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CABIDO. A origem deste nome reside nos «capítu-


los» das regras monásticas ou canónicas que eram li-
dos perante a assembleia reunida para tal fim. Mais
tarde, a palavra estendeu-se à reunião em que tal lei-
tura era feita e ao conjunto dos membros da comuni-
dade, acabando por abranger todas as suas reuniões
solenes. 1. Capítulos de religiosos: Nos mosteiros,
mento da regra e a correcção dos erros detectados,
a preservação da paz e da caridade entre os irmãos,
a tomada de medidas relativas ao temporal e a pro-
mulgação de estatutos. Com o aparecimento dos
Dominicanos*, o capítulo geral ganhou um maior
protagonismo, e viu-se dotado de membros eleitos
para a ocasião, os definidores, com plenos poderes
foi o próprio São Bento que impôs a leitura da regra para definir, organizar, estatuir e punir, perante os
aos seus seguidores, de forma a estes não poderem quais os priores e o próprio mestre deviam inclinar-
invocar a ignorância como desculpa para as suas fal- -se. Estas inovações, adoptadas pelas novas ordens
tas. De início, é provável que ela se realizasse no re- religiosas, geraram nas antigas um reforço da autori-
feitório, na igreja ou no claustro, já que nem as dade dos capítulos gerais. Contudo, as dificuldades
regras monásticas nem os planos das abadias pre- inerentes à organização de tais reuniões e as enormes
viam um edifício separado para o capitulum. Só no despesas envolvidas provocaram uma diminuição da
princípio do século ix surge a primeira referência a sua frequência, levando-as a alternarem com os capí-
um local destinado especificamente à reunião diária tulos provinciais, impostos pelo Concílio de Latrão
dos monges. Esta devia realizar-se após a hora de de 1215, para exercer um controlo mais minucioso e
prima no Verão e de tercia no Inverno, e constava regular das casas religiosas situadas num âmbito es-
de cerimónias litúrgicas (leitura do martirológio, da pacial restrito: a província monástica ou eclesiástica.
regra, do necrológio, do acto de fundação; recitação De início, congregavam não só os abades e priores
de salmos; absolvição dos defuntos; encomendação da ordem em questão, mas elementos de outras, em
dos benfeitores vivos) a que se seguiam a distribui- particular da cisterciense, cujas reuniões deste tipo
ção das tarefas quotidianas e a reprimenda ou impo- haviam sido tomadas como modelo. Nelas, elegiam-
sição de penas aos irmãos pecadores, após audição -se visitadores e corrigiam-se as falhas detectadas.
das acusações e das defesas (capítulo de culpas). Hoje em dia, o papel dos capítulos gerais, reunidos
A eleição dos abades e dos vigários capitulares (que de acordo com uma periodicidade que varia con-
governavam os mosteiros em caso de morte ou re- soante a ordem ou congregação, continua a ser de
núncia daqueles), a admissão de noviços e professos, eleger o superior-geral, os conselheiros e os ofi-
o acolhimento de visitantes ilustres, a concessão de ciais, fiscalizar o funcionamento dos mosteiros no
bens do património monástico a terceiros e muitos espiritual e no temporal, promover a disciplina e a
outros actos de gestão corrente ou extraordinária exi- observância da regra, julgar os casos que lhes são
giam ainda a reunião dos frades em capítulos desig- apresentados e fazer regulamentos. 2. Cabidos de
nados de protocolares ou administrativos. Para além cónegos: Nos tempos mais recuados, o grupo que
de todos estes, genericamente intitulados capítulos reunia os colaboradores e conselheiros do bispo ti-
conventuais, existiam outros que congregavam não já nha o nome de presbyterium. Foi no Concílio de
os membros de uma só comunidade, mas os superiores Verneuil, em 755, que pela primeira vez se usou a
de diversos estabelecimentos pertencentes à mesma or- palavra capitulum, para designar quer o conjunto dos
dem. Foi entre os frades bernardos, dotados de uma cónegos, quer a reunião em que estes ouviam a leitu-
infinidade de casas-mãe, filiais e priorados, que pri- ra de um passo da regra. Com efeito, nessa época
meiro se fez sentir a necessidade de criar um em- procurava-se estender ao clero da catedral os benefí-
brião de governo centralizado sob a forma de uma cios da vida em comum vivida pelos cenobitas, ideal
assembleia anual de abades com autoridade sobre o sempre perseguido mas nunca plenamente alcançado
conjunto das fundações cistercienses, o capítulo ge- desde as experiências pioneiras dos bispos Eusébio de
ral. Instituído em 1119 pela carta caritatis, o novo Verceil e Agostinho de Hipona. Assim, a Regula ca-
órgão de gestão recebeu o favor do papa e esten- nonicorum redigida por São Crodegango, bispo de
deu-se em breve a outras ordens. Entre as suas Metz de 754 a 766, e inspirada pelos preceitos benedi-
atribuições, contava-se a fiscalização do cumpri- tinos*, previa a assistência quotidiana dos cónegos ao

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capítulo e a sua residência num claustro, embora não porcionários (chamados de meios cónegos, terce-
os impedisse de conservar e gerir bens individuais. nários ou quartanários por disporem apenas de 1/2,
Nos cabidos do Ocidente peninsular, contudo, nem es- 1/3 ou 1/4 de uma prebenda), embora estivessem
ta regra nem a saída do Concílio de Aix de 816 pare- submetidos às mesmas obrigações que os anterio-
cem ter tido muito sucesso - ao contrário do que res, não tinham voz no capítulo, não dispondo de
aconteceu nos de cidades como Gerona, Barcelona ou qualquer poder de decisão no tocante à vida e aos
Urgel, que seguiram a influência ultrapirenaica - , negócios da comunidade. Daí acções como as dos
mantendo-se neles antigos costumes dos tempos visi- porcionários de Coimbra, que pugnaram durante
góticos. O século x conheceu uma decadência das séculos pela sua elevação ao estatuto de cónegos,
práticas comunitárias, mas a centúria seguinte viu nas- luta que se saldou, em 1778, pela sua supressão e
cer um forte impulso de regresso a uma vida em co- substituição por beneficiados com estatuto próprio
mum mais austera, organizada segundo a Regra de bem definido. O número de cónegos, particular
Santo Agostinho, que impunha a renúncia a toda e a cada instituição, variou ao longo dos tempos,
qualquer propriedade pessoal. Este movimento canó- acompanhando as vicissitudes dos rendimentos ca-
nico não tocou só as catedrais mas também outras pitulares. Em Braga, por exemplo, foi fixado em
igrejas urbanas (v. C O L E G I A D A S ) e até mesmo agrupa- quarenta em 1145, mas cem anos mais tarde quatro
mentos de leigos com fins assistenciais, que acaba- prebendas foram extintas e transformadas em doze
ram por converter-se em ordens (v. H O S P I T A L Á R I O S ) . tercenarias; em 1433, devido à crise económica,
Formaram-se então congregações, de que uma das estas foram reduzidas para oito e as conezias para
mais famosas foi a de São Rufo de Avinhão, à qual trinta, sendo em 1436 suprimidas mais duas. Com
pertencia o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra o advento do Liberalismo*, que trouxe consigo a
(v. C Ó N E G O S R E G U L A R E S DE SANTA CRUZ). Ainda em abolição dos dízimos e dos direitos senhoriais, os
Portugal, os cabidos das sés restauradas ou criadas du- rendimentos dos capitulares sofreram um rude gol-
rante a Reconquista adoptaram as regras de São Gre- pe, agravado ainda com a proclamação da Repúbli-
gório e Santo Agostinho, e viveram em comunidade ca (v. D E S A M O R T I Z A Ç Ã O ) . O S cónegos, tal como os
com os seus bispos num primeiro tempo. Depois, em outros clérigos, passaram a receber pensões do Es-
datas variáveis segundo os lugares (1145 em Braga, tado e o seu número foi declinando. Hoje em dia,
1191 em Lisboa, 1210 em Coimbra, 1260 na Guar- os cabidos são constituídos por poucos membros,
da), efectuou-se a separação dos bens nas mesas devido à falta de vocações e à escassez de recursos.
episcopal e capitular, e cessou a vida comunitária, Nas dioceses mais recentes, aliás, nem sequer exis-
passando os cónegos a residir em casas individuais e tem cabidos, sendo os bispos auxiliados por corpos
a dispor de prebendas separadas, para além dos seus de consultores diocesanos escolhidos por eles en-
bens próprios. 3. Composição dos cabidos: Eram tre os sacerdotes mais piedosos, prudentes e co-
membros de pleno direito dos cabidos os digni- nhecedores da doutrina. 4. Funções dos cabidos:
tários (V. D I G N I D A D E S E C L E S I Á S T I C A S ) e OS C Ó n e g O S A principal função dos cabidos era de tipo litúrgi-
prebendados de ordens maiores; os minoristas e os co, cabendo-lhes assegurar o culto solene nas cate-
drais, através da participação quotidiana dos seus
membros nas horas canónicas e na missa capitular.
Eram nisso ajudados, quando não substituídos, por
semiprebendados, assim como capelães, coreiros,
icolimos e outros clérigos inferiores, cujo salário
consistia numa parte dos proventos dos ausentes
ou em recursos vindos de fundações piedosas. Os
cabidos catedrais deviam ainda coadjuvar os bis-
pos no governo das dioceses, prestando-lhes con-
selho e assistência, fornecendo-lhes os seus princi-
pais colaboradores, os arcediagos, e exercendo
mesmo esse governo em caso de vacância da sé,
através de vigários por eles nomeados. Teorica-
mente, também lhes competia a escolha dos bis-
pos, mas raras vezes puderam exercê-la livremen-
te, devido às pressões dos reis e à necessidade de
confirmação papal para as suas decisões. Por fim,
os cabidos tinham ainda funções assistenciais e de
ensino, tendo as escolas capitulares desempenhado
um importante papel no período anterior à criação
do estudo geral.
ANA MARIA S. A. RODRIGUES

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boa, 1988. M A R T I N S , A. A. - O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, sé-
culos xu-xv: História e instituição. 2 vol. Dissertação de doutoramento légio de São Paulo de Coimbra, dado como presente
apresentada à FLUL em 1966. M I S S E R E Y , L.-R. - Chapitres de Reli- na ilha de Santiago de 1576 a 1580 (ou 1587?). 5)
gieux. In DICTIONNAIRE de Droit Canonique. Paris, 1942, vol. 3, D. Frei Pedro Brandão, carmelita, governou a dioce-
p. 596-610. N E T O , V . M . P. - O Estado, a Igreja e a sociedade em Por-
tugal. 1832-1911. Dissertação de doutoramento apresentada à FLUC se durante cinco anos, de 1589 a 1594, seguindo de-
em 1996. SILVA, M . J. C.-R. L. - O Costumeiro de Pombeiro: Uma co- pois para Lisboa, onde se finou em 1607. 6) No mes-
munidade beneditina no século xm. Dissertação de mestrado apresenta- mo ano terá sido eleito D. Luís de Miranda Pereira,
da à FLUP em 1995. T O R Q U E B I A U , P. - Chanoines; Chapitre de chanoi-
nes. In DICTIONNAIRE de Droit Canonique. Paris, 1942, vol. 3, clérigo secular, chegado a Santiago em 1609 e fale-
p. 471-488, 530-595. cido aí passado um mês. 7) D. Frei Sebastião da As-
censão, dominicano, eleito em 1611, estruturou o ca-
CABO VERDE. O cabo Verde da costa ocidental afri- bido, visitou as ilhas e, segundo alguns asseveram,
cana, na moderna área da capital senegalesa, em- também a costa da Guiné, onde teria morrido em
prestou o nome ao arquipélago que lhe fica mais ou 1614, o que não deve corresponder à verdade, pois
menos em frente, em pleno Atlântico, cujas ilhas fo- parece certa a sua morte em Cabo Verde a 18 de
ram descobertas pelos fins da década de 1450 e co- Março de 1614. D. Frei António do Anjo, eleito em
meçadas a povoar na seguinte. Os freires da Ordem 1619, recusou a mitra e morreu no mesmo ano. 8)
de Cristo estavam oficialmente encarregados da D. Manuel Afonso da Guerra, clérigo secular, tentou
evangelização dos territórios ultramarinos descober- governar a diocese por um Frei Diogo, mas o rei
tos pelos Portugueses, mas como eram poucos supri- D. Filipe mandou recolhê-lo ao bispado e nele en-
ram-nos na prática outros sacerdotes, sobretudo fran- trou em 1622 e ali faleceu em 1624. 9) D. Frei Lou-
ciscanos* e dominicanos*. De facto, dão-se como renço Garro, da Ordem de Cristo, chegou à diocese
primeiros missionários de Cabo Verde os francisca- em 1627 e nela faleceu em 1646, depois de uma vida
nos Frei Rogério e Frei Jaime, ali chegados em 1462 muito virtuosa e cheia de caridade para com os ne-
com os primeiros povoadores. O primeiro foi assas- cessitados. 10) Por causa da rotura de relações diplo-
sinado às mãos de Nóli a 28 de Janeiro de 1466 em máticas entre Portugal e a cúria romana, a diocese
Santiago. Por outro lado, vemos a infanta D. Brites, permaneceria sem bispo nas próximas duas déca-
em 1473, a indicar Frei João, frade de São Domin- das e tal, e D. Frei Francisco de São Diogo, eleito
gos, para vigário da ilha de Santiago de Cabo Verde. em 1668, e D. Leonardo de Santo Agostinho, eleito em
A documentação da época refere-se a capelães e a 1670, recusaram o cargo, de modo que o sucessor de
vigários em serviço naquelas paragens, de clima D. Lourenço Garro foi D. Frei Fabião dos Reis, car-
bem mais ameno do que o da terra firme da Guiné* e melita, chegado em Maio de 1673 e falecido no ano
beneficiando do facto de serem ilhas desabitadas na seguinte de 1674. 11) D. Frei António de São Dioní-
hora da sua descoberta. Sendo os povoadores todos sio, da Ordem dos Frades Menores, governou a dio-
baptizados e exprimindo-se em português, inclusive cese de 1676 a 1684. 12) D. Frei Vitoriano Portuense
os escravos levados da Guiné para ali, pois na época trabalhou muito e bem de 1687 a 1705 (ou 1706?),
um cristão não compreendia ter debaixo de telha ou tendo visitado todas as ilhas do arquipélago e duas
ao seu serviço alguém que não professasse a sua fé, vezes a Guiné, onde converteu o rei Becampolo Có,
Cabo Verde foi sempre católico e com grande percen- de Bissau, e seus filhos. 13) D. Frei Francisco de
tagem de alfabetizados. Não surpreende, por isso, que Santo Agostinho, franciscano da Terceira Ordem Re-
a Santa Sé* tenha cedido à proposta do rei de Portu- gular, chegou à diocese no fim de 1709 e nela mor-
gal D. João III, feita a 3 de Novembro de 1532, de reu, na sua Quinta da Trindade, em 1719, roído de
ser criada a diocese de Santiago de Cabo Verde. Cle- desgostos por desavenças com o cabido, ainda que
mente VII assinou a bula da sua criação no dia 31 de em 1718 conseguisse evitar uma guerra civil, prepa-
Janeiro de 1533 ao mesmo tempo que para ela no- rada pelas forças do governador contra as forças do
meava D. Braz Neto como seu primeiro bispo. Co- capitão-mor da Praia. 14) D. Frei José de Santa Ma-
meçou por ser sufragânea da arquidiocese do Fun- ria, franciscano do Seminário Apostólico de Varato-
chal e, depois de 1539, de Lisboa. Na Ribeira Grande, jo, foi um religioso de muita virtude e um destemido
muito antes da criação da diocese que ali seria sedea- prelado na defesa dos direitos humanos dos escra-
da, estacionava um vigário com dotação para o seu vos, que chegou à ilha de Santiago em Novembro de
sustento. 1. Bispos de Cabo Verde: 1)0 primeiro foi 1721 e cegou em Farim, quando visitava a Guiné em
o citado D. Braz Neto, clérigo secular, que andou em 1732, o que lhe apressou o regresso à sede da dio-
missões diplomáticas e faleceu em 1538, sem ir ao cese, o que não conseguiu, pois o barco que o trans-
bispado. 2) O mesmo sucedeu, ao que parece, ao se- portava foi ter à Bahia (Brasil), donde rumou para
gundo, D. João Parvi ou de Évora, clérigo secular e Lisboa e se quedou no convento franciscano de Xa-
francês de nação, eleito em 1540 e falecido em 1546. bregas em 1735, donde terá transitado para o con-
3) O terceiro, D. Frei Francisco da Cruz, cónego re- vento de Varatojo, para ali morrer em 1736. 15)
grante de Santo Agostinho, eleito em 1554, gover- D. Frei João de Faro, franciscano da Província da
nou com zelo a diocese até 1574 (?), tendo arranjado Piedade, eleito em 1738 e naufragado em 1741 em

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cultura do clero, e ali morreu em 1798. 20) D. Frei


Silvestre de Maria Santíssima, franciscano da Pro-
víncia da Arrábida, chegado à ilha de São Nicolau
em 1803, ali faleceu dez anos depois, sem nunca dali
ter saído para visitar a diocese. 21) D. Frei Jerónimo
do Barco Soledade, franciscano da Província da So-
ledade, chegado à diocese em 1821, logo visitou as
ilhas do Fogo, Brava, Maio, Boavista, São Nicolau,
Santo Antão e Santiago e mandou reedificar o palá-
cio episcopal e, junto dele, o seminário, que concluiu
mas não abriu, por em 1826 ter sido eleito deputado
e em 1827 se ter retirado para Lisboa, vindo a renun-
ciar em 1829 ou 1830 ao bispado; o padre Joaquim
da Silva governou o bispado em 1834, mas nomea-
ram-no deputado e morreu em 1835 quando perora-
va nas Cortes. 22) D. João Henriques Moniz, exilado
político na ilha Brava, sucedeu ao anterior no gover-
no da diocese e elegeram-no bispo em 1841, sendo
sagrado em Lisboa em 1846, indo no ano seguinte
residir na Praia da ilha de Santiago, pois o cabido
(o tesoureiro-mor, mulato; e um cónego, preto) não o
quis reconhecer e não lhe deu posse, o que lhe terá
apressado a morte, ocorrida a 30 de Junho de 1847, a
cujo funeral os dois ditos elementos do cabido não
foram. 23) D. Frei Patrício Xavier de Moura, frade
graciano, eleito em 1848 e chegado à diocese em
1850, fez tudo por tudo, com grande destemor e
imenso zelo, por recuperar o prestígio da Igreja em
Cabo Verde, começando por visitar toda a diocese,
Cristo Crucificado com Um Missionário, gravura sobre incluindo a Guiné, tendo-se retirado por doença em
papel, século x/x. 1857 e sido transferido para a diocese do Funchal*
no ano seguinte, ao mesmo tempo que se lhe nomea-
va o sucessor. 24) D. João Crisóstomo de Amorim
cabo Roxo, onde os felupes de Jambarém o prende- Pessoa, que não chegou a ir à diocese, porque entre-
ram juntamente com os acompanhantes, que solta- tanto, em 1860, o nomearam para Goa*. 25) D. José
ram depois de terem recebido alto resgate, faleceu na Luiz Alves Feijó, mal chegado a Cabo Verde em
viagem de Cacheu para a ilha de Santiago. 16) 1866, logo fundou o seminário-liceu e no ano se-
D. Frei João Moreira, franciscano da Província da guinte criou o vicariato-geral da Guiné, preparando
Soledade, de natural benigno e afável, entrou na dio- assim de longe a independência eclesiástica daquele
cese em Sábado de Ramos de 1744 e logo em Maio território do ultramar português. 26) D. José Dias
principiou a dar ordens sacras a muitos clérigos, Corrêa de Carvalho permaneceu na diocese de 1871
«como quem previa a sua breve vida», pois havia de a 1878, ano em que a deixou por falta de saúde. 27)
falecer no dia 13 de Agosto de 1746 (e não em 3 D. Joaquim Augusto de Barros governou a diocese
de Agosto de 1744 ou 13 de Agosto de 1747, como de 1884 a 1904, empenhou-se ao máximo na reorga-
erradamente trazem alguns autores). 17) D. Frei Pedro nização do seminário-liceu e retirou em 1899 para
Jacinto Valente, da Ordem de São Bento de Aviz, foi Portugal, por falta de saúde. 28) D. António Mouti-
mal recebido pelo cabido, à chegada em Maio de nho foi bispo de Cabo Verde de 1905 a 1909, fundou
1754, pelo que se transferiu primeiro para a ilha em 1909 no Tarrafal da ilha de Santiago o Instituto
de São Nicolau e depois, em Fevereiro de 1755, para D. Manuel II e pôs à frente dele as Irmãs Francisca-
a ilha de Santo Antão, donde nunca saiu e onde mor- nas Hospitaleiras Portuguesas e, durante a sua visita
reu em Janeiro de 1774, «com bastante utilidade da à Guiné em 1909, tentou criar outro semelhante em
mesma ilha e grande detrimento de todo o mais bis- Bolama, mas não conseguiu religiosas para o dirigir,
pado, e até deixando arruinar inteiramente os paços querendo assim terminar com chave de ouro o seu
episcopais na ilha capital de Santiago» (ms. «Anóni- ministério na diocese de Cabo Verde. 29) D. José Al-
mo de 1784»), 18) D. Frei Francisco de São Simão, ves Martins, do Colégio das Missões Ultramarinas
franciscano da Província de Santo António dos Ca- de Cernache do Bonjardim, entrado na diocese no fi-
puchos, desembarcou na ilha de São Nicolau em Ju- nal de 1910, já depois da vitoriosa revolução repu-
lho de 1781, donde se passou para Santiago cinco blicana de Outubro. O novo governador, entre várias
meses depois; viria a falecer, um pouco inesperada- outras aleivosias contra o prelado e o seu clero, co-
mente, na Ribeira da Prata, onde tencionava dar meçou por lhe proibir o desembarque na cidade da
princípio ao seminário e às casas da sua residência. Praia e, «depois de fazer escala por quase todas as
19) D. Frei Cristóvão de São Boaventura, francisca- ilhas do arquipélago, o Bolama chegou à ilha de São
no da Província de Portugal, chegou à diocese em Nicolau a 7 de Dezembro» (Fortunato de Almeida) e
1786 e viveu na ilha de São Nicolau, à qual prestou tomou posse no dia seguinte. Ainda havia de experi-
importantíssimos serviços, e onde se interessou pela

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mentar os frutos da sua sementeira nos últimos anos


de apostolado na diocese de Cabo Verde, a seguir à
«Revolução Nacional» de 1926. 30) D. Rafael Maria
da Assunção, franciscano da Província dos Santos
Mártires de Marrocos de Portugal, activo e empreen-
dedor missionário, depois de 38 anos de lutas na pre-
lazia de Moçambique*, a Santa Sé nomeou-o em
1936 para a diocese de Cabo Verde, que governou
até 1940. 31) D. Faustino Moreira dos Santos, espiri-
tano, governou a diocese de 1941 a 1955, já na fase
nova da missionação, após a Concordata* e o Acor-
do Missionário*, desligada totalmente da adminis-
tração eclesiástica da Guiné. 32) D. José Filipe Cola-
ço, do clero de Goa, pastoreou Cabo Verde de 1956 a
1975; D. Paulino Livramento Évora (1975), um filho
da terra e já com o território politicamente indepen-
dente, foi nomeado para a diocese de Cabo Verde em
1975. 2. Agentes missionários: O arquipélago de Ca-
bo Verde começou a ser povoado pela ilha de Santia-
go em 1462 e já vimos no começo como os Francis-
canos ali chegaram com os primeiros povoadores e
como em 15 de Outubro de 1473 a infanta D. Beatriz
apontou o nome do dominicano Frei João para vigá-
Igreja de Nossa Senhora do Rosário (século xvi), Cidade
rio de Santiago, que deverá ter sido o primeiro nesta Velha (onde foi sepultado o padre Baltasar Pereira), in
categoria. Outros se lhe seguiram, como se lê em Os Jesuítas e a Missão de Cabo Verde (1604-1642), de
documentação da época. Depois de Santiago foi po- Nuno da Silva Gonçalves, Brotéria, 1996, estampa XI.
voada a ilha do Fogo. Em 1617 ainda só estavam
povoadas estas duas ilhas. No século xvi as ilhas de
mentos do cabido - a diocese estava vacante desde
São Nicolau, Boavista, Brava, Maio e Santo Antão
1646 e continuará até 1672 por razões de política da
não são povoadas. São Vicente sê-lo-á no final do
Santa Sé, mancomunada com o governo de Madrid,
século XVIII; a ilha do Sal, ainda mais tarde. A popu-
que não reconhecia a nossa independência - eram
lação foi crescendo mais ou menos lentamente, con-
pretos porventura em maioria, e ao restante clero fal-
soante as circunstâncias, criando-se pólos urbanos de
taria o dinamismo para aprofundar a fé e robustecer a
algum significado, como foi o caso de Ribeira Gran-
moral das populações. O certo é que a corte de Lis-
de, que recebeu o estatuto de cidade para ser sede
boa sentia uma necessidade imperiosa de arranjar
episcopal em 1533. O clero secular, muito dele nati-
missionários portugueses para Cabo Verde e a costa
vo, recebe considerável apoio em 1604 com a missão
da Guiné, em vez dos Jesuítas. Da diligência resul-
jesuítica, dirigida inicialmente pelo experimentado
tou a missão de oito religiosos da Província da Pie-
padre Baltasar Barreira, que pouco ítepois se passa à
dade (Capuchos), chegados a Cabo Verde no dia 10
terra firme da Guiné, com paragem em Bissau e na
de Janeiro de 1657. Foi como prelado Frei Gonçalo
Serra Leoa, para onde leva companheiros. O processo
de Vila Real. Em terreno cedido pelo morgado dos
da entrada da Companhia de Jesus demorou para ci-
Mosquitos, imediatamente iniciaram a construção do
ma de duas dezenas de anos, pois começou por 1580
convento, que chegou a dispor de 12 celas, dormitó-
e o primeiro grupo chega à Ribeira Grande em 1604,
rio e grande cerca com fruteiras e muita água, hoje
não para montar um colégio, como desejavam os go-
identificada como «horta do convento». A maior
vernantes de Lisboa e Madrid, mas simplesmente fa-
parte dos recém-chegados espalharam-se pelas nove
zer missão, sobretudo na Serra Leoa. Após a morte
paróquias então existentes na ilha e ainda pelas ilhas de
do padre Manuel Álvares em 1617 na Serra Leoa,
Maio, Boavista e São Nicolau. As restantes ilhas ha-
uma média de três jesuítas ficam-se por Santiago de
bitadas foram também beneficiando do zelo apostó-
Cabo Verde até 1642, ano em que a missão na dioce-
lico dos Franciscanos, que continuaram a afluir a
se de Cabo Verde acaba de todo. Eles estavam ali à
Cabo Verde em bom ritmo e quantidade. De notar,
pressão e tudo faziam para se virem embora para o
por exemplo, o reforço de mais quatro no ano se-
reino, não realizando qualquer trabalho útil, como
guinte e de mais 12, chegados à Ribeira Grande no
o denuncia documento da câmara de Ribeira Grande
dia 11 de Junho de 1662. Assim é que, em 1660,
de 15 de Abril de 1526. No entanto, depois da saída
dois da segunda leva vão para a terra firme da costa
são pressionados para voltar, uma vez que o clero
da Guiné. Havia um «comissário», que superintendia
autóctone não respondia às necessidades da popula-
em toda a missão, um «guardião», directo responsá-
ção, apesar do que dele escreveu o jesuíta padre An-
vel pela vida fraterna no Convento de São Francisco
tónio Vieira no dia de Natal de 1652 em Santiago de
da Ribeira Grande, um «presidente», que substituía o
Cabo Verde: «Há aqui clérigos e cónegos tão negros
guardião nas ausências e estava à frente dos «hospí-
como azeviche, mas tão compostos, tão autorizados,
cios», os confessores, os pregadores e os irmãos lei-
tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e tão
gos para os trabalhos manuais. Com o desmembra-
morigerados, que podem fazer inveja aos que lá ve-
mento da Província da Piedade em 1673, a missão
mos nas nossas catedrais.» Quer dizer que os ele-
de Cabo Verde e Guiné passou para a província irmã

282
CABO VERDE

da Soledade, a qual, em 1674, em duas levas suces- de Cabo Verde, e de Luís Cabral, primeiro presi-
sivas, coloca na diocese de Cabo Verde 16 religio- dente da República da Guiné-Bissau. Até ao fim do
sos. Entretanto, iam morrendo alguns e outros re- século xix, esta instituição eclesiástica produziu
gressando a Portugal. Um século depois, exactamente 46 presbíteros, 15 dos quais oriundos de Portugal.
a 21 de Novembro de 1757, quando se começavam a A República portuguesa de 1910 extinguiu este se-
pressentir os primeiros rebates da crise da vida reli- minário-liceu, e a diocese viu-se obrigada a recorrer,
giosa e, consequentemente, da vida missionária, a no começo da década de 20, a outros expedientes
missão franciscana de Cabo Verde contava um total para a formação do seu clero. De facto, em 1925 res-
de 24 frades (18 sacerdotes e seis leigos), incluindo tavam em Cabo Verde apenas 14 sacerdotes, para
um ex-leitor de Teologia, consultor do Santo Ofício uma população computada em cerca de 150 mil ha-
e comissário provincial, e um professor de Moral de bitantes, considerando-se católicos nada menos de
candidatos ao sacerdócio em Cabo Verde. Neste do- 130 mil e os restantes protestantes ou judeus. A si-
cumento informa-se que costumavam estar seis ou tuação não melhora substancialmente nos anos se-
sete religiosos em cada convento ou hospício (in- guintes, pois em 1940, na hora de Cabo Verde se tor-
cluindo os da costa da Guiné). Mas não estavam nar diocese independente da Guiné (transformada
agora, por terem morrido alguns. O número normal em missão sui júris), deixando assim de ser território
atingia as trinta unidades, quando não as ultrapassa- missionário, pois sempre no arquipélago funcionou o
va, e eram todos necessários. A política do marquês regime paroquial, o novo bispo, D. Faustino Moreira
de Pombal relativa à Igreja foi desastrosa e com far- dos Santos, espiritano com larga experiência missio-
tos reflexos no ultramar; D. Maria I não conseguiu nária em Angola, só encontra ao serviço da diocese
inverter o plano inclinado. Sintomático o «mapa de três sacerdotes espalhados pelas ilhas. 3. Irmãs reli-
sacerdotes [...] e dos precisamentos necessários para giosas: Dentro do ressurgimento religioso e missio-
que aí se não acabe a religião e o bispado», de 13 de nário da segunda metade do século xix surge em
Maio de 1780: ligados à Sé de Cabo Verde, 22 sacer- Cabo Verde, pela primeira vez, uma congregação
dotes, mas com muitos lugares vagos ou a trabalha- feminina, a Congregação das Irmãs Franciscanas
rem noutra parte; 55 sacerdotes previstos para o Hospitaleiras Portuguesas (desde 1964 denominadas
arquipélago, mas só existindo 29; 18 sacerdotes Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Concei-
previstos para a costa da Guiné, mas existindo ape- ção*, dada a sua internacionalidade). Em 1893 elas
nas uma meia dúzia; 10 religiosos previstos para o respondem ao pedido feito pelo governador da pro-
Convento de São Francisco da Ribeira Grande, mas víncia de Cabo Verde para se ocuparem da direcção
estando lá apenas uns três. Comentário do bispo interna dos serviços do hospital civil e militar da
eleito de Cabo Verde, D. Frei Francisco de São Si- Praia, na ilha de Santiago, aonde chegam a 21 de Se-
mão: «Que se acham somente seis religiosos em tembro desse ano. Quiseram-nas também para o hos-
todo o bispado, tendo falecido dentro de um ano os pital de São Vicente, mas não puderam aceitar. Em
que para lá foram em 78, e sendo necessários ao 1909 entram no Tarrafal (ilha de Santiago), para o
menos 22.» «Quando [o convento da Ribeira Gran- Instituto D. Manuel II, destinado a alunos internos,
de] se extinguiu, morava nele só um religioso, o semi-internos e externos de ambos os sexos. O pri-
qual já morreu muito velho» ( L I M A - Ensaios). Da- meiro governador colocado pela República em Cabo
do o regime de paróquias, atribuídas habitualmente Verde expulsou as religiosas do hospital e do institu-
ao clero secular, este foi sempre relativamente abun- to, tendo este simplesmente encerrado as portas.
dante em Cabo Verde. Quando as freguesias não dis- Após a Concordata e o Acordo Missionário de 1940,
punham de pároco próprio, iam lá periodicamente os entram ao serviço da diocese outras congregações
«visitadores», enviados pelo bispo ou pelo cabido. religiosas femininas, a começar pelas Irmãs Missio-
No começo da década de 1840, quando o ultramar nárias do Espírito Santo, a que se vieram juntar as
português atingia a máxima decadência religiosa, o Irmãs do Amor de Deus* e outras mais. De salientar
bispo eleito (não sagrado) residia na ilha Brava e a Corporação das Consagradas Franciscanas da Ima-
o cabido tinha apenas uma dignidade e um cónego, culada Conceição, nascida em Cabo Verde no ano de
quatro capelães e um cura. Das 33 freguesias (28 no 1959 à sombra dos Franciscanos Capuchinhos, e que
arquipélago e cinco na Guiné), «nas observações ao depois de um quarto de século eram 21 e trabalha-
orçamento de 1842 a 43 se declara existirem só vinte vam nas ilhas Brava, Fogo, Sal, Santiago e Santo
párocos, estando sem pastor treze freguesias, e dos Antão. 4. A diocese no período contemporâneo:
oito coadjutores existem só quatro». Novo ritmo é Marco importantíssimo na história da Igreja que
dado à evangelização na segunda metade do sécu- actuava em Portugal e nos seus territórios ultrama-
lo xix, sobretudo mediante os Padres das Missões rinos foi sem dúvida a Concordata de Maio de 1940
Ultramarinas de Cernache do Bonjardim, chegados a e consequente Acordo Missionário. Os números fa-
Cabo Verde em 1864, e da criação do Seminário- lam por si. Quando D. Faustino morreu em 1955, a
-Liceu de São José da Ribeira Brava, na ilha de São diocese contava nove igrejas novas e 17 restaura-
Nicolau passados dois anos, o qual forneceu à dioce- das, mais seis capelas sucursais e 14 residências pa-
se uma plêiade de sacerdotes ilustres, inclusive o pa- roquiais. No ano seguinte, a situação do pessoal ao
dre Porfírio Pereira Tavares, pai de Aristides Pereira, serviço da diocese era o seguinte: 11 sacerdotes se-
o primeiro presidente da República de Cabo Verde, e culares; 13 sacerdotes da Congregação do Espírito
de homens famosos nas letras e na administração pú- Santo (portugueses); 13 sacerdotes e um irmão da
blica, inclusive Juvenal António Lopes da Costa Ca- Ordem dos Frades Menores Capuchinhos (italianos)
bral, pai de Amílcar Cabral, fundador da República (entrados para as ilhas do Fogo e da Brava em 1947

283
CABO VERDE

e que com o andar dos tempos se estenderam às res- de Cabo Verde, origem do povo caboverdiano e da diocese de Santiago
de Cabo Verde. Boston: Edição Farol, 1 9 8 7 . V I C E N T E , João Dias - Os
tantes ilhas); três sacerdotes e três irmãos salesianos; bispos de Cabo Verde que visitaram a Guiné (1533-1940). Inédito de
10 irmãs missionárias do Espírito Santo e sete irmãs 67 páginas A4, Bissau, Outubro de 1993.
do Amor de Deus. Com este pessoal, foi possível
ajuntar-se à simples sacramentalização e superficial
evangelização do passado uma assistência social e CAETANOS. v. TEATINOS.
uma acção educativa de certo relevo, a saber: assis-
tência ao hospital civil da Praia, direcção de dois CALATRAVA, Ordem d e . v. O R D E N S MILITARES.
dispensários, uma maternidade, dois orfanatos, uma
escola de artes e ofícios, quatro Conferências de São CALENDÁRIOS LITÚRGICOS, v. LITURGIA.
Vicente de Paulo (v. C O N F E R Ê N C I A S VICENTINAS), 55 es-
colas elementares diocesanas e 475 escolas de cate- CAMBOJA. Desenham-se intercâmbios entre os Por-
quese, além de 20 centros de Apostolado da Ora- tugueses e o Camboja desde a instalação daqueles
ção*, 19 centros da Cruzada Eucarística, 43 centros em Malaca* (1511). Por 1515 o príncipe e futuro rei
de Cruzados de Fátima, quatro presídios da Legião Ang Chan terá assim adquirido junto deles canhões e
de Maria e três centros de Apóstolos do Coração arcabuzes para reconquistar o seu trono, ocupado por
Imaculado de Maria. Com a independência política um usurpador. Alguns portugueses vêm em seguida
de 5 de Julho de 1975, a Igreja que está em Cabo comerciar ou estabelecer-se em Longvêk, onde Ang
Verde torna-se autónoma em relação ao Estado, mas Chan (1529-1566) assentara a capital, e em Phnom
também sem os privilégios que lhe adivinham do Penh, o centro comercial do país. Estes contactos e
Acordo Missionário. A Santa Sé aceitara, na hora, as informações que chegavam a Malaca, sobre como
a resignação do bispo goês D. José Filipe Colaço, e o Camboja seria um terreno favorável à evangeliza-
nomeia para o seu lugar D. Paulino do Livramento ção, determinam o dominicano Frei Gaspar da Cruz
Évora, natural da Praia e espiritano. Os agentes da a dirigir-se a Longvêk em finais de 1555. Este pri-
evangelização do arquipélago aumentavam de núme- meiro missionário começa a aprender a língua, mas
ro e de qualidade e eram cada vez mais os filhos da depressa o desencoraja a indiferença dos Camboja-
terra empenhados no apostolado. A sementeira esta- nos, pelo que, após um desvio por Macau*, está já
va a produzir sazonados frutos. Todas as ilhas pos- de regresso a Malaca em começos de 1557. É possí-
suem hoje clero, religiosos e religiosas em número vel que em seguida alguns missionários tenham pas-
aceitável. Temos números de 1986: 46 sacerdotes, sado pelo Camboja, mas apenas se pode atestar a
incluindo o bispo: 18 capuchinhos, 12 espiritanos, chegada dos dominicanos* Lopo Cardoso e João Ma-
11 seculares (entre eles cinco goeses) e quatro sale- deira em 1583. Não têm mais sucesso que Gaspar da
sianos; três irmãos professos: dois capuchinhos e um Cruz. A instâncias do rei Satha I (c. 1570-1596), de-
espiritano; 46 irmãs professas: 21 da Corporação das sejoso de adquirir mercadorias, Cardoso tem até de
Consagradas Franciscanas da Imaculada Conceição regressar a Malaca, para onde torna Madeira igual-
(todas cabo-verdianas), 11 da Congregação das Mis- mente; é o dominicano Silvestre de Azevedo quem,
sionárias do Espírito Santo, oito da Congregação das em 1594, o substitui. Seguem-se outros missioná-
Religiosas do Amor de Deus, três da Congregação do rios, também dependentes dos conventos de Malaca:
Sagrado Coração de Maria e três da Congregação das dominicanos (Reinaldo de Santa Maria e Gaspar do
Religiosas do Amor de Deus. Os números de 1994 Salvador em 1584, os padres Orta e Caldeira em
cquivalem-se, com ligeiro aumento, excepto os da 1585, Jorge Mota e Luís da Fonseca em 1591) e
Corporação das Consagradas Franciscanas, que ti- franciscanos* (quatro ou cinco, entre os quais Antó-
nham descido para 11 unidades. A população, em nio da Madalena e, mais tarde, um Gregório Ruiz).
1982, era computada em 288 845 habitantes, sendo Apenas o apostolado de Frei Silvestre de Azevedo
98 % católicos e 2 % protestantes. (morto em 1589) é relativamente conhecido: sabe-se
HENRIQUE PINTO REMA que se ocupa de uma cristandade constituída em parte
de portugueses e instalada perto de Phnom Penh; tendo
BIBLIOGRAFIA: A L B U Q U E R Q U E , L U Í S de; S A N T O S , Maria Emília Madeira - aprendido a língua, redige em khmer a primeira ex-
História geral de Cabo Verde. Lisboa: Instituto de Investigação Cien-
tífica Tropical, 1 9 8 8 . 4 vol. B A R C E L O S , Christiano José de Senna - Sub- posição da doutrina cristã. As relações entre os re-
sídios para a história de Cabo Verde e Guiné. Lisboa: Imprensa Na- ligiosos e os reis do Camboja ilustram bem a ambi-
cional. 1 8 9 9 , vol. 1. 6 vol. B R Á S I O , António - Monumento Missionaria guidade que então pesa sobre a acção missionária.
Africana. 2 . " série. Lisboa: AGU, 1 9 5 8 , vol. 1 . 6 vol. C A R R E I R A , Antó-
nio - Cabo Verde, formação e extinção de uma sociedade escravocrata Satha I eleva o padre Azevedo à categoria de conse-
(1460-1878). Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1 9 7 2 . IDEM - Mi- lheiro favorito mas, na realidade, exposto à ameaça
grações nas ilhas de Cabo Verde. Lisboa, 1 9 8 3 . IDEM - Documentos pa- do Sião vizinho, tenta sobretudo assegurar o apoio
ra a história das ilhas de Cabo Verde e «Rios de Guiné». Lisboa, 1983.
G O N Ç A L V E S , Nuno da Silva - Os Jesuítas e a missão de Cabo Verde
dos Portugueses, fabricantes de canhões e guerreiros
( 1 6 0 4 - 1 6 4 2 ) . Brotéria. Lisboa. ( 1 9 9 6 ) . L I M A , José Joaquim Lopes de - temidos em toda a região. Quanto aos missionários,
Ensaios sobre statistica das possessões portuguezas [...]. Lisboa: Im- impotentes para converterem os Cambojanos mas
prensa Nacional, 1 8 4 4 , vol. 1 . N E I V A , Adélio Torres - A missionação
em Cabo Verde. In ENCONTRO de Culturas, oito séculos de missionação desejosos de cultivar a amizade régia, vêem-se en-
portuguesa. Lisboa, 1 9 9 4 . NOTICIA corographica e chronologica do bis- volvidos numa extraordinária aventura político-mi-
pado de Cabo Verde [...]. Apresentação, notas e comentários por Antó- litar. Por diversas vezes Satha I, encorajado por Aze-
nio Carreira. Manuscrito de 1 7 8 4 . R E M A , Henrique Pinto - História das
missões católicas da Guiné. Braga: Ed. Franciscana, 1 9 8 2 . SILVA, Fran- vedo e pelo aventureiro português Diogo Veloso -
cisco Ferreira da - Apontamentos para a história da administração da chegado ao Camboja em 1582 e tornado, também
diocese e da organização do Seminário-Lyceu. Lisboa, 1 8 9 9 . V A L D E Z ,
Francisco Travassos - Africa Occidental: notícias e considerações.
ele, favorito do rei - , dirige pedidos de apoio a Ma-
Lisboa: Imprensa Nacional, 1 8 6 4 , vol. 1 . V A S C H E T T O , Bernardo - Ilhas laca. Em vão. Assim, em 1593, num momento em

284
CAMBOJA

que Manila, graças à união das coroas, se tornava prelados se estabelecem em Timor*) e, por seu inter-
um centro do poder ibérico na Ásia, Satha decide-se médio, sob a jurisdição dos arcebispos de Goa* e
a enviar lá Veloso a pedir auxílio aos Espanhóis. sob o padroado dos reis de Portugal. Os cristãos por-
Seguem-se inúmeras peripécias em que se vê, no- tugueses do Camboja apegam-se a esse laço, ainda
meadamente, o rei do Sião invadir o Camboja, to- que ténue, com a sua mãe-pátria. Um acontecimento
mar Longvêk e conduzir a Ayutthaya os missioná- há que os perturba fortemente: a chegada à região de
rios Mota, Fonseca e Ruiz (1594); os hispano-por- vigários apostólicos e missionários franceses da So-
tugueses conduzidos, entre outros, por Veloso e por ciedade das Missões Estrangeiras de Paris (1662),
dominicanos espanhóis, eliminar um usurpador e re- que reclamam e obtêm finalmente de Roma a juris-
por no trono do Camboja um dos filhos de Satha dição sobre o Camboja (1669). Embora os padres
(1597); enfim, os portugueses de Phnom Penh serem Rocha e Costa acolham favoravelmente o primeiro
exterminados no seguimento de uma rixa com os ou- desses missionários franceses, Louis Chevreul, em
tros habitantes (1599). Por esses anos novos missio- 1665, o endurecimento da comunidade portuguesa e
nários chegam ao Camboja: franciscanos de Malaca a defesa do padroado acabam por prevalecer: por
(Pedro Custódio em 1598, Jácome da Conceição em instigação de António de Morais, jesuíta que viera
1600-1601, a rogo do rei) e alguns dominicanos de instalar-se em Oudong, Chevreul é raptado em
Manila (1603). Todavia, o advento no Camboja do 1670, enviado a Macau e em seguida a Goa para aí
rei Suryopor (1603-1618), aliado dos Siameses, e o ser julgado pela Inquisição, que o relaxará. E o co-
enfraquecimento de Malaca com a chegada dos Ho- meço de uma longa querela que vê inclusivamente a
landeses à Ásia, marcam o fim dos esforços hispano- comunidade cindir-se em dois campos: o da família
-portugueses para a evangelização do país. Resta Soares e do padroado, e o da família Dias e dos vi-
uma comunidade portuguesa que se reconstitui e que gários apostólicos. Em 1717 o clã dos Dias afasta-se
os reis vão proteger, por exemplo contra as mano- de Ponhea Lu para se instalar dois quilómetros a
bras holandesas, mas que permanece fiel à sua fé norte, em Thonol; na década de 1730 o clã dos Soa-
cristã - o que os distingue dos Khmeres, de que os res parte por seu turno a instalar-se em Prambey
Portugueses, ao mestiçarem-se, não se diferenciam Chhaom, nas margens do Tonle Sap, à altura da an-
contudo muito fisicamente. No século XVII essa co- tiga capital, Longvêk. Esta querela parece ter sido
munidade conhece alguns eventos marcantes. É pri- agravada pelo facto de o Camboja estar então liga-
meiramente a chegada, nos anos de 1630, de cristãos do ao vicariato apostólico da Cochinchina*, cujos
japoneses fugidos às perseguições no seu país, que missionários se ocupam predominantemente da
se instalam junto do bairro português de Ponhea evangelização e assistência às cristandades vietna-
Lu (entre Phnom Penh e a nova capital de então, mitas. Em vão pedem os cristãos cambojo-portu-
Oudong); no decurso dos decénios, japoneses e gueses, em 1705-1707, para serem ligados ao vica-
khmero-portugueses acabam por se difundir. Depois, riato apostólico do Sião. A querela apazigua-se,
em começos dos anos 60 da centúria, instalam-se em contudo, nos anos de 1750-1780 com a aceitação
Phnom Penh e em Ponhea Lu cerca de 400 portugue- por todos os cristãos dos bispos e missionários fran-
ses fugidos à invasão holandesa de Macaçar. São ceses, instalando-se alguns no seio das comunida-
conduzidos por um jesuíta, o padre Rocha, e por um des cambojo-portuguesas de Thonol e Prambey
vigário-geral do bispado de Malaca, Paulo da Costa. Chhaom. Por diversas vezes essas comunidades
Embora não haja já bispos residentes em Malaca partilham da sorte trágica de um país vítima das
desde a tomada da cidade pelos Holandeses (1641), querelas intestinas e das intervenções siamesas e
o Camboja, como o Sião e as ilhas da Insulíndia, vietnamitas. E assim que em 1658 o senhor da Co-
permanecem sob a jurisdição desse bispado (cujos chinchina captura em Oudong e conduz a Faifo o
célebre fundidor de canhões João da Cruz. Mas as
perturbações culminam no período de 1780-1840.
Em 1782 as cristandades de Thonol e Prambey
Chhaom (que haviam engrossado com a chegada de
cristãos siamo-portugueses fugidos do Sião após a
tomada de Ayutthaya pelos Birmanos em 1767) são
destruídas por ocasião de uma invasão siamesa, e
muitos siamo-portugueses retornam daí a Bangueco-
que. Em 1784 os rebeldes cochinchineses Tây Son
atacam Oudong e conduzem a Sadec, no delta do
Mecom, centenas de cristãos luso-cambojanos. Em
1785, tendo os Siameses atacado os Tây Son, os cris-
tãos reunidos em Sadec são, por seu turno, deporta-
dos para Banguecoque - onde formam o núcleo da
paróquia da Imaculada Conceição. Após estas pro-
vocações restam 300 khmero-portugueses que erram
pelo Camboja e se reúnem em Battambang em 1790.
Essa cristandade perdura até 1840, quando os cris-
tãos se envolvem numa revolta contra o rei do Sião,
o que lhes custa serem capturados e conduzidos a
Banguecoque pelas tropas siameses, uns, enquanto

285
CAMBOJA

outros, que haviam fugido em direcção a sul, caem do religioso que, desde o final da Idade Média, foi
nas mãos dos Vietnamitas. Com o reinado de Ang especializando principalmente a privatização da ora-
Duong (1846-1860), que pede aos cristãos dispersos ção e da espiritualidade nos meios sociais régios e alti-
para se reunirem em Ponhea Lu (mais exactamente nobiliários, e o processo de construção do absolutismo
em Thonol), e depois com o estabelecimento do pro- moderno, com a sua concentração de poderes e a
tectorado francês (1863), a situação das famílias construção de uma sociedade de corte para a qual era
khmero-portuguesas que permanecem ainda no também indispensável o aparato religioso, da capela
Camboja estabiliza-se. Em 1860 o rei Norodom, que às procissões, dos Te deum à sermonária, da música
transporta a sua capital de Oudong para Phnom ao teatro. Por isso, é num período «barroco» longo,
Penh, pede aos cristãos que o sigam. Os Cambojo- estendendo-se, depois da Contra-Reforma* tridenti-
-portugueses estabelecem-se assim ao norte de na, dos finais do século xvi à primeira metade de Se-
Phnom Penh, no bairro dito Hoaland - dos Holande- tecentos, que a Capela Real assume todo o seu es-
ses - , e eles formam aí a paróquia de Preah Meadea, plendor, associando ao cultual o aparato musical,
a Augusta Madre ou Mãe Augusta. Desde então essa formalizando a sua ordem e funções, ligando-se com
comunidade, que tornará a sofrer com os Khmeres intimidade à sociedade de corte da época moderna.
Vermelhos (1975-1979), dá regularmente ao país mi- Com efeito, apesar de se poderem recolher diversas
nistros, altos funcionários e oficiais superiores. Ain- pistas apontando para a existência de alguns esforços
da em nossos dias não é raro encontrar nas profunde- de privatização de estruturas religiosas pelo poder
zas dos campos do Camboja um mestre-escola, um régio medieval português, não se consegue encon-
enfermeiro, chamado Monteiro, Dias, etc., em cuja trar, antes do século xv, uma estrutura organizada e
casa há um canto armado em capela pessoal. institucionalizada que se possa designar rigorosa-
ALAIN KOREST mente por Capela Real. Existem, é certo, alguns es-
forços de elevação de oratórios régios privados, a
Alain - Les Missions Françaises au Siam ei au
BIBLIOGRAFIA: F O R E S T , valorização de cerimónias religiosas com um carác-
Tonkin: /: Histoires de Siam. Paris: L'Harmattan, 1 9 9 8 . G R O S L I E R , Ber-
nard-Philippe - Angkor et le Cambodge au xvt1' siècle d'après les sour- ter assumidamente áulico e particular, bem como
ces portugaises et espagnoles. Paris: P U F , 1 9 5 8 . P O N C H A U D , François - uma valorização das práticas religiosas e espirituais
La cathédrale de la rizière: 450 ans d'histoire de l'Église au Cambod- em espaços régios especializados, investimentos que
ge. Paris: Fayard, 1990.
se podem perseguir principalmente nos começos da
CANCIONEIRO, v. LITERATURA RELIGIOSA.
dinastia de Avis. De facto, é neste período que, tal-
vez em comunicação com uma direcção fixada desde
o casamento de D. João I com D. Filipa de Lencas-
CANTO. V. MÚSICA RELIGIOSA.
tre, algumas das memórias citadas apresentam o so-
berano a procurar mandar vir de Inglaterra a ordem
CAPELA REAL. Podemos entender a Capela Real co-
dos cerimoniais que se usava na capela dos seus reis,
mo uma instituição de aparato que, cumprindo uma
garantindo, a seguir, o direito de celebrar os ofícios
colecção importante de cerimónias e actividades re-
divinos seguindo o rito romano. Com algum esforço,
ligiosas, foi institucionalizando um longo processo
pode encontrar-se este tipo particular de investimen-
de alargamento dos investimentos do poder régio na
tos cultuais régios já nas páginas do célebre Leal
convocação do cerimonial litúrgico enquanto factor
conselheiro, do rei D. Duarte, oferecendo uma espé-
de prestígio religioso, social e representação políti-
cie de primeiro regimento informal da Capela Real,
co-simbólica. Trata-se de uma formação religiosa
precisamente no seu capítulo 46, intitulado «Do Re-
mal estudada pela historiografia portuguesa, o que
gimento que se deve ter na capela para ser bem regi-
obriga ainda hoje a frequentar os principais trabalhos
da». Descobre-se um texto rápido, procurando orga-
que o memorialismo setecentista dedicou à história
nizar a liturgia e, sobretudo, o canto, fixando as
da Capela Real: os trabalhos manuscritos de D. Ma-
funções de um conjunto especializado de clérigos:
nuel Caetano de Sousa que, intitulados Memórias da
capelão-mor, mestre da capela, tenor e mestre de
dignidade e oficio da Capela Mor dos Reis de Portu-
moços. Trata-se de uma ordem que remete nitida-
gal, oferecem numerosos apontamentos, nem sempre
mente para uma modalidade inicial de organização
organizados, sobre o tema, a que se deve ainda jun-
da Capela Real, momento debutante que o texto re-
tar um texto manuscrito mais claramente cronístico,
gista na insistência com que apela para o conheci-
da autoria de Antônio Pereira de Figueiredo, prefe-
mento do saltério, o rigor da leitura coral ou a «ho-
rindo também escrever uma Memória sobre a anti-
nestidade» e compostura dos membros e moços do
ga origem da Capela Real dos Senhores Reis de
coro. Nesta etapa propedêutica de construção da Ca-
Portugal. Mais interessados do que documentados,
pela Real percebe-se que este espaço religioso régio
estes trabalhos manuscritos do século xvin procu-
trata mais de estruturar uma ordem da missa para uso
ram principalmente reconstruir o funcionamento
do rei e da corte do que em organizar rigorosamente
religioso, jurídico e social da Capela Real no seu
uma instituição de aparato totalmente arranjada e autó-
próprio tempo, visitando de forma deficiente a histó-
noma. A institucionalização canónica da Capela Real
ria desta instituição, cujas origens tentam mergulhar,
chega definitivamente apenas com D. Afonso V, alcan-
entre justificação e apologética, na génese providen-
çando licença do papa Eugénio IV, em 1439, para que
cial da monarquia portuguesa. A origem da Capela
este espaço para frequência do rei, da família régia e
Real não radica, porém, numa decisão, numa data ou
da corte tivesse número fixo de capelães que pudessem
numa única realização, destacando sobretudo um
rezar em coro. Desconhece-se para este período o rit-
processo marcado pela associação de dois factores
mo das celebrações e das actividades religiosas desen-
de longa duração: a progressiva privatização elitária

286
C A P E L A REAL

volvidas na Capela Real que, no reinado seguinte, se reinados de D. João II e D. Manuel que se especia-
torna um espaço dinâmico de funcionamento litúrgi- liza definitivamente a Capela da Rainha, cuja auto-
co quotidiano. Na verdade, D. João II obteve ainda nomia e aparato se deve em larga medida aos in-
em sua vida, precisamente no fatídico ano de 1495, vestimentos da rainha D. Leonor. A hierarquia da
licença pontifícia de Alexandre VI para que na cape- instituição da rainha foi mesmo muitas vezes recru-
la régia se rezassem quotidianamente as horas canó- tada na Capela Real, como ocorreu, por exemplo, com
nicas, aplicando-se para garantir este serviço litúrgi- D. Diogo de Ortiz, capelão-mor de D. João II que,
co rendas e distribuições de acordo com o modelo depois, exerceu longamente o mesmo cargo na cape-
orgânico das sés diocesanas. Uma das fontes funda- la da soberana. A organização e dimensão canónica
mentais que ilumina esta nova situação da Capela da Capela da Rainha apresentava a mesma estratifi-
Real encontra-se na Crónica de D. João II, da autoria cação de dignidades, tendo igualmente D. Leonor ga-
de Garcia de Resende, dedicando demoradamente o rantido as mesmas ligações privilegiadas entre cape-
capítulo 191 do seu trabalho a descrever «como el lão-mor, capelães e as igrejas e benefícios do seu
Rey ordenou que em sua capei la rezassem Oras Ca- padroado, o que, de facto, ocorreria a partir de 1517,
nónicas como Igreja cathedral, e do que se passou com plena licença pontifícia. No entanto, esta cons-
com o Adayão». Ainda se mostra útil frequentar ra- trução largamente autónoma da Capela da Rainha
pidamente estas notícias que parece fixarem a di- perde-se progressivamente nos reinados seguintes
mensão de aparato, já de gosto proto-renascentista, com o aprofundamento da organização da Capela
da Capela Real. Recorda o texto cronístico resendia- Real que, apesar da sua especialização e alargamen-
no que «Todolos Reys passados, e assi el Rey porque to, parece ter funcionado demoradamente sem um ri-
ate este tempo em suas capellas não se fazia mais goroso regimento orgânico, situação que sugere um
que dizeremlhe Missas e vesporas, quando ahy as funcionamento, em termos simbólicos e de aparato,
queriam ouvir, e os capellães dizião Missa nas Igre- ainda não tão complexo e detalhado tanto no do-
jas onde querião, e as Oras rezavam em suas pousa- mínio litúrgico-cerimonial quanto na ordem repre-
das, e as vezes nas estrebarias vendo curar suas mu- sentacional como se assistiria a partir de finais de
las, e el Rey como era Catholico, e muyto devoto e Quinhentos. Data de 1592 o primeiro regimento co-
amigo de Deos, por se os officios divinos fazerem nhecido da Capela Real, documento normativo im-
com mais perfeiçam, e acatamento, e em muyta per- portante que, directamente ligado aos esforços filipi-
feiçam, estando aquy em Évora neste anno, ordenou, nos, procura ao longo de vinte capítulos organizar
e fez que todos seus capellães, cantores, e moços da quer as estruturas de gestão e administração - des-
capella rezassem as Oras solennemente em sua Ca- pesas, distribuições e ofícios - quer as funções do
pella cantadas como em Igreja cathedral, e assi man- pessoal eclesiástico e secular: capelão-mor, deão (v.
dou logo pera isso fazer seus coros, e assentos, e DIGNIDADES ECLESIÁSTICAS), pregadores, auditor, te-
muytos ornamentos, e todas as cousas necessarias, soureiro, trinta capelães, dois dos quais mestres-de-
muy perfeitas, e em grande abondança.» A partir -cerimónias, mestre da capela e vinte e quatro can-
destes investimentos régios, firmando o aparato e a tores, dois músicos de órgão, dezoito moços da
sua dimensão áulica, independentemente do espaço capela, quatro moços de estante e um «varredei-
físico em que se concretizava, a ordem que se prati- ro», naturalmente encarregado da limpeza da Ca-
cava na Capela Real parece ter fixado as relações se- pela Real, das lâmpadas às pratas, passando pelo
guintes. Existia no seu centro uma cortina em que se provimento da água benta. A importância que a Res-
encontrava sentado o monarca em cadeiral régio e, tauração atribuiu à renovação das estruturas régias
atrás de si, em cadeiras mais baixas assistiam os outros nacionais, principalmente aquelas em que era possí-
membros da família real. Um pajem encontrava-se da vel divulgar a sua causa e dramatizar a apologética
parte de fora da cortina a segurar o livro através do da soberania, levam à aprovação de novo regimento
qual o rei seguia o oficio. Em frente do monarca, sen- da Capela Real, em 1652. Organiza-se agora já não
tavam-se os bispos e à sua volta os grandes dignitários apenas a ordem da liturgia quotidiana a partir da po-
nobiliários, seguindo a hierarquização e os cerimo- sição central do monarca, os processos de gestão e
niais da sociedade estamental portuguesa da época. as funções do pessoal religioso e civil, mas orde-
Desta forma, para além da dimensão de aparato, a nam-se também algumas das mais importantes mani-
Capela Real cumpria também funções de representa- festações religiosas públicas da Capela Real, nomea-
ção da soberania e da estrutura de precedências da damente em dia de Nossa Senhora da Purificação,
sociedade estamental portuguesa. A seguir, parece elevando a liturgia das velas em comunicação com
ter sido apenas com D. Manuel que a capela régia uma grande saída processional, e pela Páscoa da
passou a privilegiar ocupar um espaço fixo, passan- Ressurreição, destacando o papel reitor da Capela
do naturalmente a coincidir com a própria capela dos Real nas grandes procissões lisboetas da Semana
paços que, da invocação de São Tomé, o Venturoso Santa. Ao longo do século XVII, grandes pregadores,
ergueu nos vários edifícios régios na Ribeira de Lis- com o padre António Vieira à cabeça, divulgam os
boa. E também neste reinado, a partir de 1515, que o seus sermões na Capela Real que, garantindo muitas
monarca consegue obter do papa Leão X autorização vezes a sua impressão, associa cada vez mais um es-
para que o capelão-mor passasse a ter jurisdição or- paço de aparato a um tempo da representação que a
dinária, primeiramente, sobre os eclesiásticos e se- parenética barroca não deixaria de utilizar em todos
culares que serviam na capela e, secundariamente, os seus diferentes sentidos teatrais. Encenação, apara-
o direito de consultar in perpetuum as igrejas e be- to, musicalidade e ostentação atingem o seu corolário
nefícios do padroado real. E também durante os no reinado de D. João V quando a Capela Real assiste

287
CAPELA REAL

ao crescimento significativo dos seus rendimentos, aqui e ali grupos de religiosos inconformados, a reivin-
convocando também, a partir de 1710, uma colegiada dicar o direito de viver com rigorosa fidelidade a regra
do título do apóstolo São Tomé, reunindo dezoito có- franciscana. Eram geralmente apoiados pelos papas, ao
negos e doze beneficiados. Melhorado o hábito, as contrário do que acontecia com os próprios superiores,
côngruas, os privilégios régios e pontifícios, «toda que viam nessas atitudes um perigo para a unidade,
esta abundância e profusão de graças», para glosar o quase sempre confundida com uniformidade. Algumas
trabalho manuscrito de António Pereira de Figueire- reformas, chamadas maiores, gozaram de grande auto-
do, haveria de permitir que, em 1716, a Capela Real nomia e tiveram expansão internacional. As reformas
e colegiada passasse a igreja patriarcal, advogando menores mantiveram-se subordinadas aos superiores
o nome de Nossa Senhora da Assunção. O arcebis- maiores e circunscreveram-se às regiões ou países
pado de Lisboa foi, por isso, dividido em duas onde nasceram. É neste contexto que vemos aparecer
zonas, oriental e ocidental, cabendo a esta um pa- os Capuchinhos. O iniciador foi Mateus de Baseio
triarca com a dignidade de capelão-mor, com juris- (t 1552). Jovem sacerdote com têmpera de pregador
dição distinta da metropolitana. Em 1717, recebe popular, fazia parte dos Observantes que na Provín-
mesmo as honras de cardeal, confirmadas ad per- cia das Marcas reclamavam a liberdade de observar
petuum em bula de 1737, conquanto, mais tarde, à letra a regra franciscana. Em 1525 afirmou ter-lhe
Bento XIV, em documento de 1740, preferisse ex- aparecido São Francisco, animando-o a prosseguir
tinguir a sé de Lisboa Oriental para estabelecer no seu propósito. Constatando que o hábito usado
uma só igreja patriarcal. De qualquer modo, o nas- por São Francisco era mais rude e tinha uma forma
cimento daquela que ficou conhecida por «patriar- diferente daquele que então usavam os Observantes,
cal» dissolveu praticamente, pelo engrandecimen- decidiu adoptá-lo sem mais. Deixou crescer a barba
to, a Capela Real, mas não deixou de aprofundar e resolveu observar a regra à letra. Incomodado por
todo o seu aparato, influência e formas de repre- superiores que viam naquela atitude um gesto de re-
sentação religiosas e políticas, procurando contri- beldia e peregrino individualismo, e por confrades
buir para esse formidável projecto joanino de criar que o desapoiavam, saiu do convento em Montefal-
em Lisboa, como elogiavam os autores do seu tem- cone e foi a Roma solicitar autorização ao papa para
po, uma «miniatura da corte pontifícia». viver pessoalmente o seu projecto. O papa Clemen-
IVO C A R N E I R O DE SOUSA te VII anuiu aos desejos de Mateus de Baseio, que
logo se lançou na pregação popular exercendo rele-
B I B L I O G R A F I A : B R A Z À O , Eduardo - Subsídios para a história do pa- vante acção caritativa ao serviço dos doentes vítimas
triarcado de Lisboa. Porto, 1943. C A R D O S O , Jorge - Agiológio lusita-
no. Lisboa: Of. Craesbeckiana, 1652, vol. 1. C A S T R O , João Bautista
da peste que então grassava nos ducados de Urbino e
de - Mappa de Portuga! antigo e moderno. Lisboa: Of. de Francisco Camerino. Pouco depois juntaram-se-lhe os irmãos
Luiz Afonso, 1763, vol. 3. C U R T O , Diogo Ramada - A Capeta Real: Ludovico e Rafael de Fossombrone, e Paulo de
um espaço de conflitos: Espiritualidade e corte em Portugal,
sécs. xvt-xvni. Porto: FLUP. 1993. FICIUEIREDO, António Pereira de - Chiogia. O seu ministro provincial, padre João
Memória sobre a origem da Capela Real. BN. F. G. cod. 10 982. Ma- de Fano, que no início os perseguiu, viria paradoxal-
nuscrito. M A R T I N S , Mário - O bispo-menino, o rito de Salisbúria c a mente a ocupar lugar preponderante na reforma ca-
Capela Real portuguesa. Didaskalia. 2. REGIMENTO da Capela Real.
BN. F. G. cod. 10 981. Manuscrito de 1592. R E S E N D E , Garcia de - puchinha, ao lado de outras figuras de primeiro pla-
Crónica de Dom João 11 e miscelânea. Ed. Joaquim Veríssimo Ser- no como Francisco de Alesi e Bernardino D'Asti.
rão. Lisboa, 1973. S A N T A M A R I A , Agostinho de - Santuário mariano. Decisiva para a vitória dos Capuchinhos na consecu-
Lisboa Ocidental: Of. António Pedrozo Galrão, 1721, vol. 7. S O U S A ,
Manuel Caetano de - Memórias da dignidade e oficio da Capela são dos seus intentos foi a protecção de Catarina Ci-
Mor dos Reis de Portugal. BN. F. G. cod. 13 e 11 206. Manuscrito de bo, sobrinha de Clemente VII e duquesa dc Cameri-
1706. no, em cujos domínios exerceram apreciável acção
pastoral e caritativa. O papa Clemente VII, por breve
CAPELAS. V. INSTITUIÇÕES PIAS.
de 3 de Julho de 1528, concedia aos Capuchinhos
existência canónica. Com o fim de se subtraírem aos
CAPUCHINHOS (Ordem dos Frades Menores Ca- contínuos incómodos dos confrades, pediram autori-
puchinhos). Constituem o terceiro ramo da família zação para se colocarem sob dependência dos meno-
franciscana (v. FRANCISCANOS) actualmente existente res conventuais. Já em número de 12, reuniram-se
e, com os Frades Menores Observantes e os Frades em Albacina e aí redigiram as primeiras constitui-
Menores Conventuais, têm São Francisco de Assis ções baseadas na regra e no testamento de São
como pai e fundador. 1. Uma reforma franciscana. Francisco. Elegeram como primeiro-vigário o pa-
1.1. Origens: Os Capuchinhos fonnam uma das maio- dre Mateus de Baseio mas este, por não se sentir vo-
res reformas surgidas no seio da família franciscana. cacionado para o governo dos irmãos, renunciou
Nasceram por volta de 1525 na Província das Mar- pouco depois, na pessoa do padre Ludovico de Fos-
cas, Nordeste italiano, junto ao Adriático. Já no tem- sombrone. Rapidamente se multiplicaram por toda a
po de São Francisco se perfilavam duas tendências: Itália tanto os Capuchinhos como os conventos que
a dos «espirituais», que pretendiam manter-se fiéis iam fundando. Data marcante na estruturação da fa-
aos tempo heróicos das origens, e a dos «doutos», mília capuchinha foi o capítulo geral de 1536 cele-
gente de cultura que em grande número pedia in- brado em Roma, onde foram redigidas novas cons-
gresso na ordem minorítica (caso de Santo António tituições que haveriam de manter-se inalteráveis
de Lisboa), sobre cujos ombros recaía a responsabi- quase durante quatro séculos. Não obstante as pro-
lidade do governo e da adaptação da ordem às novas vas sérias a que foram sujeitos os Capuchinhos, no
circunstâncias e solicitações da Igreja. Além disso, meio de lutas externas e crises internas e sobretudo da
devido a factores internos e externos tendentes à des- apostasia do famoso geral e pregador padre Bernardino
caracterização do projecto franciscano inicial, surgiam

288
CAPUCHINHOS

frequentes epidemias, assistência aos soldados em


tempos de guerra, actividade diplomática, sobretudo
ao serviço da Santa Sé* no decurso do século xvii.
Recorde-se a interessante iniciativa dos capuchinhos
franceses no combate aos incêndios, sendo conside-
rados, por isso, os precursores dos bombeiros volun-
tários. Os estudos e cultivo das ciências foram rejei-
tados pela primeira geração; mas, sobretudo a partir
do Concílio* de Trento (1563), admitiram-nos, em-
bora com algumas reservas. Isso não impediu que
nas fileiras dos Capuchinhos houvesse grandes figu-
ras intelectuais, como São Lourenço de Brindes,
Doutor da Igreja, falecido em Lisboa a 22 de Julho
de 1619, autor de uma vasta obra literária compen-
diada na Opera Omnia editada há algumas décadas
em 15 grossos volumes. Nos últimos tempos os Ca-
puchinhos vão acompanhando as restantes ordens e
congregações religiosas no cultivo das ciências, che-
gando mesmo a fundar e dirigir alguns colégios de
renome. Nunca quiseram ter universidades próprias,
mas numerosos capuchinhos têm dado o seu contri-
buto em diversas universidades. Expressão da sua
vitalidade pastoral são as numerosas congregações
de Ochino, a sua reforma foi-se consolidando e cres- por eles fundadas ou a eles agregadas. Contam-se
cendo. Por razões que certamente tinham a ver com mais de 100, das quais nove masculinas. Ao polaco
a existência de outras reformas franciscanas noutros Beato Onorato de Biala, falecido em 1916 e beatifi-
países, como os Descalços ou Alcantarinos em Espa- cado por João Paulo II, deve-se a fundação de 25
nha, os Capuchos em Portugal e os Recolectos em desses institutos. A Ordem dos Capuchinhos conta ac-
França, Paulo III decretou em 1545 a proibição de os tualmente com 11 santos e 15 beatos, entre os quais o
Capuchinhos se estenderem para fora de Itália. Esse mártir Cassiano de Nantes, filho de portugueses e
decreto viria a ser revogado 19 anos mais tarde, em nascido em França. 1.3. Crescimento e expansão:
1574, por Gregório XIII, que deu liberdade aos Ca- A partir de 1574 os Capuchinhos puderam ultrapas-
puchinhos de se expandirem para qualquer parte do sar os Alpes e chegar a França, onde se propagaram
mundo. 1.2. Características dos Capuchinhos: Exter- extraordinariamente, tendo contado com 14 provín-
namente, os Capuchinhos distinguiram-se pela sim- cias, 438 conventos e 6176 religiosos. Em 1587 fo-
plicidade no vestuário, com um hábito de capuz pon- ram para a Bélgica, em 1589 para a Suíça e em 1593
tiagudo, pequena capa, sandálias e uso da barba. para a Áustria. Em 1599 entravam na Checoslová-
Alguns destes elementos secundários foram sendo alte- quia e, no ano seguinte, na Baviera. À Irlanda chega-
rados sobretudo nos últimos anos. Espiritual e doutri- ram em 1615, e à Polónia em 1681. Na vizinha Es-
nalmente, sublinhavam certos pontos da espiritualida- panha entraram por Barcelona, onde construíram o
de franciscana, como: observância literal da regra na primeiro convento em 1558, propagando-se em se-
qual estava incluído o testamento do fundador; dis- guida por Valença, Aragão, Castela, Andaluzia e Na-
tribuição do tempo entre a oração, o descanso e o varra. Seria esta uma das boas oportunidades para se
apostolado, com acento na oração contemplativa. implantarem em Portugal, mas, não se sabe bem por-
Por isso, as casas deveriam ser construídas em am- quê, isso só aconteceu em 1934 com a vinda de al-
bientes eremíticos, embora não tão longe das povoa- guns capuchinhos foragidos da guerra civil que en-
ções. A austeridade e pobreza, tanto individual como tão assolava aquele país. Ao fim de um século
colectiva, era garantida pela renúncia a privilégios atingiam a consolidação e entravam numa fase de
concedidos por diversos papas à ordem franciscana, enorme crescimento. Em 1608 Paulo V publicou
renúncia à remuneração dos trabalhos apostólicos e uma constituição apostólica em que reconhecia e de-
recurso à mendicância como meio de subsistência. clarava os Capuchinhos verdadeiramente menores e
No apostolado, a preferência ia para a pregação po- filhos de São Francisco, a par dos outros ramos da
pular e para as missões entre «infiéis». Estas e outras família franciscana. Por fim, a 23 de Janeiro de 1619
determinações das Constituições de Albacina (1529) o mesmo papa, mediante o breve Alias felicis recor-
dationis, suprimia a dependência em que a ordem se
foram revistas em 1536, resultando daí um texto mais achava em relação ao geral dos conventuais. Daí em
ajustado aos objectivos pretendidos pela nova família. diante, o moderador dos Capuchinhos será chamado
As actividades dos Capuchinhos podem dividir-se em ministro-geral e deverá ser considerado legítimo su-
permanentes e ocasionais. Nas primeiras estão incluí- cessor de São Francisco. Repetia-se o que em 1517
das a pregação e as missões nos diversos continen- fora decidido para os observantes e para os conven-
tes, numa linha de continuidade até aos nossos dias. tuais. Desapareciam, assim, alguns condicionalismos
As ocasionais são as que, não obstante estarem pou- jurídicos que até aí limitavam e complicavam o na-
co dentro da tradição franciscana, foram aconselha- tural desenvolvimento dos Capuchinhos, iniciando-
das por força das circunstâncias. Estão neste caso a -se um período que os projectava para o seu máximo
assistência aos doentes nos hospitais e às vítimas das
289
CAPUCHINHOS

desenvolvimento histórico. Já presentes em quase to- necessário terem casa cm Lisboa, que lhes servisse
dos os continentes, em 1754 atingiam o auge com 63 de procuradoria junto do governo de Portugal, pois,
províncias, 17 154 conventos e 32 821 membros. No até então, os missionários italianos que se dirigiam
fim do século xvin, devido às convulsões político- para Angola ou de lá voltavam hospedavam-se na
-sociais derivadas da Revolução Francesa, os Ca- casa dos franceses. Em 1692 os capuchinhos italia-
puchinhos, tal como as demais ordens religiosas, nos arranjaram casa própria, que nos primeiros tem-
sofreram diversas vicissitudes que culminaram na pos foi administrada por religiosos da Província de
supressão. Em 1847 contavam 11 152 membros; em Génova, e mais tarde por superiores de diversas pro-
1910, 7 628. Daí em diante o quadro estatístico subi- víncias italianas. A 10 de Junho de 1692, as comen-
ria para 15 722 em 1965, voltando a descer nos nos- dadeiras de santos da Ordem Militar de São Tiago da
sos dias. 2. Missões capuchinhos nos domínios de Espada fizeram-lhes doação do usufruto das casas
Portugal (séculos xvu-xix): A presença estável dos que tinham habitado antes de se transferirem para
Capuchinhos em Portugal data de 1648, ano em que novo mosteiro. Algum tempo depois, o padre Paolo
a província da Bretanha fundou comunidade em Lis- Varazze, procurador dos Capuchinhos e primeiro supe-
boa numa casa doada pelo duque de Aveiro, com rior da nova residência, escrevia para Roma dizendo
aprovação de D. João IV. Por ali passariam centenas que tinha prontas 23 celas. Essa foi a casa que habi-
de missionários franceses e, durante algum tempo, taram, de 1692 a 1742. Após 50 anos, viria a ser
também italianos. Estes, a partir de 1692, começaram substituída por uma outra, construída de raiz, com a
a residir em casa própria. As duas casas funcionavam igreja e cerca, mandada edificar a expensas do rei
como procuradorias para assuntos missionários pe- D. João V, que por tudo pagou 50 000 cruzados (vin-
rante as autoridades civis. 2.1. Capuchinhos france- te contos de réis). Ainda hoje existem essas insta-
ses: Já em 1612 os capuchinhos franceses estavam lações, que compreendem o Convento e a Igreja de
presentes no Brasil, onde desenvolviam relevantes ser- Santa Engrácia, perto de Santa Apolónia. A igreja é
viços de promoção espiritual e cultural, sobretudo nas sede da paróquia do mesmo nome e o convento en-
regiões de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. As- contra-se habitado por várias famílias. Em frente
sim, de 1648 em diante e principalmente de 1687 até existe a Rua dos Barbadinhos, designação pela qual
ao fim do século xvin, os capuchinhos franceses de eram conhecidos popularmente os Capuchinhos em
Lisboa tiveram grande preocupação e fizeram mui- Lisboa, devido ao uso da barba. Nessa casa, cons-
tos esforços para enviar confrades que, no Brasil, truída para os missionários, viriam a albergar-se fi-
não deixassem acabar as missões aí começadas com guras eminentes tanto de eclesiásticos como de civis.
muito fruto e benefício. Tiveram grande apoio da Vários núncios apostólicos residiram lá_temporaria-
rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, enquan- mente, entre os quais o cardeal Miguel Ângelo Con-
to esta viveu. Após a sua morte, com receio de que a ti, que viria a ser papa com o nome de Inocên-
presença de missionários franceses em território brasi- cio XIII. Aquelas instalações estiveram ao serviço
leiro pudesse apoiar as pretensões da França de se dos capuchinhos italianos até ao dia 3 de Julho de
apoderar daquela possessão portuguesa, como diver- 1834. Nesta data, os oito últimos voltaram para a sua
sas vezes tentara, o governo português opôs-se ao pátria em obediência ao decreto de supressão das or-
envio de mais missionários para o Brasil. Perante is- dens religiosas, promulgado em Portugal por D. Pe-
so, os superiores da Bretanha determinaram o re- dro e redigido pelo seu ministro Joaquim António de
gresso a França dos últimos nove súbditos que lá Aguiar, conhecido pela alcunha de Mata-frades. O tra-
trabalhavam. E assim acabou aquela missão dos ca- balho dos missionários capuchinhos foi enorme nos
puchinhos franceses, que durante 60 anos lá exerce- domínios de Portugal, e teve como principais cam-
ram notável actividade. A sua casa em Lisboa mante- pos de acção Angola* e o Brasil*. Neste último, lo-
ve-se, dedicando-se os religiosos que nela habitavam go que se reuniram condições políticas, os italianos
à assistência espiritual da colónia francesa em Portu- substituíram os franceses que tinham sido forçados a
gal. Viria a exercer um papel importante por ocasião abandonar aquelas terras lá pelos anos de 1615. Tal-
da Revolução Francesa, acolhendo e dando asilo a vez porque a influência dos missionários italianos
todos os capuchinhos fugidos ou expulsos da França, fosse considerada um risco menor que a dos france-
que foi possível albergar. E de referir também a pre- ses, as autoridades portuguesas deram àqueles nova
sença de alguns desses missionários nas ilhas de Cabo oportunidade, que eles aproveitaram, indo ocupar os
Verde (1635) e de São Tomé (entre 1639 e 1653). postos deixados pelos seus confrades de França.
O mesmo se diga da Guiné (a partir de 1637), donde Deste modo, em 1705 era-lhes entregue o hospício
saíram por volta de 1642 expulsos pelos Holandeses da Bahia, e em 1725 a Propaganda Fide confiava-
que entretanto se haviam apoderado daquela terra. -lhes a prefeitura de Pernambuco, o mesmo aconte-
Os capuchinhos franceses em terras de Portugal tive- cendo em 1737 com a do Rio de Janeiro. A partir de
ram vida bastante atribulada, devido ao padroado então, os missionários capuchinhos italianos intensi-
exercido pelos nossos reis sobre os territórios desco- ficaram o seu apostolado no Brasil, abrindo numero-
bertos ou conquistados pelo Portugueses e também sas missões. 2.3. Na Africa portuguesa: Em 1637, o
ao facto de a França ter mostrado pretensões sobre bretão padre Angélico de Nantes e mais três missio-
territórios brasileiros. 2.2. Capuchinhos italianos: nários chegavam à Guiné*, donde seriam expulsos
Também os capuchinhos italianos, a pedido da Pro- em 1644 pelos calvinistas holandeses. Entre 1635 e
paganda Fide, envidavam esforços para organizar 1644 os capuchinhos da Normandia trabalharam em
missões em territórios ultramarinos portugueses des- Cabo Verde*; porém, desagradados com o clima,
de 1641. Sendo assim, tornava-se conveniente e até deixaram aquele arquipélago. De 1645 a 1688, nu-

290
CAPUCHINHOS

merosos missionários de diversas províncias espa- teceu com D. João V: havendo 127 capuchinhos no-
nholas abriram missões na Serra Leoa (Guiné); mas, meados, só permitiu a partida de 112. Dos 306 que
pelo mau relacionamento entre Portugal e a corte es- chegaram ao Congo até 1746, 144 findaram os seus
panhola, o governo português proibiu-os de lá conti- dias naquelas paragens, vitimados pelo clima doen-
nuar. Nos vastos territórios africanos do Padroado tio. Por esse motivo, aquele difícil campo missioná-
Português, seriam uma vez mais os italianos a deixar rio foi chamado o «cemitério dos Capuchinhos». Ini-
marcas indeléveis de profunda acção missionária e cialmente, os capuchinhos enviados para África pela
de civilização. Os reinos do Congo, Angola, Matam- Propaganda Fide eram oriundos de vários países eu-
ba, Makoko, Casanje e outros já tinham sido evange- ropeus, principalmente da Itália e da Espanha; mas,
lizados pelos franciscanos* e jesuítas* portugueses, pelos motivos já referidos, logo se fechou a porta
mas no princípio do século xvn encontravam-se to- aos oriundos do país vizinho, ficando apenas os ita-
talmente abandonados. Quer o rei do Congo, Álva- lianos, que ali desenvolveram relevante acção nos
ro III, quer a rainha Ginga de Matamba, pediram ao campos da fé e da cultura. Entre outras obras ficou
papa o envio de missionários. Em resposta, Paulo V célebre a Histórica descrição dos três reinos do
solicitou em 1618 aos Capuchinhos reunidos em ca- Congo, Matamba e Angola escrita pelo missionário
pítulo geral que se encarregassem dessas missões. capuchinho padre João António Cavazzi, que duran-
O pedido foi acolhido e, orientados pela Propaganda te 25 anos atravessou aqueles vastos territórios. Fin-
Fide, em 1640 aprontaram o primeiro grupo, à frente da a segunda guerra de 1939-1945, os capuchinhos
do qual ia o padre Boaventura de Alessano. Con- italianos expulsos pelos Ingleses da Abissínia (prin-
tudo, somente cinco anos mais tarde lhes foi permiti- cipal campo missionário que então serviam) dili-
do seguir para o Congo. A razão era sempre a mes- genciaram no sentido de se passar de novo à África
ma: o receio de que cidadãos estrangeiros, sobretudo portuguesa. Recebida autorização dos governantes
espanhóis, minassem a soberania de Portugal nos portugueses, abriram várias missões em Angola, Mo-
longínquos territórios do ultramar. No reinado de çambique* e Cabo Verde. Desde 1947, ano em que os
D. João IV, dos 72 missionários propostos apenas 61 primeiros sete missionários partiram para Angola, os
foram autorizados a partir. Dos 29 enviados no tem- Capuchinhos mantêm-se naqueles países, agora inde-
po de D. Afonso VI, somente a seis foi dado o visto. pendentes, realizando uma notável e meritória acção
A Propaganda Fide designou 161 capuchinhos entre de promoção humana nos mais diversos domínios.
1667 e 1703, mas D. Pedro II só autorizou a partida 3. Fundação dos Capuchinhos em Portugal. 3.1. Os
de 127 para a África* portuguesa. Outro tanto acon- precursores: Tendo em conta o que até agora disse-

Igreja e convento de Barcelos (século xx), berço dos capuchinhos portugueses.


