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Robert Reid Kalley é, sem dúvidas, um dos maiores missionários

do século 19. Sobre os seus ombros repousa o privilégio de ter sido

o responsável por estabelecer o protestantismo (autóctone) no Brasil


e em Portugal. No entanto, ele permanece desconhecido de muitos.

Seu legado é ímpar e sua atuação é singular. No Brasil, em uma


época onde sepultamos e matrimônios eram de propriedade da

comunidade católica, ele foi o protagonista na luta para que os


grupos não católicos obtivessem direitos sociais tão fundamentais
quanto estes.

De fato, é bem verdade que o cenário religioso brasileiro estava

preparado para inserção do protestantismo: o padroado, a expulsão


e limitação das ordens monásticas e o fomento de ideologias

revolucionárias, haviam abalado profundamente as bases católicas

tornando o momento relativamente propício para a atuação de Kalley


e para a inserção do protestantismo neste torrão.

A experiência de conversão de Kalley, seu distanciamento da

igreja institucional e sua experiência missionária na Ilha da Madeira


estabeleceram as bases para a igreja que viria a ser fundada em terras

brasileiras.

Com um objetivo claro – estabelecer uma igreja nacional –


Kalley militou em várias frentes e entre os vários grupos sociais,
atuando desde a corte até entre a população negra e paupérrima,
valendo-se da profissão de médico para a atuação missionária.

Através de sua peleja, obteve a jurisprudência necessária para a


inserção do protestantismo no Brasil sendo este o primeiro passo para

que outras conquistas sociais viessem a ser obtidas.

O missionário Kalley, profundamente independente, e quem


sabe por isso tão pouco conhecido, assinalou marcas indeléveis no

protestantismo nacional sendo, portanto, um personagem

indispensável à compreensão dos primeiros passos desta tradição


religiosa.

Igualmente importante foi sua esposa, Sarah Poulton Kalley.


Todavia, ela será mencionada aqui apenas de maneira periférica,

tendo em vista que a proposta deste trabalho se concentra na figura

do Doutor.
Este livro é apenas um esboço de parte da vida e do trabalho de

Robert Kalley. Espero, sinceramente, que ele seja proveitoso para


você, caro leitor.
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Uma das características marcantes de toda sociedade está em torno
de sua mobilidade, e não poderia ser diferente visto que a humanidade é

filha do tempo e do espaço em que está inserida e varia de acordo com

fatores externos e internos que colidem sobre ela.


Ao olharmos para a sociedade brasileira, especificamente para o

cenário religioso, percebemos com clareza as intensas variações que

sucederam sobre esta. De acordo com informações do Censo Demográfico


2010, do total da população brasileira, a parcela que se declarava Católica
Apostólica Romana chegava a incríveis 99,7% em 18721. Tal expressividade

é claramente compreendida quando se observa o tipo de colonização que


fora realizada no Brasil, bem como o estabelecimento do Catolicismo

Romano como religião oficial até a promulgação da Constituição Federal

de 1891 que viria a converter o Brasil num Estado laico.


Todavia, atualmente percebe-se uma redução significativa destes

números com 64,6% de católicos no ano de 2010. Seguindo o caminho

inverso a tais números, em 2010, os evangélicos alcançaram o percentual


de 22,2% do total de brasileiros2.

Ante tais questões, depreende-se, sem estorvo, que é notório o

crescimento das igrejas evangélicas no Brasil, desenvolvimento tal que tem

1
CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Características gerais da população, religião e pessoas
com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: <
ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao
_Deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2013. p. 89.
2
Ibidem, p. 92.
|8

incidido sobre as várias esferas que compõe a sociedade influenciando-a

de múltiplas maneiras, incutindo dia após dia sua cosmovisão no ideário

nacional.
Apesar do número extremamente relevante de adeptos na

atualidade não é do conhecimento geral a partir de quando se deu a

inserção da tradição oriunda da Reforma nestas terras, seus primeiros


passos, o desenvolvimento e o enraizamento definitivo.

Diante de tais dados e alegações, torna-se indispensável a realização

de pesquisas que investiguem de forma mais acurada a gênese e o


desenvolvimento deste segmento religioso. Este lugar social em que
estamos inseridos tem demandado, já há algum tempo, uma maior
preocupação por parte dos profissionais responsáveis por construir o

pensamento histórico com respeito às temáticas relacionadas ao campo

das religiões no Brasil, ainda que esta, por vezes, não seja uma área que
exerça muita atração ao universo dos historiadores.

Compreender a gênese do protestantismo brasileiro, sua militância

e implantação, tem se apresentado como algo relevante para os nossos


dias. Este se constitui com o objeto de estudo deste trabalho. Para tal,

abriremos mão de analisar as igrejas de colônia estrangeira, pois como

concluiu Leonard, elas não apresentam nada de especificamente


brasileiro3.

3
LÉONARD, Émile-Guillaume. O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e
História Social. 2ª edição. Rio de Janeiro e São Paulo: JUERP/ASTE, 1981. p. 17.
|9

Focaremos nossa análise no trabalho missionário realizado pelos

Kalley, casal britânico que aportaria em terras brasileiras em meados do

século XIX.
Tomaremos emprestada a proposição de Cardoso4 ao dispor Robert

Reid Kalley enquanto um profeta de fé, um empresário independente da

salvação, que emerge em momentos de crise, valendo-se, para tal, da tese


esboçada por Bourdieu.5

Dividiremos o trabalho em três porções. Na primeira, trataremos dos

antecedentes históricos que marcaram a formação do panorama religioso


brasileiro e de como eles prepararam um cenário propício para o
estabelecimento da primeira tradição protestante brasileira. Na segunda
parte, traremos alguns dados relacionados à vida de Robert Kalley, sua

experiência de conversão e ação missionária na Ilha da Madeira, bem

como, o seu encontro com Sarah Poulton Wilson, que viria a ser sua esposa
e se tornaria pedra fundamental no alicerce da primeira igreja evangélica

brasileira. Por fim, trataremos dos processos de implantação da primeira

tradição protestante brasileira; o real objetivo kalleiano de implantação de


uma igreja genuinamente nacional, formada por nativos; sua militância;

frentes de atuação; as perseguições sofridas; os embates e conquistas

jurídicas e sociais; além de outros pormenores.

4
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. 1ª
edição. Viçosa - MG: Editora Ultimato, 2001, p. 16.
5
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007,
pp. 73,74.
É impossível tratar de qualquer assunto no campo histórico sem
antes se conhecer os eventos predecessores deste. Independente de se

pensar a história a partir de uma linha que realce suas rupturas ou suas

continuidades, esquadrinhar os antecedentes históricos é componente


essencial e inicial para que a pesquisa se fundamente a partir de um

alicerce sólido.

Desde o ano de 1500, data que marca a chegada dos portugueses


em terras brasileiras, tornou-se claro o apontamento para onde se guiaria

a questão religiosa. O catolicismo se estabeleceria como ponto

inquestionável nestas terras.


A presença de indivíduos de outras orientações religiosas seria

tratada, sobretudo, de duas maneiras: Primeiro, através da expulsão

quando estes indivíduos não fossem necessários, sobretudo ao


desenvolvimento econômico, caso este representado pelos protestantes

franceses, ingleses e holandeses. Segundo, através da supressão da


herança religiosa dos indivíduos quando estes se apresentassem como um
“recurso” necessário, caso representado pelos indígenas, num primeiro

momento e, posteriormente, pelos escravos vindos do continente africano.


Havia uma clara coesão entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Romana,

onde as ações de uma eram consentidas e justificadas pela outra, este é o

caso da cristianização das novas terras, a exemplo do Brasil. Tratando da


| 10

questão do combate aos “hereges” protestantes e a cristianização dos

povos americanos Darcy Ribeiro elenca algumas questões importantes:

Ainda com o fervor das cruzadas gloriosas contra os mouros, eles


se assanharam, aqui, contra o gentio americano. O próprio
Estado assume funções sacerdotais, expressamente conferidas
pelo papa, para cumprir seu destino de Cidade de Deus contra a
Reforma européia e contra a impiedade americana. Para tanto,
chega a transferir às coroas ibéricas o mais importante de seus
privilégios, que era o padroado papal, dando-lhes o direito de
nomear, transferir e revogar bispados e outras autoridades
eclesiásticas.6

A origem do regime de padroado remota à Idade Média. Em

Portugal, como consequência da luta contra os mouros, a Coroa adquiriu


o padroado sobre inúmeros locais restritos e também um padroado régio,

que o capacitaria a sugerir a formação de novas dioceses, a escolha de

bispos e apresentação destes ao papa para confirmação. Em 1456, o


infante D. Henrique granjeou para a Ordem de Cristo um segundo

padroado sobre as novas terras já conquistadas e para as que seriam

conquistadas no ultramar. De fato, esses dois padroados foram agregados


no reinado de D. João II (1481-95), na ocasião em que a Ordem de Cristo

passou a ser dirigida diretamente pelo monarca.7 Em 1508, a bula

Universalis Ecclesia daria poderes ao rei para que este criasse cargos
eclesiásticos, bem como nomeasse os seus titulares; coletasse os dízimos;

tivesse controle sobre as comunicações entre as autoridades eclesiásticas

6
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª Edição. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 71.
7
VAINFAS, Ronaldo (Org). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, pp. 466, 467.
| 11

e o Papa e ainda tivesse autonomia na aceitação ou recusa referente à

publicação de atas pontifícias.8 A situação viria a ser definitivamente

confirmada posteriormente, através de várias bulas promulgadas entre a


fundação das dioceses do Funchal (1514), na Ilha da Madeira, e da Bahia

(1551).

O regime de padroado colocaria sob o controle da Coroa as várias


preocupações de ordem eclesiástica, de sorte que o rei viria a

desempenhar a função de chefe da igreja nacional, estando subordinando

eclesiasticamente ao papa.9 Na prática, o padroado colocou-se,


principalmente, como meio de subordinar os interesses da Igreja aos da
Coroa.
Traçando um panorama geral acerca do cenário religioso e político

no século XVI, Cardoso conclui que:

O século XVI, que marcou o estabelecimento do Brasil Colônia,


foi especialmente difícil para o poder papal, que lutava contra as
diversas frentes da Reforma Protestante, sofria a ameaça de
invasão por parte dos turcos e preparava-se para o Concílio de
Trento. Estas dificuldades fortaleceram ainda mais o poder do
Estado sobre a Igreja, distanciando a participação do Vaticano
nas novas colônias.10

8
ALVES, Marcio M. A Igreja e a Política no Brasil, Editora Brasiliense: São Paulo, 1979,
pp. 19, 20.
9
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 24.
10
Ibidem, p. 25
Ainda durante o século XVI inúmeras Ordens Religiosas passaram a
se estabelecer na colônia. A primeira delas, a Ordem dos Jesuítas,

assentou-se no Brasil em 1549 na Bahia. Entre os anos de 1549 a 1598

chegaram ao Brasil apenas 128 jesuítas. Apesar do número reduzido tal


grupo realizou um trabalho extraordinário. Suas principais frentes de

atuação estiveram em torno da catequese indígena e do estabelecimento


de instituições de ensino, instituições estas que alcançariam importante
reputação entre as possessões portuguesas11.

A atuação dos jesuítas em terras brasileiras teve peso tão

significativo que Alves conclui que “nenhum esforço da Igreja é comparável


ao trabalho da Companhia de Jesus no Brasil durante os dois primeiros

séculos da colonização portuguesa”.12


Além dos jesuítas, outras ordens religiosas se estabeleceram na

colônia, cada qual prestando sua contribuição para a fixação da Igreja. Em

1581 os Beneditinos chegaram à Bahia. A partir de 1583 os Carmelitas se


fixaram em Pernambuco e dois anos depois os Franciscanos e os

Capuchinos. As ordens femininas apareceriam a partir de 1677, com as

Clarissas estabelecendo-se na Bahia.13 Posteriormente, se fixariam as


ursulinas das Mercês em 1735, as ursulinas da Soledade em 1739 e as

11
ALVES, Marcio M. A Igreja e a Política no Brasil. p. 21.
12
Ibidem, p. 22.
13
ALVES, Marcio M. A Igreja e a Política no Brasil. p. 22.
| 13

ursulinas franciscanas em 1747.14 Também merecem destaque as

irmandades laicas que desempenharam importante papel no tocante ao

assistencialismo social.
Apesar disto, o ritmo de crescimento e de organização da Igreja

foram extremamente minguados e pobres, sobretudo devido ao regime

do padroado. A coroa relegaria as questões de ordem eclesiástica a um


patamar de inferioridade empregando pouquíssimos recursos para o

desenvolvimento destas.

