compor o mesmo patrimônio [...] encontra fundamento
no fato de que, com a confusão de patrimônios, o lucro auferido pela investida passa a
integrar a mesma universalidade da investidora”. Como se vê, o foco da discussão passa a
ser o encontro do ágio com a rentabilidade futura, caracterizado como “requisito expresso”
para a dedutibilidade do ágio. Só faltou mencionar qual o texto legal onde consta expres-
samente esse “requisito”.
Mais recentemente, no acórdão n. 9101-003.374, de 19/1/2018, a 1ª Turma da CSRF
afirmou que

a partir do momento em que se consuma a confusão patrimonial, os lucros auferidos pela


então investida passam a integrar a mesma universalidade da investidora. Reside, precisamente
nesse ponto, o permissivo para que o ágio, pago pela investidora exatamente em razão dos lucros a
serem auferidos pela investida, possa ser aproveitado, vez que passam a se comunicar, diretamente,
a despesa de amortização do ágio e as receitas auferidas pela investida.

Novamente, a premissa é a de que o ágio foi pago para a aquisição dos lucros futuros
da sociedade investida, o que autorizaria a sua dedução.
A tese encampada pela CSRF vem sendo seguida pelas turmas julgadoras do CARF. É
o que se verificar no acórdão n. 1201­002.085, de 14/3/2018, no qual 1ª Turma Ordinária,
da 2ª Câmara da 1ª Seção do CARF afirmou que

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a averiguação da correção da dedução do ágio amortizado nas bases de cálculo do IRPJ e da


CSLL não se restringe à legitimidade de origem do ágio e aos aspectos formais das operações. A
confusão patrimonial entre a real investidora e a investida é requisito indispensável para a dedutibi-
lidade da amortização do ágio, afastando­se situações artificiais em que a incorporação não envolve
a real investidora.

Na ementa, a decisão sustenta que a amortização do ágio apenas é admitida se houver


a “reunião numa só pessoa jurídica do patrimônio que tiver sofrido o encargo do ágio e
o patrimônio que presumivelmente gerará os lucros que justificaram o seu pagamento,
mediante efetiva incorporação, cisão ou fusão”.
Os exemplos, extraídos da jurisprudência do CARF e da CSRF, poderiam se repetir
a exaustão, mas os acórdãos colacionados são suficientes para demonstrar que a premissa
de que o ágio é um pagamento antecipado por lucros futuros pode ensejar uma série de
concepções distorcidas a respeito do seu correto tratamento tributário, que deve ser similar
ao de qualquer outro custo incorrido pelos contribuintes na aquisição de um ativo.
Aquilo que era uma possível lógica subjacente ao regime jurídico do ágio foi alçado por
julgados do CARF, ainda que de forma velada em certas situações, ao patamar de pressuposto
normativo para o aproveitamento fiscal do ágio. Assim, essas teses que surgiram na jurispru-
dência administrativa poderiam ter sido evitadas por meio da constatação de que o ágio é uma
simplesmente parcela do custo de aquisição do investimento, que, a todo rigor, nem precisaria
de qualquer justificativa econômica adicional para garantir a sua dedutibilidade no momento
da alienação ou baixa do investimento, sob pena de desvirtuamento do conceito de renda.
Desnecessário aqui lembrar que o conceito de renda deve ser (re)construído a partir
das regras constitucionais de discriminação de competências tributárias e das normas gerais
previstas no Código Tributário Nacional. Como também é indiscutível que a tributação
da renda no Brasil é orientada pelo princípio da renda líquida, que deflui da conjugação
de diversas regras e princípios constitucionais, dentre os quais a capacidade contributiva,
a proibição de confisco, a proteção do mínimo existencial e a dissociação de outras mate-
rialidades constitucionais, como patrimônio, capital, faturamento e lucro.
Segundo Ricardo Lobo Torres, o imposto de renda deve observar o princípio da renda
líquida, que impõe não apenas a preservação do mínimo existencial, mas também a dedução
dos custos e despesas necessários à produção da renda pelo contribuinte. Para o autor, o
direito à dedução dos custos e despesas necessários à produção da renda deflui da própria
materialidade prevista na Constituição Federal e integra o fato gerador do imposto de renda,
tal como definido no art. 43 do Código Tributário Nacional.7
Humberto Ávila acrescenta que, se o imposto de renda deve apenas incidir sobre
manifestações de capacidade contributiva, os custos e despesas que revelam incapacidade

7. Na dicção de Ricardo Lobo Torres: “O princípio da renda líquida significa que o tributo federal recai sobre
o acréscimo de patrimônio que se corporificar além da reserva do mínimo existencial, garantida a deduti-
bilidade de custos e despesas necessários à obtenção do dito acréscimo patrimonial. [...] O acréscimo de
patrimônio suscetível de imposição é, em princípio, o total das entradas, em determinado período, abatido
dos custos e despesas necessários à produção do rendimento. [...] Conclui-se, portanto, que o direito à de-

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Cap. 10 – AINDA O ÁGIO PAGO NA AQUISIÇÃO DE INVESTIMENTO | 203

contributiva devem obrigatoriamente ser levados em consideração pela legislação tributária,


uma vez que o imposto de renda apenas pode incidir sobre o resultado líquido disponível
da atividade do contribuinte. Até porque os custos e despesas não são resultados de uma
fonte de produção e, portanto, não constituem acréscimo patrimonial. Trata-se, na dicção
de Ávila, de condição da fonte de produção da renda auferida pela contribuinte.8
Daí ser perfeitamente possível concluir que o ágio pago na aquisição do investimento,
que integra o seu custo de aquisição, deve ser dedutível para fins fiscais na liquidação ou
baixa do investimento, sob pena de tributação do patrimônio da pessoa jurídica, em violação
ao princípio da renda líquida.
Sendo o ágio uma parcela do custo de aquisição do investimento, o art. 25 do Decreto-lei
nº 1.598/1977 está absolutamente correto ao estabelecer que a contrapartida da redução do
valor do ágio não será computada na determinação do lucro real, enquanto não houver a
baixa ou liquidação do investimento.
O comando previsto no art. 25 do Decreto-lei nº 1.598/1977 não decorre do fato de
que o resultado de equivalência patrimonial é neutro para fins fiscais, mas, sim, da cons-
tatação de que o custo de aquisição do investimento permanece registrado no ativo da
pessoa jurídica enquanto não houver qualquer evento de realização que justifique o seu
trânsito por resultado. Trata-se, portanto, da mesma regra aplicável a qualquer outro bem
de capital adquirido pela pessoa jurídica, que não esteja sujeito à depreciação, amortização
ou exaustão, como ocorre, por exemplo, com um terreno.
Em outras palavras, o ágio é neutro antes do evento de incorporação, fusão ou cisão,
porque o investimento ainda não foi realizado, assim como o resultado de equivalência
patrimonial é neutro porque os lucros ou dividendos da sociedade investida ainda não
foram distribuídos, refletindo mero ajuste contábil de caráter provisório e aproximado, que
tem o objetivo de ajustar o valor do investimento para refletir a situação econômica atual
da sociedade investida.9
Assim, a neutralidade do ágio antes do evento societário, prevista no art. 25 do Decre-
to-lei nº 1.598/1977, não decorre da neutralidade do resultado de equivalência patrimonial,
assim como a neutralidade do resultado de equivalência patrimonial não decorre da neu-
tralidade do ágio. Na realidade, ambos os ajustes são neutros em virtude do princípio da
realização da renda, que deriva do princípio da capacidade contributiva e foi consagrado
no art. 43 do CTN.10