CAPUCHINHOS

mos, é estranho que nunca em Portugal se tenha im-


plantado a ordem capuchinha. Não obstante isso,
houve pelo menos 70 portugueses que durante esse
período histórico se fizeram capuchinhos no es-
trangeiro. Precisamente 100 anos após a retirada
forçada dos capuchinhos italianos da casa que em
Lisboa para eles mandara construir D. João V
em 1739, os Capuchinhos regressavam de novo a
Portugal, desta vez vindos da Espanha. Em busca
de um possível refúgio na hipótese das perseguições
e expulsões que se previam naquele país em guerra
civil (1930-1936), alguns capuchinhos das provín-
cias de Andaluzia e Castela foram enviados a Portu-
gal em 1932. O primeiro foi o padre José de Castro
dei Rio, que, em Serpa e mais tarde em Beja, esco-
lheu o local para uma estada que havia de ser provisó-
ria e breve. No mesmo ano, o provincial dos capuchi-
nhos de Castela, padre Félix Maria de Vegamián, com
o seu secretário dirigiram-se ao Minho, onde o ar-
cebispo de Braga, D. António Martins Júnior, lhes
indicou Barcelos e Ponte de Lima. Como, porém,
nenhuma dessas províncias pensava implantar a
ordem capuchinha em Portugal, o padre Francisco
Leite de Faria, que se fizera capuchinho na Provín-
cia de Castela e então estudava em Roma, diligen-
ciou perante o ministro-geral da ordem no sentido
de ser aproveitada oportunidade para essa funda-
ção. Assim, a 1 de Março de 1939, o ministro-
-geral Donato de Welle, depois de ter ele mesmo
feito sondagens no nosso país, fundava oficialmen-
te o assim chamado Comissariado-Geral de Portu-
gal, nomeando para primeiro comissário o catalão Fotografia de D. Francisco da Mata Mourisca (1967),
padre Damião de Odena, que durante 12 anos de- primeiro bispo capuchinho português.
sempenhara o oficio de vice-secretário-geral na cú-
ria-geral da ordem. Estava implantada, pela primeira
vez na história, a ordem capuchinha em Portugal. dres Cornélio de San Felices (1957-1961) e Francisco
A seguir, foram organizadas as casas de formação. da Mata Mourisca (1967-1969), hoje bispo do Uíje,
Para os primeiros anos foi alugada uma casa em Fa- em Angola. A 27 dc Junho de 1969, a Sagrada Con-
fe, que provisoriamente serviu dc seminário menor gregação dos Religiosos e dos Institutos Seculares
até à sua instalação na cidade do Porto, ao Amial, assinava em Roma o rescrito n.° 4999/57, que autori-
em 1941. Para o noviciado e estudo da Filosofia foi zava o ministro-geral a elevar o comissariado a uma
escolhida a cidade de Barcelos, onde os Capuchi- província da ordem. Dois dias depois, o ministro-
nhos adquiriram uma pequena casa próximo da Igre- -geral Clementino de Vlissingen tornava efectiva a
ja de Santo António, mais tarde ampliada. A teo- fundação da nova província portuguesa dos Capu-
logia* foi sendo ministrada, sucessivamente, nas chinhos. A partir de então, presidiram aos destinos
províncias espanholas de Navarra, Castela e Valên- dos Capuchinhos em Portugal como ministros pro-
cia, e na província francesa de Tolosa, até que em vinciais: os padres António Monteiro (1969-1975 e
1966 os estudos superiores se'fixaram definitiva- 1981-1987), actual bispo de Viseu, Victor Arantes da
mente na referida casa do Porto, entretanto remode- Silva (1975-1981), Carlos Fernandes Pereira de Car-
lada. O comissariado era constituído desde o início valho (1987-1990), Manuel Arantes da Silva (1990-
por capuchinhos de várias províncias espanholas, e, -1996) e João José Costa Guedes da Silva (desde
a partir de 1945, também por brasileiros oriundos Maio de 1996). As actividades dos capuchinhos por-
das províncias do Rio Grande do Sul e de São Paulo. tugueses são diversas, abrangendo sobretudo a pas-
Parte dos capuchinhos espanhóis terminaram em toral bíblica, mas também a pastoral paroquial, a
Portugal os seus dias, tendo os brasileiros regressado pregação e as missões populares, capelanias de hos-
todos ao seu país. 3.2. Organização e crescimento: pitais, missões em Angola, ensino médio e universi-
Entretanto, os capuchinhos portugueses foram cres- tário e apostolado castrense. Embora o serviço paro-
cendo em número de religiosos, casas e actividades quial não faça parte da tradição dos Capuchinhos,
ao longo dos últimos 58 anos de existência no país. atendendo aos insistentes pedidos da hierarquia um
Foram superiores, na qualidade de comissários- pouco por todo o mundo a ordem vai aceitando essas
-gerais, os padres Damião de Ódena (1939-1948), tarefas. Actualmente, a província portuguesa tem a
José de Castro dei Rio (1948-1951), Mateus do Sou- seu cargo as paróquias da Baixa da Banheira (Setú-
to (1951-1955) e Cornélio de San Felices (1955- bal), Calhariz de Benfica (Lisboa), Cabanas de Vi-
-1957); na qualidade de comissários provinciais, os pa- riato (Viseu) e Amial (Porto). Na área da saúde, ser-
viram o Instituto de Oncologia e a Cruz Vermelha de

292
CAPUCHINHOS

Lisboa, e os hospitais militares de Lisboa e do Porto. Catete. Devido às turbulências da independência e


Actualmente são capelães no Hospital de Santa Ma- guerra civil, apenas restavam naquele país, em 1976,
ria e no Instituto de Oncologia do Porto, na Casa de cinco missionários. Presentemente, trabalham naque-
Saúde de Coimbra e no Hospital de Barcelos. le campo de apostolado, mas integrados na vice-
3.3. Missões populares: Entre a pregação popular di- -província de Angola, entretanto criada, seis capu-
rigida aos mais diversos auditórios em forma de reti- chinhos portugueses. 3.5. Apostolado bíblico: No
ros, tríduos, sermões, semanas de pregação e nove- capítulo provincial de 1975, os capuchinhos portugue-
nas, avultam as missões populares dirigidas por ses faziam opção preferencial por este apostolado. Na
vários missionários durante 15 dias, quer nas aldeias, sua origem, que remonta a 1951, está a figura caris-
quer nas cidades. Começaram nas décadas de 40 e mática do padre Inácio de Vegas, um dos primeiros
50, após a chegada a Portugal do padre Francisco membros desta ordem que vieram de Espanha. En-
Leite de Faria em 1938, dos irmãos gémeos padres tão, o apostolado bíblico em Portugal, no que se re-
Mateus e padre Jerónimo do Souto e do padre Ber- fere à edição e difusão dos livros sagrados, era quase
nardino de Vilas Boas, estes três últimos vindos do um exclusivo das confissões protestantes. Tocado
Brasil. Registamos algumas das missões que tiveram pelo desconhecimento do nosso povo relativamente
maior impacte, entre 1947 e 1987, já com a colabo- à Sagrada Escritura, propôs-se alterar a situação. As
ração de pregadores das novas gerações: Sé Nova de suas primeiras publicações foram: Concordância dos
Coimbra (Março de 1947), Nossa Senhora de Fáti- Evangelhos: Jesus meu Caminho, Verdade e Vida,
ma, em Lisboa (Maio de 1949), Guimarães (Dezem- Famalicão, 1951; História de Jesus segundo a con-
bro de 1949 e Dezembro de 1951), Chaves (Abril de cordância dos Evangelhos: Pensamentos do Santo
1960), Viana do Castelo (Fevereiro de 1964), Mon- Evangelho para todos os dias do ano, Beja, 1951.
temor-o-Novo (Novembro de 1964), Lamego (Junho A partir de 1955 pôde trabalhar mais livremente, e a
de 1964), Covilhã (Maio de 1966), Póvoa de Varzim 25 de Fevereiro desse ano era fundada a editorial Di-
(Abril de 1967), Bragança (Maio de 1968). 3.4. Mis- fusora Bíblica e a revista Bíblica. A revista, com
sões ultramarinas: No que se refere às missões ul- uma tiragem inicial de 3000 exemplares, no ano se-
tramarinas distinguem-se dois períodos. O primeiro guinte já atingia 7500; hoje, após 43 anos de existên-
remonta a 1944, ano em que o padre Francisco Leite cia, conta com 15 000 assinantes. Por sua vez, a Di-
de Faria, à frente de um grupo de confrades suíços, fusora Bíblica editou a Bíblia sagrada (1966), que
se dirigiu para a diocese da Beira, em Moçambique. vai na 19.a edição e já ultrapassou um milhão e du-
Como, porém, a intenção dos quatro missionários zentos e dez mil exemplares; Os quatro Evangelhos
helvéticos era passar, logo que possível, às suas mis- e Novo Testamento, em formato maior e de bolso,
sões de Tanganhica e das Seychelles, poucos anos ambos na 10.a edição; e muitas outras publicações,
decorridos concretizaram esse plano, regressando o como: colecção Cadernos Bíblicos, já com 55 núme-
padre Francisco a Portugal em 1948. O segundo pe- ros; Atlas bíblico geográfico-histórico (em 3.''edi-
ríodo iniciou-se dez anos mais tarde, com a abertura ção); Dinamização bíblica do povo de Deus; a tri-
de uma missão em Angola. O primeiro grupo era logia bíblico-litúrgica sobre Mateus, Marcos e Lu-
constituído apenas por dois missionários: o brasilei- cas; A mesa da Palavra, etc. O empenhamento neste
ro (nacionalizado português) padre Cirino de Getúlio apostolado levou os capuchinhos portugueses a in-
Vargas, e o padre Lourenço Torres Lima, o primeiro vestir sempre mais em pessoas e meios. Quatro
português formado e ordenado em Portugal. Pouco formaram-se em Sagrada Escritura pelo Instituto
depois juntaram-se-lhes Frei Egídio da Carpalhosa, o Bíblico Pontifício de Roma, e grande parte deles
Irmão António e o goês padre Aleixo de Calangute. dedica-se ao trabalho directo, que se estende aos
Nos primeiros dez anos fundaram os postos missio- Açores, à Madeira e às comunidades de emigrantes
nários de Nambuangongo, Caxito, Dande, São João portugueses de todos os continentes. Tudo isto con-
do Encoje e Nova Caipemba. Nesse período regista- flui hoje no Movimento Nacional de Dinamização
ram-se 8622 baptismos e 168 casamentos; funda- Bíblica, abrangendo três áreas: edição e difusão (Di-
ram-se 20 escolas primárias com 1027 alunos e dois fusora Bíblica), formação básica e dinamização
internatos; construíram-se as capelas de Porto Kipiri, (equipa bíblica, através de cursos de iniciação, secre-
Quikabo, Nambuangongo e Nava. Na segunda déca- tariado nacional e secretariados regionais) e forma-
da foram enviados novos missionários que construí- ção permanente (cursos e semanas de vários temas e
ram a Casa e Igreja de Santo António em Luanda e graus, revista Bíblica, grupos bíblicos, cursos para
estenderam as actividades ao distrito do Uíje. O pa- animadores de grupos bíblicos, cursos de agentes
dre Francisco da Mata Mourisca, que na qualidade de pastoral bíblica e retiros bíblicos). Dentre estas
de comissário provincial visitara os missionários em actividades, merecem particular menção as 20 Se-
1964, veio a ser nomeado primeiro bispo de Carmo- manas Bíblicas Nacionais e as muitas regionais
na-São Salvador (actual Uíje), tomando posse a 30 realizadas em Portugal continental e insular, sem-
de Julho de 1967. Ainda lá se conserva hoje, mas pre com numerosa participação. Em cada uma é
apenas como bispo do Uíje. Por decreto de 2 de No- tratado um tema bíblico, pelos melhores especia-
vembro de 1968, o ministro-geral dos Capuchinhos listas nacionais. Os trabalhos de seis delas foram
cria a Missão Regular dos Padres Capuchinhos, o que publicados em livro, tendo como título o tema da
lhes dá direito a eleger os seus próprios superiores e semana; os das últimas cinco apareceram na Bíbli-
a organizarem-se autonomamente. Em 1972, os ca/série científica, entretanto criada. Para manter
12 missionários então a trabalhar em Angola ser- viva a chama das largas centenas de grupos bíbli-
viam as quatro missões do Caxito, Luanda, Uíje e cos nascidos dos cursos e apoiados pela revista,

293
CAPUCHINHOS

desde há 18 anos vem-se realizando em Fátima o Carmelo. Chegamos a esta conclusão baseando-nos
Encontro Nacional dos Grupos Bíblicos, que reüne nas palavras da regra: «visto que nos pedis uma Nor-
mais de 3000 participantes. Em Fátima foi inaugu- ma de Vida que corresponda à vossa aspiração». Em
rado, em 1992, o Centro Bíblico dos Capuchinhos. 1215, o Concílio de Latrão proíbe o estabelecimento
E também para Fátima transferiu a Difusora Bíbli- de novas ordens religiosas. Vários prelados da Terra
ca a sua sede, com uma livraria e uma biblioteca, Santa começaram a contestar o direito da existência
desde 1997. dos Carmelitas, visto eles não terem ainda aprovação
ALBINO FELICÍSSIMO pontifícia. Os Carmelitas recorrem a Roma. Depois
de várias insistências chega finalmente a aprovação,
BIBLIOGRAFIA: A L A T R I , Mariano de - / Cappuccini. Roma: Istituto Storico dada pelo papa Honório III em 30 de Janeiro de
dei Cappuccini, 1 9 9 4 . A L A T R I , Ottavio de I Cappuccini negli ospedali 1226 com a bula Ut vivendi norman: «mandamos, a
di Roma. L'Italiafrancescana. 1 2 ( 1 9 3 7 ) 1 2 1 - 1 3 7 . A L E N Ç O N , Eduardo
de Bibliotheca mariana OFM-Cap. Roma, 1 9 1 0 . IDEM - Tribulationes vós e aos vossos sucessores, que observeis em re-
OFMCap. (1534-1541). Roma, 1 9 1 4 . IDEM - Collegii S. Fidélis pro missão dos vossos pecados, na medida do possível, a
missionibus OFM-Cap. conspectus Historicus. Roma, 1 9 2 6 . A N V E R S A , Regra que vos foi dada pelo Patriarca de Jerusalém,
Ferdegando de - L'apostolat des Frères Mineurs C. In LIBER memoria-
lis, 1 9 2 8 , p. 1 - 1 5 . B O V É R I O , Zacarias de Saluzzo - Annales Ordinis de santa memória, pois que humildemente afirmais
S. Francisci Capuccinorum 1-11. Liào, 1 6 3 2 - 1 6 3 9 . B U S S U M , Vito de - La tê-la recebido antes do Concílio Geral». As primei-
nostra educazione francescano-c. Gioventu nostra. 1 ( 1 9 4 6 ) 1 0 0 - 1 1 5 . ras fundações mostram claramente a intenção dos
C A S T E L L A N Z A , Imério de - Gli angeli delle armate: 1 cappellani militari
c. Bérgamo, 1 9 3 7 . CAVAZZI, João Maria - Descrição histórica dos três eremitas levarem uma vida solitária e contemplativa.
reinos do Congo. Matamba e Angola. Lisboa: JIU, 1 9 6 5 . 2 vol. C E S I N A - Prova disto são os conventos de Aygalades, perto de
LE, R O C C O de - Storia delle missioni dei c. Paris, 1 8 6 7 , vol. 1; Roma,
1 8 7 2 - 1 8 7 3 , vol. 2 , 3 . C O L P E T R A Z Z O , Bernardino de - Historia Ordinis
Marselha, Aylesford e Cambridge, que foram verda-
Fratrum Minorum Capuccinorum. Assis, 1 9 4 0 . E L I Z O N D O , Fidélis - deiros eremitérios construídos segundo a Regra de
Constitutiones Ordinis Fratrum Minorum Capuccinorum. Roma: Cúria Santo Alberto. A vinda para a Europa foi quase uma
Geral dos FM-Cap„ 1 9 8 6 . 3 vol. F A R I A , Francisco Leite dc Tentativas
frustradas para uma casa de capuchinhos italianos em Lisboa. In Mis- aventura, sendo assumida mais tarde em 1237, devi-
CELLANEA Melchior de Pobladura. Roma, 1 9 6 4 . IDEM - Os Capuchinhos do às perseguições islâmicas. Todos os eremitas eu-
em Portugal e no ultramar português. Anais da Academia Portuguesa ropeus recebem ordens de regressar aos seus países
da História. Lisboa. ( 1 9 8 2 ) . IDEM - Os Capuchinhos em Portugal antes
dc 1939. In AAVV - Os Capuchinhos em Portugal: memória de um de origem. Este êxodo foi providencial, pois em
cinquentenário. Lisboa: Difusora Bíblica, 1 9 9 0 . IRIARTE, Lázaro - His- 1291 os religiosos que continuaram no monte Car-
tória franciscana. Petrópolis: Vozes, 1 9 8 5 . M O R G A D O , José Joaquim Lo- melo foram massacrados. Não foi fácil a adaptação à
pes - O Apostolado Bíblico: herança e opção dos capuchinhos portu-
gueses. In AAVV - Os Capuchinhos em Portugal: memória de um Europa. Foi nestas circunstâncias difíceis que se ce-
cinquentenário. Lisboa: Difusora Bíblica, 1 9 9 0 . N E G R E I R O S , Fernando lebrou o primeiro capítulo-geral em Aylesford em
de Os Capuchinhos em Portugal: memória de um cinquentenário. 1245, sendo eleito prior-geral Simão Stock. Este so-
Lisboa: Difusora Bíblica, 1 9 9 0 . N E M B R O , Metódio de - Spiritualità dei
c. L ltalia Francescana. 4 1 ( 1 9 6 6 ) 2 4 4 - 2 5 5 , 4 0 7 - 4 1 5 . P O B L A D U R A , Mel- licitou ao papa a adaptação da regra às novas situa-
chior de - Historia generalis OFM-Cap. 1525-1761. Roma, 1948. 4 ções. Esta adaptação foi-lhe concedida pelo papa
vol. S A L Ó , Matias de - Historia Capuccina. Roma, 1 9 5 0 . 2 vol. S A R A C E - Inocêncio IV em 1 de Outubro de 1247, mediante a
NO, Mario de Mercato - Relationis de origine Ordinis Minorum Capuc-
cinorum. Assis, 1937. bula Quase Honorem Conditoris. Mediante a adapta-
ção da regra, iniciou-se uma nova vida na ordem
carmelita. O geral Simão Stock pensa na parte inte-
CAPUCHOS. V. FRANCISCANOS. lectual e cultural dos membros da ordem; por isso
abriu conventos nas cidades universitárias: Cambri-
CARMELITAS (Ordem d o Carmo). 1. Origens:
dge, 1249; Oxford, 1253; Paris, 1259; Bolonha,
Quanto à data do início da ordem carmelita, não há 1260. Como já dissemos a vida na Europa não foi
muita certeza. Apesar de tudo, pensamos que pode- nada fácil. Por um lado, as pessoas não os acolhem
mos ficar com algumas datas certas para a origem da bem, pensando que são mais uns tantos que vêm vi-
ordem carmelita. Entre 1153 e 1159, Bertoldo, por ver à custa das suas esmolas; por outro, são os pró-
inspiração do profeta Elias, dirige-se para o monte prios eremitas que têm dificuldades de adaptação à
Carmelo. Aí, com o auxílio do seu primo, o patriarca nova situação. O geral de então, Nicolau, o Francês,
D. Aimerico de Antioquia, constrói uma pequena ca- sucessor de Simão Stock, tentou mesmo destruir a
pela perto da gruta de Elias e cerca as ruínas que obra do seu antecessor. Mas, quando sentiu oposi-
existiam por lá. Aos poucos cresce o número de ere- ção, demitiu-se e resolveu retirar-se para a solidão,
mitas que se espalham pelo monte Carmelo, vivendo onde escreveu a célebre Sagitta ígnea, em 1272. Aí
separados uns dos outros em pequenas cavernas, descreve as suas desilusões e convida todos a regressa-
procurando assim imitar o profeta Elias. Provavel- rem novamente à vida contemplativa na solidão dos
mente, em 1209, Alberto, patriarca de Jesusalém, dá- eremitérios. No decorrer dos séculos xv e xvi deram-
-lhes uma regra e reúne-os perto da fonte de Elias, -se duas reformas: uma, após o Cisma do Ocidente*;
sob a obediência de um certo B. (segundo se pensa a outra, depois do Concílio* de Trento. Da segunda
seria Bertoldo), que é assim, de facto, o primeiro ge- surgiram os Carmelitas Descalços. 3. História em
ral da ordem. Estes aí procuram imitar Elias no Vive- Portugal: Os Carmelitas chegaram a Portugal como
re Deo, no recolhimento e no silêncio. Nunca ne- capelães da Ordem Militar de São João de Jerusa-
nhum dos eremitas teve a pretensão de ser fundador. lém, vinda da Terra Santa, por volta de 1251. Come-
Para os Carmelitas, Elias não é o fundador, mas ape- çaram por viver em Moura. O convento onde habita-
nas o seu modelo e pai espiritual. 2. História geral: vam, no ano de 1421, contava já com quarenta e dois
Com a regra dada por Alberto de Jerusalém, os Car- religiosos. É a partir de Moura que os Carmelitas
melitas receberam a sua existência canónica. Pode- vão irradiar para quase todo o Portugal e Brasil. Em
mos por isso considerar esta regra como a codifica- 1347, D. Nuno Álvares Pereira constrói um conven-
ção da vida que os Carmelitas já levavam no monte

294
CARMELITAS

Carmelo da Sagrada Família em Moncorvo (Carmelitas da Antiga Observância).

to em Lisboa. Para este convento vieram religiosos mente a Portugal. 4. Expansão missionária: Os Car-
do convento de Moura, solicitados e indicados pelo melitas não tiveram grande tradição de missões no
próprio D. Nuno. Este doou depois o convento aos antigo ultramar português, como já dissemos. A ten-
Carmelitas; daí que se chame o Convento do Carmo. dência foi de partir para o país irmão. Também aí os
Em 1423 realiza-se o primeiro capítulo provincial Carmelitas entram como capelães. Desta vez, como
em terras de Portugal, sendo eleito provincial o capelães da expedição organizada pelo cardeal
Dr. Frei Afonso Leitão, ou de Alfama. Elaboraram- D. Henrique. Em 1579, o cardeal D. Henrique pla-
-se os primeiros estatutos, que foram aprovados por neava uma expedição sob o comando de Frutuoso
D. João I, em 1424. Em 1450 iniciou-se a constru- Barbosa, para povoar a Paraíba. Pede ao provincial
ção do convento de Colares, que só Frei Baltasar dos Carmelitas, Frei Damião da Costa, que lhe ceda
Limpo terminou em 1528. Este convento foi trans- capelães para acompanharem a expedição. Frei Da-
formado em convento eremítico da província, em mião da Costa acede ao pedido e manda como cape-
1617. Em 1495 fundou-se um convento na Vidi- lães Frei Domingos Freire, Frei Bernardo Pimentel,
gueira; em 1526, em Beja; em 1531, em Évora; em Frei Alberto e Frei António Pinheiro. Devido ao mau
1571, em Coimbra. Vão-se sucedendo as fundações tempo, a expedição não chegou à Paraíba. Frutuoso
no continente. Só em 1651 é que os Carmelitas vão regressou a Portugal mas os Carmelitas ficaram.
para as ilhas, erguendo o primeiro convento na ilha Em 1583 fundam o primeiro convento em Olinda.
do Faial. Em 1663 abrem um convento no Funchal. Em 1586 é fundado um convento na Bahia por Frei
Os Carmelitas nunca tiveram tradição de missões no Damião Cordeiro, que entretanto tinha também ido
antigo ultramar português. Apenas atravessaram os para o Brasil. Em 1589, os Carmelitas já estão em
mares para irem até às terras de Santa Cruz. Depois Santos; em 1590, no Rio de Janeiro. Em 1595 cons-
de tanto florescimento na ordem e na província, sur- tituem-se como vice-província, sendo nomeado co-
gem dificuldades e percalços, que irão agravar-se mo vigário provincial Frei João de Seixas. Final-
com o terramoto de 1755. Vários conventos são aba- mente, em 1596, abrem um convento na Paraíba. Em
lados, alguns destruídos, falecendo até alguns frades 1640 a vice-província passa a província, sendo pos-
carbonizados. Com isto, o fervor religioso também teriormente extinta por pressões do governo portu-
começa a esmorecer. Tudo termina com a expulsão e guês. Em 1685, a vice-província foi dividida em
extinção das ordens religiosas, ordenada por Joa- duas: Rio de Janeiro e Bahia-Pernambuco. Os anos
quim António de Aguiar, em 1834. O terramoto deu foram passando, e em 1715 havia na Bahia 218 reli-
o primeiro toque; a extinção das ordens religiosas gosos e 163 no Rio de Janeiro. Finalmente, em 1720,
faz o resto. Os Carmelitas partiram para o Brasil e o papa Clemente XII instituía duas províncias: Rio e
por lá ficaram quase um século, sem voltarem oficial- Bahia, que permanecem até hoje, existindo ainda um

295
CARMELITAS

comissariado-gcral no Paraná. 5. Restauração: A res- nesse mesmo dia. O primeiro comissário-geral foi
tauração da ordem carmelita começa a partir de 1930, Frei António Monteiro. No dia 3 de Julho de 1996, a
quase um século após a sua extinção. Foram numero- Santa Sé nomeia Frei António Vitalino Fernandes
sos os contactos entre a cúria generalícia e o cardeal Dantas bispo auxiliar do Patriarcado* de Lisboa,
patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira. com o título de Tlós, na altura comissário-geral da
Queriam que viessem os carmelitas do Brasil para Ordem do Carmo em Portugal. Torna-se assim o pri-
iniciarem a restauração, mas não foi possível. Pen- meiro bispo carmelita depois da restauração. Actual-
sou-se depois nos carmelitas da Irlanda ou Holanda; mente, é esta a situação em que se encontra a Ordem
também este projecto se gorou. Finalmente, a obra do Carmo em Portugal; trabalhando em várias fren-
da restauração foi confiada à Província da Bética, de tes não pode, contudo, responder a todos os apelos
Espanha. O grande promotor da restauração foi o as- e solicitações em virtude do número de membros e o
sistente-geral, padre Manuel Baranera, que se deslo- envelhecimento de uma parte do seu pessoal. Mes-
cou pessoalmente a Lisboa para assumir ele próprio mo assim, os membros do comissariado continuam a
a restauração. Vencidos os últimos entraves, o padre trabalhar animados do espírito de Elias e confiados
Eliseu Rubio Maia é nomeado o primeiro superior à protecção de Maria.
da nova fundação. Estava assim iniciada a restaura- A N T Ó N I O D E J E S U S L O U R E N Ç O . O . Carm.

ção da ordem carmelita em Portugal. Os começos fo-


BIBLIOGRAFIA: C A L C I U R I , N. - Vita Fratrum de! Saneio Monte Carmelo.
ram muito difíceis; houve dificuldades de toda a or- Ed. Graziano di Santa Teresa. Roma, 1 9 5 5 . C O E L H O , Simão - Compen-
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em Lisboa, na Travessa de Santa Quitéria. Apesar desde fines de la era patrística hasta nuestros dias. Versão espanhola.
das dificuldades esta casa manteve-se aberta. Em Madrid. 1 9 4 6 . G R O S S I . J. - Viridarium Ordinis. Analecta Ordinis Car-
melitarum. 8 ( 1 9 3 2 - 1 9 3 6 ) . H E N D R I K S , R . La Sucession Héréditaire:
1949 abre-se o primeiro seminário em Miranda do Elie le Prophète. Paris: Desclée de Brower, 1 9 5 6 . L I S B O A , B. da Silva -
Douro, que, funcionando como residência paroquial, Anais do Rio de Janeiro. 1 8 3 4 - 1 8 3 5 . L O U R E N Ç O , António de Jesus -
carecia do mínimo de condições para essa finalida- Restauração do Carmo português. Carmelo Lusitano. 2 : 1 ( 1 9 8 3 ) ; 2 : 2
( 1 9 8 4 ) . IDEM - A tentativa dos Carmelitas por um mestre próprio no
de. Em 1951, por ordem expressa do padre-geral da campo filosófico-teológico. Carmelo Lusitano. 2 : 2 ( 1 9 8 4 ) . P I N T O , A. R.
época, Kiliano Lynch, é encerrado. Em fins do mes- de Almeida D. Frei Bartolomeu do Pilar. Anais da Biblioteca e Arqui-
mo ano é transferido para Braga, funcionando numa vo Público do Pará. 5 ( 1 9 0 6 ) 5 - 4 0 . P R A T , A. - Notas históricas sobre as
missões carmelitanas no extremo norte do Brasil (séculos xvtt-xtx). Re-
casa da Rua Bernardo Sequeira. Em 1954, a Provín- cife: Carmo, 1 9 4 1 - 1 9 4 2 . SÁ, Manuel de - Memórias históricas de N. S.
cia Fluminense do Brasil toma conta da restauração do Carmo da Província de Portugal. Lisboa, 1 9 2 7 . S A N T ' A N A , J. Perei-
da ordem carmelita, assumindo esse encargo como ra de Chronica dos Carmelitas da Antiga e Regular Observância nes-
tes reinos de Portugal e Algarve e seus domínios. Lisboa, 1 7 4 5 - 1 7 5 1 .
prova de gratidão pelo trabalho antes realizado pelos vol. 2 . S E R R A , M. Baranera Memória histórica da ordem carmelitana
portugueses com a fundação da ordem carmelita no no Brasil. Revista do Instituto Geográfico Histórico da Bahia. ( 1 9 1 9 ) .
S M E T , Joaquim - Los Carmelitas: História de la Orden dei Carmen.
Brasil. E nomeado comissário provincial Frei Cirilo Trad. e preparação da ed. espanhola por António Ruiz Molina. Madrid:
Alleman. Neste mesmo ano abre-se um novo semi- BAC, 1 9 8 7 - 1 9 9 3 , vol. 1 - 4 . S T E G M U L L E R , F. - Filosofia e teologia nas
nário menor na Falperra, funcionando num antigo universidades de Coimbra e Évora no séc. xv. Coimbra, 1959. WER-
MERS. Manuel - A ordem carmelita e o Carmo em Portugal. Lisboa; Fá-
convento dos Beneditinos* e Franciscanos*. Na casa tima. 1 9 6 3 . W E S S E L S , Gabriel - Acta Capitolorum Generalium Ordinis
de Braga, onde existia o seminário menor, passa a Fratrum B. V. Mariae de Monte Carmelo. Roma, 1 9 1 2 - 1 9 3 4 . 2 vol.
funcionar o noviciado com quatro noviços. Em 1957 Vol. 1: 1 3 1 8 - 1 5 9 3 ; vol. 2 : 1 5 9 8 - 1 9 0 2 . IDEM - Status Quaestiones de Pa-
triarchato Eliae. Analecta Ordinis Carmelitarum. 3 ( 1 9 1 4 - 1 9 1 6 ) . IDEM -
inaugura-se uma casa em Fátima, destinada ao aco- Regula Primitiva Ordinis Nostri et Mutationes Inoccntii IV. Analecta
lhimento de peregrinos; aí funcionou durante vários Ordinis Carmelitarum. 3 ( 1 9 1 4 - 1 9 1 6 ) . X I B E R T A , Bartolomeus - Elias et
anos o seminário maior da Ordem do Carmo em Religio Cristiana in Monte Carmelo. Analecta Ordinis Carmelitarum. 7
( 1 9 3 0 - 1 9 3 1 ) . Z I M M E R M A N , B. - Monumenta Histórica Carmelitana. Li-
Portugal. Em 1959, o noviciado é transferido para a rinae, 1907.
Quinta da Mata, perto de Felgueiras, onde iniciam
o noviciado 14 noviços. Em 1963, os Carmelitas
regressam a Moura, onde ficam como capelães do CARMELITAS (Monjas Descalças da Ordem da
hospital, que fora outrora o primitivo convento da Bem-Aventurada Virgem Maria d o Monte Car-
mesma ordem em Portugal. Em 1967, os Carmelitas melo). Esta ordem teve origem num conjunto de
tomam conta da paróquia do Salvador de Beja. Em eremitas que, vivendo no monte Carmelo (v. C A R M E -
LITAS DESCALÇOS), se estruturaram a partir da regra
8 de Dezembro do mesmo ano é inaugurado o semi-
nário menor, no Sameiro, nos arredores de Braga, por eles pedida a Santo Alberto, patriarca de Jerusa-
construído com as ofertas de benfeitores, princi- lém, no século xii. Introduziu-se em Portugal na se-
palmente alemães e holandeses. Em 1972 é confiado gunda metade do século xni e teve em Moura o seu
aos Carmelitas o vicariato de Santo António dos primeiro convento. Só a partir do século xvi houve
Cavaleiros, actualmente paróquia, nos arredores de mosteiro de religiosas carmelitas em Portugal; em
Loures. Os anos vão passando e os Carmelitas fi- 1542 foi fundado o Mosteiro da Esperança em Beja,
xam-se em vários pontos do país, dedicando-se a ta- que se iniciou com duas castelhanas. No início do
refas várias: ensino, pregação, paroquialidade e século xviii havia ali 60 religiosas. Outros conventos
assistência a vários movimentos apostólicos. Chega se fundaram: Nossa Senhora da Conceição, em La-
finalmente a hora de dar mais um passo em frente. gos (1557); mosteiro de Tentúgal (1560); Mosteiro
No dia 8 de Dezembro de 1992, depois de várias ten- de São José em Guimarães (1704). A Ordem dos
tativas e acidentes de percurso, os Carmelitas pas- Carmelitas Descalços foi instituída por Santa Teresa
sam a ser comissariado-geral por decreto publicado no século xvi. Depois de mitigada a regra pelo papa
Eugénio IV, Santa Teresa reformou a ordem e devol-

296
CARMELITAS D E S C A L Ç O S

veu-lhe a primitiva austeridade em 1540 no conven- sílica da Estrela, fundado sob os auspícios de D. Ma-
to de Avila. Reformado o ramo feminino, empreen- ria I em 1781. Todos seguiam as últimas constitui-
deu a reforma do ramo masculino com a ajuda dos ções fixadas pela congregação de Espanha em 1701.
padres carmelitas António de Jesus e João da Cruz. Num capítulo realizado em Lisboa em 1787 determi-
O projecto de reforma foi aprovado por Pio V e con- nou-se preparar uma versão portuguesa da regra e
firmado por Gregório XIII em 1580. A independên- das constituições das monjas. Tomou-se como base
cia completa dos Descalços em relação aos Carmeli- as últimas constituições espanholas (elaboradas em
tas Calçados deu-se em 1593. Em 1581 chegaram a 1785 e aprovadas em 1786), cujo texto foi aperfei-
Portugal os primeiros carmelitas descalços com o çoado e aprovado pelo papa em 1790. A lei de 1834
patrocínio de Filipe II. Era a primeira fundação fora levou ao lento desaparecimento dos dez mosteiros
da Espanha. Em 1584 chegaram as primeiras religio- no século xix, com excepção do de Coimbra que, to-
sas: hospedaram-se no Convento da Anunciada, pas- davia, teve de exilar-se em Espanha em 1910. A mu-
sando em Janeiro seguinte para convento próprio, de dança da situação política a partir dos anos 20 per-
Santo Alberto, numa casa em Santos-o-Velho. À me- mitiu a reimplantação dos carmelos em Portugal.
dida que a ordem se expandia, os conventos dos vá- Hoje há um mosteiro carmelita nas seguintes dioce-
rios países organizavam-se de maneira independente. ses: Viana do Castelo*, Braga*, Porto*, Aveiro*,
Em 1773, o breve Paterna Sedis, de Clemente XIV, Coimbra*, Guarda*, Leiria-Fátima*, Lisboa*, Porta-
separava os carmelitas descalços portugueses dos es- legre e Faro, com um total de 144 religiosas. Os car-
panhóis e erigia a Ordem dos Carmelitas Descalços melos são autónomos, embora sob a jurisdição do su-
de Portugal: era o terceiro ramo jurídico independen- perior provincial dos padres carmelitas descalços.
te da reforma teresiana e nele se incluíam as religio- Regem-se por uma regra comum, cujo texto, elabora-
sas da Congregação de Nossa Senhora do Monte do em 1926, foi adoptado por todos os conventos após
Carmelo. Nesta ocasião eram oito os mosteiros no o decreto da S. C. dos Religiosos de 19 de Setembro
país: o de Santo Alberto em Lisboa; Santa Teresa de de 1936. Este texto foi revisto após o concílio, de tal
Carnide (1642); São João Evangelista em Aveiro sorte que se baseia na Regra de Santo Alberto e nas
(1658); Nossa Senhora da Conceição em Lisboa constituições primitivas (1567) de Santa Teresa, apre-
(1681); São José de Évora (1681); São José e Maria sentando as grandes linhas da vida teresiana, segundo
do Porto (1704); Santa Teresa em Coimbra (1739); as ideias da reformadora e o pensamento da Igreja e
Braga (1767). Acrescentou-se ainda o de Viana do do II Concílio* do Vaticano. Em Portugal há também
Castelo (1780) e o do Coração de Jesus, junto à Ba- carmelitas da Antiga Observância com uma casa: o
Carmelo da Sagrada Família em Moncorvo e quatro
congregações de vida activa cuja espiritualidade é
carmelita e/ou teresiana: Carmelitas Missionárias,
Carmelitas Missionárias Teresianas, Irmãs Carmeli-
tas do Sagrado Coração de Jesus e a Companhia de
Santa Teresa de Jesus, conhecida como Teresianas.
M A R I A DO PILAR S. A. VIEIRA

BIBLIOGRAFIA: A L M E I D A , Fortunato de - História da Igreja em Portugal.


Porto: Portucalense Editora, 1967. DIZIONARIO degli Instituti di Perfezio-
ne. Roma: Edizione Paoline, 1974. VINDE e vede. Lisboa: Edições Pauli-
nas, 1995.

CARMELITAS DESCALÇOS. No século xn os cruza-


dos instauraram na Síria e na Palestina o Reino Lati-
no de Jerusalém, formado por pequenos territórios
subordinados ao rei de Jerusalém. Os muçulmanos
encontraram a salvação na fuga e os cruzados funda-
ram pequenos territórios dependentes da Igreja lati-
na. Em vários lugares da Palestina instalaram-se pe-
quenos grupos de pessoas que queriam levar uma
vida austera. O mesmo aconteceu no monte Carme-
lo, onde se reuniu um pequeno grupo que pretendia
viver o espírito de Elias. Passado algum tempo, estes
eremitas do monte Carmelo decidiram organizar-se
juridicamente. Quando o Carmelo estava ainda sob
jurisdição da diocese de Cesareia, os eremitas dirigi-
ram-se ao legado papal e patriarca de Jerusalém, Al-
berto de Vercelli, residente em Acre, para que lhes
desse uma regra, como forma de vida. Entre 1206 e
1214, data da sua morte, escreveu a regra pela qual
se deviam orientar os eremitas do Carmelo; esta re-
gra foi dirigida já ao superior, de nome Brocardo.
Em 1215, o Concílio de Latrão procurou estabele-
Convento do Carmo de Coimbra. cer uma ordem na proliferação dos institutos reli-

297
CARMELITAS DESCALÇOS

giosos. Os futuros fundadores deviam adoptar uma


das regras já existentes, canonicamente aprovadas.
Os Carmelitas tiveram alguma dificuldade em ver
aprovada a sua regra. Em 1226 conseguiram a con-
firmação pelo papa Honório III, na carta Ut vivendi
normam. Desta carta podemos deduzir que os Car-
melitas insistiam em afirmar que a sua regra era an-
terior ao concílio. Três anos mais tarde, Gregório IX
confirmou a aprovação do seu antecessor reconhe-
cendo a legislação de Alberto como «regra». No dia
9 de Abril de 1229, o mesmo papa colocou a ermida
do Carmelo sob a protecção da Sé de Roma, permi-
tindo que se pudesse celebrar o culto divino a portas
fechadas, em tempo de perseguições. Não se pode
estabelecer com certeza o tempo em que o primeiro
prior, Brocardo, exerceu o seu cargo, mas o seu su-
cessor terá sido Bertoldo. Este, juntamente com
muitos irmãos, sofreu a morte às mãos dos infiéis,
sendo enterrado no Carmelo. Depois que começa-
ram a surgir as perseguições dos muçulmanos, mui-
tos eremitas pensaram deixar a Palestina e regressar
às suas terras de origem. O papa Inocêncio IV es-
crevia: «As incursões dos pagãos obrigaram aos
nossos queridos filhos, os eremitas do monte Car-
melo, não sem grande aflição de espírito da sua par-
te, a deixar aquele lugar e passar a terras de cá do
mar» (Paganorum incursus). Por volta do ano 1238
os Carmelitas começaram a emigrar para a Europa
e a primeira fundação, fora da Palestina, surgiu no
deserto de Fortamie em Chipre, seguindo-se Messi-
na, na Sicília, Aylesford e Hulne na Inglaterra e Les Fachada do Convento do Carmo, em Lisboa.
Aygalades, próximo de Marselha. Com a expansão da
ordem no Ocidente, continuava também a devoção a nar a ordem. Foi neste contexto de indefinição e de
Nossa Senhora sob a invocação do Carmo devido procura de identificação que surgiu São Simão
à raiz do monte Carmelo. Por isso, eram conhecidos Stock, geral da ordem, recorrendo à Virgem do Car-
como Irmãos de Nossa Senhora do Monte Carmelo. mo. Segundo a tradição, teve uma visão em que Ela
Na Europa, os Carmelitas pretendiam seguir a vida lhe entregava o escapulário como sinal de protecção
eremita que viviam no monte Carmelo, mas, devido não só para a ordem, mas também para todos aque-
às dificuldades desse modo de viver, pediram ao pa- les que o usassem. Com o decorrer da história o papa
pa a adaptação da sua regra às novas condições de Sixto IV concedeu a cada uma das quatro ordens
vida. Um documento de 1421 coloca a chegada dos mendicantes uma grande bula, chamada Mare Mag-
primeiros carmelitas a Portugal, vindos de Malta, no nim, que reunia e confirmava todos os privilégios
ano de 1251, para Moura. Durante mais de um sé- anteriores e concedia muitos mais. Com estes privi-
culo este convento foi único, chegando a ter uns 60 légios, o fervor religioso entrou em decadência; a
religiosos, até que surgiu o Convento do Canno de negligência na observância religiosa acentuou-se no
Lisboa fundado pelo imortal Beato Nuno Alvares século xv. O enfraquecimento do espírito da ordem
Pereira, em 1397, onde viveu com o nome de Nuno foi evidente em três aspectos fundamentais: a vida
de Santa Maria. No dia 1 de Outubro de 1247, na de oração, a prática da pobreza evangélica e a obser-
carta Quae honorem conditoris, Inocêncio IV publi- vância da vida comum. A vida de oração tornou-se
cou a regra carmelita com as modificações introduzi- muito difícil, porque havia excessivas visitas que en-
das. Estas modificações foram as seguintes: as fun- travam facilmente nos conventos, onde comiam e
dações não seriam necessariamente nos desertos; as bebiam nos dormitórios e celas dos religiosos, com
refeições eram tomadas em comum; era obrigatória a grande algazarra e alarido, importunando o retiro e
recitação do ofício divino (antes só se recitavam os ambiente propícios à vida de oração. Muitos religio-
salmos); o tempo de silêncio rigoroso era reduzido sos saíam de manhã cedo para passear e vaguear pe-
desde completas até à hora de prima; a abstinência la cidade. Do meio desta relaxação surgiu a voz pro-
era mitigada a favor dos religiosos itinerantes e men- fética de João Soreth, geral da ordem e reformador
dicantes. A partir desta adaptação os Carmelitas as- do século xv. No entanto, esta reforma desejada por
sumiram manifestamente a sua dimensão de vida João Soreth não produziu os frutos pretendidos, por-
activa. Esta modificação realizou-se no meio de que em Fevereiro de 1432 o papa Eugénio IV intro-
grandes dificuldades; a ordem estava a passar por duziu na ordem a regra mitigada com a bula Romani
uma grave crise de identidade, ao ponto de alguns Pontificis. Esta mitigação veio num momento em
elementos de relevo não se sentirem identificados que a vida espiritual da ordem estava muito baixa.
com este novo estilo de vida, acabando por abando- João Soreth constatava, com desgosto, que havia

298
CARMELITAS D E S C A L Ç O S

uma autêntica necessidade de dispensa, porque uma obrigada a voltar novamente para o Convento da En-
doença geral invadia não só o corpo, mas o espírito; carnação. Este caso chegou a Roma e à corte de Ma-
a caridade de muitos tinha arrefecido. Por toda a par- drid. Amainada a tempestade, Teresa voltou para o
te faziam com que os religiosos renovassem os votos seu Convento de São José. A sua cela foi o coração
e recorressem a novos estatutos. Neste tempo, os de todo o convento. Sóbria e limpa. Como mobília ti-
conventos passavam por momentos difíceis devido nha apenas um leito de tábuas e por tapete um pedaço
ao número excessivo de religiosos e à consequente de cortiça. Era o habitat próprio de quem não queria
miséria. Decorrente disso, os noviços passavam as deter-se com as coisas mundanas mas tratar exclusi-
noites em casa dos pais ou familiares onde poderiam vamente de estar a sós com Deus. Ainda dentro da
encontrar alguma coisa para matar a fome. Algumas cela, debaixo de uma pequena e rude janela, estava a
províncias não foram ao capítulo geral de 1539, en- sua cátedra: um poial de tijolo, como rude escrivani-
tre elas a província portuguesa, por causa dos tempos nha onde redigiu, sentada no chão, o livro da Vida.
turbulentos da reforma protestante. Carmelitas Descal- O olhar de Teresa transcendia o horizonte da ordem
ças: A origem das religiosas perde-se no complexo carmelita. A sua reforma tinha uma dimensão apos-
movimento espiritual desencadeado por São Francisco tólica e eclesial. Ela, que gostava de chamar-se «fi-
de Assis. Eram grupos de mulheres que viviam à lha da Igreja», compreendeu a força do testemunho
sombra da espiritualidade vivida nos conventos dos da vida religiosa na Igreja. Por esse motivo fundou
religiosos. Também os Carmelitas tiveram a direcção ainda os conventos seguintes: Medina dei Campo,
espiritual de numerosos grupos em quase todos os Malagón, Valhadolid, Toledo, Pastrana, Salamanca,
países da Europa. No dia 14 de Outubro de 1453, o Alba de Tormes, Segóvia, Beas de Segura, Sevilha,
geral da ordem, João Soreth, confirmou a sua admis- Caravaca, Villanueva de la Jara, Palência, Sória, Gra-
são à regra, hábito e profissão na Ordem do Carmo. nada e Burgos. Com a segunda fundação, Teresa co-
Em Ávila, no ano de 1479, fundou-se um convento meçou a pensar atrair alguns padres da ordem para o
de religiosas carmelitas mas, pelas exíguas condi- estilo de vida contemplativa e para a direcção espiri-
ções, teve de ser abandonado e a comunidade trasla- tual das suas religiosas. Teresa fez esta proposta ao
dou-se para o Convento da Encarnação de Avila. Em padre António Herédia e este ofereceu-se para ser o
1535 tomou o hábito neste convento D.Teresa de primeiro a aderir, mas Teresa não acreditou que ele
Ahumada e Cepeda, mais conhecida por Santa Tere- tivesse «espiritualidade suficiente». Pouco depois
sa de Jesus. Neste convento viviam umas 150 frei- Teresa conheceu um jovem carmelita que estava a
ras (idosas, de meia-idade, jovens, crianças, e tão acabar os seus estudos em Salamanca, Frei João de
crianças que somente depois de cinco ou dez anos São Matias. Sobre este, Teresa não tinha qualquer
poderiam começar o noviciado). Como todos os dúvida e convenceu-o a aderir à reforma. Ele pôs co-
conventos, este sofreu também a erosão espiritual. mo condição que essa reforma se fizesse o mais de-
Respirava-se por toda a parte um ambiente de reno- pressa possível; no dia 28 de Novembro de 1568
vação e Teresa de Jesus, que levava uma vida entre o abriu-se o primeiro convento para os religiosos em
mundo e Deus pensou, seriamente, na sua renovação Duruelo. Pouco depois desta fundação, Teresa co-
espiritual motivada por um encontro muito pessoal nheceu Ambrósio Mariano (que seria mais tarde,
com Cristo e com o livro As confissões de Santo com Jerónimo Graciano, um dos principais obreiros
Agostinho. Ela centrou a sua «conversão» à volta na separação dos Descalços), convidando-o a aderir
destes dois episódios. Numa tarde de Setembro de à reforma. Foi fundado o segundo convento dos
1560, estando Teresa com um grupo de amigos e pa- Descalços em Pastrana em 13 de Julho de 1569. Es-
rentes na sua cela, pensou fundar um convento refor- te convento seria o futuro noviciado da reforma.
mado como o dos primeiros padres do monte Car- A admissão dos membros das províncias às filas dos
melo. Esta ideia foi proposta ao provincial, Angel de Contemplativos, ou Descalços, provocou uma reac-
Salazar, que aceitou com agrado a nova fundação ção de desagrado no provincial-geral. Para remediar
sob a sua jurisdição. Logo que este projecto chegou tal situação requereu que os membros das províncias
ao conhecimento de algumas pessoas da cidade co- de Espanha e Portugal conseguissem a licença por
meçaram os mexericos, e desabou sobre as princi- escrito para solicitar a sua admissão nos Descalços.
pais protagonistas uma forte tempestade de críticas. O papa Gregório XIII ficou admirado com a adesão
As freiras da Encarnação sentiram-se humilhadas e à reforma realizada por Santa Teresa e, no dia 22 de
diziam que também ali se podia servir a Deus. Nas Junho de 1580, com o breve Pia consideratione, de-
igrejas protestavam os pregadores desde o púlpito; clarou os Descalços como província separada, vindo
nas ruas murmurava o povo simples; todos atacavam a ser o primeiro provincial o padre Jerónimo Gra-
aquela freira que, a pretexto de maior perfeição, es- ciano. Quando D. Teotónio de Bragança frequenta-
condia intrigas e outras coisas piores. Posteriormen- va os estudos na Universidade de Salamanca en-
te, o provincial da Ordem do Carmo retirou-lhe o controu-se com Santa Teresa e ficou ao corrente da
seu apoio e mandou-a para Toledo consolar uma viú- sua reforma. Mais tarde, sendo bispo de Évora, cor-
va, e o seu confessor aconselhou-a a esquecer-se do respondeu-se com a santa e pediu-lhe insistente-
assunto. Depois de vencidas todas as dificuldades, mente que fundasse um convento na sua diocese.
no dia 24 de Agosto de 1562, Teresa, com duas frei- Embora ela mostrasse grande desejo de vir a Portu-
ras que vieram da Encarnação e quatro mulheres que gal, não chegou a fazê-lo, mas enviou Frei Ambró-
tomaram o hábito das mãos do representante do bispo sio Mariano a Lisboa, que fundou o primeiro con-
da diocese, D. Gaspar Daza, fundou o Convento de vento dos Descalços no dia 15 de Outubro de 1581.
São José. As dificuldades não acabaram e Teresa foi Foi neste convento que se celebrou o capítulo pro-

299
CARMELITAS DESCALÇOS

vincial em Maio de 1585, onde participou São João pois do terramoto de 1755, Carlos Mardel colaborou
da Cruz. Ambrósio Mariano, quando veio fundar, na sua restauração. Em 1834, ambas as cartuxas fo-
teve grande aceitação no reino governado por Fili- ram extintas pela aplicação do decreto assinado por
pe II, graças à consideração do soberano por Santa Joaquim António de Aguiar, seguindo-se a expulsão
Teresa. Depois da restauração da soberania portu- dos seus moradores. As ruínas do vale da Misericór-
guesa, D. Luisa de Gusmão tornou-se também pa- dia foram ocupadas pelo Reformatório Central de
trocinadora dos Carmelitas, daí o grande incremen- Menores, em 1903. Quanto a Scala Coeli, foi reedifi-
to que tiveram em Portugal. cada pelo seu proprietário, Vasco Maria Eugénio de
JOSÉ C A R L O S VECHINA Almeida (1913-1975), conde de ViFAlva, o qual ce-
deu à ordem o usufruto, legando contudo a proprie-
BIBLIOGRAFIA: A O U É S O L O , Lino - Historia de la Orden dei Carmen. Vitó-
ria, 1965. S A N T A T E R E S A , Silvério de - Historia dei Carmen Descalzo en dade à Fundação Eugénio de Almeida. Os Cartuxos
Espana, Portugaly América. Burgos: Monte Carmelo, 1935. S M E T , Joa- voltaram a Portugal, em 14 de Setembro de 1960,
quim - Los Carmelitas. Madrid: BAC, 1987. 2 vol. T E R E S A DE J E S U S , ressuscitando Scala Coeli e reiniciando a vida cartu-
Santa - Obras completas. 3.a ed. Paço de Arcos: Carmelo. W E R M E R S ,
Manuel Maria A ordem carmelita e o Carmo em Portugal. Lisboa: siana nos seus claustros. Durante quatro séculos, em-
União Gráfica, 1963. bora interrompidos, a Ordem de São Bruno procurou
oferecer o seu ideal contemplativo aos Portugueses.
CARTUXOS. O arcebispo de Évora*, D. Teotónio de Os Monges Brancos entraram em Portugal precedi-
Bragança, filho do 5.° duque, D. Jaime, decidiu eri- dos pela fama, pois um dos primeiros incunábulos da
gir nesta cidade uma cartuxa. Obteve da ordem o en- língua portuguesa resultou da tradução da Vita
vio de sete monges fundadores, que instalou, a 8 de Christi do cartuxo Ludolfo de Saxónia, um dos livros
Setembro de 1587, no paço real, donde dirigiram a mais lidos do século xvi. Não é pois estranho que as
construção do seu mosteiro, Santa Maria Scala Coe- vocações afluíssem significativamente. Considerando
li, concluído em 1598. Iniciou-se então a construção os obituários dos séculos xvii e xvni e contabilizando
da outra cartuxa, em Laveiras, próximo de Lisboa, as defunções em períodos sucessivos de 40 anos
numas terras exploradas pela Misericórdia*. Os (1600-1640) verifica-se um aumento progressivo do
monges subsistiam do seu trabalho, contudo, relati- número de óbitos: 12, 32, 35, 42 e 44, respectiva-
vamente às edificações, dependiam dos benfeitores. mente. Considerando do mesmo modo o número de
Sob este aspecto, Scala Coeli foi mais afortunada, estrangeiros vindos de outras cartuxas, no mesmo
pois a generosidade de D. Teotónio permitiu construir período de tempo, verifica-se uma diminuição gra-
cerca de vinte celas-ermidas dispostas num claustro dual: 15, 6, 3, 1 e 0. Conclui-se assim que o número
quadrangular de 98 metros de lado, o maior de Por- de cartuxos portugueses no século xvni aumentou
tugal. As ermidas do vale da Misericórdia, cada uma continuamente com uma média de um ingresso por
erigida às expensas de uma família lisboeta, não ex- ano. No século xix, as sequelas da revolução trazem
cederam a dúzia. Alma do progresso de ambas as uma diminuição, mas não demasiadamente acentua-
cartuxas foi D. Basílio de Faria, o mais notável dos da: morrem 25 monges antes da expulsão, encon-
cartuxos portugueses. Cónego e chantre da sé ebo- trando-se ainda como residentes 27 monges com al-
rense (v. D I G N I D A D E S ECLESIÁSTICAS), recusou a digni- guns noviços. Para se valorizar estes números é útil
dade episcopal, fazendo-se cartuxo em 1609. Como compará-los com o número de Cónegos Regulares
prior de vale da Misericórdia e depois de Scala Coeli de Santa Cruz* de Coimbra, ordem originariamente
terminou as obras e, sobretudo, formou duas boas portuguesa, que contava com 20 casas em 1630, 13
comunidades com membros portugueses. Mais tarde, em 1770 e quatro em 1834. O primeiro cartuxo por-
em 1663, um incêndio, ocasionado pelo assédio es- tuguês foi o pároco de Santa Marta de Évora que, no
panhol a Évora, danificou a Igreja de Scala Coeli, mesmo dia da fundação de Santa Maria Scala Coeli,
dando este incidente ensejo para que a Real Casa tomou o hábito com o nome de Frei Pedro Bruno;
de Bragança tomasse a cartuxa sob sua protecção. viria a ser, mais tarde, o primeiro prior português.
D. Pedro II não só reparou a igreja mas completou o A marcante figura de D. Basílio de Faria já se fez re-
pórtico quinhentista, levantando nela uma majestosa ferência. No ermo obtiveram outros o anonimato de
fachada de mármore de Estremoz, com uma grande e todo o bom eremita. Contudo, é interessante verifi-
bela imagem de Maria, orago do mosteiro, pois Ma- car que alguns, aos quais as circunstâncias obriga-
ria é Scala Coeli, a Escada do Céu. Na fachada estão ram a sair, ganharam facilmente a estima dos que os
igualmente, em tamanho menor, São João Baptista, conheceram. Assim, D. Frei António de São José de
padroeiro da ordem por ser o homem do deserto, e Castro, embora resistisse quatro anos à nomeação
São Bruno, o fundador. Pela mesma época, o cardeal para bispo do Porto*, foi uma personalidade de vulto
patriarca, D. Luís de Sousa, uniu com arcaria de pe- nacional, sendo até nomeado membro da regência
dra as celas do eremitério lisboeta. O reinado de do reino, durante as Invasões Francesas. Outros,
D. João V marcou com o seu esplendor a simplicida- D. Francisco d'Assunção Ferreira de Mathos e Vítor
de cartusiana, dotando de grande valor artístico as Felicíssimo Nabantino, expulsos em 1834, venceram
cartuxas portuguesas, em especial a eborense. A esta dificuldades económicas e diplomáticas para se re-
o rei ofereceu um magnífico retábulo de talha doura- colherem de novo à solidão de duas cartuxas italia-
da que constitui uma imensa custódia de exposição nas, onde os seus irmãos, admirando as suas virtu-
do Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Na cartuxa des, os elegeram como seus respectivos priores. Isto
lisboeta construiu-se uma nova igreja, em cuja fa- comprova que o sucesso da ordem cartusiana em
chada de calcário lioz gravado figura uma imagem Portugal não foi apenas quantitativo, mas sobretudo
de Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo. De- qualitativo. Além disso, num plano mais humano,

300
CARTUXOS

lembremos que o pintor Sequeira, talvez o melhor f 1775), Frei Tomás de São José (mestre de noviços,
pincel lusitano, foi jovem cartuxo na casa de Lavei- f 1808), Frei José da Natividade (um tratado sobre
ras (dos 18 aos 24 anos de idade). A vida interna de o purgatório, | 1833). Esse nível cultural deveu-se à
Scala Coeli e de vale da Misericórdia realizou-se na riqueza da biblioteca legada por D. Teotónio a qual,
fidelidade à espiritualidade cartusiana. Foram fiéis, além de muitos livros eclesiásticos, dispunha de ou-
em primeiro lugar, pelo facto de só terem história in- tras obras notáveis de que são exemplo o famoso
terna. Efectivamente, a presença desta ordem con- Atlas de F. Vaz Dourado, o Leal conselheiro e outros
templativa foi silenciosa, sem actividades exteriores, manuscritos de D. Duarte, a Virtuosa benfeitoria, es-
sem ministérios activos, o que aliás se verifica em crita pelo infante D. Pedro nos princípios do sé-
todas as cartuxas. No interior da clausura observa- culo xv, e um panegírico do Beato Nuno que consti-
ram exactamente o género de vida seguido pelos tui o único documento que permite datar a morte do
Cartuxos, durante séculos, desde 1084. Passavam a Santo Condestável. Os monges leigos, por sua parte,
semana na solidão das suas celas pessoais, na con- cumpriram também a sua vocação, conseguindo que
templação e no trabalho. Celebravam juntos os do- as duas comunidades subsistissem do seu trabalho,
mingos e as festas, dias em que comiam juntos no economicamente autónomas, mesmo nos momentos
refeitório e conversavam na quinta do mosteiro. Um mais difíceis, como constou na declaração à Junta do
dia por semana saíam de passeio pelos campos pró- Exame do Estado Actual das Ordens Religiosas, em
ximos. Todos os dias se reuniam para a missa, as 1821. Por conseguinte, a expressão «espiritualidade
vésperas e a vigília da meia-noite. Esta fidelidade ao cartusiana» equivale a dizer espiritualidade dos car-
espírito cartusiano foi meritória, se tivermos presen- tuxos portugueses. Estes foram fiéis a um caminho
te que se viram obrigados a viver isolados do resto de oração contínua na presença de Deus, numa soli-
da ordem por razões políticas. Contudo, as duas car- dão silenciosa, pobre e laboriosa; foram constantes
tuxas portuguesas apoiaram-se mutuamente. Talvez numa existência de adoração litúrgica com mais de
seja útil salientar um aspecto dessa vida interna: a quatro horas de canto gregoriano; foram generosos
origem eclesiástica ou fidalga de muitas das suas vo- numa vida de santidade evangélica, de seguimento a
cações contribuiu para a elevação do nível espiritual Cristo que passou noites em oração ao Pai. Após
e humano dos monges, sobretudo dos que eram sa- quatro séculos de vida cartusiana, tendo passado as
cerdotes. Isto transparece nos escritos das perso- contingências acima narradas, essa vida continua na
nalidades acima nomeadas, mas também em obras Cartuxa de Santa Maria Scala Coeli.
teológicas ou ascéticas que outros cartuxos portu- ANTÃO LÓPEZ

gueses deixaram inéditas. Assim, por exemplo, Frei


Bruno de São José (poeta em português e em latim. BIBLIOGRAFIA: A CARTUXA e a vida cartusiana. Évora: G r á f i c a E b o r e n s e ,
1995.

Fotografia aérea do Convento da Cartuxa de Évora (Santa Maria Scala Coeli).


CASAMENTO

CASAMENTO, v. MATRIMÓNIO. os dons que lhes foram dados por Deus, a interven-
CASAS DO GAIATO, v. O B R A DA R U A .
ção do Demónio e do primeiro pecado. Socorre-se
também da tradição patrística. Centraliza a sua men-
CASTELO BRANCO, v. PORTALEGRE E CASTELO BRANCO. sagem no baptismo, que é condição de salvação. Os
poucos textos referentes à idade do baptismo mos-
CATEQUESE E CATECISMOS. Na história da Igreja tram como facto habitual o baptismo dos adultos.
podem referir-se quatro etapas de evangelização- Parece que só em caso de necessidade se baptiza-
-catequização. /.; A primeira abrange a Antiguidade riam as crianças, mas a partir de meados do século vi
(séculos I-IV) e é realizada por Jesus Cristo, pelos já o baptismo destas aparece como regra. Assim o
apóstolos e Padres da Igreja. É fértil em anúncios di- atesta o cânon vi do II Concílio de Braga (572). San-
versificados e cobre a bacia do Mediterrâneo. Com o to Isidoro de Sevilha refere-se às duas idades do
aparecimento do catecumenato, há um longo cami- baptismo, mas tudo indica que o mais vulgar é o das
nhar até ao baptismo pois ninguém é acolhido sem crianças. O ensino da catequese não era escrito mas
preparação e provas. Cada fiel é evangelizador. Dá- oral. Decorava-se a fórmula e explicavam-se os vários
-se mais importância à vivência cristã do que aos co- artigos da fé nela contidos. A primeira parte da missa,
nhecimentos da doutrina. A catequese é bíblica, cris- com as leituras e a pregação, eram momentos de
tocêntrica, baseada na história da salvação. Embora aprendizagem. Os catecúmenos começavam a apren-
nos faltem dados, a existência de muitos cristãos na der a doutrina como audientes, juntamente com prá-
Península Ibérica permite-nos afirmar que a cateque- ticas ascéticas, sobretudo já como competentes. En-
se existiu aqui desde a Antiguidade. Para atrair os sinava os primeiros elementos da doutrina um
pagãos ao cristianismo, segundo Santo Ildefonso clérigo, o primicério, incidindo principalmente no
( t 667), há-de, em primeiro lugar, confiar-se na bon- baptismo. Também os Padres escreveram belos ser-
dade de Deus que quer salvar todos os homens e na mões para os catecúmenos. Ordena o II Concílio de
oração. Deus inspirará quem vai ensinar. Este ensino Braga que os bispos visitem as suas dioceses e, entre
deve fazer-se através de uma conversa particular ou vários dos seus deveres, sobressai o ensino do credo
da pregação na igreja dirigida a todos, cristãos aos catecúmenos durante vinte dias antes do baptis-
ou pagãos de boa vontade, de modo que a palavra da mo. A preparação para o baptismo era acompanhada
salvação seja ouvida inteligente, livre e prontamente. por exercícios de piedade e de ascese. Os catecúme-
O exercício da palavra na doutrinação é ilustrado por nos passavam por dois graus ou períodos. O primei-
escassas obras dos Padres hispânicos. 2.: A Idade ro, designado por grau dos catecúmenos, segundo
Média (séculos v-xv) marca um segundo período de Gregório de Elvira e, noutros documentos, por grau
catequização. O Império Romano perde a unidade, dos electi e audientes, durava dois anos (cânon XLII
mas a Igreja conserva o prestígio. A conversão dos do Concílio de Elvira) mas poderia ainda prolongar-se
chefes dos novos povos, como acontece com a do rei em certos casos ou diminuir noutros. O segundo grau,
suevo Requiário (448-457), leva ao catolicismo em o dos competentes, ocupava apenas os vinte dias an-
massa dos seus subordinados. Geralmente, a conver- teriores à Páscoa, como estipulava o II Concílio de
são era individual. Agora põe-se o problema da ca- Braga e os Capitula Martini, embora o papa Sirício
quetização de grandes multidões. A catequese prepa- exigisse quarenta dias. O início de grau de compe-
ratória cede em favor da pós-baptismal, que é tentes era marcado pela inscrição dos nomes (dare
sumária. E fraca a cultura do clero que catequiza, so- nomen) e pelos exorcismos* que se repetiam diaria-
bretudo na pregação e confissão. Como há muito mente até ao Domingo de Ramos, conforme o orde-
analfabetismo recorre-se a imagens e representações. nado pelo II Concílio de Braga (cânones i e ix). No
A pobreza de conteúdos doutrinais junta-se a mudança Sábado Santo, à bênção da água seguiam-se as per-
de plano: afastamento da Bíblia e de Cristo. Fala-se guntas, exaradas no De Correctione Rusticorum, a
de Deus trino, distanciado do mundo. Desenvolve-se todos os baptizandos, em comum, sobre as verdades
o culto dos santos e das relíquias e insiste-se mais na da fé e a renúncia a Satanás. O baptismo, o crisma e
moral. A partir do século xi a Cristandade está coesa. a primeira comunhão eram o epílogo solene da ini-
A Europa é cristã e toda a vida se gera em atmosfera ciação cristã por ocasião da vigília pascal. No mais
religiosa, de tal modo que formação do homem e ca- antigo sínodo conhecido em Portugal, o de Lisboa de
tequese se identificam. A catequese é filha da insig- 1240, o bispo não ordena aos presbíteros que ensinem
ne teologia escolástica. Já não é trinitário o conteúdo as orações mas exorta-os a pedir ao povo que aprenda
da doutrina mas antropocêntrico. Com a crise do sé- o Pater noster, o Credo, a Ave Maria e o Confiteor.
culo xiv a formação cristã definha. O III Concílio* Não se sabe bem como era o ensino da catequese na
de Braga* (572) ordena aos bispos que ensinem os segunda metade do século XIII e em todo o sécu-
clérigos ignorantes e o povo na altura da visita pas- lo xiv; porém, conhecemos, ainda do século xiv ou
toral às suas dioceses. São Martinho de Dume princípios do século xv, um catecismo num códice
( t 579) escreve a exortação pastoral De Correctione de Alcobaça com letra do século xv (códice 244 da
Rusticorum, que é o único modelo de pregação po- Biblioteca Nacional de Lisboa), publicado por Frei
pular que nos resta desta época, em latim acessível. Fortunato de São Boaventura. Talvez seja uma tradu-
A obra de São Martinho de Dume vai de encontro à ção do castelhano ou latim. Começa pelos manda-
necessidade de uma catequização progressiva de um mentos a que se seguem os artigos da fé, os sacra-
povo convertido, ainda imbuído de conceitos pa- mentos, as obras de misericórdia, as virtudes
gãos. Martinho percorre a Bíblia desde o primeiro teologais e cardeais, os dons do Espírito Santo, as
capítulo do Génesis, com a criação de Adão e Eva, bem-aventuranças, as sete petições do Pater noster e

302
CATEQUESE E C A T E C I S M O S

os pecados mortais. Frei Fortunato, na sua edição, os sete pecados mortais, os sete sacramentos, os
juntou ao catecismo uma explicação dos mandamen- dons do Espírito Santo, as virtudes cardeais e as teo-
tos da lei de Deus e uma versão do símbolo Quicum- logais. Penaliza-se com 15 dias de prisão o não cum-
que vult que fazem parte de outro códice alcobacen- primento da lei. Em 1450 e 1451 continuam os visi-
se escrito em meados do século xv. No livro das tadores a notar a ignorância das orações entre o povo
visitações de 1402 refere-se a visita do arcebispo de e novamente se lembra a obrigação do ensino ao do-
Lisboa, D. João Esteves de Azambuja, à paróquia mingo. Na visita de 1467 à Igreja de São Miguel de
de Santa Maria de Santarém. Nele se dá a mais anti- Torres Vedras, o arcebispo de Lisboa, D. Jorge da
ga notícia do ensino religioso a uma freguesia. Infor- Costa, acha que muitos cristãos não sabem o Pater
ma-se que o pároco, aos domingos e festas, deve en- noster, a Ave Maria e o Credo in Deum. Neste senti-
sinar o Pater noster e a Ave Maria, em latim, e o do, dirige-se ao clero: «Nos mandamos que em to-
Credo in Deum per linguagem, provavelmente a mais dollos domingos do anno aa misssa do dia depois da
antiga tradução do Credo em português. Nos domin- oferta digaaes muito passadamente per maneira que
gos da Quaresma e do Advento, o pároco deve ensi- os fregueses uos possam bem entender as ditas ora-
nar os dez mandamentos e as sete obras de miseri- ções e no Auento e na Coresma depois (da) dita
córdia, os sacramentos e os sete pecados mortais, oferta lhes direes mais os preceiptos da lley com
que manda escrever num caderno. Aparecem normas seus contraíras declarandollos uos milhor e mais
gerais para toda a diocese de Lisboa* nas visitações compridamente.» Ordena ainda que se ensinem as
de São Tiago de Óbidos de 1434 a 1500. Prescreve a obras de piedade, os sete pecados mortais, os sete sa-
visitação geral feita por D. Pedro de Noronha, que, cramentos, os dons do Espírito Santo, as virtudes
nos domingos, os párocos devem ensinar o Pater teologais e as cardeais. Para o arcebispo não basta só
noster, a Ave Maria e o Credo in Deum de forma o ensino das fórmulas mas também são necessárias
que os paroquianos entendam e aprendam. Nos do- algumas declarações da doutrina. D. João Aranha,
mingos do Advento e da Quaresma, devem ensinar bispo de Safim, em 1473, nota na sua visita a conti-
os mandamentos com as acções contrárias ao seu nuação da ignorância religiosa entre o povo. Nos
cumprimento e tudo isto com «o milhor e mais de- dias de pregação os párocos estavam dispensados de
claradamente que elles podessem e lhes Deus menis- ensinar a doutrina. O Sínodo de Braga de 1477, cele-
trasse». Acresce o ensino das obras de misericórdia, brado por D. Luís Pires, considera que a negligência
dos reitores, curas e padrinhos da sua diocese levou
muitas crianças e adultos a ignorarem o pai-nosso, a
ave-maria e o credo, os mandamentos da lei e as
obras de misericórdia, os artigos da fé, os pecados
mortais. Obriga os abades, priores, reitores e curas a
ensinarem a doutrina referida, sendo o Pater noster,
a Ave Maria e o Credo in Deum em latim e portu-
guês e a restante doutrina só em português. O Trata-
do de confissom de 1489, entre as práticas cristãs
dos domingos e festas, diz que o fiel deve «ouvir as
missas e as oras e as pregações e aprêder a sancta
doctrina da fe catholica». No Sínodo do Porto de
1496, o bispo nota que muitos no seu bispado não se
sabem confessar por não saberem o Pater noster, a
Ave Maria, os mandamentos, as obras de misericór-
dia e os pecados mortais por culpa dos abades e ca-
pelães. Ordena que, aos domingos desde o Natal até
à Páscoa, os reitores e capelães ensinem, ao ofertório
da missa, os mandamentos da lei e os pecados mor-
tais com suas circunstâncias; da Páscoa até Santa
Maria de Agosto, o Pater noster, a Ave Maria, os ar-
tigos da fé e as obras de misericórdia corporais e es-
pirituais; de Santa Maria de Agosto ao Natal, os sa-
cramentos, os cinco sentidos e as virtudes teologais e
cardeais. Manda escrever «huum sumario breve que
disto esperamos fazer». O sínodo da Guarda de 1500
determina que os priores e capelães digam todos os
domingos, ao ofertório da missa, o Pater noster, a
Ave Maria e o Credo in Deum, os mandamentos e os
artigos da fé. O sínodo de Braga de 1506 recapitula
o ordenado pelo Sínodo do Porto de 1496. 3.: A épo-
ca que vai do século xvi ao século xix abrange a ter-
ceira catequização. Em véspera da cisão protestante
a Europa é cristã, mas deficiente na compreensão da
Frontispício do Cathecismo ou Doutrina Christaã & doutrina. E necessário dar clareza à fé. Surgem mo-
Praticas Spirituaes, de Frei Bartolomeu dos Mártires, vimentos renovadores, novas correntes de espiritua-
Braga, 1564 (Lisboa, Biblioteca Nacional).

303
CATEQUESE E CATECISMOS

lidade e os Descobrimentos abrem vastos horizontes orações para o levantar, oração à hóstia e outra ao
missionários. Aparece a imprensa. Se até aqui a ca- cálice. Seguem-se as doutrinas da prudência. Depois
tequese era baseada na oralidade e o protagonista era vem a oração ao anjo custódio. Num calendário com
o catequista, agora o livro é a fonte. Os catecismos os dias dc jejuar aparecem dias especiais reservados
são teologicamente precisos e simples. Acentuam ao arcebispado de Lisboa. Acaba com a «regra de vi-
principalmente a verdade-conhecimento com carên- ver em paz», em verso, que, não se referindo a assun-
cia da Bíblia e da liturgia. Do Concílio* de Trento tos propriamente religiosos, dá conselhos fundamenta-
sai um catecismo, não para o povo, mas dirigido aos dos na experiência humana. Esta cartinha aparece
párocos, traduzido para português em 1590. Porém noutra edição existente na Biblioteca Nacional de
a criação mais original e duradoura deste concílio é Lisboa (Res. 3837 P), com alterações de texto insig-
a instituição da catequese paroquial para crianças. nificantes. A maior discrepância está no título e nal-
Os primeiros catecismos manuais impressos são as gumas ilustrações. É a Cartinha pera êsinar leer: Cõ
Cartinhas ou Cartilhas, que constam geralmente de as doctrinas da prudêeia: E regra de viuer em paz:
duas partes: uma primeira com o abecedário e jun- Nouamête empremida cõ priuilegio de/Rey nosso Se-
ção de letras, e outra com os rudimentos da doutrina hor, impressa por Germão Galharde, exemplar único,
cristã. Destas cartinhas temos a primeira referência, mutilado. Foi fac-similado pela Biblioteca Nacional
em 1512, numa carta de Afonso de Albuquerque a de Lisboa. Noutra cartinha editada por Germãç Ga-
D. Manuel I. Restam oito fragmentos de uma carti- lharde, existente na Biblioteca Pública de Évora
nha que talvez façam parte do mais antigo catecismo (Res. 300-A), sem índice e a que devem faltar alguns
impresso em português. Encontra-se na Biblioteca fólios, a parte dedicada à aprendizagem da leitura re-
Nacional de Lisboa (Res. 5567 P.) e data dos finais duz-se a duas páginas incompletas. A doutrina ocupa
do século xv ou princípios do século xvi. Tem os ca- trinta fólios. O conteúdo é quase idêntico ao das duas
racteres góticos e é ilustrado com singelas gravuras: cartinhas anteriores. Traz algumas fórmulas em verso e
Anunciação a Maria, São João Evangelista, o rei Da- apresenta «a doutrina da mesa» que vem a ser um con-
vid, Nossa Senhora com o rosário, Jesus crucificado junto dc regras de etiqueta, dirigidas de pai a filho.
com Maria e João junto à cruz, Descida do Espírito Outra cartinha com pouco mais de uma página dedi-
Santo. A parte escrita consta das seguintes fórmulas cada ao alfabeto e junção de letras, com a doutrina
e orações em português: «padre nosso», «Deos te distribuída por cerca de trinta páginas, na Biblioteca
salve Maria», os «dez mandamêtos», as «sete obras Pública de Évora (Res. 300-B), não apresenta título.
de misericórdia», «Deus te salve Raynha», «oraçom O conteúdo é semelhante ao das outras cartinhas.
aa hóstia», «oraçõ ao calez». A ave-maria tem mais A Doctrina Christam: Com algúas orações e o Ro-
perícopas evangélicas do que as que aparecem noutros savro de nossa Senhora, da Biblioteca Pública de
catecismos portugueses do século xvi. A Cartinha pea Évora (Res. 259), foi dada à estampa «em Braga em
ensinar a leer cõ as doctrinas da prudência: E os dez casa de António Mariz empressor do Senhor Arcebis-
mandamêtos da ley cõ suas contras: Agora nouamen- po Primas etc. Aos 9 dc Junho de 1561». Deve ser
te, existente na Biblioteca Pública de Évora (Res. exemplar único. É de teor comparável ao das carti-
265-B), exemplar único, é a mais antiga, com data nhas precedentes. Apresenta também as três partes da
certa impressa em Lisboa em 28 de Maio de 1534 penitência, exame de consciência, novíssimos, bem-
por Germão Galharde, que deu à estampa outras car- -aventuranças, dons do Espírito Santo, virtudes e mis-
tinhas. A primeira parte da cartinha trata da «arte pa- térios do rosário. A Doctrina de prinçipios e funda-
ra aprender a leer» com o alfabeto e junção de letras, mêtos de christãdade de D. João de Melo, bispo do
em duas páginas. A segunda parte, com pouco mais Algarve, tem 57 fólios com a falta de dois e calcula-
de três dezenas de páginas, é o catecismo. Começa -se que foi impressa em Lisboa por Germão Galharde,
pelo Pater noster, Ave Maria, Credo, Salve Regina, a partir de 1549. É pertença da Biblioteca Nacional de
em latim e português. Em latim está escrita a confis- Lisboa (Res. 1692 P.). Só se conhece este exemplar.
são da missa com as orações introdutórias, assim co- As razões para mandar imprimir esta «doctrina» são
mo a bênção da mesa. Seguem-se os doze artigos da frequentes na época: «Neste nosso bispado ha gran-
fé, tendo cada artigo, ao lado, a imagem do apóstolo de ignorancia e descuido do que o xpam deue sa-
a quem se atribui a autoria. Estes doze artigos, por ber.» Isto é devido aos pais, mestres e curas não en-
sua vez, dividem-se em catorze: sete pertencentes à sinarem quem lhes está confiado. O autor tenciona
divindade e sete à humanidade. Os mandamentos fazer uma obra de modo a elucidar o povo e servir
são apresentados com os seus contrários. Enunciam- de apoio ao clero e catequistas. Destina-se ao Algar-
-se os cinco mandamentos da Igreja. Os sacramentos ve. Utiliza dois processos na apresentação da doutrina:
são cinco de necessidade e dois de vontade. Ao tra- pergunta-resposta e exposição. A linguagem não é
tar de que «cousa he pecado venial» diz que se per- muito cuidada, mas coloquial, sobretudo nas partes
doa por nove meios devidamente designados. É mais do diálogo. Como catecismo de iniciação é bastante
desenvolvida a noção de pecado mortal, enumeran- desenvolvido e um bom auxiliar do confessor. Em-
do-se os sete pecados mortais que se contrapõem às bora não avulte a erudição, cita a Bíblia e algumas
sete virtudes. São cinco os sentidos corporais. As autoridades eclesiásticas. Notabilizaram-se também
obras de misericórdia são sete corporais e sete espi- pela sua dedicação à catequese Pedro de Santa
rituais. Indica os três inimigos da alma. Muda o rit- Maria, chamado «Padre da Doutrina», autor de um
mo do catecismo com o prólogo de São João e o catecismo, e o bispo de Évora, D. Afonso, que ensi-
símbolo Quicumque vult, a oração do justo juiz e a nava as crianças por um catecismo por ele redigido.
oração Obsecro te Domina em português. Apresenta O Cathecismo pequeno da doctrina e instruiçam que

304
CATEQUESE E CATECISMOS

extenso e profundo. Não sabemos se algumas das car-


tilhas hoje existentes são de D. Diogo. O Catecismo
pequeno consta de duas partes, «crer» e «obrar», ten-
do a primeira dez capítulos e a segunda quarenta.
Convida quem quiser aprofundar os assuntos à leitu-
ra de um tratado de maior fôlego da sua autoria:
«E se alguü quiser mantymento de baram leea ho
cathecismo moor que desta matéria screuemos.» Não
conhecemos rasto algum deste catecismo mais de-
senvolvido, nem tão-pouco se chegou a ser impresso.
O catecismo começa por dissertar sobre o fim último
que é Deus, conhecido pela luz da razão, confirmada
pelas três virtudes teologais. Refere três símbolos: o
dos apóstolos que é o credo pequeno, o niceno ou cre-
do maior e o Quicumque vult. Ao pai-nosso, ave-
-maria e salve-rainha dedica uma «breue exposiçã».
No primeiro capítulo da segunda parte «tracta como
a guarda dos mãdamêtos he necessaria e abasta pera
hir ao paraíso e a diferêça de mãdamêtos affirmati-
vos e negatiuos». O segundo é sobre a lei natural e o
terceiro acerca da caridade. No quarto, fala «dos
mandamentos em geral». A seguir, dedica um capí-
tulo a cada um dos mandamentos e mais seis capítu-
los às virtudes. Do capítulo xxi ao xxiv trata dos sete
dons do Espírito Santo, obras de misericórdia, esmo-
la, potências da alma e cinco sentidos. Do capítulo
xxv ao xxxiv disserta sobre os vários pecados. No
capítulo xxxv declara os vícios e pecados contrários
às virtudes e, no seguinte, apresenta os «remedios
cõtra o pecado que sõ os sacramentos». Os últimos
quatro capítulos dizem respeito à confissão. Desen-
volve toda a doutrina em torno do mandamento do
amor que considera «doctrina natural ensinada por
Xpo». A moral dos actos é vista não só pelos princí-
pios mas também pelas consequências, por vezes
Frontispício da Cartinha pera êsinar leer. Cõ as doctrinas questões de simples conveniência ou cortesia. Ofe-
da prudêcia (Lisboa, Biblioteca Nacional). rece uma ampla listagem de pecados, em que trans-
parece grande preocupação pela integridade do
sacramento da Penitência e pela competência do
os xpaãos ham-de crer e obrar pera conseguir a be- confessor. Escrito com grande precisão técnica, é
nauenturança eterna feito e compilado pollo reue- sintético, sem divagações de tipo literário, claro na
rendissimo sehor dom Dioguo Ortiz bispo de Çepta: exposição, pormenorizado nas distinções, logica-
Emprimido com priuilegio dei Rey nosso senhor, etc. mente arrumado. A argumentação especulativa é
f o i emprimido em a muy nobre cidade de Lixboa per completada com numerosas citações da Bíblia, San-
Ualenti Fernãdez Alemã e Johã Pedro Boõmini de tos Padres e teólogos. Não faltam os filósofos clás-
Cremona aos XX dias de Julho: Era de mil e quinhê-
tos e quatro annos. A feitura material da obra é re-
sicos. Agostinho, Ambrósio, Jerónimo, Atanásio,
presentativa da perfeição tipográfica daquele tempo, Gregório, Cipriano, João Boaventura, Escoto, To-
com belos caracteres góticos e várias iniciais orna- más de Aquino, Ricardo de Mediavila, Platão e
mentadas através de 78 densos fólios. Não é de con- Aristóteles aliam-se harmoniosamente. Os aspec-
fundir o Catecismo pequeno de D. Diogo Ortiz de tos morais e rubricistas emergem mais visivelmen-
Vilhegas, também conhecido por bispo «Calçadi- te do que a liturgia que apenas é tocada ao de leve.
Iha», nome da sua terra de nascimento em Castela, Como bom escolástico, ordena os capítulos com a
com outra obra sua que o alvará de 17 de Março de declaração das noções, o estado da questão, opiniões
1539 menciona: «E assy as cartinhas por omde se sobre o tema se as há, apresentação de provas, con-
ensynão os menynos que fez o bpõ de viseu dom clusões e importância da doutrina. Por vezes, traça a
diogo ortiz que Deus aja.» Também a estas se refere génese histórica de algumas fórmulas. O Catecismo
pequeno é um resumo desenvolvido de um tratado
o vigário de Malaca, em 1532, que numa carta a el- de teologia*, e não uma iniciação à doutrina cristã.
-rei afirma: «Estes todos ou a maior parte deles te- Embora o autor dirija o catecismo aos simples, pare-
nho ensynado ho Pater noster, a Ave Maria, Credo in cem ser destinatários óbvios os clérigos ou cristãos e
Deum, Salive Regina, e ajudar a missa, e agora an- catequistas com alguma preparação. Possivelmente,
dam cada huum com sua cartilha de Calçadilha.» As o facto de não conhecermos mais do que uma edição
cartilhas são obras mais manuseáveis, muito mais deste notável catecismo se deva à terminologia espe-
breves e baratas para serem distribuídas em grandes cializada e secura de expressão. O célebre historia-
quantidades do que o Catecismo pequeno, que é muito
305
CATEQUESE E C A T E C I S M O S

dor João de Barros escreve um catecismo inserido


num conjunto de quatro obras, formando uma unida-
de pedagógica. A portada deste grupo de livros apa-
receu, em 1539-1540, com o nome de Grammatico da
lingua portuguesa com os Mandamentos da Santa Ma-
dre Igreja e compreende os seguintes títulos, que a
«táuoa» indica: Cartinha, Gramática, Diálogo em lou-
vor da nossa linguagem e Diálogo da viciosa vergo-
nha. A Cartinha consta de duas partes: as primeiras
quinze páginas são dedicadas aos «primeiros ele-
mentos de leteras em modo de árte memorativa»,
com um método inovador na aprendizagem da leitu-
ra, sem paralelo com as outras cartilhas. As restantes
quarenta páginas são ocupadas pelo catecismo.
A Grammatico, de tipo normativo e prático, é um
marco inovador no ensino da língua portuguesa. Os
Diálogos são reflexões para leitura. Globalmente fa-
zem uma sequência lógica do ensino, indo do mais
elementar até a um maior aprofundamento das maté-
rias. O Catecismo tem destino óbvio: «pera os mini-
nos cuja esta óbra é por que tenham doutrina cõfor-
me a sua idade», mas o que torna verdadeiramente
singular o móbil da feitura do catecismo, que faz
parte integrante da Cartinha para aprender a ler, é a
missionação. Há pouco acontecera a espectacular
«coversam de cincoenta e sete mil almas na terra do
Malabar» e os Descobrimentos marítimos tinham di-
fundido por toda a terra a providencial língua portu-
guesa concebida «como um nouo apóstolo» «com
que pouos da gentilidade sam metidos em o curral
do Senhor». Neste sentido, a cartinha ensinava a lín-
gua portuguesa a outros povos, juntamente com a
doutrina cristã. Barros reivindica para o leigo um pa- Sentenças para a ensinança e doutrina do príncipe D. Sebastião,
pel de grande importância na evangelização do mun-
do. Não concorre com o sacerdote, mas tal cargo
compete-lhe por dever da sua condição de cristão exemplar algum. As semelhanças entre a Doctrina e
porque «a graça do bautismo abilitou todos». Aduz a o catecismo de João de Barros, que lhe é anterior,
generalidade das fórmulas adoptadas pelos catecis- são sugestivas. É muito natural que o catecismo de
mos da época. A única parte em que desenvolve a Barros esteja incluído no numeroso conjunto de li-
matéria é no «tratado da missa» que ocupa quase oi- vros que D. João 111 ofereceu a Xavier e o acompa-
to fólios. Utiliza, com visível sentido didáctico, enu- nharam até à índia. Alguns autores dizem que Xa-
merações da doutrina, bem destacadas, em esquema, vier o adaptou, mas convém lembrar que outras
alinhamentos de palavras, chavetas ou caldeirões no cartilhas de conteúdos afins já as havia em Portugal:
início, de modo a facilitar a memorização. Alguns a Doctrina é um catecismo elementar que apenas
estudiosos afirmam que a original cartilha de João traz enunciados de doutrina e pequenas orações, sem
de Barros terá exercido influências noutros autores explicação das fórmulas. A Declaração do símbolo
de obras similares, mas ficou pela primeira edição. da fé, datada de 1546, é uma glosa ao símbolo da fé,
Foi preciso que os monges da Cartuxa de Évora em que os comentários são um resumo da história da
rompessem com o silêncio para onde foi remetida salvação, escrita com grande simplicidade, numa lin-
esta preciosa cartinha durante mais de dois séculos e guagem acessível a ouvintes pouco exigentes inte-
dessem à luz em 1785 a Compilação de várias obras lectualmente. A Ordem e regimento que um homem
do insigne portuguez Joam de Barros, onde está in- há-de ter todolos dias pera se encomendar a Deus e
cluída. Em 1971 apareceu nova edição com as exi- salvar sua alma, editada talvez entre Junho e Agosto
gências requeridas pelo trabalho científico do nosso de 1548, em Goa, é não só um florilégio de orações
tempo. A catequese tem expressão de primeiro plano e conselhos para a vida espiritual como também um
na acção missionária de São Franciso Xavier, confir- repositório de várias fórmulas da doutrina. A grande
mada em muitos dos seus escritos, especialmente rapidez de itinerância de Xavier, com a finalidade de
três: a Doctrina Christiana ou Catecismo breve, a conhecer e organizar missionariamente um vastíssi-
Declaração do símbolo da fé e o Modo de rezar e mo território, e a esperança que depositava numa fu-
salvar a alma. Tendo composto o Catecismo breve tura continuação de obreiros, para os quais desenvol-
em 1542, só em 1557 foi impresso na tipografia da veu muitas iniciativas de cariz material e espiritual,
Companhia de Jesus*, no Colégio de São Paulo, em não lhe permitiram senão uma catequese perfunctó-
Goa*. Foi uma das primeiras obras impressas na ria. A Cartinha pera ensinar a leer: Cõ os dez man-
índia*, talvez a segunda, da qual não se conhece damentos de Deos e a conjissam geral: E outras
cousas muyto provueitosas e necessarias de nouo