Durante cento e vinte e seis anos, o Brasil teve apenas uma


diocese, a da Bahia. Só em 1676 foram criadas as do Rio de
Janeiro e Olinda. Quando da independência, em 1822, existiam 7
dioceses no Brasil, das quais duas diretamente dependentes do
arcebispado de Lisboa. As paróquias eram igualmente raras.15

Carente também era a situação do clero secular. O progresso na

carreira sacerdotal dava-se de forma automática com o passar dos anos,


não sendo necessária para isso a realização de estudos ou provas. O padre

submetia-se ao controle do patriarcado rural e, cada vez mais, se tornaria


um funcionário comum, envolvido no universo econômico e político

atuando nas mais variadas áreas: comércio, agricultura, senhorio de

escravos, etc. A vida religiosa e vocacional, de fato, estava relegada a um


plano secundário.16 Acrescido a isto, o século XVIII traria em seu bojo um

ceticismo contestador, que questionaria os sustentáculos ideológicos da

igreja.

14
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 30.
15
ALVES, Marcio M. A Igreja e a Política no Brasil. p. 24.
16
Ibidem, pp. 25, 26.
| 14

Esse conjunto problemático fomentou a participação de leigos,

fornecendo bases para que, ao fim do século XVIII, fosse estabelecido um

tipo de catolicismo de inclinação mais popular, permeado pelo


sincretismo, providencialista e fatalista. A figura do eremita é um emblema

clássico desta vertente católica.17

17
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp. 31,
32.
No decurso do século XVIII o Iluminismo abalaria fortemente as
bases políticas e religiosas do mundo ocidental. Este movimento

intelectual contestaria fortemente os sustentáculos do Antigo Regime.

Objetivando preservar o poder da coroa, o Marquês de Pombal, primeiro


ministro durante o reinado de D. José I (1750-1777), adotou o despotismo

esclarecido.

Entre as medidas adotadas por Pombal, uma das que mais se tornou
notória esteve em torno da expulsão dos jesuítas do Brasil e Portugal. Para

Alves “a expulsão dos Jesuítas, em 1759, eliminou do Brasil os únicos

quadros religiosos que mantinham ainda uma certa disciplina e podiam


transmitir à Igreja um mínimo de coesão interna.”18

Após a expulsão dos jesuítas, Pombal tratou de reformar os Cursos

de Teologia da Universidade de Coimbra, incutindo sobre estes uma


orientação de caráter galicalista, jansenita e liberal.19 Tanto a elite clerical

18
ALVES, Marcio M. A Igreja e a Política no Brasil. p. 25.
19
Galicanismo: sinteticamente, podemos propor que o galicalismo (oriundo de Gália,
antigo nome da França) seja um tipo de ideário nacionalista, que buscava restringir os
poderes do papa. Atuou através de dois ramos: os que militavam em torno das
“liberdades galicanas” por sentimentos de ordem nacionalista e os que militavam por
estarem persuadidos de que a autoridade eclesiástica residia sobre os bispos e não
sobre o papa. (GONZÁLEZ, Justo L. História ilustrada do cristianismo: a era dos
reformadores até a era inconclusa. 2ª ed. rev. São Paulo: Vida Nova, 2011, pp. 294, 295).
Jansenismo: programa de reformas desenvolvidas por Cornélio Jansênio (1563-1638),
bispo de Ypres, que pretendia dar nova ênfase doutrinária à Igreja por meio da obra
de Santo Agostinho. Para Cornélio Jansênio, no decorrer da Idade Média a Igreja havia
perdido a essência da mensagem da graça de Deus. A mensagem de Jansênio é
| 16

brasileira, que era formada na referida universidade, quanto os próprios

seminários que existiam no Brasil, sobretudo o Seminário de Olinda

fundado em 1800, foram largamente influenciados por tais concepções


constituindo-se como uma verdadeira incubadora de ideologias

revolucionárias.20

Este impulso revolucionário começaria a pôr em xeque o monopólio


dos bens salvíficos por parte da Igreja Católica, visto que grande parcela

dos atuantes em tais movimentos era constituída de religiosos e entre as

aspirações que estes almejavam estavam a tolerância, humanitarismo e


utilitarismo. Igualmente, a liberdade de consciência constituía-se como
anseio de tais revolucionários, proporcionando ensejo à tolerância
religiosa. Além disso, a partir de tal processo, principiou-se na colônia o

desenvolvimento de uma consciência nacional.21

extremamente semelhante à proposta pelo reformador João Calvino, visto que ambos
tiveram em Agostinho sua principal referência. Temas como predestinação,
depravação humana, graça soberana e irresistível, etc., são encontradas nas obras de
ambos. Tais questões haviam sido categoricamente condenadas pelo Concílio de
Trento. (Ibid, pp. 296 – 301).
Liberalismo: um ideário que abarca várias esferas da sociedade seja na área religiosa,
política, econômica, etc. O seu âmago está em torno da liberdade do homem nas suas
mais variadas atividades, tendo por grande objetivo o progresso. (Ibid, pp. 400, 406).
20
ALVES, Marcio M. A Igreja e a Política no Brasil. pp. 26, 27.
21
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 36.
O ano de 1808 é de extrema relevância para se compreender a
dinâmica do cenário religioso brasileiro.

Debandando-se das tropas napoleônicas, D. João e a corte

portuguesa se estabeleceriam no Brasil recebendo, para tal, importante


auxilio da Inglaterra. Tal aliança proporcionaria o estabelecimento de

alguns acordos entre as duas nações, com destaque para a abertura dos

portos às nações amigas e a autorização para a implantação de indústrias


no Brasil. Estas medidas desvendariam o Brasil para o mundo, atraindo

para estas terras grandes levas de imigrantes, incluindo aqueles de origem

protestante.
O Tratado do Comércio e Amizade, firmado em 1810, além de dar

início ao processo de extinção do tráfico de escravos, deixava patente o

avanço no tocante ao estabelecimento da liberdade religiosa:

No artigo XII do Tratado do Comércio, Portugal permitia a


construção de igrejas não católicas, assegurando liberdade de
culto, desde que as igrejas não possuíssem forma externa de
templos, nem campanários ou sinos, e que não se manifestassem
contra a religião católica. Foi assegurado também o direito aos
ingleses de terem seus próprios cemitérios.22

Em consequência a esta abertura, imigrantes de inúmeras nações,

incluindo as de origem reformada, se estabeleceriam no Brasil trazendo

22
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 36.
| 18

consigo uma variada gama de usos, costumes e tradições, distintas

daquelas vistas entre os católicos brasileiros.

Ainda que relevantes mudanças tenham ocorrido em decorrência de


tais acontecimentos, o ideário revolucionário não arrefeceu e a

insatisfação política permaneceu. A proclamação da independência

aproximava-se como algo inevitável, vindo a suceder, sob a tutela do


então príncipe regente D. Pedro, em 7 de setembro de 1822.

Posteriormente, em 12 de outubro deste mesmo ano, no Campo de

Santana, D. Pedro viria a ser coroado como o Imperador Constitucional e


Defensor Perpétuo do Brasil.23 Consecutivamente, D. Pedro I convocaria
uma Assembleia Constituinte e em 25 de março de 1824 seria outorgada
a Constituição Politica do Imperio do Brazil.

O estabelecimento da Constituição do Império traria um quadro

dúbio ao cenário religioso brasileiro. A manutenção do catolicismo


enquanto religião oficial estava indubitavelmente garantida, porém a

Carta Magna findaria por fixar certas concessões que posteriormente

dariam margem para o surgimento e o estabelecimento de outras crenças:


“Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião

do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto

domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma


exterior do Templo”. 24

23
KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília:
Senado Federal, 2001. p. 49.
24
BRAZIL. Constituição (1824). Constituição Política do Imperio do Brazil. Registrada
na Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio do Brazil a fls. 17 do Liv. 4º de Leis,
Alvarás e Cartas Imperiaes. Rio de Janeiro em 22 de Abril de 1824. Disponível em: <
| 19

Apesar das intensas mudanças ocorridas no cenário político,

econômico e social brasileiro entre a chegada de D. João (1808) e a

outorga da Constituição do Império (1824), o sentimento de catolicidade,


característica manifesta do povo brasileiro, de modo nenhum foi

alterado.25

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao24.htm>. Acesso em: 27


mar. 2013.
25
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 39.
| 20

Neste ínterim, o espectro que surge como perturbador da cúpula


católica é a Maçonaria. Atuando como promotora do ideário liberal, a

Maçonaria serviu como uma ponte difusora do espírito nacionalista e de

independência entre os eclesiásticos e civis. O sentimento de aversão à


intervenção da Igreja Romana nos negócios brasileiros era apenas uma

face da repulsa que se desenvolvia. Apensar da reprovação da Igreja com

respeito à Maçonaria, o próprio imperador tornara-se grão-mestre desta


Sociedade, demonstrando o desprezo com que tratava as exigências da

Igreja e não apenas esta, mas outras questões, a exemplo das ligadas à

moralidade.

As dificuldades encontradas por Pedro I ao longo de seu reinado


(1822-1831) não lhe deixaram tempo para se ocupar dos
negócios de uma religião que só o interessava muito vagamente.
O imperador, grão-mestre da Maçonaria, educado numa cidade
que lhe permitia as mais loucas tropelias, vivendo publicamente
com uma mulher casada de quem teve vários filhos, não tinha o
mínimo respeito pela moral católica. Para ele, o Papa era o
monarca de um pedaço da Itália e, sobretudo, o intermediário
perfeito para obter de Portugal o reconhecimento da sua
independência.26

Em 7 de abril de 1831, D. Pedro I abdicaria ao trono. Assumiria então


a administração do Império um governo provisório até que o legítimo

herdeiro do trono, D. Pedro II, chegasse à maioridade.

26
ALVES, Marcio M. A Igreja e a Política no Brasil. p. 26.
| 21

A figura do regente Padre Antônio Feijó é emblemática neste

período. Defensor declarado do galicanismo, Feijó embrenhou-se numa

peleja intensa que objetivava uma verdadeira reforma religiosa no país.


Entre as mudanças sugeridas por ele, podemos destacar a tentativa de

legitimar o casamento dos padres; o desejo de trazer os moravianos a fim

de que estes realizassem um trabalho catequético junto aos indígenas; e,


por fim, a proposta de separação entre Brasil e Roma onde o Império

fundaria uma espécie de patriarcado autônomo.27

A resposta da ala conservadora da Igreja Católica contra a irradiação


de conceitos de caráter galicano, jansenita e liberal, se daria através do
grupo denominado ultramontano que buscava resguardar a autoridade
romana e papal. Todavia, o ultramontanismo não demonstrou força e

estratégias suficientes para conter o avanço de tais idéias.28

Ineficaz também, ou melhor, indesejosa de se fazer conhecida, as


igrejas de imigração não se apresentaram como meio facilitador para o

desenvolvimento de um pensamento protestante em terras brasileiras:

“Esses estrangeiros, entretanto, não pareciam absolutamente desejosos de


tornar seus cultos conhecidos dos brasileiros que, por sua vez, não se

mostravam curiosos no conhecimento dessa fé que ninguém lhes transmitira

[...]”.29
Desta feita, a Religião Católica apresentava-se como opção exclusiva

de fé para os brasileiros. Todavia, como já fora proposto, por meio da

27
LÉONARD, Émile-Guillaume. O Protestantismo Brasileiro. p. 40.
28
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 42.
29
LÉONARD, Émile-Guillaume. O Protestantismo Brasileiro. p. 42.
| 22

influência política e econômica britânica; da proximidade com os conceitos

do galicanismo, jansenismo e liberalismo; e com a força exercida pela

maçonaria, reconhecemos claramente que o cenário político e religioso


brasileiro foi intensamente modificado.30

A assunção de D. Pedro II ao trono não alterou basicamente nada

em relação a política da coroa em relação à Igreja. Seu governo foi


marcado por um profundo zelo nacionalista e um ceticismo em se

tratando de questões religiosas. Assumia o seu papel de chefe da Igreja

Brasileira, simplesmente como uma função a mais que devia exercer


enquanto imperador, todavia reputava essa atividade a um patamar
secundário. Durante o mais de meio século de seu reinado fundou apenas
três bispados, e estes, nos primeiros quinze anos de seu governo.31

A manutenção do ideário liberal por D. Pedro II possibilitou a

recepção de uma importante leva de missionários estrangeiros em terras


brasileiras, certificando-os da manutenção dos seus direitos

constitucionais e reprimindo e enfraquecendo o partido ultramontano que

militava com o intuito de minar e desandar tal questão.32

30
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 43.
31
ALVES, Marcio M. A Igreja e a Política no Brasil. p. 28,29.
32
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 43.
| 24

Robert Reid Kalley, doravante chamado Kalley, nasceu no dia 08 de


setembro de 1809, em Mount Florida, na cidade escocesa de Glasgow. Seu

pai, Robert Kalley, era um próspero comerciante de chá. Sua mãe

chamava-se Jane Reid Kalley. Do matrimônio entre Robert e Jane, além de


Kalley, nascera Jane Dow Kalley (24/04/1808). Além destes, Robert Kalley

possuía uma filha, Jessie Macredie Kalley (nascida em fevereiro de 1805),

de sua antiga esposa falecida. Todos eram filiados à Igreja Presbiteriana


da Escócia.