dução integra o conceito constitucional de renda e compõe o fato gerador definido nos art. 43 e 44 do CTN”
(TORRES, Ricardo Lobo. Estudos e pareceres de direito tributário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 61-62).
8. ÁVILA, Humberto. Dedutibilidade de Despesas com o Pagamento de Indenização Decorrente de Ilícitos
Praticados por Ex-Funcionários. In: ADAMY, Pedro Augustin Adamy; FERREIRA NETO, Arthur M. (coords.).
Tributação do ilício. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 84-88.
9. BIANCO, João Francisco. Transparência fiscal internacional. São Paulo: Dialética, 2007. p. 60.
10. ZILVETI, Fernando Aurelio. O princípio da realização da renda. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (coord.). Direito
tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I. p. 304; POLIZELLI, Victor
Borges. O princípio da realização da renda: reconhecimento de receitas e despesas para fins do IRPJ. São

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204 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

Diversamente, após o evento de fusão, incorporação ou cisão de sociedades, o ágio


deve ser considerado dedutível para fins de determinação de eventual ganho ou perda de
capital, por se tratar de um custo incorrido na aquisição de uma participação societária
que foi extinta, total ou parcialmente, no evento societário.
É por isso que o art. 34 do Decreto-lei nº 1.598/1977, em sua redação original, confe-
ria um tratamento tributário mais compatível com a correta natureza jurídica do ágio ou
deságio ao prever que, na fusão, incorporação ou cisão de sociedades, a diferença entre o
valor contábil das ações ou quotas extintas e o valor de acervo líquido que as substituiu
estava sujeita ao seguinte tratamento tributário:

(i) o ganho de capital, que correspondia à diferença positiva entre o acervo líquido
e o valor contábil das ações ou quotas extintas era computado na determinação
do lucro real, mas o contribuinte podia, desde que observadas determinadas
condições, diferir a tributação sobre a parte do ganho de capital que se referia a
bens do ativo permanente, até o momento da realização;
(ii) a perda de capital, que correspondia à diferença entre o valor contábil e o valor
do acervo líquido avaliado a valor de mercado, era dedutível do lucro real, sendo
concedida ao contribuinte a possibilidade de optar pelo tratamento da diferença
como ativo diferido, amortizável no prazo máximo de dez anos.

Como se vê, a perda de capital poderia ser imediatamente deduzida do lucro real, o
que compreendia o ágio de rentabilidade futura registrado na aquisição do investimento.
Porém, é importante pontuar que o art. 34, I, do Decreto-lei nº 1.598/1977 somente permitia
a dedução da perda de capital, incluindo o valor correspondente ao ágio de rentabilidade
futura, caso o acervo líquido absorvido tivesse sido avaliado a valor de mercado. Dessa
forma, para as operações de fusão, incorporação ou cisão realizadas a valor contábil, não
existia a possibilidade de dedução imediata do ágio pago pela pessoa jurídica.11
Assim, o legislador tributário, ao prever que o valor do ágio deverá ser deduzido para
fins fiscais à razão de 1/60 (um sessenta avos), no máximo, para cada mês do período de
apuração, apenas diferiu a dedução de um custo de aquisição que deveria ser dedutível no
momento do próprio evento societário.

10.3 O ÁGIO NÃO É BENEFÍCIO FISCAL

A constatação de que o ágio é parte do custo de aquisição do investimento que, na


ausência de regra, seria integralmente dedutível no momento da baixa ou da liquidação,

Paulo: IBDT/Quartier Latin, 2012. v. VII. p. 67. Série Doutrina Tributária; OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Funda-
mentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 368-388.
11. À época, o Parecer Normativo CST nº 51/1979 confirmou que a dedução imediata apenas se aplicava aos
casos de fusão, incorporação ou cisão de sociedades cujo valor do acervo líquido fosse avaliado a valor de
mercado.

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Cap. 10 – AINDA O ÁGIO PAGO NA AQUISIÇÃO DE INVESTIMENTO | 205

serve para evidenciar que o art. 7º da Lei nº 9.249/1995 e o art. 22 da Lei nº 12.973/2014
não instituíram qualquer tipo de benefício fiscal.
Como se sabe, é comum afirmar que a amortização fiscal do ágio foi concebida para
estimular o processo de privatização das empresas públicas.12 Como exemplo, Valter Lobato
pontua que a Lei nº 9.532/1997 foi editada no contexto do Plano Nacional de Desestati-
zação, com o claro objetivo de atrair investimentos, nacionais e estrangeiros, ainda que o
seu âmbito normativo não tenha ficado restrito às operações envolvendo a aquisição de
empresas estatais.13
Luís Eduardo Schoueri questiona a ideia dominante de que a Lei nº 9.532/1997 foi editada
em um contexto de incentivo às privatizações, para que o governo brasileiro pudesse conse-
guir melhores preços na alienação das empresas públicas.14 Na visão do autor, a Exposição de
Motivos que acompanhou a então Medida Provisória nº 1.602/1997 evidenciaria a intenção
do legislador de impedir a dedução integral do ágio no momento da incorporação, fusão ou
cisão, o que não teria relação direta com o Plano Nacional de Desestatização.
Na mesma linha, André Mendes de Moura e Marco Aurélio Pereira Valadão apregoam
que, na Exposição de Motivos que acompanhou a então Medida Provisória nº 1.602/1997, está
claro que o motivo que guiou o Poder Executivo foi o controle dos planejamentos tributários
abusivos que ocorriam pelo desvirtuamento do instituto do ágio.15 Para que não paire dúvida,
vale reproduzir o item 11 da Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 1.602/1997:
11. O art. 8º estabelece o tratamento tributário do ágio ou deságio decorrente da aquisição, por
uma pessoa jurídica, de participação societária no capital de outra, avaliada pelo método da equiva-
lência patrimonial.
Atualmente, pela inexistência de regulamentação legal relativa a esse assunto, diversas
empresas, utilizando dos já referidos ‘planejamentos tributários’, vêm utilizando o expediente
de adquirir empresas deficitárias, pagando ágio pela participação, com a finalidade única de