306
CATEQUESE E CATECISMOS

de doctrina christãa recopilado de diuersos autores


que desta matéria escreuerão, pelo R. P. F. Luys de
Granada, prouincial da ordem de S. Domingos:
Acrescentarão-se ao cabo treze sermões das princi-
paes festas do anno pelo mesmo autor. O Compendio
de doctrina e os Treze sermões são obras indepen-
dentes, com paginação e rosto diferentes, contudo
formam uma unidade de convergência, num só volu-
me. Acabaram de se imprimir, respectivamente, em
25 de Abril e 20 de Maio de 1559, em Lisboa, na ca-
sa de Joannes Blauio de Agripina. Foi a rainha
D. Catarina, viúva de D. João III, quem custeou o
primor da impressão em caracteres góticos. Esta
obra foi traduzida para castelhano com duas edições
em 1595 e outra em princípios do século xx. Em
Portugal conhecemos mais duas edições do sé-
culo XVIII: a de 1789, com conteúdo idêntico à qui-
nhentista, e a de 1780, que aparece modificada no
texto e sem os treze sermões. O catecismo é um lon-
go tratado que consta de 19 capítulos repartidos por
174 fólios, fora os sermões. Destina-se a combater a
ignorância e a substituir a falta de homilia na missa.
D. Frei Bartolomeu dos Mártires ordenou que se les-
TVAM.ftU I LO. " LjOfeRÍA- se durante meia hora na homilia. A segunda meia
C0NS1MR>*iJÍ-ISTA-!., .1fcSTATI
1
5' hora ficava «pera dizer o cura algüa cousa sobre o
ÍNÍTJA' AD; átonrm-cc • «<. t
que tiuesse lido». Considera que «todos sabem que
quatro sam as principaes partes desta doutrina, co-
nuê a saber: artigos da fe, mandamentos, oraçam e
sacramentos». Dividida a matéria da doutrina, indica
«a razam e a necessidade» dela com três princípios:
querer, saber e poder. Confronta o sermão e a cate-
quese que fizeram grandes frutos na antiguidade e
c. 1554 (Fundação Arquivo - Casa de Bragança, Muge) não lhe parece bem que a catequese seja tida como
oficio menor. Salienta que «este documento nam ha-
-de ser somente aprender de cor e rezar como húa
acrecêtadas: Ordenado pelo senhor dom Joam Soa- pega a doctrina christãa, senam sabe-la cõ alguúa de-
rez bispo de Coymbra, existente na Biblioteca Públi- claraçam». Fazem parte dos agentes educativos os
ca de Évora (Res. 300), teve várias edições. Além do curas de almas, prelados espirituais, padrinhos, mes-
exemplar de Évora, há outro, de edição diferente, na tres, senhores e senhoras de família. Na segunda par-
Biblioteca do Palácio-Museu de Vila Viçosa (BDM te da Doctrina trata-se dos mandamentos e dos peca-
2 o / 578), impresso em 1596 ou 1597 e que pertenceu dos. Não vai seguir apenas o que é mais apreensível
a el-rei D. Manuel II. Na cartinha de Vila Viçosa as na redacção dos mandamentos, mas procura captar-
ilustrações são copiadas da cartinha de João de Bar- -lhe outros sentidos e motivações, o que torna a obra
ros, mas o catecismo propriamente dito não parece bastante original. Dá muita importância às raízes do
ser cópia do de João de Barros por não corresponder pecado nas suas causas mais remotas e indirectas.
ao seu conteúdo nem ao seu espírito. Começa pela Preocupa-se mais com a prevenção do que com o re-
«arte de aprender a ler», com página e meia, dedi- médio e mesmo nos mandamentos negativos encon-
cando ao catecismo trinta páginas. A organização da tra acções positivas. Não se interessa muito pela ca-
matéria não obedece a um plano de sequência lógica, suística mas por uma suma do procedimento
mas o conteúdo é semelhante ao das outras carti- fundamental da vida cristã. A terceira parte refere-se
nhas. Refere as potências da alma; orações a Santo à oração e sacramentos. O pai-nosso tem um desen-
António, ao Anjo e à Vera Cruz. Aparecem várias volvido comentário, o que perfaz um pequeno trata-
fórmulas em verso, entre as quais «Os dez mandamê- do de oração. Quanto aos sacramentos, desenvolve
tos de Deos» que trazem notação musical. É o único sobretudo o da Penitência e o da Eucaristia porque
catecismo do século xvi que conhecemos com pauta são os «de que mais a meude vsam os homês». So-
musicada escrita, embora se saiba que existiu, pelo bre as partes da confissão, dá como principais a dor
menos, outro com solfa, impresso em Braga, em e arrependimento. A missa é essencialmente sacrifí-
1568, intitulado Cartilha que ensina a ler em que cio e acto comunitário. O melhor meio de participar
vem o simbolo, e o modo de ajudar a missa, em la- na missa «he attentar o que se faz e diz». «E o me-
tim, e algumas orações em português, em prosa e lhor livro de deuaçam de quantos vi, he o livro que
verso, com um solfa de cantiga, para fixar a memo- chamamos missal.» Uma vasta erudição, com muitas
ria, e curiosidade dos meninos, com dois alfabetos, citações da Bíblia, Padres, Doutores da Igreja e ou-
um figurado, outro de letras. O dominicano espa- tros escritores notáveis, ilustra o catecismo escrito
nhol Frei Luís de Granada passou 42 dos seus 84 numa linguagem simples e fluente. Possivelmente,
anos de vida em Portugal. Escreveu um Compendio

307
CATEQUESE E C A T E C I S M O S

por ser suspeito de influências erasmianas e devido à impressa em Rachol (Goa) a Doutrina cristã em lín-
grande extensão do tratamento dos assuntos, este ca- gua concani, traduzida pelo padre jesuíta Tomás Es-
tecismo, que é um vulto na literatura didáctica reli- têvão, da qual há edição fac-similada, em Lisboa,
giosa do século xvi, não teve a difusão que seria de 1945. O catecismo de Marcos Jorge foi composto
esperar. A rápida sucessão das primeiras catorze edi- para os meninos com base noutras doutrinas, fugin-
ções, que vão de 1564 a 1785, do Catecismo ou dou- do de pontos de teologia, e divide-se em três partes:
trina cristã e práticas espirituais de D. Frei Bartolo- crer, pedir e obrar. As «lembranças para ensinar a
meu dos Mártires, arcebispo de Braga, contrasta com santa doutrina pelo padre Inácio Martins» são uma
a décima quinta, em 1962, que aparece quase dois sé- introdução pedagógica que consta de dez pontos,
culos depois da precedente. Tal fenómeno deveu-se à mas todo o catecismo está recheado de observações
política do marquês de Pombal que impôs o catecismo sobre a conduta a ter com a lição de catequese, de
de Montpellier, traduzido em 1765. D. Frei Bartolo- modo a que o ritmo seja variado. Como acrescento
meu escreveu o catecismo para combater a ignorância «seguem-se alguns tratados muito devotos e provei-
religiosa do povo e auxiliar a deficiente preparação do tosos pelo padre Inácio Martins Doutor teólogo da
clero. Expõe a matéria em estilo concionatório para Companhia de Jesus». Embora elementar, este cate-
ser lida, em vez de homilia, aos domingos e dias cismo de tipo pergunta-resposta não se limita ao
santos. Para dias especiais acrescentou «üas breves mero enunciado das fórmulas, mas explica com
colações». Destinou o catecismo à diocese de Bra- grande simplicidade as verdades fundamentais do
ga* mas, de facto, teve uma amplitude muito maior. cristianismo. E o catecismo português do século xvi
A edição de Lisboa de 1566, sob o patrocínio régio, que usa e propõe mais recursos didácticos como
informa que irá ser usado pelas igrejas do padroado diálogo, exposição, verso, música, dramatização,
real e das ordens militares de Cristo, Santiago e prémios, recapitulações, orações intercalando a ex-
Avis, cuja jurisdição se estendia por todo o Portugal posição, variedade de locais para doutrinar, distribui-
e domínios ultramarinos. Embora seja um catecismo ção de funções na acção da aprendizagem segundo
bem abonado pela Sagrada Escritura, Padres e tradi- as aptidões individuais do catequizando, sendo
ção, consegue não sobrecarregar o texto. Divide a acompanhado de notas explicativas de metodologia
primeira parte da obra em quatro conjuntos, subordi- do ensino. E também, de todos os catecismos de
nados os três primeiros à fé, esperança e caridade, e Quinhentos, aquele em que é mais evidente o ensino
o quarto aos sacramentos. Assim, na fé converge a de matérias que o reformismo protestante contestava
doutrina do credo, a esperança é explicitada pelo Pa- na Igreja Católica, como primado romano, culto dos
ter noster e a caridade pelos mandamentos. Outras santos, etc., mas não há referência directa às here-
partes da doutrina, como os pecados capitais, os pre- sias. A doutrina é apresentada sem polémica. O pri-
ceitos da Igreja ou os novíssimos, embora com capí- meiro livro impresso na Europa em língua indiana é
tulos específicos, estão dependentes da virtude da a Cartilha que conte breuemête ho que todo christão
caridade. A afinidade do catecismo de D. Frei Barto- deue aprêder pera sua saluaçam: A qual elrey dom
lomeu com o de Frei Luís de Granada é grande. Joham terceiro deste nome nosso senhor mandou
Une-os um conjunto de valores em torno dos quais imprimir ê lingoa tamul e português cõ a decrara-
se movimenta a doutrina, o amor a Cristo, a docili- çam do tamul por cima de vermelho. Foi impresso
dade à graça, a essência da oração, etc., bem como o em Lisboa, em 2 de Fevereiro de 1554, por Germão
tratamento de vários assuntos, embora o de D. Frei Galhardo. E exemplar único e encontra-se no Museu
Bartolomeu seja mais equilibrado quanto à extensão Nacional de Arqueologia e Etnologia de Lisboa.
e distribuição das matérias. Catecismo pastoral, li- Tem edição fac-similada de 1970. O texto consta de
túrgico, doutrinal e nacional, é uma obra modelar e 32 páginas a duas cores e pequenas gravuras ingé-
plena de sugestões. Um dos mais célebres catecis- nuas de boa execução, com episódios bíblicos ou
mos elementares portugueses, a Doutrina cristã, im- piedosos. Por ordem de D. João III, traduziram a
pressa em 1566, cujas numerosas edições chegaram doutrina para tâmul três nativos da índia com a ajuda
até aos fins do século xix, é o do jesuíta padre Mar- de um franciscano. A obra é impressa em caracteres
cos Jorge (1527-1571), mais conhecido por Cartilha góticos, mesmo o escrito em tâmul, seguindo um
do padre mestre Inácio, devido ao nome de um ou- processo muito engenhoso em três linhas. A do
tro jesuíta seu contemporâneo, padre Inácio Martins meio, em tâmul, tem os caracteres maiores do que as
(1547-1598), que acrescentou a obra. Foi utilizado duas outras paralelas. Por cima do texto tâmul está,
não só em Portugal e ultramar como também em Es- em vermelho, a correspondência directa das palavras
panha. O padre Leonardo do Vale traduziu-o para tu- em português. Por baixo da expressão tâmul vem a
pi, na Bahia, em 1574, com o título de Doutrina na fórmula em português tal como era ensinada. O que
lingua do Brasil. O padre Henrique Henriques tradu- está escrito em latim vem só, à parte. Observam os
ziu-o para tâmul: Doctrina christãa tresladada em tradutores que não encontram nos caracteres latinos
língua tamul (Coulão, 1578); Doctrina christãa a todos os sons que o tâmul tem, e assim dão algumas
maneyra dialogo, feyta em Potugal pello padre Mar- regras para se pronunciar a transcrição. A cartilha
cos Jorge, tresladada em lingua malauar de Tamul apresenta uma página com o abecedário e junção de
(Cochim, 1579). Também foi traduzida para quiongo letras. A seguir enumera, e por vezes dá explicações
por ordem do missionário jesuíta* padre Mateus rudimentares das principais fórmulas da doutrina. Os
Cardoso, impressa em Lisboa em 1624 e reeditada Jesuítas mandaram traduzir doutrinas por jovens
em 1987, pela Real Academia das Ciências Ultrama- orientais estudantes do Colégio de São Paulo de Goa
rinas de Bruxelas. Baseada nesta obra, em 1622, foi que, além do português, «sabiam ler e escrever em

308
CATEQUESE E CATECISMOS

suas línguas». Neste colégio imprimiram algumas nio Vieira. O deste último autor teve tradução em
cartilhas. Um jesuíta desconhecido elaborou um Ca- seis línguas. O Catecismo Índico da língua cariris,
tecismo ou práticas da doutrina cristã. D. Gaspar da autoria do franciscano Bernardo de Nantes, desti-
Leão Pereira, arcebispo de Goa, escreveu um Com- nou-se aos índios do Brasil e foi impresso em Lis-
pendio spiritual da vida christã, impresso em 1561. boa, em 1709. Os séculos XVII e xvin são os séculos
Em 1578, aparece um catecismo em língua malabar e de oiro das missões populares. O século XVII prosse-
caracteres tâmules, pelo padre João de Faria, o primei- gue a reforma tridentina e a catequese especializa-se
ro que abriu e fundiu os caracteres de língua tâmul. por sectores; porém no século xvin começa a descris-
O dominicano Frei Silvestre de Azevedo, a pedido tianização. Razão e fé distanciam-se. Os problemas
do rei do Camboja, escreveu em língua khmer os levantados induzem novas perspectivas: a bíblica, a
Mistérios da fé cristã (1576-1596?). Em 1632, o je- antropológica e a escolarização da catequese. Apare-
suíta Diogo Ribeiro publicou, em Rachol, a Decla- ceram no século XVII novos catecismos, entre os
ração da doutrina Cristã, coligida do cardeal Be- quais os de Amaro de Reboredo, D. Frei João de
larmino, em concani. O Compêndio da doutrina Portugal, António Mestre, D. Leonardo de São José,
Cristã, ordenado pelo padre jesuíta Teotónio Joseph, João da Fonseca, Manuel Fernandes, Frei António
em língua brâmane goana, foi impresso em Lisboa de São Bernardino e Sebastião Berne. Traduziram-se
em 1758. Os Franciscanos também elaboraram vá- vários para línguas de terras de missões como o
rios catecismos na índia, mas pouco sabemos deles. de Luís de Azevedo para abexim, o do jesuíta João de
Impressos na índia, mas já no século xix, aparecem Barros para quiriri, o de João Filipe Bettendorf em
ainda mais quatro catecismos. No Japão foram im- português e brasílico, o de António do Couto em la-
pressos pelos Jesuítas vários livros destinados à cate- tim, português e angolano, o de Luís Mamiani em
quese. Nem sempre as traduções foram felizes, como quiriri. O século xvin viu chegar outros autores: o
aconteceu com o catecismo de São Francisco Xavier, angolano José Gouveia de Almeida, Frei Manuel de
modelo de catecismos posteriores para os Japoneses, Assunção, que escreveu em bengali e português,
pelo que teve de ser revisto. O padre Baltasar Gago D. Joaquim da Encarnação, D. João da Silva Ferrei-
compôs um catecismo pergunta-resposta, que con- ra, José António de Magalhães, Frei Vitório de Santa
cluiu em 1558 ou 1559, o Nijügo Kagiô. O padre Maria, Frei Francisco da Natividade, Manuel Cor-
Belchior Nunes desenvolveu-o com destaque para a reia Valente, Manuel Velho, Teodoro de Almeida.
existência de Deus e a insuficiência das religiões do Traduziram-se para português os do Abade Fleury,
Japão. Os assuntos destes primeiros catecismos su- Olivier, Dandini e Platel. Às ordens do marquês de
blinhavam o mistério da Santíssima Trindade, Deus Pombal traduziu-se o catecismo de Montpellier, jan-
criador, o mistério da Encarnação. O Catecismo ro- senista e regalista, que teve larga repercussão até fi-
mano, tridentino, foi introduzido no Japão em 1568 nais do século xix. D. Francisco Gomes de Avelar
e traduzido para japonês e, em 1596, viu a sua ver- elaborou um na linha antijansenista. Actualizou-se a
são latina na imprensa jesuíta de Amacusa. O padre tradução do Catecismo romano de Pio V que veio
Valignano compôs um catecismo desenvolvido, edi- a ter mais edições no século xx. O século xix sofre
tado em Lisboa em 1586, destinado a mestres. Os Je- grandes mudanças na política e nos movimentos lite-
suítas imprimiram em 1592, em Amacusa, uma rários e teológicos. A Igreja perde o poder temporal
adaptação da Quinta parte da introdução ao símbolo e o sentido do sagrado apaga-se em favor da moral
da fé de Frei Luís de Granada, traduzido para japo- utilitarista. A Igreja percebe a problemática mas tem
nês, a Fides no doxito. Existiu, na biblioteca do Li- dificuldade na adequação das soluções pastorais e
ceu Passos Manuel, em Lisboa, uma Doctrina Chris- catequéticas. Há um fecundo despertar missionário
tian que foi o primeiro destes compêndios impressos com figuras e obras actuantes em todo o globo. Na
no Japão, em Amacusa, em 1592. O mesmo com- catequese procura-se a continuidade. A inovação é
pêndio foi também o primeiro catecismo impresso excepção. São duas as principais correntes catequéti-
em caracteres japoneses, em 1592, em Amacusa, se- cas deste século: a histórico-teológica, inovadora,
gundo se pensa. Teve várias edições. A Doctrinae que é suplantada pela orientação neo-escolástica. As
Christianae Ruddimenta cum alijs pijs orationibus, missões populares e as conferências religiosas para o
impressa em Nagasáqui em 1600, está escrita em la- público culto, além da catequese paroquial, são ou-
tim e japonês. O Catecismo na língua brasílica, que tros meios de catequização, mas a descristianização
deve ter sido composto pelos jesuítas Pêro Correia, progride. Foram autores de catecismos no século xix
Leonardo do Vale e José Anchieta, foi corrigido pelo D. Frei José de Assunção, José da Silva Bandeira,
padre António Araújo e impresso em 1618. Foi tra- Diogo Carvalho, Fernando Tomás de Brito, D. João
duzido em muitas línguas americanas e, por ser um da Madre de Deus, Frei Jerónimo Emiliano, Joaquim
manual perfeito, serviu aos missionários cerca de José Leite, Joaquim Lopes Carreira de Melo, José
dois séculos. Aproveitando-se dos dotes artísticos Joaquim Poças, Adrião Pereira Forjaz de Sampaio,
dos nativos, Anchieta iniciou no Brasil uma notável Frei Francisco de Jesus Maria Sarmento, Frei Lucas
actividade catequística, que teve seguidores, com Tavares, José de Sousa Amado, merecendo destaque
instrumentos musicais e poesia. As danças, autos e pela sua longa aceitação a célebre cartilha do abade
mistérios, em datas festivas, substituíram o que ha- de Salamonde, Dr. António José de Mesquita Pimen-
via de pagão entre os Ameríndios. Outros catecis- tel. Traduziram-se os de Mr. Ségur, Jaime Balmes,
mos apareceram, no Brasil, como os do padre Mar- Noirlieu, Gaume, Lhommond e Mazo. O clero regular
cos Jorge, Frei Manuel de Deus, Frei Sarmento, Frei e secular, assim como o episcopado, preocuparam-se
João Franco, padre Manuel Bernardes e padre Antó- com a catequese mas, ao findar o século xix, havia

309
CATEQUESE E CATECISMOS

muita deficiência no ensino nas escolas e nem sem- novos catequistas e estimulam-se numerosas e varia-
pre os catecismos eram de boa qualidade. Multiplica- das expressões catequísticas.
ram-se as pastorais dos prelados sobre o assunto; po- FRANCISCO DA SILVA CRISTÓVÃO

rém, algumas leis do poder político contrariaram os


BIBLIOGRAFIA: B O L L I N , António [et al.] - A catequese na vida da Igreja:
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metade deste século a Igreja é perseguida em vários toral en la Espana romanovisigoda. Madrid, 1955. F E R R E I R A , José Au-
gusto - Memória histórica do catecismo elementar no arcebispado de
países, mas há uma renovação notável no catolicis- Braga. Vila Nova de Famalicão, 1 9 3 2 . G A R C I A Y G A R C I A , Antonio, dir. -
mo. As profundas, rápidas e universais transforma- Synodicon Hispanum: 2: Portugal. Madrid, 1982. O L I V E I R A , Miguel de
ções socioculturais, as várias correntes de pensa- - O ensino do catecismo em Portugal: Notas para a sua história. Selec-
ção Documental. 58 (1962). P E R E I R A , Isaías da Rosa - O ensino da dou-
mento, as inovações das ciências da educação e as trina cristã nos séculos xiu a xvi. In C O N G R E S S O INTERNACIONAL DE H I S T Ó -
novas perspectivas teológicas incentivam a catequese RIA « M I S S I O N A Ç Ã O E E N C O N T R O DE C U L T U R A S » - Actas. Braga. 1 9 9 3 .
R O L O , Raul Almeida - Introdução. In CATECISMO de D. Frei Bartolomeu
a debruçar-se sobre a sua metodologia, linguagem, dos Mártires. Fátima, 1962.
destinatários e finalidade. A catequese rejuvenescida
torna-se uma instância de charneira na pastoral da
Igreja. O Catecismo da Igreja Católica, proposto CATOLICISMO SOCIAL. 1. Caracterização: Desig-
pelo Sínodo dos Bispos de Roma de 1985, não vem na-se por catolicismo social a corrente de ideias, ini-
substituir os catecismos locais, mas serve-lhes de ciativas e projectos desenvolvidos pelos católicos no
referência. Foram lentos os começos do movimento seio da sociedade na época contemporânea, em fun-
catequístico em Portugal, no século xx. Distinguem- ção da Doutrina Social da Igreja para responder à
-se várias etapas. Numa primeira fase de sensibili- chamada «questão social». Polarizada inicialmente
zação e arranque procurou-se alertar os dirigentes, pela situação do operariado no processo da Revolu-
publicar textos e estabelecer instâncias. Assiste-se ção Industrial, a percepção e a reflexão da Igreja Ca-
ao I Congresso Catequético em Portugal na Guarda tólica acerca da nova realidade social foi-se progres-
(1905); várias dioceses organizam a catequese; tra- sivamente alargando e aprofundando, incluindo, já
duzem-se catecismos como os de Pio X, Spirago e nos anos 60 do século xx, a problemática do desen-
Pcrardi; publicam-se documentos da Santa Sé sobre volvimento dos povos. Em concreto, a sua emergên-
a comunhão e cartas pastorais como as de 1910 e cia resultou dos esforços do que historicamente foi o
1917. Sínodos como os de Braga de 1918 e de Movimento Social Católico, na procura de novas
Coimbra de 1923 referem-se à instrução religiosa. formas de compreensão e aplicação dos princípios
O Congresso de Vila Real de 1925 tem repercussão da justiça e da caridade cristãs no contexto das so-
nacional. A segunda fase é de expansão, de aquisi- ciedades modernas, por contraponto quer às doutri-
ção de meios e de consciencialização da Igreja na- nas liberais quer ao movimento socialista do século
cional. É marcado pelo Concílio Plenário Português xix, numa reflexão que o magistério pontifício pro-
(1926), pelo I Congresso Nacional de Catequese em curou balizar através de sucessivas encíclicas so-
Braga (1932), por muitas iniciativas de várias dioce- ciais, desde a Rerum Novarum (1891) de Leão XIII à
ses como congressos, dias catequísticos e semanas Centesimus Annus (1991) de João Paulo II. Nascido
de estudos, pela Concordata* (1940) que abre novos em França e na Alemanha, o seu desenvolvimento
espaços, pela acção das Missionárias Reparadoras do acompanhou o avanço do processo de industrializa-
Sagrado Coração de Jesus*, pelas Noelistas, pela ção nos vários países de presença católica: Itália,
Acção Católica*, pelo Seminário dos Olivais. Numa Bélgica, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos da
terceira fase, de procura de consolidação, funda-se o América... ( c f . D E J O N G H E - Théorie). Em Portugal,
Secretariado Nacional de Catequese (1950) e estabe- se o aparecimento do catolicismo social terá sido ini-
lecem-se os secretariados diocesanos que, com a pu- cialmente menos visível, devido quer ao atraso no
blicação das Bases da catequese elementar em Por- processo de industrialização quer ainda em função
tugal (1961) pelo episcopado, marcam o passo mais da própria história do catolicismo nacional, ele de-
decisivo e mais eficaz para o incremento do aposto- sempenhou relevante papel na história do país. É as-
lado catequístico do nosso país. Aparece o Catecis- sim que, em meados do século xx, um dos seus prin-
mo nacional (1953-1956) de método indutivo; nos cipais teóricos e, simultaneamente, um dos grandes
seminários frequenta-se uma cadeira de Catequética; impulsionadores das ciências sociais em Portugal, o
cuida-se mais da formação religiosa nas escolas; pu- professor Sedas Nunes, se lhe refere: «A evolução
blicam-se revistas e outros textos; em 1962 faz-se das sociedades modernas tem sido acompanhada pe-
um inquérito catequístico nacional. Numa quarta eta- lo aparecimento de problemas sociais muito graves.
pa surge forte impulso sob a dinâmica do II Concí- A resolução de tais problemas exigiu, e exige ainda,
lio* do Vaticano. Saem novos catecismos e desen- opções doutrinais e políticas definidas onde com fre-
volve-se a formação dos catequistas; organismos quência são postos em causa os fundamentais valo-
juvenis e de adultos actuam em diversas iniciativas; res humanos. Compreende-se, assim, que pensadores
especializam-se pastoralistas, a nível superior, no es- católicos, atentos e empenhados na problemática do
trangeiro; publica-se o Directório catequístico geral seu tempo, hajam tentado enfrentá-los, situando-os e
(1971); criam-se secretariados diferenciados. Na valorando-os dentro de uma perspectiva cristã e pro-
quinta fase, após sondagens na década de 70-80, ve- curando orientações coerentes com essas perspecti-
rifica-se a necessidade de um projecto global de ca- vas. Deste movimento cultural surgiu a corrente de
tequese; preparam-se novos catecismos, alguns para ideias, de contornos mal definidos e várias ramifica-
adultos, obra de equipas; programa-se a formação de ções, designada vulgarmente por Catolicismo So-
C A T O L I C I S M O SOCIAL

ciai» ( N U N E S - Princípios, p. 1 5 ) . 1.1. Doutrina So- tâncias de legitimação e controlo do poder (v. IGREJA
cial da Igreja: A Doutrina Social da Igreja surgiu E ESTADO); a nível social, à afirmação do valor da li-
assim como parte de um modelo de relação da Igreja berdade individual em todas as esferas da vida (v. LI-
Católica com a sociedade contemporânea, o «catoli- BERALISMO); e, a nível cultural, à consequente disputa
cismo integral», que se definiu no quadro de um no terreno filosófico de novas perspectivas holísticas
conflito triangular entre catolicismo-liberalismo- e visões totalizantes no quadro do racionalismo mo-
-socialismo (cf. POULAT - Église). Mais do que um derno, de que o cientismo, o positivismo e o marxis-
sistema de pensamento ou conjunto de princípios mo terão sido as expressões matriciais. No seio do
intemporal, a Doutrina Social da Igreja nasceu da catolicismo, estas transformações geraram conflitos
procura de respostas a novas questões sociais resul- da mais diversa natureza, tanto quanto a religião pa-
tantes das revoluções liberais e dos processos de recia inicialmente relegada para um plano privado,
industrialização e moderno desenvolvimento econó- socialmente secundarizada: como conceber uma or-
mico, que gerou uma nova compreensão acerca do dem social, secundarizando a religião?; como com-
ser humano e da organização da sociedade, condu- patibilizar a ideia de liberdade individual com o va-
zindo a uma redefinição do papel da religião e do lu- lor da verdade revelada?; que lugar para a religião
gar das Igrejas no seu seio (cf. FONTES - A Doutrina). no quadro de sociedades em processo acelerado de
Para compreender a sua evolução, torna-se necessá- secularização* e laicização (v. LAICIDADE)?; como de-
rio identificar as questões e propostas que em cada finir o papel da Igreja Católica no seio de sociedades
momento estiveram em jogo na sociedade, para en- progressivamente marcadas pela pluralidade cultu-
tão analisar o entendimento que o magistério da ral? Estas e outras questões atravessaram o debate
Igreja exprimiu acerca delas (cf. C A M A C H O - Doctri- social, cultural e teológico, nos dois últimos séculos.
na). Por outro lado, a Doutrina Social da Igreja não A primeira grande resposta do catolicismo deu-se
pode ser analisada exclusivamente a partir dos pro- pela procura de restauração da ordem cristã da socie-
nunciamentos pontifícios, devendo procurar-se a ar- dade que só paulatinamente foi sendo ultrapassada,
ticulação do discurso sobre a sociedade com a dinâ- nomeadamente com a valorização da ideia de «justa
mica social e a realidade eclesial em que este se autonomia das realidades terrenas», proclamada pelo
inscreve. O próprio debate acerca do estatuto episte- II Concílio do Vaticano (1961-1965) (v. CONCÍLIOS).
mológico da Doutrina Social da Igreja conduz ao Nesta perspectiva, em termos de longa duração, o
cerne do debate teológico contemporâneo, concreta- pontificado de Leão XIII (1878-1903) constituiu
mente ao entendimento acerca da natureza e papel efectivamente um marco, ao contribuir para deslocar
das Igrejas no seio da sociedade. Concretamente, se o acento do movimento católico da questão política
a expressão Doutrina Social da Igreja se pode encon- para a questão social, como questão autónoma,
trar já no século xix, é no século xx que ela ganha apoiado na filosofia neotomista, e dando um conteú-
consistência; e enquanto com Pio XI se consagra a do social à ideia de democracia cristã, o ir ao encon-
ideia de doutrina social, pensada e definida em arti- tro do «povo cristão». Com o pontificado de Pio X
culação com outros dois conceitos - ciência social e (1903-1914) e Bento XV (1914-1922), a atenuação
acção cristã - , na segunda metade do século xx ela da doutrina de non expedit relativamente à situação
é posta em causa por muitos cristãos e eminentes política italiana inscreve-se nesta mesma linha de
teólogos, questionamento de que foi paradigma a pensamento. Por outro lado, a definição de uma «or-
obra do padre Chenu La «doctrine sociale de I 'Égli- dem social cristã», ainda segundo uma concepção
se» comme idéologie, publicada em 1979. O magis- orgânica e corporativa da sociedade, aliada ao pro-
tério de João Paulo II, reconhecendo a existência do jecto de «reconquista cristã da sociedade», é o en-
debate e procurando integrar a abertura de reflexão foque do pontificado de Pio XI (1922-1938) e par-
verificada nos pontificados anteriores de João XXIII cialmente do de Pio XII (1939-1958), entretanto
e Paulo VI, reafirmou a importância da Doutrina So- confrontados com uma nova realidade: o totalitaris-
cial da Igreja, precisando-lhe no entanto os seus con- mo do Estado moderno nas suas multímodas ver-
tornos, como um domínio da própria reflexão teoló- sões, em particular o fascismo, o nazismo e o estali-
gica, como decorre claramente do n.° 41 da sua nismo. A partir da radiomensagem de Pio XII no
encíclica Sollicitudo Rei Socialis. 1.2. Movimento Natal de 1944, com a aceitação e valorização da de-
Social Católico: No concreto, a Doutrina Social da mocracia enquanto forma política de organização
Igreja só se entende em articulação com o próprio dos Estados e base para o estabelecimento da paz in-
Movimento Social Católico que, no dizer dos seus ternacional, o movimento católico passou directa-
historiadores italianos, «deve ser visto e interpretado mente a confrontar-se com os desafios de construção
no quadro da ruptura da ordem política, social, cul- das sociedades modernas, em ambiente de crescente
tural e religiosa tradicional, operada em Itália como pluralismo cultural e diversificados protagonismos.
noutras partes, pelas revoluções burguesas e libe- O paulatino abandono da ideia de «reconquista», por
rais» ( T R A N I E L L O - Dizionario, vol. 1 / 1 , p. viu). Este parte do Movimento Social Católico, traduziu-se nu-
«sujeito histórico original» surge assim como «a res- ma atitude de abertura e diálogo dos católicos, que
posta laical do catolicismo à laicização liberal do Es- os pontificados de João XXIII (1958-1963) e Pau-
tado e da sociedade» (Ibidem, p. ix). Em causa esta- lo VI (1963-1978) incarnaram, privilegiando a apre-
va a emergência de uma sociedade que se estrutura sentação de critérios que pudessem nortear os cris-
autonomamente a uma ordem divina, conduzindo: a tãos e as organizações católicas nas suas iniciativas e
nível político, à procura de novo fundamento para o acção, em colaboração com todos os «homens de
exercício da autoridade e à definição de novas ins- boa vontade». Em detrimento da definição de mode-

309
C A T O L I C I S M O SOCIAL

los de sociedade, proclama-se a necessidade de uma ção de diversas outras iniciativas de acção social co-
«civilização do amor»; aprofundando a reflexão teo- mo a Associação Promotora da Instrução Pública
lógica acerca da dignidade da pessoa e da unidade (1902) que se transformaria na Liga de Acção Social
do género humano, desenvolve-se a «teologia dos si- Cristã (1907). O momento seguinte é marcado pela
nais dos tempos». Entretanto, a par da afirmação reacção à política laicizadora da República e decorre
e reconhecimento da pluralidade de opções sociais e até ao início dos anos 30, nele se incluindo a criação
políticas dos cristãos no mundo desenvolvido, emer- de organizações católicas de novo tipo, viradas quer
gia à escala planetária a questão do desenvolvimento para a formação da juventude, como a Obra de Pro-
dos povos que quer o magistério pontifício quer o tecção às Raparigas (1916) ou o Corpo Nacional de
Movimento Social Católico acompanharam de di- Scouts (1923) (V. ESCUTISMO), quer para um mais lato
versos modos, nomeadamente através das iniciati- entendimento da questão social assente no associati-
vas e reflexões de muitas organizações não-gover- vismo dos católicos, como aconteceu com a Asso-
namentais. Nos anos 70, ao mesmo tempo que se ciação dos Pais de Família (1916) ou a Associação
afirmava a «teologia da libertação», desenvolvida dos Médicos Católicos (1915). No quadro do projec-
no contexto da América Latina mas com grande im- to de restauração cristã e como expressão do esforço
pacte na prática eclesial europeia, a referência ao de «reconquista cristã da sociedade», de acordo com
«pobre» tornava-se incontornável para o catolicismo, o entendimento do próprio Concílio Plenário Portu-
nomeadamente como novo lugar teológico; e, pese guês (1926), o período seguinte é indiscutivelmente
embora a posterior relativização daquela corrente marcado pela criação da Acção Católica Portuguesa*
teológica nos anos 80, a reflexão sobre o «pecado (1933), como organização totalizante que, através
social» e a própria noção de «estruturas de pecado» dos seus 20 organismos especializados e «obras au-
foram integradas pelo próprio magistério pontifício xiliares», procura intervir em todos e cada um dos
(v. a encíclica Sollicitudo Rei Socialis, de 1987, in «meios sociais» (agrário, escolar, independente, ope-
CAMINHOS), enquanto o debate sobre a relação entre rário e universitário), aos níveis paroquial, diocesano
liberalismo e responsabilidade social ganhava reno- e nacional. No entanto, a par da continuidade de an-
vada actualidade nos anos 90. Paralelamente, com o teriores organizações de apostolado, neste período,
pontificado de João Paulo 11 (1978-), a proclamação outras viram a luz do dia numa perspectiva quer
dos direitos humanos ganhou maior centralidade na formativa quer sindical, como a criação da Obra de
Igreja Católica, com enormes consequências na de- Previdência e Formação de Criadas (1932), depois
finição de contornos do actual catolicismo social. rebaptizada como Obra de Santa Zita, e o desenvol-
2. Periodização: Tendo em atenção estes marcos da vimento, ainda que limitado, de alguns sindicatos ca-
história social e religiosa contemporânea, podem tólicos, no início dos anos 30 ( c f . R E Z O L A ) . A Segun-
identificar-se vários surtos na história do catolicismo da Guerra Mundial funciona como novo marco
social português, que balizam os principais períodos também na história portuguesa, na procura de uma
e permitem a sua sumária caracterização. Um pri- «nova ordem social», contribuindo para uma renova-
meiro surto verifica-se em meados do século xix, da atenção a questões e dinâmicas no seio do catoli-
correspondendo à tomada de consciência da questão cismo universal que não deixaram de se reflectir no
social no seio da nova sociedade liberal por parte de país, nomeadamente, e na perspectiva aqui em análi-
certas elites sociais e culturais, traduzindo-se quer se, na organização das Semanas Sociais* Portugue-
em iniciativas mais ou menos localizadas, quer em sas (1940, 1943, 1949 e 1952), na criação da União
novas dinâmicas institucionais, já com maior prota- de Caridade Portuguesa-Caritas (1946/1952), na rea-
gonismo dos leigos, e de que a criação da Sociedade lização de variados congressos católicos (de 1948 a
Católica* (1843) e a fundação das Conferências de 1955) e outras reuniões, também da responsabilidade
São Vicente de Paulo* (1859) são significativas for- da Acção Católica (v.g. PRIMEIRA), OU na criação de
mas de expressão. Um segundo surto verifica-se nos uma secção portuguesa da UCIDT (União Católica
anos 70, coincidente com o nascimento do movi- de Industriais e Dirigentes do Trabalho) (1952), a
mento operário português, e resulta da conjugação par de organizações profissionais como a ACEPS
dos desafios lançados pela situação interna do país, (Associação Católica dos Enfermeiros e Profissio-
nomeadamente uma maior conflituosidade social e nais de Saúde) (1949) e a Associação dos Farmacêu-
a organização das correntes socialistas - em 1875, ticos Católicos (1955). O período que vai de meados
várias dessas correntes convergem na constituição dos anos 50 até aos anos 70 constitui uma nova fase
do Partido Operário Socialista - , com as novas do catolicismo social, marcada pela necessidade de
orientações doutrinais resultantes do pontificado de atenção aos problemas suscitados pelas políticas in-
Leão XIII. Um terceiro período no desenvolvimento dustrialistas e desenvolvimentistas assentes nos Pla-
do catolicismo social situa-se na transição do século, nos de Fomento - concretamente, o aumento das mi-
mais concretamente a partir da crise nacional de grações internas, o desenvolvimento da urbanização
1890 e do agudizar das lutas sociais e políticas, e de- e os problemas que lhe estão associados, o cresci-
senvolve-se até à instauração da República (1910), mento de uma emigração de novo tipo, agora para a
traduzindo-se no lançamento dos primeiros Círculos Europa, a par de certa modernização empresarial
de Operários Católicos (1898), no desenvolvimento situações sobre as quais os católicos sociais reflec-
dos Centros Académicos de Democracia Cristã* (co- tiam e a que procuraram responder através de reno-
mo o de Coimbra, em 1901), na realização anual dos vadas iniciativas, tanto a nível da reflexão sobre a
congressos católicos das agremiações populares chamada «idade do social» ( c f . SILVA - A Idade) co-
(1906-1910) ( c f . G O M E S - Os congressos) e na cria- mo da intervenção social, de que são exemplo: a rea-

312
C A T O L I C I S M O SOCIAL

lização de vários cursos e semanas de estudo (de pelo processo de transição democrática, acabou por
1956 em diante), os Encontros de Diplomados Cató- conduzir ao desenvolvimento de uma nova dinâmica
licos (1961 e 1963 em Lisboa, 1964 no Porto), os institucional, culminando na criação das Instituições
simpósios da UCIDT (1962 e 1963) ou a dinâmica Particulares de Solidariedade Social (cf FÉLIX - As
gerada pelos centros sociais paroquiais, lançados ain- instituições) que, em 1988, somariam «perto de oi-
da na década de 5 0 ( c f . RIBEIRO - D. António) e verda- tenta por cento das existentes no país», segundo a
deiros centros comunitários nos anos 60. A partir de Conferência Episcopal Portuguesa ( c f . CONFERÊNCIA -
finais da década de 60 ganha consistência uma nova Documentos, vol. 3, p. 310). Esta evolução institu-
dinâmica no campo da acção social dos católicos, as- cional e a nova realidade sociopolítica, marcada
sente no esforço de renovação conciliar da Igreja também, a partir de 1985, pela participação do país
Católica e de compreensão da sua missão no mundo, nos processos de integração e construção europeia,
inaugurando um novo período que atravessa os anos abriram uma nova fase no catolicismo social, carac-
70 e início dos anos 80. E um período marcado si- terizada pela atenção às novas situações de pobreza
multaneamente pela continuidade e desenvolvimento interna e de exclusão social, à redefinição de novos
de muitas iniciativas assistenciais e de promoção hu- padrões de sociabilidade e à intervenção em novas
mana, a par do lançamento de outras que, embora áreas sociais, com o desenvolvimento de trabalho
protagonizadas por católicos, assumem maior auto- pastoral no seio das comunidades imigrantes, no-
nomia institucional relativamente à Igreja e às suas meadamente com populações de origem africana, e à
estruturas hierárquicas como, por exemplo: a asso- criação de novos projectos de intervenção social no
ciação O Ninho ( 1 9 6 7 ) , dedicada ao trabalho com âmbito da toxicodependência e da sida, ou da rein-
mulheres marginalizadas e vivendo da prostituição; serção social. Neste período, a expressão mais insti-
o Centro de Cultura Operária (anos 60), criado por tucionalizada encontra-se nas Semanas Nacionais de
militantes dos organismos operários da Acção Cató- Pastoral Social, realizadas desde 1983 em Fátima,
lica; o Movimento de Defesa da Vida ( 1 9 7 8 ) , surgi- por iniciativa da Comissão Episcopal da Acção So-
do já no quadro da nova sociedade democrática, para cial e Caritativa, reunindo anualmente várias cente-
intervir no debate social sobre as questões da contra- nas de delegados de todo o país (ver quadro anexo).
cepção e do aborto; ou a criação da Federação das 3. Repercussões do pontificado de Leão XIII: A aten-
Instituições da Terceira Idade ( 1 9 7 9 ) , por iniciativa ção à problemática social por parte da Igreja conhe-
da Caritas Portuguesa. Este período, social e politi- ceu várias fases ao longo do século xix, como se viu.
camente marcado pela revolução do 25 de Abril e No entanto e até ao início dos Congressos Católicos,

Fonte: Caritas Diocesana de Lisboa.

313
C A T O L I C I S M O SOCIAL

iniciados no Porto em 1871 (cf. CLEMENTE - O Con- conizadas pelo movimento socialista, ganha nova di-
gresso), os esforços do que se pode considerar uma mensão com as perspectivas abertas pelo pontificado
primeira geração de militantes católicos, particular- leonino. Socialismo e catolicismo é precisamente o
mente leigos (v. LAICADO), visando intervir no seio da título da dissertação académica apresentada, em
nova sociedade liberal a nível social, eram ainda 1881, por Augusto Eduardo Nunes (padre de Porta-
compreendidos como resultante da prática da carida- legre e futuro arcebispo de Évora) no concurso a len-
de cristã por parte das elites sociais ( c f . CLEMENTE - te da Faculdade de Teologia da Universidade de
Nas origens). Ao preconizarem, por exemplo, a cria- Coimbra*, na sequência da doutrina papal desenvol-
ção de «estabelecimentos de instrução e caridade a vida na encíclica Quod Apostolici muneris (1878).
favor das classes desvalidas» (do art. 2.° dos estatu- Reflectindo sobre a «questão social», que o teólogo
tos da Sociedade Católica) evidencia-se uma pers- considera ser verdadeiramente a «questão católica»
pectiva paternalizante que não deixará, de um modo (que não a «questão política») e as diversas soluções
ou de outro, de caracterizar outras iniciativas e pro- preconizadas - a do socialismo revolucionário que
postas ulteriores. Neste contexto, o pontificado de visaria «destruir» e a do catolicismo que procuraria
Leão XIII teve também enormes repercussões no «regenerar» -, o teólogo defende que esta é «a única
país, seja pelo desenvolvimento da moderna Doutri- solução adequada» para «salvar a sociedade ameaça-
na Social da Igreja, seja pelo novo posicionamento da» ( c f . N U N E S - Socialismo, p. 19-21). O mesmo te-
da Igreja Católica no seio da sociedade e, em parti- ma foi glosado também no jornal A Palavra por um
cular, pela política de ralliement. «A política de ral- dos principais mentores e dirigentes do movimento
liement consistia fundamentalmente na recomenda- católico oitocentista, o conde de Samodães (cf. POLI-
ção [feita aos católicos] de abandonar a oposição aos CARPO - O pensamento, p. 108). Por outro lado, a en-
regimes liberais estabelecidos e passar a combater cíclica Rerum Novarum conheceu, quase imediata-
apenas a sua legislação nociva aos interesses e à mente, grande difusão no país, suscitando a reflexão
doutrina da Igreja; devendo para tanto os católicos de vários membros do episcopado e provocando até
unirem-se, pondo de parte todas as divergências par- aceso debate nalguns meios intelectuais (cf. C L E M E N -
tidárias. Assentava essa política em dois princípios TE - A sociedade; FERREIRA - Questions; G O M E S -
básicos: o da afirmação da contingência das formas A recepção). Nas cartas pastorais então publicadas
governamentais civis e o da distinção entre a legisla- desenvolve-se um diagnóstico da situação da socie-
ção e as instituições políticas dos regimes» (CRUZ - dade portuguesa em termos de «decadência» - tópi-
Às origens, p. 106). Definida por Leão XIII para res- co comum a outras forças sociais e ideológicas -, e
ponder à situação francesa, no quadro de implanta- dá-se relevo a vários dos temas que caracterizarão o
ção da III República, e expressa na carta Au milieu desenvolvimento do movimento católico: a denúncia
des sollicitudes (1892), o seu impacte foi decisivo no da descristianização; a questão operária, considerada
movimento católico antiliberal. Em Portugal, este como questão moral; a emigração (v. MIGRAÇÕES),
novo posicionamento ficou claramente expresso na vista como mal social; a pobreza*, percepcionada
intervenção que D. Manuel Bastos Pina, bispo de a partir de uma concepção teológica do pecado e da
Coimbra, fez na Câmara dos Pares a 27 de Novem- redenção; e as desigualdades sociais, analisadas a
bro de 1894. Mas, se a política de ralliement contri- partir da visão corporativa da sociedade. Se a ques-
buiu decisivamente para a secundarização da questão tão operária é ainda predominantemente analisada na
política a favor da questão social no interior do mo- perspectiva da caridade cristã, desponta já a perspec-
vimento católico português, esta mudança não foi tiva da justiça social, como acontece na reflexão de
imediata, conjugando-se com o desenvolvimento do D. Américo, bispo do Porto: «a caridade não basta;
pensamento social da Igreja e os sucessivos apelos à os queixosos não são indivíduos, são legiões; não
união católica. Na base deste novo posicionamento são inválidos, são homens de acção; não pedem o
está a ideia da necessidade de união dos católicos pão da esmola, reclamam o condigno salário; não fo-
como condição principal para a defesa da Igreja e a gem ao trabalho, somente o recusam além das forças
afirmação dos seus princípios na organização e vida da criatura humana. O mal, pois está na organização
da sociedade, em ordem à sua restauração cristã. Lo- da sociedade que exige reforma; e urge providenciar,
go em 1886, através da carta aos bispos portugueses mas pelo modo que o caso pede e consente» (apud
Pergrata nobis, de 19 de Setembro, o pontífice apela FERREIRA - Questions, p. 459). Mas o impacte do
a essa união, advertindo ser «pernicioso o erro da- magistério pontifício alargou-se a outros círculos e o
queles que não distinguem bem os negócios sagra- debate extravasou o meio católico, como o testemu-
dos dos civis e [...] fazem intervir o nome da religião nham dois textos publicados em 1895, um de Afonso
para patrocinar partidos políticos» (apud FERREIRA - Costa e outro de Fortunato de Almeida. Nesse ano,
Questions, p. 460). Esta advertência só se com- Afonso Costa, então jovem professor de Direito na
preende no quadro do debate então existente no Universidade de Coimbra, na sua dissertação A Igre-
movimento católico português, marcado já não ape- ja e a questão social, ao reflectir sobre a encíclica
nas pela oposição entre católicos legitimistas e ca- papal, procura demonstrar a desadequação da solu-
tólicos constitucionalistas, mas pela ideia de consti- ção religiosa para o problema social - que corres-
tuição de um partido católico, inicialmente lançada ponderia ao desejo da Igreja para, «consciente da sua
no jornal A Palavra em 1878, e pelo fracasso de um fraqueza, segurar nos braços a expansão do socialis-
outro projecto, a União Católica Portuguesa formada mo», para ele a verdadeira e única solução -, consi-
em 1882. Também o debate acerca da «questão so- derando expressamente as doutrinas de Leão XIII co-
cial» no país, já em confronto com as soluções pre- mo «inúteis, inoportunas, antiquadas, perigosas e

314
C A T O L I C I S M O SOCIAL

Oficinas de São José, hoje Centro Juvenil de São José, Guimarães.

excessivamente retrógadas» e a encíclica como «in- anarco-sindicalista e fundador da Bandeira Verme-


correcta na forma» e «não científica na ideia» (COS- lha. A ideia de limitação dos direitos do Estado rela-
TA - A Egreja, p. 273 ss., 282-283). Em réplica, nes- tivamente à sociedade, comum ao catolicismo social
se mesmo ano, outro intelectual coimbrão mas e ao anarquismo, terá feito parte do húmus cultural
católico, Fortunato de Almeida, publica A questão que facilitou certas aproximações. 3.1. Os Círculos
social: Reflexões à dissertação inaugural do Sr Af- Católicos de Operários e o sindicalismo católico:
fonso Costa, refutando a ideia de que o papa tivesse Ainda no pontificado de Leão XIII, o lançamento
querido fazer esquecer aos proletários a reivindica- dos primeiros Círculos Católicos de Operários este-
ção dos seus direitos, mas antes insistindo nos condi- ve na origem de nova fase do movimento católico e
cionalismos morais duma questão que não seria ex- entendimento da democracia cristã em Portugal,
clusivamente económica, defendendo a ideia de que marcada pela secundarização das divisões políticas
só a resposta religiosa seria adequada, verdadeira e dos católicos a favor da sua união no terreno religio-
eficaz na sua resolução. Esta polémica revela, afinal, so e social: «fase do "sindicalismo" católico anti-
não apenas duas percepções antagónicas da questão -socialista e da intervenção especificamente social,
social, mas duas posturas com raízes culturais distin- não indo porém neste âmbito, além do assistencialis-
tas, que se apresentam como irreconciliáveis e que mo e do mutualismo fundamentalmente reactivos e
perduraram nos combates sociais e políticos que le- premonitórios» (CRUZ - As origens, p. 37). O primei-
varam à implantação e queda da I República (cf. CA- ro Círculo Católico de Operários foi fundado no Por-
TROGA - O laicismo). Paralelamente, e a partir da to, em 1898, por iniciativa de Manuel Frutuoso da
ideia de democracia cristã como democracia social, Fonseca, tendo como principais objectivos a cristia-
desde cedo se afirmou uma perspectiva reformista nização da sociedade, a defesa da justiça social e a
no seio do catolicismo social, por contraponto à protecção aos operários e pobres. A expansão do
perspectiva do socialismo revolucionário. E no cru- movimento, pela acção itinerante dos padres João
zamento desta e de outras questões que se encon- Maciel e Benevenuto de Sousa, verificou-se «de
trarão significativos elementos de explicação para Norte para o Centro e Sul, implantando-se não só
algumas das conversões fulgurantes do início do no- nos principais centros industriais (à excepção do da
vo século, como a de Manuel Ribeiro (1878-1941), Marinha Grande), mas também, e sobretudo, nas re-
315
C A T O L I C I S M O SOCIAL

giões de pequena e média propriedade rústica, por- de os chamados patronatos do século xix aos novos
tanto, de maior influência clerical. Não deixa [contu- movimentos de juventude (cf. FONTES - As organiza-
do] de ser significativa a completa inexistência de ções), passando pela criação do ensino profissional,
círculos a sul do Tejo, à excepção do de Setúbal [e como aconteceu com o trabalho dos religiosos sale-
da Vidigueira]» (CRUZ -AS origens, p. 127). De base sianos ( c f . A N J O S - Centenário)', na construção de
interclassista (com uma composição mista de operá- habitação social, seja através da construção de bair-
rios e patrões), os Círculos Católicos de Operários ros sociais, seja pela criação e fomento do movimen-
visavam ser uma força organizada no movimento to cooperativo, como o MONAC (Movimento Na-
operário português. Desenvolvendo a sua acção nu- cional de Autoconstrução), lançado em 1955; na
ma perspectiva de reformismo social anti-socialista, ajuda aos mais carenciados, através da caridade ime-
o movimento não resistiu ao embate da I República: diata, da organização de campanhas, ou da criação
os Círculos foram quase todos encerrados e algumas de serviços sociais e múltiplas obras assistenciais
sedes, como as do Porto e Braga, completamente por todo o país; no apoio aos doentes, seja através do
destruídas pelo fogo. O efectivo desaparecimento trabalho desenvolvido pelo voluntariado e pelas ca-
dos Círculos Católicos de Operários explicar-se-á pelanias no interior dos hospitais, seja através da or-
pela conjugação do anticlericalismo* republicano ganização de serviços paroquiais e de visitas domici-
com as debilidades internas do movimento católico. liárias, seja ainda através da criação de instituições
Será necessário esperar pelos anos 30 para que, nou- como o Movimento Nacional Católico ao Serviço
tro contexto e perspectiva, surjam novas tentativas dos Doentes, em 1972; na promoção e reinserção das
de desenvolvimento de um sindicalismo* católico, a pessoas socialmente excluídas (pela prisão, pela
partir da acção de uma nova geração de padres que prostituição ou pelas mais diversas formas de vida
foram seus animadores ou doutrinadores, como Boa- marginal); na alfabetização de adultos, levada a cabo
ventura Alves de Almeida ou Manuel Rocha (cf. RE- em várias regiões do país e, nalguns casos, nas déca-
ZOLA - O sindicalismo, p. 30-53). Efectivamente, a das de 60 e 70 do século xx, apoiada na reflexão e
ideia de um sindicalismo católico foi durante muito pedagogia de Paulo Freire; na valorização profissio-
tempo compreendida numa perspectiva interclassis- nal de certos sectores sociais como as «criadas» ou
ta, no quadro de uma concepção orgânica da socie- «empregadas domésticas», através de perspectivas
dade. A aceitação do conceito de «classe operária» nem sempre convergentes (de que são exemplo a já
ou o aparecimento da noção de «meio social» na referida Obra de Santa Zita, criada em 1932 e, já de-
sociologia cristã só se verificou no século xx, con- pois do 25 de Abril de 1974, a criação do Sindicato
cretamente a partir da criação da Acção Católica. do Serviço Doméstico, iniciado por elementos do
3.2. Corporações e corporativismo: Um dos temas movimento operário católico); na área das relações
oitocentistas que perduraram nos debates do catoli- laborais, seja a nível da intervenção sindical - não
cismo social do século xx foi precisamente a con- apenas na perspectiva de criação de sindicatos
cepção orgânica e corporativa da sociedade, que próprios, mas também na da formação de sindicalis-
serviu de referência a muitos católicos sociais e, em tas católicos, como aconteceu nos anos 60 e 70, ten-
grande medida, explica a aproximação ideológica e do desempenhado papel activo na formação da Inter-
o empenhamento de algumas das elites católicas na sindical (cf. BARRETO - Comunistas) seja a nível
institucionalização do Estado Novo. Será também da reflexão sobre a organização da vida empresarial
em função de uma concepção própria do corporati- (promovida no âmbito da UCIDT, por exemplo); e,
vismo que se foi instalando - corporativismo de as- por último, nos debates éticos contemporâneos em
sociação versus o corporativismo de Estado que torno das questões da vida, de que são exemplo as
se verificaram decepções, críticas e progressiva opo- iniciativas lançadas no âmbito do planeamento fami-
sição de muitos católicos sociais em relação ao Esta- liar ou das campanhas contra a legalização ou des-
do Novo ( c f . C R U Z - As elites). O percurso do padre criminalização do aborto. Não sendo exaustivas, as
Abel Varzim, impulsionador do movimento operário iniciativas referidas são ilustrativas da diversidade
católico e que, deputado à Assembleia Nacional na de perspectivas existentes no interior do catolicismo
II Legislatura (1938-1942), se tornaria depois num com incidência no campo dito social, o que não sig-
opositor do Estado Novo, terá sido paradigmático nifica que todas estas iniciativas tenham a mesma
desta evolução. 4. Figuras, instituições e áreas de importância ou correspondam sequer a níveis de or-
intervenção: Na falta de estudos monográficos sobre ganicidade idêntica em termos do próprio movimen-
as múltiplas iniciativas levadas a cabo à escala local to católico. E, aliás, este um dos campos onde se jo-
ou nacional, torna-se impraticável um levantamento ga não apenas a pluriformidade interna à Igreja mas
completo da sua existência e respectivos protagonis- sobretudo a afirmação e o reconhecimento da plura-
tas, nos vários campos da sociedade. No entanto, e lidade de pensamento e atitudes dos católicos no que
com grande amplitude, constata-se a intervenção di- se refere à sociedade e, consequentemente, à sua or-
recta e organizada dos católicos nas mais diversifica- ganização política. Essa pluralidade conduziu tam-
das áreas: na protecção e apoio à infância, desde a bém à formulação de diferentes compreensões no
criação de creches e jardins de infância, até ao en- que se refere à relação dos próprios católicos com a
volvimento dos mais novos em iniciativas que lhes sociedade e ao lugar da Igreja, cujas principais ten-
são dirigidas (como aconteceu, por exemplo, com as dências é possível identificar: desde uma perspectiva
iniciativas do Movimento de Apostolado das Crian- mais moralizante, que se pretende regeneradora do
ças na Madeira, no final do século xx, que tanto im- homem e da sociedade, até uma perspectiva transfor-
pacte mediático teve); na educação dos jovens, des- madora da sociedade, assente no primado da acção,

316
C A T O L I C I S M O SOCIAL

As Cooperadoras da Família dando assistência a inválidos (in Instituto Secular das Cooperadoras da Família, 2." edição,
1973, pág. 47).

passando por formas assistenciais, visando minorar o - 1 9 7 7 ) , um dos homens da primeira geração demo-
sofrimento alheio; desde uma visão assente na afir- crata-cristã em Portugal, patriarca de Lisboa (V. PA-
mação do primado da «conversão individual» e do TRIARCADO DE LISBOA) ao longo de quase meio século
«testemunho pessoal», até à reafirmação de uma ( 1 9 2 6 - 1 9 7 1 ) , e de António Ferreira Gomes ( 1 9 0 6 -
perspectiva profética de quem considera que o ob- - 1 9 8 9 ) , pensador e doutrinador de uma outra geração
jectivo da Igreja deve ser a denúncia do «pecado so- eclesial, primeiro como bispo em Portalegre ( 1 9 4 8 -
cial». Estas perspectivas não são necessariamente - 1 9 5 2 ) e depois como bispo do Porto* ( 1 9 5 2 - 1 9 8 2 ) ,
excludentes e só se compreendem a partir da própria registe-se, já na segunda metade do século, a acção
evolução e debate teológicos que lhes subjaz. Entre- de outros prelados: António dos Reis Rodrigues
tanto, e a par do lançamento de novas iniciativas, (1918-), assistente eclesiástico da Juventude Univer-
existiram também formas institucionais que, vindo sitária Católica (de 1 9 4 7 a 1 9 6 5 ) , vigário-geral cas-
do passado, se mantiveram e desenvolveram na épo- trense ( 1 9 6 6 ) e, já como bispo de Madarsuma, cape-
ca contemporânea, como foi o caso das Misericór- lão-mor das Forças Armadas ( 1 9 6 7 - 1 9 7 5 ) , também
dias* portuguesas, com uma história cinquentenária professor de Doutrina Social da Igreja no Instituto
(cf. FONSECA - História). 4.1. Bispos e padres: F o - de Serviço Social e autor de várias publicações,
ram muitas e muitas as figuras que, com o seu per- tendo permanecido como bispo auxiliar de Lisboa
curso e através do seu dinamismo, marcaram o mo- ( 1 9 7 5 - 1 9 9 8 ) ; Manuel Falcão ( 1 9 2 2 - ) , um dos pri-
vimento católico português. Na prática, a maioria meiros responsáveis pelo desenvolvimento da socio-
dos membros do episcopado influenciaram ou foram logia religiosa* no país, também bispo auxiliar de
influenciados pelo desenvolvimento do catolicismo Lisboa ( 1 9 6 6 ) antes de ser nomeado para a diocese
social no país. No entanto, é possível individualizar de Beja*, primeiro como coadjutor ( 1 9 7 4 ) e depois
as figuras de alguns bispos*, em função de uma no- residencial ( 1 9 8 0 - 1 9 9 8 ) ; e Manuel Martins ( 1 9 2 7 - ) ,
va atitude relativamente à presença da Igreja na so- originário da diocese do Porto, o primeiro bispo da
ciedade moderna. A par dos nomes já citados de diocese de Setúbal*, criada em 1 9 7 5 ( c f . DUARTE -
Bastos Pina ( 1 8 3 0 - 1 9 1 3 ) ( c f . RAMOS - O bispo), Bispo). Foram ainda mais numerosos, e com varia-
do cardeal Américo dos Santos Silva ( 1 8 3 0 - 1 8 9 9 ) e dos perfis e formas de acção, os padres (v. CLERO)
de Eduardo Nunes ( 1 8 4 9 - 1 9 2 0 ) ( c f . ABREU - A Dou- que influíram na evolução do catolicismo social por-
trina), refira-se o nome de Manuel Mendes da Con- tuguês, desde os que estiveram ligados ao desenvol-
ceição Santos ( 1 8 7 6 - 1 9 5 5 ) , padre da Guarda*, bispo vimento dos Círculos Católicos de Operários, como
de Portalegre* e arcebispo de Évora*, seguramente os já referidos João Roberto Pereira Maciel ( 1 8 7 0 -
um dos prelados mais marcantes do movimento ca- - 1 9 5 6 ) e Benevenuto de Sousa, também ligado ao
tólico no século xx, figura típica do «fundador» (cf. Apostolado da Boa Imprensa, passando pela maioria
G O M E S - D. Manuel). Para além das figuras incon- dos assistentes eclesiásticos das organizações católi-
tornáveis de Manuel Gonçalves Cerejeira ( 1 8 8 8 - cas, como por exemplo: o padre Luís Lopes de Melo
317
CATOLICISMO SOCIAL

(1885-1951), figura marcante na diocese de Coim- do movimento das noclistas; entre muitos outros.
bra*, onde foi assistente eclesiástico do Centro Aca- A nível da presença e acção relativamente à realida-
démico de Democracia Cristã c da União Noelista, de operária, para além dos Círculos Católicos de
promotor das Conferências Vicentinas e inspirador Operários e dos organismos operários da Acção Ca-
das Criaditas dos Pobres (cf. TRINDADE - O padre); o tólica - como a Liga Operária Católica, a Liga Ope-
padre Joaquim Alves Correia ( 1 8 8 6 - 1 9 5 1 ) , missio- rária Católica Feminina, a Juventude Operária Cató-
nário espiritano, referência para muitos «católicos, lica e a Juventude Operária Católica Feminina - ou
protestantes, agnósticos e ateus» (Frei Bento Domin- do Centro de Cultura Operária, registam-se, pelo seu
gues, in CORREIA — Cristianismo, p. 1 4 ) , que esteve carácter inovador e também polémico, algumas ini-
ligado ao jornal democrata-cristão Era Nova, ao tra- ciativas e experiências realizadas no país, antes e de-
balho social com crianças (no Orfanato de Santa Isa- pois do debate suscitado pela desautorização pontifí-
bel e na associação Florinhas da Rua de Setúbal), e à cia dos padres-operários em França: a tentativa de
criação do grupo Metanoia, tendo levado uma vida criação, na diocese de Coimbra, na primeira metade
«ao serviço do Evangelho e da democracia» que o dos anos 40, de um instituto religioso encarregue de
obrigou a exilar-se na América, em 1 9 4 5 ( c f . LOPES - «formar sacerdotes que se sacrificassem pela causa
Pe. Joaquim); o padre Américo ( 1 8 8 7 - 1 9 5 6 ) , funda- operária», tendo para esse efeito sido criada a asso-
dor da Obra da Rua* e das Casas do Gaiato, «obra ciação dos Amigos dos Sagrados Corações de Jesus
de rapazes, para rapazes e pelos rapazes», que revo- e Maria ( 1 9 4 4 ) , por iniciativa do padre António
lucionou princípios sociais e pedagógicos para a épo- Martins Baptista ( 1 8 9 0 - 1 9 4 6 ) ( c f . ROCHA - Padre
ca, valorizando as capacidades de autogoverno e au- Baptista, p. 6 5 - 7 0 e 8 3 - 9 7 ) ; a criação do Instituto
to-educação dos «rapazes da rua» e apostando na sua Regnum Dei, em Alcácer do Sal, em 1962, com o
responsabilidade e liberdade (LOUREIRO - L 'Obra; objectivo de anunciar o Evangelho nas regiões mais
TRINDADE - Figuras, p. 1 3 5 - 1 7 2 ) ; monsenhor Joa- descristianizadas - projecto que se desenvolveu ao
quim Alves Brás ( 1 8 9 9 - 1 9 6 6 ) , da diocese da Guar- longo de oito anos, tendo sobrevivido à morte pre-
da, fundador da Obra de Santa Zita e do Movimento matura do seu fundador, o padre Fernando Maurício
por Um Lar Cristão, considerado «apóstolo da famí- ( 1 9 2 8 - 1 9 6 3 ) e que esteve na origem da primeira
lia», actualmente com processo de beatificação em equipa operária de padres e leigos consagrados em
curso ( c f . CARDOSO - Mons. Joaquim)-, o padre Abel Portugal (cf. SOUSA - Presença)-, o início dos encon-
Varzim ( 1 9 0 2 - 1 9 6 4 ) , homenageado em 1 9 9 4 pelo tros Padres e Religiosos em Mundo Operário, reali-
episcopado português como «apóstolo dos trabalha- zados a nível nacional no âmbito da pastoral operá-
dores, paladino da justiça social em Portugal e de- ria, desde meados dos anos 70; a criação de uma
fensor das vítimas contra a dignidade humana» comunidade de padres-operários na diocese do Por-
(CONFERÊNCIA - Documentos, v o l . 4 , p . 3 9 1 ) , q u e , to, em 1 9 8 3 , de que fez parte o padre Gaspar ( 1 9 4 6 -
conjuntamente com o também já citado padre Ma- - 1 9 9 5 ) , que desde 1 9 7 3 reunira uma «comunidade de
nuel Rocha e Sousa ( 1 9 0 7 - ) , primeiro director do Se- base» no Padrão da Légua (cf. CUNHA - Padre Gas-
cretariado Económico-Social da Acção Católica par). 4.2. Leigos e leigas: Enquanto as figuras de pa-
( 1 9 3 5 ) , foi um dos pioneiros do movimento operário dres ressaltam sobretudo no trabalho com os meios
católico e do desenvolvimento da «sociologia cris- operário e popular e a nível da formação da juventu-
tã», e ainda fundador da Obra das Raparigas da de, as principais referências de leigos encontram-se
Prostituição - O Ninho ( c f . RODRIGUES - Abel)-, o pa- a nível das elites, seja na tradicional aristocracia com
dre Francisco Inácio Pereira dos Santos ( 1 9 0 8 - 1 9 9 ? ) , preocupações de natureza social, seja nos sectores
assistente da Juventude Operária Católica na diocese letrados e intelectuais. Dos primeiros, são conhecidas
da Guarda, tal como os dois padres anteriormente ci- as figuras de: D. António de Almeida ( 1 8 2 1 - 1 9 0 0 ) ,
tados, formado na Universidade Católica de Lovaina «católico romano», resistente ao liberalismo, que fez
nos anos 30, crítico do corporativismo do Estado parte da «primeira fase do movimento social cristão,
Novo e autor de vários outros livros sobre a questão a da sensibilização à miséria e da resposta religiosa e
social; o padre Narciso Rodrigues ( 1 9 1 5 - 1 9 9 5 ) , as- assistencial» (CLEMENTE - D. António, p. 251); Fran-
sistente eclesiástico da Acção Católica, e em particu- cisco de Teixeira de Aguilar e Azeredo, 2.° conde de
lar dos seus movimentos operários nas décadas de Samodães ( 1 8 2 8 - 1 9 1 8 ) , que se notabilizou no movi-
50 e 60, autor de várias publicações de carácter dou- mento católico oitocentista, tendo sido atacado pelas
trinal, figura de relevo do clero diocesano do Porto, suas posições de abertura social e política (cf. CLE-
tendo sido director espiritual do seminário maior MENTE - O Congresso); e D. António da Costa
( 1 9 6 7 - 1 9 7 4 ) ; o padre Honorato Rosa ( 1 9 2 0 - 1 9 6 8 ) , ( 1 8 2 4 - 1 8 9 2 ) que, na «sua perspectiva de católico li-
que marcou várias gerações de alunos enquanto pro- beral e progressista», foi «incansável incentivador
fessor de Filosofia no seminário, na Faculdade de do ensino e mesmo criador e efémero titular do Mi-
Letras e no Instituto Superior de Serviço Social, nistério da Instrução Pública» em 1 8 7 0 (CLEMENTE -
de que foi director ( 1 9 6 3 - 1 9 6 8 ) ( c f . ROSA - A digni- Religião, p. 6 6 ; IDEM - Os católicos, p. 2 6 3 ) . Dos se-
dade)-, o padre Gustavo de Almeida ( 1 9 0 3 - 1 9 6 5 ) , ori- gundos é reconhecida a importância dos publicistas
ginário da diocese da Guarda, assistente eclesiástico católicos, de que são exemplo: Artur Gomes dos
das Juventudes Católicas da Acção Católica Portu- Santos (1881-1918), que vindo do ideário anarquista
guesa até 1944 e apoiante decidido do Estado Novo, se converteu ao catolicismo por volta de 1889, tendo
tornando-se numa figura destacada do clero de Lis- desenvolvido trabalho notável como jornalista, dou-
boa, tendo também estado ligado ao desenvolvimen- trinador e promotor do pensamento católico, nomea-
to do apostolado feminino, nomeadamente através damente através da colecção Sciencia e Religião que

318
C A T O L I C I S M O SOCIAL

fundou na Póvoa de Varzim ( c f . G O M E S - As duas ci- Estudos do Centro Académico de Democracia Cris-
dades, p. 1 3 3 - 1 4 7 ) ; Álvaro Zuzarte de Mendonça tã), foi um dos grandes articulistas católicos dos
( 1 8 7 7 - 1 9 6 7 ) , «tido entre os melhores jornalistas da anos 30 e 40 (nas Novidades, em O Trabalhador,
sua época», figura significativa do «movimento so- etc.) e um dos mais eminentes católicos sociais, ten-
cial e cultural do renascimento católico, mormente do colaborado activamente com os padres Abel Var-
do situado entre 1 8 9 0 e 1 9 3 0 » (Ibidem, p. 1 1 7 ) ; zim e Joaquim Alves Correia» (CRUZ - As relações,
e Artur Bivar ( 1 8 8 1 - 1 9 4 6 ) , polígrafo, polemista, p. 211). Entretanto, a formação proporcionada pelo
assinou com variadíssimos pseudónimos colabora- Centro Académico de Democracia Cristã de Coim-
ção em quase toda a imprensa católica, esteve liga- bra e pela Juventude Universitária Católica e Juven-
do à campanha da «boa imprensa» e ao lançamento tude Universitária Católica Feminina em Lisboa e no
do jornal Novidades, foi tradutor do muito divulga- Porto deu origem à formação dc novas gerações de
do Catecismo popular católico de Spirago. De en- militantes católicos, muitos deles com papel de des-
tre as personalidades mais marcantes no início do taque na sociedade portuguesa. Em Coimbra, podem
século xx, refiram-se os nomes de: Francisco José referir-se ainda nomes tão diversos como os dos pro-
de Sousa Gomes ( 1 8 6 0 - 1 9 1 1 ) , catedrático de Quími- fessores: José Sebastião da Silva Dias (1916-1994),
ca Inorgânica na Faculdade de Filosofia da Universi- que foi também jornalista e colaborador do jornal
dade de Coimbra, um dos grandes impulsionadores Novidades (1942-1964) e cujo envolvimento profis-
dos Centros Académicos de Democracia Cristã, «a sional no campo da assistência profissional esteve na
figura mais proeminente do movimento social católi- origem de vários estudos sociais, antes de ingressar
co no entardecer da monarquia» ( c f . C R U Z - As ori- na carreira universitária (cf. Azenha - Subsídios);
gens, P 3 3 ; TRINDADE - Figuras, p. 1 1 - 1 0 1 ) ; Manuel Orlando de Carvalho (1926-2000), católico e mar-
Abúndio da Silva ( 1 8 7 4 - 1 9 1 4 ) , professor, advogado, xista como ele se confessava no final da vida; ou
destacado jornalista e militante católico, cuja evolu- António Barbosa de Melo (1932-), que enveredou
ção política e pensamento social são emblemáticos pela política partidária no pós-25 de Ábril, numa li-
das mutações sociorreligiosas neste período; Antó- nha reformista, tendo sido presidente da Assembleia
nio Lino Neto ( 1 8 7 3 - 1 9 6 1 ) , originário da região de da República (1991-1995). Foram efectivamente
Portalegre cujo seminário frequentou, formado na muitos os diplomados e profissionais católicos que
Faculdade de Direito dc Coimbra, parlamentar pelo estiveram na base de um reformismo social de vários
Centro Católico, de que foi fundador e dirigente, «o matizes e formas diversas, ao longo das décadas de
mais notável dirigente católico durante a primeira 50 a 70. Uma delas foi a criação da SEDES - Asso-
República» (CRUZ - As origens, p. 3 4 ) . Exemplo da ciação para o Desenvolvimento Económico e Social,
importância que o meio e redes familiares tiveram em 1970, na qual participaram muitos católicos so-
na formação e desenvolvimento do catolicismo so- ciais: Valentim Xavier Pintado (1925-), Rogério
cial são, por exemplo: a família Diniz da Fonseca, Martins (1928-), José Manuel Pinto Correia (1931-
oriunda da diocese da Guarda, com vários membros -1988) (cf. FRANÇA - Em memória), João Salgueiro
pertencentes à Liga dos Servos de Deus - obra de (I934-), Joaquim Magalhães Mota (1935-), António
espiritualidade e benemerência, fundada em 1924 Sousa Gomes (1936-), entre outros. Também na área
pelo futuro bispo João de Oliveira Vieira de Matos - da reflexão sobre a problemática do desenvolvimen-
de que sobressaem nos dois primeiros decénios de to, são de referir ainda nomes de economistas como
Novecentos, pelas suas responsabilidades no movi- Francisco Pereira de Moura (1925-1998) e Mário
mento católico, os irmãos Alberto ( 1 8 8 4 - 1 9 6 2 ) e Murteira (1933-), que, referenciados ao magistério
Joaquim ( 1 8 8 7 - 1 9 5 8 ) , que desempenharia funções pontifício de João XXIII e Paulo VI, desenvolveram
governativas ( 1 9 4 0 - 1 9 5 0 ) , e seu primo Álvaro um pensamento económico que evoluiria, nos anos
( 1 8 8 8 - 1 9 1 8 ) (cf. G O M E S - Álvaro); ou a família de 70, numa perspectiva socializante (cf. BARRETO - As
Francisco Sousa Gomes, já referido, com sua filha, nacionalizações; MURTEIRA - A Doutrina). Ainda na
Carolina, fundadora das Criaditas dos Pobres, seu fi- perspectiva do reformismo social católico, é de su-
lho, António Sousa Gomes, e outros. Guilherme blinhar a importância da formação e envolvimento
Braga da Cuz ( 1 9 1 6 - 1 9 7 6 ) , também seu neto por via de muitas mulheres* católicas na vida sociopolítica
materna, monárquico de tradição, jurista, professor portuguesa, como por exemplo: Maria Raquel Ribei-
universitário, doutrinador do movimento católico, ro (1925-), formada em Serviço Social, área em que
nomeadamente em matérias de educação e ensino, desempenhou múltiplas actividades e cargos, inte-
teve acção de relevo na vida cultural e política portu- grou a «ala liberal» e esteve ligada à vida política
guesa, tendo sido uma das figuras cimeiras do catoli- activa no pós-25 de Abril; Maria de Lurdes Pintasil-
cismo social contemporâneo (cf. GUILHERME). O per- go (1930-), engenheira química, com intensa activi-
curso de António Sousa Gomes ( 1 8 9 5 - 1 9 7 3 ) (cf. dade no campo social e político tanto no país como a
ALMEIDA - Professor) é paradigmático da evolução nível internacional, presidiu e dinamizou o Grupo de
de certos sectores do catolicismo social no século Trabalho para a Participação da Mulher na Vida
xx: colaborador directo de Salazar, desempenhou vá- Económica e Social (1970), ainda no quadro do Mi-
rios cargos políticos, foi director do Diário da Ma- nistério das Corporações e que daria origem, após o
nhã e deputado católico na primeira legislatura da 25 de Abril, à institucionalização da Comissão da
Assembleia Nacional; «amigo pessoal de Raissa e Condição Feminina (1977), a que estiveram ligadas
Jacques Maritain (com quem trocou vasta correspon- muitas outras mulheres católicas; Maria Manuela
dência) e de François Perroux e Emmanuel Mounier Silva (1932-), professora de Economia no então
(cujo pensamento divulgou em Portugal através dos ISCEF, ligada à problemática da reflexão do desen-

319
CATOLICISMO SOCIAL

Membros do Instituto Regnum Dei no meio dos seus colegas de trabalho na construção civil, em Setúbal, em 1966 (in
SOUSA - Presença, p. 164).

volvimento, e em particular do desenvolvimento co- TRINDADE - Maria); as Irmãs Concepcionistas ao


munitário (desde 1961), foi secretária de Estado do Serviço dos Pobres*, com início em Elvas, em 1936,
Planeamento no I Governo Constitucional, fundado- por iniciativa de Maria Isabel Picão Caldeira Carneiro
ra do Centro de Reflexão Cristã (1974-), a partir (CONCEPCIONISTAS - Carisma); as Irmãs Vitorianas*,
donde tem animado intensa actividade sobre as ques- fundadas no Funchal, em 1884; as Missionárias dos
tões da pobreza e da situação da mulher na Igreja Pobres*, com início em Coimbra, em 1950; as Servas
(cf MULHERES); Teresa Santa Clara Gomes (1936- da Santa Igreja*, fundadas pelo arcebispo de Évora
-1996), com múltipla e diversificada actividade no em 1945, para o trabalho em «missões populares»; e
campo sociocultural e também político, que no âm- as Servas de Nossa Senhora de Fátima*, fundadas em
bito do movimento Graal organizou projectos de 1939, por Luiza Andaluz (cf. PEDROSO - Audácia).
promoção humana e social, nomeadamente a nível A vitalidade das novas congregações é acompanhada
da alfabetização, ao longo dos anos 60 e 70 (cf. pelo ressurgimento de muitas outras (cf estudo de
BARREIRA - Confidências). No campo específico da José Maria Cabral Ferreira, in M A R U J O - Vidas) e pe-
educação é de realçar o trabalho pioneiro de Maria lo desenvolvimento do seu trabalho de doutrinação e
Ulrich (1908-1988), fundadora da Escola de Educa- acção social nos mais variados campos, como acon-
doras de Infância, criada em 1954, assente no respei- teceu com os Jesuítas* no campo do ensino e da cul-
to pelo valor da infância e no desenvolvimento de tura. 4.4. Assistência, serviço social e intervenção na
uma pedagogia activa ( c f . G A L A - Maria). 4.3. Reli- sociedade: Tanto a nível do pensamento como das
giosos e religiosas: Outro sector que marcou forte- práticas sociais, verificou-se uma nítida evolução no
mente o catolicismo social encontra-se a nível dos seio do catolicismo social: ao longo do século xx,
institutos religiosos, em particular nas novas con- passou-se de uma concepção mais assistencialista
gregações religiosas femininas* que, a partir do sé- para uma outra mais interventiva, culminando na va-
culo xix, tiveram progressiva implantação no país. lorização da ideia de cidadania dos católicos e na
Congregações mais recentes houve, tanto masculi- aceitação da parceria de iniciativas de solidariedade
n a s (V. CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS MASCULINAS) C O M O por parte das instituições religiosas, em conjunto
femininas, que são expressão de novas perspectivas com outras forças sociais. Tal evolução não foi li-
no seio do catolicismo social, como por exemplo: near nem isenta de conflitos no interior da Igreja Ca-
as Irmãzinhas de Jesus, presentes em Portugal desde tólica e da sociedade em geral. Neste percurso, há
1952; os Filhos da Caridade, desde 1970; e os Ir- também a assinalar o importante papel que os católi-
mãos do Campo, desde 1974. De entre as congrega- cos sociais tiveram no desenvolvimento das ciências
ções de fundação nacional ( c f . VINDE), não podem sociais (cf. C R U Z - Para a história), assim como na
deixar de ser referidas: as Criaditas dos Pobres*, aci- institucionalização do serviço social no país. Em
ma referidas, fundadas em Coimbra, em 1924, por 1935, sob o patrocínio da Acção Católica Portugue-
Maria Carolina de Sousa Gomes (1892-1969) (cf. sa, é fundado em Lisboa o Instituto de Serviço So-
320
C A T O L I C I S M O SOCIAL

ciai e, em 1937, é criada a Escola Normal Social em tólica* foi fazendo acerca de si própria e do seu
Coimbra, confiada na sua direcção e ensino à Con- papel no mundo, nomeadamente a passagem da ideia
gregação das Franciscanas Missionárias de Maria* de que constituía uma societas perfecta para uma
(CARVALHO - Serviço, p . 6 9 ; MARTINS - Génese, outra, menos jurídica e mais espiritualizada, assente
p. 231-251). Na génese de ambos os projectos con- na imagem de corpo místico de Cristo - noção reto-
vergiram diversas iniciativas e figuras do movimen- mada de São Paulo e tema de uma encíclica de
to católico, entre as quais se destaca a condessa de Pio XII em 1943 —, culturalmente mais aberta, em
Rilvas, que, integrando o grupo de monárquicos pre- que a Igreja se vê como uma mediação, a partir da
sente no I Congresso da União Nacional, em 1934, perspectiva sacramental de quem anuncia e testemu-
aí defendeu a necessidade do ensino de serviço so- nha um reino que não é deste mundo, definindo-se
cial. E se «a ciência social serviu claramente para re- como povo de Deus na história dos homens (II Con-
forçar, como ideologia reformadora por via educati- cílio do Vaticano). Efectivamente, o catolicismo so-
va, as pretensões restauradoras da paz social, pela cial constituiu um dos modos de envolvimento e
concertação corporativa dos interesses antagónicos e afirmação dos católicos leigos no interior da Igreja,
pelo intervencionismo supletivo do nascente estado apesar das dificuldades desse mesmo reconhecimen-
do bem estar, de que o catolicismo social, fundamen- to no seu interior; basta referir que, conceptualmen-
tal inspirador ideológico do Estado Novo, se fez te, o apostolado dos leigos só em meados do século
arauto» (CRUZ - Para a história, p. 48-49), o seu de- xx é definido. A própria ideia de pastoral* e o desen-
senvolvimento veio proporcionar novas instâncias de volvimento de pastorais especializadas, a partir dos
observação, análise e debate sobre a realidade social. anos 60 - como a pastoral operária, a pastoral social
Por seu turno, na medida em que se manteve «fiel à ou a pastoral familiar - estão directamente relaciona-
sua inspiração democrata-cristã», o Estado Novo das com a evolução do catolicismo social. Em última
permitiu «integrar no âmbito das suas políticas so- análise, o religioso exprime-se e, no caso do cristia-
ciais muitas das realizações das sociedades democrá- nismo, incarna numa vivência simultaneamente pes-
ticas, não como direitos dos cidadãos, mas como soal e comunitária, assumindo necessariamente uma
manifestações dos princípios ético-morais da doutri- dimensão social, desde logo pelas formas de sociabi-
na social corporativa» (CARVALHO - Serviço, p. 124). lidade que gera ou sustenta, e participando nos pro-
Este processo marcou decisivamente todos os que cessos de transformação social. Expressão disso são
nele participaram, contribuindo, nas décadas seguin- as chamadas comunidades de base, como a da serra
tes, para gerar tensões e provocar conflitos na rela- do Pilar, por exemplo, já depois do 25 de Abril (cf.
ção dos católicos sociais com o mesmo Estado No- M A R U J O - Vidas, p. 209-230). Mas, tão importantes
vo. Já nos anos 60, o desenvolvimento dos estudos e quanto as mudanças verificadas, são também as per-
ciências sociais no país ficou também a dever-se, di- manências existentes, visíveis por exemplo na rela-
recta e indirectamente, a muitos dos que integraram ção com o tempo e de que a questão do descanso do-
a «geração social» de católicos a que pertenceu o minical é expressão paradigmática: ela constitui uma
professor Adérito Sedas Nunes (1928-1991) e o pe- das principais reivindicações do movimento católico
queno grupo de intelectuais de origem católica que oitocentista (cf POLICARPO - Para a história), atraves-
estiveram na origem da revista Análise Social e do sa os debates do movimento operário católico (v.g.
primeiro Gabinete de Investigações Sociais (cf. NU- REZOLA - O sindicalismo, p. 126-129, 195-196 e
NES - Histórias): Raul da Silva Pereira (1927-), 244-247) e permanece como uma questão central na
Mário Murteira, Mário Pinto (1931-) e Alfredo de visão do episcopado português sobre a sociedade, no
Sousa (1932-1994) (cf. testemunhos publicados em final do século xx (veja-se a nota pastoral sobre
ANÁLISE). 5. Dinâmica e impacte: O catolicismo so- «O domingo numa sociedade em mudança», publi-
cial constitui indiscutivelmente um dos principais cada em 1993, in CONFERÊNCIA - Documentos, vol. 4,
vectores na definição e desenvolvimento do catoli- p. 201-207). Ainda associado à questão da identida-
cismo contemporâneo, assim como um dos eixos de eclesial, há um dado que não pode ser ignorado
que caracterizam a presença e intervenção da Igreja na análise da dinâmica do catolicismo social: a di-
Católica na sociedade portuguesa. Em larga medida, mensão universal da Igreja Católica. Concretamente,
foi a partir do terreno dito social que a Igreja procu- muitos dos dinamismos desenvolvidos no país não
rou redefinir formas de presença na sociedade e esta- se compreendem sem esta articulação, que passa
belecer novos padrões de relevância e influência no não só pela acção directa do papado ou pela presen-
mundo moderno, participando assim nos processos ça de congregações religiosas, mas também, e de
de secularização e de laicização do pensamento e modo vincado no século xx, a partir de uma vasta re-
das instituições, ao disputar um lugar próprio, con- de de pessoas e iniciativas no âmbito das Organiza-
correncialmente com outras forças sociais. A im- ções Internacionais Católicas, criadas nos mais va-
prensa católica* é disso mesmo um bom exemplo, riados campos, com estrutura e acção próprias, e,
tendo desempenhado importante papel na organiza- desde o final da Segunda Guerra Mundial, agindo
ção e no delineamento ideológico do movimento so- concertadamente à escala europeia e internacional.
cial católico, constituindo uma fonte imprescindível Exemplo dessas organizações são a Juventude Ope-
para o seu estudo, conforme vários autores o subli- rária Católica Internacional, a Pax Romana, o Bu-
nham (cf. VOLOVITCH - Le catholicisme, p. 376-386; reau International Catholique pour l'Enfance, a
N E T O - O Estado, p. 450-451). Por outro lado, o de- Union Mondiale des Organisations des Femmes Ca-
senvolvimento do catolicismo social não pode desli- tholiques, entre dezenas de outras que tiveram tam-
gar-se da própria evolução da ideia que a Igreja Ca- bém uma presença em Portugal. Por último, subli-