Poucos meses após o nascimento de Kalley, seu pai viria a falecer

(30/06/1810), deixando para a família notável herança. Dois anos após a


morte do Sr. Robert Kalley, Jane contrairia núpcias com o também viúvo

David Kay que, por sua vez, possuía quatro filhos: Mary, James, Anna e

Macredie.33
O ano de 1815 traria um novo infortúnio à vida de Kalley, sua mãe

viria a falecer tornando Kalley e sua irmã Jane, órfãos de pai e mãe. Seu

padrasto, todavia, tratou-os com toda a dignidade e apreço. Anos depois


Kalley reconheceria a importância que o Dr. Kay tivera em sua formação:

Durante minha infância e mocidade, fiquei debaixo da tutela de


um homem de valor, com quem minha mãe se casou depois da
morte de meu pai. Mesmo depois da morte dela, quando eu era
ainda uma criança, ele foi para mim um verdadeiro pai. Ainda que
eu desse muito trabalho e lhe fosse causa de muitas
preocupações e tristezas, ele perseverou comigo, dando-me

33
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 60
| 25

educação moral e religiosa por seus exemplos e preceitos, com


muita oração a Deus.34

Kalley iniciaria seus estudos no Rennie School, ingressando


posteriormente no Glasgow Grammar School e, por fim, contado somente

com 16 anos de idade, foi admitido na Glasgow University.


Ele havia sido preparado por sua família afim de que seguisse a

carreira ministerial na Igreja da Escócia, todavia, a partir de seu ingresso

na universidade foi persuadido pelo pensamento racionalista, tão


difundido já há época, tornando-se assim um cético e abandonando

completamente a ideia de se dedicar ao estudo teológico. Resolveu, assim,

seguir a carreira de médico.

Sendo ateu - escreveu ele ao Sr. Wilby em 15 de novembro de


1843, explicando a razão por que havia contrariado os desejos de
David e do avô e escolhido como carreira a medicina e não o
ministério eclesiástico - ao escolher a carreira, não me vi com
coragem de pregar e ensinar aquilo que eu considerava ser uma
porção de mentiras. Abandonei, pois, toda ideia de estudar
teologia, e escolhi a medicina.35

Sua carreira acadêmica foi marcada pelo êxito e brilhantismo. Com

apenas 18 anos de idade, formou-se em Farmácia. Dois anos mais tarde

tornou-se especialista em Farmácia e Cirurgia pelo Glasgow Faculty of

34
PORTO FILHO, Manoel da S. A epopéia da Ilha da Madeira, Vol. I. Rio de Janeiro:
UIECB, 1987, p. 16.
35
BARROS, Rosa. Manuscritos sobre Robert Reid Kalley. p. 01. apud MATOS, Antônio
Alberto de S. As raízes históricas, teológicas e litúrgicas da Igreja Evangélica
Congregacional e suas implicações para os dias atuais. p. 14.
| 26

Medicine and Surgery. Posteriormente, em 1838, receberia o diploma de

doutor em Medicina na Glasgow University.


| 27

Em 1829, Kalley deu início a sua longa trajetória profissional servindo


com médico de bordo em navios que partiam de Glasgow para Bombaim

e para o Extremo Oriente. Em uma de suas viagens (1831) visitaria a Ilha

da Madeira, região que, anos depois, marcaria profundamente seu estilo


de vida.36

Em 1832 fixaria residência na cidade de Kilmarnock, abrindo neste

mesmo período o seu consultório. Rapidamente se tornaria uma figura


célebre entre a população local, aliando uma relevante capacidade médica,

uma personalidade sedutora e uma extroversão quando o assunto fosse

esportes e artes, fascinaria aos membros das várias camadas da sociedade,


recebendo por isso a alcunha de “médico dançarino de Kilmarnock”.

Combinado a isto tudo, Kalley, além de atuar como médico dos membros

mais abastados daquela sociedade dedicava-se ao auxílio das camadas


menos favorecidas, característica esta que permearia toda a sua vida. 37

O ano de 1835 seria notável na vida de Kalley. O jovem cristão que


se tornará cético teria, novamente, sua visão de mundo completamente
transformada. Ao atender uma senhora bastante idosa e paupérrima,

vítima de uma gravíssima enfermidade, Kalley viu-se defrontado através


do seu modo de viver, visto que, apesar do estado lastimável em que se

36
FORSYTH, William B. Jornada no Império: a vida e obra do Dr. Kalley no Brasil. 1ª
edição. São Paulo: Fiel, 2006, p. 16.
37
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp. 64,
65.
| 28

encontrava demonstrava grandiosa fé e gratidão a Deus. Ao ser indagada

pelo Dr. Kalley acerca de qual a motivação que a fazia viver daquela forma,

a humilde anciã prontamente respondeu que era devido a sua fé em Jesus


e a leitura piedosa e diária da Bíblia Sagrada.
| 29

Tal testemunho motivou Kalley ao exame da Bíblia Sagrada, além de

outros livros da teologia cristã. Ao perscrutar o cumprimento profético de

certas predições concernentes ao povo judeu, Kalley abraçaria a fé cristã. 38


A partir desta experiência, inicia-se a jornada que transformaria o “médico

dançarino de Kilmarnock” 39 no “santo inglês” 40


(apelido que futuramente

Kalley receberia).
Cardoso pontua que a experiência de conversão pela qual passara

Kalley, isto é, na casa de uma pobre anciã e distante dos lugares tidos por

sagrados, marcou profundamente o seu conceito com respeito à


relevância da instituição eclesiástica. Kalley passou a conceber a fé como

sendo algo infinitamente distinta e superior à instituição e todas as suas

estruturas.41 Não apenas isto, mas também a forma com que Kalley fora
tratado pela Igreja Escocesa o afastaria cada vez mais da igreja/instituição.

Primeiramente, ao condená-lo por iniciar um grupo de estudos bíblicos


com jovens pobres, justificando que o mesmo não tinha direitos para tal.
42
E, posteriormente, sendo rejeitado pela Junta de Missões da Igreja da
Escócia, quando se oferecera como missionário a ser enviado à China,
recebendo a justificativa que a Igreja Escocesa não possuía campo de

missões nesta localidade.43

38
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 17-19.
39
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 65.
40
Ibidem, p. 83.
41
Ibidem, p. 69.
42
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 19.
43
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 71.
| 30

O desejo missionário que Kalley passara a sentir pela China

principiou-se a partir do contato que tivera como algumas notícias dos

esforços pioneiros de Robert Morrison nesta nação.44 Apesar da recusa


que sofrera por parte da Igreja Escocesa, não desistiu de seu alvo

missionário. Em 1837, solicitou o seu envio à China por intermédio da

Sociedade Missionária de Londres que, embora tenha relutado no início,


cedeu ao pedido do Doutor fazendo, todavia, inúmeras exigências

concernentes à sua preparação para este fim.

A esta época, Kalley já havia se tornado noivo de Margareth


Crawford. Ambos partilhavam da mesma vocação missionária e, com o
intuito de desenvolver as aptidões necessárias para a atividade missionária
na China, (visto serem grandes as exigências por parte da Sociedade

Missionária de Londres tanto sobre os missionários, quanto sobre os seus

cônjuges ou futuros cônjuges) partiram para Glasgow a fim de estudar e


se preparar para este propósito. As convicções que Kalley nutria com

respeito ao trabalho missionário na China eram tão fortes que o mesmo

chegou a vender sua casa e consultório que possuía em Kilmarnock.


Ainda que fossem grandes as expectativas que o casal nutria com

respeito ao campo missionário, um acontecimento inesperado faria ruir

toda a preparação que fora feita até aquele momento. Durante a sua
estadia em Glasgow, Margareth Crawford seria acometida de uma forte

pneumonia. Ante tal ocorrido, Kalley encerrou o seu contrato junto à

Sociedade Missionária de Londres, visto que, diante das duras exigências,

44
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 20.
| 31

certamente, sua futura esposa não seria habilitada nos exames médicos da

referida sociedade.45

Robert Kalley e Margareth Crawford contrairiam núpcias em 22 de


fevereiro 1838. Visto que o estado de saúde de Margareth não

apresentava melhoras, decidiram empreender viagem à Ilha da Madeira,

local já conhecido por Kalley durantes as suas viagens em quanto médico


de bordo e que poderia apresentar um clima mais favorável à recuperação

de sua esposa.46

45
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp. 72,
73.
46
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 22-25.
| 32

Já durante a viagem, Kalley começou a propagar a sua fé

promovendo alguns cultos. Em outubro de 1838 aportaram na Ilha, e

objetivavam ali permanecer por um breve período de tempo. Logo de


início, Kalley buscou aprender o português, além de fundar uma classe de

ensino da língua inglesa tendo como livro base para o ensino o Novo

Testamento.
No primeiro domingo após chegar à Ilha, visitou uma Igreja

Anglicana, todavia considerou o culto demasiadamente formal iniciando,

já no domingo seguinte, uma reunião em seu lar, ainda que sem


pretensões de estabelecer qualquer nova denominação religiosa. Tal fato

provocou a cólera do ministro anglicano que o ameaçou de denunciá-lo

ao bispo na Inglaterra por invasão de território eclesiástico, além de se


esforçar por desacreditar os ensinos de Kalley.47 Para Cardoso, a partir de

tais questões estabeleceu-se uma clara fragmentação na igreja de


imigração da Ilha:

Formou-se claramente uma divisão na igreja de imigração da


Ilha. Havia uma igreja oficial, formatada segundo os moldes
episcopais ingleses (culto, idioma, apego aos cânones) e outra
igreja informal, conversionista, inspirada no modelo do culto
doméstico, interessada em atingir os madeirenses. 48

47
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp. 75,
76.
48
Ibidem, p. 76.
| 33

Evitando maiores questionamentos ante a legitimidade de sua

atividade missionária, Kalley solicitou junto à Sociedade Missionária de

Londres a sua ordenação pastoral. De fato, ele não considerava a


ordenação por parte de uma instituição como sendo algo essencial, da

mesma forma, não tomava por relevante a igreja que o fizesse, deixando

patente uma marca tão característica de sua concepção teológica, o


desapego denominacional:

Quanto à Igreja, da qual espero minha ordenação, considero o


nome como de pouca importância, desde que sejam pastores
cristãos, que sustentem a verdade pura do evangelho, e que
estejam prontos a separar-me para pregar a Cristo e este
crucificado, e deixar-me em liberdade para seguir, em questões
de menor monta, o que me pareça ser a orientação de Deus. 49

Em 1º de junho de 1839, viajou para Londres via Lisboa, objetivando

resolver suas pendências, tanto na área médica quanto na área pastoral.


Em 17 de junho receberia seu diploma junto à Escola Médica Cirúrgica de

Lisboa, podendo assim exercer a profissão de médico não apenas entre

seus compatriotas britânicos, mas também entre os madeirenses. Em 18


de julho foi ordenado na Capela do Dr. Bennet, em Londres.50

Retornando à Ilha, em outubro 1839, estando já habilitado para

desenvolver tanto as suas atividades clínicas quanto missionárias,


dedicou-se a estabelecer uma forte base de assistência médica, sobretudo

aos pobres da localidade, abrindo portas para a propagação da sua

mensagem religiosa. Construiu uma clínica que, posteriormente,

49
PORTO FILHO, M. S. A Epopéia da Ilha da Madeira. p. 43
50
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 35.
| 34

transformou-se em um tipo de hospital caseiro contando com doze leitos.

Tratava a ricos e pobres. Aos pobres oferecia consultas, remédios e

hospitalizações gratuitas. Ao passo que aos ricos cobrava altos valores,


tanto para estimulá-los a procurarem outro profissional, restando assim

mais tempo para o cuidado dos menos favorecidos, como para que

provesse fundos e permitisse a continuidade do trabalho de


assistencialismo aos mais pobres. Uma das marcas de sua consulta médica

era a de sempre ajoelhar-se aos pés da cama do doente e realizar uma

súplica a Deus para que este lhe concedesse orientação.51


Ainda em 1839, incitado pelo anseio de ensinar os madeirenses a
lerem as Escrituras, estabeleceu uma rede de escolas que rapidamente se
espalharia pela ilha. A escola era gratuita, algo até então inédito na

localidade, e atendia crianças durante o dia e adultos à noite. O processo

alfabetizador utilizava como livro base, obviamente, a Bíblia Sagrada.