12. GALHARDO, Luciana Rosanova; ASSEIS, Pedro Augusto do Amaral Abujamra. A Lei nº 12.973/14 e os Refle-
xos em Processos Administrativos Discutindo a Dedutibilidade de Despesas de Amortização de Ágio. Direito
Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A, São Paulo: Quartier Latin, v. IV, 2015, p. 336-337.
13. Veja-se o entendimento do autor: “É preciso destacar que a autorização legal de amortização fiscal do ágio
surgiu no contexto do Plano Nacional de Desestatização (PND), levado a efeito pelo Governo Federal à épo-
ca. Tinha-se o objetivo claro de atrair investimentos, primordialmente externos, que deveriam recair sobre
empresas estatais brasileiras, como foi o caso das empresas de telefonia. Contudo, é preciso apontar que a
lei não ficou restrita a investimentos em estatais, ou seja, àqueles que seriam realizados no âmbito do PND,
mas sim a toda e qualquer aquisição, nos termos da referida lei” (LOBATO, Valter de Souza. O Novo Regime
Jurídico do Ágio na Lei 12.973/2014. In: MANEIRA, Eduardo; SANTIAGO, Igor Mauler (coords.). O ágio no
direito tributário e societário: questões atuais. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 101).
14. SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários). São Paulo: Dialética,
2012. p. 66-67.
15. Veja-se a posição dos autores: “A edição dessa Lei ocorreu na mesma época do Programa Nacional de
Desestatização (PND), razão pela qual existe entendimento de que a nova legislação sobre o ágio teria
sido apresentada como um incentivo às privatizações. Contudo, como visto, não há qualquer menção ao
assunto na Exposição de Motivos, que deixou claro, com todas as letras, que a motivação para o dispositivo
foi um maior controle sobre os planejamentos tributários abusivos que ocorriam pelo desvirtuamento do
instituto do ágio” (MOURA, André Mendes de; VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira. Ágio nas reorganizações

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206 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

gerar ganhos de natureza tributária mediante o expediente, nada ortodoxo, de incorporação da


empresa lucrativa pela deficitária. (grifo do autor)
Com as normas previstas no Projeto, esses procedimentos não deixarão de acontecer, mas, com
certeza, ficarão restritos às hipóteses de casos reais, tendo em vista o desaparecimento de toda vantagem
de natureza fiscal que possam incentivar a sua adoção exclusivamente por esse motivo.

Como se pode ver, o item 11 da Exposição de Motivos realmente afirma que a alteração
legislativa teve o objetivo de coibir planejamentos tributários que acarretavam a dedução
integral do ágio no momento da incorporação, fusão ou cisão, por meio da incorporação
da empresa lucrativa pela deficitária.
Seja como for, as correntes acima devem ser vistas com cautela.
Em primeiro lugar, cabe pontuar que não se pode atribuir relevância exacerbada à
Exposição de Motivos, que deve ser considerada apenas uma das etapas do método histó-
rico-genético de interpretação, por meio do qual se investiga os trabalhos preparatórios e
outros documentos editados à época, a fim de determinar as circunstâncias jurídico-polí-
ticas envolvidas na aprovação de determinado texto normativo. Embora a identificação da
voluntas legislatoris seja relevante, enquanto referencial da circunstância jurídico-política
envolvida na aprovação da lei, não se pode erigi-la em fator preponderante sobre o próprio
texto legal, o que constitui um limite objetivo do processo hermenêutico.16
Em segundo lugar, não se pode deixar de consignar que a Lei nº 9.532/1997 realmente
trouxe benefícios em relação ao regime anterior, tais como:

(i) para as operações societárias realizadas a valor contábil, o valor do ágio de renta-
bilidade futura passou a ser dedutível à razão de 1/60 para cada mês do período
de apuração, ao passo que, no regime anterior, a perda de capital apurada nas
operações societárias realizadas a valor contábil não era dedutível (art. 7º da Lei
nº 9.532/1997);
(ii) a possibilidade de dedução fiscal do ágio mesmo nos casos em que o investimento
não é obrigatoriamente avaliado pelo MEP (art. 8º, a, da Lei nº 9.532/1997);
(iii) a inclusão de autorização expressa para a chamada “incorporação reversa” da
sociedade investidora pela sociedade investida, eliminando, assim, as dúvidas que
existiam à época em torno do tema (art. 8º, b, da Lei nº 9.532/1997).

De qualquer forma, não se pode deixar de reconhecer que o direito à dedução fiscal do
ágio não constitui um benefício fiscal, por se tratar de um custo incorrido pelo contribuinte
na aquisição do investimento que, na ausência de regra específica, seria dedutível para fins

societárias no âmbito da Lei nº 9.532, de 1997, e a jurisprudência atual do CARF. Revista Fórum de Direito
Tributário. Belo Horizonte: Fórum, n. 93, 2018, p. 105-106).
16. Nas palavras de Gilberto de Ulhoa Canto: “A busca do elemento histórico na elaboração das leis não é, evi-
dentemente, de se desprezar, muito embora haja que fugir ao exagero de erigi-la em fator preponderante
sobre a inteligência que resulta do próprio texto [...]” (CANTO, Gilberto de Ulhoa. Estudos e pareceres de
direito tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 360).

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Cap. 10 – AINDA O ÁGIO PAGO NA AQUISIÇÃO DE INVESTIMENTO | 207

fiscais no momento da baixa ou liquidação da participação societária. O art. 7º da Lei nº


9.249/1995 e o art. 22 da Lei nº 12.973/2014 simplesmente diferiram a dedutibilidade fiscal
do ágio, para evitar a sua dedução imediata e, consequentemente, manter a homogeneidade
da arrecadação fiscal.

10.4 O ÁGIO NÃO É PAGAMENTO POR LUCROS FUTUROS

Como se pôde antever da exposição acima, não é exata a ideia de que o ágio corresponde
a um pagamento antecipado por lucros que potencialmente serão gerados pela sociedade
investida. Os agentes econômicos levam em consideração diversos fatores no momento da
aquisição de um investimento, sem que o preço pago na aquisição necessariamente reflita
os lucros futuros.
Não existe um preço correto para o negócio jurídico de compra e venda de participação
societária, assim como não existe uma única forma de avaliação da sociedade a ser adqui-
rida. Eliseu Martins ensina que os diferentes critérios de avaliação do patrimônio de uma
pessoa jurídica representam apenas visões diferentes e complementares sobre um mesmo
objeto, sem que seja possível estabelecer qualquer tipo de superioridade de um método
sobre o outro.17
A ausência de superioridade entre os métodos de avaliação de empresas decorre do
fato de que a percepção de valor é individual, sofrendo influências do contexto, do perfil
do usuário das informações, da natureza do negócio jurídico e do ambiente econômico em
que a decisão será tomada. É justamente por isso que, na visão de Eliseu Martins e Paulo
Roberto da Silva, a escolha entre os vários métodos de avaliação deve levar em conta o
contexto e a necessidade do maior número de usuários das informações, sem julgamentos
preconcebidos.18
No âmbito da denominada teoria da avaliação patrimonial, é possível elencar as se-
guintes abordagens para a mensuração do valor do patrimônio de uma sociedade:

• Método de avaliação patrimonial pelo valor de mercado, que consiste na


mensuração dos ativos e passivos com base no valor de mercado de seus itens
específicos, a partir dos seus valores de entrada ou de saída.19
• Método de avaliação pelo valor presente dos dividendos, no qual se calcula
o valor de uma empresa com base no fluxo futuro de dividendos, mediante a

17. MARTINS, Eliseu. Prólogo. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas: da mensuração contábil à
econômica. São Paulo: Atlas, 2006. p. 11.
18. MARTINS, Eliseu; SILVA, Paulo Roberto da. Introdução. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas:
da mensuração contábil à econômica. São Paulo: Atlas, 2006. p. 15-19.
19. LOPO, Antonio et al. Avaliação de Empresas. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas: da men-
suração contábil à econômica. São Paulo: Atlas, 2006. p. 269-270.

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208 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

aplicação de uma taxa de crescimento para os dividendos futuros e o desconto


da taxa de retorno relativa ao custo de capital.20
• Método dos múltiplos de faturamento, que é comumente utilizado em pequenos
negócios, como padarias, pizzarias, farmácias e outras empresas que não possuem
um sistema contábil detalhado, por meio do qual se multiplica o faturamento
mensal da pessoa jurídica por um número ajustado de meses.21
• Método dos múltiplos de fluxo de caixa, por meio do qual se aplica uma taxa
sobre o EBITDA (Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization)
da pessoa jurídica, a fim de obter a capacidade de geração de riqueza de deter-
minado empreendimento econômico.22
• Método baseado no valor presente do lucro econômico, no qual se projeta o
valor presente do EVA (Economic Value Added), com a adição do valor relativo
ao capital empregado.23

Independentemente da metodologia utilizada, é certo que a compradora não está


adquirindo ativos e passivos individuais, dividendos futuros projetados, faturamento ou
fluxo de caixa. Todos esses critérios caracterizam-se simplesmente por métodos utilizados
para estimar o valor econômico de uma empresa. Mas o que se compra é a empresa e não
o critério utilizado para mensurar o seu valor.
Correndo o risco de dizer o óbvio, se uma pessoa decide adquirir um imóvel com o
objetivo de receber aluguéis, não significa que o objeto da compra foi o recebimento futuro
dos aluguéis. O preço de aquisição pode ter sido calculado em função dos aluguéis, mas o
objeto do negócio jurídico de compra e venda permanece sendo o direito de propriedade
sobre o bem imóvel.
Do mesmo modo, se uma pessoa adquire um pequeno empreendimento e paga o preço
equivalente a doze vezes o seu faturamento mensal, não quer dizer que o adquirente está
comprando a expectativa de faturamentos futuros. Ele está comprando uma empresa, cujo
preço foi acertado em doze vezes o faturamento mensal.
Pela mesma razão, na aquisição de uma participação societária, o ágio não corresponde
a um pagamento pelos lucros futuros da sociedade investida. O ágio é parte do preço pago
na aquisição do investimento, simples desdobramento gráfico do preço de aquisição da
empresa, em relação ao qual o legislador tributário exigiu uma fundamentação econômica,
por se tratar de um componente do custo de aquisição que não varia de acordo com o MEP.

20. LOPO, Antonio et al. Avaliação de Empresas. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas: da men-
suração contábil à econômica. São Paulo: Atlas, 2006. p. 270.
21. LOPO, Antonio et al. Avaliação de Empresas. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas: da men-
suração contábil à econômica. São Paulo: Atlas, 2006. p. 271-272.
22. LOPO, Antonio et al. Avaliação de Empresas. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas: da men-
suração contábil à econômica. São Paulo: Atlas, 2006. p. 272-274.
23. LOPO, Antonio et al. Avaliação de Empresas. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas: da men-
suração contábil à econômica. São Paulo: Atlas, 2006. p. 274.

• controversias_jur_cont_BOOK.indb 208 11/09/2019 12:47:14


Cap. 10 – AINDA O ÁGIO PAGO NA AQUISIÇÃO DE INVESTIMENTO | 209

O ágio apenas seria um pagamento pelos lucros futuros se o negócio jurídico celebra-
do entre as partes envolvesse o direito de crédito relativo aos dividendos aprovados pela
assembleia geral, mas ainda não pagos. Obviamente, não é isso o que ocorre na aquisição
de uma participação societária, ainda que o preço pago na aquisição supere o valor patri-
monial contábil da sociedade adquirida.

10.5 O CUSTO DE AQUISIÇÃO E A NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO ECONÔMICA

Sendo o ágio uma parcela do custo de aquisição da participação societária, a indagação


que pode surgir diz respeito ao motivo pelo qual a lei exige a sua fundamentação econômica,
na forma do art. 20 do Decreto-lei nº 1.598/1977.
O regime jurídico do ágio surgiu em virtude da adoção do MEP para o registro de
investimento em sociedades controladas ou coligadas, o qual constitui um custo de aquisi-
ção dinâmico e flutuante, que não guarda exata correspondência com o preço efetivamente
pago no momento da aquisição do investimento.
Em situações normais, a pessoa jurídica registra os bens do ativo pelo respectivo custo
de aquisição, independentemente de futuras oscilações de seu valor de mercado. Porém,
no caso de participação societária avaliada pelo MEP, o custo de aquisição do investimento
corresponde à multiplicação do percentual de participação no capital social pelo valor da
última avaliação do patrimônio líquido da sociedade investida. Trata-se, portanto, de um
valor que diverge do preço pago pela pessoa jurídica no momento da aquisição da parti-
cipação societária.
Daí a necessidade de desdobramento do custo de aquisição, a fim de que o sobrevalor
pago pela pessoa jurídica na aquisição do investimento não seja perdido em virtude da
adoção de um custo flutuante no âmbito do MEP.
No âmbito da Lei nº 6.404/1976, a adoção do MEP para a avaliação dos investimentos
em sociedades controladas e coligadas surgiu porque o critério geral do custo de aquisição,
atualizado monetariamente segundo a legislação antecedente, não seria adequado, por não
refletir as mutações ocorridas no patrimônio da sociedade controlada ou coligada. Dessa
forma, vê-se que, desde a edição da Lei nº 6.404/1976, a preocupação da lei societária está
relacionada à divulgação de informações aos acionistas e credores sobre a situação financeira
da pessoa jurídica, sem atenção às possíveis implicações fiscais.24
Porém, a partir do momento em que o MEP foi incorporado (“remissão por absorção”)
pelo legislador tributário no art. 21 do Decreto-lei nº 1.598/1977, surge a necessidade de
se atribuir uma justificação econômica distinta para a parcela do custo de aquisição cor-
respondente ao ágio, justamente porque esse sobrevalor não estaria sujeito às flutuações
atinentes ao MEP.

24. LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A.: pressupostos, elaboração, aplicação. Rio
de Janeiro: Renovar, 1992. p. 246-247.

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210 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

Daí a acertada crítica de Ricardo Mariz de Oliveira à adoção do MEP como critério
para a determinação do custo de aquisição da participação societária, tendo em vista que o
custo de aquisição efetivamente suportado pelo contribuinte é diferente do valor da última
avaliação do investimento pelo MEP. O problema surge quando a adoção do MEP para a
determinação do custo de aquisição do investimento leva à tributação de ganho de capital
inexistente, o que viola o conceito de renda e o princípio da capacidade contributiva.25 Isso
sem falar na incompatibilidade com o princípio da igualdade, pois duas pessoas jurídicas que
adquiriram ações da mesma companhia, pagando o mesmo preço, podem apurar ganhos de
capital distintos em razão da avaliação do investimento pelo método do custo ou pelo MEP.26
A par da inconstitucionalidade dos desarranjos causados pelo MEP na apuração dos
ganhos de capitais, é interessante observar que o legislador não repetiu o mesmo equívoco
com o ágio pago na aquisição do investimento, que se tornou uma parcela invariável do
custo de aquisição da sociedade investida. O ágio não acompanha as flutuações do MEP,
mantendo-se neutro para fins fiscais durante todo o período de manutenção do investi-
mento. No momento da alienação ou baixa, o ágio sempre deverá compor o seu custo de
aquisição para fins fiscais, ainda que amortizado contabilmente.
É justamente por isso que, desde a edição do art. 20 do Decreto-lei nº 1.598/1997, o
contribuinte que avaliasse investimento em sociedade coligada ou controlada com base no
MEP deveria, por ocasião da aquisição da participação, desdobrar o custo de aquisição em
(i) valor do patrimônio líquido na época da aquisição; e (ii) ágio ou deságio na aquisição,
que corresponde à diferença entre o custo de aquisição do investimento e o valor do patri-
mônio líquido. O valor do patrimônio líquido seria o componente mutável e dinâmico do
custo de aquisição, ao passo que o ágio seria o elemento estático e invariável.
É neste contexto que surge a ideia de que o ágio baseado na expectativa de lucros
futuros deve ser deduzido para fins fiscais no prazo da rentabilidade projetado, para fins
de emparelhamento entre receitas e despesas. Porém, como comentado no item 10.4 deste
capítulo, tal ideia é inexata, pois a forma de avaliação da sociedade a ser adquirida não se
confunde com o objeto do negócio jurídico.
Além disso, os agentes econômicos levam em consideração, além da lucratividade
futura, diversos outros fatores no momento da realização de um investimento, tais como:

• obtenção de um retorno superior ao custo de oportunidade;


• potencial de valorização da companhia;
• valor presente dos fluxos de caixa que serão gerados pela companhia;
• expectativa de crescimento do negócio;
• aumento de participação no mercado;
• eliminação de concorrentes.

25. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 746-
752.
26. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 753.

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Cap. 10 – AINDA O ÁGIO PAGO NA AQUISIÇÃO DE INVESTIMENTO | 211

Todas as razões acima constituem motivos para a aquisição da participação societária,


que não se confundem com a causa do negócio jurídico celebrado pelas partes, que eviden-
ciará o seu verdadeiro objeto.
Como se sabe, a causa dos negócios jurídicos corresponde à função típica de determi-
nado instrumento contratual, assim entendida a sua atribuição econômica e social destinada
à produção dos efeitos jurídicos previstos em lei.
Diversamente, os motivos correspondem aos desígnios pretendidos pelas partes por
meio do exercício de suas faculdades mentais.27 O motivo do negócio jurídico é razão
íntima e pessoal que impulsiona as partes na celebração do negócio jurídico.
No âmbito da autonomia privada, a vontade exteriorizada pelas partes na formação do
negócio jurídico provem de motivos que, em princípio, são irrelevantes para a sua valida-
de, salvo em situações excepcionais, nas quais o desejo íntimo está distorcido por engano
sobre a realidade existente.28 A todo rigor, há diversas razões de ordem psicológica ou
emocional que podem motivar as partes, mas essa investigação, no mais das vezes, escapa
à órbita eminentemente jurídica, por corresponder ao motivo do negócio jurídico. Daí se
dizer que, independentemente dos motivos ou das intenções das partes para a celebração
de determinado negócio jurídico, a sua causa será sempre imutável, na medida em que
deriva da disciplina jurídica, atribuída por lei, ao negócio jurídico realizado pelas partes
no exercício da sua vontade.
Assim, ainda que o adquirente da participação societária esteja interessado nos seus
lucros futuros, esse aspecto não tem o condão de alterar a causa do negócio jurídico e o
seu respectivo objeto, que consiste na aquisição da participação societária. A causa do
contrato de compra e venda consistirá, sempre, na transferência da propriedade mediante
o pagamento de preço, sendo o ágio uma parcela do preço que é destacada graficamente
apenas em razão da avaliação do investimento pelo MEP.
É importante destacar, ainda, que não existe um preço correto para a participação socie-
tária adquirida, por se tratar de um componente do negócio jurídico que será determinado
a partir das negociações, dos propósitos e das perspectivas de cada uma das partes. Há,
assim, uma elevada carga subjetiva na avaliação das decisões de investimento dos agentes
econômicos, o que não interfere na qualificação do ágio que nunca deixará de ser simples
parcela do preço de aquisição.
No plano normativo, o art. 20, § 2º, do Decreto-lei nº 1.598/1977 exigia que o lança-
mento do ágio ou deságio fosse acompanhado da indicação do seu fundamento econômico,
que poderia ser:

a) valor de mercado de bens do ativo da coligada ou controlada superior ou inferior


ao custo registrado na sua contabilidade;

27. ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense. v. I. p. 151.
28. BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. Efeitos do negócio jurídico nulo. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 41.

• controversias_jur_cont_BOOK.indb 211 11/09/2019 12:47:14


212 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

b) valor de rentabilidade da coligada ou controlada, com base em previsão dos re-


sultados nos exercícios futuros;
c) fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas.