321
CATOLICISMO SOCIAL

nhc-se que o catolicismo social constituiu um dos 1973, em que o padre Alberto Neto (1931-1987)
modos mais significativos de expressão da vitali- esteve À sua frente ( c f . STILWELL - Padre Alberto).
dade e capacidade de renovação da própria Igreja Já no rescaldo do processo revolucionário do pós-25
Católica em Portugal ao longo dos dois últimos sé- de Abril, na sequência da formação de um governo
culos, tanto pela variedade de iniciativas que de iniciativa presidencial liderado pela engenheira
desencadeou, como pelas reflexões que suscitou na Maria de Lourdes Pintasilgo e constituído maiorita-
sociedade. 5.1. Questão social, questão política e riamente por católicos sociais, a «questão da relação
cidadania: Se o catolicismo social surgiu e se de- entre os cristãos e a política, ou ainda das exigências
senvolveu em contraponto a uma perspectiva polí- da Fé dos cristãos ao nível do político, tornou-se a
tica do movimento católico, considerada demasia- colocar» ( E N C O N T R O - Por uma sociedade, p. 4),
do redutora do espaço e alcance do catolicismo, suscitando a realização, em Setembro de 1980, de
não foi por razões meramente tácticas ou conside- um encontro nacional de cristãos, sob o lema «por
rações conjunturais. No entanto, é também verdade uma sociedade justa e fraterna». Se a participação
que, em diversos contextos, o seu desenvolvimento dos cristãos na vida pública esteve de novo em
conduziu os católicos sociais a confrontarem-se questão, a institucionalização da democracia polí-
abertamente com a dimensão política. Aconteceu tica e a correlativa valorização do pluralismo polí-
assim nos primeiros anos da República, em resis- tico dos católicos haveria de conduzir ao reconhe-
tência às políticas laicizadoras; aconteceu também cimento do valor do exercício da cidadania. E o
no final da Segunda Guerra Mundial, com o distancia- próprio episcopado que em 1995 afirma: «Os
mento e crítica de alguns sectores face ao corporati- membros da Igreja são cidadãos de pleno direito.
vismo de Estado ou à persistente falta de liberdades [...] Sem rótulo específico, estão espalhados por
cívicas; aconteceu novamente com o surgimento de todo o lado. Pedimos-lhe que dêem testemunho do
uma corrente de oposição católico-democrática ao seu peculiar espírito de serviço à comunidade e vi-
Estado Novo, a partir de meados dos anos 50; e vam os seus compromissos profissionais, cívicos e
aconteceu ainda assim no processo de transição de- políticos na coerência da fé que professam e das
mocrática português, desde o final dos anos 60, no- suas exigências concretas» (CONFERÊNCIA - Docu-
meadamente em torno da constituição da chamada mentos, vol. 4, p. 307). Em síntese: a valorização do
«ala liberal» no tempo do marcelismo, com destaque exercício da cidadania por parte dos católicos e,
para as figuras de Francisco Sá Carneiro (1934- simultaneamente, o reconhecimento do valor do
-1980) e João Pedro Miller Guerra (1911-1993). seu pluralismo político constituiu um dos eixos
O desenvolvimento do reformismo social católico e que marcaram a evolução do catolicismo social ao
a chamada «politização» da Acção Católica, a partir longo do século xx, num percurso não isento de
de finais da década de 50, são disso exemplo e o per- ambiguidades e de conflituosidade, quer interna à
curso de D. António Ferreira Gomes é, talvez, a ex- própria Igreja Católica, quer externamente a esta,
pressão mais visível desta evolução do movimento na relação dos seus membros com a sociedade e o
católico no pós-Segunda Guerra Mundial (cf. FON- Estado. 5.2. Comissões Justiça e Paz: Fruto da
TES - D. António). Esse processo de politização ga- evolução da Doutrina Social da Igreja e da mudan-
nhou diversos contornos e pode ser observado a vá- ça de enfoque na relação dos católicos com a so-
rios níveis (cf. depoimentos de António Leite de ciedade após o II Concílio do Vaticano, assistiu-
Castro, Carlos Portas, Manuel Bidarra, Sidónio Paes, -se, no final do século xx, a uma nova dinâmica da
entre outros, in CENTRO - D. António): envolvimento relação dos católicos com a sociedade, visível na
directo de católicos na acção revolucionária, como celebração anual do Dia Mundial da Paz (iniciada
aconteceu com os militantes jocistas Manuel Serra a 1 de Janeiro de 1968) e no desenvolvimento das
(1931-) e João Gomes (1934-) na «revolta da Sé» Comissões Justiça e Paz. Em Portugal, a primeira
(Março de 1959); crescente participação de católicos Comissão Justiça e Paz surgiu no Porto, em 1969/
nas listas da oposição, em 1961, 1965 e 1969 (cf. /1970, após o regresso do exílio forçado do bispo
C R U Z - O Estado, p. 157-163; IDEM - As relações, à sua diocese. A nível nacional, e na sequência da
p. 217-219), chegando a ser criado um Movimento participação no Sínodo sobre a Justiça no Mundo
Cristão de Acção Democrática, em 1965, que susci- (1971), a Conferência Episcopal Portuguesa* de-
tou acesa polémica (cf. ALVES - Católicos, p. 177- cidiu então «a criação imediata da Comissão Na-
-220); e empenhamento activo de outros católicos cional Justiça e Paz com objectivos inspirados nos
nas lutas anticoloniais, como Nuno Teotónio Pereira da Comisssão Pontifícia do mesmo nome» (CON-
(1922-) e Luís Moita (1939), protagonizando inicia- FERÊNCIA - Documentos, vol. 1, p. 277). No entan-
tivas com prolongado alcance social, como o foi a to, e apesar dos esforços desenvolvidos e da von-
criação do Centro de Informação e Documentação tade reafirmada em 1978 (Ibidem, vol. 2, p. 244),
Anticolonial, em Maio de 1974, depois rebaptizado só em Junho de 1982 a Conferência aprovou os es-
de Centro de Informação e Documentação Amílcar tatutos da referida comissão, tendo então nomeado
Cabral, em 1977 (cf. PEREIRA - Tempos, p. 128; R I - o seu primeiro presidente e assistente eclesiástico
BEIRO - O potencial, p. 73-75). Expressão também de (Ibidem, p. 268). Desde então, com maior ou me-
uma realidade mais ampla, que não se esgota no que nor visibilidade, o trabalho da Comissão Nacional
se denominou de «progressismo católico» ( c f . R E Z O - Justiça e Paz tem prosseguido, tendo editado vá-
LA - Católicos progressistas), e da evolução de cer- rias publicações nas quais reflecte e se posiciona
tos sectores socioculturais urbanos, foi o caso da co- acerca das mudanças em curso na sociedade portu-
munidade da capela do Rato no período de 1968 a guesa contemporânea. O retomar da celebração

322
C A T O L I C I S M O SOCIAL

das Semanas Sociais, a partir de 1991, constitui vol. 12, p. 402-450. IDEM - Questions autour de la repércussion au
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11

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Paz: C O M I S S Ã O N A C I O N A L JUSTIÇA E P A Z - Gaudium et Spes: uma leitura te, a sul, que se desdobraria, em 1521, dando origem
pluridisciplinar vinte anos depois. Lisboa: Rei dos Livros, 1988. IDEM - ao aparecimento de mais uma força política, o reino
Caminhos da Paz, no 25." aniversário da primeira mensagem para o de Sitawaka. Em 1506, algumas naus lusas, coman-
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sociedade hoje: do sucesso económico para alguns a um desenvolvi- dadas por D. Lourenço de Almeida, filho do vice-rei
mento integral para todos. Lisboa: Multinova, 1993. IDEM - Cadernos D. Francisco de Almeida, depois de uma investida
Justiça e Paz. Lisboa: C N J P , 1990-1999. 7 números publicados. C O M I S - nas costas das Maldivas, com o propósito de inter-
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CNJP, 1990. C O N S E L H O PONTIFÍCIO PARA A JUSTIÇA E A P A Z - Aspectos so- ceptar o tráfego de navios mouros, viram-se arrasta-
ciais e éticos da economia: um colóquio no Vaticano. Trad. e pref. Ma- das até ao porto de Gale, no reino de Kotte, afamado
nuela Silva. Lisboa: CNJP. 1994. pela sua primazia no trato da canela e das pedras
preciosas. Neste primeiro encontro, foi erigida uma
CEILÃO. A antiga Taprobana, situada em frente à ex-
pequena capela na capital, Colombo, em honra de
tremidade sueste da península indostânica, foi inspi- São Lourenço, onde se celebrou uma missa presidida
radora de inúmeras efabulações que povoaram o por Frei Vicente. A partir de então, em todos os tra-
imaginário medieval, algumas delas relacionadas tados de amizade e comércio que se ratificaram entre
com a introdução do cristianismo na ilha. Uma das a Coroa portuguesa e os reinos locais figurava uma
mais populares conta-nos como uma sibila, de nome cláusula que assegurava a liberdade para evangelizar
Indica, sabendo do nascimento de Cristo, instigou o povo cingalês. Contudo, a missionação portuguesa,
um rei de Ceilão, Gaspar Peria Perumal, a viajar até aqui como em todo o Oriente, só se tornaria sistemá-
tica na década de 1540. Entre 1515 e 1534 Ceilão
Mascate, para se juntar a outros dois reis que iam a pertence à diocese do Funchal*, passando então à
Belém adorar o Menino. A vinda, o pretenso rei ma- diocese de Goa* até 1557, data em que é erigida
go teria trazido um retábulo com a Nossa Senhora, aquela que será a sua futura diocese até 1836, Co-
mais tarde colçcado na sepultura daquela sibila (cf. chim. Os primeiros anos da presença portuguesa na
B A R R O S - Da Ásia, déc. i, liv. ix, cap. 3). Na origem ilha foram muito pouco significativos no que respei-
desta lenda está uma confusão feita com o nome ta à evangelização. O projecto de construir uma for-
Kolum (i.e. Kollam ou Coulão), sede de um bispa- taleza em Ceilão, que consta já das instruções de
do do Malabar conhecido na sua forma latina como
324
CEILÃO

em todas as fortalezas e feitorias, os escravos que,


com verdadeira sinceridade, se fizessem cristãos fica-
riam livres da escravidão. Sabe-se que o alvará joani-
no produziu os seus efeitos, que redundariam numa
série de abusos de que se queixava o rei de Kotte,
Bhuvaneka Bahu. De facto, muitos dos naturais que
se convertiam eram antigos escravos que, consegui-
da a almejada liberdade, deixavam de pagar os direi-
tos senhoriais e reais a que estavam obrigados, o que
provocava uma certa animosidade contra os missio-
nários, apenas refreada por necessidades impostas
pela conjuntura interna na ilha desde finais da déca-
da de 1530. A partir de 1539, Bhuvaneka Bahu viu,
de facto, nos Portugueses os aliados de que precisa-
va para travar as ofensivas de Mayadunne, rei de Si-
tawaka, sobre os seus domínios e para ver reconheci-
do o seu neto Dharmapala como legítimo sucessor
do seu trono. Entretanto, um franciscano, que se en-
contrava na sua corte, Frei Henrique, aconselhou-o a
pedir a Portugal missionários para Ceilão, pois o cle-
ro era insuficiente para o número de convertidos;
Bhuvaneka Bahu aproveitou esta sugestão, com o fi-
to de mais facilmente atrair o apoio da Coroa portu-
guesa à sua causa, no que foi bem sucedido. Em
1543, a embaixada que enviara a D. João III regressa-
va a Colombo acompanhada de sete franciscanos, à
frente dos quais vinha Frei João da Vila do Conde,
franciscano capucho da Província da Piedade, com
as seguintes disposições da parte de D. João III:
Dharmapala era reconhecido como herdeiro de Kotte
e os recém-convertidos continuariam sujeitos à juris-
dição local. Bhuvaneka Bahu acolheu muito bem es-
tas notícias, dando plena liberdade de pregação aos
missionários franciscanos, mas, contrariando as ex-
pectativas trazidas por aquela embaixada, mostrou-
-se claramente adverso à ideia de se baptizar. De
qualquer forma, incumbiu Frei João da educação do
seu neto e, talvez movido pelas ameaças constantes
de Mayadunne, que tornavam premente o auxílio
português, procurou continuar a conquistar a sua be-
nevolência através de um explícito favorecimento
Arvore de Jessé - placa de marfim cingalo-portuguesa dos convertidos ao cristianismo, permitindo-lhes,
(século xvn). Colecção Walter Cudell. por exemplo, que retivessem os bens transmitidos
em herança, mesmo os de doação régia precária, que
D. Manuel a D. Francisco de Almeida, foi sendo pela lei geral do reino deveriam voltar às mãos do
adiado, para se vir a concretizar apenas em 1518; rei. Perante tal clima de tolerância, as missões cristãs
mas logo em 1524 foi a fortaleza de Colombo des- foram crescendo e construíram-se igrejas em Colom-
mantelada por parecer inconveniente. A fortaleza bo, Negumbo, Gale, Lycão, etc. Em 1557, a conver-
foi, entretanto, um espaço de comércio e de missão, são de Dharmapala (1551-1597), o neto de Bhuvane-
uma vez que, como acontecia um pouco por toda a ka e seu sucessor, que passou a chamar-se D. João,
parte, estava provida de um capelão e alguns cléri- arrastou consigo quase toda a corte, o que foi muito
gos, cujo sustento era assegurado pelo Estado. O pri- motivador para os demais súbditos. Entretanto, ou-
meiro vigário de Ceilão foi o padre Luís Monteiro de tros senhores de Ceilão equacionavam a conveniên-
Setúbal, que ali viria a ser enterrado em 1536. Além cia de terem os Portugueses como aliados militares
do cuidado espiritual dispensado aos cristãos da guar- contra o avanço das forças de Mayadunne. No reino
nição da fortaleza, é provável que aqueles clérigos de Kandy, o soberano facilitava a penetração dos
tentassem algumas incursões apostólicas nas terras vi- Franciscanos e disponibilizava-lhes terreno para a
zinhas, a fim de catequizarem os infiéis que esponta- construção de uma igreja e de uma residência. A ma-
neamente se sentissem atraídos pela nova doutrina nifesta receptividade do rei Jayavira para com o cris-
que lhes era apresentada. Em carta de 5 de Março de tianismo teve como corolário o seu baptismo sob o
1521 D. Manuel lembrava ao capitão da fortaleza a nome de D. Manuel, em 1546; mais tarde, porém, vi-
sua responsabilidade em fomentar a dilatação da fé. ria a apostatar, desiludido com a diminuta ajuda que
D. João III, em alvará de 4 de Março de 1533 (Archi- lhe prestara a milícia portuguesa. O seu filho, que to-
vo Portuguez-Oriental, fase. v, p. 153), dispunha que, mou o nome de Jayavara II, reencetou boas relações

325
CEILÃO

com os missionários, vindo a pedir o baptismo a Frei sau, que foi recebido com grande entusiasmo por
Pascoal, provavelmente na década de 1550, no que Wimala Dharma, que desde então se tornou inimigo
foi seguido por vários senhores do seu reino, que pas- dos Portugueses. Em 1614, o rei de Kandy proibiu a
sou a ser marcadamente pró-português. No caso do construção de edifícios eclesiásticos para os missio-
reino de Jaffna, a iniciativa de uma aproximação à fé nários católicos. A pouco e pouco a perseguição aos
cristã não partiu da hierarquia política. Desta feita, católicos começou a ter forma de lei. Num tratado
foram os pescadores da ilha de Manar que, seduzi- assinado em 1638 entre Holandeses e Rajasinha II
dos com o que se falava acerca de São Francisco Xa- (1635-1687), rei de Kandy, uma das cláusulas proi-
vier e dos prodígios que lhe imputavam aquando da bia a admissão de clero católico romano, acusado de
sua pregação aos paravás da costa da Pescaria, reque- induzir o povo a desmandos contra as autoridades
reram a presença do santo para os doutrinar também locais. Perante a crescente intolerância religiosa, foi
a eles. Impossibilitado de ali acorrer por se encontrar ganhando força a resistência católica que prefere
ocupado com a cristandade de Travancor, Xavier en- agora o interior da ilha, nomeadamente o reino de
viou em Novembro de 1544 um seu companheiro que Kandy, onde Rajasinha II, desiludido com os Holan-
converteu toda a casta dos careás de Manar. O rei hin- deses, volta a acolher os Portugueses. Entre 1638 e
du Sankily (1519-1561), tomando este aconteci- 1658, os Holandeses vão-se apoderando das posi-
mento como um golpe infligido à sua autoridade, ções portuguesas da ilha. Este avanço holandês faz-
ordenou o extermínio dos cerca de 700 baptizados. -se acompanhar de toda a espécie de interditos, de
O efeito foi contraproducente: sensibilizados com o que se pode destacar o de 19 de Setembro de 1658,
martírio colectivo que acabavam de testemunhar, que proibia, sob pena de morte, que se albergassem
muitos parentes do rei de Jaffna aderiram ao cristia- ou ocultassem sacerdotes católicos. Mesmo assim, o
nismo. Apenas o reino de Sitawaka continuava a ser empenho posto na protestantização da ilha não con-
completamente impermeável ao Evangelho. Maya- seguia superar a influência do clero católico que, em
dunne arvorava o budismo como estandarte nacional segredo, continuava o seu apostolado. O exemplo
congregador dos seus súbditos e como chamariz às mais notável é o do Beato José Vaz (1651-1711), um
populações dos reinos vizinhos que não aderiam à padre goês, fundador da Congregação do Oratório de
doutrina anunciada pelos missionários. Nos finais do São Filipe de Néri, em Goa, que se fez passar por es-
século xvi, começava uma nova fase para as missões cravo para poder entrar em Ceilão, onde teve por
portuguesas, sob os bons augúrios vindos de Kotte e costume visitar as casas católicas, a fim de assegurar
de Jaffna. Em 1580, depois de suportar durante qua- o acesso aos sacramentos*. Em 1694, chegou a con-
se dois anos um cerco infligido por Raju, filho de seguir permissão da parte do rei de Kandy para re-
Mayadunne, o rei de Kotte doava os direitos de so- construir as igrejas católicas nos arredores da cidade.
berania do reino de Kotte à Coroa portuguesa. Em Além disso, com o seu zelo missionário, restaurou a
1597, à morte de D. João Dharmapala, aquele reino antiga pujança da cristandade de Jaffna e de Manar.
era-lhe definitivamente legado pelo seu testamento. Até 1711, quando veio a falecer, converteu cerca de
Quanto ao reino de Jaffna, a partir de 1560, termina- 30 000 cingaleses. Ao longo do século xvin, as repe-
das as hostilidades de Sankily, iniciou-se um período tidas proibições aplicadas à administração dos sacra-
de alguma paz. Aquela região estava ordenada por mentos católicos fazem crer que o Beato José Vaz
paróquias, cada uma com uma residência destinada deixou continuadores na ilha. A testemunhar a viva-
ao padre franciscano que a servia e, caso se justifi- cidade de algumas comunidades católicas temos o
casse, com uma capela-escola. Foram talvez esses exemplo da reacção protagonizada pelos crentes de
bons auspícios que atraíram outras ordens religiosas. Negumbo que, em 1750, se insurgiam contra o pro-
Desde 1560 os Franciscanos* ombreiam em Manar grama governamental de educação protestante para
com os Jesuítas*. Em 1578, os Agostinhos estabele- todas as crianças. Mas se o catolicismo não desapa-
ceram um pequeno convento em Colombo, onde ser- receu da ilha, a sua evolução posterior nada deve já
viam a população depauperada dos arredores, o que aos missionários portugueses.
lhes exigia um esforço financeiro por vezes difícil de SILVANA REMÉDIO PIRES
suportar. Nesta cidade a missão dos Jesuítas come-
çou por volta de 1602, vindo a construir-se o primei- BIBLIOGRAFIA: B A R R O S , João de
1973, vol. 6. B O U R D O N , Léon -
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Les débuts de 1'évangelisation de Cey-
ro colégio em 1605; parece que aí estiveram os fi- lan vers le milieu du xvt siècle. Lisboa: Instituí Français au Portugal,
lhos do rei de Uva e do rei das Sete Corlas. Em 1936. F L O R E S , Jorge - Ceilão. In DICIONÁRIO de história dos Descobri-
Jaffna, a Companhia teve uma missão entre 1623 e mentos portugueses. 1994, vol. 1, p. 226-232. F R A S E R , Alberto - Os
princípios da cristandade de Ceilão. Brotéria. 28 (1939) 426-443.
1640. Dos frades dominicanos*, conhecem-se resi- G R A C I A S , J. A. Ismael, int. e notas - Vida do venerável padre José
dências em Colombo, Jaffna e Gale, em 1627. Co- Vaz. 3." ed. Lisboa, 1962. L O P E S , Fernando Félix, padre - A evangeli-
nhece-se a existência de um padre dominicano natu- zação de Ceilão desde 1552 a 1602. Studia. 20/22 (1967) 7-73. LO-
PEZ, Teófilo Aparício - La Orden de San Agustin en la Índia
ral de Ceilão; sabe-se também de um padre de (1572-1622). Studia. 38 (1974) 563-707. R E G O , António da Silva -
Malaca e de três indianos, seculares, que trabalha- Documentação para a história das missões do Padroado Português
vam com os Jesuítas. Apesar dos progressos conse- do Oriente. Lisboa: AGU, 1958, vol. 1, 12. S H U R H A M M E R , Georg -
The history of Ceylon, 1539-1552. Xaveriana. (1964) 517-527. S H U R -
guidos, os missionários portugueses, para além da H A M M E R , Georg; V O R E T Z C H , A. - Quellen zur Geschichte der Portu-
postura hostil dos monges budistas, tiveram de con- giesen, sowie der Fraziskasner und Jesuitenmission auf Ceylon im
tar com novos adversários, quando o século xvii Urtext herausgeben und eklàrt. Leipzig: Verlag der Asia Major, 1928.
2 vol. T R I N D A D E , Paulo da, fr. - Conquista Espiritual do Oriente. Lis-
trouxe consigo os primeiros holandeses. Em Maio de boa: CEHU, 1967, vol. 3. Além destas obras, são de referir uns apon-
1602 aportava em Baticaloa, no reino de Kandy, Jo- tamentos inéditos do padre Silva Rego acerca da missão de Ceilão,
que fazem parte do espólio doado à Biblioteca da Universidade Cató-
ris Van Spilbergen, um enviado de Maurício de Nas- lica Portuguesa.

326
CEMITÉRIOS

CEMITÉRIOS. Genericamente definido como o espa- sis de Sousa Vaz {cf síntese em SOUSA - Cemitérios,
ço individualizado (recinto), geralmente ao ar livre, vol. 1, p. 15). A obra deste último, Memoria sobre
destinado ao enterramento dos mortos, o cemitério a incoveniência dos enterros nas igrejas e utilidade
foi assumindo semblantes diferentes ao longo dos da construcção de cemiterios, constitui um marco
tempos, acompanhando a evolução das mentalidades fundamental para a cemiteriologia em Portugal, por
e da postura perante o fenómeno da morte. Apesar defender ideias curiosas como a necessidade de
de existirem em Portugal recintos próprios para en- olhar para os cemitérios como museus, bem como
terramento em épocas anteriores, como a arqueolo- as já referidas medidas higienistas, postulando a
gia vai demonstrando, optamos por iniciar a presente necessidade de criação de cemitérios no exterior
análise temática a partir da Idade Média. 1. Perspec- das povoações, à imagem do que sucedia em Fran-
tiva histórica: O estudo das necrópoles da Alta e ça, que funcionava como paradigma (ainda hoje,
Baixa Idade Média foi realizado, com incidência na com exemplos como o Cemitério de Père Lachaise,
região do Entre Douro e Minho, por Mário Barroca em Paris) para o universo da morte e das constru-
(cf. BARROCA - Necrópoles), que constatou a existên- ções cemiteriais (cf. V A Z - Memoria). A afirmação
cia de necrópoles alto-medievais e a presença de dos cemitérios no Portugal de Oitocentos vai-se
vestígios funerários paleocristãos nesta região. Neste realizando progressivamente, acompanhando a des-
espaço são constatáveis cemitérios de influência ger- sacralização da sociedade portuguesa verificada nes-
mânica, de que se poderia mencionar o exemplo da te século (cf. COUTINHO - A descristianização), em
necrópole de Beiral do Lima ( c f . Ibidem, p. 83-96). que a evolução de valores e mentalidades indiciava
Do período da Reconquista*, encontram-se diversas novos rumos. Por isso, a sua construção não se fez
sepulturas cavadas na rocha, de que se salientam os pacificamente, assim se justificando as resistências
casos do Lugar do Couto (Refóios de Lima), de de párocos e católicos, sobretudo dos meios rurais,
Pampelido Velho e Montedouro (Perafita, Matosi- agitados ainda por ideias absolutistas. Tais atitudes
nhos), do adro da igreja paroquial da Cabeça Santa evidenciaram-se de forma clara na questão dos cemi-
(Penafiel), a necrópole da Portela de Santa Marta ou térios, cuja problemática teria o seu auge essencial-
Portela do Forno dos Mouros, ou, mais a sul, as se- mente na década de 1840, com reminiscências, no
pulturas da Aldeia da Seara (São Cristóvão de No- entanto, vindas da década anterior, com diversas me-
gueira, Cinfães); neste período, podem ser notados didas legais tomadas no sentido da obrigatoriedade
ainda diversificados sarcófagos nesta região. Para o da criação de cemitérios e da proibição de enterra-
período dos séculos xn a xv, são de destacar os tú- mentos no interior dos templos (cf. C A B R A L - Um
mulos colocados no interior dos templos, nos claus- conflito, p. 193-201). No caso portuense do Cemité-
tros ou zonas adjacentes, como sucede na igreja do rio do Prado do Repouso, a escolha recaiu sobre a
mosteiro de Pombeiro, da Colegiada de Nossa Se- Quinta do Prado do Bispo, propriedade da mitra,
nhora da Oliveira, em Guimarães (Capela de processo que ocasionou um conflito entre a câmara
São Brás) ou no mosteiro de Paço de Sousa (cf. Ibi- local e o bispo eleito D. Manuel de Santa Inês, que
dem, p. 101-216, 453-471). Mais a sul, refiram-se os viria a ser resolvido por intervenção estatal (cf. SOU-
túmulos de D. Inês, em Alcobaça, de Fernão Gomes SA - Alguns elementos, p. 322-330). Este cemitério
de Góis, na matriz de Oliveira do Conde, de Fernão viria a ser inaugurado em 1 de Dezembro de 1839.
Teles de Meneses, na Igreja de São Marcos, arredo- A necessidade de gerar o apoio dos vários sectores
res de Coimbra, ou de João das Regras, em São Do- da sociedade portuense fez com que o primeiro en-
mingos de Benfica, que constituem exemplares dos terramento se fizesse com a transferência dos restos
séculos xiv e xv {cf D I A S - História, p. 130-137). mortais do desembargador Francisco de Almada e
Desta forma, a maioria dos enterramentos efectua- Mendonça, personagem que não geraria oposição
va-se no interior das igrejas, sob a protecção divina nem das facções liberais nem das mais arreigadas à
e a proximidade dos santos. Quando a capacidade tradição absolutista (cf Ibidem, p. 4). É pois neste
de enterramento desses espaços se esgotava, eram ambiente de agitação social e política que caracteri-
utilizadas zonas contíguas, como os claustros e os zou o Portugal da primeira metade de Oitocentos,
adros, onde se podia constatar um prolongamento em que se confundem ideias higienistas, políticas li-
da acção protectora dos entes divinos e dos seus in- berais e conceitos religiosos, que se vai alicerçando
termediários junto dos homens {cf D I A S - Cemité- a progressiva edificação de cemitérios no país. Ape-
rios, p. 75-77). Com o início do século xix e as me- nas a título de exemplo, podemos referir o Cemitério
didas higienistas que também acompanhavam a do Alto de São João (Lisboa), c. 1833/1834; da Lapa
progressiva secularização da sociedade, foi-se desen- (Porto), 1833; dos Prazeres (Lisboa), 1833; de Bor-
volvendo a ideia de que o enterramento ad sanctos, ba, c. 1837; Conchada, em Coimbra, 1858-1860;
apud ecclesiam ocasionava perigosas doenças, ten- Ovar, 1859; Tomar, c. 1872; Miranda do Corvo, 1875;
do-se impresso alguma literatura coeva sobre o as- Póvoa de Varzim, 1889; Paço de Sousa, 1890 (cf
sunto. Em Portugal, os mais ardorosos defensores da quadro de sistematização in Q U E I R O Z - Cemitérios,
criação dos cemitérios foram o Dr. Vicente Coelho p. 96-104). 2. O cemitério romântico: O cemitério
de Seabra Silva Teles, com Memorias sobre os pre- romântico (cf CATROGA - O cemitério, p. 75-85), de-
juízos causados pelas sepulturas dos cadáveres nos finido entre a segunda metade do século xix e as pri-
templos e o methodo de os prevenir, o bispo da Ba- meiras décadas do século xx, deve ser entendido co-
hia, D. Francisco da Soledade e Castro, que expôs mo um espaço que convida à devoção e ao culto da
tais ideias nas Cortes Constituintes de 1821, e o mé- morte. A estatuária, desenvolvendo uma iconografia
dico portuense com formação francesa Francisco As- feita de alegorias (Saudade, Fé, Esperança e Carida-

32 7
CEMITÉRIOS

de) e pequenos motivos apelativos (ampulheta com


asas, a foice, o facho, o mocho, a abelha, o morcego,
a urna, entre outros - cf. CARVALHO - A necrópole),
exorta à piedade, ao sentimento e à vaidade. A re-
presentação imagética dos defuntos, ou pelo menos
daqueles com maior importância, aliam-se outros
elementos relacionados com a ordem social, como
sucede com pedras de armas ( c f . VALDEZ - Subsí-
dios): a morada eterna deveria assumir o mesmo
semblante que a morada terrena (SOUSA - Ser, p. 3 1 5 ) ,
e por isso se compreendem as enormes somas de di-
nheiro gastas essencialmente pela burguesia ou titula-
res de recente criação - por ex., o jazigo do visconde
de Valmor, no Cemitério do Alto de São João (ANA-
CLETO - O neomanuelino, p. 1 5 8 - 1 6 1 ) ; dos condes de
Burnay no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa; o do
conde do Ameal, no Cemitério da Conchada, em
Coimbra, ou o dos condes de Santiago de Lobão, no
de Agramonte, no Porto - na edificação de jazigos.
No entanto, a mais portentosa construção funerária
portuguesa encontra-se no Cemitério dos Prazeres,
em Lisboa, sendo propriedade da família dos duques
de Palmela. O conjunto, particularmente aparatoso,
possui determinadas características de natureza maçó-
nica. Ao fundo de uma alameda com ciprestes, situa-
-se um templo piramidal com um pórtico de imponen-
tes dimensões, e na sua concepção e ornamentação
escultórica intervieram nomes como Cinatti, Teixeira
Lopes e Camels (FLORES - Jazigo, p. 6 6 - 8 1 ) . Quanto
às tipologias de construções existentes nos cemi-
térios portugueses, podemos mencionar os jazigos-
-capelas, os pedestais em coluna com estatuária, os
baldaquinos, os montes de pedras encimados por Vista geral do Cemitério da Conchada. Coimbra.
cruz (calvários), a simples laje, os pedestais com cai-
xão, as arcas, entre outros, cuja sistematização ne- construções funerárias: os portões, os gradeamentos
cessita de um estudo mais aprofundado, realizado e as próprias capelas dos cemitérios. Para o estudo
com base numa análise a nível nacional. Pelas tipo- de todas estas construções recomendamos a consul-
logias apresentadas se revela que a tentativa de des- ta de fontes manuscritas e iconográficas (plantas
sacralização da morte no cemitério romântico não dos cemitérios e alçados das construções) presentes
foi absoluta, pois a grande abundância de construção essencialmente nos núcleos arquivísticos munici-
de capelas e a presença de calvários são sinais por pais e nas juntas de freguesia, bem como nos fun-
demais evidentes da tentativa de transposição do sa- dos dos diversos governos civis. Após as primeiras
grado para estes locais. Quanto aos aspectos artís- décadas do século xx, com o abandono de inúmeros
ticos presentes nos cemitérios, uma das dimensões jazigos e o descuido em que caíram muitos outros,
mais relevantes assenta nas influências das correntes ocasionados por uma tendência para a despersonali-
eclécticas oitocentistas. De facto, os revivalismos zação da morte e até da atitude perante os restos
encontram-se bem presentes nos cemitérios românti- mortais, dado o desenvolvimento das sociedades
cos, o que bem se compreende se tivermos em linha contemporâneas, por um lado, e pela tendência ac-
de conta que os respectivos desenvolvimentos se de- tual para a criação de espaços verdes, com os conse-
ram genericamente na segunda metade de Oitocen- quentes cemitérios-jardins {cf SOUSA - Ser, p. 317),
tos e primeiras décadas da centúria seguinte. Assim, por outro, uma das possíveis soluções de aproveita-
podemos observar capelas neogóticas (na sua verten- mento destes espaços urbanos e rurais poderá residir
te mais simples ou neomanuelinas) e neo-românicas, na respectiva musealização, nos casos que assim o
mas algumas também revelando influências egíp- justifiquem. Tal sucede com os cemitérios do Alto
cias, tanto em Lisboa (cf. FLORES - Cemitérios, de São João e dos Prazeres, em Lisboa, da Concha-
p. 9 4 - 1 0 3 ) como no Porto. Quanto aos edificadores da, em Coimbra, e com o Cemitério do Prado do Re-
dos jazigos, impõe-se uma progressiva inventaria- pouso, de Agramonte e da Venerável Irmandade da
ção dos mestres canteiros que os levaram a cabo Lapa, no Porto.
(presentemente encontramos já bastantes elementos G O N Ç A L O DE VASCONCELOS E SOUSA
para os cemitérios portuenses: cf. SOUSA - Subsí-
dios, vol. 2, p. 1 7 5 - 1 9 5 ; QUEIROZ - O ferro, vol. 3 , BIBLIOGRAFIA: A N A C L E T O , Regina - O neomanuelino ou a reinvenção da
arquitectura dos Descobrimentos. [S.l.]: CNCDP; IPPAR, D.L. 1994.
p. 8 1 - 1 1 4 ; QUEIROZ - A primeira, p. 5 5 1 - 5 5 5 ) . Pre- BARROCA, Mário Jorge - Neerópoles e sepulturas medievais de Entre-
sentemente, muitos são os elementos construídos a -Douro-e-Minho (século v a xv). 522 p. il. Trabalho apresentado em
salientar nos cemitérios, para além das já referidas 1987 no âmbito das Provas Públicas de Aptidão Pedagógica e Capaci-
dade Científica na FLUP. C A B R A L , João; F E I J Ó , Rui - Um conflito de ati-

328
C E N T R O A C A D É M I C O DE D E M O C R A C I A C R I S T Ã

tudes perante a morte: A questão dos cemitérios no Portugal contempo-


râneo. In F E I J Ó , Rui G.; M A R T I N S , Hermínio; C A B R A L , João de Pina -
tes católicos, indignados com a provocação aos seus
A morte no Portugal contemporâneo: Aproximações sociológicas, lite- sentimentos religiosos, resolveram reagir e, depois
rárias e históricas. Lisboa: Querco, D L. 198, p. 175-208. C Â M A R A M U - de várias reuniões, decidiram fundar um centro aca-
NICIPAL DO P O R T O . Pelouro da Limpeza e Serviços Gerais - Arte e silên-
cio. [Porto]: Pelouro de Limpeza e Serviços Gerais da Câmara
démico. Pensaram de início chamar-lhe Centro Na-
Municipal do Porto, [1989], CARVALHO, José Alberto Seabra [et al.] - cional Académico, mas acabariam por mudar-lhe o
A necrópole romântica como museu da morte: Arquitectura e simbólica nome, em 1903, para Centro Académico de Demo-
tumulares nos primeiros cemitérios públicos de Lisboa. História. 124
(1990). CARVALHO, José Alberto Seabra; C A T R O G A , Fernando - O cemi- cracia Cristã, não apenas para evitar a confusão com
tério romântico. In A N A C L E T O , Regina - O neomanuelino ou a reinven- os Centros Nacionais, então em desenvolvimento, e
ção da arquitectura dos Descobrimentos. [S.l.]: CNCDP; 1PPAR, D L. que dariam origem, nesse ano, ao Partido Naciona-
1994, p. 75-85. C O U T I N H O , B. Xavier - A deseristianização de Portugal
no século XIX. In MISCELLANEA Historiae Ecclesiasticae III. Louvaina, lista (v. PARTIDOS POLÍTICOS CONFESSIONAIS), mas tam-
1970, p. 359-379. Separata. D I A S , Pedro - História da arte em Portu- bém para traduzir o alinhamento com o movimento
gal: 4: O gótico. Lisboa: Alfa, cop. 1986. D I A S , Vítor Manuel Lopes - social católico mundial, que adoptara ideológica
Cemitérios jazigos e sepulturas. [S.l.]: Ed. do Autor, imp. 1963. FLO-
RES, Francisco Moita - Jazigo da família Palmela: Uma simbólica do e organicamente a forma de «democracia cristã», e
Antigo Regime e da ordem maçónica. História. 152 (Maio de 1992) 66- que recentemente evoluíra de uma fase eminente-
-81. F L O R E S , Francisco Moita [et al.] - Cemitérios de Lisboa: Entre o
real e o imaginário. [Lisboa]: Câmara Municipal, 1993. L E N O R M A N D -
mente associativa, voltada para a «recristianização
- R O M A I N , Antoinette - Mémoire de marbre: La sculpture funéraire en operária» - de que os Centros Católicos de Operá-
France (1804-1914). [Paris: Agence Culturelle de Paris], 1995. Q U E I - rios eram expressão por excelência -, para uma nova
ROZ, Francisco - A primeira oficina de cantaria de mármores do Porto:
Notas para uma biografia de Emídio Carlos de Sousa Amatucci
fase de reforço da formação doutrinária, através dos
(1811-1872). O Tripeiro. 7: 2 (1998) 51-55. IDEM - Cemitérios oitocen- Círculos de Estudos lançados em França por Leon
tistas portugueses: Os museus da morte. Museu. Porto: Círculo Dr. José Harmel. O CADC seria assim um centro de estudos
de Figueiredo. 4: 7 (1998) 89-106. Q U E I R O Z , José Francisco Ferreira - O
ferro na arte funerária do Porto oitocentista: O Cemitério da Irmanda- e de acção, estreitamente ligado aos Círculos Cató-
de de Nossa Senhora da Lapa (1833-1900). 164 p. + 175 p. + 130 p. licos de Operários, fundados em Portugal em 1898,
Dissertação de mestrado em História da Arte apresentada na FLUP e às demais estruturas do movimento social católi-
em 1997. S O U S A , Gonçalo de Vasconcelos e - A transferência dos res-
tos mortais de Francisco de Almada e Mendonça para o Cemitério do co, para recristianizar o ambiente universitário
Prado do Repouso. O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do Porto. coimbrão e, através dele, a sociedade portuguesa
7: 13: 6 (Jun. 1994) 181-185. Separata. IDEM - Cemitérios portuenses: (v. CATOLICISMO SOCIAL). A «democracia cristã» de
história e arte. 12 vol. Trabalho do Seminário de Património Cons-
truído apresentado em 1994 no âmbito da licenciatura em Ciências que se reclamava era entendida, na esteira das encí-
Históricas (Ramo do Património) da Universidade Portucalense, no clicas de Leão XIII, como uma democracia apenas
Porto. IDEM - Subsídios para uma iconografia da morte no Porto no
século xix: 1. Poligrafia. Arouca: Centro de Estudos D. Domingos de
social, e não ainda como democracia política. Por
Pinho Brandão. 3 (1994) 129-152. IDEM - Ser e estar perante a morte isso rejeitavam os estudantes democratas-cristãos
no Porto dos séculos xix e xx: reflexos no património cemiterial. Lusi- qualquer comprometimento político e, em especial,
tania Sacra. Lisboa: UCP/Centro de Estudos de História Religiosa.
2: 6 (1994) 309-325. IDEM - Alguns elementos para a história dos ce-
qualquer instrumentalização por parte das novas for-
mitérios portugueses: Um conflito entre a Câmara Municipal do Porto ças nacionalistas, de forte inspiração católica conser-
e a mitra em torno da Quinta do Prado do Bispo. Museu. 4: 4 (1995) vadora. Se bem que encontrassem sede própria, embo-
322-330. IDEM - Subsídios para uma iconografia da morte no Porto do
século xix: 2. Humanística e Teologia. Porto: Faculdade de Teologia
ra não definitiva, logo em 1904, só no ano seguinte
da Universidade Católica do Porto. 16: 1-2 (1995) 175-213. V A L D E Z , obtêm a legalização, com a aprovação oficial, civil e
Ruy Dique Travassos - Subsídios para a heráldica tumular moderna eclesiástica dos seus estatutos, muito contribuindo
olisiponense. 2.' ed. Porto: Livraria Esquina, 1994. VAZ, Francisco
d'Assis de Sousa - Memoria sobre a inconveniência dos enterros nas para tal a figura tutelar do Doutor Francisco José de
igrejas e utilidade da construção de cemiterios. Porto: Imprensa de Sousa Gomes, professor de Química Inorgânica e di-
Grandra e Filhos, 1835. rigente do movimento católico. O número de sócios,
em 1905, era já de uma centena. Mas a projecção do
CENSUAIS. V. ECONOMIA.
centro na academia e no país, para além das reu-
niões periódicas sobre temas sociais e religiosos que
CENTRO ACADÉMICO DE DEMOCRACIA CRISTÃ. 1. se realizavam, iria dar-se sobretudo com o apareci-
O CADC foi fundado mento, nesse ano, da revista Estudos Sociais, na qual
Fundação e primeiros tempos:
por estudantes católicos da Universidade de Coim- os estudantes católicos iriam assumir posições avan-
bra* em 1901, para responder ao agravamento da çadas e inovadoras, desse modo contribuindo para
questão religiosa ocorrido nesse ano no país (v. IGRE- uma mais aguda consciência social católica e pa-
JA E ESTADO. I I I . ÉPOCA CONTEMPORÂNEA). O «escânda- ra uma maior difusão das experiências sociais e polí-
lo Calmon» - nome por que ficou conhecido o caso ticas que os católicos democratas iam ensaiando lá
da tentativa frustrada de fuga de uma filha do cônsul fora. Para além das simpatias pelo movimento fran-
do Brasil no Porto para professar, contra vontade dos cês de Le Sillon e pelo movimento italiano de Don
pais, numa ordem religiosa - fora pretexto para a Romulo Murri, que seriam depois desautorizadas por
adopção de uma série de medidas pelo governo de Pio X, sob a acusação de modernistas, os Estudos
Hintze Ribeiro contra as ordens religiosas. Um de- Sociais criticavam o despotismo czarista da Rússia,
creto de 18 de Abril obrigava os institutos religiosos aceitavam a separação do Estado da Igreja, que ocor-
a submeterem a aprovação oficial os seus estatutos, e rera em França em 1905, e criticavam a instrumen-
proibia-lhes o regime de clausura, o noviciado e os talização política da Igreja pelo conservadorismo,
votos. Contra estas disposições se insurgiram os bis- defendendo que a acção da Igreja deveria ser «abso-
pos, e de um modo especial o bispo do Porto* lutamente democrática e abertamente popular». Tan-
D. António Barroso, que viria a ser apupado na Sala to bastou para que sobre a revista fossem lançadas
dos Capelos da universidade, a 28 de Junho, quando acusações de «modernismo» pela Revista Católica
ali se dirigiu por ocasião de um doutoramento sole- de Viseu, das quais se defendeu pela pena autorizada
ne, como padrinho do novo doutorando. Os estudan- do Prof. Sousa Gomes, que na sombra a protegia.

329
C E N T R O A C A D É M I C O DE D E M O C R A C I A C R I S T Ã

0 que não impedia que continuasse a defender a jus-


tiça social, as classes desprotegidas, a educação po-
pular, como manifestações do espírito cristão. Os ca-
tólicos deveriam ser sociais e democratas, e chegam
a admitir um entendimento com os socialistas, na
critica ao capitalismo, desde que eles deixem de ser
revolucionários e anarquistas. Ao CADC de Coim-
bra outros se seguiram, de menor importância e ex-
pressão, em Lisboa, Porto e Braga, tendo-se chegado
a constituir em 1909 uma União da Juventude Católica
Portuguesa. Mas a revolução republicana, e a persegui-
ção que moveu à Igreja, iria desmantelar o movimento
e motivar o seu relançamento pouco depois. 2. A rea-
bertura do CADC e a luta à política anti-religiosa da
1 República: Com a revolução republicana, o CADC
foi desmantelado, a sua sede saqueada e encerrada.
A perseguição à Igreja expulsara os bispos das dioce-
ses e decapitara o movimento social católico. No Ve-
rão de 1911, um grupo de estudantes católicos decide
reagir ao clima de hostilidade e prepara o lançamento,
que ocorrerá em 1912, de um jornal de combate -
O Imparcial - dirigido por Manuel Gonçalves Cere-
jeira, e no qual colaborarão António de Oliveira Sa-
lazar, Diogo Pacheco de Amorim, Joaquim Diniz da
Fonseca, Francisco Veloso, José Nosolini e outros.
E reabrem o CADC em 8 de Dezembro desse ano,
sob a direcção de Cerejeira e Salazar, e constituem a
partir dele a Federação das Juventudes Católicas
Portuguesas, que organiza o seu primeiro congresso
em Coimbra em 1913. O CADC assume por isso um
carácter defensivo e combativo, e a sua actuação re-
vela-se de cunho mais conservador do que no perío-
do anterior. Os seus militantes envolvem-se na luta
pela liberdade religiosa e pela liberdade da Igreja, e
distinguem-se nas lutas académicas pelo empenho
na qualificação da vida universitária. E quando em
1917 é fundado o Centro Católico, notabilizam-se
entre os seus activistas, vindo até a tornar-se seus di- Fachada do Centro Académico de Democracia Cristã,
rigentes e deputados após a reestruturação operada Coimbra.
depois do sidonismo, em 1919, dando então corpo à
política, preconizada pelo papa, de ralliement com traduzir-se na contraposição de listas para a direcção.
a República. Os centristas que a partir de 1926 vão No pós-guerra, o ressurgimento da democracia cristã
ser chamados ao governo, à frente dos quais Salazar, nos países onde foram derrotados regimes tota-
saíram na sua grande parte das fileiras do CADC. litários e autoritários (Alemanha, Itália, Áustria e
Em 1919, o jornal O Imparcial cessou a sua publica- França), apoiado pela radiomensagem de Pio XII no
ção, aparecendo em 1922 a nova revista Estudos do Natal de 1944, fez ressurgir no CADC a simpatia por
CADC, que se publicará ininterruptamente até 1970. expressões políticas de democracia cristã, e pelo neo-
3. O CADC e a Acção Católica Portuguesa*: E m tomismo de Maritain e pelo «personalismo cristão»
1932 foram aprovadas as Bases da Acção Católica, de matriz francesa. Algumas posições assumidas pe-
sendo o CADC integrado nela, como parte da Ju- los Estudos provocaram acusações de politização.
ventude Universitária Católica (a sua secção uni- E em 1949, um dos seus dirigentes apareceu publica-
versitária) e na Juventude Escola Católica (a sua mente a apoiar a candidatura presidencial de oposi-
secção escolar ou liceal). Os seus dirigentes, porém, ção de Norton de Matos. Ao longo dos anos 50, o
continuaram a ser eleitos, e não nomeados, como o fascínio pelas ideias da democracia e das liberdades
eram os restantes dirigentes da Acção Católica. foi crescendo no CADC. Após o I Congresso da
O seu estatuto de «organismo autónomo» da Acção JUC de 1953, os Estudos reflectem uma maior aten-
Católica Portuguesa só em 1950 viria contudo a ser ção aos problemas sociais dos universitários, e às ac-
reconhecido oficialmente. Como organismo da Ac- tividades circum-escolares e associativas, entendidas
ção Católica, alheio a qualquer intervenção política, como actividades formativas quer do ponto de vista
o CADC não deixou porém de conhecer algumas cli- moral quer social. A repressão soviética da revolu-
vagens dessa natureza, nomeadamente a que dividiu ção húngara, em 1956, suscitaria uma forte reacção
monárquicos, de pendor mais integralista, e «centris- dos estudantes do CADC, que organizaram uma jorna-
tas», que subordinavam as suas preferências políti- da de solidariedade com os estudantes e operários em
cas à militância católica, clivagem essa que chegou a luta pela liberdade, de colaboração com a JOC de
330
CHANCELARIAS

Coimbra. A reivindicação de liberdade para a «Igreja ramento pela autoridade eclesiástica e à sua substi-
do silêncio» tinha reflexos internos, fazendo crescer tuição pelo Instituto Justiça e Paz, nos primeiros
o apreço doméstico pela liberdade política e pela au- anos de 70.
tonomia universitária e associativismo estudantil. Por M A N U E L BRAGA DA C R U Z
isso, a direcção do CADC vai opor-se ao Decreto-Lei BIBLIOGRAFIA: C E R E J E I R A , M. G. - Vinte anos de Coimbra. Lisboa: Gama,
n.° 40 900, rejeitando a «demasiado ingerência do Es- 1 9 4 3 . C R U Z , G . Braga da A Revista de Legislação e Jurisprudência:
tado na livre associação dos indivíduos e consequen- Esboço da sua história. Coimbra, 1 9 7 5 - 1 9 7 7 . 2 vol. C R U Z , M. Braga da
- /Is origens da democracia cristã e as origens do salazarismo. Lisboa:
temente também nos organismos académicos, pois Presença; GIS, 1 9 8 0 . ESTUDOS do CADC. ( 1 9 2 2 - 1 9 7 0 ) . Sobretudo nú-
aquela gera um paternalismo deformador e estiolan- meros especiais das Bodas de Prata, n.° 4 7 - 4 8 de Março-Abril de 1 9 2 6 ,
s

e das Bodas de Ouro, n. 2 9 8 - 3 0 1 de Junho-Novembro de 1 9 5 1 . ESTU-


te», como diziam os Estudos, em 1956. E com a os

DOS Sociais. ( 1 9 0 5 - 1 9 1 1 ) . FERREIRA, A. Matos - Aspectos da acção da


maior simpatia pela participação democrática dos ci- Igreja no contexto da 1 R e p ú b l i c a . In M E D I N A , João - História contem-
dadãos na vida pública, crescia também a atenção porânea de Portugal. Lisboa: Amigos do Livro, 1 9 8 6 , p. 2 0 7 - 2 1 8 . G R E -
GÓRIO, N . ; G A R R I D O , A . ; L O P E S , P. S. - Ideologia, cultura e mentalidade
aos problemas sociais, objecto de um ciclo de confe- no Estado Novo: Ensaios sobre a Universidade de Coimbra. Coimbra:
rências, em 1958, entre as quais uma do bispo do Faculdade de Letras, 1 9 9 2 . IMPARCIAL (O). ( 1 9 1 2 - 1 9 1 9 ) . N O G U E I R A , Fran-
Porto. Nas eleições presidenciais desse ano, que di- co - Salazar. Coimbra: Atlântida, 1 9 7 7 , vol. 1, 2 . Os 90 ANOS do CADC.
Coimbra, 1 9 9 1 . S E A B R A , J.; A M A R O , A . R.; Nunes, J. P. Avelãs -
vidiram o mundo católico pela atitude do bispo do O CADC de Coimbra, a democracia cristã e os inícios do Estado Novo.
Porto, a direcção do CADC foi mesmo ao ponto de Coimbra: Faculdade de Letras, 1 9 9 3 . T R I N D A D E , M. Almeida - O P. Me-
fazer uma avaliação do regime, enaltecendo os méri- lo e a sua época (1885-1951). Coimbra: Castelo, 1958.
tos (paz, ordem, progresso económico e prestígio in- CENTROS SOCIAIS, v. CATOLICISMO SOCIAL.
ternacional) mas criticando também as deficiências
(ausência de liberdade de imprensa, abusos da polí- CEUTA. V. MARROCOS.
cia política, desequilíbrios sociais, fragilidades da
assistência e da educação). Tais posições suscitariam CHANCELARIAS (séculos xi-xv). Chancelaria era,
reacções de sectores mais conservadores. Manuel antes de tudo, um serviço encarregado de elaborar,
Anselmo, nos seus Cadernos, acusaria o CADC de validar e emitir actos escritos em nome, entre outros,
«sacristia anti-salazarista» e de «catolicismo pro- dos condes portucalenses (chancelaria condal), em
gressista». 4. A crise ultramarina e as crises estu- nome dos reis (chancelarias régias), em nome dos
dantis: O começo da «guerra de Angola» e a ocupa- bispos ou arcebispos (chancelarias episcopais ou
ção de Goa, em 1961, levaram o CADC, onde as arquiepiscopais) ou em nome de particulares (chan-
preocupações missionárias haviam aumentado, a celarias particulares). As chancelarias portuguesas
identificar-se com as preocupações de defesa do ul- dos séculos xi a xv tiveram sempre, pois, a primor-
tramar. E o despoletar das crises estudantis, como a dial função de garantir a vida político-administrati-
de 1961, suscitou no CADC, a par da preocupação va, em primeiro lugar do condado, e depois da cúria
pelo associativismo, a da defesa da autoridade. régia, das dioceses, das câmaras, dos tribunais, das
O ataque aos lares religiosos de estudantes, por oca- casas particulares, nobres ou não. Função que exigia,
sião do Convívio, nos começos de 1961, e a publica- além das indispensáveis condições materiais de es-
ção na Via Latina da «Carta à Jovem Portuguesa», crita (V. SCRIPTORIA), uma mão-de-obra especializada.
atacando a moral dominante como conservadora, 1. A chancelaria condal e régia (séculos xi-xin): N u -
provocou a reacção crítica do CADC. A destituição ma sociedade na sua maioria analfabeta, foi aos
da direcção da Associação Académica, e a suspen- membros do clero regular e secular, praticamente os
são da Via Latina, na sequência dos acontecimentos únicos possuidores do saber e do poder da escrita,
do Dia do Estudante, com a radicalização de posi- que coube redigir e grafar os documentos, indepen-
ções e a instrumentalização política da luta estudan- dentemente dos autores, dos destinatários ou da res-
til pela oposição ao regime, puseram o CADC numa pectiva natureza. Coevamente designados por nota-
posição de difícil equilíbrio. Se por um lado fazia as rius, notator, scriba e scriptor, entre outros termos,
suas reivindicações estudantis de restabelecimento estes notários e escrivães, se é que a terminologia nos
da vida associativa, por outro lado recusava essa ra- autoriza a distingui-los, provinham dos mosteiros ou
dicalização e instrumentalização política que rejei- das igrejas. Aos primeiros caberia redigir os actos ju-
tou a mediação moderadora de professores e afron- rídicos enquanto aos segundos, tão-só escrevê-los.
tava as autoridades académicas, ao lado das quais Notários e escrivães separados, algumas vezes, pelas
se pôs. Essa posição, apodada de «direita», custou- funções exercidas estavam sempre unidos pela con-
-lhe algum isolamento no movimento associativo dição de homens da Igreja. Durante o governo dos
desses anos, profundamente radicalizado. Mas nos condes portucalenses, foi primeiro ao cónego da Co-
últimos anos da década de 60 o CADC, agitado legiada de Guimarães, Petrus Munionis, e depois ao
também pelos ventos pós-conciliares, e cada vez subdiácono da Sé de Braga*, Mendo Feijão, que foi
mais aberto aos problemas sociais e políticos do entregue a responsabilidade da incipiente chancela-
tempo, aproximou-se mais do movimento estudan- ria. Este serviço, aliás, deveria ter sido no começo
til, acabando por ser envolvido pela dinâmica da muito elementar, sendo certo que a maior parte dos
crise de 1969. Os Estudos publicarão alguns núme- actos era elaborada por notários estranhos à chance-
ros especiais sobre os problemas da universidade e laria. Consciente de que era no clero que residia a
sobre a crise académica, manifestando o seu ali- capacidade de garantir o funcionamento da scribania
nhamento, embora moderado, com a contestação do futuro reino, o infante D. Afonso Henriques, por
estudantil. A crise de 1969 abalaria o CADC, parti- carta de 27 de Maio de 1128, doou todos os direitos
cularmente a sua unidade, obrigando ao seu encer- da chancelaria régia ao então arcebispo de Braga,
331
CHANCELARIAS

Paio Mendes. Na realidade, os arcebispos desta igre- D. Fernando, este último de forma não tão signifi-
ja nunca tomaram posse efectiva deste privilégio cativa, assistirão por vários motivos, entre eles o
mas a prática provou à sociedade como o fizeram, de Grande Cisma do Ocidente*, a um recuo dos ecle-
facto. Basta lembrar que à Igreja de Braga perten- siásticos em todo o oficialato régio, inclusive nos
ceram os seguintes chanceleres do primeiro rei de lugares da chancelaria. Anunciavam-se tempos de
Portugal: Pedro Roxo (1128-1140), arcediago; Pê- mudança. Maior complexidade administrativa, mais
ro ([1134]-1141), subdiácono; Elias (1141), cape- burocracia, mais documentação, exigência de um
lão; mestre Alberto (1142-1169), arcediago; Paio pessoal cada vez mais apto e profissionalizado. Com
(1147-1153), subdiácono; Pedro Feijão (1169-1181), D. João 1 dar-se-á resposta a estes desafios mas será
cónego secular. Se com alguma admiração regista- ainda adiada, por algumas décadas, a desproporção
mos, entretanto, o aparecimento de um leigo, Julião entre clérigos e leigos ( c f . H O M E M - O desembargo,
Pais, como chanceler de D. Afonso Henriques, de p. 471-473). Clérigos emblemáticos deste período
seu filho e de seu neto, continuou a presença invariá- foram João Afonso de Azambuja (1384-1395), Rui
vel de eclesiásticos no cargo de notário. De assina- Lourenço (1386-1401) e João Afonso Aranha (1398-
lar, porém, que com o movimento da Reconquista*, -1401). Já no século xv refira-se D.Fernando da
de norte para sul, os clérigos deixam de ser recruta- Guerra, arcebispo de Braga (1416-1418). Todos de for-
dos predominantemente na Sé de Braga. Provêm, en- mação intelectual elevada deram, em grau e natureza
tão, da Sé e do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, variáveis, um extraordinário contributo para o funcio-
do Mosteiro de Alcobaça* e ainda da Sé de Lisboa*, namento da chancelaria joanina. Com efeito, o Por-
ao cabido da qual pertenceu, como chantre, Fernan- tugal do século xv continuava a exigir, e cada vez
do Peres, notário de D. Sancho 1 (cf. SANTOS - Fer- mais, homens alfabetizados, homens cultos, juristas,
nando Peres, p. 56) e mestre Vicente, deão, chance- legistas, só que, então, estes homens já não eram
ler de D. Sancho II. Pelo que fica dito, irresistível se obrigatoriamente clérigos. Estes começavam a perder
torna não encontrar relação entre este escol de chan- um monopólio (e com ele cargos e benefícios) que,
celeres e notários e o prestígio e organização que a na realidade, tinham conservado durante vários sécu-
chancelaria régia alcançou com D. Afonso II. Prestí- los. Era um dos sinais da irreversível, ainda que mui-
gio e organização consubstanciados, entre outros as- to lenta, laicização da sociedade. E se no caso da
pectos, no aparecimento do primeiro livro de registo chancelaria régia, e de uma maneira geral no desem-
de chancelaria, fenómeno verdadeiramente pioneiro bargo, podemos assinalar, a partir de D. Duarte, um
na Europa. Infelizmente, todavia, a aptidão do pes- acentuado declínio do papel dos clérigos, doravante
soal da chancelaria não conseguiu vencer a desordem desempenhado pelos letrados (cf. FREITAS - A buro-
administrativo-política que se seguiu no reinado de cracia, p . 1 3 1 s s . ; M O T A - Do «Africano», p . 5 9 ) ,
D. Sancho II e, por isso, além da ausência do registo forçoso é lembrar que já desde meados do século xin
dos actos escritos, outros sinais houve de alguma per- os membros do clero, regular e secular, tinham perdi-
turbação. Com a subida ao trono de D. Afonso III, a do total hegemonia, como notários, aquando da cria-
ordem foi restaurada e a relação notário/eclesiástico ção do tabelionado público. Aliás, foi mesmo a Igreja
não se alterou. Muitos deles pertenciam mesmo ao que por várias determinações canónicas proibiu aos
grupo dos clerici regis que emergiu, como uma elite, e seus membros o exercício de uma profissão que consi-
no topo da qual estava o chanceler destinatário de derava officium inhonestum (cf. SANTOS - Da visigóti-
muitas doações régias ( c f . VENTURA - A nobreza, ca, p. 242). 3. Outras chancelarias: A partir de fins do
vol. 1, p. 142-143; vol. 2, p. 995). Esta situação século xiv, e produto do fortalecimento do poder régio
manteve-se até aos finais do reinado de D. Dinis, e da complexidade da administração central e local,
calculando-se que entre 1320 e 1330 o clero tenha terá lugar uma proliferação de chancelarias quer na
obtido quase um terço dos lugares no desembargo cúria régia (a da Casa dos Contos, a da Casa do Cível,
régio, conservando sempre o de chanceler, entretanto a da Casa da Suplicação), quer fora dela. Citem-se as
desvalorizado pela criação do cargo de escrivão da chancelarias das câmaras, dos mosteiros, dos bispos,
puridade ( c f . H O M E M - O desembargo, p. 177). Fo- entre tantas outras. De todas a que melhor hoje conhe-
ram chanceleres de D. Dinis duas eminentes figuras cemos é a da Sé de Braga, que após a restauração e
da nossa Igreja, D. Domingos Anes Jardo e D. Estêvão até ao século xin teve um funcionamento caracterizado
Anes Brochado, nomeados bispos respectivamente de por uma gradual intensidade na elaboração de actos
Évora (1285) e de Coimbra (1304). 2. A chancelaria escritos, primeiro a cargo sobretudo de clérigos de ori-
régia (séculos xiv-xv): O reinado de D. Dinis foi, gem desconhecida, e depois de notários públicos ou
sem dúvida, um período de grandes inovações a ní- outros ligados ao bispo (cf. C U N H A - La chancellerie,
vel da chancelaria. A adopção da língua portuguesa p. 503 ss.). Pelos fins de Trezentos, a chancelaria co-
como o idioma oficial foi, talvez, a mais importante. meça a revelar sinais de desorganização (cf. MAR-
Observando os livros de registo da chancelaria ve- QUES - A chancelaria, p. 28). Coube então a D. Fer-
rifica-se que, à excepção de algumas cartas de pro- nando da Guerra, chanceler-mor do reino, como atrás
veniência eclesiástica, escritas em latim, todas as já vimos, a introdução de um conjunto de reformas
outras são já redigidas em português. A isso junte- que culminaram em 1460 com a constituição de um
-se ainda o facto de o rei Lavrador ter sido o pri- regimento, logo seguido de um outro passados quatro
meiro a autografar cartas régias. A D. Dinis sucedeu anos. Deles ressalta uma variadíssima tipologia de car-
D. Afonso IV, cuja organização e características da tas e respectivas taxas, bem como a discriminação das
chancelaria pouco diferem da anterior (cf. PEREIRA - funções do pessoal que o serviço empregava (cf. Ibi-
Diplomatique, p. 145). Os reinados de D. Pedro e de dem, p. 89 ss.). Ficaram, pois, lançadas na Catedral de

332
CHINA

Braga, nos meados do século xv, as bases de uma naturalmente bom, pelo que se fosse educado e cres-
chancelaria bem organizada, bem estruturada e de fun- cesse numa sociedade justa e virtuosa desenvolveria
cionamento prático e eficaz. Quanto a outras chance- essa bondade inata. Cheng (Zheng) de Ch'in, o fun-
larias, o desconhecimento é aindaMARIA
muito grande. dador do Império, chamara a si o título de Filho do
JOSÉ AZEVEDO SANTOS Céu, usado pelos antigos reis da China, reclamando
BIBLIOGRAFIA: A Z E V E D O , Rui de Documentos medievais portugueses: assim o «mandato do Céu». «Havia um aspecto reli-
Documentos régios. Lisboa: APH, 1 9 5 8 e 1 9 6 2 , vol. 1 / 1 , 1 / 2 . IDEM -
O livro de registo da chancelaria de Afonso II de Portugal ( 1 2 1 7 - 1 2 2 1 ) .
gioso nesta harmonização do Céu e da Terra, mas o
Anuário de Estúdios Medievales. 4 ( 1 9 6 7 ) 3 5 - 7 4 . C O S T A , Avelino de Je- Homem tinha aí um lugar central e o Céu confun-
sus da - La chancellerie royale portugaise jusqu'au milieu du XIII siè- dia-se com a Natureza» (CHARBONNIER - Histoire,
p. 55) Tratava-se, pois, de um sistema bem diferen-
c

cle. Revista Portuguesa de História. 1 5 ( 1 9 7 5 ) 1 4 3 - 1 6 8 + 2 2 gravuras.


C U N H A , Maria Cristina Almeida e - La chancellerie archiépiscopale de
Braga ( 1 0 7 1 - 1 2 4 5 ) . In REFERATE Zum VIII Internationale Kongress fur te do que seria desenvolvido pelo Ocidente cristão,
Dipíomatik. Innsbruck, 1 9 9 6 , p. 5 0 3 - 5 1 0 . IDEM - Chancelarias parti- em que o poder espiritual se impôs ao poder tem-
culares, escrivães, documentos: algumas notas a propósito da Ordem de
Avis nos séculos xni-xiv. In E N C O N T R O SOBRE O R D E N S MILITARES, 1 - Ac- poral, mas em que os dois se distinguiam. Aos
tas: As ordens militares em Portugal. 1 9 9 1 , p. 1 8 1 - 1 8 9 . IDEM - A chan- Ch'in sucederam os Han (206 a. C.-230 d. C.). Foi
celaria do arcebispado de Braga (1071-1245). Porto, 1 9 9 8 . FREITAS, Ju- nesta época que a China começou a irradiar como
dite Antonieta Gonçalves - A burocracia do «Eloquente» (1433-1438):
Os textos, as normas, as gentes. Cascais, 1 9 9 6 . G A R C I A Y G A R C I A , Anto- um foco civilizacional e a considerar-se o centro do
nio, dir. - Synodicon Hispanum. Madrid: BAC, 1 9 8 2 . H O M E M , Armando mundo - o Império do Meio. 2. Os primórdios do
Luís de Carvalho O desembargo régio (1320-1433). Porto: INIC, cristianismo na China: Os primeiros cristãos terão
1 9 9 0 . M A R Q U E S , José - O regimento da chancelaria arquiepiscopal de
Braga no século xv: tipologia documental e taxas. Revista da Faculda- chegado à China vindos da Pérsia pela rota da seda.
de de Letras. 9 ( 1 9 9 2 ) 8 7 - 1 0 6 . IDEM - A chancelaria e a diplomática ar- Eram nestorianos e beneficiaram da expansão chi-
quiepiscopais de Braga nos finais da Idade Média. Revista de História.
1 2 ( 1 9 9 3 ) 2 5 - 4 6 . M O T A , Eugênia Pereira da - Do «Africano» ao «Prín-
nesa para Ocidente, conduzida pelos T'ang (Tang -
cipe Perfeito» (1480-1483): Caminhos da burocracia régia. Porto, 618-906). Vestígios arqueológicos atestam a exis-
1 9 8 9 , vol. 1 e 2 . Policopiado. PEREIRA, Isaías da Rosa [et al.] - Diplo- tência de mosteiros cristãos em território chinês des-
matique royale portugaise: Alphonse I V ( 1 3 2 5 - 1 3 5 7 ) . In C O L L O Q U E D I -
PLOMATIQUE ROYALE DU M O Y E N A G E XIII -XIV SIÈCLES - Actes. Porto,
de o início do século vn. Os textos cristãos em lín-
C C

1 9 9 6 , p. 1 3 3 - 1 6 1 . S A N T O S , Maria José Azevedo Fernão Peres: ex- gua sínica mais antigos que se conhecem datam de
-chantre da Sé de Lisboa. In UM MOSTEIRO cisterciense: S. Paulo de Al- 635 e 641, mas o mais célebre é, sem dúvida, a este-
maziva (sécs. xui-xvi). Lisboa, 1 9 9 8 , p. 5 5 - 7 5 . IDEM - Da visigótica à
carolina: a escrita em Portugal de 882 a 1172. Lisboa: JNICT; FCG, la de Hsi-an-fú (Xi'anfu), gravada em 781. O cristia-
1 9 9 4 . IDEM - A chancelaria de D . Afonso II: Teorias e práticas. In LF.R e nismo foi perseguido pelos oficiais imperiais a partir
compreender a escrita na Idade Média. Lisboa, 2 0 0 0 , p. 1 1 - 5 8 . V E N T U - do decreto contra as religiões estrangeiras de 845,
RA, Leontina - A nobreza de corte de Afonso III. Vol. 1 e 2. Dissertação
de doutoramento apresentada à FLUC em 1992. Texto policopiado. cujo alvo principal era, contudo, o budismo*. Mais
tarde, porém, beneficiou do aparecimento dos Mon-
CHANTRE. K góis, que nos séculos x e x i dominaram a Ásia Cen-
DIGNIDADES ECLESIÁSTICAS.
tral, e que no século xn começaram a conquista da
CHAVES. V.
China, chefiados por Gengiscão (1167-1227). O po-
VILA REAL.
derio dos Mongóis e o seu espírito tolerante levou o
CHINA1. 1. O mundo chinês: A civilização chinesa Ocidente cristão a tentar uma aproximação. Em
nasceu no Shan-hsi (Shanxi) zona fértil do curso mé- 1245, o papa enviou um observador, o franciscano
dio do Huang-Ho (Huang he). Encravada entre a es- João de Pian di Carpine, que regressou passados dois
tepe da Ásia Central e o oceano Pacífico, desenvol- anos e que escreveu uma História dos Mongóis. Em
veu-se sem grandes influências externas, mas 1253, outro frade menor, Guilherme de Rubruck, foi
exerceu, desde cedo, uma grande atracção sobre os enviado pelo rei de França. Em 1289, o papado reto-
povos nómadas do interior que a invadiram ciclica- mou a iniciativa e Nicolau IV enviou mais um fran-
mente. Foi no Shan-hsi que se deu a sedentarização ciscano, João de Montecorvino (1247-c. 1336), co-
dos primeiros chineses e que depois surgiu a civili- mo seu legado à corte de Kubilai Cã (1214-1294).
zação histórica com o advento da dinastia Chang O religioso só chegou a Pequim após a morte de Ku-
(Zhang - 1766-1112 a. C.). O Império surgiu muito bilai, mas o seu filho, Timur (r. 1294-1307), mante-
mais tarde, em 221 a. C., quando os Ch'in (Qin) pu- ve a mesma política de abertura, que seria seguida
seram fim à anarquia que se seguira ao desmoronar por todos os imperadores da dinastia Yüan (Yuan -
da dinastia Chou (Zhou - 1112-453 a. C.). O pensa- 1279-1368). João de Montecorvino teve tempo para
mento religioso chinês caracteriza-se por um animis- desenvolver um trabalho apostólico importante, em-
mo elaborado, que fora enriquecido no século v a. C. bora toldado por conflitos com os nestorianos, so-
pela ética confuciana. Confúcio fora um pequeno bretudo nos primeiros tempos. Em 1305, Frei João
nobre, conselheiro do príncipe Lu, e os seus ensina- passou a estar acompanhado pelo seu confrade Ar-
mentos tinham sobretudo um carácter moral e políti- naldo de Colónia; já teria então baptizado cerca de
co. Perante a crise do mundo feudal, Confúcio de- 6000 pessoas. Em 1307, Clemente V enviou um gru-
fendera o respeito da tradição. Do ponto de vista po de sete bispos franciscanos* e nomeou Montecor-
religioso havia um cepticismo para com o sobrenatu- vino arcebispo de Pequim. Apenas três prelados che-
ral, mas não se negavam as crenças tradicionais; fi- garam ao seu destino, em 1313, mas puderam
losoficamente, o homem era concebido como um ser desenvolver o seu ministério tranquilamente. E inte-
ressante notar que quando Montecorvino morreu,
Existem vários sistemas de transcrição de palavras chinesas; por volta de 1336-1337, foi o próprio imperador
1

utilizámos o de Wade, que é fonético; no entanto, na primeira quem enviou um emissário ao papa pedindo a sua
citação de cada palavra, quando é diferente, indicamos tam- substituição. Bento XII respondeu enviando, em
bém a sua transcrição no sistema Pinyin, sistema fonológico 1342, o maior grupo de missionários que então de-
que foi adoptado pela República Popular da China.
333
CHINA

mandou a China, de que 32 sobreviventes chegaram e a participar em cerimónias de homenagem a Con-


ao destino sob o comando de Frei João de Marignoli. fúcio; dava, assim, um passo ousado no sentido de
Com o passar do tempo as comunicações entre o se acomodar à cultura local. Este trabalho lento e
Ocidente e o Império Chinês começaram a ser difi- aparentemente pouco produtivo provocou a impa-
cultadas pela expansão do Islão na Ásia Central, e, ciência das autoridades eclesiásticas, e Cláudio Àc-
em 1368, foram interrompidas abruptamente com o quaviva, o geral da Companhia (1581-1615), chegou
surgimento na China de uma nova dinastia naciona- a sugerir que se desistisse da evangelização da China
lista, a dos Ming (1368-1644). Os Europeus perderam e que se experimentasse o Pegu (na actual Birmâ-
assim o contacto com o Império do Meio, mas na sua nia), onde os Portugueses andavam muito mais li-
memória perduraram as páginas do Livro de Marco vremente. No entanto, quando a carta chegou ao
Polo (1254-1324), o célebre viajante, que estivera na Extremo Oriente, já a missão dava novos sinais de
China entre 1274 e 1292. Estas, porém, jamais des- esperança. Ricci, o primeiro «missionário-manda-
pertaram grande interesse entre os dirigentes da ex- rim», e novo superior (1597-1610), lograra passar
pansão lusa, que nunca se preocuparam em tentar para lá das fronteiras do Kwangtung; visitara Nan-
descobrir o reino do Cataio. Com a chegada a Can- quim em 1595 e no ano seguinte fundara uma nova
tão de um pequeno grupo de portugueses, comanda- residência em Nan-shang, a capital do Chiang-hsi
do por Jorge Álvares, em 1513, os Europeus reata- (Jiangxi); em 1598, regressou a Nanquim e deslo-
ram os contactos com os Chineses, mas no trono do cou-se pela primeira vez a Pequim. Depois conse-
Dragão continuavam os Ming, pouco interessados guiu abrir uma casa em Nanquim, em 1599, e em
em contactos com o exterior, que cedo entraram em 1601 instalou-se definitivamente em Pequim. Os
conflito com os recém-chegados, pelo que os oficiais missionários estavam agora estabelecidos nas duas
do rei de Portugal acabaram por abandonar o mar cidades mais importantes do Império. Por esta altura
da China em 1522. Estas águas passaram a ser fre- o número de cristãos começou a crescer: eram 400
quentadas por aventureiros, que viriam a criar con- em 1600 e atingiram o milhar em 1604, quando a
dições para a fixação lusa no Extremo Oriente, com missão se autonomizou da de Macau; em 1608 já se
a descoberta do Japão*, em 1543, a autorização de contavam 2000 fiéis, servidos agora por 18 religio-
permanecer na zona de Cantão, em 1554, e o esta- sos. Eram, evidentemente, números irrisórios no
belecimento em Macau*, a partir de 1557. Em 1564, contexto do mundo chinês, mas resultavam de um
os Jesuítas* fundaram a sua casa de Macau, onde trabalho paciente que não apostava em resultados
já viveriam outros clérigos, e onde se instalou o imediatos. Com efeito, o grande objectivo dos pri-
bispo D. Melchior Carneiro (1513-1583), em 1568. meiros missionários foi o de conseguirem ser acei-
3. A missão jesuíta: Foi em Dezembro de 1582 que tes; o que era importante no momento não era a con-
os Jesuítas conseguiram finalmente introduzir dois versão de muitas pessoas, mas tornar a civilização
religiosos no interior do Império Chinês: Miguel chinesa permeável à ocidental; sem que isso suce-
Ruggieri (1543-1607) e Francisco Pasio (1554-1612) desse o Evangelho não seria escutado, pelo que urgia
fundaram a missão de Chao-ching (Zhaoqing), na cativar os oficiais do Império, os mandarins e a pró-
província de Kwangtung (Guangdong). No ano se- pria família imperial. Além disso, era preciso encon-
guinte, Mateus Ricci (1552-1610) substituiu Pasio e, trar um ponto em que os Ocidentais se mostrassem
em 1584, os religiosos publicaram o primeiro cate- mais competentes do que os sábios do Império do
cismo em chinês, a Verdadeira explicação do Senhor Meio, para que se tornassem respeitados. Ricci en-
do Céu. No início, a missão manteve um carácter as- controu essa «brecha» na Matemática e na Astrono-
saz marginal, pois até 1595 nunca estiveram aí mais mia, pois os padres foram capazes de prever vários
que cinco missionários, e estes obtiveram pouquíssi- eclipses com maior exactidão que os astrónomos da
mas conversões. A própria base da missão continua- corte. Ora, na China cabia ao imperador estabelecer
va a funcionar em Macau, pois o seu primeiro supe- uma boa relação entre o Céu e a Terra, o que passava
rior, Francisco Cabral (1582-1585), nunca deixou a por um domínio perfeito do calendário, e logo em
cidade portuguesa, e o seu sucessor, Duarte de Sande 1611 a corte pediu aos Jesuítas que o reformassem.
(1585-1597), só permaneceu no interior do celeste Criava-se, assim, um paradoxo, pois a fim de pode-
império por dois curtos períodos, em 1585-1587 e rem propagar o cristianismo, os Jesuítas colabora-
1591-1592. Entretanto, em 1588, os religiosos foram vam com o imperador auxiliando-o a realizar com
expulsos de Chao-ch'ing e mudaram-se para Shao- melhor exactidão e eficácia as tarefas próprias do
-chou (Shaozhou), ainda na província do Kwang- Filho do Céu. Curiosamente, os ataques ao método
tung. Foi essencialmente um período de aprendiza- de acomodação nunca se centraram nesta questão de
gem, em que, para lá do prosseguimento do estudo fundo, que nos parece muito discutível, mas antes
da língua e da forma de traduzir os conceitos da fé em aspectos de pormenor. Embora alguns religiosos
cristã, os missionários procuraram perceber qual se- trabalhassem com populações camponesas, que vi-
ria a melhor conduta para se fazerem aceitar pela po- viam nos arredores das grandes cidades, a maior
pulação. Primeiro experimentaram um modelo se- atenção dos superiores da missão concentrou-se na
melhante ao do Japão, e procuraram equiparar-se aos capital imperial. Em 1615, a missão chinesa tornou-
monges budistas. Estes, porém, não tinham na China -se numa vice-província da nova Província do Japão,
a mesma influência e prestígio social que no país do criada em 1611. A morte de Acquaviva, em 1615,
sol nascente, pelo que Ricci, contrariando Ruggieri, provocou alguma demora no envio das instruções,
apostou na acomodação a um outro grupo social - os pelo que o primeiro vice-provincial foi o padre Ma-
mandarins. Ricci passou a vestir-se como mandarim nuel Dias Júnior (1623-1635). Por volta de 1630, a

334
CHINA

Estela funerária, século xvm, Pequim. Colecção Gonçalo Couceiro.