Kalley provia professores, móveis e todos os materiais essenciais ao bom

funcionamento da escola. A tática de ensino era objetiva e alcançou rápida

difusão, ao passo que se aprendia a ler logo se passava a ensinar outrem


ainda não alfabetizado. Em pouco tempo, em torno de 20 escolas já

estavam estabelecidas na ilha, com números superiores a 800 alunos. 52 Em

uma análise realizada depois de dez anos, avaliando o alcance do referido


trabalho, Kalley concluiria:

Eu creio que cerca de duas mil e quinhentas pessoas


freqüentaram essas escolas, num período mais ou menos longo,

51
Ibidem, pp. 38-40.
52
Ibidem, pp. 43, 44.
| 35

entre os anos de 1839 e 1845, e que para mais de um milhar entre


as idades de quinze a trinta anos aprenderam a ler nas Escrituras
inteligentemente, ficando aptas a estudá-las por si mesmas.53

A fama de Kalley rapidamente se espalharia por toda a Ilha. O

impacto produzido por sua obra filantrópica, bem como da sua presteza

médica e prática religiosa, fez com que a população madeirense passasse


a chamá-lo de o “santo inglês”.

53
PORTO FILHO, M. S. A Epopéia da Ilha da Madeira. p. 37
| 36

Em se tratando da relação de Kalley com os clérigos católicos

percebemos que a mesma era bastante amistosa. Seus textos de estudos

bíblicos, por exemplo, eram corrigidos pelo Padre Nóbrega. De igual


modo, quando dialogava com tais sacerdotes evitava entrar em

controvérsias, dando ênfase apenas à obra expiatória de Jesus Cristo,

deixando de lado questões ligadas à idolatria, purgatório,


transubstanciação, invocação de santos, etc. É válido citar que a tradução

da Bíblia escolhida por Kalley para promover sua atividade de ensino foi a

versão do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, versão esta aprovada pela


Inquisição.54

O prestígio de sua obra filantrópica, educacional e médica, recebeu

destaque não apenas entre a população comum da Ilha, mas também


entre as autoridades da mesma, recebendo, por isso, reconhecimento da

Câmera Municipal de Funchal em 25 de maio de 1841.


Até esta época Kalley contava com o suporte dos padres, gozando

de boa relação e reputação entre estes tinha, até mesmo, as suas


conferências teológicas e médicas divulgadas em seus templos. O próprio
bispo de Funchal era seu paciente e amigo.55

Este panorama favorável seria modificado em fins de 1841, quando

uma vigorosa perseguição incidiu sobre Kalley e os seus convertidos. As


principais causas seriam de ordem religiosa e econômica. Ao passo que

54
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp. 83,
84.
55
Ibidem, pp. 86, 87.
| 37

pessoas de prestígio passaram a abraçar a fé protestante, excitou-se a

cólera da igreja oficial. Da mesma forma, a perda de clientes por parte dos

médicos portugueses residentes na ilha, e ainda a censura que os


empregadores passaram a impor sobre os pobres camponeses diante da

maior instrução que estes estavam recebendo no período de aulas

promovidas por Kalley, afim de que estes permanecessem incultos e não


almejassem condições melhores de vida, são outros pontos que

contribuem para a compreensão das motivações de tal perseguição.

Com ligeireza o governador da Ilha foi substituído por outro que se


comprometia em dar um desfecho concludente à questão. Igualmente, o
Cônego Telles, importante jesuíta, foi convocado para encabeçar a
perseguição contra os partidários da Reforma.56

A perseguição se agravou grandemente entre os anos de 1842 a

1846. Algumas autoridades locais como também o clero passou a


pressionar Kalley e os convertidos mais vigorosamente. Dos templos, eram

incessantes os ataques contra a “nova seita”. Da mesma forma, nas escolas

de padres as crianças eram instruídas a zombar dos “calvinistas”.


Tomando ciência de tal situação a Igreja da Escócia aconselhou

Kalley a abandonar prontamente a Ilha, todavia, o mesmo negou-se

afirmando que não abandonaria as suas ovelhas perante os lobos.57


No decurso do ano de 1843, Kalley foi proibido de administrar

remédios. Posteriormente, as escolas passaram a ser alvo de investigação

56
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp. 86,
87.
57
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 52- 54.
| 38

e fechamentos. Ainda neste período, vários convertidos passaram a ser

perseguidos, desterrados e encarcerados. O trabalho de Kalley estava

copiosamente afetado, visto que suas principais atividades lhe haviam sido
interditadas. Por fim, ele seria também proibido de permanecer realizando

suas pregações.58

Finalmente, em setembro de 1843 Kalley teria a sua prisão decretada


por meio da citação de lei inquisitorial de 25/03/1646, ficando encarcerado

por cerca de seis meses. O doutor pautava suas ações de defesa dentro

dos parâmetros legais tendo, por exemplo, escrito ainda no primeiro


semestre de 1843, um livro intitulado Uma Exposição de Factos pelo dr. R.
R. Kalleym M. D. & C., objetivando comover as autoridades e a sociedade
acerca de seu caso. Neste livro ele pretendia apresentar sua defesa

publicamente, dispondo-se como um súdito britânico e que não estava

associado a nenhuma sociedade missionária.59


Diante das perseguições, percebeu-se não um extermínio da obra

protestante madeirense, mas uma descentralização e o surgimento de

novas frentes de resistência evangelísticas.60

58
Ibidem, pp. 54- 56.
59
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 89.
60
Ibidem, p. 88.
| 39

Ante tal panorama, a Igreja Livre da Escócia, ainda que sem consultar
Kalley, em fevereiro de 1845 encarregou o Rev. William Hepburn Hewitson

para dar continuidade ao trabalho de evangelização entre os madeirenses.

Apesar do desencontro de informações, Kalley ficou muitíssimo


agradecido pela vinda do novo pastor.

No início de 1845, Kalley viria a ser preso novamente sendo liberto,

todavia, através do pagamento de uma fiança. Visto que não cessavam as


perseguições, em agosto deste mesmo ano Kalley e sua esposa finalmente

regressaram à Escócia.

Em abril de 1846 organizou-se por intermédio do Rev. Hewitson a


Igreja Presbiteriana da Ilha da Madeira.

Kalley e sua esposa retornariam ainda outra vez à Ilha, visto que o

Rev. Hewitson adoecera e necessitava de retornar à Inglaterra para realizar


seu tratamento. Diante de tal situação, seus opositores encolerizaram-se

sobremaneira e maquinaram um desfecho definitivo para a questão.


Por fim, em 9 de agosto de 1846, no chamado Dia de São Bartolomeu
da Ilha, Kalley, sua esposa e, ainda, alguns convertidos madeirenses foram

expulsos da Ilha numa embarcação inglesa chamada Forth. Sua casa e


biblioteca foram destruídas e incendiadas pela multidão que fora incitada

pelo clero e por algumas autoridades civis.61

61
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 75-79.
| 40

Kalley é reconhecido como sendo o precursor do presbiterianismo

português, ainda que ele próprio imputasse sobre o Rev. Hewitson esta

honra.62
Após a saída forçada da Ilha, Kalley, sua esposa e os refugiados

madeirenses dirigiram-se até a região das Antilhas onde alguns refugiados

passariam a habitar. Kalley manteria o contato com os convertidos


madeirenses, especialmente, por meio de várias cartas pastorais. Muitos

outros convertidos madeirenses ainda seriam resgatados através de navios

ingleses que retornariam à Ilha com este fim. Cardoso descreve a situação
destes enquanto aguardavam as embarcações:

O esconderijo até a chegada dos navios eram as matas e as


cavernas. As casas foram abandonadas, sendo arrombadas e
saqueadas. As Bíblias encontradas eram incendiadas em praça
pública. Os exilados subiam aos navios sem reservas financeiras,
pois não tinham tido tempo para vender seus pertences; pesava
sobre eles o risco de vida.63

A partir de meados de 1848, bom número de madeirenses imigraria

ainda aos Estados Unidos, especificamente para o estado de Illinóis. Kalley


atuou neste processo, sobretudo através do auxílio em recursos

financeiros.64

62
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 93.
63
Ibidem, p. 95.
64
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 87-89.
| 41

A partir de 1850, Kalley e sua esposa passariam a residir em Beirute


com o intuito de que esta pudesse situar-se em uma região de melhor

clima, visto que a mesma padecia já há tempos com problemas

respiratórios. Apesar dos cuidados, Margareth Kalley viria a falecer em 15


de setembro de 1851, sendo sepultada no cemitério dos estrangeiros em

Beirute.65

A reputação de Kalley enquanto médico era notória entre as Ilhas


Britânicas. Ciente disto, em 1852 um rico industrial têxtil inglês chamado

William Wilson, viajou à Beirute a fim de que Kalley examinasse o seu filho

Cecil Wilson que padecia com tuberculose. O diagnóstico foi desanimador


e o jovem faleceria ainda no decorrer do ano de 1852.

Nesta viagem em direção a Beirute outra filha havia acompanhado

o Sr. Wilson, chamada Sarah Poulton Wilson a qual chamaremos, de agora


em diante, simplesmente de Sarah.66

Sarah é tida como uma descendente dos huguenotes franceses,


grupo que fora perseguido pelo catolicismo e pelo rei da frança e que, em
1685, buscaria asilo na Inglaterra.67 Da mesma forma, Cardoso evoca os

fortes laços que sua família detinha com o puritanismo inglês.68

65
CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do
Brasil. p. 94.
66
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 100.
67
CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do
Brasil. p. 31.
68
Ibidem, p. 40.
| 42

Possuidora de uma formação bastante eclética, Sarah desenvolveu

inúmeras aptidões que eram empregadas, sobretudo, em atividades

ligadas à Igreja Congregacional Torquay (Inglaterra), da qual fazia parte.


Cardoso traça sua multiplicidade de habilidades:

Sarah rompera com o rígido padrão tradicional da cultura


inglesa, tendo desenvolvido muitas aptidões na área de
atividades artísticas, sendo pianista, musicista, pintora, poetisa e
poliglota. Era professora de uma classe de rapazes da Igreja
Congregacional de Torquay, lecionando ainda a jovens que
trabalhavam de dia, em uma escola noturna de formação.69

Sarah ouvira falar das histórias missionárias de Kalley e de toda a

perseguição que havia sofrido na Ilha da Madeira. Durante a viagem à


Beirute, Kalley e Sarah tornaram-se amigos, tal afeição cresceria

culminando em casamento, que fora realizado na Igreja Congregacional

de Torquay em 14 de dezembro de 1852.70

69
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 100.
70
CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do
Brasil. p. 95.
| 43

Uma nova ocasião surgiria na vida de Kalley e Sarah. Ao ler o livro


Sketches of Residence and Travels in Brazil de autoria do Rev. Daniel Kidder

sentiram-se atraídos pela oportunidade de desenvolver um trabalho

missionário em terras brasileiras. Para Kalley, eram grandes as


necessidades espirituais entre o povo brasileiro e sua experiência em

Madeira fora a ensaio ideal para este novo desafio. Tempos depois Kalley

afirmaria:

[...] ficando muito impressionado com a deplorável escassez


espiritual do Brasil, um país vinte vezes maior que a Grã-Bretanha
e a Irlanda, e onde o idioma era o português, entendi que o
conhecimento que tinha d’aquela língua e povo na Madeira,
justificava a esperança de ocupar-me ali com bom êxito em
trabalhos evangelísticos.71

Após deliberarem acerca das intenções de fixar no Brasil uma

atividade missionária, o casal embarcou no navio Great Western,


Southampton, em 9 de abril de 1855, com direção ao Rio de Janeiro. Após
escalas em Lisboa, Ilha da Madeira, Pernambuco e Baía, aportaram no Rio

de Janeiro em 10 de maio.72

71
ROCHA, J. G. da Lembranças do Passado. Vol 1, pp. 18, 19 apud CARDOSO, Douglas
Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 102.
72
CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do
Brasil. p. 127.
| 45

A época em que Kalley e Sarah aportaram em terras brasileiras

esboçava elementos relativamente propícios à inserção do protestantismo

neste torrão.
Cardoso elenca alguns destes elementos beneficentes. Em primeiro

lugar ele destaca a política de imigrações que D. Pedro II passara a difundir

com o intuito de acrescer a população brasileira e promover o


desenvolvimento da nação. Kalley e Sarah encaixavam-se perfeitamente

no perfil de estrangeiros dispostos a contribuir com o projeto colonizador

do país. Outro ponto destacado por Cardoso estaria em torno do bom


momento político pelo qual passava o império brasileiro, onde os

saquaremas (governo) e luzias (oposição) viviam uma ocasião de

concórdia. Inversamente, a Igreja Católica passava por seu pior momento


institucional no Brasil. A influência galicanista promoveria quase o

rompimento com Roma e o estabelecimento de uma Igreja Brasileira.