Assim, o ágio e o deságio representavam uma qualificação jurídica atribuída a uma


parcela do custo de aquisição, pois a lei tributária determinava expressamente que, na
primeira avaliação do investimento pelo MEP, o contribuinte deveria desdobrar o custo de
aquisição, indicando o valor do patrimônio líquido e o valor do ágio ou deságio (diferença
entre o valor do patrimônio líquido da sociedade investida e o custo de aquisição). Logo,
sob o posto de vista eminentemente jurídico, o ágio ou deságio correspondia a mero desdo-
bramento gráfico do valor despendido pelo contribuinte para a aquisição do investimento,
independentemente da existência de um conceito autônomo e distinto de ágio e deságio
no âmbito da ciência contábil.
O que se pode extrair da análise dos fundamentos econômicos listados no art. 20, § 2º,
do Decreto-lei nº 1.598/1977 é que o legislador pressupôs duas formas principais de ava-
liação da pessoa jurídica adquirida: (a) a avaliação da pessoa jurídica adquirida pelo valor
dos seus ativos, que geralmente é utilizada para pessoas jurídicas em descontinuidade ou
em processo de liquidação; e (b) a avaliação da pessoa jurídica em funcionamento a partir
dos benefícios econômicos futuros que a sua atividade econômica é capaz de produzir.
Trata-se, portanto, de uma simples mudança de perspectiva. Ou se mensura indivi-
dualmente os bens e direitos líquidos que integram o patrimônio da pessoa jurídica, ou se
mensura a pessoa jurídica em sua totalidade (empreendimento).
Em qualquer caso, isso não significa que a pessoa jurídica adquirente, ao incorrer no
sobrepreço, pagou pela mais-valia dos ativos ou pelos lucros projetados. Na realidade, a
pessoa jurídica adquirente simplesmente sacrificou recursos na aquisição de um ativo, o
que autoriza a dedução do respectivo custo de aquisição.
Com base nas considerações acima, é fácil perceber que o atual regime jurídico do
ágio, instituído pela Lei nº 12.973/2014, é mais consistente com a efetiva natureza jurídica
do ágio, por eliminar o processo de justificação econômica, que dependia predominan-
temente da vontade do adquirente, em virtude da ausência de uma ordem específica de
alocação. No atual regime, a mensuração e a alocação do ágio passou a seguir a sistemática
do Pronunciamento Técnico CPC nº 15 (Combinação de Negócios), por meio do qual a
sociedade investidora deve realizar a alocação do preço de aquisição ao valor justo líquido
dos ativos identificáveis adquiridos e dos passivos assumidos, a fim de que apenas o valor
residual seja efetivamente tratado como ágio por rentabilidade futura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, o ágio constitui uma parcela do custo de aquisição incorrido pela pessoa
jurídica adquirente de uma participação societária, independentemente de qual seja a sua
fundamentação econômica.

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Cap. 10 – AINDA O ÁGIO PAGO NA AQUISIÇÃO DE INVESTIMENTO | 213

Tecnicamente, não é correta a ideia de que o ágio representa um pagamento antecipa-


do por lucros projetados, cuja dedução fiscal deve ser emparelhada com a tributação dos
referidos lucros. Trata-se, na verdade, de uma simples tentativa de explicação do regime
jurídico do ágio, antes e depois do ato societário de incorporação, fusão ou cisão, sem
qualquer conteúdo normativo.
Há diversas metodologias que podem ser utilizadas na avaliação de um investimento.
Porém, isso não significa que a pessoa jurídica compradora adquiriu os lucros futuros
projetados, o faturamento ou o fluxo de caixa. Trata-se apenas de metodologias utilizadas
para estimar o valor econômico de uma empresa.
Assim, na aquisição de uma participação societária, o ágio não corresponde a um
pagamento pelos lucros futuros da sociedade investida, mas a um simples desdobramento
do preço de aquisição em relação ao qual o legislador tributário exigiu uma fundamenta-
ção econômica, por se tratar de um componente do custo de aquisição que não varia de
acordo com o MEP.
O ágio é neutro antes do evento de incorporação, fusão ou cisão, porque o investimento
ainda não foi realizado, assim como o resultado de equivalência patrimonial é neutro, porque
os lucros ou dividendos da sociedade investida ainda não foram distribuídos, refletindo
mero ajuste contábil de caráter provisório e aproximado. Diversamente, após o evento de
fusão, incorporação ou cisão envolvendo as sociedades investidora e investida, o ágio deve
ser considerado dedutível para fins de determinação de eventual ganho ou perda de capi-
tal, por se tratar de um custo incorrido pela investidora na aquisição de uma participação
societária que foi extinta, total ou parcialmente.
Sendo assim, o legislador tributário, ao prever que o valor do ágio deverá ser dedu-
zido para fins fiscais à razão de 1/60 (um sessenta avos), no máximo, para cada mês do
período de apuração, apenas diferiu a dedutibilidade do custo de aquisição de um ativo
que seria naturalmente dedutível no momento do próprio evento societário, com a baixa
ou liquidação do investimento.

REFERÊNCIAS

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ÁVILA, Humberto. Dedutibilidade de despesas com o pagamento de indenização decorrente de ilícitos
praticados por ex-funcionários. In: ADAMY, Pedro Augustin Adamy; FERREIRA NETO, Arthur M.
(coords.). Tributação do ilício. São Paulo: Malheiros, 2018.
BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. Efeitos do negócio jurídico nulo. São Paulo: Saraiva, 2010.
BIANCO, João Francisco. Transparência fiscal internacional. São Paulo: Dialética, 2007.
CANTO, Gilberto de Ulhoa. Estudos e pareceres de direito tributário. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 1975.
GALHARDO, Luciana Rosanova; ASSEIS, Pedro Augusto do Amaral Abujamra. A Lei nº 12.973/14 e
os Reflexos em Processos Administrativos Discutindo a Dedutibilidade de Despesas de Amor-

• controversias_jur_cont_BOOK.indb 213 11/09/2019 12:47:14


214 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

tização de Ágio. Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A, São Paulo: Quartier
Latin, v. IV, 2015.
IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu; GELBCKE, Ernesto Rubens. Manual de contabilidade das
sociedades por ações. São Paulo: Atlas, 1979.
LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A.: pressupostos, elaboração, apli-
cação. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.
LOBATO, Valter de Souza. O Novo Regime Jurídico do Ágio na Lei 12.973/2014. In: MANEIRA, Eduar-
do; SANTIAGO, Igor Mauler (coords.). O ágio no direito tributário e societário: questões atuais.
São Paulo: Quartier Latin, 2015.
LOPO, Antonio et al. Avaliação de Empresas. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas:
da mensuração contábil à econômica. São Paulo: Atlas, 2006.
MARTINS, Eliseu. Prólogo. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de empresas: da mensuração
contábil à econômica. São Paulo: Atlas, 2006.
___________; SILVA, Paulo Roberto da. Introdução. In: MARTINS, Eliseu (coord.). Avaliação de em-
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MOURA, André Mendes de; VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira. Ágio nas reorganizações societárias
no âmbito da Lei nº 9.532, de 1997, e a jurisprudência atual do CARF. Revista Fórum de Direito
Tributário, Belo Horizonte: Fórum, n. 93, 2018.
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
POLIZELLI, Victor Borges. O princípio da realização da renda: reconhecimento de receitas e despesas
para fins do IRPJ. São Paulo: IBDT/Quartier Latin, 2012. v. VII. Série Doutrina Tributária.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Ágio em reorganizações societárias (aspectos tributários). São Paulo:
Dialética, 2012.
TORRES, Ricardo Lobo. Estudos e pareceres de direito tributário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
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11
REALIDADE DO “REAL ADQUIRENTE”
Luciana Rosanova Galhardo
Pedro A. do A. Abujamra Asseis