Companhia ensaiou uma divisão da China em duas -hsi (Kangxi - r. 1661-1723). Durante a sua menori-
viee-províncias, mas em 1650 toda a missão estava dade, os regentes perseguiram o cristianismo, mas o
de novo reunida numa única. Entretanto, a cristanda- imperador reabriu o país aos missionários em 1671
de crescera consideravelmente: dos 2000 fiéis de e, a 22 de Março de 1692, promulgou um édito de
1608, subiu para 5000 em 1613 e para 13 000 em tolerância a favor do cristianismo. Nesta altura, a
1627, apesar das perseguições de 1616 e de 1622, missão jesuítica cindira-se, pois a 28 de Janeiro de
que foram particularmente graves em Nanquim. Em 1685 Luís XIV criara a Missão dos Matemáticos do
1637, os cristãos seriam mais de 40 000, rondariam Rei, confiada aos jesuítas franceses, e dependente da
os 60 000 em 1640, para atingir os 150 000 por mea- Coroa gaulesa, o que representava um desafio aos
dos do século. Se olharmos para o número global direitos de padroado da Coroa lusa. O primeiro gru-
da população, verificamos que constituíam apenas po partiu de imediato para o Celeste Império sob a
0,1 % do seu total, mas importa notar que o número chefia de Jean de Fonteney (1643-1710) e, em 1700,
de religiosos nunca ultrapassou um máximo de 32, e o geral da Companhia, Tirso Gonzalez (1687-1705),
que o Império viveu então as dramáticas convulsões criou uma vice-província dos padres franceses, inde-
da passagem da dinastia Ming para a Ch'ing (Qing - pendente da que estava ligada à Igreja portuguesa.
1644-1911). Apesar disso, foi precisamente o pri- Nesse mesmo ano partiu para a China o primeiro vi-
meiro imperador Ch'ing, Shunchih (Shunzhi - 1644- ve-provincial, Jean-François Gerbillion (1654-1707),
-1661) que, em 1644, nomeou Adam Schall (1592- que chefiou aquele grupo até à sua morte. Entretan-
-1666) presidente do tribunal de astronomia, cargo to, entre 1709 e 1718, missionários mandarins per-
que seria desempenhado a seguir por Ferdinand Ver- correram o Império a organizar o mapa global da
biest (1623-1688), entre 1669 e 1688, e por mais dez China. Mais tarde, em 1749, os padres Félix da Ro-
jesuítas até 1805. Quer isto dizer que, apesar de mui- cha (1713-1781) e August von Hallerstein (1721-
tas dificuldades, o método jesuítico estava a frutifi- -1774) andaram pelos confins da Tartária a fim de
car. O número de cristãos era insignificante, mas traçar o mapa da região; temos notícia doutras expe-
constituía uma realidade quase impensável havia dições semelhantes, como as de José Espinha (1722-
meio século. Calcula-se que em 1664 o número de -1788), em 1755 à Tartária Ocidental, e de Félix da
cristãos andaria pelas 200 000 almas e que em 1700 Rocha, em 1774 e 1777, ao Tibete Oriental. Entre-
atingiu as 300 000. A esperança aumentou durante tanto, a notícia da supressão da Companhia chegou a
os primeiros anos de governo do imperador K'ang- Pequim a 5 de Agosto de 1774, quando estavam aí
335
CHINA

17 religiosos, dez da vice-províneia francesa, e os


restantes da portuguesa. 4. A querela dos ritos:
O anúncio do Evangelho às populações ultramarinas
constituiu, sem dúvida, um dos maiores desafios que
se colocaram à Igreja nos tempos modernos. A tarefa
não era fácil para uma civilização que absorvera o
cristianismo havia um milénio, e que perdera quase
totalmente a prática da missionação havia cerca de
cinco séculos. Ao retomarem o contacto com os gen-
tios, os cristãos demoraram a perceber que era ne-
cessário recorrer a uma evangelização metódica e
sistemática. Quando esta se iniciou, os missionários
procuraram definir métodos de relacionamento com
os nativos. A partir de meados do século xvi, come-
çaram a distinguir-se dois modelos diferentes: um
que transmitia um cristianismo europeizado, outro
que privilegiava a adaptação da mensagem cristã às
culturas locais. O primeiro foi o mais comum, sobre-
tudo nos centros coloniais, onde se podia reproduzir
o quotidiano das cidades europeias. O clero que o
seguia tinha dificuldade em distinguir os valores ge-
nuinamente cristãos de toda uma tradição que havia
resultado da cristianização de ritos pagãos durante a
conversão da Europa. A acomodação era um método
mais puro, pois procurava expurgar as verdades do
Evangelho de toda a roupagem cultural europeia,
que envolvia a vida tradicional da Igreja, e tentava,
acima de tudo, cristianizar o pensamento e as práti-
cas pagãs de cada povo. Era, por isso, um método
polémico, pois a maioria dos europeus identificava a
vivência do cristianismo com os ritos e com as práti-
cas da sua civilização e não compreendia que a sua
religião pudesse ser vivida através doutras cerimó-
nias. Para lá deste problema, era muito difícil discer-
nir o limite exacto até onde podia ir a acomodação; é
Tela de D. Frei Angelino de São José, vigário apostólico
do grão-mogol (óleo sobre tela, séculos xvm-xix). Lisboa,
provável que, por vezes, nomeadamente na China, Convento dos Cardais.
os missionários tenham ultrapassado a fronteira, sus-
citando algumas críticas justas, mas em regra empo- Padroado. A questão dos ritos chineses prende-se
ladas. As dúvidas levantadas pela sua acção geravam com a acção dos Jesuítas desde que lograram ser
fortes discussões, sobretudo devido a dois factores. aceites no interior do Celeste Império. Quando co-
A Igreja pós-tridentina, que fizera da uniformização meçaram a trabalhar aí, estavam sozinhos, o que fa-
uma das suas prioridades, via em qualquer desvio à cilitava o ensaio de práticas mais ousadas. Como vi-
norma o potencial embrião de uma heresia. Trauma- mos atrás, Ricci e os seus companheiros vestiram-se
tizada pelos cismas recentes, a maioria dos clérigos como mandarins e procuraram desde cedo mostrar as
via com desconfiança os comportamentos, excêntri- boas qualidades da civilização ocidental; além disso,
cos aos seus olhos de europeus, desse pequeno grupo começaram a participar em cerimónias públicas de
de missionários. A Contra-Reforma* contribuía, as- homenagem a defuntos, seguindo assim uma prática
sim, para o reforço das convicções eurocentristas confucionista; estas, na perspectiva dos letrados e no-
que sustentavam a ideia, cada vez mais forte, da su- bres com quem os padres conviviam, não eram tanto
perioridade da civilização europeia. Os partidários actos de culto mas antes reuniões sociais, na medida
da acomodação eram quase só jesuítas; no Extremo em que se evocavam os mortos mas não se louvava
Oriente a separação entre jesuítas e mendicantes nenhuma divindade. Procurando integrar-se na so-
coincidia com a divisão entre o Padroado* Português ciedade nativa, tentando assim que a Igreja não fosse
do Oriente e o Patronato espanhol, o que gerou polé- vista como um corpo estranho, Ricci adoptara ex-
micas e conflitos particularmente violentos. No seio pressões já existentes na língua local para expressar
do Padroado Português, e no da própria Companhia, ideias cristãs. Escolheu, por exemplo, tsi, que servia
nunca houve unanimidade sobre esta matéria, mas as habitualmente para designar as cerimónias em honra
discórdias foram resolvidas discretamente e não dos defuntos, para designar a missa, e T'ien (o Céu,
as encontramos referidas nos grandes manuais sobre num sentido metafísico) e Shang Ti (o «Sumo Se-
a história da Igreja ou sobre a história missionária. nhor» - expressão por que era referido o imperador)
Afigura-se-nos, assim, que as disputas missionológi- para Deus. Do ponto de vista teológico, o jesuíta
cas mais célebres, a dos ritos chineses e a dos ritos movia-se em terrenos inseguros, mas a sua principal
malabares, foram exacerbadas pela concorrência que preocupação era evitar que os Chineses rejeitassem a
opôs os padres do Patronato e da Propaganda aos do religião cristã a priori, sem aprofundarem o seu co-
336
CHINA

nhecimento. Alguns padres, nomeadamente o padre nários da Companhia, que lhes eram úteis e que
Nicolau Longobardo (superior de 1610 a 1622), que respeitavam a sua civilização, ao contrário dos fra-
não trabalhavam junto dos mandarins e que contac- des, que procuravam aplicar aí o método da tábua ra-
tavam mais frequentemente com população de ca- sa, tal como haviam praticado na América e nas Fili-
madas sociais mais baixas, notaram que as cerimó- pinas. Em 1645, os Dominicanos* conseguiram uma
nias a Confúcio e aos defuntos eram neste caso primeira condenação do método jesuítico. Em 1656,
verdadeiros actos de culto, pelo que se opuseram às a situação alterou-se, pois a Santa Sé promulgou um
práticas de Ricci; estas, porém, foram adoptadas de- «novo decreto que distinguia entre costumes religio-
finitivamente pelos Jesuítas na conferência de Chia- sos e costumes nacionais, e permitia estes últimos,
-t'ing (Jiading), em 1628. A pacificação interna da nos quais incluía o culto dos ancestrais, conquanto
missão seguiu-se, todavia, o início de um conflito se evitasse qualquer superstição» (TÜCHLE - Nova,
muito mais complexo, cuja decisão final não seria p. 266). Em 1669, o papado, pressionado, caía na
tomada no Celeste Império, mas em Roma, onde a ambiguidade e declarava que o decreto de 1656 não
civilização chinesa era praticamente desconhecida. revogava a condenação de 1645. No final do século,
A contestação ao modelo jesuítico partiu dos Mendi- novas tentativas de compromisso mantiveram a falta
cantes, vindos de Manila, que se instalaram no Fu- da uniformidade que a Igreja tanto procurava. Em
kien (Fujian), em 1633, e que foram então dispensa- 1693, o vigário apostólico do Fukien, formado no
dos de respeitarem as vias do Padroado Português do Seminário das Missões Estrangeiras de Paris, proibiu
Oriente, pelo breve Ex debito pastoralis Officii. No os religiosos sob a sua jurisdição de seguirem o mé-
entanto, a atitude dos recém-chegados, em vez de re- todo de Ricci, ainda que a decisão papal de 1656 o
forçar a acção apostólica no Império do Meio, divi- permitisse. Inocêncio XII e Clemente XI deram par-
diu-a e enfraqueceu-a. Habituados a trabalhar quase ticular atenção ao assunto, e parece que ambos se in-
só em zonas conquistadas, os mendicantes do Patro- clinavam para as posições dos padres da Companhia,
nato dedicaram especialmente a sua atenção às ca- que, entretanto, haviam enviado uma declaração do
madas populares e, ignorando a experiência acumu- próprio imperador chinês em que este atestava que
lada dos jesuítas do Padroado, acusaram-nos de as cerimónias em honra de Confúcio e dos antepas-
participar em ritos gentílicos. A disputa institucio- sados eram meros actos cívicos; os opositores, po-
nalizou-se em 1645 com a primeira intervenção da rém, contra-atacaram com pareceres de doutores da
Santa Sé* e arrastou-se até 1742. O problema era as- Universidade de Sorbonne que contestavam viva-
saz complexo, pois envolvia questões puramente mente a metodologia jesuítica. A chegada à China
missionológicas, relativamente à possibilidade de se do comissário e visitador apostólico, e legado a late-
estar a praticar actos que não se coadunavam com os re, Maillard de Tournon, patriarca de Antioquia, en-
princípios do cristianismo, e também questões mais dureceu as posições. Em 1704, Tournon promulgou
programáticas, relacionadas com os objectivos dos um decreto que proibia os clérigos de seguirem os ri-
missionários, que variavam entre uma perspectiva de tos chineses, o que o colocou contra o imperador,
trabalho a longo prazo e o desejo de obter rapida- que o expulsou para Macau, em 1706. Aí o prelado,
mente muitos baptizados. A esta complexidade do entretanto nomeado cardeal, foi detido pelos Portu-
ponto de vista estritamente religioso acrescentou-se, gueses, a mando do imperador, até que faleceu em
em nosso entender, um outro problema de carácter 1710. Descontente com as queixas que lhe chegavam
político, marcado em primeiro lugar pela Restaura- do Extremo Oriente, o papa obrigou, em 1714, os
ção da independência de Portugal, em 1640, e depois prelados da China a publicarem imediatamente o de-
pela entrada em cena dos padres da Propaganda, li- creto de 1704, o que aumentou o desagrado da corte
gados predominantemente à Coroa francesa. Assim, chinesa. A 17 de Dezembro de 1706, Pequim impu-
em meados de Seiscentos formou-se uma frente co- sera que os missionários residentes na China tives-
mum contra a hegemonia lusa, que perdurou depois sem uma autorização imperial, que só era dada aos
do final da Guerra da Restauração, em 1668. Entre religiosos que se comprometessem a respeitar a civi-
1645 e 1742 a atitude da Santa Sé variou, mas a po- lização chinesa. K'ang-hsi nunca hostilizou aberta-
sição dos Jesuítas foi sempre mais débil, o que se mente o cristianismo e, em 1711, permitiu a insta-
compreende: por um lado constituíam o grupo que lação na capital dos padres lazaristas, e no ano
actuava fora dos padrões europeus - era a sua acção seguinte autorizou a criação aí de uma missão orto-
e não a dos Mendicantes que causava estranheza; doxa russa; no entanto, assim que morreu, a 20
por outro, o papado só reconheceu a independência de Dezembro de 1722, o seu sucessor Yungcheng
de Portugal em 1668, pelo que durante 28 anos os (Yongzheng - r. 1723-1736) desencadeou uma nova
interesses lusos foram praticamente ignorados pela perseguição. Apesar de alguns períodos de acalmia,
diplomacia papal, o que isolou ainda mais a Compa- as perseguições prosseguiram ao longo do século,
nhia. Mesmo depois de 1668, Roma continuou em tendo sido particularmente severa a de 1746-1748,
litígio com os Braganças por causa da autonomia sobretudo na região do Fukien. A disputa terminou
dos agentes da Propaganda. Neste contexto, os inte- quando Bento XIV promulgou, a 11 de Julho de
resses desta congregação tinham um maior peso na 1742, a bula Ex quo singulari, que condenava defini-
cúria romana que os d'el-rei de Portugal. O apoio tivamente os métodos jesuíticos. Esta decisão provo-
que os Jesuítas recebiam da corte imperial chinesa cou forte reacção entre os Chineses e o cristianismo
aumentava provavelmente a desconfiança dos que ti- continuou a ser hostilizado. Aqui, como no Japão, as
nham uma visão eurocentrista. Os imperadores chi- rivalidades entre as monarquias europeias, de que
neses, por sua vez, preferiam o trabalho dos missio- as ordens religiosas não se souberam libertar, tive-

337
CHINA

ram como vencedor o paganismo. 5. A entrada do portugueses em 1669, e o papa só aboliu definitiva-
Patronato e da Propaganda na China: Apesar do mente a jurisdição dos bispos do Padroado nos terri-
território chinês fazer parte do Padroado Português tórios sob a alçada dos vigários apostólicos em
do Oriente, os Espanhóis sempre ambicionaram in- 1696-1697. 6. Os bispados de Pequim e de Nan-
terferir aí. Após a ocupação das Filipinas, os agosti- quim: Entretanto, em 1690, Roma cedeu às pressões
nhos Frei Martin de Rada e Frei Jerónimo Martin, de D. Pedro II e fundou as dioceses de Pequim e de
em 1575, e um grupo de franciscanos chefiados por Nanquim, sufragâneas da arquidiocese dc Goa*, em-
Frei Pedro de Alfaro, em 1579, tentaram, sem êxito, bora criasse, ao mesmo tempo, três vigariarias apos-
abrir missões na China, no que foram seguidos pelos tólicas dependentes da Propaganda. O rei português
Dominicanos a partir de 1590. A persistência dos procurou então restabelecer uma certa harmonia en-
mendicantes de Manila levou-os a estabelecerem-se tre os membros da Igreja e indicou como primeiros
no Fukien, em 1633, quando aí desembarcou o do- prelados os vigários apostólicos residentes na China,
minicano António Cocchi, logo seguido pelo seu Della Chiesa para Pequim, e Ló para Nanquim, mas
confrade Juan Batista Morales e pelo franciscano este morreu antes de saber da sua nomeação. Em
Antonio Caballero. Os frades pregadores concentra- 1693, Inocêncio XII nomeou para a sé nanquinense
ram a sua actividade no Fukien, enquanto os de São o jesuíta D. Alexandre Cícero, que a ocupou até à
Francisco se espalharam pelo país. Os Agostinhos*, sua morte em 1703. Depois, o bispado esteve vago
por sua vez, realizaram a primeira experiência em por muitos anos; em 1705 era governado pelo jesuíta
1680, encabeçados pelo padre Frei Álvaro de Bena- António da Silva, por comissão do arcebispo de
vente, que, contudo, entrou na China a partir de Ma- Goa. A 21 de Setembro de 1718, foi sagrado em Lis-
cau. A missão agostinha durou apenas um quarto de boa o novo bispo de Nanquim, D. António Pais Go-
século, e depois só foi restabelecida em 1877. Du- dinho, que nunca chegou a partir para a China, pelo
rante uma centúria, a actividade missionária na Chi- que a 14 de Fevereiro de 1721 foi sagrado novo bis-
na decorreu sem que fosse criada alguma diocese. po, D. Frei Manuel de Jesus Maria (7-1739), que
O seu território estava assim subordinado ao bispo chegou a Macau a 7 de Agosto de 1722 e que se de-
de Macau, mas este não tinha, de facto, autoridade teve na sua diocese por muito pouco tempo devido à
sobre os missionários. A Santa Sé começou a tentar perseguição, tendo regressado ao reino. Sucedeu-lhe
alterar este estado de coisas através da instituição de D. Frei Francisco de Santa Rosa de Viterbo, nomea-
vigararias apostólicas, ligadas à Sagrada Congrega- do em 1742 e que morreu na China em 1750. Se-
ção de Propaganda Fide. Curiosamente, o primeiro guiu-se-lhe, em 1752, o jesuíta austríaco D. Godo-
vigário apostólico nomeado para a China acabou por fredo Lambekowen (7-1787), que trabalhou sempre
ser um clérigo do Patronato. Em 1649, Inocêncio X em território chinês, mesmo em períodos de perse-
nomeou o franciscano António de Santa Maria vigá- guição. Depois, só em 1804 foi bem sucedida a no-
rio apostólico das missões orientais franciscanas, meação de um novo bispo, D. Caetano Pires Pereira,
cargo que este desempenhou até ao seu falecimento, que governou a sua diocese a partir de Pequim, onde
em 1669, na cidade de Cantão. Apostada em apro- desempenhava as funções de mandarim. Ápós a sua
fundar o trabalho missionário na Ásia Oriental e morte, em 1838, a diocese foi desligada do Padroado
pressionada pela França, que desejava interferir na Português do Oriente. No que respeita ao bispado de
região, em 29 de Julho de 1658 a Santa Sé fez sagrar Pequim, D. Francisco da Purificação (1725-1734)
bispos os padres François Pallu (1626-1684) e Pierre sucedeu a Della Chiesa. Seguiu-se o jesuíta D. Poli-
Lambert de La Motte (7-1679). O primeiro foi no- carpo de Sousa, que partiu para a China em 1741.
meado vigário apostólico do Tonquim com jurisdi- À sua morte sucederam novas disputas pois a Santa
ção sobre as cinco províncias chinesas mais próxi- Sé tentou, sem êxito, que o rei nomeasse para o car-
mas, e ao segundo cabia o governo da Cochinchina* go o italiano Frei José de Santa Teresa. A Coroa aca-
e de quatro províncias do Império Chinês. Passados bou por nomear, em 1779, o italiano D. João Damas-
dois anos Inácio Cotolendi (1630-1662) foi nomeado ceno Salústio, que morreu pouco depois. A 2 dc
vigário apostólico da China Oriental com residên- Fevereiro de 1783 foi sagrado bispo de Pequim
cia em Nanquim. Estas medidas tiveram pouco D. Frei Alexandre de Gouveia, que logo rumou para a
efeito na China, pois só Pallu a visitou nos últimos China e aí viveu até à sua morte, em 1808; foi o últi-
dez meses da sua vida. Entretanto, Roma escolhera mo bispo titular da diocese enquanto esta permaneceu
um outro vigário apostólico, o chinês Gregório Ló ligada ao Padroado Português. Coube a Gouveia
(1616-1691), um dominicano que devia exercer o manter vivas as pequenas comunidades que haviam
seu ministério a partir de Nanquim. No entanto, co- sobrevivido às perseguições da centúria setecentista
mo esta nomeação ia contra os interesses quer do rei (V. MACAU).
de Espanha, quer do de Portugal, nenhum bispo es-
tante no Extremo Oriente se atreveu a sagrar o domi- J O Ã O PAULO OLIVEIRA E COSTA
nicano, nem La Motte nem Pallu conseguiram que
ele viesse ao seu encontro. Assim, só em 1685 o bis- BIBLIOGRAFIA: Fontes: W I C K I , José - Documenta Indica. Roma: Ins-
po Bernardino delia Chiesa, que também fora envia- titutum Historicum Societatis lesu, 1 9 4 8 - 1 9 8 8 . 1 8 vol. Estudos:
C H A R B O N N I E R , Jean - Histoire des chrétiens de Chine. Paris: Desclée,
do à China como vigário apostólico, sagrou Gregó- 1 9 9 2 . D E H E R G N E , Joseph Répertoire des Jésuites de Chine de 1552 à
rio Ló. Embora nomeasse e enviasse vários prelados 18(10. Roma; Paris: Institutum Historicum Societatis lesu; Letouzey
ligados à Propaganda para a China, o papado demo- & Ané, 1 9 7 3 . D U T E I L , Jean-Pierre - Le mandat du Ciel, le rôle des jé-
suites in Chine. Paris: Éditions Arguments, 1 9 9 4 . G E R N E T , Jacques -
rou a clarificar a sua situação jurídica, pois as no- Le monde chinois. 2 . " ed. Paris: Armand Colin, 1 9 7 2 . G R A N E T , Marcel
meações de 1658 só foram comunicadas aos bispos - La religion des chinois. Paris: Imago, 1 9 8 0 . l. ed. 1 9 5 1 . G U E N N O U ,
a

Jean - Missions étrangères de Paris. Paris: Fayard, 1 9 8 6 . G U T I E R R E Z ,

338
CIÊNCIA

Lucio - Historia de ia iglesia en Filipinas. Madrid: Mapfre, 1992. Génesis. O temor do orgulho científico causa na
IRIARTE, Lázaro - História franciscana. Petrópolis: Vozes, 1 9 8 5 . R A -
MOS, João de Deus - A missão do padre Francisco Cardoso S. J., en- apologia o temor de toda a ciência, e mesmo de toda
viado do vice-rei da índia ao imperador Kangxi ( 1 7 0 8 - 1 7 1 1 ) . In S E M I - a filosofia, sendo múltiplos os lugares selectos da
NÁRIO INTERNACIONAL DE H I S T Ó R I A I N D O - P O R T U G U E S A : A S RELAÇÕES mística e da pedagogia que orientam o aprendiz para
ENTRE A ÍNDIA P O R T U G U E S A , A Á S I A DO S U E S T E E O E X T R E M O O R I E N T E , 6 -
Actas. Macau, 1 9 9 3 , p. 8 3 - 9 4 . R O D R I G U E S , Francisco - Jesuítas portu- a via do despojamento, com fuga ao saber temporal.
gueses astrónomos na China. 2.' ed. Macau: Instituto Cultural de Ma- Na medida em que introduz na ciência, a filosofia
cau, 1 9 9 0 . S P E N C E , Jonathan D. - Le palais de mémoire de Matteo constitui, para alguns paideutas medievais, um risco
Ricci. Paris: Payot, 1 9 8 6 . T Ü C H L E G . ; B O U M A N , C. A . - Nova história
da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1983, vol. 3 (Reforma e Contra- ético a evitar. A divisão do saber em «sciencias se-
-Reforma). glaares» e em «cuidaçom celestrial» testemunha, já
uma epistemologia do saber, introdutória das ciên-
CIÊNCIA. Sistema dos saberes, define-se como o co- cias naturais e das ciências sociais, separadas das
nhecimento de um sujeito, por uma certeza à luz das ciências teológicas, já uma orientação crítica e selec-
causas, cognitio certa per causas. O nome latino tiva, que persuada a cuidar mais do tesouro celeste
scientia visou traduzir o grego mathêma, mas não o do que do saber do mundo. O septívio é inócuo se
traduziu em plenitude, porque a ciência requer o do- não introduzir o septeta no oitavo céu, isto é, na vi-
mínio de todas as esferas, o conhecimento do círculo são mística. A nossa literatura medieval (v.g. Horto
universal, a enciclopédia. Ciência engloba também a do esposo, Boosco deleytoso, Leal conselheiro, e t c . )
filosofia e a teologia*, a história e a matemática, mas abunda nestas matrizes pedagógicas, tal como suce-
a semântica epistemológica alguma vez tendeu a de na literatura iniciática do judaísmo* e do sufismo.
considerar que o nome ciência é genérico, sendo pre- A filosofia, itinerário da sofia, da ciência e da sa-
ferível a forma plural ciências, que abrangeriam as piência, conclui-se, não tanto numa ciência aplicati-
ciências empíricas, com exclusão da filosofia e da va e pragmática, como numa sapiência teorética e
teologia, o que aliena a regra de ouro da epistemolo- beatitudínica. A ciência sabe e afirma o saber em
gia segundo o critério platónico e aristotélico, pois processo de fazer, como se fosse a mão da indústria,
que a epistêmé é o conhecimento perfeito, envolven- a sapiência sabe e afirma o processo de viver, como
do a capacidade de relacionamento dos princípios se fosse a mão da ascensão interior. A ciência consti-
universais e a sua deriva para a teoria e a prática de tui-se em quatro grandes disciplinas: a analítica ou
cada um das ciências, faculdades, ou saberes. Estes lógica, ancilar das demais artes e seu instrumento de
não são compartimentos estanques, mas fracções do expressão e juízo; a física, que estuda o ser natu-
mesmo ser, do mesmo universal tecido que ao co- ral enquanto tal; a matemática, que visa o ser natural
nhecimento se propõe, e este conhecimento requer como quanto ou imóvel; e a ontologia, que tem por
princípios, meios e fins, uma causa de princípio, objecto o ser enquanto ser e é, por isso, ciência pri-
uma causa de método e uma causa final. O septívio meira (ARISTÓTELES - Tópicos, p. 145; Metafísica,
clássico compendia os princípios e os meios em vis- p. 1206 ss.). A escolástica apresenta tendência para o
ta da causa final, não excluindo a religião* do pró- dualismo ciência/sapiência, ampliando a distinção e
prio saber, e considerando que o saber acerca do di- a diferença do que deveria ser uno e idêntico. O trí-
vino é a mais excelente causa de toda e qualquer vio tanto garante a ascensão para a teologia como a
ciência, de onde a tensionalidade entre os conceitos iniciação no quadrívio, facultando dois movimentos:
de sapiência e de filosofia, de sábio e de filósofo que o que transita do quadrívio para a cuidação celestial
são, também eles, degraus de um mesmo caminho, e o que permanece no quadrívio, dele não saindo,
como ensinou o mais antigo magistério. O iluminis- optando pela fixação no quadro das ciências natu-
mo* radicalizou a tensionalidade: os que sabem, ou rais, com recusa das ciências espirituais. Tanto no
amam o saber (= ciência) são de duas espécies: os escotismo (doutrinas de João Duns Escoto, mestre
sábios, que possuem a teoria das ciências puras e das espiritual franciscano), como no tomismo encontra-
ciências aplicadas, e os filósofos, que apenas conhe- mos uma viva apelação aos valores: as ciências natu-
cem as artes especulativas, não saindo do esquema rais cuidam das substâncias naturais, mas a verda-
trivial, enquanto o sábio domina trívio e quadrívio. deira ciência a que a filosofia induz é a teologia. Os
A expressão popular de que «alguma coisa é trivial», escritos de Pedro Hispano (1210-1277, o português
significa um juízo minorativo das artes do trívio, e que foi papa, com o nome de João XXI), de Santo
um juízo majorativo das ciências do quadrívio, che- António, de Gomes de Lisboa (f cerca de 1520,
gando a supor-se que o trivial é o desprezível. franciscano, antiaverroísta), para só mencionar três
O diagnóstico da tensão lógica entre trívio e quadrí- referenciais, atestam a distinção, mas testemunham a
vio, patente na mais recuada escolástica, ainda se favor das ciências divinas para além das ciências na-
acha por estabelecer com rigor, mas há frequentes turais, e, sendo necessário, para evitar o equívoco,
incidências e insinuações que não nos enganam acer- adianta-se a distinção entre scientia (que considera
ca dela, que repetem no tempo sapiencial a polémica as coisas criadas segundo as razões criadas) e sabe-
da escola pitagórica, em que houve necessidade de doria, que é cognição das altíssimas e primeiríssimas
valorar a noção de filosofia, para contrabalançar o causas, não enquanto ao modo de cognição especu-
extremismo da noção de sabedoria ou de ciência. lativa e intelectual, mas segundo o verdadeiro modo
O pitagorismo, e as doutrinas que, já na escolástica, saboreante e experiencial da alma ( S Ã O BOAVENTURA -
já no iluminismo, privilegiaram a filosofia, glosaram De Perfectione Evangélica, q. 1). A autoridade teo-
o problema da ciência como causa de um mal ético, lógica, que «reivindica» a ancilaridade da filosofia,
o orgulho, que vem a constituir o nó górdio do mais não obsta à radicação do gosto pelas ciências prepa-
simbólico texto da sabedoria humana, o início do ratórias. A Idade Média ostenta uma vocação enci-

339
CIÊNCIA

clopédica e os livros chamados Etimologias, como nista da frota de Pedro Álvares Cabral), e os viajan-
os de Santo Isidoro de Sevilha, são reais enciclopé- tes no Oriente, que iniciaram a disciplina de antropo-
dias do saber universal, que preparam a assunção es- logia cultural. E um pragmatismo vivido pela
colástica do quadrívio e a valorização das ciências, experiência, madre das coisas, pela qual «sabemos
apesar das razões písticas. O De Universo, de Rába- radicalmente a verdade» (PEREIRA, Duarte P. - Esme-
no Mauro (f 856), não é mais do que uma represen- raldo, liv. iv, cap. i) mas a experiência abarca tanto a
tação das Etimologias isidorinas, mas as enciclopé- visão externa como a visão interna, no sentido que a
dias do século xiii são mais amplas, como se verifica filosofia das ciências de Luís de Camões supõe - um
pelo De Rerum Natura, de Tomás de Cambridge, pe- ver claramente visto, na ordem do tempo, na ordem
lo paradigmático Speculum Majus, de Vicente de da razão, e na ordem da revelação. «O que é contrá-
Beauvais (dominicano, f 1264), em quatro partes rio à experiência repugna à razão» (FONSECA, Pedro
(ciências naturais, doutrinais, morais e historiais), da - Commentariorum, vol. 1, p. 279), mas em todo
pelo Tesouro, de Bruneto Latini (representante do o caso supõe-se que também o Espírito, que não en-
enciclopedismo do século xin), e pelo exercício de gana, não pode ser contrário à razão. O facto ajuda a
Afonso X (rei de Castela, 1221-1284), na General compreender a inaceitabilidade imediata das teses de
Estória. A unidade sapiencial permanece porque a Galileu nas escolas portuguesas, onde continuaram a
separação radical das ciências em especialidades prevalecer as lições do empirismo derivado da cha-
oclusas fere o mais vivo sentido cognitivo. O ho- mada «revolução da experiência», dos tratados de
mem não pode ser estranho a nada do que é humano Pedro Nunes (astrónomo, 1502-1578), e, para a ge-
e tudo se organiza em torno do homem. Para a neralidade das ciências dos astros, a Astronomice de
compreensão da unidade sapiencial, que importa Tycho-Brahe (f 1601). A teoria da unidade das ciên-
não sujeitar a fractura, prevalece a doutrina de cias reafirma-se em Francisco Bacon (f 1626), quan-
Pseudo-Dionísio (conhecido por Dionísio Areopagi- do este aduz que há dois modos de conhecer, um por
ta, convertido por São Paulo, em Atenas): o saber é argumento, outro por experiência, mas conclui que
simultânea atracção da teoria, da iluminação e da sem experiência nada se sabe que baste. A teorese de
oração, que conduz à visão superior da hierarquia sa- Francisco Bacon como que contribui para a tese
piencial, cujo fim último é a união divina, ou a hu- de que toda a ciência é necessariamente experimen-
mana divinização. A teoria unitária do septívio con- tal, não havendo ciência se não for experimental. Na
sente a distinção entitativa e disciplinar das ciências, tese de Jerónimo Osório (bispo de Tavira, | 1580), a
mas rejeita a distinção cisiva, como se as ciências fos- ciência é a sapientia veríssima que, recorrendo aos
sem alheias à ancilaridade da filosofia, porque esta é meios naturais, abrange a visão em Deus; na tese de
a coroa das ciências. As ciências têm a dignidade Francisco Sanches (1550-1623, precursor de Descar-
inerente a qualquer outra das vias, ou dos itinerários tes), a ciência não é apenas da existência, abrangen-
da mente para a ciência divina. Errado é, tanto a sua do as essências das coisas e das causas, e por isso re-
sobrevalorização quanto à teoria, como a sua mino- quer, além da visão exterior, a visão interior. Não
ração face à fé e à revelação, pois que «o binómio de obstante, parece gerar-se o equívoco, por influência
Newton é tão belo como a Vénus de Milo» (CAMPOS, baconiana, de que só a curiosidade científica impor-
Álvaro de - Poesias). Na inteligência escolástica, o ta, porque Bacon idealizou uma ciência que não fos-
que se privilegia é a unidade sapiencial das ciências, se apenas teorética e epistemológica, mas também
enquanto fora da escolástica se tende a consignar a prática e pragmática, tecnológica, razões que se su-
diversidade e mesmo a opositividade das ciências fa- põem na iniciativa de Jacob de Castro Sarmento
ce à filosofia e à religião. Numa bela peça oratória (f 1762), introdutor das doutrinas de Bacon em Por-
do século xvi, a Disciplinarum Omnium Studiis Ora- tugal, para que as obras de Bacon fossem traduzidas
tio (1548), de Belchior Beleago (f 1579), encontra- para a língua portuguesa. Os estrangeirados quise-
mos esta visão de unidade e de síntese, tal como a ram uma filosofia que, mais do que pensar as ideias,
encontramos no sistema conimbricense (v. CONIMBRI- melhorasse o mundo. A ciência é o saber que «sabe
CENSES), em que o saber não é vão, em que não há fazer», transfere os fenómenos naturais para meca-
ciências vãs, porque toda a ciência se ordena à énó- nismos que repitam esses fenómenos no particular, e
sis, à sublimação da humana criatura: saber para vi- que produzam efeitos, benefícios e malefícios (ciên-
ver. E neste sentido que Antero de Quental explica cias tecnológicas, nas quais temos sido modestos).
a decadência da poesia pela ascenção da análise Esta tendência é notória em Luís António Verney
científica. A ciência empírica que gera e é gerada (1713-1792), que assenta a ciência na observação e
pela revolução dos Descobrimentos* tem, apesar da na experiência, exaltando o método experimental.
sua estrutura quadrivial (cosmografia, astronomia, Verney tipifica o epistemólogo do século xvin, em
matemática, harmonia) o carácter assimilativo e ex- que a ciência se assume como crença, objecto de
periencial preconizado pela ciência escolástica uma quase religião talismânica, cuja valia equivale
atenta ao homem, abrindo específicos caminhos em proporção à quantidade de jogos, brinquedos,
portugueses nas ciências biológicas, geográficas e mecanismos, aparelhos e técnicas que produz. A ciên-
antropológicas, nas quais, em diferentes épocas, bri- cia vale menos como saber da natureza do que como
lharam os nomes de Garcia de Orta (naturalista, domínio da natureza; ela vê-se de algum modo sub-
1499-1568), Amato Lusitano (1522-1568, cujo nome jugada pela técnica, recusando-se dignidade à ciên-
foi João Rodrigues de Castelo Branco), Ribeiro San- cia que não produz tecnologia. Verney, para quem as
ches (médico, 1699-1783), Duarte Pacheco Pereira ciências eram uma lógica natural, não exclui o saber
(1460-1533), Pêro Vaz de Caminha (1450-1501, cro- da revelação, por considerar que a toda a ciência é

340
CIÊNCIA

T. de - Recreação Filosófica, Tarde 50, § vi). Sendo


as ciências o descobrimento da verdade pela razão
humana, a verdade teológica não tem de ser desco-
berta e não incumbe à filosofia. Esta descobre a ver-
dade pela razão natural. A verdade divina é dada por
revelação. Este esquema, do qual participa o tardio
aristotélico João Baptista de Castro, enquadra-se na
visão escolástica, só que tende a desunifícar o que,
na escolástica, se entendia ser uno ou ancilar da
mesma unidade sapiencial. O enciclopedismo do sé-
culo xvin privilegiou a verdade nas ciências naturais
e remeteu as ciências metafísicas para a esfera das
opiniões, das crenças e das verdades por argumento.
A influência escolástica obsta, porém, à radicação
inelutável do enciclopedismo. As academias, orien-
tadas para a reforma das sociedades, prescindiram da
teorese e divorciaram a ciência da filosofia, destituin-
do esta da fase crucial do ensino. A progressiva dis-
persão das especialidades, ou das faculdades, obriga a
uma unidade fundamental. A filosofia, que gera as
ciências, também as unifica nos princípios e nos
fins, como se as ciências não fossem mais do que
métodos parciais da sapiência total, a que a filosofia
se orienta. A reforma pombalina (v. POMBALISMO), se-
parando o ensino da filosofia racional da filosofia
natural, contribuiu para a estancidade de cada um
dos saberes em relação ao universal, e introduziu na
cultura portuguesa, como anotaram Sampaio Bruno
(1857-1915) e Álvaro Ribeiro (1905-1981), o ciclo
da positividade e dos prelúdios do materialismo, pre-
dicando uma visão das ciências segundo o positivis-
mo que, no critério de Álvaro Ribeiro, é uma here-
sia, tanto pela causa formal como pela causa final,
opondo que não há ciência sem ciência acerca de
Deus, nem filosofia consistente sem um oriente teo-
Brotéria, lógico. Perante o excesso de positividade e de cien-
Frontispício da Revista vol. VI, 1907, IIparte.
tismo, Bruno afirmava que a metafísica já não se
dada uma primeiríssima causa. Análogo pensamen- achava nas ciências, mas apenas na matemática e na
to nos oferece o franciscano José Mayne (f 1792), poesia ( B R U N O - A Ideia de Deus, 1902, p. 51) que
que criou em Lisboa uma cadeira de História Natu- haviam conseguido evitar o contágio cientista. A ra-
ral destinada à demonstração dos atributos divinos dicalização do cientismo numa atitude antifilosófica
à luz das ciências. As tensões entre a Congregação levou a como que opor os homens de ciência e os
do Oratório e a Companhia de Jesus (v. JESUÍTAS) homens de filosofia, e como que a fundar um muro
nunca resultaram da necessidade da obediência ã entre filosofia, religião e ciência. Todavia, a original
religião, mas derivaram da diferença de amplitude ascese reenvia os espíritos para a unidade. Silvestre
disciplinar e da metodologia, o que demonstra a Re- Pinheiro Ferreira (1769-1846), Cunha Seixas (1836-
creação filosófica de Teodoro de Almeida (oratoria-
-1895, criador do pantiteísmo), Domingos Tarrozo
no, 1722-1804), que dá primado à iniciação nas ciên- (1860-1933), Silvestre de Morais (1869-1936, evolu-
cias naturais, merecendo o prémio de esse livro ser cionista metafísico), Leonardo Coimbra (filósofo do
estudado, ainda durante quase todo o século xix, nas criacionismo, 1883-1936), mostram-se interessados
escolas hispânicas e latino-americanas. O mecanismo na mais completa informação científica, eles, cuja
e o experimentalismo do século xvin abrem as portas formação era sobremodo humanística. A apologéti-
ao positivismo, em cujo ideário as ciências ditas me- ca* católica oitocentista, representada em pensado-
tafísicas não têm lugar, toda a ciência se reduzindo à res como Manuel Eduardo Motta Veiga, Sena Frei-
positividade, seja esta natural, cosmológica, antropo- tas, José Maria Rodrigues, procura reagir contra o
lógica ou sociológica. Teodoro de Almeida substan- positivismo, considerado «metafísica do nada»,
cia com exemplaridade este predomínio das ciências enquanto os citados pensadores procuram a consti-
naturais, invertendo a ordem septivial. Onde a esco- tuição de novos sistemas espirituais, ainda que não
lástica punha o trívio e, depois, o quadrívio, Teodoro envolvidos numa situação eclesial. O positivismo
de Almeida coloca no princípio de toda a ciência as deveio uma religião popular, quando difundido por
ciências naturais, passíveis de experiência e, no fim, jornalistas e publicistas de motivação ideológica,
as ciências lógica e metafísica, separando delas a sem critério relativo aos valores humanos em essên-
teologia, porque, acerca de Deus, a razão natural na- cia. A filosofia positivista radica-se como ideologia
da sabe e a ciência é da razão natural (ALMEIDA, de mutação social e um seu derivado, o evolucionis-

341
CIÊNCIA

mo, sério em Herbert Spencer e messianista em Bru- mal e do hipnotismo em terapia mental, cabendo
no, tomba no monolitismo de refutação da história mencionar a diuturnidade científica dos Irmãos
sagrada, contrapondo factos e deduções às alegorias, Hospitaleiros que, seguindo o carisma do fundador,
parábolas e mistérios bíblicos. A polémica católica São João de Deus, trabalham, e com resultados, na
contra as teses evolucionistas e transformistas na área das ciências psiquiátricas, área essa em que,
condição portuguesa é um romance de inusitadas si- separando ciência e fé como realidades autónomas
tuações. Nem sempre os teóricos evolucionistas e não contraditórias, Egas Moniz realizou conside-
mostraram clara percepção da natureza do texto bí- ráveis progressos, ele que vinha da educação jesuíta
blico, para mais sendo, em geral, autores de teoria, de São Fiel, «a nossa casa», como gostava de dizer.
sem experiência nas ciências práticas; e azafama- Sem pretender fixar uma listagem de cientistas,
ram-se os apologetas, vinculados à ideia fixista do lembram-se matemáticos como Francisco Gomes
sentido literal, sem destrinça das três gradações de Teixeira (f 1933) e Luís Woodhouse (1858-1927),
leitura do texto sagrado. No entanto, as chamadas químicos como Francisco José de Sousa Gomes, e
ciências positivas deram importante contributo à di- inventores como o padre Manuel Gomes (Himalaia)
lucidação de certas aporias inclusas nos textos sagra- (1868-1933), interessante figura eclesial e científi-
dos, levando à melhor compreensão dos escritos, ca. A aliança ciência/fé tem sido frutuosa nas áreas
sem pôr em risco a herança da fé. Os resultados pos- das ciências antropológicas, biológicas e médicas -
teriores mostram que tudo quanto se pensou e tornou lembrem-se os nomes de Serras e Silva, João Porto,
público dentro do esquema chamado «a Bíblia no Miller Guerra, Elísio de Moura e o contributo cientí-
século da ciência» não prejudicou, nem a magistra- fico da revista dos médicos católicos - Acção Médi-
lidade da doutrina, nem a herança donativa da fé, e ca (1936) - e a participação de fiéis nos congressos
que contribuiu para melhor abordagem das aporias científicos internacionais, com ênfase para a já histó-
bíblicas e da mensagem crística. A ciência ganha, rica série dos congressos luso-espanhóis para o pro-
no pensamento de Leonardo Coimbra (tal como em gresso das ciências. Nunca será demais repetir que
Bruno), uma acuidade metodológica, ainda que não o ensino das ciências naturais não inere objectiva e
de primeira instância. No criacionismo, a ciência é operativamente às Igrejas, cuja missão é a de cuidar
valorizada em relação a qualquer outro modo de sa- da fé e da cura das almas. O dogmatismo cientista
ber, sendo inteligida como um «conjunto» de infor- decadente do entendimento surge no confronto entre
mações ancilares da filosofia, sendo-lhe negada a Miguel Bombarda (psiquiatra, 1851-1910) e o jesuíta
categoria de sistema. Segundo Leonardo, a ciência Fernandes de Santana (apologeta e cientista, f 1910).
tende a «cousar» como «fé na ciência» servindo pa- Situava aquele toda a vida psíquica no «neurone»,
ra degradar o progresso da humana cognição, ou seguindo um dogmático monismo materialista, mo-
para demorar a trajectória dos meios que ascendem nismo esse que se transformara numa outra religião,
à verdade. Também para Alfredo Pimenta (1882- num «cousismo». Santana refutou o monismo de
-1950), que tentou converter o positivismo à fé, a Bombarda assumindo a impossibilidade de conhecer
ciência é assumida dentro da filosofia, como saber a alma humana como espírito, ou como «vestígeo de
parcial que averigua dos argumentos para negar o Deus» através das ciências experimentais, porque o
erro, mas que não conduz, só por ela, à última ver- espírito se não deixa apanhar como coisa que seja.
dade. Fora possível, na medievalidade e no Renas- Nos últimos decénios, a ciência sofreu na sua identi-
cimento, a coexistência e a convivência da ciência e dade porque as exigências institucionais erigiram à
da religião, da ciência e da fé, assumidas como ex- grandeza estelar das ciências disciplinas que a ars
pressões da mesma verdade. A experiência escolás- magna clássica e medieval agrupava nas artes e ofí-
tica e a revolução cosmológica dos Descobrimentos cios, próprias do ensino oficial. A mutação signifi-
foram capazes de manter um oriente pístico no exer- cou um movimento ascensional dos ofícios para as
cício do saber teórico e prático, na convicção de que ciências, mas descensional para a ciência, como fru-
uma ciência com fé tem uma qualidade a mais do to do tecnologismo iluminista, que aflui a uma ciên-
que o termo ciência sem fé, de modo análogo ao que cia massiva, em que esta se situa, face à religião,
se diz dos termos fé sem ciência e fé com ciência. numa atitude, ou de apatia, ou de ignorância, ou de
Homens de fé dos séculos xvii-xvm, por vezes mis- indiferentismo e, todavia, a ciência não deve ser,
sionários (João de Loureiro, José Mariano Veloso, nem ignorante, nem indiferente à questão religiosa.
Félix de Avelar Brotero, Bernardino Barroso Go- O materialismo dialéctico, dito «científico», assumiu
mes) deram consideráveis avanços às ciências botâ- a negatividade da religião como um supérfluo, mas
nicas, cuja moderna epistemologia foi lançada pelo hic et nunc, também o materialismo se confrontou e
Abade Correia da Serra. De passagem registe-se que confronta com questões de ordem situadas além da
a revista científica Brotéria (1902) surgiu por inicia- material dedução, inclusas nas simples interrogati-
tiva dos professores do Colégio de São Fiel (diocese vas: porquê, para quê? É a matéria que no homem
da Guarda), entre eles os botânicos e entomólogo e pelo homem pensa? A projecção epistemológica e
J. Silva Tavares, Cândido Mendes e Carlos Zimmer- metodológica esclareceu que a oposição entre cien-
mann, que participam de modo activo na fundação tismo e fé não tem razão de ser (Pastoral colectiva
da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais. An- do episcopado - 24 de Dezembro de 1910, p. 8) e
tes, e na ordem das ciências psicológicas, o Abade que, delimitadas as esferas de acção, a revelação não
de Faria (José Custódio de Faria, o «bruxo» dos ro- se opõe à ciência, salvo no dogmatismo e nos seus
mances de Alexandre Dumas) lançou os fundamen- efeitos maléficos (Pio XII, encíclica Humani Gene-
tos da psicologia experimental, do magnetismo ani- ris), sendo patente a presença de cientistas que, na

34 2
CISMA

observância das regras epistemológicas, visam inte- que, se no futuro se relacionasse com algum governo
grar as ciências num clima de espiritualidade, atento a propósito de assuntos eclesiásticos, visaria apenas
à primazia dos valores, para o que contribuíram o a resolução de tais pontos, sem por isso tomar posi-
fenomenologismo e o idealismo. A convivência tor- ção sobre a legitimidade dessas mesmas autoridades
nou-se possível e desejável, salvo nos casos de apli- políticas; a 21 de Setembro recebeu finalmente as
cação de tecnologias que ponham em causa a inte- credenciais do marquês de Lavradio, embaixador de
gridade da criação e da criatura, conforme consta D. Miguel; e a 25 de Outubro, em Lisboa, foi a vez
dos documentos pastorais dos papas e dos bispos, do núncio papal entregar as suas. Nesta nova situa-
por isso que o debate do milénio se situa entre ra- ção, o governo miguelista pôde apresentar, a 29 de
zão científica e razão ética. A ciência, apesar das Setembro, vários nomes para as dioceses vagas: An-
ciências, conserva o seu valor iniciático e arquetípi- tónio Carlos Furtado de Mendonça para arcebispo de
c o (v. APOLOGÉTICA; ENSINO; ESCOLÁSTICA; FILOSOFIA; Braga (faleceu antes de ser confirmado por Roma),
TEOLOGIA). Frei Fortunato de São Boaventura para arcebispo de
J. PINHARANDA G O M E S Évora, José Francisco da Soledade Bravo para bispo
de Portalegre (os dois confirmados em 24 de Feve-
BIBLIOGRAFIA: A L B U Q U E R Q U E , L U Í S de - Para a história da ciência em
Portugal. Lisboa: Horizonte, 1 9 7 3 . B A R R E T O , L. Filipe - Os descobri- reiro de 1832) e Constantino José Ferreira de Almei-
mentos e a ordem do saber. Lisboa: Gradiva, 1 9 8 7 . CARVALHO, Joaquim da para bispo de Castelo Branco (não foi confirma-
de - Obras completas. Lisboa: FCG, 1 9 7 8 - 1 9 9 2 . 7 vol. CEREJEIRA, Ma- do); depois, foram apresentados António da Silva
nuel Gonçalves - A igreja e o pensamento contemporâneo. Coimbra:
Coimbra Editora, 1 9 4 4 . CIÊNCIA, arte e religião. Trad. port. Zacarias de Rebelo para Bragança e Joaquim José Pacheco e
Oliveira. Lisboa: Paulistas, 1 9 6 3 . C O E L H O , Latino - A ciência na Idade Sousa para a Guarda (ambos confirmados em 2 de
Média. Pref. e notas P. Gomes. Lisboa: Guimarães, 1 9 8 8 . C O S T A , Aveli-
no de Jesus da - O inventor P. Manuel A. Gomes Himalaia. Revista de
Julho de 1832); Leonardo Brandão para Pinhel e Frei
História das Ideias. 9 ( 1 9 8 7 ) 7 5 9 - 8 0 0 . DIONÍSIO, SanfAnna - A não- Ângelo de Nossa Senhora da Boa Morte para Elvas
-cooperação da inteligência ibérica na criação da ciência. Lisboa: Sea- (confirmados em 17 de Dezembro de 1832); Frei Jo-
ra Nova, 1 9 4 2 . G O M E S , J. Pinharanda - Pensamento português. Braga:
Ed. Pax, 1 9 6 9 - 1 9 9 3 . 7 vol. IDEM - Dicionário de filosofia portuguesa.
sé da Assunção para Lamego* (confirmado em 29
Lisboa: D . Quixote, 1 9 8 7 . M A G A L H Ã E S , António de - Miguel Bombarda de Julho de 1833). Mas entretanto D. Pedro, estando
e Fernandes Santana. In GRANDES polémicas Portuguesas. Lisboa: Ver- já na Europa para lutar pelos direitos de sua filha
bo, 1 9 6 7 , vol. 2 , p. 3 5 1 - 3 7 4 . P R A Ç A , J. J. Lopes - História da filosofia
em Portugal. 3 . " ed. Lisboa: Guimarães, 1 9 8 8 . RIBEIRO, Álvaro - Os po- D. Maria II, escreveu a Gregório XVI, em carta data-
sitivistas. Lisboa: Livraria Popular Francisco Franco, 1 9 5 1 . R I B E I R O , Jo- da de Paris a 12 de Outubro de 1831, dizendo não
sé Silvestre - História dos estabelecimentos científicos, literários e ar- reconhecer como válidas quaisquer nomeações
tísticos. Lisboa: Academia das Ciências, 1 8 7 1 - 1 8 9 3 . 1 8 vol. SALGUEIRO,
Manuel Trindade - A ciência e a fé. In O PENSAMENTO católico e a uni- episcopais feitas por seu irmão. À 8 de Julho do
versidade. Lisboa: JUC, 1 9 5 4 , p. 3 5 - 4 2 . S E I X A S , J. M. Cunha - Galeria ano seguinte o exército liberal desembarcou perto
de ciências contemporâneas. Porto: Liv. Chardron, 1 8 7 9 . TEIXEIRA, F. do Porto* e a 9 tomou a cidade. O bispo D. João
Gomes - História das matemáticas em Portugal. Lisboa: Academia das
Ciências, 1 9 3 4 . V E L O S O , Agostinho - Ciência e religião. Lisboa: Broté- Magalhães e Avelar - que, aliás, não fora nomeado
ria. 1 9 6 0 . V I T O R I N O , Orlando - Filosofia, ciência, religião. Lisboa: Ar- por D. Miguel nem se comprometera partidariamen-
cádia, [s.d.]. te - abandonou a cidade, tanto bastando para D. Pe-
dro, a 18 desse mês, nomear governador do bispado
CÍRCULOS CATÓLICOS DE OPERÁRIOS, v. CATOLI- Frei Manuel de Santa Inês, agostinho e liberal; a 20
CISMO SOCIAL. mandou aviso ao cabido para que o elegesse vigário
capitular (como se a diocese não tivesse bispo); na
CISMA (1832-1842). Em Junho-Julho de 1828 as
impossibilidade de se reunir o cabido* e sempre
Cortes de Lisboa, convocadas pelo infante D. Mi- por ordem dos novos governantes, uma assembleia
guel - até então regente em nome de D. Maria II - de clero secular e regular da cidade e arredores, a
proclamavam-no rei absoluto. Tais Cortes tinham si- 30, elegeu o referido religioso. Este procedimento
do convocadas à maneira antiga, por ordens, inter- foi depois genericamente seguido pelo governo de
rompendo o sistema constitucional. A decisão agra- D. Pedro, diocese após diocese, à medida que as
vou as lutas entre absolutistas e liberais, abrindo suas tropas iam conquistando o país: ou porque se
uma longa guerra civil no continente e ilhas até à vi- ausentavam, como o do Porto, ou por terem sido no-
tória definitiva dos partidários de D. Maria II e ao meados por D. Miguel, como os acima referidos, os
exílio de D. Miguel em 1 de Junho de 1834. A crise bispos eram substituídos por vigários afectos aos li-
política reforçou-se e continuou-se com a religiosa, berais e eleitos pelos cabidos por indicação das no-
originando um «cisma» que, se nunca foi formal- vas autoridades. Valeu a Lisboa ter vivo e presente o
mente declarado, foi várias vezes mencionado, e cor- idoso cardeal-patriarca D. Patrício da Silva, aquando
respondeu, de facto, a graves divisões no catolicismo da ocupação constitucional da cidade em 24 de Julho
português que duraram, pelo menos, de 1832 a 1842. de 1833; continuou à frente da sua diocese, até fale-
Desde a sua aclamação, D. Miguel fez várias dili- cer em 3 de Janeiro de 1840; a rainha nomeou para
gências para ser reconhecido por Roma, mas os pon- lhe suceder D. Frei Francisco de São Luís Saraiva, a
tífices (Leão XII e Pio VIII) esperaram pela atitude quem o bispo de Angra, sufragâneo mais antigo,
dos outros países. Em 2 de Fevereiro de 1831 foi conferiu jurisdição de vigário capitular e Gregó-
eleito Gregório XVI, e o facto de existirem então de- rio XVI viria depois a confirmar como patriarca, em
zasseis bispados vagos em Portugal e seus domínios 3 de Abril de 1843. Tirando este caso, generalizou-
forçaria o novo papa e antigo responsável pela Pro- -se pelas dioceses uma situação de cisma prático, em
paganda Fide a tratar com o governo de Lisboa. A 5 que clérigos e leigos ou acatavam as autoridades
de Agosto desse mesmo ano, na constituição apostó- eclesiásticas postas pelos liberais - com a conivência
lica Solicitudo ecclesiarum, o pontífice declarou activa ou passiva dos cabidos - , ou mantinham a li-

343
CISMA

gação aos seus bispos ausentes e respectivos manda- CISMA DO OCIDENTE E PORTUGAL. Ao longo da
tários mais ou menos clandestinos, bem como a de- história, a Igreja Católica conheceu vários momentos
legados apostólicos a quem a Santa Sé* conferia que ela própria chamou cisma. Significa uma ruptura
directamente algumas faculdades canónicas; outros com a comunhão eclesial, distinta da apostasia ou da
ainda não assumiam claramente nenhuma das posi- heresia, pois não diz respeito a uma verdade em que
ções, frequentando templos e cerimónias dos dois la- é necessário crer ou a uma doutrina a exigir submis-
dos. Retenhamos ainda que, por decretos de 5 de são. Em sentido restrito, o termo significa a recusa
Agosto de 1833, as autoridades liberais destituíram de submissão ao Papa ou de comunhão com os
todos os detentores de cargos eclesiásticos nomeados membros da Igreja que lhe estão submetidos. Nestas
sob D. Miguel ou desafectos ao liberalismo* e assumi- condições, e apesar da designação consagrada, o
ram todas as nomeações pastorais: estas medidas tra- Grande Cisma do Ocidente não se enquadra na defi-
ziam facilmente o «cisma» para a escala paroquial e nição estrita de cisma. Aliás, o facto em questão não
local. Se a situação - que continuou muito para além se tratou, em rigor, de qualquer separação da Igreja
do desfecho da guerra civil em Maio de 1834 - era Católica, mas de um conflito à volta da escolha e da
insustentável eclesialmente, também o era politica- eleição dos que pretendiam ocupar a cadeira de São
mente, constituindo um facto mais para a oposição Pedro. Foi grande pela sua duração (1378-1417) e
interna e externa aos sucessivos governos de D. Ma- extensão (todo o Ocidente foi afectado). O Grande
ria II. Daqui que estes fizessem várias diligências Cisma do Ocidente, marcado pela existência de dois
para reatar as relações com Roma - quebradas com a papas na Cristandade, teve o seu apogeu em 20 de
expulsão do núncio Justiniani em Julho de 1833 e do Setembro de 1378, quando um grupo de cardeais
auditor Curoli em Março de 1834 - como base im- descontentes com o papa recentemente eleito, Urba-
prescindível para a regularização da vida eclesial no VI, decidiram declarar inválida a eleição e elege-
portuguesa. Mas Gregório XVI foi sempre irredutí- ram um outro, do seu partido, Clemente VII. Ambas
vel na exigência do reconhecimento por Lisboa de as eleições se fizeram em solo italiano (no Vaticano
todos os bispos confirmados por Roma - apresenta- e em Fondi, respectivamente). A situação depressa
dos antes ou durante o governo de D. Miguel e in- se inscreveu no ambiente de crise geral em que caíra
dependentemente do respectivo comportamento po- a cristandade ocidental no início do século xiv e a
lítico - como legítimos pastores das respectivas que o papado não ficara incólume. Uma das facetas
dioceses, ponto em relação ao qual, mais do que a dessa crise fora a saída do papado de Itália, para se
outros igualmente reclamados, os políticos dominan- instalar em Avinhão (Clemente V, em 1309), o que
tes em Lisboa se mostravam muito susceptíveis e havia de significar, a maior ou a menor prazo, uma
avessos. Só depois de várias e entrecortadas nego- aproximação cada vez mais intensa com a Coroa de
ciações, ultimadas em Roma pelo visconde da Car- França. No entanto, o Papa não deixava de ser o bis-
reira, se chegou por fim ao entendimento de 1841: po de Roma, o que faria entender esta estada da cor-
basicamente, D. Maria II reconhecia todos os bispos te pontifícia como transitória e passageira. Mas a
nomeados por D. Miguel e confirmados pela Santa cúria permanecia em Avinhão, apesar das preocupa-
Sé; seriam nomeados vigários para as dioceses cujos ções dos funcionários pontifícios com a administra-
bispos se tivessem mostrado demasiadamente hostis ção dos bens da Santa Sé* e o clima de insegurança
ao regime constitucional. A 10 de Maio desse ano, que se vivia no Sul de França. Na Cristandade, as
Gregório XVI aceitou as credenciais do visconde da vozes que clamavam por reforma faziam do regresso
Carreira e a 17 enviou a D. Maria II o breve Nullis do papado a Roma o seu primeiro passo. Tudo isto o
explicari verbis, congratulando-se pela reaproxima- tornava urgente. Inocêncio V desejou-o; Urbano V
ção do governo português à Santa Sé. A 17 de Janei- tentou-o; Gregório XI efectivou-o. Mas a decisão
ro de 1842 chegou a Lisboa o internúncio e delegado não era unânime (alguns cardeais preferiram a conti-
apostólico Capaccini, que acompanhara de perto as nuação em Avinhão). À sua morte, em Março de
negociações anteriores e as continuou aqui, passando 1378, em Roma, a situação era grave: oposição entre
a ter como principal interlocutor o duque de Palme- partidários e inimigos da permanência do papado em
la: precisou-se o combinado e começou a reconsti- Roma, um clima político de conflitos, problemas
tuir-se o quadro eclesiástico português, por entendi- ideológicos e disciplinares no seio da Igreja, o povo
mento entre a Santa Sé e a Coroa portuguesa, tal inquieto e violento, agastado por se ver privado da
como depois se fez até à República. Em Março do eminência do seu bispo. A necessidade de uma elei-
mesmo ano Gregório XVI enviou a D. Maria II uma ção papal tornava-a ainda mais perigosa. Num clima
Rosa de Ouro que deveria inaugurar - esperava o de medo, entre alianças e cedências, os cardeais aca-
pontífice - um novo florescimento religioso do país baram por eleger o arcebispo de Bari (Bartolomeu
(v. LIBERALISMO). Prignano/Urbano VI), em Abril de 1378. Espírito
ávido de reformas, ousou criticar os seus próprios
M A N U E L CLEMENTE
eleitores nos defeitos e faltas que lhes conhecia. Em
resposta, alguns cardeais consideraram inválida a
BIBLIOGRAFIA: A L M E I D A , Fortunato dc - História da Igreja em Portugal.
Nova ed. Porto; Lisboa: Livraria Civilização, 1970, vol. 3. C L E M E N T E ,
sua eleição, porque tomada sob medo e ameaças.
Manuel - Laicização da sociedade e afirmação do laicado em Portugal Certos da ideia que defendiam, que os fazia deposi-
(1820-1840). Lusitania Sacra. 3 (1991) 111-154. C R U Z , Manuel Braga tários da autoridade que conferiam ao Papa, um pri-
da - As relações entre a Igreja e o Estado liberal: do «cisma» à Concor- mum inter pares na sua óptica, deixaram Roma e re-
data (1832-1848). In O LIBERALISMO na Península Ibérica na primeira digiram um manifesto que proclamava a invalidez e
metade do século xtx. Lisboa: Sá da Costa, vol. 1, p. 223-235. FERREIRA,
José Augusto - Memórias para a história dum cisma (1832-1842). Bra- nulidade da eleição de Urbano VI e a sua incapaci-
ga: Cruz & C. Editores, 1917.
a

344
CISMA DO OCIDENTE E PORTUGAL

ma, a inteirar-se dos acontecimentos, decidiu-se pela


neutralidade. E apesar da presença de sucessivos le-
gados clementinos e de vicissitudes sofridas pelos
enviados urbanistas, essa continuava a ser a posição
oficial do reino de Portugal, como aliás dos restantes
reinos peninsulares. Mesmo perante a presença de
embaixadores ingleses e franceses, tentando, cada
um, a modificação da posição portuguesa, conforme
os interesses respectivos, Portugal ia mantendo a
neutralidade que escolhera de início e reiterara na
reunião de Salvaterra de Magos, em Dezembro de
1379. Porém, em breve a posição se alterou. No iní-
cio do ano de 1380 já D. Fernando alinhava no bloco
dos clementistas, ao que tudo indica por influência
dos núncios de Avinhão e, talvez também, do reino
de França, com quem se negociava uma aliança, que
não chegou a concretizar-se. Deste ano e do seguinte
há um imenso rol de documentos de Clemente VII
relativos a Portugal, alguns concedidos a pedido do
próprio rei. São questões de administração eclesiásti-
ca, dispensas canónicas, concessão de benefícios vá-
rios, que mostram o bom relacionamento entre os
dois poderes. Na Península de então, em cujos reinos
se cruzavam forças pró e contra França, os aconteci-
mentos religiosos valem também pelo significado
que adquiriam a nível político. Isso explica que, por
Túmulo de D. Fernando. Lisboa, Convento do Carmo. questões de natureza política (um projectado acordo
entre Portugal, França e Aragão que se transformou
dade para o governo da Igreja. Procederam a uma apenas em aliança franco-aragonesa), D. Fernando
nova eleição: o cardeal Roberto de Genebra, com se afastasse da França, se reaproximasse de Inglater-
ligações ao reino de França, que tomava o nome de ra e, ao mesmo tempo, do papa Urbano VI, a quem
Clemente VII. No seu antagonismo, duas cidades reconhecia legitimidade em 1381. Castela, por sua
surgiram a disputar o favor de lhes servir de sede vez, aproximava-se de França e declarava-se aberta-
pontifical, Roma e Avinhão. O ambiente político mente por Clemente VII. Em Portugal, ora se reno-
coevo, dominado pela Guerra dos Cem Anos, foi vava a guerra com Castela, ora se tentavam entendi-
propício ao alinhamento dos reinos cristãos segun- mentos com esse reino ou com Inglaterra. Nos
do um ou outro pontífice, reflectindo as tensões en- primeiros, teve acção importante o cardeal aragonês
tre os contendores. Inglaterra, Escadinávia, Hungria, Pedro de Luna, clementista, cuja presença em Portu-
Polónia e Venécia foram firmes seguidoras do papa gal se assinala em 1382, simultaneamente como
de Roma; França, Escócia, Península Ibérica (ex- núncio de Clemente VII e diplomata de João I de
cepto Portugal) declararam-se obedientes a Avinhão. Castela. Se nesta qualidade foi bem sucedido, já na-
O Império Germânico, na sua enorme extensão, va- quela não foi além de uma reunião de prelados e le-
riou na obediência. O reino de Nápoles, Portugal, o trados, presidida pelo rei, em Santarém, ao que tudo
Brabante, os Países Baixos foram zonas movediças indica em Fevereiro de 1383. A assembleia, maiori-
na situação. Em Portugal, o início e primeiros mo- tariamente composta por urbanistas e reunida ao
mentos da questão foram contemporâneos do reina- mesmo tempo que emissários portugueses tentavam,
do de D. Fernando. É possível que este tenha sido em Londres, a renovação da aliança entre Portugal e
dos primeiros reis a ter conhecimento da eleição de Inglaterra, decidiu-se a favor de Urbano VI. Caíam
Urbano VI, pois o bispo de Lisboa*, Agapito Colon- por terra as ilusões de Clemente VII de fazer da Pe-
na, achava-se em Roma, onde assistiu à turbulência nínsula um bloco de apoio contra o seu rival. D. Fer-
do conclave donde saiu aquele pontífice. O desen- nando morria nesse ano de 1383, com o país a reco-
volvimento que a questão da chefia máxima da Igre- nhecer oficialmente o papa de Roma. Solicitado por
ja conheceu repercutiu-se fortemente sobre a política emissários de ambos os papas e por interesses políti-
externa portuguesa, contribuindo para o agravamen- cos distintos, de alguma forma conotados com aque-
to das hesitações do rei nessa matéria. Convém re- les, D. Fernando tentou a neutralidade, hesitou nas
cordar que Portugal era já aliado de Inglaterra (desde suas escolhas e decisões, permitiu que no reino se
1373). Porém, independentemente de questões polí- defendessem as duas obediências. Mas tudo isto mo-
ticas, o primeiro pontífice a ser reconhecido pelo rei tivado muito mais por interesses e conveniências po-
de Portugal foi Urbano VI. As notícias e legacias líticas de ocasião, que por qualquer outra razão.
dos dois papas eleitos sucediam-se pela Cristandade, A morte do rei e a precipitação dos acontecimentos
procurando, cada um, o reconhecimento dos reis e o políticos, com Castela a querer tomar posse do rei-
apoio que podiam significar. Com elas, instalava-se no de Portugal, tiveram repercussão séria e imediata
a confusão e a dúvida. Portugal, depois de alguma sobre a polémica papal. Castela obedecia a Avinhão
discussão no reino e o envio de uma comissão a Ro- e os chefes do movimento nacionalista português

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C I S M A DO O C I D E N T E E P O R T U G A L

abraçaram incondicionalmente o partido do papa de DÃO, Francisco, fr. - Monarquia lusitana. Ed. fac-similada, intr. A. Dias
Roma, percebendo que nele residia um apoio ex- Farinha e Eduardo dos Santos. Lisboa: INCM, 1976. D A V I D , Pierre -
Français du Midi dans les évêchés portugais. Bulletin des Études Portu-
traordinário à sua causa, porquanto o rei de Castela gaises et de l'Institut Français au Portugal. 9: 2 (1943) 16-70. L E V I L -
tinha toda a força e poder do papa de Avinhão. Os LAIN, Philippe, dir. - Dictionnaire historique de la Papauté. Paris: Li-
problemas da divisão da Cristandade mostrar-se-iam brairie Arthème Fayard, 1994. L O P E S , Fernão - Crónica de D. João I.
Porto: Civilização, [1994], 2 vol. IDEM - Crónica de D. Fernando. Por-
aqui de um valor político incalculável. Os próprios to: Civilização, [s.d.]. M A R Q U E S , José - Clérigos portugueses exilados e
papas o entenderam e tentaram segurar os seus parti- beneficiados em Castela Nova e na Andaluzia nos finais do século xiv.
dários através da concessão de graças e mercês. Mas Revista de Ciências Históricas. 4 (1989) 177-194. O L I V E I R A , Miguel de
- História eclesiástica de Portugal. 4. ed. Lisboa: União Gráfica,
a vontade popular mostrava-se mais forte que as ma-
a

1968. P A L E N Z U E L A , Álvares; Á N G E L , Vicente - El Cisma de Occidente.


quinações políticas e o partido nacionalista fortale- Madrid: Rialp, 1982.
cia-se nela. E sabia captar os bons conhecedores do
direito, como João das Regras, formado no direito CISTERCIENSES. A Ordem de Cister foi fundada na
de Bolonha e figura cimeira das Cortes de Coimbra Borgonha, em 1098, por Robert de Molesmes, como
de 1385. No seu discurso e quanto ao problema ful- resposta à necessidade sentida por alguns monges de
cral do afastamento dos reis de Castela do trono de praticar com maior rigor a Regra de São Bento. De-
Portugal recolhe-se a boa tradição medieval da res- pois de um momento de crise por falta de novas vo-
publica Christiana e da sua unidade. Aceitando co- cações, a chegada, em 1112, de São Bernardo e um
mo verdadeiro e legítimo o papa de Roma, eram cis- grupo de 30 companheiros ao Mosteiro de Cister vai
máticos os reis de Castela, donde definitivamente dar novo alento à comunidade, salvando-a de um fim
afastados do trono de uma nação católica, como se que se anunciava. Vai ser este o verdadeiro início da
afirmava Portugal. Deste modo, no fim de uma crise expansão cisterciense, atraindo novas vocações e
política e no advento de uma nova dinastia, afastava- restaurando o dinamismo da abadia borgonhesa.
-se de Portugal qualquer influência do papa de Avi- O aumento do número de monges, noviços e conver-
nhão. Em nenhum país da Europa a crise da Cristan- sos* dará origem à criação de novas abadias da or-
dade servira melhor os intentos políticos. Mas a crise dem tendo-se fundado, nos anos seguintes, as quatro
da Igreja havia de ter os seus sérios reflexos sobre as abadias-filha. Destas, Claraval, fundada em 1115 por
hierarquias nacionais. Em Portugal, o facto foi notó- São Bernardo, protagonizará o maior movimento de
rio. Os bispos das várias dioceses seguiram partidos expansão dos Monges Brancos, irradiando pouco de-
diferentes, bem como os respectivos cabidos. Os pa- pois para o território português. As novas fundações
pas, por sua vez, tentaram várias nomeações de seus podem revestir-se de dois aspectos: filiação de mos-
fiéis, o que, nalguns casos, se volveu em conflitos teiros já existentes ou criação ex nihilo. A nova for-
internos. O arcebispo de Braga* e os bispos de La- ma de viver a regra beneditina e o monaquismo, pro-
mego* e do Porto* foram os mais fiéis partidários de posta por Cister, cedo vai atrair um número elevado
Urbano VI. Nas outras dioceses (Lisboa, Coimbra*, de mosteiros beneditinos, mas sobretudo comunida-
Guarda*, Évora*, Silves* e Viseu*) acham-se parti- des de eremitas, talvez as mais sensíveis, nos primei-
dários de Clemente VII, uma das razões por que elas ros tempos, a essas novas propostas. Muitas vezes,
foram palco de diversas mudanças, nem sempre se- como sucedeu em Portugal, a influência cisterciense
guindo o mesmo partido papal. De todos os bispos espalhava-se entre estas comunidades ainda antes do
que aderiram a Clemente VII talvez o mais entusias- seu pedido de filiação na ordem. Esta mesma atrac-
ta tenha sido D. Martinho, inicialmente bispo de Sil- ção pelo viver cisterciense leva a que muitos homens
ves, promovido pelo avinhonês na diocese de Lisboa. pretendam entrar nesses mosteiros como noviços ou
O seu protagonismo na crise após a morte de D. Fer- como conversos, aumentando em muito, durante o
nando e a sua conotação com o partido de D. Leonor primeiro século e meio, a população das várias clas-
Teles valeram-lhe a morte trágica, em Lisboa, no ses. O equilíbrio entre os rendimentos dos diferentes
mesmo dia em que o mestre de Avis matava o conde mosteiros e o número de religiosos era uma norma
Andeiro: o povo atirou-o abaixo da torre da sé, e de estrita observância, evitando assim que as dife-
passeou o seu cadáver pela cidade. Ainda no que diz rentes casas deixassem de ter condições de auto-
respeito à administração eclesiástica, é importante -sustento e entrassem em decadência, acabando por
frisar que o tempo do cisma resolveu alguns proble- desaparecer. Por isso, quando o número de monges
mas há séculos pendentes sobre dioceses portuguesas. aumentava, previa-se a transferência para outros
Bonifácio IX (papa de Roma), em 1393, procedeu à mosteiros da ordem, ou, mais frequentemente, pelo
criação da metrópole de Lisboa, atribuindo-lhe as menos no período de grande dinamismo, a fundação
dioceses de Évora, Idanha (Guarda), Lamego e Sil- de uma nova casa. Esta seria implantada em terras
ves, que, à excepção desta última (da metrópole de doadas, geralmente pelo rei ou por um nobre, e que
Sevilha), pertenciam a Compostela, e Bento XIII tinham de obedecer a certas condições: o isolamento
(papa de Avinhão, antigo cardeal Pedro de Luna), no em relação a lugares habitados, boas terras de culti-
ano seguinte, passava para a metrópole de Compos- vo, suficientes recursos hídricos e existência de ma-
tela as dioceses galegas e leonesas que a de Braga térias-primas (especialmente madeira) nas proximi-
possuía. dades. Não obstante estas recomendações, que já
MARIA ALEGRIA FERNANDES MARQUES podemos encontrar nos Exordia, algumas casas ins-
talaram-se em zonas pouco propícias, acabando por
BIBLIOGRAFIA: A B R A N C H E S , J. dos Santos - Fontes do direito eclesiástico
portuguez: Summa do bullario portuguez. Coimbra: F. França Amado, entrar em crise e extinguir-se. Para obviar a estas si-
1 8 9 5 . A L M E I D A , Fortunato de - História da Igreja em Portugal. Nova tuações, o capítulo geral determinou que qualquer
ed. Porto: Portucalense, 1 9 6 7 - 1 9 7 1 . 4 vol. BAPTISTA, Júlio César - Por-
tugal e o Cisma do Ocidente. Lusitania Sacra. 1 ( 1 9 5 6 ) 6 5 - 2 0 3 . B R A N -
nova fundação só poderia ser autorizada após prévia
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CLSTERCIENSES

inspecção por dois abades inquiridores. 1. Organiza- edifícios. Para o caso de filiações, enviavam-se mon-
ção: Toda a força das abadias da Ordem de Cister ges em número inferior, sendo o abade um desses
deriva, antes do mais, da conjugação de dois factores monges. A razão era simples: estes eram conhecedo-
aparentemente contraditórios, mas que revelam, res e experimentados na organização deste novo tipo
quando harmonizados, uma eficácia extraordinária: de comunidade monástica, e estavam igualmente ap-
autonomia e centralização. O último destes aspectos tos a gerir os domínios dentro da prática cisterciense
baseava-se numa cadeia que unia os mosteiros cria- do fomento agrícola e da maximização do trabalho
dos aos mosteiros criadores, até todos estes ramos se da terra, tirando dela o maior rendimento possível.
unirem ao tronco comum que era a primitiva casa A regulamentação da vida num mosteiro cisterciense
onde tudo tinha começado em 1098. A obrigatorie- era feita por um conjunto de textos e resoluções
dade de os abades ou os seus representantes assisti- emanados do capítulo geral, e comunicados a todas
rem aos capítulos gerais da ordem, onde podiam ex- as casas da ordem, desde a primitiva Charla Chari-
por os seus problemas e as suas ideias, de onde tatis, a Charta prior e a Charta posíerior, a t é a o s e s -
emanavam as directrizes gerais que se aplicavam a tatutos de 1 2 0 2 - 1 2 0 4 . Não obstante esta regulamen-
todas as casas, por mais afastadas que estivessem da tação rígida da vida dos vários mosteiros, cada um
casa-mãe, reforça a coesão e evita excessos de auto- deles gozava de alguma autonomia no que diz res-
nomia que poderiam desembocar, muitas vezes, na peito à parte económica, em que a comunidade ge-
dissolução dos mosteiros por falta de meios ou ex- ria, no melhor interesse da ordem, os bens de que
cesso de independência. Com a difusão dos mostei- dispunha, tentando aumentá-los constantemente atra-
ros por regiões muito distantes do centro da ordem, vés de compras ou de doações. Este princípio de au-
esta obrigação de presença anual foi-se tornando aos tonomia centralizada caracterizava também um dos
poucos mais flexível, mas nem por isso a disciplina mais poderosos instrumentos da organização econó-
e a unidade se tornou menos rígida. Dentro deste es- mica desses mosteiros: as granjas. Dentro de cada
pírito estava igualmente o poder e o dever de os aba- mosteiro, a autoridade cabia ao abade, que se encar-
des visitarem uma vez por ano os mosteiros que de- regava da direcção espiritual e material dos monges
pendiam da sua abadia, controlando localmente a professos, dos noviços e dos conversos. Estes últi-
aplicação das directrizes gerais. Por outro lado, ne- mos, oriundos das classes populares, representavam
nhuma nova fundação ou mesmo filiação de mostei- uma mão-de-obra especializada e barata que se en-
ros já existentes se poderia fazer sem o consentimen- carregava da exploração directa das propriedades
to prévio do capítulo geral. Esse consentimento tinha dos mosteiros. Coadjuvando o abade havia um con-
como objectivos verificar se as terras doadas satisfa- junto de monges professos com funções bem deter-
ziam as exigências mínimas estabelecidas para a ha- minadas. Para além do prior, o tesoureiro, o vestiá-
bitabilidade do local e para a construção de uma no- rio, o celereiro-mor, o mestre dos escribas, o mestre
va casa, sendo um dos preceitos o estarem afastados das granjas e o mestre dos conversos, que no caso de
de locais habitados e, por outro lado, vigiar para que, Alcobaça* começa por ser um monge professo para,
no caso de uma fundação, a abadia-mãe não ficasse nos finais do século XIII, ser um cargo exercido por
com um número insuficiente de religiosos. Essa re- um converso. Os conversos não representavam, pelo
gra levava a que, antes da aprovação de uma nova menos em todos os casos, gente ignorante ligada ex-
fundação por parte do capítulo geral, fossem envia- clusivamente ao trabalho manual, mas podemos en-
dos abades inquiridores para se certificarem de que o contrar entre eles, por exemplo, tabeliães e (peque-
lugar preenchia os requisitos para a fixação dos nos) mercadores. Nas casas femininas, que só
12 monges e do seu abade, como estipulavam os Ins- começam a aparecer nos finais do século xn e, para
tituía Generalis Capitulo apud Cistercium: « D o m o - Portugal, em inícios do século xin, os estatutos são
do de se fundarem abadias. Se algum abade, pelo adaptados dos estatutos gerais da ordem, mantendo
elevado número de frades, quiser edificar uma abadia, as linhas essenciais do monacato cisterciense. Mas
primeiro procure um lugar apto para essa abadia; em estas casas não dependiam, de início, de nenhuma
seguida envie a esse lugar dois abades [de mosteiros] abadia masculina, mas estavam ligadas directamente
próximos» (cf. COCHERIL - L'implantation, p. 225). ao capítulo geral. Na prática, contudo, o capítulo ge-
Estas recomendações não foram impostas desde o iní- ral delega essa sua competência seja ao abade do
cio, mas resultam de uma resolução do capítulo geral mosteiro mais próximo de cada mosteiro feminino
de 1190, tomada provavelmente devido à multiplica- seja, no caso de França, aos abades de Cister ou de
ção de fundações falhadas, ou de casas que acaba- Claraval. Também as abadias femininas podiam fi-
ram por desaparecer pouco tempo após a sua funda- liar outras, num sistema semelhante à organização
ção ou filiação. De igual modo, nem sempre foi geral da ordem e, nesse sentido, também as abades-
respeitado, para a fundação de novos mosteiros, o sas das casas-mãe tinham o dever de inspeccionar as
número de 12 monges e um abade. Regra geral, um abadias-fílha. 2. Mosíeiros cistercienses portugue-
mosteiro só deveria fundar novas casas quando se en- ses: Os usos e as casas de Cister cedo entraram no
contrava com excesso de população monástica, o que território português. Comunidades eremíticas e al-
significava, segundo os Instituía, 60 monges professos. guns mosteiros de obediência beneditina foram os
Chegados ao local da nova abadia, deveriam encontrar primeiros a sofrer a influência da nova ordem. São
preparadas as condições mínimas indispensáveis para Cristóvão de Lafões terá sido o primeiro a aceitar a
poderem iniciar a sua fixação. Já deveriam existir ali regra cisterciense, cerca de 1 1 3 8 (cf. M A R Q U E S -
um pequeno oratório, enquanto a igreja não fosse A introdução), seguindo-se-lhe São João de Tarouca
edificada, o refeitório e o dormitório, entre outros em 1140 ou 1143, Alcobaça em 1153 e Salzedas em

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CLSTERCIENSES

1156, todas filiadas em Claraval. Destas, só Alcoba- Ordem de Cristo, herdeira da extinta Ordem do Tem-
ça é de fundação de raiz. Em 1148 Afonso Henri- plo (cujos estatutos tinham sido defendidos perante o
ques dá São Pedro de Mouraz a monges cistercien- papa por São Bernardo). O enquadramento de novos
ses vindos de França, mas esta fundação não chega a povoadores que vinham ocupar terras ainda não des-
ter lugar por desistência desses monges. As razões bravadas ou suficientemente aproveitadas vai fazer
não são conhecidas, mas este episódio vai reflectir- não só com que se aumente o rendimento das terras
-se na carta de doação de Alcobaça a São Bernardo, através de uma agricultura mais racional, mas igual-
de 1153, onde se estabelecia que os monges não po- mente vai proporcionar aos vários mosteiros ber-
deriam abandonar o couto que lhes tinha sido doado, nardos, com especial incidência em Alcobaça, uma
sob pena de o perderem para sempre. Foi esta cláu- forte ligação com essas comunidades que lhes for-
sula utilizada no século xix para retirar aos alcoba- neciam parte dos seus monges conversos, e igual-
censes os seus domínios, antes da extinção das or- mente um elevado número de pequenas doações em
dens religiosas em 1834, já que, temendo as revoltas terras, depois valorizadas por uma exploração di-
populares, os Bernardos tinham fugido para Lisboa recta até finais do século XIII. A partir dessa altura
em 1833, abandonando assim as suas terras. Destas começamos a assistir a uma progressiva diminuição
primeiras casas, apenas Tarouca e Alcobaça vão fi- do número de conversos, pelo menos em Alcobaça.
liar ou fundar outros mosteiros. Tarouca filia Santia- A explicação poderá estar na fuga de muitos desses
go de Sever, em 1143 ou 1144, Santa Maria de homens para as novas ordens, os Mendicantes, que
Aguiar entre 1170 e 1176, São Pedro das Águias em agora ofereciam a pureza de vida religiosa antes pro-
1170, Santa Maria de Fiães entre 1173 e 1179, e posta por Cister, mas que começava a decair devido
Santa Maria de Ermelo, através da filiação de Fiães. a um excessivo interesse pelos negócios do mundo.
Alcobaça filia Santa Maria de Tamarães em 1172, Mais tardias foram as fundações de mosteiros femi-
Santa Maria do Bouro em 1174, Santa Maria de Sei- ninos em Portugal. Os primeiros foram fundados e
ça em 1195, Santa Maria de Maceira-Dão antes de protegidos pelas filhas de Sancho I: Lorvão, que dei-
1200, Santa Maria de Estrela em 1220 e São Paulo xa a obediência beneditina e passa de masculino a
de Almaziva em 1221. Um outro mosteiro do Bouro, feminino, é fundado em 1206 por D. Teresa; Celas,
possivelmente um ermitério, no litoral entre Alcoba- em 1214, fundado nos arredores de Coimbra por
ça e Óbidos, foi filiado a Alcobaça mas em data que D. Sancha; e Arouca, fundado por D. Mafalda em
se desconhece, sendo apenas mencionado em docu- 1223. A fundação de Celas por D. Sancha tem ainda
mentação do terceiro quartel do século XIII, estando alguns pontos obscuros. Parece que a infanta teria
nessa altura em grandes dificuldades de sobrevivên- querido fundar um primeiro mosteiro em Alenquer,
cia. Depois é o silêncio total, pelo que se pode pre- que era de seu senhorio, e onde existia um conjunto
sumir que terá sido abandonado pelos seus monges. de mulheres vivendo em comunidade, as empareda-
Como se pode notar, as fundações de mosteiros mas- das ou inclusis, como referem os documentos. Poste-
culinos fazem-se, na sua maior parte, ainda na se- riormente teria optado por Coimbra, para onde teria
gunda metade do século xn, o que demonstra a acei- feito transferir essas mulheres ( c f . COCHERIL - Rou-
tação que a nova regra teve em Portugal, não só por tier, p. 156). Outra das dúvidas diz respeito a Santa
parte das comunidades eremíticas e de mosteiros re- Maria de Cós, a norte do couto de Alcobaça. A data
gulares, mas gozando igualmente da protecção régia da sua fundação é também discutida, aceitando Ma-
e de muitas famílias pertencentes à nobreza. Signifi- ria Alegria Fernandes Marques uma data anterior a
ca, igualmente, que em Portugal se não obecedeu à 1241. D. Maur Cocheril (Ibidem, p. 307-309) é de
resolução do capítulo geral de 1152, que mostrava opinião que o mosteiro só foi fundado no século xvi,
reservas em relação a novas fundações ( M A R Q U E S - tendo sido a sua primeira abadessa D. Benta de
A introdução). Mas alguns desses mosteiros não Aguiar. As referências anteriores designariam apenas
conseguiram manter-se, tendo desaparecido ainda um grupo de piedosas mulheres que viveriam em ca-
durante a Idade Média os de Ermelo, Tamarães e Es- sas pertencentes ao Mosteiro de Alcobaça, e que
trela. Dos mosteiros cistercienses portugueses, Santa prestavam serviço aos bernardos alcobacenses. Con-
Maria de Alcobaça foi o que mais marcou a vida tudo, documentação dos finais do século XIII refere -
económica e cultural no Portugal medieval. A pro- -as como «Donas de Cós», e a tradição conservada
tecção dispensada pelos reis portugueses ao cenóbio na documentação alcobacense coloca a data de fun-
alcobacense, com inúmeras doações desde o reinado dação antes de 1240. A essas quatro fundações se-
de Afonso Henriques, a proximidade aos importan- guiram-se, durante a Idade Média, as de São Salva-
tes centros urbanos que eram Lisboa e Santarém, a dor de Bouças, em 1249, São Bento de Castris,
ligação não só à nobreza do Sul mas igualmente depois de 1278, Santa Maria de Almoster cerca de
à velha nobreza do Norte, como o caso dos Sousas, e 1287, e São Dinis de Odivelas em 1295. A decadên-
as relações estabelecidas com os principais conce- cia das casas portuguesas, sobretudo de Alcobaça, é
lhos (nem sempre pacíficas) foram factores impor- visível a partir do século xv. A diminuição das voca-
tantes no crescimento daquele que se tornou o maior ções e o reduzido número de conversos leva a que a
mosteiro cisterciense em Portugal, não só em rique- exploração das propriedades seja feita indirectamen-
za mas também no número de filiações masculinas e te, diminuindo assim os rendimentos disponíveis.
femininas. Cedo Alcobaça estabeleceu relações for- Por outro lado, começavam-se a desenhar tendências
tes com algumas ordens militares. Em primeiro lu- de autonomia em relação à ordem, pela tentativa de
gar, com a Ordem Militar de Évora, ainda mesmo criar uma congregação portuguesa. Esta vontade,
antes da sua filiação em Calatrava, e depois com a que se pode observar nos inícios da segunda metade

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CLSTERCIENSES

do século xv, é reforçada pelos abades comendatá- contratos que o tempo se tinha encarregado de tornar
rios, nomeadamente pelos cardeais D. Afonso e pouco rentáveis. Contudo, essa decadência não im-
D. Henrique. Já em 1475 se tinha verificado um fac- pediu novas fundações, mais espaçadas no tempo,
to da maior gravidade para a independência do Mos- mas que demonstram alguns curtos períodos de dina-
teiro de Santa Maria de Alcobaça, quando o abade mismo. São disso exemplo a fundação do Colégio da
D. Nicolau Vieira cedeu (ou vendeu por uma pensão Conceição, em Alcobaça, em 1648, dos mosteiros
de 150 mil reais) a sua cadeira abacial a D. Jorge da femininos do Mocambo, em Lisboa, em 1653, e de
Costa, arcebispo de Lisboa. Apesar das tentativas de Tabosa, em 1692, tendo-se realizado a reforma das
reforma levadas a cabo no inicio do século xvi por Recolectas Descalças (Mocambo e Tabosa). No sé-
Frei João Claro, a decadência da ordem em Portugal culo xviii há ainda duas fundações: a do mosteiro de
não pôde ser parada. Como não se conseguiu parar a Setúbal, em 1756, e a do Desterro, em Lisboa, em
tentativa autonomista, não obstante os esforços do 1763. 3. Organização económica: O aproveitamento
abade Edme de Saulieu que, entre 1531 e 1533, visi- máximo das capacidades de um determinado conjun-
ta todas as abadias cistercienses portuguesas. A con- to de bens fundiários detidos por um mosteiro estava
gregação portuguesa, tendo à cabeça Santa Maria de já, nos seus princípios, consignado nas regras e reco-
Alcobaça, foi reconhecida finalmente pelo papa em mendações emanadas dos capítulos gerais, e mesmo
1567. A partir dessa data tenta-se uma nova reorga- enunciado de forma breve nos Exordia, onde se refe-
nização da ordem em Portugal, e escrevem-se novas ria que as terras recebidas para um novo mosteiro
constituições. Reformou-se a liturgia e fizeram-se deveriam estar afastadas de lugares habitados, mas
obras em boa parte dos mosteiros e igrejas. Procu- que nelas deveria haver vinhas, prados, florestas,
rou-se recuperar alguma eficácia na exploração dos água para a implantação de moinhos e para a obten-
bens da ordem, mas boa parte deles estava, havia ção de peixe, assim como cavalos e outros animais.
muito tempo, a ser explorada por particulares com Referiam ainda que as propriedades recebidas que se

Mosteiro de São João de Tarouca, da ordem dos Cistercienses (in Património Classificado: Distrito de Viseu, IPPAR,
1993, pág. 70).