Havia sido proibida a fundação de novas ordens bem como o ingresso de

ordens estrangeiras que não se submetessem ao império. Por fim, em 1855


havia sido vedada a fundação de seminários católicos em terras brasileiras.
Partindo de um prisma mais global, Cardoso ainda alvitra os eventos que

já se sucediam desde os primeiros anos do século XIX: a perda dos

territórios eclesiásticos durante o Império Napoleônico, o confisco e


| 46

partilha dos territórios eclesiásticos alemães e o fim do Sacro Império

Romano.73

É perceptível a aspiração de D. Pedro II em manter controle irrestrito


sobre o clero, como vemos em menção presente nas Atas do Conselho de

Estado: “Mas o Imperador quer a submissão dos Bispos, tenta obtê-la, e não

a conseguindo, não hesita em usar de todo o rigor para puni-los e humilhá-


los”.74

Além destas questões poderíamos acrescer a esta política

imigratória de D. Pedro II o seu desinteresse pela Igreja oficial. O próprio


Joaquim Nabuco ratificaria essa particularidade do imperador:

D. Pedro tinha o espírito fortemente imbuído do preconceito


anti-sacerdotal. Ele não era propriamente anticlerical; o que não
lhe inspirava interesse era a própria vocação religiosa;
evidentemente o padre e o militar eram aos seus olhos de
estudioso infatigável de ciência, senão duas inutilidades sociais,
duas necessidades que ele quisera utilizar melhor: o padre,
fazendo-o também mestre-escola, professor de universidade; em
vez do militar, um matemático, astrônomo, químico,
engenheiro.75

Léonard assevera que esta atitude já positivista, que objetivava valer-

se da igreja no campo social, sem um real interesse em sua mensagem

espiritual, ofereceria um terreno profícuo aos primeiros missionários

73
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp.
108, 109.
74
BRASIL. Senado Federal. Atas do Conselho de Estado: 1875-1880. Brasília: Senado
Federal. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 28 ago. 2013, p. 05.
75
NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império, II, pp. 259-260 apud BRASIL. Senado
Federal. Atas do Conselho de Estado. p. 06.
| 47

protestantes. Estes gozavam da estima do imperador por seus

conhecimentos e pelos serviços que poderiam render ao império.76

Diante de tal cenário Cardoso conclui que “o casal Kalley chegou ao


Brasil neste momento histórico em que o cenário era tremendamente

favorável: politicamente com a abertura do país aos imigrantes, e

religiosamente pela fragilização da igreja oficial”.77


Concordamos com a proposição feita por Cardoso ao interpretar

Kalley a partir da teoria de Bourdieu dispondo-o como um profeta, um

empresário independente da salvação, que emerge em momentos de


crise, como os que se esboçavam no cenário religioso brasileiro.

[...] o profeta é o homem das situações de crise quando a ordem


estabelecida ameaça romper-se ou quando o futuro inteiro
parece incerto. O discurso profético tem maiores chances de
surgir nos períodos de crise aberta envolvendo sociedades
inteiras; ou então, apenas algumas classes, vale dizer, nos
períodos em que as transformações econômicas ou morfológicas
determinam, nesta ou naquela parte da sociedade, a dissolução,
o enfraquecimento ou a obsolescência das tradições ou dos
sistemas simbólicos que forneciam os princípios da visão de
mundo e da orientação da vida.78

Para Léonard, todavia, Kalley “foi uma personalidade curiosa,

característica desses propagandistas anglo-saxões, aristocratas ou

burgueses ricos que, por motivos culturais ou de saúde, tornavam-se


grandes viajantes, e que utilizavam fortuna e turismo na difusão da fé

76
LÉONARD, Émile-Guillaume. O Protestantismo Brasileiro. pp. 47,48.
77
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 109.
78
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. pp. 73,74.
| 48

protestante” 79. Tal descrição parece-nos um tanto superficial, visto que, se

remetermos ao ocorrido na Ilha da Madeira, por exemplo, a mesma abre

mão dos males e perseguições que ali se sucederam. Não nos parece
provável que alguém que tenham, sobretudo, pretensões turísticas e

culturais acabe por colocar a sua vida e a de seus familiares e amigos em

risco, desafiando e instigando a ira das autoridades e dos habitantes em


geral e durante um período de quase oito anos (outubro de 1838 a agosto

de 1846).

Concordamos com a proposição sugerida por Cardoso quando


propõe que “a atitude de Kalley não era de um milionário excêntrico em
turismo, mas sim de um missionário independente, de um profeta da fé que
suportou duras provações para confirmar sua irresistível vocação”. 80

É relevante perceber como as experiências missionárias anteriores

de Kalley, sobretudo em Madeira, lhe forneceram maturidade. Diferente


de sua primeira ida em direção à Ilha que já durante a viagem realizaria

cultos, atitude que causaria estranheza e escândalo em alguns tripulantes.

Em sua viagem ao Brasil, Kalley trataria de arranjar contatos que


facilitariam seu estabelecimento em terras brasileiras. Aproximou-se de

senadores e deputados; realizou atendimentos médicos em pessoas que,

futuramente, seriam uma ponte para que conhecesse um dos médicos da


Corte. Ainda, distribuiu diversos relógios de ouro juntamente com algumas

cartas de apresentação que trouxera com o intento de presentear diversas

79
LÉONARD, Émile-Guillaume. O Protestantismo Brasileiro. p. 49.
80
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 88.
| 49

autoridades e políticos brasileiros.81 Uma atitude claramente estratégica

que visava lhe dar suporte para as atividades missionárias que

ambicionava realizar nestas terras.

81
Ibidem, p. 110.
| 50

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, Sarah e Kalley fixaram-se no

Hotel Pharoux, seguindo um roteiro esboçado por Daniel P. Kidder em seu

livro, todavia ficariam hospedados apenas 11 dias. Residir no Pharoux era


algo bastante penoso devido ao mau cheiro proveniente da praia de dos

barulhos das barcas Ferry e de uma serraria vizinha.

O mau cheiro era decorrente da lastimável situação sanitária em que


se encontrava o Rio de Janeiro. Diante da inexistência de fossas, os dejetos

e o lixo eram colocados em barris na rua que ao entardecer eram

despejados no mar, em terrenos baldios ou em valas, trabalho feito pelos


tigres, escravos ocupados desta função. Em dias de chuva, os dejetos eram

simplesmente jogados nas ruas.

A precariedade na área sanitária havia proporcionado a rápida


multiplicação de doenças contagiosas: febre amarela e palustre, varíola e

a peste bubônica; incutindo na realidade da carioca uma taxa de


mortalidade altíssima.82

O choque de Sarah e Kalley diante de tal situação foi extremo,


sobretudo para Sarah, visto que a mesma havia residido em Torquay, uma
das cidades reputadas como de melhor clima e mais saudáveis da

Inglaterra.

Após certa relutância abandonaram a região do cais, mudando-se


para o Hotel dos Estrangeiros, local que também não agradaria. A ponto

82
CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do
Brasil. pp. 129, 130.
| 51

de desistirem da missão a que se pretendiam, foram informados das boas

condições que encontrariam na cidade de Petrópolis, região de bom clima,

onde moravam imigrantes protestantes alemães, importantes políticos


brasileiros e, ainda, onde o imperador residia durante o verão. Ficaram a

princípio no Hotel dos Estrangeiros do Largo do Catete e em 15 de

outubro de 1855 alugariam uma casa no distrito de Schweizerthal,


denominada Gernheim (“Lar muito amado”).83

Na referida época o Império Brasileiro era defrontado pela lastimável

situação da área da saúde. Além das doenças já citadas, uma outra chegara
ao Rio de Janeiro – a cólera, e, em fins de 1855, martirizava até mesmo a
população de Petrópolis. Diante de tal situação, prontamente Kalley
abraçaria a oportunidade de atuar como médico e farmacêutico, logo

ofereceu seus serviços recebendo reconhecimento do Dr. Melo Franco em

publicação feita no Correio Mercantil em 20 de novembro do corrente


ano: “O Sr. Dr. Robert Kalley, sacerdote protestante inglês, que se acha entre

nós em viagem, ofereceu à comissão sanitária do município Estrela os seus

serviços em favor da pobreza”84. Desta forma, a partir da crise do sistema


médico e sanitário brasileiro, Kalley atuaria como médico, sobretudo, junto

às camadas pobres reproduzindo a estratégia usada em Madeira

utilizando-se da medicina gratuita como ponte a fim de atuar como


evangelista.

83
Ibidem. pp. 132-134.
84
ROCHA, J. G. da Lembranças do Passado. Vol 1, p. 34 apud CARDOSO, Douglas Nassif.
Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 112.
| 52

Uma outra frente de atuação estaria em torno da fundação de

escolas bíblicas dominicais, a participação de Sarah é sobressalente, visto

que sua tradição neste campo é muito mais sólida. A primeira escola
bíblica seria um tanto informal, sendo realizada em Gernheim (na época a

casa fora emprestada visto que só alugariam tempos depois) em 19 de

agosto de 1855. A primeira aula foi ministrada por Sarah, tendo como
participantes algumas crianças de origem inglesa.85

Algum tempo depois Kalley estabeleceria uma classe formada por

homens negros adultos. É relevante mencionarmos que o trabalho


kalleiano voltava-se, ao que parece, sobretudo às camadas incultas. O “Lar
muito amado” se constituiria como a base para as primeiras escolas
bíblicas e para os cultos domésticos. Falando acerca disto Forsyth conclui:

Em Gernheim, o culto doméstico acontecia todos os dias. Os três


servos, duas criadas alemãs e um jardineiro português
participavam destas orações diárias. Deste modo, foi dado um
exemplo para os outros seguirem. No estágio pioneiro do
trabalho, o culto doméstico nas casas dos crentes seria uma das
formas principais de propagar o evangelho. Os crentes eram
ensinados: ‘Convide seus amigos e vizinhos para cantar hinos, ler
a Bíblia e orar em sua casa’.86

As frentes da atuação kalleiana já estavam estabelecidas ao fim de

1855: a escola bíblica e o culto doméstico, o atendimento médico à


população mais humilde e o estabelecimento de contatos com a

sociedade, sobretudo entre os mais influentes.87

85
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 130.
86
Ibidem, p. 131.
87
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 114.
| 53

Kalley desejava estender a área de influência da propaganda

protestante, para isso necessitava de auxílio. A ajuda começaria a surgir

em dezembro de 1855, quando o inglês William D. Pitt, que, quando


criança, havia sido aluno de Sarah em Torquay, se dispôs a atuar como

apoiador da causa protestante em terras brasileiras. Kalley havia enviado

cartas três famílias de madeirenses que haviam se refugiado em Illinois


após as perseguições à Madeira, a fim de que estes também se tornassem

seus auxiliares. O convite específico dirigiu-se a Francisco da Gama,

Francisco de Souza Jardim e Manuel Fernandes e suas respectivas famílias.


Prontamente, eles venderam os bens que haviam adquirido em terras

estadunidenses e partiram em direção ao Rio de Janeiro aportando em

agosto de 1856.88
Cardoso destaca que a escolha destes três madeirenses não foi

casual. Kalley procurava homens maduros e experimentados para a


realização do trabalho missionário no Brasil.

A escolha de seus auxiliares não era ao acaso. Kalley pretendia


estabelecer pluralidade ministerial e escolhera homens que
pudessem fazer frente às dificuldades de um trabalho pioneiro
em condições adversas, possivelmente em meio a
perseguições.89

88
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 135,136
89
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 115.
| 54

Kalley logo tratou de distribuir as frentes em que cada um atuaria.

Francisco da Gama ficou incumbido de dar início à congregação do Rio de

Janeiro, para tal alugaria uma residência e daria início ao culto doméstico.
Além disso, ficaria responsável pelo trabalho de colportagem90 naquela

cidade. Pitt, que à época trabalhava no Arsenal da Marinha, fez a ponte

necessária e Jardim deu início ao trabalho de limador valendo-se das horas


de almoço para divulgar o culto doméstico. Fernandes e sua família

passariam a residir em Petrópolis onde exerceria a atividade de

colportagem.
Em citação que Forsyth atribui ao Rev. Manoel da Silveira Porto Filho
(1908-1988), importante líder congregacional brasileiro, percebemos a
importância que estes apoiadores tiveram no estabelecimento da primeira

tradição protestante brasileira.