11.1 INTRODUÇÃO

A dedutibilidade fiscal de despesas de amortização de ágio ainda vem sendo objeto


de intensos debates entre Fisco e contribuintes, a despeito de a Lei nº 9.532/1997 ter sido
publicada há mais de duas décadas, de centenas de casos terem sido analisados nas instâncias
administrativa e judicial nesse período e de a própria legislação que disciplina o tema ter sido
substancialmente alterada a partir de 2015, tornando mais claras as regras sobre o assunto.
Tanto em razão dos valores usualmente envolvidos (quase sempre na casa dos vários
milhões, não raras as vezes que alcançam bilhões), como também pelo grau de sofistica-
ção da matéria, o próprio Fisco reconhece, em publicações sobre planos de fiscalização e
metas de arrecadação, que seus principais esforços estão voltados a “operações praticadas
majoritariamente por contribuintes de maior capacidade contributiva, apresentadas como
reorganizações societárias que geram, após conclusão dos atos societários, ativos amorti-
záveis (ágios) que não encontram respaldo na legislação”.1
Assim, o que teve início, em meados dos anos 2000, com debates relativamente amplos
a respeito de estruturas praticadas mediante simulação ou fraude, sem, contudo, que se
adentrasse particularmente no mérito da dedutibilidade dessas despesas, apresentou grande
evolução, culminando na análise detalhada de complexos processos de fusão e aquisição de
empresas e de reorganizações societárias domésticas e internacionais, à luz das disposições
fiscais então vigentes e aplicáveis à matéria.
Nesse contexto foi que se passou a discutir, por exemplo, (i) a possibilidade de em-
presas privadas aplicarem uma regra que, segundo se dizia, visava estimular processos de
desestatização; (ii) a necessidade de efetiva concretização da expectativa de rentabilidade
futura projetada para a participação adquirida; (iii) a suposta impossibilidade de dedução

1. RECEITA FEDERAL. Plano anual da fiscalização 2017. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/da-


dos/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/plano-anual-de-fiscalizacao-2017-e-resultados-2016.pdf.
Acesso em: 26 ago. 2019.

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216 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

dessas despesas quando utilizadas as chamadas “empresas veículos”; (iv) a aparente vedação
à dedução fiscal do alegado “ágio interno” etc.2
Não se pode perder de vista, naturalmente, que essas discussões também decorrem, de
certo modo, de uma legislação que, por mais de duas décadas, autorizou, de forma clara,
abrangente, e sem quaisquer limitações, que as despesas de amortização de ágio fundamen-
tado na expectativa de rentabilidade futura pudessem ser deduzidas da base de cálculo do
Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSL), desde que os seguintes requisitos – e somente esses – fossem atendidos: (i)
aquisição de participação societária; (ii) participação societária avaliada segundo o método
da equivalência patrimonial (MEP); (iii) fundamentação econômica desse “sobrepreço”
na expectativa de rentabilidade da participação adquirida; e (iv) ocorrência de evento de
incorporação, fusão ou cisão entre a empresa adquirente (aplicadora do MEP) e adquirida
(avaliada pelo MEP).
O que se tem verificado em relação a essa discussão, contudo, é que, nos últimos anos,
sob forte postura fiscalista, dificuldades nos tribunais administrativos, restrições orça-
mentárias aumentando a sanha arrecadatória, uma série de limitadores à correta aplicação
dessas regras de dedutibilidade, que nunca estiveram previstos na legislação, passaram a
ser invocados pelas autoridades fiscais para questionar muitos casos válidos e legítimos,
sendo que, muitas vezes, tais condições vêm sendo acolhidas pelos aplicadores do Direito
Tributário, distanciando-se completamente das disposições normativas aplicáveis à matéria.
Tem-se notado, ainda, que, sob uma alegada influência das novas regras contábeis
que passaram a ser editadas pelos órgãos técnicos para disciplinar o tratamento aplicável
às chamadas “combinações de negócios”, muitos elementos contidos nessas orientações
procedimentais passaram a ser invocados pelas autoridades ficais para questionar, de modo
geral, a legitimidade das despesas de amortização de ágio. Um desses exemplos é justamente
o conceito de “real adquirente”, sobre o qual passaremos a discutir neste capítulo.
Se antes a desconsideração de efeitos fiscais e de personalidade jurídica de entida-
des jurídicas somente ocorria em casos nos quais as autoridades fiscais reputassem que
determinada estrutura tenha envolvido “empresas-veículos” – sociedades desprovidas de
“substância econômica” e constituídas com a única finalidade de gerar benefícios fiscais
indevidos –, o que se tem percebido nos últimos anos é que, por meio do novo conceito
de “real adquirente”, em muitas hipóteses, vem ocorrendo a própria desconsideração de
investimentos realizados por entidades legalmente constituídas, operacionais e providas
de “substância econômica”, sublimando-se, com isso, a personalidade jurídica da empresa
adquirente da participação e a própria natureza do investimento realizado, para que sejam
imputados os efeitos jurídico-tributários da aquisição a terceiros de forma indistinta (muitas
vezes controladores estrangeiros). Esse tipo de situação pode ser exemplificado na ementa
do seguinte julgado:

2. A evolução das discussões foi bem pontuada, na doutrina, por GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tribu-
tário. São Paulo: Dialética, 1998 e edições subsequentes (2008 e 2011).

• controversias_jur_cont_BOOK.indb 216 11/09/2019 12:47:14


Cap. 11 – REALIDADE DO “REAL ADQUIRENTE” | 217

ÁGIO GERADO EM OPERAÇÃO ENVOLVENDO EMPRESA DO EXTERIOR. IMPOSSI-


BILIDADE DE AMORTIZAÇÃO. A legislação que permite a amortização fiscal do ágio decorrente
de expectativa de rentabilidade futura é nacional, devendo ser aplicada tão somente às empresas
nacionais que adquirem investimentos com ágio. A extensão ao alcance das regras fiscais a reais
adquirentes domiciliados no exterior, deve ser afastado pela fiscalização e o ágio amortizado
deve ser objeto de glosa fiscal, justificada também em razão do desconhecimento do tratamento
fiscal dispensado ao ágio no país de domicílio do real adquirente (Ac. 1401-001.903, de 20/6/2017,
1ª Turma da 4ª Câmara da Primeira Seção do CARF).