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CLSTERCIENSES

encontrassem afastadas do mosteiro deveriam ser ber, como Alcobaça o fez, a importância fundamen-
governadas por conversos, que aí construiriam casas tal da força motriz da água, não apenas para moer o
(para habitação, mas igualmente celeiros, adegas e grão ou accionar maquinaria para outros fins (pisões,
lagares), já que, segundo a regra, a morada do mon- moinhos para o esmagamento do minério), mas tam-
ge deveria ser no claustro. Mas se havia uma regula- bém como meio de controlar a produção cerealífera
mentação geral, a forma de aplicar esses princípios de uma determinada zona. Um outro aspecto sa-
era deixada ao melhor critério do abade e dos seus lientado por Georges Duby (Ibidem, p. 98) é o de o
monges responsáveis (celereiros, granjeiros, ecóno- património dos mosteiros cistercienses se estender
mos, tesoureiros e outros). Desta forma, nunca dei- largamente por terras incultas, no «deserto» dos
xando de ter o controlo sobre todas as casas da or- matagais, das charnecas e dos pântanos, que consti-
dem, estas não estavam sufocadas sob a dependência tuíam um espaço cuja produção era cada vez mais
estrita que se observava nas casas submetidas a Clu- procurada, já que os homens, sobretudo os das cida-
ny. Era a diferença entre a exploração de tipo senho- des, pediam mais do que cereais. Era a procura da
rial clássico, e uma forma de economia que, sem se carne, como parte importante da dieta do homem
afastar dos princípios gerais da época e pondo a tóni- medieval. Esta descrição corresponde perfeitamente
ca na propriedade fundiária, percebeu as novas mu- à terra doada em Alcobaça por D. Afonso Henriques
danças e as novas necessidades de um mundo em ao abade de Claraval. A valorização das terras leva-
que a cidade começava a ter um papel cada vez mais va ao estabelecimento de granjas, unidades de explo-
importante. E em Portugal, na sua metade sul, a ci- ração agrária implantadas em zonas-chave, dotadas
dade esteve sempre presente na vida económica e dos recursos humanos e materiais para uma explora-
social das populações. Esse entendimento vai ao ção exaustiva das potencialidades. Mas estas granjas
ponto de aproveitarem, de forma total, as terras me- tendiam a ser unidades de produção especializada, já
nos boas que por vezes lhes foram destinadas. que encontramos, para o caso português, e sobretudo
A norma de exploração dos domínios impunha que de Alcobaça, algumas delas dedicadas fundamental-
os monges deveriam trabalhar as terras com as suas mente à criação de gado, à produção vinícola, à sali-
próprias mãos, para assim as valorizar e retirar exce- nicultura. A busca do lucro leva igualmente ao con-
dentes que serviriam não só para colocar nos merca- trolo dos meios de transformação, como os moinhos,
dos e sustentar os monges e os outros dependentes e ao estabelecimento de celerarias em povoações im-
do mosteiro, mas igualmente para poderem cumprir portantes, que eram centros de recolha da produção
cabalmente uma das missões confiadas aos monges: das propriedades cistercienses na região e ao mesmo
alimentar e agasalhar os pobres, pela multiplicação tempo encarregues de promover a sua comercializa-
da esmola. Mas não se pode concordar com D. Maur ção e, igualmente, a compra daqueles bens de que o
Cocheril (Routier, p. 5), quando afirma que, à sua mosteiro não dispunha nem fabricava. E evidente
chegada a Portugal, os monges bernardos teriam re- que nem todos os mosteiros tinham capacidade e
cebido as piores terras, já que as melhores estavam meios para entrar decididamente neste sistema de
nas mãos dos Beneditinos. Não se podem generali- produção e comercialização. Alguns ficavam reduzi-
zar situações como as de Estrela, Ermelo e Tamarães dos à intervenção em regiões muito limitadas. Ou-
(embora para este último caso possamos estar em tros, como foi referido, desapareceram quase de iní-
presença de uma apropriação por parte de Alcobaça cio ou levaram uma existência penosa. E embora
de bom número de propriedades na região de Ou- outras casas cistercienses portuguesas tivessem tido
rém), ou a desistência do estabelecimento em São importância no panorama económico ou mesmo po-
Pedro de Mouraz. Quanto a Alcobaça, as terras ins- lítico do reino, como foram os casos, apenas como
creviam-se entre as melhores da região conquistada, exemplo, de Tarouca, Salzedas ou Santa Maria do
embora, devido a uma população pouco densa, muita Bouro, é em Alcobaça, com os seus 44 mil hectares
dessa terra estivesse invadida por mato e floresta, e de terra apenas no seu couto principal, na sua máxi-
houvesse pauis a drenar. O arroteamento de novas ma extensão, que se pensa quando se descreve a rea-
terras era difícil, mas os novos povoadores que che- lização de todas as potencialidades de uma casa de
gavam a esses locais não dispunham, como os Cis- monges bernardos. 4. Cultura: O Mosteiro de Alco-
tercienses, de uma mão-de-obra especializada, barata baça foi, sem dúvida, o mosteiro cisterciense portu-
e disciplinada que trabalhasse sob a sua direcção, co- guês onde as terras e a cultura alcançaram maior bri-
mo acontecia com os frades conversos e mesmo al- lho, colocando-se a par dos maiores centros de
guns leigos. E não parece igualmente de aceitar que difusão cultural do Portugal medievo. É deste mos-
os mosteiros cistercienses não se preocupassem em teiro, igualmente, que se conserva ainda hoje um
juntar riqueza já que, como se viu, a isso eram in- conjunto apreciável de obras, não só manuscritos
centivados. Georges Duby (Saint Bernard, p. 97) medievais como ainda parte da livraria impressa,
considera que foram os Cistercienses os que melhor não obstante as depredações sofridas pela sua livra-
partido tiraram da aplicação na prática do preceito ria, e de que podemos ter uma ideia pelo inventário
da Regra de São Bento que obrigava os monges a que sobreviveu, possivelmente feito por Frei Fortu-
trabalhar a terra para daí poderem retirar o seu sus- nato de São Boaventura, no século xix. Algumas
tento. Isso vai acontecer no momento em que, na ge- dessas obras foram levadas de Portugal encontrando-
neralidade, as rendas em produtos agrícolas come- -se, por exemplo, em França, na Abadia de Santa
çavam a ficar desvalorizadas. A uma mão-de-obra Maria de Dombes. A base cultural e bibliográfica
disciplinada temos de juntar o conhecimento e a cisterciense teria pouco em comum com os hábitos
aplicação de novas técnicas, nomeadamente o perce- culturais dos mosteiros peninsulares ( c f . MATTOSO -

350
CLARETIANOS

Cluny, p. 118). Mas se isso é verdade, de uma forma económico quanto cultural) funda-se no cenóbio al-
geral, não se deve excluir toda a tradição de cultura cobacense uma escola para monges e noviços, cujo
local que os Bernardos encontrariam em mosteiros professor se manda vir de fora, e para o pagamento
filiados, e por muito arduamente que tentassem a sua dos seus serviços se destinam algumas importantes
reconversão à cultura transpirenaica, não deixariam terras no termo de Óbidos, de onde Alcobaça retira-
de continuar a conhecer e a estudar os textos que va altas rendas. Mas, ao contrário do que se acredita-
mais marcaram o monaquismo* ibérico, e a cultivar va e foi difundido por alguns cronistas posteriores,
nos seus claustros, apesar de tudo, algumas tradições essa escola não se encontrava aberta à frequência de
peninsulares. Podemos aceitar que em Alcobaça, leigos. O mosteiro estremenho vai ser igualmente
sendo francos os primeiros monges, enviados por um dos principais contribuintes aquando da criação
São Bernardo, estes trariam um conjunto de livros dos estudos gerais, pelo rei D. Dinis. Alcobaça conti-
recomendados pela ordem, sendo igualmente trans- nuou a ter papel importante nas letras portuguesas,
mitida aos noviços uma cultura de base francesa. com momentos de grande produtividade intelectual
Mas outras obras seriam comuns à formação monás- no meio de períodos de algum marasmo. Desde os fi-
tica de todo o Ocidente cristão, e já conhecidas na nais do século xvi que vamos encontrar em Alcobaça
Península. Estarão neste caso obras de Santo Agosti- alguns monges de grande projecção intelectual, ape-
nho e de São Jerónimo, por exemplo. Os monges sar da contestação surgida a algumas das suas obras.
bernardos terão ampliado, e em muito, o horizonte Homens como Frei Bernardo de Brito, autor da pri-
da cultura monástica em Portugal trazendo consigo, meira parte da História de Cister e iniciador da Mo-
ou mandando vir de França, um grande número de narquia lusitana, cuja «imaginação» levou a que ho-
obras raras ou inexistentes em território português. mens como Alexandre Herculano não só duvidassem
Mais difícil se torna, contudo, a percepção da in- das suas informações como tivessem posto em evi-
fluência de uma cultura mais especificamente portu- dência o prejuízo que essas obras tinham causado à
guesa. Desde o seu início que a Ordem de Cister se historiografia nacional. Mas menos polémicos foram
definiu como ligada a um ideal de cavalaria. Esta os continuadores da Monarquia lusitana, Frei Antó-
«definição» não só com a sua aproximação aos gru- nio Brandão, Frei Francisco Brandão e Frei Manoel
pos de jovens cavaleiros e às ordens militares, mas dos Santos. Este último continua a obra de Bernardo
igualmente porque se viam como «cavaleiros de de Brito quanto à história do Mosteiro de Alcobaça,
Cristo, pobres com o Cristo pobre» (Exordium pa- com a sua Alcobaça ilustrada. Saliente-se ainda o tra-
ruum). Este ideal, que se transferiu para as suas ca- balho desenvolvido por Frei Manuel da Rocha, Frei
sas portuguesas, em especial Alcobaça, mas sobretu- Manuel de Figueiredo e Frei Fortunato de São Boa-
do a ligação à nobreza, seja a grande nobreza, sejam ventura. A fuga dos monges em 1833, antecedendo a
os nobres de segunda linha, orientou parte da esco- extinção das ordens religiosas no ano seguinte, favo-
lha de textos ligados a um ideal de cavalaria. Mas a rece a pilhagem do mosteiro e a perda de importante
tradução de certas obras edificantes para língua vul- espólio bibliográfico e documental, a que teremos de
gar, dirigidas à formação de leigos, indica igualmen- acrescentar o roubo e a destruição de obras de arte,
te que parte dos conversos não eram homens iletra- em quantidade e qualidade ainda não calculadas.
dos, apesar de não saberem (ou dominarem mal) o
latim, e é igualmente por intermédio dos Cistercien- PEDRO G O M E S BARBOSA

ses que os membros das classes mais baixas da so- BIBLIOGRAFIA: C O C H E R I L , Maur - L'Ordre de Citeaux au Portugal: Le
ciedade acedem, pela primeira vez, a uma forma de problème historique. A Cidade de Évora. 39-49 (1957-1958) 139-159.
IDEM - Abadias cistercienses portuguesas. Lusitania Sacra. 4 (1959) 61-
espiritualidade pessoal «que contrastava com a espi- -92. IDEM - L'implantation des abbayes cisterciennes dans la Péninsule
ritualidade mítica praticada nos meios rurais desde Ibérique. Anuário de Estúdios Medievates. 1 (1964) 217-281. IDEM -
tempos imemoriais (MATTOSO - Cluny, p. 120). Tex- Routier des abbayes cisterceinnes du Portugal. Paris: FCG, 1978. Du-
BY, Georges - Saint Bernard. L'art cistercien. Paris: Flammarion, 1979.
tos como a Visão de Túndalo, os Solilóquios do G O N Ç A L V E S , Iria - O património do Mosteiro de Alcobaça nos sécu-
Pseudo-Agostinho e as Meditações do Pseudober- los xiv e XV. Lisboa: UNL/FCSH, 1989. M A R Q U E S , Maria Alegria F. -
A introdução da Ordem de Cister em Portugal. In LA INTRODUCCIÔH dei
nardo foram alguns dos traduzidos para português Cister en Espana v Portugal. Burgos: La Olmeda, 1991, p. 163-193.
pelos monges de Alcobaça, a que temos de juntar o M A T T O S O , José Cluny, Crúzios e Cistercienses na formação de Portu-
Horto do esposo e o Castelo perigoso. Talvez que os gal. In IDEM - Portugal medieval: Novas interpretações. Lisboa: INCM,
1985, p. 101-121. PEREIRA, F. J. - Note sur le revenu des abbayes de
bernardos alcobacenses estivessem também na ori- l'Ordre de Citeaux au Portugal. Comentarii Cistercienses. Citeaux. 44
gem, ou tivessem inspirado a tradução portuguesa da (1993) 321-353.
Demanda do Graal (cf. Ibidem, p . 1 1 9 ) . A p a r d a s
traduções e de alguma eventual produção própria,
Alcobaça possuía um importante scriptorium onde CLAMORES, v. RELIGIOSIDADE POPULAR.
monges copiavam e iluminavam códices, tanto para
uso da abadia como para difusão por outras casas CLARETIANOS. Congregação fundada por Santo An-
monásticas. Encontramos desde muito cedo essa tónio Maria Claret a 16 de Julho de 1849, em Vic
produção, e importantes doações em terras cujo pro- (Espanha) com o nome oficial de Congregação dos
duto de exploração deveria ser empregue na feitura Missionários Filhos do Imaculado Coração de Ma-
de livros. Pelo menos desde meados do século xn en- ria. As constituições foram aprovadas pela Santa Sé*
contramos referência a um «mestre dos escribas» em ad experimentum a 22 de Dezembro de 1865, sendo
Alcobaça, o que demonstra a importância que aí ti- aceites definitivamente a 11 de Fevereiro de 1870.
nha a produção de manuscritos. Na segunda metade A sua espiritualidade tem como ponto fulcral uma
do século XIII (um dos mais produtivos tanto a nível vocação missionária com um pendor fortemente
cristocêntrico. A congregação encerra no seu título
351
CLARETIANOS

um sinal da própria consagração ao Sagrado Coração tianos tiveram pouco cuidado e interesse em cumprir
de Maria, bem como o lugar importante que a espiri- essas disposições legais para evitar arbitrariedades
tualidade mariana representa para este instituto co- hostis, como se vieram a verificar, de facto, com a
mo meio para chegar a Cristo. O historiador claretia- instauração do regime republicano. O seu regresso
no da vida religiosa apresenta assim o «embrião» dá-se em 1920 com a fundação de uma casa em Frei-
donde brotaria esta congregação, num clima de proi- ne na diocese da Guarda*, donde se começaram no-
bição política da vida religiosa: «Inicialmente, os vamente a expandir. A sua actividade pastoral mais
Missionários Claretianos eram uma simples associa- significativa, nos primeiros passos desta fase de re-
ção sacerdotal, cujos membros observavam uma es- fundação, continuou a ser missões populares que
trita vida comum em vista do "apostolado da pala- realizavam com grande impacte. Em 1926, assumem
vra", sem vínculo jurídico algum. Não podiam emitir a primeira paróquia na cidade de Setúbal e aceitam
votos públicos, porque as leis civis que haviam su- as missões de São Tomé e Príncipe no ano seguinte.
primido as Ordens Religiosas o impediam. Mas a Experimentam uma presença breve em Santa Cruz
realidade profunda desta nova instituição eclesial era de Coimbra entre 1932 e 1938 e instalam-se em Lis-
a de uma vida inteiramente consagrada a Deus e aos boa, na Rua Nova do Almada, onde se fixa a sede da
irmãos através do ministério apostólico. O fundador congregação em Portugal, que ali permanece desde
redigiu desde o princípio umas constituições, cuja 1934 até 1988, passando depois para a Avenida Ga-
fiel observância era o único vínculo externo que os go Coutinho, devido a um incêndio. Entre 1936 e
unia. Desde 1858 começaram a emitir um juramento 1948 passam a dispor de um seminário menor em
de permanência, e, quem queria, fazia votos privados» Serém, no concelho de Águeda, e um noviciado nas
(ALVAREZ GOMEZ - Historia, v o l . 3 , p . 6 0 3 ) . A s u a m i s - Termas de São Vicente em Penafiel. Chegam ao Por-
são específica caracteriza-se pelo «ministério da pala- to em 1945, onde começam a dar assistência espiri-
vra em resposta às necessidades mais urgentes com os tual a uma pequena capelania religiosa. Depois edifi-
conteúdos evangélicos mais oportunos e os meios mais cam aí o seminário para os estudantes dos anos de
eficazes» (VINDE, p. 118). Em Portugal, a primeira fun- Filosofia que antecedem o estudo da Teologia, assu-
dação registou-se a 12 de Maio de 1898, na Aldeia da mindo também a responsabilidade de uma paróquia.
Ponte, concelho do Sabugal, pelo padre Lorenzo Os Claretianos experimentam, nas duas primeiras
Gonzalvez Navaes da Província de Castela. Os cla- décadas da sua reimplantação, sérias dificuldades fi-
retianos instalaram-se numa casa oferecida anterior- nanceiras, residindo em edifícios alugados e carentes
mente aos Irmãos Hospitaleiros de São João de Deus de meios para concretizar projectos mais ousados.
para funcionamento de um orfanato, o qual funcio- Todavia, o reconhecimento oficial do instituto, em
naria apenas durante sete anos. Os primeiros missio- 1944, como Corporaçãç Missionária e o trabalho dos
nários claretianos passaram por enormes dificulda- seus missionários em África possibilitaram a recep-
des devido às precárias condições em que viviam. ção de subsídios estatais que passam a garantir o pa-
Todavia, até 1901 realizaram campanhas de aposto- gamento das despesas tidas com a formação dos can-
lado admiráveis, pois «para estas gentes as missões didatos ao sacerdócio. A partir de então, verifica-se
são coisas novas e nunca vistas, porque há mais de uma significativa expansão e consolidação dos clare-
trinta anos que não se tinham dado no país e as que se tianos portugueses. Em 1950, ganham uma maior
deram não eram senão simulacros de missão» (FER- autonomia, recebendo o estatuto de vice-província.
NANDEZ - Compendio, p. 763). Importantes foram É nesta altura que adquirem o Seminário Menor dos
também as missões e as novenas pregadas no San- Carvalhos, em Vila Nova de Gaia, juntamente com o
tuário de Nossa Senhora da Lapa, diocese de Lame- Colégio-Internato dos Carvalhos, que lhe ficava qua-
go*, com numeroso público e com grande ressonân- se fronteiro. Três anos depois abrem uma casa em
cia nos periódicos locais. Uma segunda fundação Fátima, a qual se transformará mais tarde em casa de
acontece a 1 de Maio de 1903, na Fraga, Aguiar da formação. Em 1956, instalam aí o noviciado, casa
Beira, onde ficou instalado o postulantado, inaugura- que funcionará também como seminário maior até
do em Outubro de 1903. Em Lisboa abriu-se uma 1973, tendo também, actualmente neste concelho,
terceira casa no ano de 1905. Em Izeda, diocese de três paróquias à sua responsabilidade. A formação
Bragança, constrói-se um templo dedicado ao Cora- dos seminaristas maiores foi transferida ultimamente
ção de Maria. Outra casa que fundam é a de Campo para uma casa contígua ao Colégio Universitário
Maior a 25 de Junho de 1908. A criação desta nova Pio XII, colégio construído em 1957 com o fim de
comunidade deveu-se aos pedidos do núncio em Lis- acompanhar espiritualmente os estudantes universi-
boa. No Porto a congregação marca presença a partir tários que aí viessem a residir. Entre 1958 e 1977, os
de 1 de Julho de 1908, na Real Oficina de São José. Claretianos assumem a pastoral dos Emigrantes Por-
O crescimento do número de membros e das obras tugueses através da Missão Católica Portuguesa de
em Portugal é interrompido em 1910 com a procla- Paris. Abrem uma missão em Angola*, a qual é en-
mação da I República e com a expulsão das ordens cerrada abruptamente em 1980 devido à guerra e de-
religiosas, sem que os Claretianos chegassem a ter pois reaberta novamente em 1992. Em Portimão,
qualquer membro português. A situação legal dos instituem uma nova comunidade em 1976 para cui-
Filhos do Coração de Maria nunca tinha chegado a dar da pastoral da População Turística e de uma pa-
ser bem definida. Por um lado, porque a legislação róquia em Alvor. Finalmente, em 1990 inauguram
portuguesa, pouco favorável às ordens religiosas, su- uma casa em Tondela com uma equipa de religiosos
bordinava estas a procedimentos e requisitos buro- destinada à pastoral Juvenil e Vocacional. Hodierna-
cráticos diversos; e, por outro lado, porque os Clare- mente, os religiosos da Província Portuguesa da

352
CLARISSAS

Congregação dos Missionários do Coração de Maria tos próprios destas novas religiosas; nela se baseou,
(70 sacerdotes, 10 irmãos e 18 estudantes professos) desenvolvendo-a, a regra, escrita pela fundadora e
servem a educação cristã nos seus colégios, têm 10 aprovada no final da vida desta, em 1253, por Ino-
paróquias a seu cargo em centros urbanos e suburba- cêncio IV. Já em 1216 Clara solicitara ao papa a con-
nos, assistem à pastoral da Saúde em diversos hospi- cessão do direito (inédito para casas femininas) de
tais, além do trabalho missionário que desenvolvem estas irmãs nada possuírem e de não serem obriga-
em Angola e São Tomé e Príncipe*. Têm ainda um das a aceitar doações ou rendas; este denominado
movimento de espiritualidade laical denominado «privilégio da pobreza» foi imediatamente outorga-
Leigos Claretianos e publicam a Onda Claretiana. do por Inocêncio III, e confirmado por Gregório IX
JOSÉ EDUARDO FRANCO em 1228. Não obstante, em 1219 a Santa Sé*, atra-
vés do cardeal Hugolino, aplicou às Clarissas a Re-
BIBLIOGRAFIA: ALVAREZ G O M E Z , Jesus - Historia da la Vida Religiosa.
Madrid: Publ. Claretianas, 1990, vol. 3. C L A R E T , António Maria - A mi- gra de São Bento, pela qual apenas são obrigatórios
nha vida. 2." ed. Vila Nova de Gaia: Ed. PCMCM, 1984. F E R N A N D E Z , para as mulheres consagradas os votos de obediência,
Cristobal - Compendio historico de la congregacion de los hijos dei castidade e clausura; na mesma linha de pensamento,
Imaculado Corazon de Maria. Madrid: Ed. Coculsa, 1967. VINDE e vede:
Formas de vida consagrada na Igreja. Lisboa: Edições Paulinas, 1995. em 1263 Urbano IV sancionou as constituições ba-
seadas na Regra de São Boaventura e do cardeal Ur-
CLARISSAS (Ordem de Santa Clara). Em Fevereiro sini, de 1258, que consideram as propriedades e ren-
de 1258, dois anos e meio após a canonização de das como o principal sustento das comunidades
Clara de Assis, as Clarissas passaram a estar presen- religiosas femininas, e a sua regra tornou-as obriga-
tes em Portugal ao ser outorgada por Alexandre IV a tórias para todas as clarissas. Estas diferentes con-
regra do cardeal Hugolino a um mosteiro em Lame- cepções de pobreza e das formas de garantir a sub-
go, constituído de motu proprio por leigas devotas sistência das freiras de clausura ecoam nas duas
locais; em Abril, bula de igual conteúdo foi enviada grandes correntes que cindem a ordem franciscana
a um outro próximo, em Entre-os-Rios, fundado por no seu conjunto no século xiv: a conventual ou
Dona Chamoa Gomes e seu marido, onde desde claustral, seguidora de uma regra mitigada por dis-
1256 viviam algumas damas com três clarissas vin- pensas papais quanto à relação com os bens mate-
das de Zamora. Em 1259, as ocupantes do de Lame- riais, e a observante, adepta de um total rigorismo
go, considerado o mais antigo da ordem em Portu- quanto a pobreza e austeridade de vida. O primeiro
gal, foram iniciadas na observância regular por mosteiro português de clarissas a optar pela obediên-
irmãs estrangeiras, e, em parte por estarem muito cia aos vigários da nova tendência rigorista foi o da
distantes de casas masculinas da ordem franciscana Conceição, em Beja, em 1489. Por seu turno, a
(situando-se as mais próximas na Guarda e no Por- adopção da Regra de Santa Clara, de 1253, a chama-
to), transferiram-se com autorização papal para o da «Primeira Regra», com a subsequente proibição
mosteiro expressamente acabado de edificar por de rendas e dotes, concretizou-se com a denominada
D. Afonso III em Santarém, cidade onde a corte es- «Reforma de Santa Coleta» (1381-1447), cuja pri-
tacionava habitualmente e onde um convento de meira adesão em Portugal, ainda no século xv, foi a
franciscanos*, implantado havia dezassete anos, po- do Mosteiro de Jesus, em Setúbal*, iniciado em
dia assegurar às religiosas a necessária direcção es- 1490 e povoado em 1495 com sete clarissas espa-
piritual. Encontram-se presentes nesta primeira fun- nholas; de algumas alterações à reforma coletina
dação todos os traços que marcam a história das nasceram em 1538 as clarissas ditas «capuchinhas»,
Clarissas em Portugal: escolha da regra adoptada pa- cuja primeira casa em Portugal foi a da Porciúncula,
ra cada mosteiro; determinação de quais as autorida- em Lisboa, fundada em 1647. Para além da destrinça
des eclesiásticas masculinas de quem uma comunida- entre os mosteiros de «urbanistas» e os «da Primeira
de depende (um dado cenóbio franciscano ou o bispo Regra», a diferenciação passava também pela obe-
local); recurso a casas femininas já existentes, no diência prestada a franciscanos claustrais, a obser-
território ou no estrangeiro, para novas fundações; vantes ou ao «ordinário» (o bispo local), havendo
localização dos mosteiros em centros urbanos por to- casos de oscilação, numa mesma comunidade femi-
do o país, com uma cronologia quase ininterrupta até nina, entre estas três jurisdições. Os mosteiros de
hoje; vitalidade transmitida por mulheres piedosas clarissas espalharam-se por Portugal, chegando a
seculares; relações com autoridades temporais, habi- atingir, em 1739, o número de 65, e havendo mesmo
tualmente marcadas por alguma protecção (embora alguns centros urbanos com vários (veja-se MOREIRA -
haja casos pontuais de conflitualidade). 1. A regra Breve, p. 224); em alguns deles eram preferencial-
seguida: Viver em inteira dedicação a Deus, em hu- mente admitidas as filhas das famílias socialmente
mildade, penitência, pureza, afastamento do mundo mais destacadas. 2. Relações com o mundo secular:
secular e despojamento de bens materiais pessoais, é Como qualquer ordem religiosa feminina, a estrutu-
o objectivo das Clarissas; daqui a profissão dos vo- ração das Clarissas nasceu da necessidade de definir
tos solenes de obediência, castidade e pobreza em as regras de vida a seguir por mulheres congregadas
clausura. Este último é o que mais notoriamente di- pela vontade de se consagrarem em permanência à
ferencia a ordem das demais, desde o início, e tam- oração e a uma espiritualidade específica; em conse-
bém o que mais divisões origina. Em 1212 ou 1213 quência dos votos solenes de castidade, obediência e
Clara e as suas primeiras companheiras receberam, pobreza, tiveram de assumir especial relevo as regu-
oralmente e por escrito, do seu pai espiritual, São lamentações e determinações internas destinadas a
Francisco de Assis, a «Forma de Vida», que definiu impedir qualquer contaminação comportamental do
os principais valores espirituais e os comportamen- espaço intrínseco da comunidade pela sociedade se-

353
CLARISSAS

cular envolvente. É dentro destes parâmetros que


têm de ser situadas realidades aparentemente tão dis-
tantes como o ensino e a educação de meninas e de
jovens (não apenas daquelas que se preparavam para
ser freiras, mas também de outras que eram confia-
das ao mosteiro para aí serem instruídas quer nos va-
lores cristãos quer na leitura, na escrita, no canto,
nas artes domésticas), a comunicação com as famí-
lias das religiosas, a gestão do património conven-
tual (obrigatoriamente a cargo de um síndico, procu-
rador secular) ou o dote. Sendo vedado às Clarissas
quebrar a clausura para irem angariar esmolas, o dote
tornou-se imprescindível para garantir a subsistência
individual e a sobrevivência da comunidade sem de-
pender das boas-vontades alheias; por isso, e de
acordo com estudos feitos para os séculos xvi e XVII,
era impossível uma postulante a clarissa vir a ser
aceite num convento se o respectivo dote não fosse
entregue (pelos pais, por outros familiares, até por
instituições expressamente fundadas para tal, as cha-
madas «administrações» dos bens de beneméritos); o
seu valor, segundo os poucos estudos existentes, pa-
rece ter tido pequenas oscilações e situava-se, pelo
menos na ilha açoriana de São Miguel ao longo dos
séculos xvi e XVII, nos 300 000 reais, entregues em
numerário e/ou em rendimentos (de trigo) ou pro-
priedades aquando da profissão dos votos solenes,
um ano após o início do noviciado. Ainda no que se
refere à relação com o mundo secular, é de realçar o
dinamismo transmitido às Clarissas por mulheres pie-
dosas que voluntariamente se juntaram e aderiram à
regra, quer vivendo em recolhimentos como «mantela-
tas» (terceiras franciscanas seculares) quer originando
a passagem a mosteiro ou integrando-se num, como
freiras ou como leigas com estatuto especial (como su-
cedeu com algumas rainhas e infantas portuguesas).
Aliás, este movimento do século para o mosteiro foi
frequente em Portugal nos séculos XIII a xvi, e no sen-
tido inverso desde o século XVII até à extinção das ca-
sas religiosas (1832-1834), tendo as de clarissas, ao
contrário dos conventos masculinos, sido autorizadas a
manter algumas casas até ao falecimento da última re-
ligiosa, e, nalguns casos, a aceitar pupilas mas ficando
estas impedidas de fazer votos. Deste modo, pelo me-
nos três mosteiros (no Funchal, no Louriçal e em Lis-
boa) se mantiveram até à implantação do regime repu-
blicano, em 1910, sendo então extintos devido às
novas leis anticongregacionistas; as réfundações dos
três recomeçaram em 1928, e a sua plena revalidação
canónica ocorreu trinta anos depois para os dois pri-
meiros e na década seguinte para o de Lisboa (transfe-
rido para Sintra em 1971). Desde os anos 50 do sécu-
lo xx até ao final de 1992 passou a haver em Portugal Santa Clara Exibindo a Sagrada Custódia aos Infiéis,
dez mosteiros de clarissas (nove dos quais integrados painel do Tríptico de Santa Clara (segunda metade do
na Federação do Imaculado Coração de Maria), todos século xv). Coimbra, Museu Nacional de Machado de
seguidores da Regra de Santa Clara e obedientes aos Castro.
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C L E R O REGULAR

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lar não se define pela acção, mas na entrega total a
g a l . I n C O N G R E S O INTERNACIONAL « L A S C L A R I S A S EN ESPAKIA Y P O R T U G A L » , Deus, expressa na abertura a tudo o que o mesmo
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em Portugal, séculos xm-xvi. In SEMINÁRIO «O FRANCISCANISMO EM P O R - lar) não se harmonizou facilmente à orgânica da
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Madrid: Archivos e Historia, 1994, vol. 2, p. 1033-1071.
dos Mendicantes em forma de jurisdição papal. Toda
essa disposição jurídica decorria de uma eclesiologia
que aceitava o Papa como pastor universal e, portan-
CLÉRIGOS MARIANOS DA IMACULADA CONCEIÇÃO to, como responsável de todos os assuntos que dis-
DA BEATÍSSIMA VIRGEM MARIA. v. MARIANOS. sessem respeito à totalidade da Igreja. Foi assim que
este ministério religioso, na sua acção pastoral, ultra-
CLÉRIGOS REGULARES TEATINOS DA DIVINA passou os limites da diocese e da paroquialidade -
PROVIDÊNCIA. V. TEATINOS. ganhou dimensões de universalidade. Em Portugal, o
relacionamento do clero regular com a Igreja local
CLERO REGULAR. 1. Introdução: A vida regular, na conheceu alguns momentos de tensão aquando da
sua versão mais primitiva, centrava-se na contempla- vinda das ordens mendicantes. Efectivamente, tudo
ção, pondo de parte qualquer acção apostólica; e indica que a aderência popular foi respeitavelmente
quando esta acontecia, por motivos de caridade, era significativa. O mesmo aconteceu por parte da Co-
encarada como uma renúncia pontual ao gozo da roa. A mobilidade dessas instituições e o contacto
contemplação. Santo Agostinho e Eusébio de Vercel- directo que mantinham com as populações causou
li propiciaram experiências positivas de fusão entre estranheza nalguns círculos monásticos e nos qua-
vida clerical e vida regular. Essas experiências não dros da igreja diocesana. Os Franciscanos*, ainda no
anularam a especificidade das duas formas de exis- século xiii, tiveram sérios problemas na zona centro
tência cristã. O monacato da periodização medieval do país com os Cónegos Regrantes de Santa Cruz*.
(v. MONAQUISMO), seguidor de regras diferenciadas, é No Porto e em Braga, vê-se com certa apreensão a
predominantemente laical. Urgências de ordem pas- afluência dos fiéis às igrejas dos regulares, debilitan-
toral e de evangelização favoreceram a sua clericali- do inevitavelmente a frequência dos templos paro-
zação. Com a reforma cluniacense, os mosteiros quiais. Para pôr cobro a essa tendência, dificulta-se a
transformam-se em centros de espiritualidade. De- acção de pregação e questiona-se a validade dos sa-
corrente dessa, dá-se particular atenção à celebração cramentos administrados nas igrejas dos Mendican-
da missa que passa a ter reflexos internos e externos. tes. A ordem dominicana teve um início auspicioso
Efectivamente, são muitos os que se encomendam à em Portugal; puderam contar com a protecção real e
oração do mosteiro, particularmente na celebração o entusiasmo popular. Em zonas onde a suspeição
da missa. Nessas circunstâncias, entra-se num pro- institucional se observava em relação aos Francisca-
cesso de sacerdotalização dos membros para dar res- nos, deu-se-lhes primazia e melhor acolhimento. Is-
posta, pela missa privada, às contínuas solicitações so foi particularmente sentido na diocese do Porto*.
dos fiéis. Viveu-se um período de certa ambiguidade As razões acima referidas provocarão, de quando em
sobre o específico das duas vocações. A experiência vez, atritos que se irão manter ainda por muito tem-
dos cónegos regulares introduziu uma maior harmo- po. Dessa forma, sentirão também dificuldade na sua
nia entre o ministério ordenado e a vida regular. Tra- pregação itinerante e em poder contar com a genero-
tou-se de uma vida clerical regular plenamente inse- sidade dos fiéis em muitas zonas do país. A questão
rida na dinâmica das dioceses. A clericalização das foi suficientemente sopesada em Roma; dois decre-
ordens mendicantes não se deu de igual modo nas tos papais (Gregório IX e Clemente IV) devolvem
fundações que se reclamavam desse ideário. Herdei- aos Mendicantes as prerrogativas anteriormente con-
ros de várias tradições de regulares, rapidamente se cedidas às duas famílias religiosas (Franciscanos e
deram a conhecer como movimentos de pobreza e de Dominicanos*). Ficava assim aberta a possibilidade
pregadores itinerantes. Ao implantarem-se no tecido de procederem à pregação e esmolar como expres-
urbano emergente, adoptaram a comunidade com são de pobreza. Consolidam-se de igual modo as ju-
ministérios. Por essa ordem de razões, a vida do con- risdições nos seus espaços de culto sem qualquer im-
vento afirma-se como uma vida mista. Uns, em vir- pedimento à devoção dos fiéis. O incremento sempre
tude do ministério para o qual tinha sido fundada a crescente de regulares nos séculos xiv e xv não favo-
ordem ou que a ordem veio a assumir posteriormen- receu o justo equilíbrio e o melhor entendimento
te, viram-se mais para o exterior; outros, por força com as estruturas da igreja diocesana. Por sua vez, o
da exigência do ordenamento regular, cultivam a próprio ordenamento religioso, sofrendo de uma
observância de normas e actos comunitários. Esta massificação significativa e de um descontrolo ob-
tensão entre ministério e vida regular encontrou servante, conhece índices de descrédito preocupan-
resposta na teologia; imperou o princípio unificador, tes. Mérito tiveram os que intuíram a necessidade de

355
C L E R O REGULAR

revitalizar a vida cristã pela mediação de um minis- conflitos que surgiam no terreno. Nos territórios da
tério ordenado, vocacionado directamente para as missão, empenhou-se de forma notável o clero regu-
carências dos humanismos emergentes dos sécu- lar. O papado, como primeiro responsável do anún-
los xv e xvi. Em ordem a uma resposta coerente, dá- cio da fé nas novas terras, vê-se obrigado a uma de-
-se o surto fundacional de algumas associações de legação político-religiosa. Constitui-se o sistema de
clérigos que, de forma organizada, traduzem o seu padroado*, tido como o melhor instrumento para a
ministério num enquadramento regular. 2. Ordens rápida missionação das terras do ultramar. Para lá se
clericais: A regularização clerical foi um movimento deslocaram inicialmente alguns membros de ordens
típico do século xvi. Ao inverso da tendência obser- religiosas sedeadas em Portugal. Os riscos iniciais, o
vada na generalidade das fundações de regulares do suporte económico e o envolvimento natural da Co-
primeiro milénio, dá-se agora a instituição de famí- roa determinaram que a responsabilidade delegada
lias de clérigos num ordenamento regular. Os condi- recaísse nos freires de Tomar. A actividade do clero
cionalismos sociorreligiosos e o pendor humanista regular nas terras da missionação portuguesa não se
favoreceram um tipo de clérigo fortemente vocacio- deu de forma linear. A contextualização da missão
nado para tarefas humanizadoras: educação, saúde, teve muito a ver com a sensibilidade nacional. Efec-
missão itinerante, paroquialidade e cultura. E den- tivamente, após a descoberta do caminho marítimo
tro deste contexto que ganha visibilidade o sacerdote para a índia* e a deslocação de militares, comercian-
religioso educador, missionário, pregador e promotor tes e missionários para essas paragens, a presença e
social. Serão, de facto, exigências de ministérios acção dos regulares nem sempre esteve isenta de in-
concretos que estarão na génese das novas funda- teresses alheios à tarefa evangelizadora. A apetência
ções: Teatinos (1524), Somascos (1534), Barnabitas mercantil e a possibilidade de transaccionar metais
(1530), Jesuítas* (1540), Mãe de Deus (1574), Ca- preciosos e especiarias toldaram também os espíritos
milianos (1582), Caracciolinos (1588) e Escolápios de alguns agentes da missão. As casas religiosas au-
(1617). As actividades propostas pelos fundadores mentaram, as pedagogias da missão diversificaram-
ater-se-ão a regras flexíveis, acomodadas a tarefas -se, mas a missionação ficou-se muito pela costa,
que se propunham implementar. Nesse sentido, Iná- onde a presença militar era mais expressiva. Com a
cio de Loiola, para a Companhia de Jesus (v. JESUÍ- chegada dos Jesuítas, a missão adquire nova vitali-
TAS), não propõe a oração coral, significando com is- dade. A itinerância acontece e a ruralização da mis-
so um propósito claro de lançar a nova fundação são passa a ser uma realidade. O contacto com as po-
numa actividade intensa ao serviço das exigências pulações e seus problemas obriga os padres da
do Reino de Deus. E habitual situar essas colectivi- Companhia a implementar uma vida cristã em mol-
dades religiosas na prossecução dos imperativos de des mais inovadores, à revelia, muitas vezes, da hie-
reforma emanados do Concílio de Trento (1545- rarquia. As mutações político-econômicas do perío-
-1563) (v. CONCÍLIOS ECUMÉNICOS). Efectivamente, as do filipino tiveram os seus reflexos na acção do
dinâmicas da Igreja pós-conciliar tiveram uma subs- clero regular. Dá-se uma certa ambiguidade quanto
tantiva participação dessas famílias religiosas. No à interpretação das cláusulas que determinavam o
entanto, deve dizer-se que uma boa parte delas foi específico do Padroado Português e a forma como
fundada antes daquela celebração ecuménica. De esse privilégio devia ser exercido. Ajuntar a tudo is-
forma profética, propuseram um sacerdócio mais so, com a instituição da Congregação da Propaganda
condizente com o jeito de Jesus. Compreendendo a Fide (22 de Junho de 1622), a missão deixa de ser
abrangência do Concílio de Trento, implementaram uma actividade sectorialmente localizada para ser as-
a instrução e o exercício de uma vida cristã mais in- sumida, de forma mais espiritual, por um papado
tensa. Os clérigos regulares, à excepção da Compa- mais interventor. O clero regular, presente nos terri-
nhia de Jesus, tiveram uma implantação modesta em tórios de possessão portuguesa, e que em tempos ti-
território nacional. A vinda dos Teatinos* signifi- nha sentido dificuldade em harmonizar metodologias
cou uma presença de passagem para a missionação de trabalho com agentes das diferentes ordens reli-
portuguesa em terras do Oriente. A contribuição giosas, agora, com as novas orientações romanas, se-
teatina ficou aquém das expectativas criadas. Sorte rá confrontado com exigências de uma missão mais
idêntica tiveram os Camilianos; numa fase poste- aberta e universal. Os atritos no terreno não se fize-
rior, acabaram por unir esforços com a congregação ram esperar: o entusiasmo pela missão declina; os
portuguesa dos Agonizantes. Esse impacte menor actos de envio servem para dar continuidade a obras
prendeu-se em parte com a especificidade dos ca- já anteriormente assumidas sem perspectivas de se
rismas que os animavam: educação, instrução do adentrarem por novos territórios. No Oriente, a pre-
povo e salvação das almas. A Companhia de Jesus, sença dos missionários da Propaganda, com jurisdi-
fortemente apoiada pela Coroa, acabou por polarizar ção autónoma, polarizou obediências diversificadas
uma acção diferenciada, cobrindo praticamente a ge- no clero religioso. Nessas questiúnculas perdeu-se,
neralidade das áreas onde os novos regulares podiam efectivamente, muito ardor apostólico. No Brasil,
ter tido também os seus espaços. A pregação itine- nos séculos xvii e xvm, as relações do clero missio-
rante, a orientação espiritual e, particularmente, a nário com os bispos foram habitualmente tensas. Por
administração dos sacramentos continuavam a ser razões óbvias, os bispos, quando chegavam às dioce-
pontos sensíveis onde a harmonia entre regulares e ses, encontravam já uma estrutura de trabalho na
seculares nem sempre se fazia a contento de todos. qual não tinham tido parte. A precariedade das situa-
Os bispos, provenientes na sua maioria da área mo- ções obrigava os agentes da missão a uma flexibili-
nástico-medicante, sanavam habitualmente pequenos dade na acomodação do seu modo de estar junto das
C L E R O REGULAR

populações; ao responder a esses desafios, nem sem- lário de uma política anticongreganista para a qual
pre tinham na devida conta a autoridade diocesana. muito contribuiu a crise dos regulares, a animosida-
Os ordinários, exigindo uma acção coordenada de de de alguns sectores da população, o anticlericalis-
pastoral missionária, irão impor normas administra- mo* e algumas razões de ordem económica. Com o
tivas. Nessas circunstâncias, as obediências serão decreto de extinção, os regulares ficaram na condi-
lentas, as polémicas instalar-se-ão e a boa relação, ção de egressos compulsivos. Deu-se a inevitável
que a caridade evangélica exigia, será obnubilada dispersão. Alguns tentaram a emigração; a maioria
pelo confronto e pelo conflito. O clero regular conti- acabou por encontrar, em condições precárias, um
nuou numeroso por todo o século xvni. A expulsão lugar de sobrevivência, recorrendo à incardinação
dos membros da Companhia de Jesus abalou sobre- diocesana ou a um serviço público. Como corpo re-
maneira a missionação e a área educativa. Algumas gular tiveram de assumir a contingência da clan-
medidas subsequentes, restritivas para os regulares destinidade. Na segunda parte do século xix, algu-
quanto à construção de novas casas e à admissão de mas ordens e congregações religiosas recentemente
novos membros, afectaram sobretudo as vocações reorganizadas em Portugal repartem a sua actividade
que provinham da nobreza ou das classes urbanas na área da educação, pregação e missionação nos
mais prósperas. A década que precedeu a Revolução territórios ultramarinos; de forma velada e a coberto
Francesa foi de quebra quanto ao número de profes- de uma contemporização estatal, introduzem na Igre-
sos. As medidas de D. Maria I e a influência das no- ja portuguesa dinamismos de cariz humano e espiri-
vas correntes de pensamento poderão ter estado na tual. A partir das suas igrejas e oratórios oferecem
origem desse decrescimento. A distribuição do clero direcção espiritual e orientam as pessoas para uma
regular, adstrito a mosteiros e conventos, adensava- vida sacramental mais intensa. Trouxeram para o
-se, por ordem decrescente, pela Estremadura, Alen- meio nacional associações religiosas que se destina-
tejo, Minho, Trás-os-Montes e Algarve. Essa disse- vam à formação e orientação espiritual. Todas essas
minação de casas nem sempre correspondeu ao peso actividades eram apoiadas por boletins periódicos
demográfico das respectivas regiões. A maioria das que punham os seus membros em sintonia com os
vocações provinha do tecido urbano, sendo notória a desafios que se colocavam à Igreja na viragem do
presença da nobreza rural no ordenamento monásti- século. Como corpo de Igreja, actuou segundo a
co. As cifras de 1765 apontam para uns 30 000 regu- mentalidade do tempo - tendência autonómica em
lares presentes em território nacional. A sua base áreas juridicamente suportáveis pelo direito positivo
económica, para os monásticos, radicava nas rendas da Igreja. Com a República, em 1910, são expulsas
de um património considerável; para os mendican- todas as ordens e congregações religiosas; o clero re-
tes, apoiados por um bom número de irmãos leigos, gular passa a carecer de estatuto legal para o exercí-
centrava-se na dependência da caridade directa e, in- cio de qualquer actividade. Uns conseguiram guarida
directamente, no trabalho desenvolvido nalgumas em países vizinhos, enquadrados nas suas famílias
fundações. No início do século xix, o mundo dos re- religiosas; outros integraram-se na orgânica da igreja
gulares arrasta consigo sinais notórios de decadên- diocesana. Alguns anos mais tarde, já em condições
cia. A manutenção de uma população excessiva em mais favoráveis, reorganizam-se e dão nova visibili-
mosteiros e conventos colocava sérias dificuldades dade aos seus carismas específicos. A vertente mis-
de subsistência. O recrutamento vocacional conti- sionária, enfraquecida pela hostilização republicana,
nuava deficiente, possibilitando o ingresso fácil em é retomada novamente por ordens e congregações,
conventos e mosteiros. Não sem razão se lhes assa- particularmente vocacionadas para a evangelização.
cavam várias acusações, centradas, sobretudo, na Os anos que precederam o II Concílio do Vaticano
pouca disciplina regular, ociosidade, pouco pendor (1962-1965) foram motivadores para a tarefa evan-
intelectual e fraquejamento no ideal missionário. gelizadora da Igreja. O clero regular deu corpo a
Com as Invasões Francesas, deu-se a ocupação de inúmeras iniciativas no antigo ultramar português.
muitas casas religiosas com a inevitável dispersão 3. Conversos: O termo converso, ligado aos regula-
de muitos religiosos, despertando em muitos o ar- res, não teve sempre a mesma compreensão semânti-
dor patriótico, traduzido na participação activa em ca. Nos primórdios do medievalismo, dava-se o no-
operações militares e de guerrilha contra as forças me de converso ao monge que, numa idade adulta,
invasoras. Um pouco mais tarde, após a revolução ingressava num mosteiro. Com as reformas monásti-
de 1820, aquando da luta entre liberais e absolutis- cas, criaram-se condições para uma aderência mais
tas, a divisão entre o clero foi notória e o desassos- popular ao ideal monástico. A tendência ascética,
sego instalou-se definitivamente entre os regulares. que tinha sensibilizado monges e clérigos, alastrou
A mentalidade regalista e iluminista imperante, aca- de igual modo ao mundo laical. Muitos deles, renun-
rinhada pelos liberais, bateu-se pelo enquadramento ciando inicialmente a uma parte dos seus bens, leva-
dos regulares na ordem política e eclesiástica nacio- vam, na proximidade do mosteiro, uma vida meio
nal, rompendo, desse modo, com o seu carácter su- monástica. Será desses ambientes que provirão os ir-
pranacional e de isenção canónica perante os bispos mãos leigos que, convertendo-se ao ideal monacal,
locais. Questionava-se o sacerdócio religioso em or- assumirão uma organização que será parte integrante
dem a revalorizar mais a paróquia como centro de da orgânica cisterciense (V. CISTERCIENSES) e cartuxa
vida social e religiosa. O decreto de 28 de Maio (v. CARTUXOS). A circunstância de muitas dessas co-
de 1834, que extinguia de imediato todas as casas munidades desejarem administrar directamente os
dos religiosos no reino e no ultramar, com a incorpo- próprios bens estimulou a organização desse corpo
ração dos seus bens na Fazenda Nacional, foi o coro- laical ligado ao mosteiro. Inicialmente não eram par-

357
C L E R O REGULAR

grante da ordem. As ordens clericais e as congrega-


ções do século xix viram nos irmãos consagrados um
corpo auxiliar para as tarefas prioritárias desses ins-
titutos. Fizeram excepção a isso a Ordem Hospitalei-
ra de São João de Deus (v. HOSPITALEIROS DE SÃO JOÃO
DE DEUS) e as congregações posteriores de carácter
laical. A história dos conversos foi parte integrante
do percurso histórico de cada família religiosa. As-
sim também aconteceu em Portugal. Nos institutos
vocacionados para a missão, os leigos religiosos ti-
veram uma actividade singular no levantamento da
infra-estrutura da missão. Deles dependeu em grande
parte a acção humanizadora e civilizacional da pre-
sença ocidental em terras de missão.
DAVID SAMPAIO DIAS BARBOSA

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Portugal de 1834 a 1901. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1905.
CLERO SECULAR. /. Época Medieval: Uma questão
prévia a resolver quando se pretende falar do clero
secular na Idade Média é determinar quem, verda-
São Domingos, madeira policromada, Olivier de Gand, deiramente, podia intitular-se clérigo durante esse
c. 1510-1514. Tomar, Convento de Cristo. período. Com efeito, uma definição ampla levaria a
incluir nos clérigos todos aqueles que haviam recebi-
te constituinte da ordem; posteriormente, como gru- do a prima-tonsura e se destinavam à vida clerical ou
po integrado, foram de expressão numérica signifi- religiosa; contudo, os privilégios que tal estado con-
cativa, distinguindo-se pelo trabalho e vivência feria - foro próprio, isenção de impostos, etc. - fa-
espiritual. Viviam nas granjas de exploração agríco- ziam com que muitos buscassem essa distinção para
la, distanciados do mosteiro, onde a vida decorria à os seus filhos ou para si mesmos sem qualquer inten-
base de um regulamento simples. No geral, eram ção de progredirem nas ordens sacras ou nos votos
pessoas de pouca cultura. Todos assumiam as renún- solenes. Assim, tanto as autoridades eclesiásticas co-
cias monásticas, mas só a partir do século xiv é que mo as civis acabaram por reservar a plenitude dos
começaram a emitir os votos canónicos. As ordens direitos clericais apenas aos tonsurados não casados
mendicantes, na fase de consolidação, admitiram que usavam o hábito eclesiástico e se comportavam
também na sua orgânica a tradição dos conversos* com a dignidade adequada à sua condição, subme-
das ordens monásticas. Aí, a instituição entra numa tendo os restantes às justiças seculares. Para ingres-
fase de depauperamento; da autonomia anterior pas- sar no estado eclesiástico era necessário ser-se va-
sa-se a uma fase de apagamento; transformam-nos rão, livre e filho legítimo, podendo a falta de alguma
em simples auxiliares de serviços domésticos; vivem destas duas últimas condições ser compensada pela
à sombra dos irmãos sacerdotes ocupados em mis- manumissão ou legitimação do candidato. Era tam-
sões religiosamente mais relevantes. As regras, no bém indispensável ter a idade canónica requerida pa-
geral, admitindo a existência de duas classes de ir- ra cada grau (sete anos para a prima-tonsura, 21 anos
mãos, consideram a vertente laical como parte inte- para o subdiaconado e 25 anos para o presbiterado) e
358
C L E R O REGULAR

respeitar os intervalos entre eles, o que não quer di-


zer que alguns candidatos não tenham recebido or-
dens menores (ostiário, leitor, exorcista, acólito) e/ou
maiores (subdiácono, diácono, presbítero) na mesma
cerimónia. Exigiam-se ainda conhecimentos adequa-
dos ao grau que se pretendia obter, comprovados por
exame prévio - elementares para os minoristas, mais
amplos para os de ordens sacras - e a intenção de as-
cender ao sacerdócio expressa por um juramento (cf.
M A R Q U E S - A arquidiocese, p. 9 9 1 - 1 0 2 5 ) . Esta últi-
ma parece ter sido difícil de assegurar, pois, a avaliar
pelos casos conhecidos, uma esmagadora maioria de
tonsurados não ascendia às ordens maiores: os mino-
ristas eram cerca de 75 % do total de ordenados, em
Braga, durante o episcopado de D. Fernando da
Guerra, montando a 90 % no de D. Jorge da Costa;
representavam ainda 72 % dos postulantes bracaren-
ses às ordens na diocese de Coimbra*, no mesmo
período, e 94 % dos candidatos em Évora entre 1480
e 1 4 8 3 (Ibidem, p . 9 7 4 ; B R A N D Ã O - D. Jorge, p . 1 0 5 ;
G O M E S - Diocesanos, p. 5 6 3 ; PEREIRA - Matrículas,
p. 1 6 - 2 2 ) . Não podemos, contudo, atribuir tal facto
exclusivamente à má vontade ou à negligência des-
tes, pois os candidatos às ordens sacras deviam pro-
var terem meios suficientes para o seu sustento, quer
patrimoniais quer fornecidos por algum patrono,
quer ainda a título de um benefício eclesiástico. Ha-
via assim como que um numerus clausus que impe-
dia a entrada na verdadeira clerezia de mais indiví-
duos do que os que os rendimentos disponíveis
permitiam manter condignamente ( c f . M A R Q U E S -
A arquidiocese, p. 9 9 8 ; SMAHEL - Le clergé, p. 1 0 4 ) .
Quanto à origem social dos candidatos, ela é conhe-
cida para um número muito reduzido de casos; deles,
em Braga, 44 % pertenciam à nobreza, 18 % eram
filhos de profissionais liberais e cerca de 12% de
mesteirais, enquanto que em Coimbra havia um pre-
domínio dos originários da nobreza e da clerezia
entre os beneficiados, sendo os ordenados a título
de património originários de famílias de artesãos ou
de profissionais liberais ( c f . M A R Q U E S - A arquidio-
cese, p. 9 9 1 ; G O M E S - Diocesanos, p. 5 6 9 ) . Antes
do Concílio* de Trento ter urgido a construção de São Jerónimo, madeira policromada, Olivier de Gand,
seminários para a instrução do clero, esta efectuava-
-se junto de outros clérigos ou em escolas de diver- c. 1510-1514. Tomar, Convento de Cristo.
sos tipos. Com efeito, nas aldeias, os párocos esco-
lhiam os rapazes mais inteligentes e piedosos para os eram frequentes na época as queixas relativas a clé-
ajudarem na missa e iam-nos ensinando a ler, a es- rigos que não sabiam latim, não eram capazes de ler
crever e a cantar, dando-lhes também alguns rudi- e cantar correctamente, desconheciam as orações e
mentos de latim; mais raramente, esses meninos po- os princípios básicos da fé cristã, ou revelavam ou-
diam frequentar alguma escola paroquial rural do tras formas igualmente graves de ignorância, pelo
tipo daquela em que o arcebispo D. Silvestre Godi- que foram tomadas medidas tendentes à resolução
nho afirma ter estudado, em São Paio de Pousada. destas situações nas reuniões sinodais: imposição
Nos meios urbanos, o ensino processava-se não só aos faltosos da aprendizagem da gramática e/ou da
em escolas paroquiais mas também nas que esta- doutrina sob pena de privação dos benefícios, licen-
vam apensas às colegiadas, catedrais e mosteiros, ça para se ausentarem das suas igrejas para prosse-
existindo para além disso mestres espalhados por di- guirem os estudos, proclamação da invalidade das
versos conventos e professores particulares; apren- ordenações feitas sem exame prévio, etc. (cf. MAR-
dia-se o latim, o cômputo eclesiástico, o canto litúr- QUES - A arquidiocese, p. 9 9 8 - 1 0 0 4 ; PEREIRA - A vida,
gico, assim como diversas matérias relacionadas com p. 1 0 3 - 1 0 7 ) . A formação mais completa era recebida
o serviço da Igreja: história sagrada, oratória, teolo- na universidade: até finais do século XIII, no estran-
gia, moral ( c f . A N D R A D E - Colegiadas, p. 1 4 - 1 5 ; C O S - geiro (Bolonha, Paris, Salamanca), e depois também
TA - Escolas, p. 4 1 9 - 4 2 0 ; COSTA - Estudos, p. 2 5 4 - em Lisboa ou Coimbra. Obviamente, nem todos os
- 2 5 5 ; PEREIRA - A formação, p. 4 2 , 4 9 - 5 1 ) . Contudo, candidatos tinham recursos suficientes para levarem
os seus estudos tão longe, tendo sido criados hospi-
359
C L E R O REGULAR

tais, colégios e bolsas de estudo para os estudantes do seu desembargo - onde chegaram mesmo a cons-
pobres mas meritórios ( c f . G O M E S - A solidariedade, tituir quase um terço dos efectivos (cf. H O M E M -
p. 2 0 0 - 2 0 1 ) . Entre os clérigos diplomados, em Por- O desembargo, p. 1 7 7 ) - , a tal ponto que se consi-
tugal como no resto da Europa, predominavam os dera hoje que a Igreja ajudou de forma voluntária e
que haviam feito estudos jurídicos - direito canónico deliberada a construção do Estado moderno por
em primeiro lugar, depois civil ou mesmo ambos - considerar que o serviço da monarquia era parte in-
vindo a teologia e a medicina muito atrás (Ibidem tegrante da função episcopal ( c f . M I L L E T - La place,
- p. 2 1 6 ; MILLET - Les Chanoines, p. 9 1 - 9 3 ) . A pers- p. 240). Quanto aos benefícios curados, além de
pectiva de fazer uma carreira proveitosa na burocra- exigirem as ordens sacras implicavam a residência,
cia régia ou eclesiástica sobrelevava pois, nitidamen- pois era necessária uma grande proximidade dos pa-
te, a preocupação de ter uma boa formação doutrinal roquianos para o cumprimento das obrigações pró-
para exercer correctamente o ministério pastoral. prias a tal ofício: celebração da missa pro popolo e
E hoje ponto assente que, no seio do clero secular, a pregação aos domingos e festas de guarda, adminis-
principal clivagem económica e social se operava tração dos sacramentos, instrução religiosa dos fiéis,
entre os beneficiados e os não beneficiados (cf. controlo da moral e dos bons costumes, prática da
SWANSON - Le clergé, p. 6 6 ) . Com efeito, enquanto caridade, etc. Contudo, nada impedia o pároco de se
os primeiros tinham a sua subsistência assegurada e ausentar da sua freguesia desde que pedisse a neces-
desempenhavam funções reconhecidas socialmente, sária autorização superior e deixasse no seu lugar
os segundos sobreviviam de forma mais ou menos um outro presbítero capaz de cumprir as suas fun-
precária com as migalhas que aqueles lhes deixavam ções, remunerado com uma parte dos frutos da sua
ou ainda na dependência de terceiros, esperando prebenda. Esta era mesmo uma boa solução para a
muitas vezes em vão que chegasse a hora de serem existência daqueles clérigos de ordens maiores que,
dotados de uma prebenda. Ora, se atendermos a que, não vivendo na órbita de nenhum padroeiro de igre-
por exemplo, na arquidiocese de Braga* entre 1486 jas, dificilmente seriam alguma vez apresentados a
e 1501, contaram-se apenas 514 benefícios para um benefício completo. Finalmente, fora do sistema
3 0 3 2 ordenados, dos quais 1 1 5 2 com ordens sacras beneficiai ficavam os lugares de clérigos do coro das
(cf. BRANDÃO - D. Jorge, p. 1 2 7 - 1 2 8 ) , facilmente po- catedrais e colegiadas, de coadjutores dos párocos,
demos concluir que havia um número considerável de capelães das incontáveis capelas públicas, priva-
de clérigos que tinham de procurar o seu sustento fo- das e funerárias que se foram edificando pelo país
ra do sistema beneficiai. Para se obter um benefício, fora, havendo ainda minoristas que viviam à custa
era necessário ter-se 24 anos de idade como mínimo, da exploração do seu património, trabalhando como
sendo as ordens sacras condição preferencial mas notários ou secretários de um nobre ou como oficiais
não exclusiva: na comarca eclesiástica de Valença no da administração senhorial, dando aulas particulares
século xv, os minoristas receberam 14,8 % dos bene- ou participando nas procissões, missas e ofícios que
fícios, incluindo alguns curados, tendo neste caso de os defuntos solicitaram cada vez em maior número
promover-se ao presbiterado no prazo de um ano sob no ocaso da Idade Média. Com todas estas diferen-
pena da supressão do benefício; já na arquidiocese ças a nível das funções exercidas e dos rendimentos
de Braga, no tempo de D. Jorge da Costa, eles alcan- auferidos, é natural que o modo de vida dos clérigos
çaram apenas 2 % dos lugares disponíveis, manifes- fosse tudo menos uniforme. Entre o modesto cura ou
tando-se uma nítida tendência para a diminuição vigário rural que complementava os recursos vindos
destes casos (cf. RODRIGUES - O Entre Minho e Lima, da cobrança da dízima e dos outros direitos religio-
p . 2 0 7 - 2 0 8 , 2 Í 3 ; BRANDÃO - D. Jorge, p . 1 2 5 - 1 2 6 ) . sos cultivando as suas próprias terras ou as da sua
Os benefícios mais interessantes eram os sem cura, igreja, e um cardeal Alpedrinha que acumulou bene-
pois impunham obrigações limitadas em troca de re- fícios vários, qual deles o mais valioso, e viveu uma
cursos económicos geralmente fartos; podiam con- parte substancial da sua vida em Roma como um
sistir em dignidades e canonicatos de sés ou de cole- grande príncipe (cf. M E N D O N Ç A - D. Jorge), havia a
giadas, ou ainda em meias conezias, tercenarias e mesma diferença que entre um camponês e um se-
outras rações resultantes da divisão das prebendas nhor. Todavia, de todos era exigido o respeito escru-
primitivas. Os clérigos que os recebiam eram supos- puloso pelas normas da honestas clericorum, ideal
tos contribuir para o esplendor do culto divino nas mais do que realidade efectiva, mas que não deixou
igrejas referidas, participando quotidianamente no de ser obstinadamente perseguido durante todo o pe-
canto das horas canónicas e na missa de tércia dedi- ríodo medieval (cf. AVRIL - Peut-on parler, p. 1 2 ) .
cada aos benfeitores da instituição, devendo ainda Com efeito, se os textos normativos foram, durante
colaborar nos outros actos de culto, no ensino, na as- muito tempo, utilizados pelos historiadores para evi-
sistência e na gestão do património; mas muitos de- denciar o estado de profunda degradação moral em
les eram chamados a assumir ofícios no governo que o clero se havia deixado cair, hoje em dia tende-
diocesano e na administração da justiça eclesiástica, -se a interpretar a reunião mais frequente de sínodos
ausentando-se dos templos - sem perda dos rendi- diocesanos e a realização regular de visitas pastorais
mentos - para assistirem os bispos como vigários, como sinais de uma exigência crescente por parte
visitadores, chanceleres e notários, servirem de ouvi- dos prelados quanto ao saber e à conduta dos cléri-
dores, inquiridores, juízes e promotores nos tribunais gos sob sua responsabilidade, e de um controlo des-
episcopais, etc. Isto para já não falar dos incontáveis tes muito mais apurado, antes mesmo do Concílo
bispos, dignitários e cónegos que exerciam ofícios de Trento. O próprio poder civil passou a tomar
civis, como embaixadores, físicos do rei, membros uma atitude mais activa na repressão de alguns des-

360
C L E R O REGULAR

mandos do clero no início de Quatrocentos (cf. VEN- -114. S W A N S O N , Robert N. - Le clergé rural anglais au bas Moyen Age
(vers 1300-vers 1530). Ibidem, p. 61-100. T E I X E I R A , Caria Maria de
TURA - Intervenção). O que não quer dizer que não Sousa Amorim - Moralidade e costumes na sociedade de Além-Dou-
continuassem a manifestar-se comportamentos cen- ro: 1433-1521 (a partir das legitimações). Dissertação de mestrado
suráveis face aos compromissos tomados: o estudo apresentada à FLUP em 1996. T E I X E I R A , Sónia Maria de Sousa Amo-
rim - A vida privada entre Douro e Tejo: estudo das legitimações
das legitimações, por exemplo, tem revelado que a (1433-1521). Dissertação de mestrado apresentada à FLUP em 1996.
esmagadora maioria dos pais dos fdhos assim assu- V E N T U R A , Margarida Garcez - Intervenção do poder régio contra os
midos eram clérigos, tendo alguns deles mantido clérigos concubinários na primeira metade do século xv: obrigação ou
pretexto? In ESTUDOS em homenagem a J. Borges de Macedo. Lisboa,
relações de concubinato estáveis e duradouras, ge- 1992, p. 133-151.
radoras de uma prole numerosa, enquanto outros
manifestaram uma instabilidade emocional ainda II. Séculos xvi-xvni (de Trento a Pombal): O clero
menos compatível com a seriedade das suas fun- secular no Antigo Regime assegurava o enquadra-
ções (cf. TEIXEIRA - Moralidade, p. 129, 143; T E I - mento populacional de todo o reino. A divisão jurí-
XEIRA - A vida, p. 187, 219). Para além destas en- dica em dioceses, arciprestados ou ouvidorias, fre-
torses à obrigação do celibato e da falta de cultura guesias e curatos garantia a distribuição dos agentes
religiosa e geral, a que já nos referimos, as visita- da cristianização e a sua acção doutrinadora, menta-
ções e a legislação sinodal denunciam e punem ain- lizadora e controladora sobre os fiéis. A unanimida-
da a inadequação da aparência física e do trajo usado de religiosa católica exigia a presença do clero nos
pelos eclesiásticos ou das actividades por eles exer- momentos essenciais da vida dos indivíduos. O clero
cidas (negócios, jogo, caça, etc.), as contravenções à secular aparecia como o elemento fundamental na
lei da residência e a acumulação indevida de benefí- estruturação da vida das populações locais. Juridica-
cios, as incorrecções cometidas no canto dos ofícios mente, sendo o clero secular, juntamente com o re-
divinos e na administração dos sacramentos, etc. (cf. gular, uma ordem na hierarquizada sociedade do An-
PEREIRA - A vida, p. 111-129; RODRIGUES - As cole- tigo Regime, no interior da sua condição clerical
giadas, p. 228-233; RODRIGUES - O Entre Minho e conhecia uma diferenciação assinalável, decorrente
Lima, p. 197-209; B R A N D Ã O - D. Jorge, p. 107-120). de dois factores: o desempenho de funções nas estru-
Estas situações não deixaram, pois, de se verificar, turas diocesanas e os rendimentos beneficiais auferi-
mas a Igreja perseverou também na sua perseguição dos. O bispo, pastor por excelência, encontrava no
e castigo, fornecendo ao mesmo tempo, persistente- cabido* de sua diocese e no clero paroquial o auxílio
mente, aos clérigos, modelos de boa conduta através necessário à cura de almas efectiva que por direito
das vidas de santos prelados e ideais pastorais atra- lhe competia. Clero secular e clero paroquial eram,
vés de textos como a Regulae pastoralis liber de em regra, sinónimos. A sua existência ligava-se às
Gregório Magno. necessidades pastorais de cada círculo diocesano.
ANA MARIA S. A. RODRIGUES Não tinha autonomia pastoral, a sua acção era orien-
tada pelas determinações do prelado, o responsável
BIBLIOGRAFIA: A N D R A D E , A. A. Banha de - Colegiadas: sua função, em
especial a do ensino. In C O N G R E S S O H I S T Ó R I C O DE G U I M A R Ã E S E S U A C O -
primeiro de toda a diocese. Esta situação é uma
LEGIADA - Actas. Guimarães, 1981, vol. 5, p. 9-15. A V R I L , Joseph -
constante na organização da religião católica. Toda-
Peut-on parler d'un «idéal sacerdotal» à la fin du Moyen Age? In RE- via, a sua prática conheceu vicissitudes várias ao
CHERCHES sur l'économie ecclésiale à la fin du Moyen Age autour des
collégiales de Savoie. Annecy, 1991, p. 11-26. B R A N D Ã O , Maria Angeli-
longo do percurso histórico da Igreja e de cada povo.
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Braga (1486-1501). Dissertação de mestrado apresentada à FLUP em -1563) surge como um marco determinante na con-
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RIO de história de Portugal. Dir. Joel Serrão. Porto: Figueirinhas, 1975,
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vol. 2 , p. 418-420. IDEM - Estudos superiores e universitários em Portu- meau afirma que Trento «a crée une coupure dans
gal no reinado de D. João II. Biblos. 63 (1987) 253-334. G O M E S , Saul l'histoire de la confession catholique et a séparé
António - Diocesanos bracarenses de Quatrocentos nas matrículas de
ordens sacras da Sé de Coimbra. In C O N G R E S S O INTERNACIONAL IX C E N - deux époques dont la seconde ne s'est terminée
TENÁRIO DA D E D I C A Ç Ã O DA S É DE B R A G A - Actas. Braga, 1990, vol. 2/1, qu'avec Vatican II» (Le Catholicisme, p. 37 ss.). Em-
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pobres a estudos universitários: O exemplo coimbrão nos séculos xiv e nas protestantes, tenha urgido a reunião de um con-
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HISTÓRIA DA U N I V E R S I D A D E - Actas. Coimbra, 1991, vol. 4, p. 195-234. cílio ecuménico, não foram as questões doutrinais a
H O M E M , Armando Luís de Carvalho - O desembargo régio (1320-1433). dominar o concílio. A par delas, mas com maior re-
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se dans la genèse de l'Etat moderne. Madrid, 1986, p. 239-248. P E R E I - expressos no discurso inaugural proferido pelo car-
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I n C O N G R E S S O DA HISTÓRIA NO I V C E N T E N Á R I O DO SEMINÁRIO DE É V O R A -
Actas. Évora, 1994, vol. 1, p. 39-58. IDEM - Matrículas de ordens da
reforma do clero e do povo cristão. Da reforma ecle-
diocese de Évora (1480-1483): Qual dos dois Vascos da Gama foi à siástica dependeria necessariamente a dos cristãos.
Índia em 1497? Lisboa, 1990. IDEM - A vida do clero e o ensino da Nos três períodos de Trento, e em quase todas as
doutrina cristã através dos sínodos medievais portugueses (séculos xii
a xiv). Lusitania Sacra. 12 (1978) 103-141. R O D R I G U E S , Ana Maria suas vinte e cinco sessões, foi debatida a reforma,
S. A. - As colegiadas de Torres Vedras nos séculos xiv e xv: Espaços, não apenas como mera medida disciplinar mas en-
gente e sociedade no Oeste: Estudos sobre Torres Vedras Medieval. quanto meio eficaz de assegurar a essência da vida
Cascais: Patrimonia, 1996, p. 195-274. R O D R I G U E S , Teresa de Jesus -
O Entre Minho e Lima de 1381 a 1514 (antecedentes e evolução da cristã por meio da cura de almas. As determinações
comarca eclesiástica de Valença do Minho). Dissertação de mestrado conciliares deste âmbito ficaram exaradas nos decre-
apresentada à FLUP em 1997. S M A H E L , Frantisek - Le clergé rural de tos denominados De Reformatione, que acompanha-
Bohême à l'époque du mouvement hussite. In LE CLERGÉ rural dans
l'Europe médiévale et moderne. Flaran 13, Toulouse, 1995, p. 101- ram o Concílio de Trento ao longo dos seus três pe-

361
C L E R O REGULAR

ríodos e quase todas as sessões. As ideias patentes res lei do reino e ordenou a sua tradução em verná-
na reforma interna da Igreja afirmavam-se progressi- culo. Na carta régia, os bispos eram incitados a usar
vamente em todos os anteriores movimentos de re- do poder que lhes era concedido ao serviço da im-
novação cristã. Muitas delas haviam estado já pre- plementação da lei do Concílio do Trento, «ainda
sentes no V Concílio de Latrão, não tendo porém que em detrimento da jurisdição régia» ( C A E T A N O -
alcançado eficácia porque a Igreja no seu todo, so- Recepção, p. 23). D. Sebastião, com o seu exaltado
bretudo a partir de Roma, não lhes dera continuida- espírito religioso, ao publicar a provisão de 1569,
de. Com o Concílio de Trento, a Igreja procurou en- confirma e reforça a posição do cardeal ao atribuir
contrar uma via de reforma abrangente de todo o aos prelados, nas suas dioceses, o poder de executar
corpo eclesial, em simultâneo com um aperfeiçoa- as penas temporais que pelas Ordenações Manueli-
mento da doutrina e do dogma, não obstante o seu ti- nas (liv. i, t. iv, 7) tinham direito de sentenciar, crian-
tubeante percurso. O Concílio de Trento, que abriu do problemas de jurisdição. Esta adesão imprimiu
com uma fraca participação de bispos, em compara- um carácter oficial à reforma, impondo uma dinâmi-
ção com os que o haviam antecedido, afirmou-se e ca extrínseca nem sempre correlativa da intrínseca.
ganhou uma repercussão nunca antes atingida na A eficácia só poderia advir do envolvimento do epis-
Cristandade. A confirmação dos decretos concilia- copado e do clero, movidos pela conversão interior
res, por Pio IV em 1564 pela bula Benedictus Deus, acompanhada de uma sólida formação doutrinal e
conferiu-lhes força de lei para todo o mundo católi- pastoral. A criação de seminários*, previstos e im-
co, pese embora a diferente recepção oferecida pelas postos pelo Concílio de Trento, apresentava-se como
autoridades de cada reino. O papa, na dupla qualida- a via privilegiada para dar corpo ao projecto de re-
de de chefe da Igreja e bispo de Roma, empenhou-se forma. Efectivamente, por iniciativa régia, nos domí-
determinantemente no processo reformador. O pos- nios do padroado, foram instituídos seminários de
tulado purga Romani purgatur mundus, assumido iure mas, de facto, só muito tardiamente viriam a ser
em plenitude também pelos seus sucessores, procu- criados. Mesmo nas dioceses do reino, onde eles fo-
rando a implementação dos decretos conciliares, foi ram criados nas décadas imediatas ao Concílio de
condição de sucesso do movimento reformista que Trento, a sua vitalidade foi débil, à excepção do Se-
de forma lenta e progressiva foi atingindo todas as minário de Braga*, de iniciativa episcopal. Como
dioceses. A média e a longa duração têm neste cam- reformar então o clero e prepará-lo para a cura de
po um significado iniludível, pois que uma vaga de almas, dentro dos parâmetros tridentinos, sem a al-
fundo se ia formando tendente a uma alteração qua- teração dos quadros de formação? No âmbito do en-
litativa da cristianização. A unanimidade de culto sino ministrado pelos regulares, a difusão dos colé-
não era suficiente para responder às carências reli- gios dos Jesuítas*, com as suas aulas de Filosofia* e
giosas da época. A inteligência da fé e a conformida- Teologia Moral e Especulativa, veio a tornar-se num
de cultual exigiam um clero culto e renovado que auxiliar precioso das urgentes mudanças; todavia,
pudesse dar continuidade à actuação pontifícia e não com a suficiência desejada e necessária. O mo-
episcopal. Assim, na esteira dos bispos de Roma, os delo tradicional de preparação do clero manteve-se
prelados do tipo tridentino, como Carlos Borromeu e em vigor, embora as medidas administrativas e nor-
Bartolomeu dos Mártires, deram o tom ao processo mativas impostas pelas constituições sinodais* pos-
reformador. Como afirma Hubert Jedin, «Reforma e teriores ao Concílio de Trento reforçassem o contro-
Concílio estavam indissociavelmente ligados no es- lo daquela preparação e impusessem novas normas.
pírito da época» (Manual, vol. 5, p. 627). Os decre- Ora, a reunião de sínodos*, a que assistiu o pós-
tos de reforma impunham um novo modelo de prela- -Trento, dá-nos, em parte, a medida do esforço epis-
do, caracterizado pela residência, pregação, múnus copal no processo de reforma. As constituições sino-
pastoral - sínodos, visitações, seminários -, caridade dais, em regra deles decorrentes, tenderam a difundir
e assistência. O episcopado, por sua vez, tentando no terreno os decretos conciliares, com relevância no
dar corpo às determinações do Concílio de Trento, âmbito da implementação do novo modelo de clero.
tomava em suas mãos a reforma do clero, elemento A pedagogia relativa ao sacramento da Ordem, as
multiplicador da reforma interna da Igreja. Se, na se- condições para o seu ministério, a formação exigida,
quência do concílio, a autoridade pontifícia e tam- a vida interior, a morigeração de costumes, as vestes
bém a episcopal saíram reforçadas, quase excessivas, talares, o afastamento de todas as actividades profa-
o clero apresenta-se como o seu mediador. A prática nas, mesmo que legítimas, e a obrigação estrita de
da visita episcopal levava a efeito um controlo mais residência confluíam no sentido de impor um novo
apertado do clero, com incidência no respeitante à tipo de clero paroquial. A introdução e divulgação
cura de almas, vida e costumes. As inquirições efec- da acção de examinadores sinodais para a admissão
tuadas pelo prelado ou pelos seus visitadores, sobre ao sacramento da Ordem, embora nem sempre efec-
os párocos, registadas nos relatos visitacionais, dão- tiva, e o exame a efectuar pelos mesmos para a cola-
-nos a medida do esforço em os transformar numa ção de benefícios curados, perpétuos ou amovíveis,
ordem à parte no seio da comunidade eclesial. A ta- não poderiam deixar de se repercutir na melhoria da
refa de adequação ao modelo tridentino conheceu di- formação clerical, mesmo que visível apenas na
ferenças acentuadas em cada reino da Cristandade, longa duração. A reforma eclesiástica constituía o
bem como de diocese para diocese. Em Portugal, a objectivo central das constituições sinodais onde
recepção da bula Benedictus Deus foi imediata e en- co-existiam duas vias: a da santidade e a admi-
tusiasta. Em 1564, o cardeal D. Henrique, regente do nistrativa, embora a segunda se sobrepusesse à pri-
reino, proclamou solenemente os decretos concilia- meira. A piedade cristocêntrica era veiculada pela

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C L E R O REGULAR

pedagogia do ministério sacerdotal enquanto media- com os cortes de relações entre o reino e a Santa Sé,
ção entre Deus e os homens. A persuasão a nível da provocaram flutuações e letargias naquele processo.
espiritualidade compaginava-se com as cominações A postura dos Filipes em relação a Trento poderia ter
de penas aos faltosos às regras impostas, ao mesmo favorecido a sua implementação não fora a perturba-
tempo que se determinava a estrita vigilância por ção política dela decorrente. De repercussões mais
parte do meirinho, apontador e olheiros. Ora, a con- graves, porém, foram os cortes de relações com a
vocação de sínodos e a publicação de constituições Santa Sé geradores de longos períodos de vacatura
sinodais constituíram, numa primeira fase, as ex- episcopal em grande parte das dioceses, não obstante
pressões mais significativas de acção episcopal no a protecção dada pelos monarcas à Igreja e o zelo de
projecto de reforma, em paralelo com as visitações* alguns cabidos. Assim, a maioria das constituições
pastorais. Alguns tinham sido os sínodos reunidos, sinodais não foram actualizadas nem divulgadas em
na primeira metade de Quinhentos, pelos bispos tri- conformidade com as necessidades pastorais por os
dentinos avant la lettre, donde saíram estatutos. Nas sínodos raramente se reunirem. Em relato de visitas
dioceses cujos prelados haviam participado no Con- ad limina (v. VISITAÇÕES A D LIMINA), de meados do sé-
cílio de Trento ou estavam imbuídos do seu espírito, culo XVII, os bispos de Angra e de Miranda afirmam
as constituições sinodais eram mais conformes aos o desuso em que tinham caído os sínodos em Portu-
princípios de reforma em debate. Angra*, em 1559, gal, como justificação para a ausência deles nas suas
Lamego* em 1561 e Miranda em 1563, Évora* em dioceses. Apesar das resistências oferecidas à imple-
1565, Porto* em 1566, Funchal* em 1585 e Coim- mentação dos decretos conciliares, Trento encetou
bra* em 1591 são casos exemplares. O bispo de La- um longo e diversificado processo de revigoramento
mego, D. Manuel de Noronha - que viria a exercer clerical, insuspeitado anteriormente. 2. Benefícios e
vigorosa acção reformadora nos bispados de Viseu* residência: O Concílio de Trento procurou reformar
e da Guarda* reuniria novo sínodo no ano imedia- o sistema beneficiai que acompanhara a Igreja em
to à publicação solene dos decretos tridentinos, no todo o seu percurso medieval. Apesar da sua vontade
qual foi declarada a sua aceitação sobretudo quanto reformadora, Trento conservou «o sistema bene-
«à residência e à formação eclesiástica» (ALMEIDA - ficiai, estrutura institucional geradora de abuso»
História, vol. 2, p. 512). O cardeal de Lisboa, em sí- (CHIFFOLEAU - Du Christianisme, p. 370), ao qual in-
nodo provincial de 1566, reuniu os prelados sufragâ- troduziu condicionantes que viriam a facultar o con-
neos das dioceses da Guarda, Lamego, Leiria*, Por- trolo episcopal sobre a qualidade do clero paroquial.
talegre*, Funchal e São Tomé. Também D. Frei A atribuição de benefícios, ainda que associada a
Bartolomeu dos Mártires convocou um sínodo pro- uma longa prática de atropelos, abusos e intromis-
vincial visando o cumprimento das determinações sões no foro episcopal, constituía-se como funda-
conciliares. D. João de Melo procederia de igual mo- mento de eficácia pastoral. Existia naquela época
do em Évora em 1565. Ainda em Quinhentos, tanto uma verdadeira legião de clérigos vagabundos que,
em Lisboa como em Évora, voltaram a reunir-se no dizer de Delumeau, era uma das «pragas da socie-
com vista à clarificação dos articulados mais obs- dade eclesiástica» (Le Catholicisme, p. 58), formando
curos das anteriores constituições sinodais e tornan- um autêntico proletariado. A manutenção dos benefí-
do-as mais conformes à lei de Trento. Dioceses como cios justificava-se como condição de dignidade, tendo
Guarda, Viseu, Braga, Lamego conhecem também em conta o sustento do clero, e de efectivo controlo
novas constituições sinodais nos inícios de Seiscen- na colocação de ordens sacras. Neste sentido, o decre-
tos, as quais, devido à movimentação dos bispos e às to De Reformatione na xxi sessão exigia, como condi-
sede vacantes, não foram publicadas senão tardia- ção sine qua non para a admissão a ordens menores,
mente, à excepção das de Viseu. O caso mais grave a obtenção de um benefício ou fontes de subsistência
foi o de Braga onde as de 1639 só viriam a ser publi- razoáveis, tentando pôr cobro àquela chaga. Pelas
cadas em 1697. A reunião de sínodos vai diminuin- contribuições do clero secular para a guerra contra
do progressivamente ao longo do século XVII, assis- os Turcos, em meados do século xvni, podemos infe-
tindo-se ainda ao aperfeiçoamento ou publicação de rir um razoável rendimento beneficiai e patrimonial
novas constituições sinodais, como aconteceu no em Portugal, não obstante o copioso número de clé-
Algarve em 1674, em Viseu em 1684, no Porto em rigos. A diocese de Braga era a mais rica, seguida
1687 e em Elvas em 1720. As Constituições Sino- por Lisboa, Porto, Évora e Coimbra. A primeira con-
dais de Évora de 1565 foram reeditadas em 1753, as tribuiu com 45 298 423 réis, enquanto as outras cita-
de Coimbra de 1591 em 1731, as de 1622 da Guar- das se mantiveram na casa dos 20 000 000 réis. As
da conheceram a 3. edição em 1759. Em todas elas
a doações das restantes oscilaram entre os 3000 e os
o De Reformatione surge como suporte da nova or- 11 000 réis. Visando impedir a extrema pobreza, exi-
dem eclesiástica. Estava, de facto, em curso a di- gia-se ao clero secular a apresentação de prova jurí-
vulgação, debate e interiorização da reforma interna dica da posse de um beneficio para poder ser admiti-
da Igreja, sobretudo no referente ao clero. A aceita- do a ordens sacras. Mesmo que os candidatos fossem
ção efectiva das determinantes tridentinas, porque idóneos nos costumes e ciência, sem benefício sufi-
exigia uma alteração qualitativa impondo a ruptura ciente não poderiam ser ordenados. A reforma do
com muitos usos inveterados, confrontou-se com sistema beneficiai dependia juridicamente do direito
resistências passivas e activas que tornaram mais de padroado, que se encontrava dividido nas mãos
moroso o processo de reforma. Por outro lado, as do Papa, do monarca, dos bispos, das ordens monás-
vicissitudes políticas de Portugal, tanto com a união ticas e militares, da universidade e dos seculares, ad-
ibérica como na Restauração e reinado de D. João V ministrados muitas vezes por comendas, que por sua

363
CLERO REgULAR

vez clamavam por reforma. Tornara-se difícil ao


Concílio de Trento, onde se entrecruzavam diversas
influências, quer religiosas, quer seculares, exercidas
pelos embaixadores dos diferentes reinos, tratar com
rigor e justeza aquela situação. Assim, nos casos de
benefício pertencente a padroado não episcopal ficou
determinado, em caso de vacância, que o bispo no-
measse o candidato apresentado pelo padroeiro após
verificação da sua aptidão para a cura de almas.
O apresentado tinha de passar pelo crivo do exame
efectuado obrigatoriamente pelos examinadores dio-
cesanos, nomeados em sínodo. Assim ficava reforça-
da a autoridade episcopal e assegurada, pelo menos
em parte, a qualidade do clero. Também as condi-
ções impostas relativamente ao período de tempo em
que um padroeiro era obrigado a apresentar candida-
to, bem como a exigência de prova jurídica docu-
mental do direito de padroado, confluíram para a di-
minuição do número de benefícios estranhos às
dioceses. Por outro lado, a imposição de todo o be-
nefício curado ser obrigado a residência e aos seus
detentores ser exigida a profissão de fé nas mãos do
prelado ou seu vigário tendia, outrossim, a limitar o
poder dos padroeiros (xxiv sessão, De Reformatione,
c. 12.° ). Contudo, os vícios arraigados pela prática e
a sobreposição de padroeiros num mesmo benefício
originavam pendências que se conjugavam em obs-
taculizar a implementação das regras tridentinas, so-
bretudo em períodos de vacatura episcopal. As cons-
tituições sinodais do pós-Trento são unânimes em
considerar os benefícios curados como condição pa-
ra o bom governo das almas. As Constituições Sino-
dais de Portalegre de 1632, no livro 3.°, justificam-
-nos da seguinte forma: «O governo espiritual das
almas, he officio de tanta importância, & tão estima- Frontispício do tomo 5 das Ordenações Filipinas (edição
do de Nosso Senhor, que fallando delle S. Gregório fac-similada pela FCG, 1984). Lisboa, Biblioteca
Magno, lhe chama arte das artes [...] pera bem as go- Nacional.
vernar, lhes era necessário amai las mais que suas
cousas, mais que os seus, mais que a si mesmo, tudo cia, he de direito Divino positivo, segundo o qual,
pede o cuidado de pastorar almas, por as quais quem serve a Deos no Altar he bem se sustente dos
N. Senhor derramou seu Sangue, e pera cujo provei- fructos, rendas ecclesiásticas» (liv. IH, tít. 5.°, c. 1.°).
to e salvação são instituídos os benefícios paro- Tentando obstar às irregularidades havidas na atri-
chiais.» Expressões algo diferentes mas de sentido buição de benefícios e às tentativas de subtracção ao
idêntico eram utilizadas nos Estatutos de Braga de foro episcopal, em algumas constituições sinodais,
1639. No título 8.°, c. 4.° era aduzida a indecência sobretudo nas de finais de Quinhentos, é imposta a
em «andarem as pessoas, dedicadas ao culto Divino todo o usufrutuário de benefícios curados a obriga-
e serviço das igrejas, pedindo pelas portas ou exerci- ção de mostrar «ho título per onde possue ho benefí-
tando-se em ofícios vis», o que era proibido pelo De cio que tem» (Lamego, 1565, tít. 17.°, c. 1.°). Nestes
Reformatione (xxi sessão, c. 2.°). Neste mesmo capí- textos também se alude à colação de benefícios em
tulo o bispo prescrevia a renda mínima de 15 000 coroça e pactos ilícitos, procurando suster uma práti-
réis ou fazenda de raiz de 200 000 réis, como patri- ca antiga ainda em uso. Impunha-se, no entanto, para
mónio necessário para «honesta sustentação». Esta confirmação dos apresentados por padroeiros secula-
regra não era extensiva aos curas, porque na sua res a demonstração de ter sido tal «direito adquirido
qualidade de coadjutores dos abades, reitores ou vi- por fundação» (Braga, 1639, tít. 13.°, c. 1.°). Exigia-
gários participavam nos frutos de seus benefícios, -se que a apresentação de candidatos a benefícios
como autênticos assalariados. Muitas vezes, porém, curados pelos padroados não episcopais, indepen-
auferiam rendas de miséria, pelo que alguns bispos dentemente de serem da Coroa, mosteiros, universi-
estipulavam o ordenado que os ditos vigários lhes dade ou outros, se fizesse por oponênca em concurso
deveriam pagar. À medida que o tempo passava a le- aberto por edital. De acordo com o espírito de cada
gitimação dos benefícios como condição do múnus um dos autores, as constituições sinodais tenderam a
pastoral ganhava maior acuidade. O prelado do Por- impor a autoridade episcopal no domínio pastoral,
to, em 1689, dizia significativamente: «Ainda que a essencialmente nos benefícios curados. Reivindica-
introdução de Benefícios, quanto à forma accidental, vam a provisão, colação e instituição de todas as
seja de direito canónico, com tudo quanto à substân- igrejas e benefícios nos limites da respectiva dioce-
se. Também em todos os textos se prescrevia exa-
364
CLERO REgULAR

me sinodal para a colação de benefícios, mesmo em Trento, ao lado dos espanhóis, aos quais mais
tratando-se de candidatos formados em Teologia e tarde se juntariam os franceses, haviam-se batido
Cânones, com incidência especial para os de cura desde o primeiro período (vi sessão) pela residência
de almas. Esta exigência, porém, nem sempre era de direito divino. Aliás, o debate sobre a fundamen-
feita para os benefícios símplices. O texto editado tação da residência, onde se encontrava em oposição
em 1683, embora escrito em 1639, do bispado de a de direito eclesiástico com a de direito divino, no
Lamego dizia: «E nenhum benefício, que não seja dizer de Delumeau, «empoisonna les dernières ses-
parochial, requere de necessidade concurso, nem sions du concile» (Le Catholicisme, p. 53). Estava em
Synodaes» (liv. IH, tít. 2.°, c. 3.°, § 3.°). A diligente causa o poder primacial do chefe da Igreja confron-
examinação dos candidatos aos benefícios curados tado com a inalienabilidade da residência e o reforço
era imposta como forma de avaliação da capacidade da autoridade episcopal. D. Frei Bartolomeu dos
pastoral dos respectivos párocos, fossem eles aba- Mártires, na esteira de D. Frei Baltasar Limpo, ape-
des, reitores, vigários ou simples curas. De resto, aos lara à declaração da residência episcopal de direito
curas amovíveis o exame era-lhes requerido anual- divino, da qual decorre a de todos os párocos, de for-
mente. No concurso teriam de repetir a apresentação ma violenta, impugnando todo o tipo de dispensas:
das certidões que já lhes havia sido imposta na ad- «As dispensas de residência eram falaciosas, e que
missão a ordens; qualquer crime sentenciado de de- usá-las era cair no inferno com dispensa pontifícia»
gredo constituía impedimento de colação; o exame ( R O L O - O bispo, p. 74). Embora o acordo de princí-
sinodal averiguaria do conhecimento dos mistérios pio permanecesse ambíguo, a afirmação inequívoca
fundamentais da fé e da capacidade de exercício das do dever de residência episcopal e, consequentemen-
funções do ministério sacerdotal. A seriedade rela- te, do clero paroquial, saiu reforçada da xxni sessão
tiva a esta prova, essencial no processo de qualifi- conciliar, legitimando, porém, a dispensa ao serviço
cação dos agentes na cura de almas, passava pelos do reino. As primeiras constituições sinodais pós-
próprios examinadores. Eram escolhidos pela sua -conciliares afirmam o direito divino de residência
honestidade e ciência. Deveriam ser mestres, douto- para todos os benefícios com cura de almas. O Esta-
res ou licenciados em Teologia ou Direito Canónico, tuto de Évora de 1563 diz explicitamente: «Dispõe o
regulares ou seculares, e ajuramentados nos Santos S. C. Tridentino que como por direito divino todos
Evangelhos, em conformidade com o determinado
em Trento (xxiv sessão, De Reformatione, c. 18.°).
Não deveriam aceitar qualquer oferta por parte dos
examinandos, de molde a ser garantida a imparcia-
lidade e rigor, e os ditos exames teriam a presença
de pelo menos dois examinadores (Guarda, 1622,
liv. IH, tít. 6.°, c. 13.°). Todavia, a força da inércia, as
resistências passivas e o grande intervalo entre os sí-
nodos, aliadas à vacatura de sedes diocesanas, leva-
vam ao enfraquecimento desta instituição sinodal.
Em Lamego, antiquíssima diocese, onde muitos dos
benefícios mais rentáveis pertenciam à corte, a Ro-
ma e a poderosas ordens militares, o prelado D. Nu-
no Álvares Pereira ordenara que todo o pároco, para
exercer funções de cura de almas, se submetesse ao
exame sinodal. Pouco tempo volvido, em 1736, o ca-
bido sede vacante nomeava dois examinadores com
vista a suster o «costume antigo de os curas serem
interrogados por um único examinador e na casa de-
le» ( C O S T A - História, p. 256). Se a justificação para
a atribuição de benefícios assentava na cura de al-
mas, o Concílio de Trento determinou como correla-
tivo daquela a obrigação de residência. Mesmo que o
dito benefício fosse de padroado, a exigência era a
mesma, sendo curado. Foram tornados nulos os pri-
vilégios e indultos de dispensa perpétua de residir.
As dispensas temporárias foram limitadas, por direi-
to, ao máximo de quarenta dias de estatuto, sempre
confirmadas pelo ordinário do lugar com a exigência
de substituição por cura idóneo, licenciado para o
efeito. Nenhum presbítero podia acumular mais do
que um benefício curado, a não ser que a sua exi-
guidade não satisfizesse a estrita necessidade de
I Hf ^ £

subsistência do beneficiado. Nesse caso, o segundo


benefício atribuído não poderia exigir residência. Frontispício das Constituições Synodais do Bispado da
A questão da residência foi tomada a peito pelo epis- Goarda, impressas por mandado do Sr. Dom Frei Luis da
copado português. De resto, os nossos representantes Silva, 1686 (cópia das constituições publicadas em
1621). Lisboa, Biblioteca Nacional.