Gideão teve seus trezentos homens, Davi teve aqueles que


escolheram se juntar a ele; e Kalley teve estes quatro – Pitt, Gama,
Jardim, Fernandes, e suas esposas, igualmente dedicadas e
heróicas, tendo deixado tudo para seguir o chamado que seus
maridos haviam recebido. Eles devem ser honrados pelo exemplo
dado às igrejas que vieram a existir por meio da semeadura da
Palavra, na terra que havia irrigado com o próprio sangue, suor e
lágrimas, igrejas que se tornaram fortes pelo sacrifício que
fizeram por um povo desconhecido numa terra estrangeira.91

No primeiro encontro entre Kalley e as famílias madeirenses,

ocorrido em 10 de agosto de 1856, foi celebrada a Ceia do Senhor (ou

90
Isto é, distribuição e venda de Bíblias, Novos Testamentos, livros e folhetos.
91
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 137.
| 55

numa linguagem de cunho sacramental, a eucaristia). É relevante o

apontamento que Cardoso faz com respeito a este primeiro culto:

Talvez em qualquer outra denominação protestante, o


ajuntamento de 10 de agosto de 1856, em que foi celebrada a
Ceia do Senhor seria a data fundante do início da nova igreja,
pois havia importante participação: Francisco da Gama, esposa e
três filhos; Manuel Fernandes, esposa e dois filhos. Kalley; William
Deatron Pitt e William Esher. Entretanto, para Kalley e sua equipe
não era este o objetivo, implantar uma comunidade
transplantada; a igreja que dispensariam esforços para formar
teria que ser brasileira, com nativos.92

Fica-nos patente que o real objetivo de Kalley não era fundar uma

igreja de colônia estrangeira, como tantas outras que já haviam sido


estabelecidas, sobretudo, a partir da Abertura dos Portos. Como já visto,

tais igrejas de imigração não atuavam como promotores do

desenvolvimento protestante em terras brasileiras, tampouco estavam


empenhadas em tornar a mensagem e o culto protestante conhecidos aos

brasileiros. Todavia, o foco kalleiano era estabelecer uma igreja

genuinamente brasileira, composta pelos naturais da terra.

92
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 118.
| 56

Em fins de agosto de 1856 a atividade de colportagem no Rio de

Janeiro e em Petrópolis já estava instituída. Porém, logo surgiu oposição

ao trabalho. Rapidamente, os madeirenses passaram a sofrer insultos e


injúrias. Fernandes chegou a ser preso sob a alegação que não possuía

licença para vender livros. Através de fiança, paga por Kalley, ele seria

liberado. Apesar destas intempéries, o estoque de material rapidamente


se esgotou e a procura era grande, mostrando que a atividade vinha

rendendo bons resultados.

Em outubro de 1856 Kalley daria início à outra frente de atuação que


se mostraria muito profícua. Passaria a valer-se da propaganda feita em

periódicos. Sua primeira publicação seria a obra O Peregrino de autoria de

John Bunyan, sendo publicada no Correio Mercantil e que em muito


agradaria aos leitores. Cardoso destaca que esta estratégia tornou-se

extremamente importante para incentivar e divulgar idéias protestantes e


liberais entre os membros da corte e na sociedade em geral. Kalley se

utilizaria largamente desta mídia a fim de abordar questões relevantes da


sociedade em geral, não abrindo mão de solapar e lançar
questionamentos à autoridade da Igreja oficial. 93 Além de publicar textos

traduzidos, divulgava material evangelístico e apologético, valendo-se,

para isso, de inúmeros pseudônimos – o crítico, o católico-protestante, etc.

93
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp.
119, 120.
| 57

– provocando a ira dos seus adversários visto que todos sabiam que se

tratavam de escritos seus.94

Reiterando a proposta de Bourdieu, percebemos que o grande


intuito kalleiano era de trazer ao cenário brasileiro um novo tipo de

mercado dos bens de salvação, uma nova opção de fé, abrindo a

concorrência do mesmo e colocando em xeque o antigo, isto é, o que se


refere ao controle exercido pela Igreja oficial:

A força de que dispõe o profeta (empresário independente


de salvação) cuja pretensão consiste em produzir e distribuir
bens de salvação de um tipo novo e propensos a desvalorizar
os antigos – tarefa para a qual conta exclusivamente com sua
‘pessoa’ como única caução e garantia na falta de qualquer
capital inicial – depende da aptidão de seu discurso e de sua
prática para mobilizar os interesses religiosos virtualmente
heréticos de grupos ou de classes determinadas de leigos, graças
ao efeito de consagração que o mero fato da simbolização e
explicitação exerce.95

As frentes de atuação se fortaleciam, mas não livre de coação. Os


trabalhos de colportagem, o culto doméstico em Petrópolis e no Rio de

Janeiro, a atividade jornalística, a escola bíblica. Esta última havia iniciado


aulas em português em maio de 1856, sempre sob a liderança de Sarah. A

escola bíblica dominical havia se desenvolvido notavelmente, alcançando

um público bastante variado, desde colonos ingleses, alemães,


portugueses, até brasileiros. Por isso, as aulas eram ministradas em três

horários, em alemão, português e inglês. As classes para negros, também

94
Ibidem, p. 124.
95
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. p. 60, grifo meu.
| 58

permaneciam. Do mesmo modo, a preocupação de Kalley para com os

pobres e os marginais era uma característica permanente de sua atividade

missionária. Como médico, Kalley mantinha a mesma maneira de atuação


que havia desenvolvido em Madeira, isto é, atuando juntamente como

médico e missionário, fazendo preces antes de administrar os

medicamentos e afim de que o seu paciente fosse curado. Tal atitude, ante
sua originalidade, mostrou-se bastante exitosa e proporcionou bons

resultados entre os que por ele eram atendidos. 96 Com este respeito é

válido mencionar o parecer de Cardoso acerca de como Kalley utilizava-se


da prática da medicina não apenas com um fim social, mas também como
uma forma de proselitismo religioso:

[...] é importante lembrar que a preocupação de Kalley não era


tão somente social, que ele utilizava o exercício da medicina
gratuita como forma de proselitismo religioso, atendendo a
todos que solicitassem sua presença, independente da religião.
Inclusive, dada sua atividade missionária, ele até procurava
inserir-se em ambientes preferencialmente não protestantes,
visando fazer novos prosélitos.97

Em 8 de setembro de 1857 um evento seria recebedor de destaque.

No culto doméstico realizado em sua residência em Petrópolis, seria

realizado o primeiro batismo por Kalley no Brasil, administrado sobre um


português de nome José Pereira de Souza Louro. É relevante citar que,

outra vez, não existe qualquer projeto de estabelecimento de uma igreja

96
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp.
123-125.
97
CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do
Brasil. p. 163.
| 59

decorrente deste batismo o que reforça a proposição de que o objetivo

essencial kalleiano era o estabelecimento de uma igreja genuinamente

brasileira.98
Durante o verão de 1858 uma funesta epidemia de febre amarela

arrasou todo o Rio de Janeiro, dizimando parte de sua população. Kalley

prontamente se aproveitaria do ensejo para prosseguir no


estabelecimento de sua causa. Passou a cuidar dos enfermos e a distribuir

folhetos informativos que buscavam reter tal surto e atuar de forma

preventiva. A postura de Kalley motivou a imprensa a dar-lhe relevantes


elogios.99

98
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 127.
99
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 140, 141.
| 60

Outro acontecimento que sucederia durante este ano seria notável.


Em 11 de julho de 1858 aconteceria um outro batismo, sobre Pedro

Nolasco de Andrade. Todavia, diferente do que acontecera anteriormente,

este seria o batismo do primeiro convertido brasileiro. A partir deste


primeiro batismo seria organizada a primeira igreja evangélica brasileira,

estabelecida com quatorze membros, dos quais um brasileiro e o restante

formado por britânicos e portugueses. Todavia, não tardaria muito para


que outros dois brasileiros fossem batizados: Phillip Nery e João Manuel

Gonçalves dos Santos. Este último, posteriormente, viria a ser o primeiro

pastor brasileiro da igreja recém fundada. Em princípio ela seria nomeada


simplesmente de “Igreja Evangélica”.100

Também é relevante questionarmos as causas que levaram Kalley a

não utilizar, por exemplo, a denominação “congregacional” na


nomenclatura das igrejas por ele fundadas, visto que, posteriormente este

seria o grupo que tais igrejas iriam compor. Ao invés disto, ele optou por
uma expressão mais genérica, isto é, “evangélica”, e de indicação
geográfica, “fluminense” e “pernambucana” (que viria a ser fundada em

1873).
Para Porto Filho as causas para tal escolha estavam diretamente

ligadas ao liberalismo que havia adentrado às igrejas congregacionais

americanas em fins do século XIX e princípio do século XX:

100
Ibidem, p. 141.
| 61

O nome congregacional, por causa do liberalismo das igrejas


americanas, no último quartel do século XIX (1876-1900) e
princípios do século XX, não gozava de boa reputação [...] Assim
é que elas, a partir das igrejas que fundou, no Rio em 1858, e em
Recife em 1873, chamavam-se simplesmente Evangélicas: Igreja
Evangélica Fluminense e Igreja Evangélica Pernambucana.101

Todavia, parece-nos ser mais coerente, propor que esta opção se

deu, sobretudo, pela característica indenominacional de Kalley, além do

seu desapego ao institucionalismo e sua distância doutrinária em relação


aos independentes de sua época. Forsyth concorda que este desapego

denominacional tenha sido determinante para a adoção de tal

nomenclatura:

A igreja foi chamada simplesmente de “Igreja Evangélica”; o


nome da região na qual estava localizada foi adicionado depois
– Fluminense [...] Era o desejo do Dr. Kalley que as igrejas não
propagassem as distinções denominacionais conhecidas nos
países que enviavam os missionários. Sua vontade era que todos
seguissem o exemplo da Igreja Evangélica Fluminense, ou seja,
apenas adicionar o nome da cidade ou bairro no qual a igreja
estivesse situada, ao simples título de Igreja Evangélica. Este
plano seguiu adiante na região do Recife e de São Paulo.102

Para Cardoso, o distanciamento do modelo congregacionalista

kalleiano das outras igrejas congregacionais contemporâneas que tinham


por base doutrinária a Confissões de Westminster e a Declaração de Savoy,

a prática do pedobatismo e a inexistência de presbitérios em sua

101
PORTO FILHO, Manoel da S. Congregacionalismo Brasileiro. Rio de Janeiro: UIECB,
1983, p. 23.
102
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 141.
| 62

organização eclesiástica, levaram Kalley a adotar tal nomenclatura: “A

divergência com os congregacionais da época, inclusive da igreja de origem

de Sarah, levara-o a utilizar a expressão simples de Igreja Evangélica”. 103

103
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 129.
| 63

O esperado não tardaria a acontecer, a Igreja Católica viria o

surgimento da Igreja Evangélica como uma profunda afronta, sobretudo

em se tratando de sua ala mais conservadora, isto é, os ultramontanos.