Como ficará claro ao longo deste capítulo, é fundamental, contudo, que seja feita uma
ponderação cuidadosa antes da adoção dessas referências procedimentais para fins fiscais,
especialmente nas situações ainda amparadas pela legislação fiscal e anteriores aos pró-
prios balizamentos contábeis mais recentes. Deve-se ainda ter em mente que, em muitos
casos, as referências e expressões contábeis passaram a ser emitidas de forma técnica para
fins daquele campo de atuação, sem que haja, necessariamente, vinculação ao regramento
jurídico-tributário aplicável para apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSL. O caso do
“real adquirente”, a nosso ver, é uma dessas situações que não só deixa de apresentar res-
paldo legal, como ainda as alegações atualmente invocadas não guardam coesão a própria
orientação procedimental contábil.

11.2 BREVE RESUMO QUANTO ÀS REGRAS FISCAIS APLICÁVEIS AO RECONHECIMENTO


E MENSURAÇÃO DO ÁGIO: LEI Nº 9.532/1997 E A NOVA DISCIPLINA DA LEI Nº
12.973/2014

(a) Origens e o regime fiscal previsto na Lei nº 9.532/1997


Antes que se possa falar em “ágio”, um conceito que precisa ficar claro é o da avaliação
de investimentos pelo chamado “método da equivalência patrimonial” (MEP), previsto no
art. 248 da Lei nº 6.404, de 15/12/1976 (Lei das S.A.). Trata-se de uma forma de avaliação
de investimentos de participações societárias por meio da qual a sociedade investidora
busca refletir as mutações do patrimônio líquido da companhia investida em uma das suas
subcontas de investimentos (subcontas essas integrante do ativo não circulante da empresa,
nos termos do art. 178 da Lei das S.A.).
Conforme aponta José Luiz Bulhões Pedreira,3 a lógica desse método é a de que, em
oposição ao método de avaliação de investimento com base no custo histórico de aquisição
(regra geral para avaliação), pelo qual a sociedade investidora somente reconhece como
rendimentos os dividendos distribuídos pela sociedade investida, o MEP possibilita à socie-
dade investidora reconhecer sua participação no resultado da investida, segundo os prin-

3. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Finanças e demonstrações financeiras da companhia: conceitos e fundamen-
tos. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 688-689.

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218 | CONTROVÉRSIAS JURÍDICO-CONTÁBEIS • Pinto | Silva | Murcia | Vettori

cípios do regime de competência. O MEP permite ainda que a investidora distinga em sua
escrituração o capital aplicado na aquisição da participação e rendimentos dela derivados.4
Assim, nos termos do art. 248 da Lei das S.A., ao adquirir investimento relevante, que
obrigatoriamente seja avaliado pelo MEP, a sociedade investidora deverá segregar o custo de
aquisição incorrido em duas subcontas da conta de “investimentos”: (i) patrimônio líquido
da sociedade investida, apurado por balanço patrimonial ou balancete levantado na mesma
data, ou até 60 dias antes da data do balanço, proporcionalmente à participação detida na
sociedade investida; e (ii) diferença entre esse valor e o custo de aquisição pela investidora,
que é justamente o “ágio” ou deságio, conforme o custo de aquisição seja maior ou menor
que o valor de patrimônio líquido.
Em cada balanço levantado após esse desdobramento inicial do custo de aquisição, a in-
vestidora promove nova avaliação da participação com base no valor do patrimônio líquido
contábil demonstrado pelo balanço da sociedade investida, ajustando, em sua escrituração,
o saldo da subconta do valor de patrimônio líquido. Com isso, a contrapartida exigida para
esse ajuste faz refletir nas contas de resultado da sociedade investidora a quota-parte que
lhe cabe nos lucros ou prejuízos da investida segundo o regime de competência.5
Com isso, pode-se chegar à definição de ágio como o valor resultante da diferença entre
o custo total de aquisição do investimento em sociedade controlada ou coligada e o valor
da parcela proporcional ao patrimônio líquido destas à época da aquisição.
Visando regulamentar os efeitos fiscais relacionados à Lei das S.A., o governo federal
publicou o Decreto-Lei nº 1.598, em 26/12/1977 (DL nº 1.598/1977). Especificamente no que
diz respeito ao MEP, o DL nº 1.598/1977 não apenas repetiu as disposições contidas na Lei
das S.A., mas, indo além, determinou que a pessoa jurídica deveria manter demonstração
que justificasse a fundamentação econômica desse ágio ou deságio, trazendo três possíveis
justificativas econômicas: (i) o valor de mercado de bens do ativo da sociedade investida

4. A esse respeito, é interessante o exemplo que Sérgio de Iudícibus apresenta para destacar a importância
de avaliar investimentos decorrentes de participações societárias com base no MEP: “Imagine-se uma in-
vestida que tenha lucros não distribuídos que façam com que seu patrimônio líquido dobre em 5 anos.
Se avaliado pelo custo, metade do seu patrimônio líquido não estará sendo reconhecido pela investidora.
Só reconhecerá essa parte relativa aos lucros não distribuídos se eles forem distribuídos um dia, ou então
quando vender esse investimento”. IUDÍCIBUS, Sérgio de et al. Manual de contabilidade societária: apli-
cável a todas as sociedades. De acordo com as normas internacionais e do CPC. São Paulo: Atlas, 2010. p.
169. Por outro lado, vale também registrar as críticas que Ricardo Mariz de Oliveira apresenta em relação
ao MEP para determinadas hipóteses, podendo levar, conforme ilustra o autor, a tributação de patrimônio
ou mesmo de perdas. Confira-se, a esse respeito, OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do imposto de
renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 750-751.
5. Justamente por essa razão os lucros e dividendos, quando recebidos, apenas diminuem o valor de patrimô-
nio líquido da participação na escrituração do investidor, não produzindo efeitos no resultado do exercício,
conforme aponta Ricardo Mariz de Oliveira (OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do imposto de ren-
da. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 736). Vale notar que, para fins fiscais, à exceção de lucros e dividen-
dos recebidos de sociedades domiciliadas no exterior, que devem ser oferecidos a tributação no Brasil em
decorrência das disposições contidas no art. 25 da Lei nº 9.249, de 26/12/1995 (“Lei no 9.249/1995”), os
lucros e dividendos recebidos de sociedades brasileiras não integrarão o lucro real tributável, por estarem
expressamente isentos pelo art. 10 da própria Lei no 9.249/1995.

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