365
C L E R O REGULAR

os beneficiados, que tem cura d'almas, sejão obri- do, que os vigairos, curas e beneficiados residam
gados conhecer suas ovelhas, e por ellas offerecer pessoalmente em seus benefícios» (tít. 12.°, c. 2.°).
Sacrifício a Deos, e apascentalas com doutrina evan- Os dias de ausência, considerados por estes textos
gélica e administração dos Sacramentos, para que como legais, oscilavam entre 15 dias aos dois meses
tomem exemplo de boas obras, e tendo cuidado co- propostos por Trento. O espaço indicado para resi-
mo pays de pobres, e outras pessoas miseráveis, e dência circunscrevia-se aos limites da freguesia, de
em tudo cumpram officio de bom pastor, ao qual não preferência junto à igreja, de molde a facultar o mi-
pode satisfazer o que continuamente não vigia, e está nistério dos sacramentos com toda a presteza. Em
presente a suas ovelhas» (tít. 11.°, c. 1.°). As Cons- zonas de habitat disperso, como Elvas e Portalegre,
tituições Sinodais de Portalegre de 1632 e de Lame- eram estabelecidas normas para a residência dos cu-
go de 1639 fundamentam a residência não directa ras das pequenas paróquias nos locais onde mais
mas indirectamente no direito divino. Ou seja, este conveniente fosse ao serviço da cura de almas. Na
era afirmado relativamente à cura de almas e, porque diocese de Angra os visitadores inteiravam-se sem-
a condição da sua eficácia estava na residência, en- pre do cumprimento deste desiderato. Daí se de-
tão ela constituía-se também nesse direito. A exem- preende que a não residência apenas se reportasse a
plaridade e a efectiva cura de almas eram apresenta- um alongado período de estatuto por parte dos bene-
das como argumentos persuasivos para a imposição ficiados, sobretudo no período das ceifas e vindimas,
da residência. As de Braga de 1639 referiam-se-lhe o que os visitadores se encarregavam de censurar as-
como a adequada forma de ensinar «por obra e pala- peramente. Todavia, os ouvidores eram obrigados a
vra o que convém para a salvação de suas almas» enviar ao bispo as certidões de residência de todos
(tít. xiv, c. 1.°). Todas as constituições sinodais exi- os párocos de suas ouvidorias, em cada ano. Apesar
giam esta prática, sobretudo nos tempos fortes do de se registarem alguns abusos, sobretudo relativos
ano litúrgico - Natal e Quaresma - e nos períodos de aos benefícios, e em alguns casos também referentes
epidemias e peste, em que a acção caritativa dos pá- à residência, não se pode ignorar a real melhoria na
rocos se devia aliar à administração dos sacramentos efectiva cura de almas resultante da progressiva con-
aos doentes e moribundos. A «especial residência» formidade com as determinações tridentinas. 3. For-
era exigida sob pena de perda de porções ou totalida- mação: A formação doutrinal do clero foi uma das
de das rendas beneficiais, de acordo com o tempo de preocupações maiores do Concílio de Trento. Toma-
absentismo, as quais deveriam reverter para as fábri- va duas faces diversas, embora complementares.
cas das igrejas e pobres das respectivas paróquias. Uma era a exigência da reforma interna da Igreja a
Em Coimbra, os Estatutos de 1591, alegando o fre- qual só poderia ser levada a cabo por um clero cons-
quente absentismo, impunham que todos os ausentes ciente da sua missão pastoral e conhecedor dos mis-
em virtude de licenças por «causa justa» as apre- térios da fé; outra constituía-se na mentalidade que a
sentassem ao prelado no espaço de 20 dias, para ser assembleia conciliar conservara até ao fim de «ville
verificada a autenticidade das mesmas. Justifican- assiégée» ( D E L U M E A U - Le Catholicisme, p. 4 4 ) , pos-
do-se juridicamente, então o bispo comprometia-se tulando a necessidade de dotar o clero dos meios in-
a prover um substituto, caso contrário seriam os be- dispensáveis para a fiel interpretação dos textos es-
neficiados obrigados a residência ou punidos com criturísticos e compreensão dos ditames da moral e
pena de excomunhão. O texto de 1622 da diocese da disciplina. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, es-
da Guarda era ainda mais exigente. Cominava penas crevendo de Trento ao seu vigário episcopal, alerta-
de privação de frutos e suspensão de benefícios mes- va para o perigo da propagação do «fogo luterano»
mo aos isentos por privilégios, licenças, «izenções, decorrente do laxismo moral e capacidade persuasi-
pactos, estatutos ainda jurados ou confirmados por va dos respectivos pregadores ( c f . D I A S - A política,
qualquer autoridade, appelações inibições ainda na vol. 2, p. 937.) Ora, o desiderato fundamental da for-
Romana Curia [...] porque nenhuma destas cousas, e mação foi dos mais dificilmente postos em prática.
outros semelhantes podem impedir neste caso a exe- Só a longa duração ou uma actuação concertada e
cução» (liv. IH, tít. 7.°, c. 1.°). Expressões idênticas se decidida de todo o episcopado, auxiliado por ordens
encontram nas Constituições Sinodais do bispado do religiosas como acontecera em França, lhe poderia
Algarve* de 1674. As recomendações constantes de responder cabalmente. A determinação tridentina da
que os priores e vigários, pelo facto de terem curas e organização de seminários implicava a existência de
coadjutores, não ficavam dispensados de residência, formadores, sem a qual a própria instituição dificil-
antes mais obrigados a ela pelo encargo de suas res- mente atingiria os seus fins. Apesar da actividade da
ponsabilidades, revela a contrario o seu frequente Faculdade de Teologia na Universidade* de Coimbra
absentismo. A persistente normatividade e o vigor e dos diferentes colégios que floresciam ao seu re-
do controlo, a exercer pelos provisores, vigários- dor, onde muito clero se formava, aliás como em Sa-
-gerais, ministros da Justiça e por todos os párocos lamanca, não era suficiente para fornecer os ditos
da mesma ou freguesia vizinha, insertos em todas as formadores, mesmo que houvesse vontade episcopal
constituições sinodais entre meados de Seiscentos e de fundar seminários em todas as dioceses. De resto,
último quartel do século xvni, revelam não só a ex- a reforma da universidade em 1559 «não ousou ali-
trema preocupação do episcopado mas também algu- nhar o plano de estudos teológicos pela ordem tri-
ma resistência passiva. As Constituições Sinodais do dentina, que estava a afirmar-se nas principais uni-
Funchal de 1585, todavia, afirmavam já o hábito in- versidades europeias» (Ibidem, p. 678). Assim, dos
troduzido na contínua residência dos párocos: «he vários seminários de criação régia e episcopal, pou-
costume antigo, e geralmente guardado neste bispa- cos lograram alcançar de imediato os seus efeitos.

366
C L E R O REGULAR

Em Portugal, a verdadeira difusão e actuação pro- guel da Silva, as exigências para admissão a ordens
funda dos seminários, determinante do novo tipo de sacras se limitavam a saber ler, cantar, recitar as for-
clero, iria dar-se em pleno século xix. Teria então fi- mas dos sacramentos e ser «arrazoado gramático»
cado letra morta a determinação tridentina relativa (cf. ALMEIDA - História, p. 565), nas do pós-Trento
à formação? As ordens religiosas, sobretudo os Je- as mesmas vão-se tornando progressivamente mais
suítas, contribuíram para uma melhoria do nível de complexas e detalhadas. Estas constituições sinodais
parte do clero secular. O arcebispo de Évora, D. João conformavam-se com maior ou menor intensidade
de Melo, ordenou a todo o clero da cidade a frequên- com as definições conciliares, sempre referidas em
cia das lições de Casos leccionadas no colégio dos margem. Para a prima-tonsura, idade mínima de 14
jesuítas daquela cidade. Em 1718, o papa concedeu anos, impunham as seguintes condições: baptismo,
ao patriarca de Lisboa o poder de atribuir graus aca- crisma, conhecimento dos artigos de fé, fundamen-
démicos de Teologia e Cânones ao seu clero, após tos da doutrina especificados - credo, pai-nosso,
prestação de provas em ritual idêntico ao da Univer- ave-maria e mandamentos ajudar à missa, escre-
sidade de Coimbra. Em Braga, Leiria, Miranda, La- ver, ler e rudimentos de latim; para as ordens meno-
mego e Portalegre, os respectivos prelados puseram res, após os 14 anos, o aperfeiçoamento da língua la-
a funcionar cadeiras de Teologia e Moral, a ser fre- tina por um mestre de Gramática e o aprendizado
quentadas especialmente por pregadores e também prático ao serviço de uma igreja, no caso de os can-
destinadas à formação dos clérigos pobres. Outros didatos não frequentarem seminário ou universidade.
bispos, como o de Silves, criaram aulas de Gramáti- As Constituições Sinodais de Évora de 1565, reedi-
ca e Latim em diversos pontos do bispado. Nos Aço- tadas em 1753, aconselhavam que se tivesse em
res, D. João III, na qualidade de padroeiro, já o havia atenção a capacidade dos minoristas tendo em vista
feito em meados de Quinhentos. A tradicional for- a sua ordenação presbiteral, pois as necessidades da
mação por meio dos mestres-escola da sé foi tam- diocese impunham a cura de almas. Quanto às or-
bém reforçada. Exigia-se, para o concurso a esta co- dens sacras*, idade mínima 21, 23 e 25 anos, respec-
nezia, a graduação em Teologia e Cânones ou em tivamente, os items doutrinais já referidos para as
Artes concedida pela Universidade de Coimbra. No menores voltavam a repetir-se, exigindo-se-lhes uma
sentido de responder às exigências tridentinas, aque- maior interiorização e compreensão conceptual; im-
les mestres deveriam reforçar a actividade lectiva em punha-se ainda o conhecimento das censuras e casos
dois períodos diários, com vista a atingir não só os de consciência. A insistência nos aspectos teóricos e
meninos do coro, mas também o clero de todo o práticos que facultassem o satisfatório cumprimento
bispado, bem como estudantes pobres. O combate a do múnus sacerdotal tomavam uma maior acuidade.
uma ignorância quase sistemática, sobretudo do Assim, a capacidade de rezar o ofício divino e reger
clero rural, patenteia-se no mais diversificado tipo o breviário bem como o conhecimento suficiente de
de articulados insertos nos textos sinodais. Desde latim, que permitisse ao subdiácono a leitura com-
a imposição da profissão solene da fé católica, se- preensiva das epístolas apostólicas e ao diácono* a
gundo a fórmula da constituição apostólica do papa dos Evangelhos, eram-lhes prescritos como condi-
Pio IV, de 1564, em conformidade com as exigências ções indispensáveis à colação das referidas ordens.
da xxiii sessão do De Reformatione, c. 1.°, a todos Para a ordenação de presbítero requeria-se maior ri-
os curas de almas, passando pela doutrinação explí- gor no desempenho das tarefas específicas da sua or-
cita dos sacramentos, até às exposições de doutrina dem. A capacidade para a celebração da Eucaristia e
transcritas nas ditas constituições sinodais, atestam a competência no ministério da Penitência e no ensi-
aquele facto. O registo das formas do cânone da mis- no da doutrina primavam, ao menos teoricamente,
sa em latim, e a sua tradução vernácula, indiciavam entre as condições sine qua non. No entanto, o pres-
a falta que existiria na elementar formação do clero. biterado não dava acesso imediato ao ministério da
A doutrina conciliar relativa ao sacramento da Or- Penitência; só um ano depois da ordenação o pres-
dem - visível sacerdócio - exalta a função do padre bítero seria submetido a exame de confessor, efec-
enquanto nele se dá o poder de representar Cristo, tuado pelo prelado. O exame a que deveriam ser su-
actualizando o Mistério da Redenção. As constitui- jeitos os candidatos a todas as ordens seguia um
ções sinodais fazem-se eco desta doutrina, tentando processo tendente a uma eficaz formação. Se o exa-
a sua difusão e interiorização entre os membros do minado não soubesse responder a alguma das ques-
clero. Não só quando tratam especificamente do sa- tões, o respectivo exame cessaria. É sabido por tes-
cramento da Ordem, como nos diversos títulos, no- temunhos de visitadores, em Angra e Miranda no
meadamente ao abordarem a função e o espírito que século xviii, que estas provas tão rigorosamente im-
deve informar os ministros dos sacramentos da Éu- postas nem sempre se efectuavam. Em carta de
caristia*, Penitência* e Extrema-Unção. Por seu D. Frei José de Lencastre, prelado de Bragança e Mi-
turno, atendendo à excelência e veneração do randa em 1677, referindo o estado da sua diocese la-
ministério sacerdotal, o Concílio de Trento definiu mentava a «summa ignorância e incapacidade dos
e diferenciou as diversas ordens, relativamente às sacerdotes por não haver estudos e muita distância
quais estabeleceu níveis de formação. Para a das universidades do Reino [...] o cabido nas largas
admissão a cada uma delas, desde a prima-tonsura sé vacantes, tanto pela ciência como pelos costumes,
e ordens menores até às maiores, foram postas não fazendo exames competentes, encheu o bispado
exigências específicas de formação. Enquanto em de sacerdotes sem nenhum préstimo» ( C A S T R O -
constituições sinodais anteriores ao Concílio de Bragança, p. 116). Sendo assim, não é de estranhar
Trento, como as de D. Diogo de Sousa ou de D. Mi- que as tentativas de controlo da formação continuas-

367
C L E R O REGULAR

sem na atribuição de benefícios curados. À exigên- registadas nos ditos textos e não deveriam comentar
cia da ordem presbiteral juntava-se a da suficiência, as leituras da epístola ou evangelho a não ser «se fo-
as quais se multiplicam nas diferentes constituições rem aptos pera isso» (Lamego, 1563). Por vezes, a
sinodais, de acordo com o definido no De Reforma- recomendação era ainda mais peremptória e clara
tione, xxiv sessão, c. 18.°. Por suficiência entendia- «[os párocos] não podiam dizer nada de sua cabeça,
-se, e desejava-se, que os párocos possuíssem for- salvo sendo pessoa letrada e graduada em theologia
mação teológica ou canónica e fossem «ao menos ou em cânones, porque taes poderão fazer praticas
bons latinos e versados nos casos de consciência, ze- espirituais» (Braga, 1639). O ensino da doutrina era-
losos na salvação das almas» (Guarda, 1622, liv. in, -lhes cometido de acordo com os períodos do ano li-
tít. 4.°). Mais explícitas, embora menos exigentes túrgico e sempre em conformidade com as instru-
quanto à formação teológica e mais preocupadas ções das constituições sinodais. Explicitavam que
com a capacidade de exercício prático da cura de al- em virtude dos diversos erros em que os párocos in-
mas são outras, ao afirmarem que os candidatos «de- corriam, e do escândalo daí adveniente, estes deviam
vem saber para ensinar seus freguezes, os mystérios reger-se em absoluto pelos formulários que lhes
da SS. Trindade, a Doutrina Christã, e outras cousas eram dados. Assim, as constituições sinodais inse-
tocantes à nossa Sancta Fé Catholica; as formas e riam, ou em apêndice ou no título referente à esta-
matérias dos sacramentos, como os hão-de adminis- ção, o formulário da doutrina cristã. O texto egita-
trar, como e quando dão graça, com que disposição nense de 1622 e o bracarense de 1639 explicitavam
devem ser recebidos e administrados» (Lamego, que «depois do evangelho lhes lerão o Cathecismo
1639, liv. IH, tít. 2.°, c. 2.°). Nem todas as constitui- tridentino segundo o tempo e ordem, que nelle se
ções sinodais mantêm o mesmo rigor e regularida- dá», o qual deverá existir em cada igreja. Apesar dis-
de de quesitos. A de 1591 de Coimbra determinava so, os mesmos deixavam transcrito nas respectivas
que o exame sinodal deveria averiguar se os candi- constituições sinodais todo o formulário de doutrina.
datos honestamente sabiam ler e escrever, rezar pelo O prelado de Portalegre de 1632 ordenava aos páro-
breviário para depois inquirir da ciência específica cos que lessem à estação um capítulo do catecismo*
de um cura de almas. Quereria tal significar a igno- bracarense de Frei Bartolomeu dos Mártires. Em vá-
rância massiva do clero? Já nas Constituições Sino- rios textos sinodais aparecia a exigência para que
dais do Funchal, de 1585, se repetiam as mesmas nas igrejas se afixasse no cruzeiro uma «táboa» onde
exigências doutrinais que nas da Guarda, acrescen- claramente estivessem registadas as principais fór-
tando-se-lhes o conhecimento dos casos de cons- mulas doutrinais. Em pastoral de 1689, o bispo de
ciência e a compreensão do latim. Para os benefícios Miranda referia ter dado aos párocos o catecismo ro-
não curados determinava-se apenas o conhecimento mano para ser lido nas estações; D. António Vieira
de língua latina e o saber cantar cantochão; para as Leitão, nos Açores, em pastoral e visitações* de iní-
conezias doutorais era então exigido o grau de cano- cios de Setecentos, prometia enviar um catecismo a
nista ou teólogo, de acordo com a natureza do bene- todas as igrejas do bispado. A preocupação relativa
ficio. A semelhança entre os quesitos do exame para ao conhecimento doutrinal do clero enquadrava-se
acesso à cura de almas e as imposições relativas à na tentativa da inteligência da fé, exigida também
formação para a admissão às diferentes ordens pode aos fiéis. Nesse sentido se entende a preocupação
talvez explicar-se de duas formas: a primeira, pelo com a estação, mas também com o ensino da doutri-
facto de os candidatos a benefícios já estarem orde- na. Por seu turno, o exame para o oficio de pregar
nados antes das novas prescrições tridentinas; a se- indicia também a falta de confiança na preparação
gunda, tanto mais que elas continuam nos textos si- do clero, mesmo dos graduados em Teologia. A for-
nodais até ao século xvin, poderá deixar entender a mação do clero logrou alcançar um maior aprofun-
deficiente formação do clero. A ausência de uma re- damento, pesem embora as lacunas e deficiências
forma estrutural, num campo tão relevante como o que a afectaram, quer em resultado do reduzido nú-
da formação académica, impunha que a via adminis- mero de seminários durante o período em análise e
trativa funcionasse quase como seu sucedâneo, ser- da sua falta de vigor, quer da ineficácia de alguns re-
vindo de referência aos parâmetros da formação. gulamentos sinodais que se confrontariam com uma
Ora, apesar disso, as recomendações relativas à for- mentalidade retrógrada oposta à inovação pretendi-
ma e conteúdo das homílias dominicais (estações era da. Face à relativa ineficácia da formação do clero,
a denominação corrente) revelavam a fraca prepara- começaram a implementar-se as denominadas confe-
ção da maioria do clero paroquial. Existe em todas rências eclesiásticas, a partir de finais do século xvn
as constituições sinodais um título relativo à estação. e por várias vezes revigoradas. Tratava-se do ensino
Recomendações do que se devia evitar, excessiva fa- da moral e da teologia, orientado pelo clero mais
miliaridade com os fregueses, que se traduzia em culto dentro de suas ouvidorias ou arciprestados. To-
troca de palavras nem sempre edificantes, entre o pá- davia, Fortunato de Almeida refere-se à cultura ecle-
roco e o povo; o procedimento ordenado da homília, siástica, neste período, com elogios e, embora reco-
onde cabia a doutrinação dos fiéis. Ora, também este nhecendo-lhe falhas, exalta-a pelo seu vigor: «Nos
ponto era alvo de pormenorizada determinação. Tan- séculos xvi e xvn, [...] representou esta classe o pa-
to em textos do século xvi como dos séculos xvii ou pel mais brilhante na cultura portuguesa, tanto pelo
xvin surgem as recomendações para que os ministros valor das produções como pelo trabalho educativo e
ensinassem a doutrina, conforme a necessidade dos dirigente» (ALMEIDA - História, vol. 2, p. 430). Por
seus paroquianos, mas apenas de acordo com a sua seu turno, Luís António Verney afirmaria: «Acham-
possibilidade. Isto é, tinham de seguir as instruções -se todos os dias destes clérigos e muitos párocos,

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C L E R O REGULAR

que mal sabem ler, e não entendem bem o latim. [...] em algum crime contrário à moral, ou ainda a prática
Não tenho visto clero secular tão ignorante como o de qualquer actividade considerada ilícita. Para o
de Portugal» (Verdadeiro, vol. 5, p. 113). Estas as- efeito, nas estações da missa dominical, da paróquia
serções, do meu ponto de vista, são contraditórias de onde era natural e na igreja pretendida pelo candi-
apenas na aparência porquanto se reportam a duas dato, faziam-se as respectivas proclamas suscitando
realidades diferentes, a da elite eclesiástica e a do a denúncia. Nos títulos «Da vida e honestidade dos
clero paroquial em geral. E em ambos os casos se- clérigos», insertos em todas as constituições sino-
riam verdadeiras e adequadas à realidade. 4. Ordem dais, proibiam-se coactivamente o exercício de acti-
separada: A tipologia do novo padre tridentino de- vidades mundanas, não só o trato e mercancia mas
finia-se não apenas pela melhoria relativa do nível também todo o trabalho agrícola, o exercício da me-
de vida e residência, sua formação ou pelo menos dicina ou cirurgia, da advocacia ou qualquer outro
afastamento do universo sincrético tradicional, mas que desviasse o padre das suas tarefas de cura de al-
também pela sua silhueta interior e exterior, ou se- mas; visando a perfectibilidade moral, era-lhe im-
ja, pelo seu distanciamento progressivo dos fiéis. posto um comportamento casto, advertindo das oca-
O episcopado, ao difundir as determinações e espiri- siões de perigo representadas pela mulher, lugares
tualidade tridentinas, pugnava por uma vida interior mais escusos e isolados ou ainda saídas nocturnas;
do clero, mediada pela exaltação da doutrina sacra- os lugares públicos ou privados de divertimentos lí-
mental e consciencialização do ministério sacerdotal. citos ou ilícitos ficavam-lhes vedados, assim como
Múltiplos eram os apelos à sublime missão de repre- as tabernas e casas de jogo; ao contrário dos fregue-
sentantes de Cristo conferida pelo sacramento da Or- ses, não podiam usar armas ofensivas e as defensivas
dem; à purificação interior e exterior, nomeadamente só em raras ocasiões; a própria caça só lhes era per-
por meio da oração e recepção dos sacramentos da mitida no período de estatuto. A morigeração dos
Penitência e Eucaristia; à piedade e devoção com costumes ganhava relevância tal que o controlo da
que a celebração sacrificial deveria ser actualizada. idade das suas criadas era de extremo rigor. Adver-
Alguns prelados, em fins do século xvii e inícios do tiam-se não só as autoridades judiciais mas todos os
século xviu, nas suas pastorais, exortavam insistente- eclesiásticos do dever de denunciar qualquer desvio,
mente todo o clero de ordens sacras* ao cumprimen- conhecido ou suspeitado, ao bispo ou seu represen-
to fiel de duas práticas diárias da piedade sacerdotal: tante. A preocupação de modelar o clero dentro de
a reza do oficio divino, que lhe estava cometida, e o uma disciplina estrita afastando-o do tipo de vida
exercício da meditação. Também a divulgação de re- dos seculares transparece com toda a evidência.
tiros espirituais, nomeadamente dos exercícios ina- Também neste âmbito se estava implantando a ecle-
cianos, alcançaria neste âmbito alguma relevância. siologia clerical, perfeitamente hierarquizada se-
O clero era apresentado, efectivamente, como uma gundo padrões materiais e espirituais. Todavia,
ordem separada com o duplo desígnio da espirituali- mantêm-se obscuros muitos aspectos importantes
dade e da exemplaridade. Pela sua intencionalidade para um verdadeiro conhecimento do clero. Pouco
expressiva, transcrevemos das Constituições Sino- ou nada sabemos relativamente à sua origem socio-
dais da Guarda, reeditadas três vezes até meados de lógica, pouco no concernente à formação e sua ac-
Setecentos, a seguinte asserção: «Em húa cousa a tuação efectiva sobre as populações. Urge uma pes-
mais frequente para mover e ensinar ao povo a se- quisa global em todas as dioceses para clarificar a
guir a virtude, e piedade christã, que a vida, e exem- importância e o alcance dos principais agentes de
plo daquelles que são dedicados ao ministério divi- mentalização e cristianização, na construção da reli-
no, porque como estão em mais alto lugar levantados gião cristã e da cultura nacional.
das cousas do mundo, os mais, como em espelho,
poem os olhos nelles para os imitarem. Pela qual FERNANDA ENES
razão convém muito que os clérigos, pois são cha- BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal.
mados à sorte do Senhor, de tal maneira componhão Porto: Portucalense, 1 9 6 8 , vol. 2 . CAETANO, Marcelo - Recepção e
execução dos decretos do Concílio de Trento em Portugal. Revista da
sua vida e seus costumes, que no vestir, na composi- Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 1 9 ( 1 9 6 5 ) 7 - 5 2 .
ção do corpo, no andar, no falar, e em todas suas CASTRO, José de - Bragança e Miranda. Porto: Porto Média, 1 9 4 6 .
obras, se não possa notar defeito antes em tudo dem CHIFFOLEAU, Jacques - Du Christianisme flamboyant À l'aube des Lu-
mières. In L E GOFF, J.; RÉMOND, R . , dir. - Histoire de la France Reli-
mostras e sinais de gravidade, modéstia e religião» gieuse. Paris: Seuil, 1 9 8 8 , vol. 2 . COSTA, M. Gonçalves da - História
(liv. IH, tít. 1, c. 1.°). As normas relativas à apresenta- do bispado e cidade de Lamego. 1 9 8 6 . DELUMEAU, Jean - Le Catholi-
cisme entre Luther et Voltaire. Paris: PUF, 1 9 7 9 . DIAS, J. S. da Silva -
ção e ao comportamento dos eclesiásticos multipli- A política cultural da época de D. João III. Coimbra: Universidade de
cam-se ao longo do período em análise. As vestes ta- Coimbra, 1 9 6 9 . ENES, Fernanda - Reforma tridentina e religião vivi-
lares eram regulamentadas ao pormenor, para todas da: os Açores na época moderna. Ponta Delgada: Signo, 1991. GO-
MES, J. Pinharanda - História da diocese da Guarda. Braga: Pax,
as ordens, tempos, lugares, tarefas e meios. Ao padre 1981. GOUVEIA, António Camões - O enquadramento pós-tridentino e
do meio rural exigia-se maior pobreza que ao do as vivências do religioso. In MATTOSO, J., dir. - História de Portugal.
meio urbano, mas a nenhum se permitia qualquer ti- Lisboa: Círculo de Leitores, 1 9 9 3 , vol. 4 , p. 2 9 0 - 2 9 8 . IGREJA CATÓLICA.
Arcebispado de Lisboa, Sínodo de 1640 - Constituiçõens Synodaes do
po de ostentação. A modéstia, sobriedade e compos- arcebispado de Lisboa. Lisboa, 1 6 5 6 . IDEM. Bispado do Algarve,
tura deveriam caracterizar o perfil do padre, revelan- Sínodo de 1673 - Constituiçõens Sinodaes do bispado do Algarve.
do a sua vida interior. Para a colação de benefícios e Évora, 1 6 7 4 . IDEM. Bispado de Angra, Sínodo de 1 5 5 9 - Constitui-
çoens Sinodaes do bispado de Angra. Lisboa, 1 5 6 0 . IDEM. Bispado de
de ordens, eram exigidas certidões comprovativas da Braga, Sínodo de 1639 - Constituiçõens Sinodaes do bispado de Bra-
sua natureza e conduta: as de genere, para verificar ga. 1 6 9 7 . IDEM. Bispado de Coimbra, Sínodo de 1 5 9 0 - Constituiçõens
a pureza de sangue; as de vita et moribus destinadas Sinodaes do bispado de Coimbra. Coimbra, 1 5 9 1 . IDEM. Bispado de
Elvas - Constituiçõens Sinodaes do bispado de Elvas. Évora, 1634.
a averiguar o modo de vida, hábitos, vícios, incursão IDEM. Bispado de Évora, Sínodo de 1 5 6 5 - Constituiçõens Sinodaes
do bispado de Elvas. Évora, 1 5 6 5 . IDEM. Bispado do Funchal, Sínodo

369
CLERO REGULAR

de 1 5 8 5 - Conslituiçõens Sinodaes do Funchal. Lisboa, 1 5 8 5 . IDEM. na formação. Faz-se oferta de capelães que sabem
Bispado da Guarda, Sínodo de 1621 - Constituiçõens Sinodaes do bis- escrever, em anúncios da Gazeta de Lisboa, do final
pado de Guarda. Lisboa, 1 6 2 2 . IDEM. Bispado de Lamego, Sínodo de
1561 - Constituições Sinodaes do bispado de Lamego. Coimbra, do século xviu. De facto, a ignorância campeia nos
1 5 6 3 . IDEM, Sínodo de 1 6 3 9 - Constituições do bispado de Lamego. eclesiásticos, sendo poucos os instruídos de modo
Lisboa, 1 6 8 3 . IDEM. Bispado de Portalegre - Constituiçõens do bispa-
do de Portalegre. Portalegre, 1 6 3 2 . IDEM. Bispado do Porto, Sínodo de
capaz. A formação do clero era rudimentar. Frei Ma-
1687 - Constituiçõens Synodaes do bispado do Porto. Porto, 1690. nuel do Cenáculo, em 1807, instituiu as disciplinas
IDEM. Bispado de Viseu, Sínodo de 1 6 8 1 - Constituiçõens Synodaes de Línguas e de Teologia, ministradas no Paço. As
do bispado de Viseu. Coimbra, 1 6 8 4 . JEDIN, Hubert - Manual de His-
toria de la Iglesia. Barcelona: Herder, 1 9 7 2 , vol. 5 . PAIVA, Pedro -
Invasões Francesas impediram a continuidade desta
A administração diocesana e a presença da Igreja: O caso da diocese experiência. E é ainda este padre, sem muita ilustra-
de Coimbra nos sécs. XVII e xviu. Lusitania Sacra. 3 ( 1 9 9 1 ) 7 1 - 1 0 0 . ção e rural, que Herculano retrata na polémica Eu e
PEREIRA, Isaías da Rosa - A diocese de Lisboa no século xviu: subsí-
dios para a sua história. Lisboa: APH, 1 9 8 0 . IDEM - Documentos para o clero (1850). A formação do clero foi insistente
a história da diocese de Lisboa ( 3 ) . Vida Católica. 2 : 2 4 ( 1 9 9 3 ) . P E Y - preocupação. Muito responsável pelos abusos do-
ROUS, Bernard - La reforme catholique à Bordeaux: 1600-1719. Bor- cumentados era o sistema da colocação dos padres
déus: Féd. d'Hist., 1 9 9 5 . RODRIGUES, Alice - Subsídios para o estudo
da diocese de Coimbra: o bispo-conde D. João de Melo, 1 6 2 4 - 1 7 0 4 . seculares. 1. O sistema de colocação e a situação
Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. 2 3 4 5 - 2 3 4 9 . Separa- socioeconómica: A obtenção de benefícios era pau-
ta. R O L O , R . d'Almeida - L 'Évêque de la Reforme tridentine. Lisboa: tada por critérios políticos e interesses económicos.
CEHU, 1 9 6 5 . SANTOS, Cândido Augusto dos - O censual da mitra do
Porto. Porto: Câmara Municipal, 1972. Documentos e Memórias para «A simonia espalha-se. O nepotismo vinga. As im-
a História do Porto; 3 9 . IDEM - Contribuições do clero português para a petras defraudam os eleitos por legítimo concurso.
guerra contra os Turcos no tempo de D. João V. Igreja Portucalense.
Porto. ( 1 9 7 8 ) . Separata.
Os padroeiros tentam sobrepôr-se aos cânones.
A própria coroa interessa-se em aumentar os seus
poderes, em colher simpatias, em reduzir o peso da
III. Do Liberalismo à actualidade: O sistema de es- Sé Apostólica» (Ibidem, p. 227). Valia mais o empe-
colha e formação do clero secular, bem como os cri- nho, o dinheiro, do que o valor moral e intelectual
térios da sua nomeação, fazem adivinhar a situação das pessoas. Aproveitavam-se as fugas à autoridade
reinante nos inícios do século xix. Não obstante a es- episcopal, quando marcada por espírito renovador.
cassez de estudos sobre esta matéria, a publicação de Se o bispo se opõe à nomeação de algum clérigo jul-
trabalhos monográficos sobre bispos diocesanos per- gado indigno para preencher uma vacatura ou uma
mite abrir janelas e, a modo de sondagem, lançar hi- renúncia, faz-se apelo à Santa Sé e consegue-se o
póteses de semelhante situação existir nas restantes desejado lugar. A revolução liberal (V. LIBERALISMO)
dioceses. A aplicação do Concílio* de Trento pros- não esqueceria o tema dos benefícios eclesiásticos.
seguiu como linha orientadora da vida do clero até à Fortunato de Almeida dá-nos informação relativa-
revolução liberal. Insistia-se na formação necessária mente à evolução legislativa (ALMEIDA - História,
para a pregação e confissão. A esta continuidade vol. 3, p. 37-40). Um decreto de 2 de Abril de 1821
juntava-se a criatividade de um ou outro bispo, como suspendia o beneplácito a todas as renúncias in favo-
D. Miguel da Anunciação, que em Coimbra consti- rem, eliminando o mau uso de transmitir paróquias
tuiu arciprestados para facilitar a proximidade da por herança a parentes e amigos. A 5 de Maio de
formação em reuniões mensais. Secundariamente e 1821 proibia-se o provimento de benefícios não cu-
de modo involuntário, promovia a união de forças rados e a 26 de Junho suspendia-se a colação de to-
pelo encontro periódico (LAVRADOR - Pensamento, dos os benefícios até se estabelecer novo regulamen-
p. 383-384). Para conhecer o final do século xviu to das paróquias. A Constituição de 1822 conferia ao
serve-nos o estudo de José Paulo Abreu sobre a figu- rei a apresentação para os benefícios eclesiásticos do
ra de Caetano Brandão em Braga. São aí identifica- padroado real, precedendo concurso e exame perante
dos os problemas do clero, quer na vivência moral, os prelados diocesanos (art. 123.°). O decreto de 31
quer na dimensão disciplinar, quer ainda na forma- de Julho de 1833 criava uma Comissão de Reforma
ção conseguida. Quanto ao comportamento moral há Geral Eclesiástica para prover as igrejas de pastores,
frequência de concubinato, casos de alcoolismo, ati- em pleno gesto de despotismo regalista (V. REGALIS-
tudes violentas, indevidas alienações de património, MO). Permitia esta comissão a concessão de favores
frequência de casas de jogo, apego aos bens mate- aos apaniguados políticos e a vingança aos adversá-
riais com espírito de ambição. Quanto à disciplina rios. Mas logo a 5 de Agosto foram declarados ex-
alguns usam vestuário pouco modesto, com traje não tintos todos os padroados* eclesiásticos, reduzindo o
permitido, faltam à residência entregues à caça ou à governo a único agente de nomeação e apresentação
pesca, diminuem o zelo, descuidam os edifícios e de lugares eclesiásticos. O sistema regalista dos con-
seus recheios, não cumprem o dever do ofício. Mes- cursos, imposto desde 1833, obrigava os presbíteros
mo considerando que só ficam documentados os ca- interessados a enviar ao bispo a documentação ne-
sos negativos, porque a normalidade não merecia re- cessária incluindo certificado de aprovação nas pro-
gisto, o perfil da situação era grave. A raiz deste vas públicas, realizadas por examinadores escolhidos
estado situa-se na ausência de uma verdadeira voca- pelo bispo. O processo era enviado para a Secretaria
ção. A ordenação de gente «sem costumes, sem dos Negócios Eclesiásticos, com informação acerca
luzes e sem rasto de espírito ecclesiastico», no dizer da idoneidade de cada concorrente. A escolha gover-
de Frei Manuel do Cenáculo (ABREU - Em Braga, nativa era notificada ao ordinário para lhe conceder
p. 223), prosseguia, com patrocínio da honra de ca- a jurisdição canónica. Tal opção orientava-se, muitas
sas e famílias, que optava pelo sacerdócio desprovi- vezes, por critérios políticos de influência. Esta rea-
da de dimensão espiritual. A esta razão fundamental lidade é denunciada com clareza por Correia de Cas-
soma-se a ignorância, devida à inexistência de rigor tro (CASTRO - O padre, p. 44-47). O facto de os con-

370
C L E R O REGULAR

mento removidos por interessados apresentados pelo


governo. As divergências de local para local tam-
bém se evidenciavam, como faz notar Rademaker,
ao defender a Bula da Cruzada ( c f . R A D E M A K E R -
Discurso da publicação da Bulla. [Lisboa, 1858],
p. 9). Se os bispos não fossem vigilantes e exigen-
tes na idoneidade dos concorrentes as desvantagens
do sistema agravavam-se, com prejuízo da evangeli-
zação. Alguns casos ilustrativos são documentados
por António Jesus Ramos (cf. O bispo, p. 192-195),
durante o pontificado de Bastos Pina, em Coimbra.
Mas, continuando os passos do governo liberal, a
comissão concede a si mesma o direito de proceder
ao exame dos candidatos aos cargos: habilitações
literárias, títulos legais, costumes e serviços. O pa-
triarca de Lisboa reagiu quanto pôde a esta usurpa-
ção de uma tarefa pastoral interna da Igreja. Em
1847 as normas de provimento seriam sucessiva-
mente alteradas, até aparecer o decreto de 2 de Ja-
neiro de 1862, que determinava de forma estável o
provimento por concurso. Documentais ou por pro-
vas públicas, os concursos duravam trinta dias para
o continente e sessenta para as ilhas. O requerimento
era apresentado ao Ministério dos Negócios Ecle-
siásticos e de Justiça, acompanhado dos documentos
comprovativos do currículo. O concurso por provas
públicas concluiria pelo exame oral e escrito perante
o prelado diocesano, que informaria o ministério do
comportamento religioso e moral do candidato. Este
decreto mereceu protesto dos prelados, que viam
cargos espirituais reduzidos a funcionários públicos,
e tarefa da sua competência canónica usurpada por
decreto governamental. No Parlamento levantaram-
O padre Senna Freitas. -se as vozes do bispo do Porto, D. João de França
Castro e Moura, e do patriarca D. Manuel Bento Ro-
cursos permitirem aos padres circular à procura de drigues (cf. A L M E I D A - História, vol. 3 , p. 41-45).
benefícios noutras dioceses dificultava, na época, o E clara a posição do bispo do Porto: «Reconhecer
conhecimento do clero de cada arciprestado e impe- pois no governo direito absoluto de apresentar todos
de que hoje tenhamos uma percepção exacta do nú- os benefícios eclesiásticos, é reconhecer que a Igreja
mero de padres por diocese. Para contornar esta mo- católica deixa de existir de direito, pois nenhuma so-
bilidade foi notável o esforço de Bastos Pina, do ciedade pode existir sem o poder de escolher os seus
qual resultou o «Mapa estatístico do clero do bispa- empregados» (Ibidem, p. 44). O sistema implantado
do de Coimbra» no I d e Janeiro de 1899, publicado pela revolução liberal conduziu o clero secular a
nas Instituições Christãs - 7: 2 (1889) 56-57 co- uma precária condição económica (v. ECONOMIA).
mo refere Jesus Ramos (O bispo, p. 187). Por esse Despojado de bens e desprestigiado socialmente, in-
documento sabemos que o clero de Coimbra era sultado por difamações, privado de exercer a benefi-
constituído por 669 padres. Cada paróquia tinha o cência, o clero foi conduzido para situações de misé-
seu cura e as que possuíssem mais de oitocentos fo- ria, obrigado a socorrer-se da caridade. A situação
gos ou fossem atingidas por grande dispersão popu- agravara-se sem precedentes com os contingentes de
lacional gozavam de coadjutor. Alguns desempe- regulares «secularizados». Para corresponder à peno-
nhavam cargos civis e outros viam-se obrigados à sa e amarga necessidade abriu-se caminho a iniciati-
situação de capelães, conseguindo sobreviver na vas generosas capazes de potenciar antigas institui-
agricultura ou até no comércio. A relação entre pa- ções. As irmandades de clérigos pobres revigoraram
dre e fiéis era de 1 para 280 em Coimbra e 1 para as suas obrigações. Surgiram, quer nas zonas urba-
394 na região de Águeda. A sul do Mondego a dife- nas, quer nas zonas rurais, como salientou Sousa
rença ia até 1 para 1640 pessoas, como em Soure Araújo (São Pedro de Montório de Cervães, Vila
(cf. Ibidem, p. 188-189). O recrutamento de voca- Verde; Prado, Santa Maria do Campo; Calvedo, Pon-
ções correspondia a esta distribuição. Na zona norte te de Lima). A de Cervães, aparecida no século xvi,
e litoral era maior o número de ordenações e na re- sofreu reformas várias de estatutos, como a de 1854.
gião sul mais pobre. A dedicação a uma comunida- Em 1814 fundiram-se duas irmandades: uma já anti-
de não era facilitada pelo sistema. Muitas paróquias ga, com sede no Hospital de Todos-os-Santos, desde
pequenas não tinham párocos colados e o bispo era 1646, dita dos Clérigos Pobres, e outra dos Clérigos
obrigado a recorrer á provisoriedade de párocos en- Ricos. Aquando da reforma dos estatutos de 1844
comendados, ou aos curatos anuais, a qualquer mo- alguns irmãos fundaram um montepio eclesiástico,

371
C L E R O REGULAR

com sede na igreja paroquial da Encarnação. Expe- tação da República começaram a decair, foram um
riência efémera, foi extinta em 1861. Várias tentati- meio apenas de resolver uma situação económica di-
vas moveu monsenhor Alfredo Elviro dos Santos até fícil. Tiveram grande vitalidade religiosa e influên-
1887 para levantar o montepio, acabando por criar cia económico-social. Não se encontravam respostas
uma associação de socorro mútuo espiritual e tempo- legais ou eclesiásticas capazes. A Lei das Côngruas,
ral. Prosseguindo no ideal conseguiu, em 1889, o publicada em 1839 e 1841, criou comissões espe-
edifício de Santa Marta para hospício do clero e no ciais que, depois de examinar in loco as circunstân-
ano seguinte já abria as portas como asilo, hospital cias económicas de cada paróquia, estabeleceram
e hospedaria, bem como sede da irmandade. No fi- uma côngrua, rigorosamente adaptada às necessida-
nal do século outras irmandades se incorporariam: des de cada pároco. A injustiça do cálculo deu-se
Sintra (1889), Setúbal (1894). Estas irmandades por não se atender ao futuro aumento do custo de vi-
procediam à visita aos enfermos, como direito e co- da e das subtracções. O descontentamento generali-
mo dever, atendiam à assistência dos confrades po- zou-se entre o clero. O Diário das Sessões da Câma-
bres e doentes e davam instruções para conforto dos ra dos Pares faz eco desses protestos inúteis contra a
moribundos, amortalhavam os falecidos, enterravam miséria do pároco português. No final do século xix
e sufragavam os mortos ( c f . A R A Ú J O - Irmandades, o clero paroquial pedia o melhoramento e actuali-
p. 420-422). O crescimento de irmãos de 261 (1889) zações das côngruas de 1839 e 1841, bem como a
para 433 (1893) faz aumentar os problemas e nos aposentação de párocos incapacitados para o encar-
últimos anos do século xix e princípios do xx multi- go. A resposta veio na lei de 14 de Setembro de
plicam-se as discórdias. O saldo negativo da hospe- 1890 e no decreto de 14 de Dezembro, que criavam
daria leva a irmandade à ruína. Os irmãos foram en- a caixa de aposentação do clero, permitindo o pedi-
caminhados para as ordens terceiras (cf. para mais do de reforma aos párocos colados com mais de 70
pormenores: ALMEIDA - História, vol. 3, p. 89-91). anos ou com 30 anos de serviço paroquial e com
A irmandade viria a transformar-se em Monte Pio do mais de 60 anos, no caso de impossibilitados. A re-
Clero Secular Português. O 2.° Congresso* Católico visão das côngruas é que não foi feita. A mentali-
de Braga (6-10.4.1891) votou como conclusão a fun- dade anticlerical (v. ANTICLERICALISMO) reinante não
dação do Monte Pio do Clero. Em 25 de Maio de facilitava uma pronta atenção ao real problema (cf.
1912 o presidente da República aprovou os estatutos R A M O S - O bispo, p. 197-199). A união dos bispos e
e o semanário Amigo da Religião (16.10.1888- do clero era fundamental para dar força à luta a tra-
-9.2.1921), editado em Braga, foi, então, o órgão ofi- var. Daí a organização de congressos do clero, co-
cial do Monte Pio do Clero Secular e da Liga do mo o de Braga (1905) e o de Coimbra (1906), que
Clero Paroquial Português (cf. A R A Ú J O - Irmandades, tiveram assinalável destaque na congregação das
p. 402-403). Mas as irmandades, que com a implan- vozes perante a adversidade da situação e na atenção

Fachada do Seminário de Nossa Senhora da Conceição, em Braga, nos anos 30.

372
C L E R O REGULAR

aos males inerentes à má preparação para o serviço abade, reflecte esta problemática (SILVA - Carta).
pastoral. O I Congresso do Clero ocorreu em Braga Vítor Neto aponta alguns casos isolados de clero ru-
(25.10.1905) e teve como grande promotor D. Ma- ral que anuiu às pensões e foi republicano. O Diário
nuel de Albuquerque (1843-1912), prior de Guima- do Governo publica uma lista de 766 padres pensio-
rães. Organizado pelo clero desse arciprestado, com nistas ( N E T O - O Estado, p. 286-287). A densidade
a presença de 700 congressistas, ultrapassou o âmbi- de adesão é maior em Lisboa (85) e Alentejo (Évo-
to regional, atingindo a representatividade de 164 ar- ra - 48 e Beja - 97), apesar de se espalhar por todo o
ciprestados e vigariarias. Estudaram-se problemas país. O Porto resistiu de modo eficaz. O número de
sociais do clero (revisão das côngruas e política de 17 pensionistas para um total de 485 é significativo
pagamento, isenção de impostos directos, necessida- da força e peso de um bispo como António Barroso,
de de residências paroquiais e aposentação do clero a quem a República maltratou. No Algarve também
idoso) - Revista Catholica. [Viseu], 15: 41 (1905) D. António Barbosa Leão conseguiu que apenas 6
325. O problema do clero centrava-se na difícil si- padres aderissem ao regime pensionista, num núme-
tuação económica e daí decorria a partidarização po- ro total que se aproximava de 120. Vê-se o bispo
lítica e desunião de esforços. Foi um congresso obrigado a escrever uma carta às famílias ricas do
«mais prospectivo e exploratório do que decisivo e Algarve implorando socorro material para a Igreja
imploratório» (GOMES, J. P. - As duas cidades. Lis- (Ibidem, p. 128). A diferenciação do Alentejo e par-
boa: Multinova, 1990, p. 105). O II Congresso do ticularmente o caso de Beja, onde a adesão é quase
Clero reunido em Coimbra (26-28.9.1906), com 150 total, explicam-se pelas orientações episcopais mo-
delegados vicariais, sob a presidência de P. Dias An- deradas no acolhimento da pensão, sem implicar
drade, já aprofundou os temas antes inventariados e acordo com a Lei da Separação. Compreendiam es-
chegou a vinte e seis conclusões unanimemente tes bispos as reais necessidades materiais do clero a
aprovadas e que alargaram a temática à ordem pasto- que presidiam. Há que distinguir entre os que acei-
ral: lançamento de um jornal matutino nacional, ela- tam a pensão por razões de sobrevivência e os que
boração de um catecismo único, catequese nocturna aderem por convicções de ideologia republicana,
para operários. Mas a este levantamento esporádico que seriam uma minoria, em resultado do confronto
seguir-se-ia grande crise nacional que adiaria as so- ideológico da revolução. Os padres pensionistas or-
luções - cf. CARDOSO, J. Ribeiro - Dotação do culto e ganizaram-se e a Comissão Central deu a conhecer
do clero. Estudos Sociais. 2 (1906) 368-373. Multi- um manifesto, a 4 de Setembro de 1912. Aí decla-
plicam-se os apelos à união do clero contra o mal da rava a sua religiosa adesão ao cristianismo e à hie-
situação: «urge comunicarem entre si os seus pensa- rarquia da Igreja e pedia aos bispos mais rigoristas
mentos de reclamação, em nome não de mesquinhos uma conciliação entre Igreja e Estado (Ibidem,
interesses pessoais, mas do interesse primacial das p. 291-292). Este grupo tinha acolhimento nas zo-
almas, que elles poderão servir sem constituírem for- nas urbanas e de maior influência republicana, mas
ça bastante a opôr um dique à desmoralização tre- nas zonas mais conservadoras devia arcar com a in-
menda que domina tudo e todos» (PADRE, p. 30; cf. compreensão do bispo e da população. É natural que
MATTOS - O padre, p. 67). E as indicações tornam-se este impacte motivasse a reflexão política. O clero
precisas: «A união do clero deve começar pela fra- não tinha uma opinião unânime relativamente à sua
ternisação dos mais humildes, dos párocos, dos sa- participação no Centro Católico. Alguns desejavam
cerdotes, enfim, que mais de perto conhecem a misé- uma intervenção clara, outros queriam evitá-la.
ria física e moral da nossa patria. E os arciprestados A força do clero e o aproveitamento do «bom clero
estariam naturalmente indicados para núcleos de as- estava na mira dos homens do movimento». O Cor-
sociação» (Ibidem, p. 31). E concretiza esta movi- reio da Beira (14.1.1915) no artigo «A política do
mentação com sugestões de reuniões e «engrena- clero» não queria vê-lo metido nas lutas partidárias,
gem» de funcionamento. Há uma vontade de ver-se e defendia que a acção política do clero era de dou-
livre da influência política que atinge logo os jovens trinação, orientação, formação da consciência cívica,
padres, mais propensos a favoritismos que os fazem de persuasão e de influência para levar os concida-
«escravos políticos». «A união do clero seria para a dãos a cumprir os seus deveres para com a Igreja e a
Igreja portuguesa [como] a sua perfeita e justa liber- sociedade civil (cf. ALVES - A Igreja e a política,
dade de acção» (Ibidem, p. 34). Quando a Lei da Se- p. 76). A maioria do clero português ordenou-se a tí-
paração suprimiu a obrigação civil de pagar a côn- tulo de serviço da diocese, o que implicava um con-
grua, os fiéis de algumas paróquias continuaram a trato bilateral entre o ordinando que se vinculava por
dar a sua antiga contribuição. Além da abolição das juramento a serviço de uma diocese e o ordinante
côngruas, os passais foram expropriados e as condi- que se comprometia a dar-lhe um ofício ou um sub-
ções materiais do clero ficaram péssimas. O Estado sídio suficiente para o sustentar por toda a vida. Há
providenciava um sistema de pensões através de um quem deixe a sustentação de clero velho e doente a
contrato, à maneira de funcionário público, interpre- cargo das economias conseguidas durante o exer-
tado como criador de uma relação com o regime. cício do ministério. Se é verdade que alguns enri-
Daí a rejeição de muitos e a divisão do clero em pen- quecem, isso é excepção, a não ser que tenham her-
sionistas, que foram poucos, e não pensionistas, aler- dado bens de família que sabiamente administraram.
tados pelos bispos e governadores dos bispados para A maioria vive com dificuldades e não pode fazer
a rejeição. Houve quem emigrasse para o Brasil ou economia de vulto. Estas economias são tão limita-
para Espanha, juntando-se à conspiração monárqui- das que não fundamentam tranquilidade para o futu-
ca. Abúndio da Silva, na sua notável Carta a um ro. O deixar cada um à procura de resolução do pro-

373
CLERO REgULAR

Monsenhor Pereira dos Reis com os finalistas e professores do curso de 1950, no Seminário dos Olivais, em Lisboa.

blema não foi positivo porque muitos se entregaram ampare os padres doentes e velhos contribui em
à leccionação a partir da democratização do ensino, grande parte para a desorganização económica do
nas zonas interiores e rurais. A eficácia da vida pas- clero. Surgem, por esta época, várias associações: Ir-
toral resultou diminuída e o estilo de vida alterado. mandade de São Pedro do Clero do Patriarcado de
A colecta anual para o clero pobre, decretada no Lisboa (ESTATUTOS. Lisboa, 1940; 1949); Irmandade
Concílio Plenário* Português (n. 483), é exígua e dos Clérigos Pobres de São Pedro «ad vincula» (ES-
não compensa o mal que por falta de esclarecimento TATUTOS. Angra do Heroísmo, 1951); Associação de
do povo dele resulta, porque não acreditam os fiéis Auxílio Mútuo do Clero da Diocese de Leiria (Leiria,
na pobreza dos padres. A falta de determinação para 1956); Obra de auxílio ao clero da diocese de Aveiro
resolver esta situação contribuiu para formar um cle- (ESTATUTOS. Cucujães, 1957); Irmandade de São Pe-
ro calculista e interesseiro e por isso mau. Ainda em dro e Santa Maria do Clero da Arquidiocese de
1953 se queixava o clero de não ter o suficiente para Évora (Évora, 1961); Solidariedade Sacerdotal da
viver e das paróquias não terem os meios indispen- Diocese de Portalegre e Castelo Branco (ESTATUTOS.
sáveis, mas também os fiéis que lamentavam os pe- Portalegre, 1964); Associação de Auxílio Mútuo do
ditórios diversos e a exigência da côngrua e dos Clero da Diocese de Coimbra (ESTATUTOS. Coimbra,
emolumentos, quando se aproximavam para pedir a 1965 [os provisórios eram de 1963] - Lúmen. 27
celebração do sacramento do Baptismo, Casamento [1963] 76-80 - em 1962 já tem 142 adesões); Frater-
ou presidência ao funeral. Agostinho de Almeida Al- nidade Sacerdotal do Porto, erecta por D. Florentino
ves diagnostica o mal e propõe uma nova organiza- de Andrade e Silva a 21 de Dezembro de 1963; Fra-
ção da côngrua e dos emolumentos. Nomear-se-ia ternidade Sacerdotal da Diocese de Beja (ESTATUTOS.
uma comissão das côngruas a nível diocesano ou ar- Beja, [s.d.]). As mutuais ou fraternidades do clero,
ciprestal que entraria em contacto com a comissão de diversa índole, estrutura e organização, têm como
paroquial da côngrua para recolher junto de cada fa- fim comum congregar os esforços de todos em be-
mília o que entregaria anual ou semestralmente para nefício de cada um. São, na segunda metade do sé-
a sustentação do pároco - Lúmen. 17 (1953) 16-28. culo xx, um meio útil para minorar as dificuldades
Verifica também que a falta de uma instituição que de um clero pobre, velho e doente. Mas não são so-
374
CLERO REgULAR

lução ideal porque o reduzido número de contribuin- cionário e com a razão política de serem solidários
tes e o aumento do número de situações necessitadas de D. Miguel e por isso ligados aos legitimistas.
criam grandes dificuldades financeiras e fazem elevar A divisão entre partidários de D. Pedro e D. Miguel,
as quotas para níveis demasiado altos. O problema agravada pela guerra civil, e o encerrar dos conven-
da sustentação do clero mereceu especial interesse tos*, devido à extinção das ordens e congregações
de Agostinho de Almeida Alves, que, em sucessivos religiosas*, não permitiram a organização de uma
artigos da Lúmen desde 1953 até 1967, examinava a formação competente do clero. Os decretos do go-
situação jurídica e pastoral e apontava soluções viá- verno, como o de 5.8.1833, urgiam a fundação de se-
veis lançando críticas ao arrastar da situação. Do de- minários nas dioceses, onde não existissem, mas não
bate brotam soluções. Uma consulta, sobre o quanto lhes asseguram os rendimentos indispensáveis. As
mensal mínimo, feita no patriarcado aos vigários da medidas de Passos Manuel não encorajaram os bis-
vara a 3 de Março de 1959, depois de inquérito jun- pos e o clero para abrir ou reabrir seminários. A in-
to dos padres, deu como resultado, excluindo renda definição política lançava tentativas de laicização do
da casa e manutenção do automóvel, 2000$00 no ensino* eclesiástico. A criação, por exemplo, de
meio rural e 3000$00 no citadino. (O ordenado de uma classe de estudos específicos nos liceus, cons-
professor primário era de 1750$00 e o de alferes tando de duas cadeiras, com programas organizados
2600$00, tenente 3400$00, professor liceal e capi- pela Faculdade de Teologia da Universidade de
tão 4500$00.) Na carta pastoral de 2 de Fevereiro Coimbra, não resultava. O número de ordenações
de 1961, o cardeal Cerejeira anuncia uma organiza- decresceu e a preparação dos seminários não atingia
ção para atender às condições materiais da vida do o nível necessário. Em Coimbra, pelo estudo de
clero. Cria uma Caixa Diocesana de Compensação A. Jesus Ramos, sabemos que na década de 30 e 40
ou Fundo Diocesano do Clero, aberto à dedicação do a média anual era de seis ordenações. A situação
povo para, com gratidão, respeito e generosidade, melhorou com D. José Lemos (1858-1870), tendo o
acolher os casos de insuficiência, doença, invalidez. número médio de ordenações subido para quinze.
O II Concílio* do Vaticano veio introduzir novos Com o governo de Bastos Pina na diocese a vida
elementos e lançar formas de solucionar a questão. normalizou-se com um presbitério renovado (RA-
Vai pôr em marcha o fim do sistema beneficiai, vi- MOS - O bispo, p. 185-186). Esta evolução relacio-
gente até ao novo código de 1983, e criar um novo na-se com o cuidado na formação. Resumimos os
organismo (Caixa Comum) que recolherá as ofertas passos principais. Em 1843 travou-se sério debate
dos fiéis para que o bispo possa, livre e equitativa- no Parlamento acerca de uma lei sobre a instrução
mente, realizar uma justa distribuição. A resolução do clero. A Comissão de Instrução Pública propu-
de cada diocese respeitará os traços delineados pelas nha uma reforma de ensino com a inclusão das dis-
conferências episcopais, a quem compete programar ciplinas religiosas nos liceus e a Comissão Eclesiás-
a reforma. Na diocese do Porto, por exemplo, o bis- tica desejava a preparação do clero nos seminários.
po D.António Ferreira Gomes apresentou em 1971 A mentalidade regalista favorecia o direito de inspec-
um conjunto de «Princípios e normas básicas para ção e de vigilância do Estado nos seminários, mas
estudo do estatuto económico-social do padre dio- variavam as opiniões sobre o peso do poder dos bis-
cesano». Apesar do trabalho notável do Conselho pos no governo das instituições eclesiásticas. O medo
Presbiteral, não se avançou por várias resistências, das casas de formação do clero serem estabelecimen-
quando se pretendeu concretizar: ordenados-base, tos geradores de contra-revolução e a falta de meios
diuturnidades, recolha de fundos, etc. A situação materiais para funcionamento de casas autónomas
manteve-se sem mais tentativas até 1999, quando de provocariam a publicação da lei de 28.4.1845. O teor
novo o Conselho Presbiteral avança nova proposta. do debate foi resumido por Vítor Neto (O Estado,
O bispo de Vila Real, D. António Cardoso Cunha, p. 178-181). Ordenava-se a criação de um seminário
em 1975, dirigiu uma carta aos padres, onde descre- em cada diocese do continente e ilhas. Os estudos
via a situação material do clero nas suas assimetrias preparatórios (Gramática Latina, Retórica e Filosofia
claras: alguns com vida desafogada, outros com difi- Racional e Moral) realizar-se-iam nos liceus e o cur-
culdade. A forma como cada um resolve o problema so teológico seria trienal. O Estado controlaria os
é denunciada: «oxalá os abusos e excessos na co- compêndios e o currículo. Os professores seriam
brança de emolumentos fossem puramente imaginá- propostos ao governo pelos bispos. O governo eco-
rios. São vulgares os casos de sacerdotes que cele- nómico e disciplinar pertencia aos prelados. Esta tu-
bram, sem qualquer motivo pastoral e unicamente na tela encontrou resistências na prática e limites na
caça ao estipêndio, duas missas nos dias da semana. aplicação, porque os bispos não se submetiam, nem
Não quero falar em sacerdotes que contra todas as aceitavam a ingerência injusta. Tentava o governo
normas vigentes, celebram quantas missas lhes apa- transformar o clero numa classe culta e o Convénio
reçam». Ataca com lucidez a ambição de enriquecer de 1848 queria a abertura, no ano lectivo seguinte,
e o exagerado cuidado com os sobrinhos. Considera de seminários em Lisboa, Braga, Évora, Funchal e
«triste e escandaloso» que um padre funcione como Angra. O governo facultava meios às outras dioceses
«colector de riquezas» - Lúmen. 36 (1975) 183- para, num prazo de quatro anos, proceder à abertura
-184. Várias dioceses têm já encontrado uma solu- do ensino do clero. Mas até 1851, quando se decidiu
ção razoável para o problema: Portalegre e Castelo atribuir o subsídio da Bula da Cruzada* aos seminá-
Branco, Lisboa, Guarda. 2. A formação e a vivência rios, o clero era preparado por algumas aulas ou li-
pessoal: Era evidente a decadência social do clero, ções de Teologia, dadas junto do bispo, por alguns
com a imagem denegrida pelo espírito liberal revolu- padres. Nos finais da década de 50 já o panorama era

375
CLERO REgULAR

diferente. Um decreto de 26.8.1859 relembrava as que de 1910 a 1930 só teve seis padres ordenados.
regras da lei de 1845 e insistia na aplicação da dura- A partir deste «longo hiato» reatou-se o recrutamen-
ção de três anos e no número mínimo de oito cadei- to, «mas com uma lentidão desoladora». Nos últimos
ras após os preparatórios dos liceus. Aos poucos os vinte anos apenas «cinco dúzias» se ordenaram -
bispos recuperavam a orientação dos seminários até Lúmen. 6 (1942) 159-166. Este crescimento operou-
integrar os preparatórios. Estes seminários tentavam -se um pouco por todo o país, como pode ver-se no
ser fiéis às orientações de Pio IX, pautando a vida artigo «Seminários»*. Demos mais realce à vivência
pela exigência disciplinar, cultivo de virtudes, co- pessoal. O século xix trouxe ao clero a necessidade
nhecimento seguro dos dogmas, argumentação teo- de não se confinar à defesa, mas reagir pela renova-
lógica baseada em São Tomás, promoção de uma ção de vida. O jornal católico A Nação revela a men-
pastoral sacramental e de uma moral casuística. talidade existente nos católicos mais conscientes,
O leigo militante Gomes dos Santos, na obra O cato- criticando a redução da missão do padre a celebrar
licismo em Portugal, publicada em 1906, analisa a missas, confessar algumas vezes ao ano, cobrar o fo-
situação do clero português, salientando a falta de lar pela Páscoa e recolher a côngrua, «baptizar e en-
formação séria e de seminários organizados como terrar por ofício», para depois se intrometer nas elei-
razão da deficiente qualidade religiosa dos padres, ções, «distribuir listas de porta a porta». Considera
comodistas e incapazes de sair da «rotina imobiliza- que os seus deveres são mais elevados. «Pertence-
da» ( S A N T O S - O catolicismo, p. 18). Daí dependia -lhe toda a parte espiritual da sociedade» (cf. A Na-
«a consciência da acção política e social, a intensida- ção, 2 de Novembro de 1847). Consciente das difi-
de da fé e a firmeza de convicções» (Ibidem, p. 29). culdades, o monge Jerónimo Correia de Castro traça
É o tipo de «padre social» influente nas obras sociais em 1853 um programa: «clero lusitano, como estás
(v. CATOLICISMO S O C I A L ) , na imprensa*, nos círculos perante o Século, que sempre há-de ser severo, e in-
renovadores (Ibidem, p. 53). Ainda em 1909, Senna tolerante comtigo - ama e practica a virtude; aborre-
Freitas (f 1913), na sua longa introdução à tradução ce e evita o peccado» ( C A S T R O - O padre, p. 65). De-
do livro do bispo norte-americano Spalding, A alta finem-se retratos do padre ideal para apelar à
educação do padre, ressente-se da descrição anterior mudança. E valoriza-se o contacto próximo do povo.
e confirma-a. O lugar do padre «não é no salão de «O padre entra em suas casas, come com elle, vive
jogo, nem nos centros das palestras fúteis (por não com elle, e o padre muito de perto convive com o
dizer mais), nem nos clubes políticos, nem nas fai- Povo, é o seu interprete e confidente, encarregado de
nas das galopinagens eleitorais, ambiente apertado negócios de muitas famílias, capaz de falar "ao cora-
demais para um pulmão de padre, mas sim no tem- ção do Povo"» (Ibidem, p. 53). O trabalho pastoral
plo, no púlpito, na associação religiosa, na praça, era reduzido e quase apenas litúrgico. Os meninos
na rua, na Kermesse, no espectáculo de caridade, na deviam acudir à missa conventual para ouvirem a
usina, e em toda a parte onde o nosso carácter e mi- explicação do Evangelho do dia e juntamente apren-
nistério encontrarem uma ocasião oportuna de dar derem a doutrina. Em dois domingos que esteve no
glória a Deus, de justificar a Igreja, de honrar a vir- Espinhal, Correia de Castro, em meados do século,
tude, de pregar implicitamente o evangelho, de ser- só lhe apareceram três meninos. E pergunta: «como
vir os homens» ( F R E I T A S - A alta, p. xxxm). A dedi- quer o século moralidade no Povo, se os Pais e Che-
cação militante é incitada por este texto vigoroso de fes de Familia fogem das missas conventuaes, quan-
alguém com autoridade vital. Critica a falta de re- do há explicação do Evangelho ou Sermão?» (Ibi-
novação da linguagem na pregação, o recurso fácil dem, p. 46). Maria Rattazzi, francesa que visitou
às lendas e às ameaças das «chamas eternas». Pre- Portugal em 1876 e 1879, numa pincelada rápida
tende um clero com capacidade de intervenção so- e em visão generalizada, própria do convívio com o
cial. Em 1911, os seminários foram confiscados pe- meio lisboeta, descreve o padre português como se-
lo Estado. Porém, o de Évora poderia ser alargado. cularizado: «Passeia pelas ruas como um verdadeiro
Assim, D. Augusto assumiu a renda do Seminário secular; frequenta os teatros e as sociedades, fuma,
de Évora para continuar a ser ensinada a Teologia. conversa e chega mesmo, não raro, especialmente se
Em 1917, o Estado obriga-o a fechar e é transfor- reside no campo, a organizar suave e discretamente
mado em quartel. A pobreza dos padres e a liquida- uma família de que se constitui "chefe"» ( R A T T A Z Z I -
ção económica da diocese pela confiscação dos Portugal, p. 100-101). A literatura portuguesa do sé-
bens levou os bispos a tentar organizar fundos de culo xix (1820-1910) é comum numa ironia, eivada
sustentação do clero e do culto. Até o papa enviou de amargura, saudosa de um verdadeiro catolicismo
dinheiro para os sacerdotes necessitados. Foi a par- no qual o padre é figura expoente. O modo como o
tir do Concílio Plenário Português que os seminá- clero secular se comportava no último quartel do sé-
rios começaram a ganhar novo fôlego. Assim narra culo xix está patente no exemplo de Coimbra, estu-
D. Agostinho de Jesus e Sousa, bispo de Lamego, a dado por Jesus Ramos. A maioria vive em boa ob-
evolução, ao despedir-se da diocese (1942): «Em servância da disciplina, com dignidade e generoso
1921 tínhamos apenas uns quarenta seminaristas, ao zelo, obediente às orientações do seu pastor. Os ra-
passo que presentemente nos dois seminários quase ros casos de convivência ilícita com senhoras, vicio
duzentos. Comprou-se o Seminário de Resende, com do jogo, de comércio, recurso à violência ou de abu-
a quinta adjacente, fizeram-se obras importantes e so do álcool e ainda o vício da política (e que geral-
dispendiosas no edifício do Seminário de Lamego» - mente estão documentados porque exigiram inter-
Lúmen. 6 (1942) 595. No Sul, D. Manuel Mendes da venção episcopal) levam-nos à conclusão de que
Conceição Santos, na pastoral de 2.2.1942, informa geralmente havia um clero cumpridor. Os ataques à

376
CLERO REgULAR

classe clerical eram interpelantes e as reacções não TAS - O sacerdócio, p. 11). Com palavras semelhan-
se fizeram esperar, sobretudo por intervenção na im- tes, mas apresentadas em brilhante síntese, se subli-
prensa. O editorial do Clero Portuguez não deixava nha o carácter social da missão do padre, ao entrar
dúvidas: «Num século activo e questionador em que no século xx: «Prestando desinteressadamente bene-
vivemos, em que todas as theorias comparecem no fícios incalculáveis à velhice inválida, à infância
tribunal da discussão, e as crenças religiosas como desvalida, à pobreza desamparada, à doença abando-
os princípios sociais acham zelosos defensores e ar- nada e desprotegida, à enfermidade adeantada, à or-
dentes adversários; quando os antagonistas da fé e phandade destutelada» ( M A T T O S - O padre, p. 109).
do sacerdocio não se poupam a esforços para abolir E nesta direcção social que tinha apontado Augusto
a cruz do meio da sociedade, declarando-a emblema Eduardo Nunes, na sessão da Academia de São To-
do erro e do fingimento, quando o espírito do século más de Aquino, no Seminário de Coimbra a 20 de
orgulhoso com a sciencia dos seus livros acera mais Maio de 1883 - Importância social do clero. Insti-
os seus epigramas satanicos, e assesta os seus so- tuições Christãs. 2 (1883) 159-164. Elogia os méri-
phismas de calculo para accusar o clero de obstáculo tos do passado porque reconduziu a humanidade à
à civilização [...]. O Clero portuguez entra na im- sua condição, «a igualdade perante a lei e o espírito
prensa para repelir com energia as audazes asserções de fraternidade universal». Soube economizar: «Os
dos inimigos da Igreja Catholica» - Editorial. Clero bens imóveis recebidos conservou-os sem os este-
Portuguez. 1 (1885) 1. Ramalho Ortigão divide o rilizar», «preparou a plebe por meio de uma alta
clero português na seguinte tipologia: padre das educação intelectual e moral» (Ibidem, p. 161). Au-
missões, padre de aldeia e o padre de sala (Farpas, gusto Eduardo Nunes, professor da Faculdade de
vol. 5, p. 27-28). O padre das missões é o homem Teologia* e precursor na Doutrina Social da Igreja,
da aventura e do entusiasmo pelo ideal; o padre de põe o dedo na ferida ao perceber as intenções dos
aldeia dedicava-se aos trabalhos de lavoura e caça; mentores sociais do final do século: «Falla-se hoje
o da sala permanecia entre a aristocracia urbana co- muito em sociedades leigas. Uma sociedade leiga
mo elemento decorativo das nobres famílias. A estes seria uma sociedade abjecta, onde o elemento divino
Ramalho opunha os estrangeiros vindos para Lisboa, careceria de representação social: uma sociedade
que devido à formação adquiriam influência apreciá- sem culto público, sem templos patentes a todos, sem
vel. A situação do padre português, em 1907, é as- crenças comuns e sem commum adoração.» E mais
sim apresentada pela Estrela do Norte: «religiosa- adiante: «sociedade leiga, que consinta embora o pa-
mente disfruta de uma paz invejável [...]. Não assim, dre, como consente o histrião, mas não lhe reconhe-
politicamente. Os seus direitos não raro sofrem limi- ça direitos alguns inerentes ao carácter sacerdotal:
te, nas audacias dos poderes em abuso. O Estado não eis o sonho de não poucos espíritos levianos e obce-
vela pelas suas côngruas e, nos despachos, atende cados» (Ibidem, p. 161). A concepção do que é o sa-
mais às influências politicas do que ao merecimento cerdócio cristão estava em causa como nota Eduardo
dos despachados» (PADRE, p. 21). E prossegue com Nunes: «o racionalismo sustenta que este sacerdócio
firmeza de palavras: «O Poder considera o Padre co- dezanove vezes secular está decrépito e deve ser
mo inferior ao soldado. Exige-lhe instrução e chega supplantado por um sacerdocio philosophico; preten-
a negar-lhe pão» (Ibidem, p. 22). «Situação pericli- de substituir à pregação catholica uma doutrinação
tante, cheia de privações, de humilhações, de verda- moral e religiosa ministrada por doutores occasio-
deiros e revoltantes prejuízos [...]. E é precisamente naes, produzido, creio eu, por gerações espontâ-
o cura de almas o mais lesado e menospresado, ape- neas...». Depois da ironia, o futuro arcebispo de
zar da fraternal e indefesa protecção dos Prelados» Évora defende o papel social do clero, como decor-
(Ibidem, p. 27). Além da denúncia da injustiça feita rente da sua tarefa primária: ser «homem das cousas
ao clero, levantam-se vozes a exaltar o papel social divinas». Secundariamente é o amigo «a quem não
do padre e a mostrar a utilidade civilizacional da sua pode ser indifferente o que interesse a seus irmãos»
missão. A defesa da figura do padre dedicado é bem (Ibidem, p. 162). Neste contexto se insere a relação
clara nos textos apologéticos de Senna Freitas: «Ho- com a política (v. LAICIDADE). «O padre não deve ter
mem de virtude acrisolada e dedicação absoluta - política? Se quereis dizer que os eclesiásticos [...],
um homem de sciencia solida e prestimosa. Cumpre- devem abster-se das lutas partidárias e dos certames
-lhe, pelo carácter impresso, pela missão assumida, eleitoraes; se quereis dizer que o padre não deve ser
apresentar-se o espelho dos bons costumes, o tutor faccioso, sim, mil vezes sim: se porém pretendeis
de pupillas, o protector das orphãs e viuvas, o para- significar que ao padre devem ser extranhos todos os
nimpho das creancinhas e dos indigentes, a esperan- interesses públicos e indifferente a boa ou má admi-
ça segura dos desgraçados, o bastão dos velhos, o nistração e governo de um paiz, não, mil vezes não»
terror dos maus, o applauso e o alento dos virtuosos, (Ibidem, p. 163). Apesar da clarividência de posi-
o sol preservador das corrupções moraes, a luz pre- ções, os comportamentos permaneciam confusos, os
servadora das trevas do espírito nos domínios da juízos erróneos, as armas nem sempre leais porque
doutrina, o pae dos que sofrem e o Cristo do Se- carregadas de parcialidade. O nascer do novo século
nhor.» E mais adiante anota com clareza: «Mau gra- vê aparecer uma obra serena devida à pena do escri-
do frequentes defecções e lugubres misérias, que não tor Raul Brandão: O padre (1901). Traça aí o perfil
intento esconder nem mesmo apparento esquecer, a do padre católico, com superioridade sincera, descre-
luz ainda rutila sobre o candelabro da egreja portu- ve-lhe a missão e retira-o da maledicência e do in-
guesa, sem termos de appelar absolutamente para o sulto a que anda reduzido por alguns. Raul Brandão
vasto clarão emittido pelo clero estrangeiro» ( F R E I - lamenta os retratos que observa: «o padre eleiçoeiro,

377
CLERO REgULAR

o padre janota, mamando charutos à porta das taba- evolução». Incita, impulsionado pelo exemplo da vi-
carias, o padre intriguista, fazendo cerco às viúvas zinha Espanha, à promoção de reuniões ou assem-
ricas [...]. Pior do que estes, há o padre banal e char- bleias sacerdotais para proceder à renovação do
ro, o padre que confessa, absolve e baptiza, como meio português. Segundo o cardeal Cerejeira (1961)
um director de secretaria despacha. O padre é ateu. a imagem do padre transformou-se: «vim dum tem-
O padre não compreende a Igreja nem a ama. Para po em que o padre pode figurar na literatura como
ele o sacerdócio é um oficio. Engorda». A nudez fria "oficial de missas": o padre sentado à mesa dos ca-
deste desenho demonstra a vontade convicta de um fés, ocioso nos lugares de cavaco, pretendente nas
desejo de renovação. Após as dificuldades da Repú- ârcadas dos políticos» - Lúmen. (1961) 106. Adivi-
blica atinge-se, com a implantação do Estado Novo, nha o nascimento de um novo estilo: «o padre só
uma estabilidade. As mudanças de mentalidade, sur- padre, todo padre; o padre homem de Deus, inteira-
gidas no pós-guerra, iriam perturbar essa estabilida- mente dado ao serviço da Igreja, o homem "crucifi-
de. O II Concílio do Vaticano iria acolher as novas cado"» (Ibidem). Os padres novos, desde a II Guer-
perspectivas. Uma questão teológico-histórica le- ra Mundial, iniciaram uma corrente de entusiasmo
vantou polémico combate entre Miguel de Oliveira, renovador que produziria a Acção Católica, imbuí-
na Lúmen - Clero diocesano e clero regular. Lúmen. do de forte humanismo, novo ritmo de exigente dá-
14 (1950) 117-136, 329-342 e o jesuíta Agosti- diva de si mesmos, maior autenticidade na vivência
nho Veloso, na Brotéria - Francesias suspeitas. Bro- da Palavra evangélica, preocupação social. Os anos
téria. 49 (1940) 454-472. A questão situa-se no uso 40 e 50 solidificaram este ímpeto em estrutura inte-
da expressão «clero diocesano» como preferível à lectual e o caso dos padres-operários evidenciou a
de «clero secular», segundo Oliveira. Não aceita necessidade de um equilíbrio entre missão, estudo e
que se diga o estado religioso «mais perfeito» e que oração. A experiência dos padres-operários teve
a condição de clérigo secular seja degenerescência eco em Portugal. A revista Lúmen deu notícia do
da regra primitiva e se aponte como caminho a pas- que se passava na «Missão de Paris». Padres levam
sagem à vida em comum com três votos ( c f . A Z E V E - vida de operários, habitam numa barraca, prosse-
DO, Carlos A. Moreira - Mons. Miguel de Oliveira. guem a vida de oração e orientam o catecumenado
Válega: Junta de Freguesia, 1997, p. 73-74). Ainda pela instrução. Abandonaram a mentalidade burgue-
antes da experiência conciliar, Orlando Ferreira in- sa e descobriram uma nova experiência cristã no
sistia na espiritualidade do clero diocesano - Lúmen. meio operário. No início de 1949 são trinta padres
18 (1954) 138-142 - assente na relação/união do em Paris a viver deste modo. Mas em 1954 a mesma
padre com o seu bispo. A expressão desta espiritua- revista traduzia e publicava o artigo da Civiltà Cat-
lidade tinha nascido em 1862, quando monsenhor tolica sobre a questão dos padres-operários. Alertava
Lebeurier, de Orleães, fundou a União Apostólica para o perigo de deslize numa independência da
do Clero. O primeiro estatuto é editado em 1880 e a Igreja institucional e numa aproximação das teorias
instituição é encorajada por Pio X. A teoria da espi- marxistas. A 20 de Junho de 1951 a Santa Sé proibiu
ritualidade do clero diocesano seria aprofundada a entrada de novos padres no grupo e exigia aos que
por Gréa, cardeal Mercier, Martimort, Colson, Gus- permanecessem um regulamento de vida correspon-
tave Thils e monsenhor Charue. Exortava ao teste- dente ao seu estado. Se esta experiência gorou a
munho de vida realizada no essencial: celebração vontade que a movia, pode prosseguir no assistente
dos sacramentos, ministério da Palavra, direcção es- da Acção Católica. O papel do padre nos movimen-
piritual, assistência à Acção Católica*, formação dos tos da Acção Católica foi doutrinado com abundân-
leigos. Apelava ao sacrifício generoso no regular cia nas páginas da Lúmen e nos órgãos dos vários
cumprimento do ministério: «longas horas de con- grupos da Acção Católica. Após o concílio o padre é
fessionário, os mil pormenores administrativos, as chamado a estar presente e atento à vida dos diver-
reuniões em série, o estudo indispensável, aceitação sos meios, como apelo de Deus existente na sua mis-
das críticas injustas e das incompreensões constan- são militante. Ao descrever as características do as-
tes». A União realizou o I Congresso Nacional, em sistente da JOC, em 1969, aponta João Beato: viver
Fátima de 10a 13 de Agosto de 1948, sob a presi- unido aos jovens trabalhadores em identificação com
dência do bispo titular de Gurza. Era uma proposta eles, obediente à vida e ao apelo de Deus, homem de
sólida, mas a olhar o passado. No pós-concílio reno- Palavra de Deus e do ensino doutrinal da Igreja,
vou-se e teve vida activa nalgumas dioceses - Lú- construtor da unidade na procura de respostas, cola-
men. 37 (1976) 127. O estatuto social do clero repre- borador na inserção de Cristo e dos valores evangéli-
sentou certo espírito de classe, animado pela teoria cos na vida, animador do carácter missionário e uni-
denominada clericalismo. O II Concílio do Vaticano versal da resposta militante, sem impôr a sua opção
estabelece novos rumos. Os laços são mais profun- temporal - Lúmen. 33 (1969) 292-298. A novidade
dos porque fundados na fraternidade sacramental e da situação e a exigência de mudança abriu crises.
na pertença ao presbitério. Este novo caminho foi A crise foi o intervalo entre dois tempos na vida de
preparado nas décadas anteriores. No meio do sécu- pessoas ávidas de beleza e desejosas da construção
lo xx, Júlio Vaz traçava o balanço da centúria num de uma Igreja obediente a Cristo. A história, com
artigo intitulado «Clero do século xx» - Lúmen. 13 cambiantes, pode ser esta: o padre lançou-se com de-
(1949) 321-327. Considerava «a hora presente» ne- terminação e esperança na renovação. A comunidade
cessitada de padre de «virtude mais forte, zelo mais trouxe-lhe amarguras e desilusões. Foi-se sentindo
ardente, firmeza mais intrépida». O século era de ludibriado e entontecido, afogueado por interroga-
«luta decisiva», o mundo tinha sofrido «tremenda ções. Chocam-se interesses, esmorece-se a fé, nive-

378
CLERO REgULAR

Ia-se a vida pela mediocridade. O sonho caiu-lhe Não se pode esquecer a «convulsão» por que passou
aos pés desfeito, o projecto chegou ao fim. Alguns o Seminário dos Olivais no ano lectivo de 1968-
conseguiram vencer a crise sem fugir ao ideal, ou- -1969, a contestação da Tribuna Livre em 1969.
tros não resistiram, incompreendidos, deixaram a O que se chamou desclericalizar a figura do padre
crise chegar a crónica e abandonaram o múnus. Um não se fez sem actos de indisciplina eclesiástica e
dos modos para aumentar a capacidade de resistên- destruição de vidas dedicadas. É a crise de um mo-
cia foi a constituição de equipas. Formaram-se al- delo de militância activista, que se opera desde os
gumas equipas de padres, com diferentes situações anos 70 e resvala para a perspectiva negativa, ten-
de vida em comum. A precariedade das experiências dente à racionalização justificativa em vez de ser
deveu-se, entre outros factores, à formação de uma assumida como vivência consciente de uma expe-
tendência independentista ou mesmo individualista, riência de crescimento interior. Os dados estatísti-
à pressão das comunidades para terem o seu pastor cos relativamente ao clero são escassos. Os Anuários
próximo e a ocupar a residência paroquial e à falta católicos permitem alguns números aproximados:
de apoio superior. Seria um modo de amparo moral e 1933 - 3707 padres diocesanos no continente; 1953 -
uma forma de evitar isolamento prejudicial. Eviden- 3940 no continente + 380 nas ilhas = 4320; 1957 -
cia-se a falta de quem cuide da cozinha, higiene e 3741 no continente + 411 nas ilhas = 4155; 1965
limpeza e a necessidade de um ambiente capaz de (Anuário pontifício) - 4468 + 444 = 4912; 1979
restituir a calma e serenidade ao padre que volta a (Anuário pontifício) - 3750; 1986 (Anuário católi-
casa triste pelas incompreensões, desanimado pelos co) - 3979; 1995 (Anuário católico) - 3387. O nú-
insucessos e prostrado pelas fadigas apostólicas, ou mero máximo, atingido nos anos 60, foi abalado pela
pleno de experiências ricas e fecundas para narrar. crise pós-conciliar. Os padres seculares têm diminuí-
A casa da paróquia, com a habitação de mais gente do de modo lento após a sangria dos anos 70. A crise
que trabalha nos vários serviços e com uma secção é «um dos espinhos agudos que ferem o corpo da
para o padre, foi opção sugerida, mas pouco seguida. Igreja, neste tempo de renovação conciliar» - R I B E I R O ,
Para ilustrar a realidade da crise citamos algumas si- António, card. - Lúmen. 37 (1976) 245. As causas
tuações. Na Guarda, vinte e cinco padres ordenados encontradas são: «abandono da vida espiritual, desa-
entre 1946 e 1968 pediram dispensa do ministério e daptação de certas estruturas da Igreja, sentimento
quinze foram para fora da diocese. As percentagens de frustração perante a ineficácia da acção pastoral
mais elevadas de saídas situaram-se entre os ordena- [...,] o condicionalismo social em que os padres são
dos nos anos de 1954 e 1966, isto é, com vinte a chamados a viver [...,] mundo opaco, indiferente, fe-
quinze anos de exercício presbiteral. A descida do chado aos valores do espírito». Propõe, em tempo de
número de ordenações acontece a partir de 1970. adaptação, a resistência pela fidelidade a certezas fir-
O padre Henrique Castelo Madeira encontrou um se- mes e aponta duas: a identidade presbiteral não se
minário agitado e dividido e afirma: «é um facto ha- busca na imitação do mundo, mas na configuração
ver aqui trabalhado uma célula comunista» - Lúmen. com Cristo e a identidade não se resolve sem a rela-
38 (1977) 57. Doutrinador contínuo do clero foi o ção com o bispo e com os outros presbíteros (Ibi-
patriarca de Lisboa, como demonstrou o estudo de dem, p. 246-247). A corrida ao ensino laico, nos
João António de Sousa (O cardeal, p. 123-145). Ini- anos 70, particularmente após a revolução de Abril,
cialmente dedicou atenção à questão de santidade deve-se a vários motivos. Alguns padres cujas paró-
sacerdotal. O cardeal Cerejeira, após a assinatura da quias foram sangradas pela emigração (v. M I G R A -
Concordata, esclarece as exigências decorrentes pa- Ç Õ E S ) , por vezes não conseguiram recursos para o
ra a Igreja e concretamente para o clero. Considera sustento com o insignificante contributo auferido.
que o novo regime «tem a vantagem de aproximar Outros, embora com a sustentação assegurada, fo-
mais o Clero do povo, ao mesmo tempo que o torna ram no engodo de uma licenciatura para ensinar. Na
mais apostólico. O seu sustento há-de-o ele grangear diocese da Guarda mais de 60 % (1977) dedicam-se
com o suor do seu trabalho evangélico» - Lúmen. 5 ao ensino, geralmente fora da paróquia onde deviam
(1941) 682. O entusiasmo concordatário adivinha o residir — Lúmen. 38 (1977) 57. D. António Francisco
nascimento de um novo padre, «Aquele nefasto tipo Marques, bispo de Santarém, na missa crismai de
de padre que no malicioso dizer dum crítico do sé- 1978, abordando o tema da identidade do padre, as-
culo xvi, só conhece as ovelhas pela lã - o padre que sim aludia à situação dos padres part-time\ «o empe-
faz do sacerdócio modo de vida, descuidado de fazer nhamento total nas comunidades e nos serviços que
cristandade [...], instalado na vida com burguês ideal nos estão confiados será a melhor garantia da alegria
de modesto e tranquilo repouso, sem fé ardente e na vossa identidade. Serdes padres a tempo inteiro,
sem zelo apostólico, caçador de freguesias rendosas, para que, sempre disponíveis, possais responder aos
surdo aos apelos trágicos dos peregrinos da verdade que em vós esperam, é condição que se impõe à vos-
e da graça [...] - não poderá mais subsistir. Só come- sa alegria sacerdotal. Outras tarefas, não especifica-
rá do altar [...] aquele que vive do altar» (Ibidem). mente sacerdotais, devem aparecer apenas como
Sonha com estilo diferente: padre isento na política, subsidiárias e sempre impregnadas dum autêntico
ainda que a isenção significasse aceitação de uma zelo apostólico que, como é natural, se radica num
política, padre com prestígio social e culturalmente contínuo espírito de oração» - Lúmen. 39 (1978)
capaz, e padre com vivência de santidade evangélica 453. «Todos, mesmo os que não têm fé ou estão lon-
e generosidade pastoral. Nos últimos anos começa a ge da comunidade cristã, vos pedem todas as horas
sentir os problemas da identidade sacerdotal e as do dia, atenção na hora própria, simplicidade sem
«desilusões» (1957), fala de «reforma sacerdotal». subterfúgios, serviço de verdadeiros padres, testemu-