Acerca disto Cardoso conclui:

Com o estabelecimento da Igreja Evangélica, Kalley


expressamente insere-se na concorrência pelo monopólio da
gestão dos bens de salvação até então, desde a chegada dos
portugueses no Brasil, estabelecido como monopólio nas mãos
da igreja oficial. Sua pregação assim como dos demais membros
da igreja nascente, desafiava a estrutura de representações e
práticas do catolicismo romano, tanto na esfera da religiosidade
dominante como na esfera da religiosidade dominada,
afrontando claramente a classe sacerdotal e as tradições e
dogmas da igreja oficial.104

O estopim que daria início a uma repressão mais severa por parte da

Igreja Oficial seria deflagrado no início de 1859, a partir da conversão de

duas mulheres pertencentes à corte: D. Gabriella Augusta Carneiro Leão,


irmã do Marquês do Paraná e do Barão de Santa Maria, e sua filha

Henriqueta. O caso de pessoas humildes estarem abandonado a Religião

Católica já era motivo de preocupação, contudo o fato de pessoas


pertencentes às classes mais altas da sociedade tornarem-se prosélitos da

fé protestante era algo inadmissível.105

104
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 129.
105
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 143.
| 64

Os primeiros indícios de perseguição se deram na cidade de

Petrópolis. Um subdelegado recolheu a Bíblia e outros livros de uma

senhora que José Pereira passara a discipular a fim de fazer uma inspeção.
Em 26 de maio de 1859 a perseguição torna-se patente, Kalley foi proibido

de exercer a atividade de médico. Sem precipitações, ele tratou apenas de

solicitar a revalidação de seu diploma junto à Escola de Medicina do Rio


de Janeiro, fazendo sua defesa em 29 de agosto do mesmo ano.106

A propaganda anti-protestante se intensificou, folhetos passaram a

ser distribuídos entre os fiéis católicos durantes as missas com ataques aos
dissidentes. O Núncio Apostólico protestou veementemente contra a
atitude de tolerância que acontecera com os protestantes no Brasil. Em
decorrência a isto, em meados de 1859, o ministro das relações exteriores

do Brasil, Cons. J. N. da Silva Paranhos, intimou o representante

diplomático britânico no Brasil, Sr. Hon. William Stuart a apresentar-se em


seu gabinete. O Presidente da Província do Rio de Janeiro havia formulado

inúmeros argumentos contra Kalley, de que este pregava a mensagem

protestante aos seus pacientes e a outras pessoas da sociedade e que por


tal motivo havia sido expulso de Madeira e Trindade como um perturbador

da paz e que ante essas questões a Sra. Kalley lhe era conivente e

apoiadora.107
Em 1 de julho de 1859, Sr. H. W. Stuart assinou um despacho

direcionado a Kalley que trazia o seguinte enunciado:

106
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp.
132, 133.
107
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 143.
| 65

E, visto que o Sr. Paranhos, informando que a Tolerância Religiosa


garantida pela Constituição Brasileira não é tão plena que admita
a propaganda de doutrinas contrárias à religião do Estado, me
pede que vos aconselhe a retirar-vos de Petrópolis, ou a desistir
dos atos acima atribuídos a vós – fazei-me o obséquio de
mandar: em primeiro lugar, quaisquer esclarecimentos que
queirais oferecer a Sua Excelência, em justificação de vossa
conduta; e de declarar-me se desejais evitar no futuro atentar a
conversão de católicos romanos à fé protestante, durante a vossa
residência em Petrópolis. Também me será de proveito saber até
que ponto o Sr. Paranhos está corretamente informado sobre as
alegadas expulsões da Trindade e Madeira.108

Objetivando refutar as denúncias feitas e sustentar e dar

continuidade a suas atividades, Kalley elaborou onze quesitos que seriam

apreciados pelos três maiores juristas à época no Império, Dr. José Tomaz
Nabuco de Araújo, Dr. Urbano Sabino Pessoa de Melo e Dr. Caetano

Alberto Soares. Eis os quesitos:

1º Os cidadãos brasileiros adultos têm liberdade perfeita de


seguir a religião que quiserem?
2º Se algum deles consultar alguma pessoa que não segue a
Religião do Estado e essa pessoa lhe explica sua crença, será um
ou outro incurso em qualquer pena legal?
3º Será criminoso aquele que nesse caso aconselhar o cidadão
brasileiro a adotar uma religião que não seja a do Estado?
4º O caso será o mesmo, estado a pessoa em sua casa ou fora
dela, em público ou em particular?
5º Se um cidadão brasileiro unir-se a qualquer outra comunhão
que não seja a do Estado, será por isso um incurso que qualquer
pena, seja debaixo do título de apóstata, blasfemo ou outro
qualquer?
6º Os membros da Comunhão que o receberem (ou daquele
deles) serão por isso incursos em qualquer pena da lei?

108
In REILY, Duncan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. 3ª
edição. São Paulo: ASTE, 2003, p. 117.
| 66

7º É lícito aos estrangeiros seguir seu culto doméstico em suas


casas particulares?
8º Se algum dos seus amigos brasileiros quisesse estar presente
com eles, tornar-se-ia por isso o seu culto criminoso?
9º Se o culto estrangeiro estivesse em uma casa sem forma
alguma de templo, mas com a entrada franqueada àquele que
quiser – sem limitar-se aos amigos do morador – seria criminoso?
10º Um estrangeiro pode ser obrigado a sair do sítio onde mora,
ou ser deportado do país a vontade do Governo, sem culpa
formada?
11º O que se deve entender pelas palavras publicamente e
reuniões públicas, nos artigos 276 e 277 da Carta
Constitucional?109

O embate era precisamente de ordem jurídica. Até o referido

momento, a interpretação que se tinha acerca da Constituição do Império

era a de coibição de cultos acatólicos. Kalley via a necessidade de se


reinterpretar essa visão. A questão ia muito além do que a realização de

sua própria defesa. O que estava em litígio era um tema muito mais amplo,

isto é, o direito dos acatólicos, o direito de escolha religiosa no Brasil.


Todavia, tudo poderia acontecer. Cardoso relembra que:

[...] ao enviar os quesitos aos três jurisconsultos Kalley estava


lançando à sorte o destino da inserção legal do Protestantismo
no Brasil, e, ciente dos riscos envolvidos, ele escolheu nomes
reconhecidos na esfera jurídica e política do país. Os três eram
católicos e políticos conservadores e possuíam perfis adequados
a terem sua interpretação aceita pelo Governo.110

109
ROCHA, J. G. da Lembranças do Passado. Vol 1, pp. 94-96 apud CARDOSO, Douglas
Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do Brasil. pp. 155-156.
110
CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do
Brasil. pp. 156-157.
| 67

Entretanto, após duas semanas Kalley receberia o parecer da súmula

dos onze quesitos, e todos foram copiosamente favoráveis a seu pleito.

Tal decisão daria amparo não somente ao trabalho kalleiano, mas também
estabeleceriam a jurisprudência necessária para o estabelecimento do

protestantismo no Brasil, servindo como fonte para outros grupos que

passariam a adentrar no país.111


Kalley sairia do episódio extremamente fortalecido politicamente,

projetando-se, tanto entre os acatólicos como entre a elite brasileira. No

entanto, traria também sobre si o foco da Igreja Oficial, a reação não


tardaria a vir.
A pressão da Igreja Oficial faria com que muitos se afastassem dos
Kalley, até mesmo o pastor da Igreja Alemã de Petrópolis, Jacob Daniel

Hoffman, passou a evitá-los. Agravando a situação, o proprietário de

“Gernheim” solicitaria que desocupassem a casa.

111
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 134.
| 68

Uma primeira resposta de apoio aos Kalley surgiria quando alguns


membros da sociedade de Petrópolis produziram um abaixo assinado

contando com 244 assinaturas solicitando que permanecessem na

cidade.112
Logo um novo suporte, certamente o mais relevante, se colocaria ao

lado de Kalley e de Sarah. Em 28 de fevereiro de 1860, D. Pedro II visitaria

o casal, por Kalley estar doente, Sarah faria as cerimônias. Tal visita acena
para uma certa simpatia que o imperador nutria para com o casal de

missionários. A visita se repetiria em 6 de março. 113 A conseqüência a este

fato, foi o retorno da proximidade de muitos que se haviam afastado dos


Kalley, incluindo inúmeros políticos. Muitas outras personagens de

renome passariam a manter relações com o casal, fortalecendo sua

presença política no Império, entre eles o embaixador americano General


Watson Webb e o Príncipe Albert, Duque de Edimburgo. 114

Em 12 de agosto de 1859, aportaria no Rio de Janeiro o Rev. Ashbel


Green Simonton, enviado pela Junta de Missões Estrangeiras da Igreja
Presbiteriana.

A relação de Simonton e Kalley foi marca por altos e baixos. Desde


o início da chegada do missionário presbiteriano, Kalley mostrou

112
CARDOSO, Douglas Nassif. Sarah Kalley: missionária pioneira da evangelização do
Brasil. pp. 159, 160.
113
Ibidem, pp. 169- 173.
114
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 146, 147.
| 69

desagrado por sua escolha territorial, visto que o mesmo estivesse

ocupando uma área em que já militava há tempos. Simonton condenaria

a atitude de Kalley que, posteriormente, reconheceria o erro, propondo a


reconciliação entre ambos. Futuramente, Kalley ofereceria orientação

estratégica e jurídica a Simonton, valendo-se da jurisprudência granjeada

pela súmula dos três juristas.


Outro momento de rixa entre Kalley e os presbiterianos deu-se em

julho de 1867, desta vez envolvendo outro missionário, Blackford, foi em

torna da solicitação que este último havia feito a fim de incluir alguns de
seus hinos em uma coleção que pretendia lançar, Kalley negou.115
O trabalho de colportagem crescia a passos largos e novos
colportores eram admitidos no serviço. Durante o período de 1855 a 1860

foram distribuídos cerca de 20 mil exemplares das Escrituras, incluindo

Bíblias e Novos Testamentos.


Diante da inexistência de leis que regulassem o casamento entre

acatólicos, Kalley produziu um tipo de contrato casamento que seria

utilizado até fossem estabelecidas as leis concernentes a isto.116


Diante de tal desenvolvimento da propaganda protestante, as

perseguições se tornaram patentes. A opressão fez-se pública, sobretudo

a partir do fim de 1860. As prisões se tornaram recorrentes, as reuniões


deviam ser comunicadas antecipadamente à polícia, muitos eram

destituídos de seus empregos. Todavia, o crescimento era proporcional à

115
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp.
136-139.
116
Ibidem, p. 141.
| 70

perseguição. É relevante citar a tática kalleiana de recrutar como

colportores àqueles que eram exonerados de seus empregos mantendo a

estima do grupo em alta.117

117
Ibidem, pp. 141, 142.
| 71

Apesar das intensas perseguições, em 1861 seria publicado o

primeiro hinário protestante brasileiro intitulado Salmos e Hinos, contando

de 50 composições, sendo 18 salmos e 32 hinos comuns. Sarah compunha


hinos constantemente e já por volta de 1865, o livro atingiu o total de 83

cânticos; 25 salmos e 58 hinos. Fortuitamente, estas primeiras edições

foram completadas com a publicação de um livro de músicas, contando


de 76 melodias distintas. Posteriormente, edições sucessivas de livros com

letra e música seriam publicadas. Sarah ensinava todos os hinos aos seus

fiéis e também ministrava aulas de música nas noites de domingo. 118


Em 11 de setembro de 1861 os acatólicos obteriam uma

importantíssima conquista, seria permitido e assegurado o casamento de

pessoas que não professassem a religião do estado. Cardoso destaca que


neste cenário de conquista de direitos dos acatólicos estavam envolvidos

maçons, liberais, positivistas, jansenistas e galicanistas que, apensar de


terem pensamentos destoantes entre si e distinto dos protestantes, tinham

um inimigo em comum, isto é, a Igreja Oficial.119


A organização da igreja despontou naturalmente. A partir de 1862
as reuniões passaram a ser registradas em livros de atas. Por estar enfermo,

havia a necessidade de Kalley empreender viagem, manifestando a

necessidade de estabelecer líderes e não apenas isto, mas de encontrar


um real substituto para ele. Kalley optaria, definitivamente, pela

118
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 161, 162.
119
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 142.
| 72

organização eclesiástica congregacional ou independente, onde os vários

assuntos seriam discutidos em seções e decididos de forma democrática.

Em 1º de agosto de 1862 foram eleitos quatro presbíteros que atuariam


como líderes na congregação (posteriormente em 30 de setembro de 1864

também seriam eleitos diáconos120).

Em 8 de setembro Sarah e Kalley viajariam rumo à Europa e Palestina


retornando apenas em 3 de setembro de 1863. Um mês após o seu

retorno, em 2 de outubro de 1863, atendendo ao decreto nº 3060 de 17

de abril de 1863 que normatizava o registro da eleição de ministros de


religiões toleradas pelo Império tornando possível, por exemplo, a
celebração de casamentos com efeito civil, Kalley seria eleito (oficialmente)
pastor,121 e a igreja, reunida em assembléia, deliberou formalmente que o

nome da mesma passaria a ser Igreja Evangélica Fluminense. 122 O

matrimônio entre Francisco de Souza Jardim e Bárbara de Jesus Jardim


seria o primeiro celebrado após a normatização do casamento dos

acatólicos.123 Neste mesmo decreto, foi providenciado que uma parte de

cada cemitério fosse reservada para o enterro dos acatólicos, visto que,
até o presente momento até o presente momento o enterro de brasileiros

que não professavam a religião do Império era feito em solo não

consagrado, reservado aos suicidas e criminosos.124

120
Ibidem, p. 145.
121
Ibidem, pp. 143, 144.
122
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 170.
123
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 116.
124
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 170.
| 73

Um acontecimento que merece menção ocorreu em novembro de

1865, quando um senhor de escravos, que era membro da igreja, de nome

Bernardino de Oliveira Rameiro, receberia uma forte exortação por parte


de Kalley. Reily reescreve a resposta, segue apenas um trecho:

[...] O que Deus dá ao escravo é para ser usado por ele, em seu
proveito. É escravo? Ninguém tem o direito de fazê-lo escravo,
roubando-lhe a liberdade pessoal, negociando com uma criatura
humana, como se fosse uma máquina ou um objeto!
Cada um tem de dar contas ao Altíssimo Juiz do que pratica,
quando obriga um seu semelhante a trabalhar, contra a vontade
e sem salários e sob ameaças e sofrimentos diversos, para produzir
em seu favor (do senhor, que o maltrata injustamente) bons
serviços e excelentes lucros! Isto é um ROUBO VIOLENTO dos
dons que o Criador concedeu ao pobre estrangeiro, que não é
uma criatura diferente do senhor que o comprou!125

125
ROCHA, J. G. da Lembranças do Passado. II, 80-82 apud REILY, Duncan Alexander.
História documental do protestantismo no Brasil. p. 122. Informações adicionais
presentes na nota de fim: "Na sessão extraordinária, do dia 20/12/1865, o Sr.
Bernardino foi excluído. Na mesma sessão 'são lidas duas cartas de liberdade,
concedidas pelo Sr. João Severo a Joaquim e a Pedro'. (Ibid., p. 85). No documento
acima, os grifos e maiúsculas obedecem o texto da obra citada".
| 74

Kalley vinha buscando encontrar um substituto para o seu lugar. Para

tal, havia contatado o Rev. Richard Holden para este fim. Holden assumiria

o pastorado auxiliar da igreja em 26 de fevereiro de 1865. 126


Posteriormente, devido, sobretudo, a discordâncias teológicas entre Kalley

e Holden, este último renunciaria o seu posto de pastor auxiliar da Igreja

Evangélica Fluminense em 2 de Julho de 1872.127


Em 1868, um colporter de nome Manoel José da Silva Vianna,

diácono da Igreja Fluminense, seria enviado por Kalley ao Recife. Valendo-

se do método de venda de livros de porta em porta, tornou-se um pioneiro


na introdução das Escrituras em Pernambuco e no Nordeste. Além da

venda de livros, Vianna começou a desenvolver um trabalho missionário.

Ao passo que surgiram alguns convertidos, voltou rapidamente ao Rio de


Janeiro a fim de obter apoio para se fixar definitivamente no Recife com

sua família.
Ao passo que desenvolvia o seu trabalho de colporter e de

missionário, também o rodeavam a perseguição e a violência. Forsyth


descreve as agruras que lhe sobrevieram:

As multidões proferiam insultos contra ele, agarravam sua bolsa


e espalhavam seus livros no chão e, então, os destruíam, pisando
sobre eles e atirando-os no meio da sujeira. Sob a instigação do
padre local, a polícia ainda confiscou todos os livros que lhe
restaram, passaram a fazer vistas grossas à violência da multidão
e até encarceram o intrépido vendedor. As pessoas foram

126
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 150.
127
Ibidem, pp. 151-153.
| 75

proibidas, sob pena de excomunhão, de lerem a Bíblia ou até


mesmo de possuírem uma.128

Em 1873, Kalley chegaria a visitar a pequena congregação que ali se


havia estabelecido, a fim de resolver alguns problemas ligados à

perseguição e que estava impedindo o funcionamento da congregação.


Em 19 de outubro de 1873 Kalley organizaria a congregação em igreja, a

Igreja Evangélica Pernambucana, primeira igreja evangélica de nativos no

nordeste brasileiro e a segunda no país.129


Ainda estava pendente a questão referente à sucessão ministerial. A

solução encontrada seria caseira. João Manuel Gonçalves dos Santos seria

enviado ao Colégio de Pastores de Charles H. Spurgeon, com o intuito de


se preparar para assumir o posto de Kalley. Em 31 de dezembro de 1875

ele seria eleito pastor auxiliar.130

A última contribuição de Kalley à Igreja Evangélica foi o


desenvolvimento de uma síntese doutrinária intitulada como Breve

Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo, aprovada em julho

de 1876131, composta por 28 artigos e que comporia a base doutrinária


das Igrejas Congregacionais do Brasil. Em 2 de julho Kalley celebraria o seu

último culto e oito dias depois partiria em sua viagem de retorno à

Escócia.132

128
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 205.
129
Ibidem, pp. 208-210.
130
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. pp.
153, 154.
131
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 218.
132
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 154.
| 76

Algum tempo depois, escrevendo ao Pr. James Fanstone, Kalley

descreveria a formar de como ele enxergava, as igrejas por ele fundadas:

A Igreja Evangélica Pernambucana não pertence a nenhuma


denominação estrangeira: não é presbiteriana, porque esta
considera válido o batismo romano e pratica o batismo de
crianças; aproxima-se mais da denominação batista; mas prefere
ter a liberdade de admitir à comunhão qualquer crente fiel e
obediente ao senhor, e que siga em seus santos passos. A Igreja
Evangélica Fluminense é, pois, na verdade, uma igreja evangélica
brasileira.133

É impossível não destacar a segurança que Kalley detém acerca da

brasilidade das igrejas por ele fundadas, tal como fora o seu objetivo

desde o início.
Kalley faleceu em Edimburgo em 17 de janeiro de 1888134. Sua

esposa Sarah, por sua vez, faleceu em 08 de agosto de 1907, também em

Edimburgo, sendo sepultada ao lado de seu falecido esposo.135


Penso que um último apontamento que deva ser feito, está em torno

da visibilidade que tem sido concedida a Kalley, provavelmente em


decorrência do tipo de relacionamento que este nutriu com as sociedades
missionárias.

133
ROCHA, J. G. da Lembranças do Passado. Vol 4, p. 251 apud CARDOSO, Douglas
Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 128.
134
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 238.
135
Ibidem, p. 246.
| 77

Concordamos com outros autores que, o fato de Kalley não ter sido

enviado ou estar associado a nenhuma sociedade missionária, constitui-se

como fator relevante para sua limitada visibilidade no cenário missiológico


em geral. Aparentemente, as sociedades missionárias realizavam uma

intensa atividade propagandista em torno dos seus missionários

objetivando, sobretudo, manter os seus apoiadores e atingir novos


públicos de mantenedores.

Para William B. Forsyth as causas do Dr. Kalley ter se mantido como

um desconhecido para os historiadores das missões levando em conta


que, outros missionários contemporâneos dele, serem homens de larga
estima, a exemplo de William Carey, Robert Morrison, Adoniran Judson,
John Williams, Robert Moffat e David Livingstone, podem ser

compreendidas a partir de três razões principais136: Primeiro, os campos

missionários de atuação de Kalley (Ilha da Madeira e Brasil) eram territórios


do Império Português e, obviamente, áreas de atuação da Igreja Católica

Romana, sendo, portanto, cristãos. Diferentemente, as áreas de atuação

dos missionários anteriormente citados (Índia, China, Birmânia, Polinésia e


África) eram tidas como pagãs, idólatras e trevosas. O segundo motivo

seria exatamente o fato de Kalley ser independente não representando

nenhuma igreja ou sociedade missionária. Nas palavras de Forsyth: “Ele,


portanto, não teve a publicidade que uma sociedade missionária podia lhe

ter dado” . A terceira razão estaria relacionada à própria personalidade


137

de Kalley, visto ser ele um homem simples, recatado e discreto.

136
FORSYTH, William B. Jornada no Império. pp. 11,12.
137
Ibidem, p. 12.
| 78

Cardoso corrobora com esta hipótese ao certificar que:

A característica independente do médico-missionário escocês


Robert Reid Kalley [...] totalmente desvinculado de igrejas e
associações missionárias estrangeiras, fizeram com que a
divulgação de sua obra se tornasse limitada, havendo poucos
livros que abordam sua biografia e descrevem a importância de
seus feitos.138

O próprio Kalley desaprovava esta atividade midiática que era

costumeiramente realizada pelas sociedades missionárias, visto que a


discrição e a prudência eram a marca principal de sua atuação missionária.

Diante das necessidades tais agências se viam compelidas a difundirem

certas notícias, que no parecer de Kalley, nem sempre eram oportunas 139.
Tal reprovação é claramente percebida em correspondência que o mesmo

enviou a Francisco da Gama em 2 de junho de 1858: “Em geral, eu não

gosto do serviço das sociedades. Publicam nos jornais o que se faz, e isso é
chamar a atenção dos inimigos das Escrituras Sagradas ao que se está se

fazendo”140. Forsyth fortalece esta questão ao afirmar:

Ele sabia que a Sociedade Bíblica, inevitavelmente, precisaria


fazer certa publicidade a respeito das atividades de seus agentes
e, ao fazer isso num país como o Brasil, onde a pregação do
evangelho certamente encontraria forte oposição, colocaria em
risco tanto o trabalho quanto os trabalhadores [...]. 141

138
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 13.
139
Ibidem, p. 140.
140
ROCHA, J. G. da Lembranças do Passado. Vol 1, p.72 apud CARDOSO, Douglas
Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. p. 140.
141
FORSYTH, William B. Jornada no Império. p. 101.
| 79

Parece-nos coerente relembrar a obra clássica de Peter Burker A

fabricação do Rei, onde o mesmo discorre acerca das pretensões de se criar

uma imagem ideal de Luís XIV, imagem esta, pomposa e majestosa, que
deveria ser exposta aos seus súditos. Em O que é história cultural?, tratando

desta mesma questão, Burker conclui que: “[...] o rei contribuía para a

criação de uma imagem ideal de si mesmo que ajudava a manter o poder


da monarquia”142.

Cremos que seja apropriado, a título comparativo, propor que as

sociedades missionárias atuavam de forma semelhante (feitas todas as


ressalvas possíveis), objetivando criar uma imagem ideal do missionário
que seria largamente exposta aos seus colaboradores, possibilitando desta
forma a manutenção das próprias sociedades bem como dos missionários.

Tem-se, portanto, que desprovido desta construção imagética por

parte das sociedades, Kalley foi relegado a um plano secundário entre os


missionários de sua época, tendo as suas realizações recebido um

destaque menor.

142
BURKE, Peter. O que é história cultural? 2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008. p. 115.
| 80

Ao perscrutarmos a vida do Dr. Robert Kalley e de sua esposa Sarah,


nos deparamos sobre um cenário extremamente atraente e cativante.

Fitando os olhos sobre os processos de formação e conversão de

Kalley, temos certos indícios que nos auxiliam a compreender a sua quase
“repulsa” ao institucionalismo religioso.

A sua conversão, fora dos lugares sagrados e as suas desventuras

junto à Igreja da Escócia enquanto desejava ser enviado como missionário


à China, o fizeram construir um tipo de ortodoxia que se relacionava,

sobretudo, com a experiência individual de fé, e minimamente com a igreja

enquanto instituição.
A proposição de Cardoso ao dispô-lo como um profeta de fé,

servindo-se da tese de Bourdieu, amoldou-se perfeitamente ao panorama

que se presenciara durante a inserção do protestantismo em terras


brasileiras.

O cenário de crise, como a que vivia a religião oficial, possibilitou o

surgimento do empresário independente de salvação, que através da sua


atuação abriria a concorrência do mercado dos bens salvíficos,

possibilitando à população brasileira uma nova escolha em questões de

crença.
A resistência de Kalley frente às perseguições sofridas na Ilha da

Madeira lhe daria a maturidade necessária para que desenvolvesse um

trabalho consistente e permanente no Brasil, trabalho este, que era o que


Kalley ambicionava desde o momento em que aportou neste torrão.
| 81

O grande foco kalleiano era o de estabelecer uma igreja

genuinamente brasileira, formada por nativos, e não uma igreja

transplantada ou estrangeira. Para tal, esperou que o primeiro convertido


brasileiro fosse batizado para dar início à organização eclesial da Igreja

Evangélica.

Valendo-se de várias frentes de atuação, o pensamento kalleiano foi


disseminado entre as muitas esferas da sociedade, desde a corte até a

“senzala”. Aproveitando-se da atividade de médico, fez dela uma

ferramenta que seria utilizada como forma de proselitismo religioso.


As conquistas sociais logradas pelos acatólicos a partir da
contribuição do trabalho kalleiano também não devem ser esquecidos: a
liberdade de pensamento e crença, a celebração do casamento com efeito

civil, o enterro em cemitérios públicos.

A contribuição de Sarah, sobretudo na área da musicalidade da


igreja evangélica brasileira é indelével. Seus cânticos têm constituído um

dos mais belos hinários protestantes publicados em português, Os Salmos

e Hinos, e têm sido largamente utilizados, tanto em outros livros de


cânticos, como em outras denominações, além das congregacionalistas.

Por fim, é válido citar que a obra kalleiana é célebre, pois por meio

dela foram estabelecidas as duas primeiras igrejas evangélicas brasileiras,


todavia, a mesma tem permanecido obscurecida e relegada para muitos.

Suspeitamos que o afastamento de Kalley das Sociedades Missionárias

seja fator decisivo para a compreensão desta questão, visto que, era praxe
de tais sociedades uma intensa atividade propagandística em torno de

seus missionários. Desprovido de toda esta divulgação, a obra kalleiana


| 82

seria disposta num plano secundário entre as outras de natureza

missionária.
| 83

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