379
CLERO REgULAR

nho de quem pretende apenas anunciar Jesus Cristo» terial a exigir uma leitura sincrónica (p. ex. C O S T A ,
{Ibidem). O II Concílio do Vaticano tenta partir do A. - Vida de um cura [António Domingues Nunes].
ministério presbiteral, ou seja, da missão para deli- Nelas: Ed. do Autor, 1998; S A N T O S , António dos -
near um novo estilo de vida. Apesar da dificuldade Itinerário de um padre: Diário. Porto: Livr. Telos,
para avançar uma nova imagem, devido ao peso de 1985-1992. 5 vol.). Os tempos do final do século xx
uma mentalidade sacerdotal, de prevalência cultual, exigiram renovação permanente dos métodos, cons-
o concílio estabelece um equilíbrio entre as três di- tante revisão da forma de falar, profunda e autêntica
mensões do ministério: profética, sacerdotal e comu- reciclagem do clero que em todas as dioceses se tor-
nitária ou real: ensina, celebra e guia. Ser pastor é a nou habitual, embora com diferenças consideráveis
atitude geral pedida ao padre, em relação com o tem- de acentuação nas regiões e de intensidade no de-
po e o mundo em que vive: cultura, família, econo- curso do tempo. Com impacte e papel fundamental
mia, trabalho, política, educação, relações entre os na lenta incubação de perspectivas renovadoras fo-
povos. Para um compromisso válido e actual com o ram os encontros promovidos pela Comissão Epis-
mundo concreto, exige-se discernimento à luz do copal do Clero, Seminários e Vocações, particular-
Evangelho e o risco de soluções concretas para mente através da Semana de Estudos em Mira ou
transformação da sociedade. A partilha de vida com Fátima desde 1981, com os temas: Estudo das nor-
os mais pobres e oprimidos, a aceitação dos limites e mas fundamentais (1981); O discernimento voca-
da complexidade do mundo, a contestação e denún- cional (1982); Espiritualidade sacerdotal (1983);
cia do poder em favor de uma libertação integral da Maturidade humana (1984); Maturidade humana e
pessoa humana são atitudes do seu compromisso e cristã e projecto educativo (1985); Como traçar um
missão. Ser sinal e testemunha do transcendente e do plano para o seminário (1986); Formação pedagógi-
absoluto, no mundo relativo e efémero, é tarefa prio- ca do educador (1987); Pedagogia da oração (1988);
ritária, testemunha do primado do amor no mundo Relação seminário-mundo (1989); Pré-seminário e
individualista. Em Portugal este modelo cresce len- pós-seminário (1990); A formação espiritual nos se-
tamente e encontra resistências. Coexistiram no pós- minários (1991); Padres para a nova evangelização
-concílio vários tipos de padre. O primeiro tipo: o (1992); Ser educador no seminário, hoje (1994);
bom administrador ou conservador do sistema exis- A missão do educador do seminário na admissão,
tente, incapaz de mudar o rosto da paróquia, que discernimento e acompanhamento vocacional (1995);
atende com amabilidade e paciência quem lhe pede A formação humana dos seminaristas (1997); O pla-
serviços e executa todos os rituais com perfeição. no de formação sacerdotal: do pré-seminário ao se-
Ganha prestígio e autoridade. Se alguém o perturba, minário maior (1998). Com a participação média de
desanca o intruso. Segundo tipo: é o do zeloso traba- perto de 100 padres formadores do clero de todas as
lhador na conquista individual: prepara bem as suas diocese, estes encontros criavam a mentalidade e
intervenções na pregação, na catequese, nas reu- animavam a troca de experiências positivas. Signifi-
niões. Aposta nas criancinhas, dirige um grupo de cativa foi a adesão e participação do clero nos sim-
gente dócil e fomenta a vida espiritual, organiza fes- pósios realizados em Fátima. Em 1993: Padres para
tas e passeios. Não se preocupa em transformar o este tempo; 1996: O estilo de vida do padre: proble-
ambiente porque pensa que com a massa não há na- mas e apelos. Reuniram em Fátima perto de 500 pa-
da a fazer. Terceiro tipo: o insatisfeito e inovador, dres de todas as dioceses. Em 1999, novo simpósio
que se arrisca a ousadias. Empreende a conquista do se realizou com menor participação e um esquema
ambiente, a reforma dos costumes, a criação de um mais semelhante a um congresso: Padres para o no-
clima de vivência autêntica do cristianismo, a reno- vo milénio. Em 1993, os temas essenciais foram: a
vação com novos métodos, sem medo de fracassos, atenção ao mundo, a vivência espiritual da unidade e
críticas e incompreensões. Este terceiro figurino foi comunhão, a formação permanente do clero. Formu-
mais raro. Na Assembleia Plenária da Conferência lou-se o voto de criação de um centro de acolhimen-
Episcopal Portuguesa* de Abril de 1986 traçou-se o to para padres em ano sabático. Em 1996 sublinha-
perfil do padre para os anos 2000, numa sociedade ram-se as seguintes dimensões: a necessidade de um
secularizada (v. S E C U L A R I Z A Ç Ã O ) , pós-moderna, ur- padre próximo e solidário, sinal de Cristo Bom Pas-
bana, onde há prevalência para os valores da relação tor, evangélico no amor apaixonado e na gratuidade,
e não da manutenção da máquina pastoral criada. no uso livre dos bens, em vivência profética da se-
Ao ritmo acelerado e de constante mudança importa xualidade e em obediência comunitária e fraterna.
a proposta de uma relação libertadora. Mais que «lí- Apelou-se à constituição de sistemas de sustentação
der comunitário» ou «assistente social», «gerente e do clero e às formas de vida e trabalho em comum.
construtor», «vigilante da moralidade», «sacerdote O voto de criação de uma estrutura nacional para re-
do culto», aponta-se a necessidade do padre ser «ho- flectir as questões da vida dos padres não teve, até
mem de Deus», como motivação profunda para ser hoje, seguimento.
leitor vigilante dos sinais dos tempos, hermeneuta da CARLOS A. MOREIRA AZEVEDO
Boa-Nova, artífice da inculturação, animador da co-
munidade e mistagogo da experiência cristã. Cada BIBLIOGRAFIA: ABREU, José Paulo Leite de - Em Braga de 1790 a 1805:
diocese, sob a orientação do seu bispo, tem valoriza- D. Frei Caetano Brandão: o reformador contestado. Braga: UCP, 1997.
do algumas dimensões neste final de século. Importa ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal. N o v a ed. Por-
to; Lisboa: Civilização, 1970, vol. 3, p. 36-46, 61-63, 89-91, 423-427.
realizar o estudo da realidade, em confronto com o ALVES, A. A. - A assistência ao clero. Lúmen. 30 (1966) 725-739; 31
perfil apontado. Várias publicações isoladas traçam (1967) 85-95. IDEM - O Vaticano II e a sustentação do clero. Lúmen.
experiências, autobiográficas ou não, que serão ma- 31 (1967) 628-639. IDEM - Novos aspectos pastorais duma velha questão.
Lúmen. 3 2 (1967) 628-638. ALVES, Agostinho de A l m e i d a - Problemas

380
CLUNIACENSES

paroquiais: o testemunho do padre. Lúmen. 21 (1957) 8-19. ALVES, totalmente independente no temporal e no espiritual.
João, bispo - Renovação do ministério sacerdotal hoje: Alguns aspectos
fundamentais. Lúmen. 4 7 ( 1 9 8 6 ) 5 1 - 6 2 . ARAÚJO, António da Sousa - I r - Depois, uma série de abades sábios e santos encarre-
mandades de clérigos e assistência ao clero em Portugal. Itinerarium. gar-se-iam de fazer a história desta instituição bene-
28 (1982) 401-452. BEATO, J o ã o - A função do padre na J O C . Lúmen. mérita da Igreja Católica. No seu abaciado, Bernão
33 (1969) 292-298. BIGOTTE, J. Quelhas - A propósito da assistência ao
clero. Lúmen. 34 (1970) 486-495. CARDOSO, A. Pinto - A fundação do (910-927) promoveu a construção do mosteiro e da
Colégio Português e m Roma e a f o r m a ç ã o do clero em Portugal no fi- primitiva igreja de Cluny (I). Entretanto, sucedeu-
nal do século xix. Lusitania Sacra. 3 (1991) 291-348. CASTRO, António -lhe Odão (927-942), que no seu governo soube indi-
Lopo Corrêa de - O padre perante o século. Coimbra: Impr. da Univer-
sidade, 1853. CEREJEIRA, Manuel Gonçalves - A situação da Igreja no car aos monges os ideais de reforma e da cultura,
regime da Concordata. Lúmen. 5 (1941) 681-689. CLEMENTE, Manuel - que haviam de marcar os tempos gloriosos de Cluny.
O presbítero na vida de Igreja, nos últimos c e m anos (perspectivas de
formação presbiteral). In IGREJA e ministérios. Lisboa: Rei dos Livros,
Com efeito, conseguiu obter do papa João XI, em
1995, p. 229-241. CLERO (O) Portuguer. Revista de todas as questões 931, o privilégio de poder assumir o encargo de
eclesiáticas. Dir. P. Manuel D â m a s o Antunes; António José Boavida qualquer mosteiro a pedido de um abade leigo e tam-
(4.° ano); Artur de Almeida Brandão (5.° ano). [Lisboa], (1885-1888).
5 vol. COUTINHO, B. Xavier - A Igreja e a Irmandade dos Clérigos:
bém de receber os monges de qualquer mosteiro que
Apontamentos para a sua história. Porto: Gabinete de História da Cida- recusasse a reforma. Estava, assim, lançado o movi-
de, [ 1 9 6 ? ] . D o c u m e n t o s e m e m ó r i a s para a história do Porto; 3 6 . DIAS, mento da reforma beneditina, que Cluny havia de
Manuel Madureira - Espiritualidade sacerdotal. Lúmen. 44 (1983) 470-
- 4 7 6 ; 4 5 ( 1 9 8 4 ) 3 7 - 4 2 . FALCÃO, Manuel, bispo - Carta pastoral sobre a
corporizar e espalhar pela Europa. A Odão sucedeu
reconversão pastoral do clero e a responsabilidade eclesial do laicado. o abade Aimardo (942-954), mas seria nos abaciados
Lúmen. 52 (1991) 57-59. FERREIRA, José F. - O padre À luz do Vatica- de Máiolo (954-994) e Odilão (994-1049) que Cluny
no I I . Lúmen. 4 3 ( 1 9 7 0 ) 4 7 7 - 4 8 4 . FREITAS, Senna - O sacerdócio catho-
lico: discurso pronunciado na Sé Patriarcal, no dia 13 de Dezembro de iria conhecer dias de maior glória. Quando foi con-
1896. Lisboa, 1896. 20 p. IDEM - A alta educação do padre. Lisboa: sagrada a nova igreja de Cluny (II), em 981, o mos-
Parceria A. M. Pereira, 1909. GUERREIRO, Jerónimo Alcântara - A d e n d a teiro tinha adquirido um grande número de relíquias,
às achegas para a história da Irmandade do Clero, referente À «Irmanda-
de de S. Pedro de Estremoz». Alvoradas. 25: 27 (1963-64) 114-115. LA- inclusive de São Pedro e São Paulo, e ganhara fama
VRADOR, J o ã o - Pensamento teológico de D. Miguel da Anunciação, de «Pequena Roma». Com novos privilégios papais
bispo de Coimbra (1741-1779) e renovador da diocese. Coimbra: Gráfi-
ca, 1995, p. 383-384. LIGA (A) do Clero Paroquial Português e o Parti-
(Gregório V, 998, e João XIX, 1024), estendidos a
do Nacionalista: Bases e órgãos (Viseu 1908). Braga, 1909. LOUREIRO, todos os mosteiros cluniacenses, Cluny tornara-se
Carlos Hidalgo G o m e s de - O padre Marcos e o Liberalismo: Seu pa- um mosteiro autónomo, livre da interferência de
pel na reforma eclesiástica: curiosidades históricas dos concelhos de
Sesimbra e Azeitão. S e s i m b r a , 1939. MARQUES, A n t ó n i o Francisco -
quaisquer autoridades episcopais ou de senhorios
A Igreja em Portugal: A identidade do padre no serviço da Igreja. Lú- leigos. O singular privilégio, conhecido por «isen-
men. 3 9 ( 1 9 7 8 ) 4 5 2 - 4 5 3 . MATTOS, F r a n c i s c o A n t ó n i o d e S i l v a - O pa- ção», é que deu a Cluny a nota distintiva entre o mo-
dre. Porto: I m p r e n s a Civilização, 1903. NETO, Vítor - O Estado, a
Igreja e a sociedade em Portugal (1832-1911). Lisboa: I N C M , 1998.
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OLIVEIRA, Zacarias d e - O padre no romance português. Lisboa: União cie de Ecclesia ou ordo cluniacensis, partilhada por
Gráfica. 1960. PADRE (O) pela Estrela do Norte. Porto: Figueirinhas, todos os mosteiros aderentes à sua reforma. Daqui
1 9 0 7 . 1 5 0 p. PEREIRA, José Augusto - Padres açoreanos. Bispos publi-
cistas religiosos. Angra do Heroísmo: União Gráfica Angrense, 1939. teve origem o «costumeiro cluniacense» (consue-
PEREIRA, Manuel Parente - Deus e o padre no «SÓ» de António Nobre. tudines antiquiores), o qual criou uma espécie de
Cenáculo. 6 ( 1 9 6 6 - 1 9 6 7 ) 3 3 0 - 3 3 9 . PINHEIRO, José Júlio Esteves - Possi- uniformidade monástica aplicável onde quer que se
bilidade existencial dum autêntico clero novo. Lúmen. 27 (1963) 798-
-805. RAMALHO, A m é r i c o da Costa - James Joyce e o padre português. instituíssem abadias ou priorados cluniacenses. Ao
Diário Popular 423 (18 Fev. 1965) 13-16. RAMOS, A. Jesus - O bispo mesmo tempo, e à semelhança do que acontecia com
de Coimbra D. Manuel Correia de Bastos Pina. Coimbra: Gráfica de outras entidades leigas e eclesiásticas, aparecia um
Coimbra, 1995. RATTAZZI, Maria - Portugal de relance. Lisboa: Antígo-
na, 1997. RIBEIRO, António, card. - A velha e a nova imagem do padre. tal qual «senhorio» cluniacense, benesse do papa
A Cidade de Évora. 35-36 (1978-1979) 5-90. SANTOS, F. I. Pereira dos - cluniacense Urbano II (1088-1099), que garantia a
Sacerdotes em crise. Lúmen. 3 2 ( 1 9 6 8 ) 4 3 9 - 4 4 4 . SANTOS, G o m e s dos -
O catolicismo em Portugal Póvoa de Varzim: Liv. Povense Ed., 1906.
Cluny e a todos os mosteiros a ele ligados direitos
SEMANA de Teologia (IV): Lisboa, 27-30 de Dezembro de 1964: Sacer- espirituais e temporais. Pouco depois, com o abacia-
dócio de Cristo na Igreja. In ESTUDOS teológicos. Lisboa, 1965. SILVA, do de São Hugo de Semur (1049-1109), a influência
M. A b ú n d i o da - Carta a um abade: Sobre alguns aspectos da questão
politico-religiosa em Portugal. Braga: Cruz e C . A , 1 9 1 3 . SIMPÓSIO
e o poder de Cluny estenderam-se por toda a Europa.
« O ESTILO DE VIDA DO PADRE: PROBLEMAS E APELOS», F á t i m a , 2 - 6 d e Se- Cluny era um íman de atracção para toda a Igreja;
t e m b r o de 1996 - Actas. Porto: C o m i s s ã o Episcopal do Clero, Seminá- até os papas visitavam Cluny, e mosteiros seus de-
r i o e V o c a ç õ e s , 1 9 9 6 . SIMPÓSIO «PADRES PARA ESTE TEMPO», F á t i m a , 6 - 1 0
de Setembro de 1993 - Actas. Porto: C o m i s s ã o Episcopal do Clero, Se-
pendentes fundavam-se por toda a parte. Por outro
minário e Vocações, 1 9 9 4 . 3 2 8 [ 4 ] p. SOUSA, J o ã o António de - O car- lado, reis e senhores protegiam e contribuíam gene-
deal Cerejeira: pai e a m i g o do seu clero. Lusitania Sacra. 2 (1990) 123- rosamente para o sustento de Cluny e suas obras. Era
-145. VAZ, Júlio - Depoimentos de pastoral: o padre do século xx.
Lúmen. 32 (1968) 156-160.
assim em França, com o Mosteiro de Saint Martin
des Champs, Paris; era assim na Inglaterra, sobretu-
do depois da conquista pelo duque da Normandia em
1066, quando Guilherme, o Conquistador, empreen-
CLUNIACENSES (Monges Beneditinos do Mostei-
deu a reconstrução monástica. Na Espanha cristã, os
ro de Cluny). 1. Instituição: O Mosteiro de Cluny
reis Sancho III de Navarra e Afonso VI de Leão e
foi instituído a 11 de Novembro de 909/910 por Gui-
Castela serviram-se dos monges cluniacenses como
lherme III, duque de Aquitânia e conde de Mâcon,
animadores da Reconquista* aos mouros, sendo por
chamado o Pio. De facto, ele fez a Bernão, abade
eles levados à implantação da liturgia romana e da
de Baume-les-Messieurs, dádiva de uma vila perto
reforma gregoriana em detrimento dos ritos locais,
de Mâcon para aí fundar um mosteiro beneditino sob
particularmente do moçárabe* ou hispânico. Afon-
o patrocínio de São Pedro e São Paulo. O duque re-
so VI favoreceu a vinda dos Cluniacenses e a intro-
nunciava a todo o padroado sobre o mosteiro, inclu-
dução da Regra de São Bento na Península Ibérica
sive à eleição do abade, e colocava-o directamente
(Concílio de Coiança, 1050/1055?); foi um autêntico
sob a protecção do Papa. Tal disposição dava origem
socius ou generoso tributário do Mosteiro de Cluny,
a um novo tipo de orgânica monástica, autónoma e

381
CLUNIACENSES

ao qual prodigalizou grande somas de ajuda, no que posta a par se não mesmo a suplantar as regras au-
era secundado pela nobreza da Península Ibérica pa- tóctones do monaquismo visigótico de Santo Isidoro
ra subvencionar a construção de Cluny (III), a maior de Sevilha e de São Frutuoso de Braga. O centro de
igreja da Cristandade até ã construção da Basílica de irradiação para a reforma cluniacense na Península
São Pedro em Roma. Por sua vez, Cluny e seus mos- seria então o mosteiro de Sahagún, na zona de León.
teiros tornaram-se verdadeiros santuários de media- Entretanto, os cavaleiros francos, que tinham vindo
ção para o Além, com os monges, intermediários do ajudar à Reconquista acompanhados e assistidos es-
divino, a multiplicar rezas e ofícios pelos mortos e a piritualmente por monges cluniacenses da Borgonha
fomentar o culto das relíquias dos santos. Só na par- e da Aquitânia, não se dispensaram de aproveitar a
te oriental da Europa, onde o Sacro Império era mais influência dos monges de Cluny. Foi, pois, relativa-
forte e os bispos quase senhores dos mosteiros, é que mente fácil a estes monges, por mais resistência que
os monges cluniacenses tiveram alguma dificuldade encontrassem no monaquismo local, implantar aqui
em penetrar. A partir do século xiv, com a instaura- a Regra de São Bento e até mesmo os costumes de
ção das comendas eclesiásticas e com o aparecimen- Cluny. Assim sucedeu no território que veio a ser
to das «congregações monásticas», os Cluniacenses Portugal, com o conde D. Henrique de Borgonha,
perderam preponderância. 2. Centralização de Clu- aparentado mesmo com o abade Hugo de Cluny e
ny e sua expansão: Até ao aparecimento de Cister casado com D. Teresa, filha bastarda de Afonso VI.
(1098), Cluny impôs-se no mundo monástico-reli- Ao conde D. Henrique se deve, por razões políticas
gioso ocidental de forma avassaladora, quase exclu- ou religiosas, a introdução da ordem de Cluny em
siva. A partir daí e no abaciado de Pôncio de Mer- território portucalense. Há quem pretenda atribuir in-
gueil (1109-1122), sucessor de São Hugo de Semur, fluência real aos monges cluniacenses nos meandros
a instituição sofreu um grande abalo disciplinar com políticos da formação e independência do reino de
reflexos externos, que as críticas de São Bernardo na Portugal. Faltam provas apodícticas, mas a práxis
Apologia ad Gullielmum agudizariam. E certo que as dos Cluniacenses, sobretudo dos monges elevados
medidas reformatórias de Pedro, o Venerável, (1122- ao episcopado, parece indicar que eles terão mani-
-1156) conseguiram corrigir defeitos introduzidos, festado a sua força na questão, pois irmanavam-se
mas não eliminaram a concorrência de Cister; por com os habitantes locais na reivindicação dos direi-
outro lado, a sociedade europeia também mudara tos sobre as terras que lhes estavam confiadas. Veja-
muito, abrindo-se às cidades e ao comércio. Então -se o que sucedeu com os bispos cluniacenses a de-
apareceram também, mais adaptadas à realidade so- fender as prerrogativas de Braga, Compostela e
cial e pastoral, as ordens mendicantes, que passaram Toledo. Ora, é sabido como mais tarde, em 1106 ou
a granjear o melhor das vocações* religiosas da épo- 1107, os condes D. Raimundo e D. Henrique realiza-
ca e abriram novos campos de acção pastoral. Como ram na presença do delegado de D. Hugo, abade de
quer que seja, o atlas geográfico dos mosteiros clu- Cluny, o «pacto sucessório» de auxílio mútuo e par-
niacenses estendeu-se pela Europa, com todos os tilha dos estados do rei Afonso VI. Daqui se poderá
mosteiros sujeitos ao abade de Cluny, chamado deduzir uma discreta mas influente acção dos bispos
«Abade dos Abades», e, durante muito tempo, os cluniacenses (Braga*: São Geraldo, D. Maurício
seus monges ganharam preponderância no papado e Burdino; Coimbra*: D. Bernardo) em favor da auto-
no episcopado. A importância do abade de Cluny nomia do Condado Portucalense e da metrópole de
permitiu a Odilão (t 1049) suprimir os abades locais Braga. 4. Mosteiros cluniacenses em Portugal: De-
e esta centralização acumulativa foi confirmada pelo veríamos distinguir mosteiros beneditinos e mostei-
papa Pascal II (15.10.1100) e durou até à criação das ros cluniacenses. Os monges beneditinos, com certe-
«congregações monásticas», começada com Santa za, não chegaram a estas paragens antes do sobredito
Justina de Pádua (1408). Na verdade, à medida que Concílio de Coiança (1050/1555?, cânon 2) e, embo-
crescia a fama de Cluny, muitos mosteiros iam-se ra a Regra de São Bento já fosse conhecida (testa-
sucessivamente agregando ao ordo cluniacensis, que mento de Dona Mumadona), de facto, o primeiro
contou mais de 200 casas dependentes ou priorados, testemunho documental da observância da regra be-
onde os monges se dedicavam essencialmente à ce- neditina é de 1180 no Mosteiro de São Romão do
lebração litúrgica (Opus Dei, Lectio divina) redupli- Neiva. Toda a beneditinização monástica da Penín-
cada com ofícios de Nossa Senhora e dos Defuntos e sula, ao contrário do que pensam os antigos cronistas
ao trabalho intelectual com abandono do manual, co- monásticos como Frei Leão de São Tomás, terá sido,
piando manuscritos nos scriptoria e organizando portanto, obra de monges cluniacenses. Integrados,
bem apetrechadas bibliotecas, não descuidando o en- porém, no ordo cluniacensis só foram os mosteiros
sino a jovens (oblatos) nas suas escolas monásticas. de Rates, Santa Maria de Vimeiro e Santa Justa de
Não se pode esquecer o contributo que deram para Coimbra. 4.1. Mosteiro de São Pedro de Rates:
afirmar a paz da sociedade com a «Trégua de Deus», É aquele cuja história melhor se conhece e, como a
para fomentar a religião através do culto das relí- dos outros dois, bastante agitada. Para além da lenda
quias, para propagar o caminho francês de São Tiago de São Pedro de Rates, a mais antiga referência ao
de Compostela e a assistência aos peregrinos nos mosteiro de Rates é de c. 1078, quando o presbítero
mosteiros que criaram ao longo da dita rota. 3. Cluny Froila Crescones (ADB-UM. Liber fidei, n.° 104) o
em Portugal: O monaquismo beneditino de Cluny doa com outras igrejas à Sé de Braga, razão por que
contou com a protecção do rei Afonso VI de Leão e devia pagar «jantar à mitra bracarense» (Censual de
Castela. Foi este que, no Concílio de Coiança (1050/ Braga, século xi). Isto pode servir de argumento pa-
/1055?), conseguiu que a Regra de São Bento fosse ra provar que se tratava de um mosteiro autóctone,

382
CLUNIACENSES

pré-beneditino, e ajuda a compreender a doação do los gerais Rates, como os outros dois mosteiros por-
conde D. Henrique e D. Teresa em 1100 ao Mosteiro tugueses, aparece em 1301, 1303, 1336, 1359, 1368
de Santa Maria da Caridade, sobre o Loire, diocese e 1377. Se o visitador de 1336 dizia que a casa esta-
de Auxerre. Àquele «parvulum munusculum» do va quase destruída e arrendada ao tesoureiro do rei,
abandonado mosteiro de Rates acrescentaram os dí- o capítulo geral de 1377 afirmava que os monges es-
zimos de pão, vinho e linho dos reguengos do Douro tavam fora e eram mal governados. Não se tratava
até ao Mondego (DMP-DR. Vol. 1, n.° 6). Fizeram somente de indisciplina monástica, mas também dc
povoar o mosteiro por motivo dos sufrágios dos incompreensão nas relações mútuas com o arcebispo
monges, criando, assim, a primeira fundação clunia- de Braga. Na realidade, a documentação do ADB-
cense em território portucalense. A razão pela qual a -UM permite-nos afirmar que tudo girava à volta da
dádiva de Rates não foi a Cluny, mas a Santa Maria «isenção» canónica em que os monges de Rates se
da Caridade, mosteiro da naturalidade do conde apoiavam por serem cluniacenses e que os arcebis-
D. Henrique e priorado importante de Cluny, talvez pos de Braga recusavam, talvez por desconhecerem
esteja ligada aos laços afectivos do conde à sua terra, entre nós tal realidade jurídica. Os pleitos começa-
ajudando desse modo, indirectamente, Cluny, sem ram no tempo do arcebispo D. Martinho Pires
comprometer esse mosteiro muito ligado à política (1189-1209), como se deduz de bulas de Inocên-
de Afonso VI. Por carta de 1145/1146, D.Afonso cio III (20.1.1205 e 9.6.1209) ameaçando os monges
Henriques e sua esposa confirmam a doação de com excomunhão. As inquirições de 1258 confir-
Rates bem como os dízimos (DMP-DR. Vol. 1, mam a permanência do couto e privilégios de Rates,
n.°214), fazendo passar por imaginosa a pretensa mas outra bula de Clemente VI (22.5.1268) ratifica o
dádiva aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho* interdito do arcebispo por desprezo da autoridade
(Frei Nicolau de Santa Maria) por oposição do rei a eclesiástica. Todavia, uma acta de capítulo geral dos
Cluny. A documentação de Rates desapareceu e, do começos do século xiv atribui a Rates 15 monges, o
mosteiro, os documentos dos capítulos gerais de que parece indicar uma comunidade normal. Contu-
Cluny deixam vagas referências, mas pelas quais do, um solene interdito (1314) do arcebispo D. João
não podemos equacionar o número de monges e Martins de Soalhães (1313-1325) atira sobre a co-
bens, nem a actividade cultural ou pastoral. Várias munidade de Rates um rol de vergonhosas acusa-
vezes o prior de Rates se escusou a receber os visita- ções, quer do ponto de vista material quer religio-
dores delegados de Cluny (1296, 1336) e nos capítu- so-moral (ADB-UM. Gaveta das religiões, n.° 36).

A actual Abadia de Cluny. Da antiga abadia, fundada, em 910, por Guilherme de Aquitânia, só resta o transepto sul e o
campanário.

383
CLUNIACENSES

O fulcro do problema continuava a ser a questão cultórica, de simbólica algo hermética, abrange ele-
da «isenção», que até Roma parecia não reconhe- mentos antropomórficos (homens a tocar trompa),
cer aqui. Uma inquirição do tempo de D. Dinis zoomórficos, fitomórficos e geométricos, o que
(20.8.1315) informa que Rates era visitado pelo ar- aproxima este tipo de ornamentação de outros edifí-
cebispo, lhe pagava colheita e direitos, e fala do cios românicos (Sé de Braga, Paço de Sousa, Tra-
prior, monges e seus «cleriguos segreis» que tinham vanca). Este singular edifício religioso, com algu-
«raçom». Já o capítulo geral de 1303 falava de uma mas anomalias que a restauração não resolveu e
«multitudo onerosa praebendorum». Talvez que esta complicou, é o testemunho perene da presença mo-
prática dos prebendeiros ou porcionários fosse um nástica cluniacense, um desafio aos historiadores da
estratagema dos monges para associar a si partidá- arte para, através do silêncio eloquente daquelas
rios materiais na luta contra o arcebispo. Aliás, nada pedras historiadas, reconstituírem a diacronia da
indica que o mosteiro funcionasse como uma cole- construção e das reconstruções. Pesquisas recentes
giada, até porque os Cluniacenses recusavam o mi- levam a atribuir a construção aos princípios do sé-
nistério pastoral nas suas igrejas, entregando a cura culo xii, mas confirmam estruturas anteriores, pré-
de almas a clérigos seculares. Assim, D. Dinis -beneditinas. 4.2. Mosteiro de Santa Maria de Vi-
(14.7.1323) confirmou os dízimos ao mosteiro de mieiro: Pequeno mosteiro na freguesia do mesmo
Rates, mas em dois documentos (7.5 e 11.10.1429) nome, concelho de Braga. Teve origem pré-bene-
Inês Vasques, moradora no Porto, faz súplica ao pa- ditina, mas a documentação sobre a sua história é
pa Martinho V para ratificação do contrato de arren- quase desconhecida e as afirmações da Beneditina
damento dos bens de Rates em Cantanhede e Tentú- lusitana são gratuitas por falta de documentação
gal, mencionando o prior e os porcionários de Rates, comprovada. O primeiro documento é de 23.5.1127
uma vez que estes eram uma espécie de condóminos (.DMP-DR. Vol. 1, p. 96-98, n.° 75), quando a rainha
com os monges (Portugalia Monumento Vaticano. D. Teresa dele fez doação a Cluny na pessoa de Pe-
Súplicas. 1970, vol. 4, p. 405-406, 461). Não admira dro, o Venerável. O mosteiro estava em reconstrução
que (21.8.1432) Frei Martim Pais tenha permutado a e D. Teresa dotou-o inicialmente com um marco de
igreja de Rates com a ração de São Victor (ADB- prata, acrescentando-lhe herdades, couto e suas justi-
-UM. Livro das confirmações, fl. 36v). Todavia, no ças. Há também a notícia de um escambo em 1154
censual de D. Jorge da Costa (1493) Rates ainda pa- feito pelo prior, D. Segisberto, com o arcebispo de
gava 30 libras ou marco e meio de prata ou 2280 Braga, D. João Peculiar. Os monges de Vimieiro da-
reais, tanto como o mosteiro de Tibães. A questão da vam a Igreja de São Martinho da Gândara por um
isenção canónica e o envio de rendas para o priorado casal em Celeiros. Pelas inquisições de 1220 e 1258
francês de Santa Maria da Caridade foram, em defi- vê-se que o rei não tinha ali reguengos e o mosteiro
nitivo, o motivo da angústia em que viveu o mostei- gozava de um couto. A 31.5.1247, mestre Tomé, rei-
ro de Rates e a causa da sua extinção, com os mon- tor de Vimieiro, com títulos eclesiásticos, promete
ges incompreendidos e caluniados. Em clima de pagar a Cluny dois marcos de prata, cumprindo obri-
abandono e debandada, o mosteiro foi suprimido e gação de súbdito. Na visita de 1292 há uma curiosa
transformado em igreja paroquial pela bula Redemp- referência litúrgica, porquanto se diz que, em Vi-
tor noster de Leão X (29.4.1515). Como quer que se- mieiro, o ofício divino se rezava «segundo o uso da
ja, o mosteiro de Rates figura na rota de muitos pere- terra», talvez numa alusão ao rito bracarense. A du-
grinos para Santiago de Compostela. 4.1.1. A igreja ração da comunidade beneditina é incerta, mas ainda
do mosteiro de Rates: A igreja monástica é uma au- aparece nos capítulos gerais de Cluny até 1377. No
têntica jóia do românico de características cluniacen- tempo do último abade perpétuo de Tibães, D. Gon-
ses com origem na Borgonha. Edifício restaurado çalo Anes (f 1488), teria sido o mosteiro de Vimiei-
em 1940, tem uma larga frontaria com contrafortes ro anexado a Tibães e assim estava no tempo do aba-
salientes e rosácea, porta principal de cinco arqui- de comendatário Rui de Pina (c. 1527), até que o
voltas sobre colunelos decorados e tímpano historia- arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Márti-
do com Cristo Pantocrator em nimbo oval assistido res, reduziu Vimieiro a simples igreja paroquial. As
de duas figuras e outras duas a seus pés, cuja herme- rendas do mosteiro foram então destinadas para o
nêutica não é clara. Digna de nota especial é a porta Colégio de São Paulo, dos jesuítas* de Braga. No
do lado sul com belo Agnus Dei no tímpano enqua- tempo de Pombal, com a expulsão dos Jesuítas, as
drado por colunelos historiados. A porta do lado nor- rendas foram anexadas à Coroa. Toda a vida monás-
te tem real interesse. Em toda a volta, corre uma tica foi bastante agitada, como consta dos capítulos
banda de modilhões. Na cabeceira da abside e dos gerais de Cluny, certamente à imagem de Rates, por
dois absidíolos distinguem-se arcadas lombardas. causa da «isenção». Em 1391, Cluny ainda exercia a
O interior, iluminado por seis frestas, é de três naves sua jurisdição ali, mas em 1469 e 1510 o mosteiro
com tectos de madeira; as naves estão divididas por não tinha monges. É certo que o rei D. Manuel (Lis-
três arcos, sendo os da Epístola quebrados e leve- boa, 4.10.1517) ainda passou o foral novo do couto.
mente aguçados e os do Evangelho de volta inteira Hoje, as reminiscências da presença beneditina estão
dois e um de ogiva, o que denota os acidentes da reduzidas à Capela de São Bento. 4.3. Santa Justa,
construção. Existe uma espécie de transepto trunca- Coimbra: Trata-se, com toda a probabilidade, de
do coberto por abóbada de pedra. Os arcos estão se- uma igreja com terreno doada a Cluny na pessoa do
parados por pilastras com colunas adossadas, cujos abade D. Hugo, mas para aí pousarem ou se instala-
capitéis apresentam curiosos elementos decorati- rem (hospício) monges de Santa Maria da Caridade.
vos, verdadeira galeria de escultura. A profusão es- A doação terá sido feita em 4.2.1102 (DMP-DP.

384
COCHINCHINA

Vol. 3, p. 445, n.° 5), pelo bispo de Coimbra, D. Mau- 2/3 (1954) 78-89, 144-151. IDEM - Le monachisme ibérique et Cluny:
rício Burdino, antigo monge beneditino, que também Les monastères du diocèse de Porto de l'an mille à 1200. Louvain: Pu-
blications de l'Université, 1968. IDEM - A introdução da Regra de
havia de doar a Cluny, em 1112, uma preciosa relí- S. Bento na Península Ibérica. In RELIGIÃO e cultura na Idade Média
quia da Santa Cruz. A presença desses monges criou portuguesa. Lisboa: I N C M , 1982, p. 73-90. MONTEIRO, Manuel - S. Pe-
não poucas dificuldades de jurisdição com Santa dro de Rates. Porto, 1908. PACAUT, Marcel - L'Ordre de Cluny. Paris:
Éditions Fayard, 1991. RACINET, Ph .-Les maisons de l'Ordre de Cluny
Cruz de Coimbra e, por isso, houve que determinar au Moyen-Age. Louvain; Bruxelles, 1990. REAL, Manuel - O r o m â n i c o
os limites das respectivas paróquias em 1130 e, de- condal em S. Pedro de Rates e as transformações beneditinas do sécu-
pois, em 1155 (Chancelarias medievais portuguesas. lo XIII. Boletim Cultural. Póvoa de Varzim. 30: I (1982). Separata. IDEM
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fl. 14v). Quanto à igreja e edifícios claustrais, uma Saint Benoit. Maredsous: Les Éditions de Maredsous, 1949, vol. 2.
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inscrição de 1155 relativa ao presbítero Rodrigo in- und die Cluniacenser. Von Joachim Wollasch, Hans-Erich M a g e r und
forma que ele os construiu. Entre 1162 e 1179, o bis- Hermann Dienner. Freiburg im Breisgau: Verlag Herder, 1959. TORREL,
po D. Miguel fez restituição de rendas de Santa Justa J . - P ; BOUTHILLER, D. - Pierre le Vénerable et sa vision du monde: Sa
vie, son oeuvre, l'homme et le démon. Leuven, 1986. VALOUS, G u y de -
em favor da sé (IANTT. Livro preto, fl. 3). Nas visi- Cluny. In DICTIONNAIRE d'Histoire et de Géographie Eclésiastique.
tas e capítulos gerais de Cluny em 1254 e 1259 não 1956, vol. 13, p. 35-174. WOLLASCH, Joachim - Cluny, Licht der Welt.
aparecem referências a este mosteiro. Por causa de Dusseldorfe, 1996.
Santa Justa, Rates teve contendas com o bispo de
Coimbra*, D. Bermudo (1176-1182), sendo necessá- COCHINCHINA (séculos xvi-xvii). A tentativa de
rio recorrer a uma arbitragem pela qual o bispo ficava missionação no século xvi das terras do Dai-Viet
com a jurisdição e Rates com o padroado e a renda (hoje Vietname), que em Portugal era conhecido por
de um marco de prata que, em 1370, foi transforma- reino da Cochinchina, não teve sucesso. Em 1533,
do em 20 libras, em 1432 em 700 libras correntes e em fontes locais, surge a primeira referência a um
em 1503 em 800 réis. Diz-se que em 1380 estava missionário cuja ordem se desconhece. Outras fontes
transformado o mosteiro em colegiada secular, mas referem a ida de três franciscanos espanhóis em
no século xiv ainda as terras de Santa Justa se chama- 1583 ou 1584, que por dificuldades linguísticas não
vam «da Caridade». Parece, todavia, que o mosteiro, obtiveram nenhum fruto. Mais dois franciscanos ca-
há muito, tinha sido anexado a Rates. 5. Conclusão: puchos portugueses que procuraram missionar em
Vê-se, pois, que as posses cluniacenses foram bastan- 1586 tiveram de ir embora. A presença de dois agos-
te limitadas entre nós. O que ficou, na verdade, foi a tinhos em 1596, e de dominicanos, bem como de
introdução da Regra de São Bento em mosteiros que, clérigos seculares enviados pelo bispo de Malaca*,
depois, haviam de formar a Congregação Beneditina foi episódica, e não houve missionação efectiva. No
Portuguesa. século xvii iniciou-se o apostolado jesuítico na Co-
GERALDO COELHO DIAS chinchina destinado à comunidade japonesa cristã,
que ali comerciava. O nome de Cochinchina já não
BIBLIOGRAFIA: BISKO, C. J. - Spanish and Portuguese Monastic History,
600-1300. London: Variorum Reprints, 1984. IDEM - Count Henrique of
designava então em Portugal todo o território, mas
Portugal, Cluny and the antecedents of the Pacto Sucessório. Revista sim o principado do Sul que lutava pela autonomia.
Portuguesa de História. Coimbra. 13 (1971) 155-158. BREDERO, A conjuntura política desfavorável - guerras em ter-
Adriain - Cluny et Citeaux. Lille: Presses Universitaire de Lille, 1985.
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ra e no mar, e perseguições político-religiosas - difi-
rança, 1938. CHAGNY, A n d r é - Cluny et son empire. 2." ed. Lyon: Li- cultava a acção missionária, porém o Colégio de
brairie Emmanuel Vitte-Éditeur, 1938. l. a ed. 1934. CHARVIN, D. G. - Macau* não tinha capacidade para albergar todos os
Status, Chapitres généraux et visites de l'Ordre de Cluny. Paris, 1965-
-1978. 10 vol. COLOMBÀS, Garcia M. - La tradición Benedictina: En-
padres e irmãos compelidos a sair do Japão desde
sayo histórico. Zamora: Ediciones M o n t e Casino, 1991; 1993, vol. 3, que as perseguições iniciadas em 1582 se repetiram
4/1. CONAN, K.. J. - Cluny: Les églises et la maison du chef d'Ordre. em 1614 e urgia abrir missões noutros espaços. O mer-
M â c o n , 1 9 6 8 . CONVEGNI DEL CENTRO DI STUDI SULLA SPIRITUALITÀ M E D I E -
VALE, Todi, A c c a d e m i a Tudertina, i 9 6 0 - Spiritualià Cluniacense. COS- cador Fernando da Costa informou o padre Manuel
TA, Avelino de Jesus da - O bispo D. Pedro e a organização da diocese Dias, reitor do colégio, sobre o interesse mostrado
de Braga. Coimbra: Faculdade de Letras, 1959. 2 vol. IDEM - A O r d e m pelo príncipe da Cochinchina de que algum dos pa-
de Cluny e m Portugal. Cenáculo. 2 (1948) 185-220. COUSIN, Patrice -
Précis d'Histoire Monastique. Paris: Bloud et Gay, 1956. DAVID, Pierre dres da Companhia navegasse para o seu reino e o
- Grégoire VII, Cluny et Alphonse VI. In ÉTUDES historiques sur la Ga- provincial enviou, em Janeiro de 1615, Francisco
lice et le Portugal du VI ' au XIIE siècle. Lisboa; Paris: Livraria Portugália
E

Editora; Société d'Edition «Les Belles Lettres», 1947, p. 341-439. DIAS,


Buzomi e Diogo Carvalho, que sabia japonês, acom-
Geraldo J. A. Coelho - O mosteiro de Rates e os Beneditinos. Boletim panhados de um irmão japonês, Paulo Saitô. Outros
Cultural. Póvoa de Varzim. (1999). FERREIRA, J. A u g u s t o - Origens do jesuítas* se lhes juntaram, nem sempre destinados à
christianismo na Península Ibérica: A vila de Rates, sua igreja e seu
mosteiro. Póvoa de Varzim: Liv. Povoense Editora, 1912. IDEM - Fastos
comunidade japonesa, sobretudo quando, em 1616,
episcopaes da Igreja primacial de Braga. Vila Nova de Famalicão: Mi- se repetiram as perseguições no Japão e foram ex-
tra Bracarense, 1931, vol. 2, p. 119-120. IOGNA-PRAT, D. - Les coutu- pulsos da China, de Nanquim, e a 4 de Fevereiro de
miers et les Statuts de Cluny c o m m e sources historiques (940-1200).
Revue Mabillon. 3 (1992) 23-48. KNOWLES, M. D. - Cistercians and
1617 de outros lugares. Sujeitaram-se na Cochinchi-
Cluniacs: The Controversery between St. Bernard and Peter the Venera- na a vicissitudes várias: acusados pelos bonzos de
ble. 1963. Le G o u v e r n e m e n t d ' H u g u e s de S e m u r à Cluny. In COLLOQUE provocarem a seca, ou as inundações no reino, razão
SCIENTIFIQUE INTERNATIONALE, C l u n y , S e t e m b r o d e 1 9 6 8 - Actes. LINAGE
CONDE, Antonio - Alfonso VI: El Rey Hispano y Europeu. 1065-1109. para motins por parte do povo supersticioso, foi-lhes
Burgos: Editorial La Olmeda, 1994. Col. Corona de Espana; 17. IDEM - ordenado, com alguma frequência, que abandonas-
Los origenes del monacato benedictinom en la Península Ibérica. León, sem certas terras ou regressassem a Macau. A mis-
1983. 3 vol. IDEM - S. Bento e os Beneditinos. Braga: Irmandade de São
Bento da Porta Aberta, 1989, vol. 1, p. 212-229. MARQUES, José - O es- sionação da população autóctone estimulou o estudo
tado dos mosteiros beneditinos da arquidiocese de Braga no século xv. da língua anamítica (do termo Annam, «Sul pacifi-
Bracara Augusta. 25: 79/92 (1981) 18-19. IDEM - A arquidiocese de cado», pelo qual o país era conhecido na China).
Braga no século xv. Lisboa: I N C M , 1988. MATTOSO, José - O romântico
beneditino e m Portugal: S. Pedro de Rates. Ora & Labora. Singeverga. Sem necessidade de intérprete, as conversões au-

385
COCHINCHINA

mentaram, não voltando a confundir-se cristão com tico e astrónomo, preocupado com a medição da lon-
português. O padre Francisco de Pina, primeiro mis- gitude no mar, autor de várias obras entre as quais
sionário a saber expressar-se com fluência nesta lín- uma «Arte de navegar», com uma enorme curiosida-
gua rica de tonalidades, servia de intérprete quando de pela medicina, relatando na sua Relaüone... esse e
de Macau chegava uma embaixada, e tornou-se mes- outros aspectos da Cochinchina. Alguns outros pa-
tre. A ele se deve a primeira transcrição fonética em dres do século xvii desta missão: António de Fontes,
caracteres latinos, conhecida por Quôc Ngu. Para fa- dos que mais anos missionou em terras do Dai-Viet,
cilitar a aprendizagem procurou elaborar um vocabu- primeiro na Cochinchina e depois no Tonquim; Gas-
lário e uma gramática de que nos chegaram ecos par Luís, reitor do colégio de Macau, provincial do
através de cartas então escritas. Para a catequização, Japão, comissário do Santo Ofício, que viveu longos
neste país onde a escrita sínica era muito conhecida, anos na Cochinchina apesar das diversas persegui-
recorreram no início os missionários aos livros já ções; João Maria Leria que, após a perseguição de
impressos na China, no tempo de Matteo Ricci, que 1639, passou ao Camboja e daí ao Laos onde foi pio-
reimprimiram, mas logo descobriram que alguns dos neiro; alguns, mártires no Japão, para onde dali se-
termos usados pelos padres na China não se apro- guiram viagem, como Diogo Carvalho, e Paulo Sai-
priavam à designação de Deus, começando a «quere- tô; Alexandre de Rhodes, o mais célebre, por lhe ser
la dos ritos». E outros livros foram redigidos para atribuída, segundo tudo leva a crer sem razão, a ro-
orações e catequese, e nisso trabalhou também o pa- manização da língua viet ou anamítica, cujo trabalho
dre Jerónimo Mayorica. O teatro e a música eram carece de uma nova análise à luz de fontes documen-
muito do agrado deste povo, por isso se adaptou em tais, em língua portuguesa; Manuel Ferreira um dos
cantiga a vida de Santo Aleixo e a do imperador que mais se notabilizou na segunda metade do sé-
Constantino. As imagens santas impressas divulga- culo, na luta contra os vigários apostólicos e os mis-
vam-se e esculpiu-se o presépio em madeira num sionários franceses enviados pela Propaganda Fide,
Natal. Os catequistas, à semelhança dos do Japão em claro desrespeito pelos direitos do padroado...
(dógicos) e dos do Tonquim, instituíram-se mais tar- Em 1644, começaram os martírios; André foi o pri-
diamente na Cochinchina para colmatar a ausência meiro, e outros se lhe sucederam, em 1645, e 1646,
de missionários durante as perseguições. Esta missão vítimas de uma complexa conjuntura política, em
patrocinada pelo padroado pertencia à província je- que a prolongada guerra com o Tonquim, com a ne-
suítica do Japão, e foi cedida ao bispado de Malaca, cessidade de manter um exército disciplinado e vas-
mas nunca pertenceu à província do Malabar. As or- salos obedientes, não se compadecia com costumes
dinárias dos dois missionários iniciais foram pagas estrangeiros que punham em causa a tradição con-
pelo feitor de Malaca, por ter considerado o vice-rei fucionista. Os mandarins convertidos não cum-
D. Jerónimo d'Azevedo ser do interesse do Estado priam os ritos e foram dispensados do serviço, e os
da índia* lá manter padres, visando o prosseguimen- militares punidos por não fazerem certos rituais an-
to de relações oficiais, dado o interesse económico tes das batalhas; budistas convertidos desrespeita-
que se esperava daí adviesse, ao mesmo tempo que vam os pagodes e as mulheres desobedeciam aos
se dificultava o comércio aos Holandeses, conjectu- maridos não querendo praticar o culto dos antepas-
rando-se mesmo sobre a possibilidade de se cons- sados, e tudo dava instabilidade. A viagem de Ale-
truir uma fortaleza onde funcionasse uma feitoria. xandre de Rhodes, num batel, próximo da fronteira,
Mas nem esta se edificou, nem as ordinárias foram lançou suspeitas de traição, foi preso, e expulso
pagas atempadamente, sendo a missão sustentada mais uma vez, contribuindo para o martírio dos cate-
pela Província do Japão, que vivia com dificuldades. quistas que o acompanhavam. Já depois de Portugal
O papado e a corte de Madrid procuravam cercear o perder ali direitos de padroado ( 1692), continuaram
acesso ao comércio e a quaisquer lucros por parte de jesuítas portugueses a servir nesta missão sob o con-
missionários, mas não os subsidiavam adequada- trolo da Propaganda Fide e mesmo após a extinção
mente. Só rendibilizando o que possuíam poderiam da Companhia de Jesus em Portugal, como foi o ca-
sustentar a nova missão; por isso os duzentos e cin- so de João Loureiro, membro da Academia Real das
quenta cruzados para o sustento, em vez de serem Ciências de Lisboa, autor de várias obras sobre plan-
remetidos em prata, que lá tinha pouco valor por ser tas tropicais, seu transplante e aclimatação, bem co-
abundante, foram enviados, em 1622, em seda e ou- mo do estudo exaustivo da flora da Cochinchina.
tras coisas. O baixo índice demográfico do território, ISABEL A. TAVARES MOURÃO
dominado pela família Nguyên, e a absoluta necessi-
BIBLIOGRAFIA: Fontes m a n u s c r i t a s : ARS1. Japonica-Sinensis. Ajuda, Je-
dade de obter determinados bens através do comér- suítas na Ásia. F o n t e s i m p r e s s a s e o u t r a b i b l i o g r a f l a : ANDRADE, Antó-
cio estão na origem da doação de uma terra aos Por- nio Alberto de - Antes de Vernei nascer... o P. Cristóvão Borri lança nas
tugueses («cidade de Jesus e Maria»), construindo-se escolas, a primeira grande reforma científica. Brotéria. 40 (1945) 369-
-379. BARTOLI, P. Daniello - DeWhistoria delia Compagnia di Giesv, la
algumas casas para os marinheiros aguardarem mon- Cina terza parte deWAsia. Roma, 1663. BATALHAS da Companhia de Je-
ção favorável, mas pouco duraram, incendiando-se sus na sua gloriosa Província do Japão. Ed. Luciano Cordeiro. Lisboa:
por motins populacionais. A ida regular dos barcos Imprensa Nacional, 1894. BORRI, Christoforo - Relatione delia nvova
Missione delli PP. delia Compagnia di Giesu, al Regno delia Concicina.
de Macau era indispensável para o bom acolhimen- Roma: Francesco Corbelletti, 1631. BRUCKER, José - La Compagnie de
to aos padres, a quem se pedia que servissem de in- Jésus, Esquisse de son Institut et de son Histoire (1521-1773). Paris,
térpretes, e possuíssem conhecimentos científicos, 1919. CARDIM, Antonio Francisco - Relatione délia Prouincia del Giap-
pone. Roma, 1645. CHAPPOULIE, Henri - Aux origines d'une église: Rome
sabendo prever eclipses, qualidade que foi rara; et les missions d'Indochine au XVIIE siècle. Paris: Bloud et Gay, 1943-
constituiu excepção Christoforo Borri, conhecido -1948. 2 vol. CORDARA, Julio - Historiae Societatis Jesu. Roma, 1750,
igualmente por Cristóvão Bruno, brilhante matemá- vol. 6. JACQUES, Roland - A u x origines du Quôc Ngu: Quelques observa-
tions sur les circonstances historiques etl'environnement scientifique des

386
COIMBRA

premiers écrits sur la phonétique vietnamienne. Annals of HCM City no (711-878) o cristianismo não sofreu grandes per-
University. Cidade de H o Chi Minh. 3 ( 1995) 93-109. IDEM - De Castro
Marim à Faifo: Naissance et développement du Padroado Portugais
seguições: conhecem-se vários bispos desta época,
d'Orient des origines à 1659. Paris, 1995. Texto policopiado. IDEM - embora alguns residissem temporariamente na corte
L 'oeuvre de quelques pionniers portugais dans le domaine de la lin- do rei de Leão, e as comunidades religiosas de Vaca-
guistique viêtnamienne jusqu'en 1650. Paris: I N A L C O , 1995. Texto po-
licopiado. K.HÒ1, Lê Thành - Histoire du Viêt-nam des origines à 1858.
riça e Lorvão não eram inquietadas, pois os seus
Paris: Sudestasie, 1982. MANGUIN, Pierre-Yves - Les Portugais sur les monges continuavam a receber doações, nomeada-
côtes du Viêt-Nam et du Campa: Étude sur les routes maritimes et les mente a de Ordonho I (850-866). Em 878 a cidade é
relations commerciales, d'après tes sources portugaises des x v f , xvif,
et xvttf siècles. Paris: EFEO, 1972. MOURÃO, Isabel A. Tavares - Olhares
reconquistada, conservando-se sob o domínio cristão
portugueses sobre o reino do Dai-Viet no século xvi e na primeira metade por mais de um século. Nausto (867-912) é o primei-
do século xvii. Oceanos. 32 (1997) 105-117. NOTÍCIAS summarias das ro bispo desta época, conhecendo-se-lhe sucessão
perseguições da Missam de Cochinchina. Lisboa: Ofíccina de Miguel
Manescal, 1700. PATO, R a y m u n d o António de Bulhão, dir. - Documentos ininterrupta até à invasão do Almançor que, em 987,
remetidos da Índia ou Livros das Monções. Lisboa: Academia Real das arrasou a cidade, reconstruída em 994 pelos próprios
Sciencias, 1880-1935. 5 vol. REGO, António da Silva - O Padroado Por- mouros. Foi este o período mais difícil da ocupação
tuguês do Oriente. Lisboa: AGC, 1940. RHODES, Alexandre de - Divers
voyages et missions du P. Alexandre de Rhodes en la Chine, & autres muçulmana, que terminaria com a segunda recon-
Royaumes de l'Orient: Avec son retour en Europe par la France et l'Ar- quista cristã, em Julho de 1064, pelas tropas de Fer-
ménie (1618-1653). Paris: Sébastien et Gabriel Cramoisy, 1653. Reed. nando Magno de Leão. 1.2. Da Reconquista cristã
fac-similada. C i d a d e de Ho Chi Minh, 1994. RIBADENEIRA, M a r c e l o de,
fr. - Historia de las Islas dei Archipielago y reynos de la Gran China. ao século xv: Os prelados procuraram reorganizar a
Tartaria, Cochinchina, Malaca. Siam, Cambodge y Jappon. Barcelona, diocese, cuja vida religiosa continuava activa, sobre-
1601. RODRIGUES, Francisco - História da Companhia de Jesus na assis-
tência de Portugal. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1931-1950.
tudo em Lorvão e na Vacariça. D. Paterno (1080-
4 vol. SANTOS, Domingos Maurício G o m e s dos - Vicissitudes da obra do -1087) instituiu o cabido (1086) e, para a formação
P.c Cristóvão Borri. Anais. Lisboa. 2: 3 (1951) 119-150. SCHUTTE, Jo- dos jovens clérigos, fundou, com o governador Ses-
seph Franz - Introductio ad Historiam Societatis lesu in Japonia 1549-
-1650. Roma: Institutum Historicum Soe. Jesu, 1968. SURDICH, Frances-
nando, a escola da catedral que, sob a orientação do
co - Fonti Sulla Pentrazione Europea in Asia. Génova: Bozzi Editore, arcediago e, depois, do mestre-escola, perduraria
1979. TEIXEIRA, Manuel - Os missionários portugueses no Vietnão. Bo- até meados do século xvin. Os bispos de origem
letim Eclesiástico da Diocese de Macau. 57 (1959) 455-467, 523-540,
643-661, 788-798, 908-924, 993-1003; 58 (1960) 41-49, 135-151, 205-
borgonhesa D. Maurício (1099-1108) e D. Bernardo
-216, 317-328, 395-408, 524-535, 621-644, 711-727, 810-828, 931- (1128-1146), monges de Cluny que acompanhavam
-951, 994-1006; 59 (1961) 18-28, 139-152, 234-249; 62 (1964) 815- os cavaleiros que vinham participar na Reconquista,
- 8 7 0 . T H O M A Z , L U Í S F i l i p e - C o c h i n c h i n a . I n DICIONÁRIO de história dos
Descobrimentos portugueses. Lisboa: Círculo dc Leitores, 1994, vol. 1, introduziram na diocese a liturgia romana. O patri-
p. 254-256. mónio da sé foi enriquecido com doações e compras,
como o testemunha largamente o Livro preto, en-
quanto o número de paróquias rurais se multiplicava,
COIMBRA, Diocese de. 1. Das origens à actualida-
obrigando a uma divisão religiosa e administrativa
de. 1.1. A diocese antes de 1064: Primitivamente se-
em quatro arcediagados. De 1185 a 1289, os bispos
deada em Conímbriga, a diocese data da permanên-
participaram activamente nos conflitos que opuse-
cia dos Romanos na Península (séculos ni-iv), sendo
ram os soberanos aos prelados, defendendo com fir-
então sufragânea de Mérida, pois o metropolita
meza os direitos da Igreja. Nos finais do século XIII e
Orôncio, em 653, pedia ao rei Recesvinto que lhe
primeira metade do século xiv, a diocese conheceu
fosse devolvida como sufragânea, como acontecia
momentos de grande animação religiosa: D. Egas
antes do domínio dos Suevos (412-585). Não se co-
Fafes (1248-1267) determinou que o cabido cantasse
nhece, porém, qualquer bispo desta época. Durante o
diariamente a Salve Regina depois das completas;
domínio suevo pertenceu à metrópole de Braga. Co-
D. Aymerico Ebrard (1279-1295) ordenou a celebra-
nheceu então o cristianismo grande expansão, que
ção da festa do Corpo de Deus (1295); e D. Raimun-
partia sobretudo de dois centros religiosos: Lorvão e
do I Ebrard (1319-1324) instituiu a solenidade da
Vacariça, aquele estendendo a sua acção evangeliza-
Imaculada Conceição (1320). A vida regular conhe-
dora a nordeste e a sul, e este a norte de Coimbra.
ce igualmente grande incremento, com a fundação e
Deste período nos chega o nome do primeiro bispo
reforma de mosteiros e conventos (Santa Cruz, Ce-
conhecido, Lucêncio, que foi abade de Lorvão e as-
las, Santa Clara, Lorvão), e com a presença de ho-
sistiu aos dois primeiros concílios provinciais de
mens e mulheres de insigne virtude (São Teotónio,
Braga (561 e 572), vindo a falecer em 580. E nesta
Santo António, rainha Santa Isabel). 1.3. Do sécu-
época que o bispado, tal como a população, se muda
lo xv à época liberal: A diocese acompanha a deca-
de Conímbriga para a localidade de Emínio, situada
dência geral da vida religiosa no país. No entanto, a
na margem norte do Mondego, e que em breve to-
bispos de pouco zelo pastoral, como D. João de Gal-
maria o nome de Coimbra, pois embora em 589 o
vão (1460-1481) que, trocando «o báculo de pastor
bispo Possidónio assine as actas do Concílio de To-
pela espada de soldado», acompanhou D. Afonso V
ledo como aeminiensis ecclesiae episcopus, todos os
nas campanhas do Norte de África (1471), o que lhe
seus sucessores se intitulam, nos actos oficiais, bis-
valeu, a si e aos seus sucessores, o título de conde de
pos conimbricenses. Na época visigótica (585-71 1)
Arganil; ou D. João Soares (1545-1572) que partici-
assiste-se a uma certa organização do clero: desde o
pou no último período de Trento, embora deixasse
segundo quartel do século vu, a catedral sanete Ma-
«muito a desejar em bons costumes», outros se se-
rie colimbrie tem o seu primicieiro (primiclericus),
guiam mais cumpridores e zelosos, desde D. Jorge
o seu arcediago (archidiaconus) e o seu arcipreste
de Almeida (1481-1543), que publicou as primeiras
(arehipresbiter) em conformidade com o cânon 10.°
constituições diocesanas dignas de tal nome (1521),
do II Concílio de Mérida. O último bispo desta épo-
a D. Afonso de Castelo Branco (1585-1615), que foi
ca é Emila que, em 693, assiste ao XIV Concílio de
«bispo esmoler», protector de homens de letras e
Toledo. No primeiro período do domínio muçulma-

387
COIMBRA

prelado tão apostólico que preferiu ao cargo de vice- acérrimo adversário D. Miguel da Anunciação (1740-
-rei (1603-1604) o de «apascentar as suas ovelhas», -1779), considerado por alguns «o maior bispo da
ou D. Frei Álvaro de São Boaventura (1672-1683), diocese», que teve de se haver com o regalismo*
que se preocupou sobremaneira com a renovação da pombalino, o que lhe valeu oito anos de prisão em
música litúrgica. Duas vacaturas abalaram de algum Pedrouços. Renovador de mentalidades e de estrutu-
modo o ritmo da administração diocesana (1646- ras, D. Miguel desenvolveu uma acção pastoral mul-
-1670 e 1717-1739), de tal modo que, nesta última, o tifacetada, desde a fundação do seminário ao estabe-
próprio D. João V se viu na obrigação de censurar lecimento de uma academia litúrgica, passando pela
asperamente os vigários capitulares por causa da sua visita pastoral às paróquias e pela publicação de car-
negligência. Nas 437 paróquias (1675) que consti- tas, provisões e editais visando a formação do clero
tuíam o bispado, todas com as suas confrarias e ir- e a exortação espiritual dos diocesanos. À sua morte
mandades, a vida religiosa era animada por grande segue-se um período de decadência, até porque o seu
número de clérigos, muitos deles pouco preparados sucessor D. Francisco de Lemos (1779-1822) dedi-
para o ministério, não raramente repreendidos pelos cou mais energias à reforma da universidade, de
visitadores que, periodicamente, percorriam as fre- que era reitor, do que ao pastoreio da diocese. Acres-
guesias, inspeccionando não só os lugares e objectos ce a este facto a devastação dos invasores franceses
de culto mas também o comportamento religioso e que deixaram por todo o lado sinais de destruição.
moral dos fregueses. Na sede do bispado, à volta da 1.4. Do Liberalismo à República: A decadência ad-
universidade e dos mais de vinte colégios universitá- ministrativa e religiosa continuou por toda a primei-
rios, começam a sentir-se alguns sintomas das novas ra metade do século xix. D. Francisco de São Luís
ideias jansenistas e galicanas. A primeira é comba- Saraiva (1822-1824) nada fez pela diocese, pedindo
tida sobretudo por D. António Vasconcelos e Sousa a renúncia ao cargo para se dedicar a actividades po-
(1706-1716), com os colegiais, o clero e os Regran- líticas e culturais. Sucedeu-lhe D. Joaquim da Naza-
tes de Santa Cruz a darem provas públicas de adesão ré (1824-1851) que, embora piedoso e apostólico, se
à bula Unigenitus com que, em 1713, Clemente XIII deixou enredar pelas lutas partidárias, vendo-se obri-
condenara o jansenismo*. Da segunda declarou-se gado a refugiar-se na sua antiga diocese do Mara-

Fonte: Anuário Católico de Portugal, 1955-1998.

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COIMBRA

nhão (1834), entregando a um vigário o governo do e as outras igrejas foram esbulhadas dos seus bens; o
bispado. O regime liberal, porém, cortando relações poder civil pretendeu e em alguns casos conseguiu
com a Santa Sé*, não reconheceu o governador, no- interferir no governo e disciplina das paróquias; e,
meando vigários «usurpadores» sem qualquer enten- um pouco por todo o lado, gerou-se um clima de
dimento com Roma, o que gerou uma situação de insegurança, a par de um verdadeiro desejo de re-
cisma, com «deploráveis consequências». Estabele- novação. Neste sentido foi providencial a vinda
ceu-se no bispado uma autêntica anarquia: os páro- para a diocese de D. Manuel Luís Coelho da Silva
cos eram substituídos por razões de cor política; os (1915-1936), que demonstrara fibra de lutador e
dignitários da sé e professores do seminário foram qualidades de grande disciplinador como governador
alvo de devassas vexatórias; o curso teológico foi in- do bispado do Porto*. A renovação da vida religiosa
terrompido; e a actividade das paróquias, sem visita estendeu-se aos mais diversos campos: o seminário,
canónica por mais de quatro décadas, entrou em vi- cobiçado por muitos, permaneceu ao serviço da dio-
sível decadência. A lenta reorganização do tecido cese, dando-lhe o prelado novos estatutos e atraindo
diocesano começou com o vigário-geral apostólico, novos alunos, de tal modo que, em 1936, se viu na
cónego António Lopes de Morais (1842-1851), que necessidade de criar o seminário menor para os alu-
regularizou a jurisdição de muitos párocos, sanou nos mais jovens; dedicou grande empenho à forma-
matrimónios contraídos fora das leis canónicas, e re- ção e disciplina do clero, mandando construir uma
começou a preparação teológica de candidatos ao casa para retiros espirituais, e não esquecendo os po-
sacerdócio; continuou com D. Manuel Bento Rodri- bres e doentes, com a criação da Obra de São José;
gues (1851-1858), que deu nova circunscrição paro- começou a visita pastoral a todas as paróquias da
quial à sede do bispado (1854) e reabriu o curso teo- diocese, sempre precedida de uma séria preparação
lógico trienal no seminário; e consolidou-se no do povo por um grupo de sacerdotes escolhidos; pe-
longo pontificado de D. Manuel Correia de Bastos diu e obteve da Santa Sé um bispo auxiliar e depois
Pina (1872-1913). Este prelado retomou pessoal- coadjutor, D. António Antunes, para se dedicar espe-
mente as visitas pastorais a todas as paróquias do cialmente ao serviço das visitas às paróquias; reuniu
bispado, começando pelas mais afastadas. Deste o sínodo diocesano e publicou constituições; fundou
contacto directo com a realidade diocesana nasceu a Liga da Boa Imprensa com o seu órgão diocesano
um empenhamento assinalável na resolução de di- que chegou e chega ainda a uma boa parte das famí-
versos problemas a nível espiritual e social, desde a lias do bispado; apoiou a formação de jovens, no-
luta por uma melhor saúde pública, até à introdução meadamente os universitários do CADC, os traba-
do hábito de dar um carácter festivo à celebração pa- lhadores da União Operária e os que nas paróquias
roquial da primeira comunhão das crianças. Sentia- aderiam ao escutismo, introduzido na diocese em
-se, para tanto, a necessidade de um clero com me- 1927; iluminou as diversas actividades pastorais e
lhor preparação espiritual, intelectual e pastoral, o sociais com vários escritos dirigidos ao clero e aos
que levou o prelado a investir grandes energias no fiéis. Toda esta obra teve continuação com o seu su-
seminário diocesano, onde o seu zelo ficou patente cessor, D. António Antunes (1936-1948), que apoiou
na busca de novas linhas de orientação espiritual, na as actividades paroquiais, nomeadamente os movi-
introdução de matérias de índole pastoral prática, mentos ligados à Acção Católica*, que tiveram
na introdução do ensino do neotomismo e na «roma- grande desenvolvimento nas décadas de 30 a 60;
nização» do professorado de Teologia*. Igualmente procurou (sem grandes resultados) recristianizar as
de assinalar é o interesse manifestado e conseguido festas religiosas; e deu ao CADC uma sede condig-
pela sobrevivência, em vários conventos da diocese, na. Ao tempo de D. Ernesto Sena de Oliveira (1948-
de algumas comunidades de religiosas de clausura. -1967) a diocese dotou-se de algumas estruturas de
Perante um regime político declaradamente regalista, que carecia desde a República: paço episcopal, câ-
D. Manuel Bastos Pina, sem abandonar o princípio mara eclesiástica, etc. Para a formação da juventu-
de uma convivência harmoniosa entre os poderes de fundou-se o Colégio Diocesano de São Teotónio
eclesiástico e civil, seguindo as directrizes de (1962). Durante seis anos, de 1954 a 1960, a diocese
Leão XIII, não hesitou em defender os direitos amea- foi percorrida pelo prelado e pelo seu auxiliar,
çados da Igreja, nomeadamente na questão relativa D. Manuel de Jesus Pereira, acompanhando a ima-
ao poder de inspecção doutrinal sobre o ensino teo- gem peregrina de Nossa Senhora de Fátima, o que
lógico na universidade. 1.5. Da República à actuali- constituiu, pela preparação que se fez em todas as
dade: O regime republicano, instaurado em Outubro paróquias, um momento assinalável de evangeliza-
de 1910, com a sua legislação eversiva fundamenta- ção. Com a realização do Vaticano II, coube a
da num anticlericalismo* fundamentalista, trouxe D. Francisco Rendeiro (1967-1971) a aplicação das
graves problemas à Igreja, a nível diocesano e paro- primeiras normas conciliares, criando, em 1967, o
quial: na ausência do prelado, por motivos de doença conselho presbiteral, cujos estatutos seriam apro-
e idade avançada, o governador do bispado, cónego vados por D.João António Saraiva (1972-1976).
José Matoso, foi desterrado para o Luso, por conde- A curta duração destes pontificados trouxe alguma
nar as associações cultuais, acontecendo o mesmo a descontinuidade à acção pastoral, retomada pelo ac-
diversos sacerdotes com cura de almas; muitos páro- tual prelado, D. João Alves (1976-), que tem dedi-
cos viram-se privados de meios de sustentação, ha- cado grande empenho à renovação da diocese, pro-
vendo um pequeno número que recorreu à pensão curando que ela pulse ao ritmo do Vaticano II. Por
instituída pelo governo; o seminário não fechou as decreto de 3 de Outubro de 1977 foram criadas qua-
suas portas, mas passou por sérias dificuldades; a sé tro regiões pastorais, com os respectivos vigários a

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COIMBRA

animarem toda a actividade evangelizadora; foi no- ra onde passaram todas as paróquias vindas em
meado um coordenador da pastoral diocesana (1979) 1882; e em 1938, com a restauração da diocese de
para apoiar e dar coesão às diversas actividades da Aveiro, que passou a integrar as paróquias cedidas
pastoral especializada; foram elaborados e aprova- em 1882, mais duas do concelho de Anadia, mas
dos os novos estatutos dos arciprestados (1981), de- deixando definitivamente Mira. Actualmente a dio-
finindo as funções coordenadoras dos arciprestes; cese é constituída por 262 paróquias, três reitorias e
decretou-se a criação dos conselhos pastorais paro- um curato. 3. Legislação e doutrina - sínodos e cons-
quiais, com a aprovação dos respectivos estatutos tituições diocesanas: De 1240 aos nossos dias temos
(1981); deram-se novos estatutos ao conselho pres- notícia da celebração de 12 sínodos diocesanos.
biteral (1982); criou-se a Comissão Diocesana do O primeiro realizou-se a 16 de Agosto de 1240, pre-
Apostolado dos Leigos (1987), que iniciou uma pro- sidido pelo bispo Tibúrcio (1234-1248), como cons-
missora actividade de animação das estruturas lai- ta de um documento do cartulário do Mosteiro de
cais e levou a cabo o congresso de 1992, que agitou São Paulo de Almaziva. Tratou-se, nesse sínodo, da
positivamente as diversas estruturas diocesanas. De composição entre o dito mosteiro e os priores de Fa-
Novembro de 1993 a Maio de 1999 decorreu o sínodo rinha Podre, Eiras, Arazede e Santa Maria de Monte-
diocesano que teve como principal objectivo a reno- mor sobre os dízimos a pagar pelas propriedades que
vação da vida pastoral diocesana. Em Janeiro de 1998 0 mosteiro possuía naquelas freguesias. O segundo
deu entrada na diocese como bispo coadjutor, com di- sínodo foi celebrado por D. Egas Fafes (1248-1267)
reito a sucessão, D. Albino Mamede Cleto. 2. Limites em data que desconhecemos, legislando acerca do
geográficos: Até meados do século vi a diocese es- modo de pagar os dízimos das terras cultivadas. A 9
tendia-se grosso modo entre o Tejo e o Douro, sendo de Setembro de 1307, D.Estêvão Anes Brochado
criadas, posteriormente, as dioceses de Idanha (570), (1304-1318) reuniu sínodo na catedral, condenando
Viseu* (572) e Lamego* (569). Depois da Recon- os abusos cometidos pelo prior e Mosteiro de Santa
quista cristã, os bispos de Coimbra administraram Cruz. Pelas actas deste sínodo sabemos que, nesta
por largo tempo os bispados de Viseu e Lamego, época, havia em Coimbra reunião sinodal todos os
«até que pudessem ter bispo próprio». No início do anos, entre 8 e 10 de Setembro. O quarto sínodo de
século xii, o bispo do Porto, D. Hugo, através de in- que há notícia celebrou-se no final do século xiv, em
formações pouco correctas, conseguiu de Pascoal II data desconhecida. Dele resta um pergaminho en-
duas bulas (1115): uma que dava à sua diocese as contrado por Avelino de Jesus da Costa no Livro de
terras até ao rio Antuã; e outra que lhe concedia aniversários da Colegiada de São Tiago. Provavel-
a administração de Lamego. O bispo de Coimbra, mente foi presidido por D. João Afonso Esteves de
D. Gonçalo, dirigiu-se pessoalmente ao papa, que fi- Azambuja (1398-1402) e o assunto, um tanto vago,
cou contristado, lamentando que os bispos «abusas- relaciona-se com os deveres dos priores, vigários e
sem da sua boa fé para obterem concessões que eram outros sacerdotes na celebração das missas. O quin-
motivo de discórdia». Por isso mandava que Coim- to sínodo foi presidido por D. Jorge de Almeida
bra mantivesse os territórios em questão («quod te- (1483-1545) na Igreja de São João de Almedina, a
nuit teneat»), decisão que foi confirmada várias 1 de Setembro de 1521, onde foram promulgadas as
vezes até que em 1253 o bispo do Porto, Julião Fer- primeiras constituições conhecidas do bispado, que
nandes, apresentando os rescritos de Pascoal II, vinham revogar «todas as outras de nossos ante-
conseguia de Inocêncio IV a bula Provisionis nos- cessores e nossas, as quais queremos que não se
trae, que tirava ao bispado de Coimbra as terras en- guardem». Pouco tempo estiveram em vigor, pois
tre o Douro e o Antuã. Quando a diocese de Idanha D.João Soares (1545-1572) reuniu sínodo na cate-
foi restabelecida, com sede na Guarda* (1199), esta dral, a 15 de Abril de 1548, tendo promulgado novas
reclamou e obteve as igrejas que Coimbra tinha na constituições que revogam as anteriores, bem como
Covilhã, após litígio que só terminou em 1256. Tam- «visitações, provisões e alvarás ou costumes nossos
bém a sul, à medida que a Reconquista cristã avan- ou de nossos predecessores que forem em contrário
çava, Lisboa reclamava para si as igrejas de Ourém, destes nossos». Divididas em 39 capítulos, as consti-
Tomar, Porto de Mós, Torres Novas e outras, com tuições tratam da administração dos sacramentos, da
intervenção e bulas de Inocêncio III (1203 e 1216) celebração da missa, da exemplaridade de vida dos
e Honório III (1218). Com a criação da diocese de clérigos, da ciência necessária para se receber cada
Leiria (1545), Coimbra sofreu nova amputação a sul, uma das ordens sacras e os exames a que os candida-
que se repetiria, a norte, com a criação do bispado de tos deviam submeter-se. O bispo D. João Soares, re-
Aveiro, em 1774. Por essa altura (1770) passaram gressado do Concílio de Trento (1563) presidiu ain-
para a Guarda 19 igrejas dos concelhos de Gouveia, da a outro sínodo, a 18 de Novembro de 1565, onde
Celorico e Fornos de Algodres. Com a nova circuns- o clero aceitou a legislação emanada depois de 1548
crição diocesana de 1882, sendo suprimidos os bis- e mandada compilar e publicar pelo prelado. Imbuí-
pados de Leiria e Aveiro, a diocese integrou boa par- das do espírito tridentino são as constituições de
te deles, recebendo ainda do patriarcado quatro D. Afonso de Castelo Branco, aprovadas no sínodo
paróquias de Ferreira do Zêzere e, da Guarda, nove de 15 de Novembro de 1589 e impressas em 1591.
paróquias de Pampilhosa da Serra, enquanto cedia a Nelas, como se observa no prólogo, se conserva «o
Viseu as freguesias do concelho de Santa Comba que pelo santo concílio tridentino e leis canónicas dos
Dão, e à Guarda as que lhe restavam de Gouveia e as pontífices modernos se não achou alterado», mudan-
do concelho de Seia. Novas divisões se verificaram do e acrescentando «o mais que, conforme o mesmo
em 1918, com a restauração da diocese de Leiria, pa- concílio e sagrados cânones e santas determinações

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COIMBRA

em vigor a 1 de Janeiro de 2000. 4. Cabido e cole-


giadas: O cabido de Coimbra, como os demais, teve
origem na vida comunitária do bispo com o clero
adscrito à catedral, o que obrigava a uma certa orga-
nização interna. Depois da segunda reconquista cris-
tã (1064) o cabido foi reorganizado por D. Paterno
(1086), com uma hierarquização interna que se foi
tornando cada vez mais perfeita. Ao tempo de
D. Martinho Gonçalves (1183-1198), o cabido é pre-
sidido in temporalibus pelo deão*, juntando-se, em
breve, outras dignidades: chantre, mestre-escola e te-
soureiro-mor. De início o número de cónegos não
era fixo, dependendo da vontade do bispo e da ne-
cessidade do serviço do coro e do altar. Com a divi-
são das rendas da sé em três partes (duas para o bis-
po e uma para o cabido), por escritura lavrada em
1210, aumentou o número dos pretendentes ao cano-
nicato, pelo que D. Martinho Gonçalves elevou o
número para 40, incluindo as dignidades capitulares.
No entanto, duas dessas prebendas ficavam reserva-
das, uma para as despesas da fábrica da sé e outra
para a cantadoria. Neste caso, os canonicatos a pro-
ver seriam apenas 38, número que se manteve até
1414. Tendo decrescido as rendas, a ponto de alguns
cónegos abandonarem o serviço do coro, D. Gil Al-
ma (1408-1415) suplicou e obteve da Santa Sé a re-
dução das prebendas para 30, sendo providas apenas
28 conezias e mais tarde (1453) apenas 27, ficando
duas para as despesas da fábrica e uma para a canta-
doria. Com a criação dos lugares de submestre-
-escola e subtesoureiro, o número de canonicatos a
prover desceu para 25, chegando assim até à época
Fachada da Sé Velha, Coimbra. liberal, quando o governo os reduziu a 12 (dois deles
com ónus de ensino no seminário), arrogando-se o
do colégio dos ilustríssimos senhores cardeais, e direito de nomear os titulares. Daí em diante, rarissi-
concílios provinciais, achamos ser necessário». Fo- mamente o número foi preenchido, chegando a ha-
ram estas constituições, de cariz catequético e disci- ver, em 1888, apenas o mestre-escola e um cónego.
plinar, que se observaram na diocese até ao início do A par dos cónegos e por impedimento destes, foi ne-
século xx. De facto, os sínodos de 1643 (para jurar e cessário admitir outros sacerdotes que os substituís-
defender o dogma da Imaculada Conceição) e de sem no coro e no serviço do altar, com o nome de
1677, ao tempo de D. Frei Álvaro de São Boaventu- meios-cónegos, porcionários ou raçoeiros, que rece-
ra, não alteraram a legislação anterior. Tanto D. Mi- biam meia prebenda. Em 1224 já existiam, em nú-
guel da Anunciação, no século xvm, como D. Ma- mero de seis. Quando foi necessário admitir mais sa-
nuel Bastos Pina, no século xix, tiveram em mente a cerdotes, recorreu-se aos terciários (recebiam apenas
realização do sínodo diocesano que, no entanto, só um terço da prebenda) ou a simples capelães que de-
viria a ser convocado, em 1923, por D. Manuel Coe- viam celebrar as missas dos legados pios. Esta situa-
lho da Silva. Este prelado havia já feito publicar, em ção gerou, ao longo dos séculos, várias tensões entre
1921, a Colecção autêntica de legislação diocesana, os raçoeiros e terciários e os cónegos, pelo facto de
a que o sínodo acrescentou vários cânones, tendo em os primeiros pretenderem ser considerados cónegos
conta as normas do Código de Direito Canónico de de pleno direito. No século xvm a desordem foi tal
1917. Depois da realização do Concílio Plenário* que D. Miguel da Anunciação pediu ao papa que ex-
Português (1926), D. Manuel Coelho da Silva pu- tinguisse os porcionários e terciários, criando-se a
blicou, em 1929, as Constituições do bispado de ordem dos beneficiados com 12 membros. Pio VI
Coimbra, que integram a legislação publicada em anuiu ao pedido em 1778. O cabido teve os seus es-
1921, a aprovada no sínodo de 1923 e a do concílio tatutos ou regulamentos, tendo os primeiros sido da-
plenário. O décimo segundo sínodo diocesano, con- dos pelo cardeal João, bispo de Sabina, legado do
vocado por D. João Alves, decorreu de 1993 a 1999. Papa em 1128. Estes foram substituídos pelos de
Em várias assembleias plenárias em que os partici- D. João Soares (1572), já depois de Trento, com des-
pantes (sacerdotes, religiosos e leigos) debateram, à crição pormenorizada dos direitos e deveres dos có-
luz do Concílio Vaticano II, os caminhos que deve negos e prebendados. Os estatutos sofreram adita-
seguir a Igreja diocesana para, neste início do ter- mentos ao longo dos tempos, nomeadamente por
ceiro milénio, levar a cabo a sua missão evangeliza- mão de D. Miguel da Anunciação (1741). Em 1922
dora e santificadora. A 30 de Maio de 1999 foram tentou-se uma actualização dos regulamentos, que
promulgadas as Constituições sinodais que entraram não surtiu efeito. Actualmente, por mandado da con-

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COIMBRA

ferência episcopal, em conformidade com os câno- das apreciações à acção pastoral dos párocos, nos
nes 505-507 do Código de Direito Canónico, está a fornecem um panorama da vida social e moral dos
proceder-se à reformulação dos estatutos. O cabido fregueses e das suas relações com a paróquia. Espe-
de Coimbra chegou a ter muitos bens, recebendo cialmente interessante era a actividade das confra-
avultadas rendas, além de dízimos e juros, empre- rias*, vocacionadas umas para o culto divino, espe-
gando parte deles na assistência aos necessitados. As cialmente do Santíssimo Sacramento, e outras para o
rendas e dízimos perderam-se em 1834, e o resto dos sufrágio dos defuntos. A estrutura foi um pouco aba-
bens em 1910. À maneira dos cabidos, junto de cer- lada no período liberal, deixando de haver visitas
tas igrejas mais ricas e populares agruparam-se cléri- pastorais, só retomadas em 1872 por D. Manuel Bas-
gos, sob a presidência do pároco, com a finalidade tos Pina, que percorreu praticamente toda a diocese,
da celebração do culto divino. Em Coimbra houve despertando o sentimento religioso dos povos, ani-
colegiadas desde o século xn (Santiago, São Salva- mando o zelo pastoral dos párocos, dinamizando ini-
dor, etc.), estendendo-se às paróquias rurais (Abiul, ciativas locais mesmo de índole social, incentivando
Arganil, Penela, etc.). Com a extinção dos dízimos a construção de novas igrejas e regularizando algu-
caíram na maior pobreza, sendo extintas em 1854, mas situações morais. Com 463 000 habitantes para
ao tempo de D. Manuel Bento Rodrigues, passando 267 paróquias, em 1872, a diocese atingia, em 1882,
os poucos bens de algumas para o seminário, e o es- com a integração de freguesias dos extintos bispados
pólio de livros e arquivo também para o seminário de Aveiro e Leiria, os 540 000 fiéis, dispersos por
que, em 1917, se viu despojado desse acervo em fa- 128 000 fogos de 319 paróquias. Sob o ponto de vis-
vor do Arquivo da Universidade. 5. Paróquias: Du- ta religioso todos frequentavam, com raríssimas ex-
rante o domínio dos Suevos a diocese é dividida em cepções, os sacramentos uma vez por ano e partici-
distritos paroquiais, que tomam o nome de fregue- pavam na missa dominical, mas a fé era mais
sias. O Paroquial suevo ou Divisio Teodomiro (580) tradicional que pessoal, não passando os conheci-
enumera sete divisões no território sob a jurisdição mentos religiosos da maioria dos rudimentos do ca-
do bispo de Coimbra: Emínio (Coimbra), Conímbri- tecismo e da repetição de algumas fórmulas nem
ga (Condeixa), Lurbine (Lorvão), Insula (Aveiro), sempre correctamente decoradas. Os actos funda-
Antuane (Antuã) e Portucale Castrum (Gaia). Cada mentais da vida dos fregueses (nascimento, casa-
uma destas subdividia-se em rusticane parochiae mento e morte) eram, desde o século xvi, objecto de
que, como foi decidido no II Concílio de Braga assento nos livros de registo paroquial que, com a
(572), deviam ser visitadas pelo bispo para conhecer implantação do regime republicano e a criação do
o clero paroquial (parochiales eleriei) e instruir o registo civil obrigatório (1911), se viu relegado para
povo. A construção de igrejas por senhores particu- um plano estritamente religioso, passando os livros
lares e a sua doação à Sé de Coimbra permitia a cria- de assentos das paróquias para as mãos da autorida-
ção de novas freguesias, com a passagem dos tem- de civil e, logo, para os arquivos do Estado. O vasto
plos particulares a públicos e com o direito de aí se espólio do registo paroquial de Coimbra integra, por
celebrar a eucaristia para o povo e de se administrar esta via, o Arquivo da Universidade. As leis eversi-
o Baptismo e os outros sacramentos. Depois da se- vas e anticlericais da República fizeram-se sentir
gunda reconquista cristã o número de freguesias de- também noutros aspectos da vida paroquial: as igre-
ve ter-se multiplicado, o que levou à divisão do bis- jas e outros bens passavam a ser «pertença e proprie-
pado, no século xn, em quatro arcediagados: o do dade do Estado», que cedia, gratuita e provisoria-
Nordeste, com sede em Seia; o do Centro, com sede mente, os templos e as alfaias litúrgicas «na medida
em Coimbra; o do Norte ou do Vouga, com sede em do estritamente necessário»; o culto foi restringido
Angeja; e o do Sul, com sede em Penela. O número ao interior dos templos e à duração do nascer ao pôr
de paróquias cresceu ao longo dos séculos, atingindo do Sol; instituíam-se as «associações cultuais» para
as 437 em 1675: sete na cidade de Coimbra, 113 no administrar as esmolas dos fiéis, destinando parte
arcediagado de Seia, 86 no de Penela e 130 no do das receitas a fins civis; extinguiram-se as côngruas
Vouga. Nesta época, segundo uma relação ad limina e os emolumentos, deixando os párocos sem qual-
de um delegado de D. Frei Álvaro de São Boaventu- quer meio de subsistência. Passado o primeiro im-
ra, a população diocesana rondava os 200 000 fiéis, pacte, a vida religiosa das paróquias da diocese reor-
com 167 000 adultos, 30 000 «menores de confis- ganizou-se sob a acção do bispo D. Manuel Luís
são» e 1016 sacerdotes. A maioria das paróquias Coelho da Silva (1915-1936) que, além de legislação
eram pequenas, não atingindo algumas as duas cen- adequada sobre a celebração dos sacramentos e ou-
tenas de habitantes e poucas ultrapassando o meio tros aspectos da disciplina eclesiástica e do culto di-
milhar. A mais populosa era Pombal, com quase 6000 vino, visitou, pessoalmente ou através do seu bispo
habitantes (3700 adultos «de comunhão» e 2030 auxiliar D. António Antunes, todos os arciprestados
«menores de confissão»). Todas estavam providas e paróquias do bispado, reanimando e dando orienta-
de pároco, contando ainda com o serviço de outros ção sobre a actividade pastoral. Todos os prelados
clérigos residentes, que ajudavam na celebração das seguintes prestaram grande atenção à visita pastoral
missas dominicais e na administração do sacramento às paróquias, como um dos meios mais eficazes de
da Penitência. Nos séculos XVII e xvin a actividade governo, num momento em que, por diminuição do
religiosa era intensa, a avaliar pelos relatos que che- número de sacerdotes, muitas paróquias iam deixan-
garam até nós das visitações, efectuadas quase sem- do de ter pároco residente. Depois do II Concílio do
pre por eclesiásticos delegados do bispo que, além Vaticano, as directrizes pastorais têm ido no sentido
da descrição dos lugares e instrumentos do culto e de uma valorização da acção dos 23 arciprestados

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COIMBRA

que, desde 1977, integram as quatro regiões pasto- parte na Torre do Tombo e em parte no Arquivo da
rais orientadas por vigários episcopais. 6. Cultura e Universidade; o dos mosteiros e conventos está na
evangelização. 6.1. Centros de cultura religiosa: Na Torre do Tombo, tendo-se desencaminhado muita
Alta Idade Média, além da escola da catedral, a dio- documentação aquando da extinção das ordens reli-
cese contou com dois grandes centros culturais: Lor- giosas. 6.2. Catequese: Os diversos sínodos e consti-
vão, onde o culto das letras subiu a alto nível, bas- tuições diocesanas, antes e depois de Trento, emana-
tando citar algumas obras ali copiadas e iluminadas ram normas sobre o dever dos bispos e sacerdotes
como o Livro das aves (1183), o Comentário de com cura de almas de evangelizarem os seus fregue-
Santo Agostinho aos Salmos (1184) ou o célebre ses, nomeadamente através da pregação dominical e
Apocalipse de Lorvão (1189), e cujo espólio se en- da instrução aos meninos e pessoas rudes. A repetida
contra disperso pela Torre do Tombo, Arquivo da chamada de atenção sobre este assunto é sinal de que
Universidade de Coimbra, Museu Machado de Cas- essas normas nem sempre eram cumpridas, razão
tro e Biblioteca Pública do Porto; e Santa Cruz, ver- por que, ao longo dos tempos, nos deparamos na
dadeira escola teológica e litúrgica, com professores diocese com um enorme analfabetismo religioso. No
formados nas universidades europeias, de cujo scrip- século xviii, D. Miguel da Anunciação determina aos
torium saíram códices que se conservam sobretudo párocos que, nos domingos e dias de festa, ensinem
na Biblioteca Municipal do Porto. Neste mosteiro, a doutrina cristã aos fiéis, durante meia hora antes da
com a reforma de D. Frei Brás de Braga (século xvi), missa e, depois desta, se ponham de joelhos diante
o estudo das Humanidades foi renovado com mes- do altar e recitem, em voz alta, os actos de contrição,
tres vindos de Paris: fundaram-se dois colégios (o atrição, fé, esperança e caridade, que serão repetidos
de São Miguel para os nobres e o de Todos-os-San- e decorados pelo povo. No ensino da catequese, de-
tos para as classes modestas) onde se ensinavam Ar- vem os párocos tratar de cada vez uma pequena par-
tes e Humanidades para o ingresso na universidade. te do catecismo, «por sua ordem e com distinção e
O prior de Santa Cruz foi, a partir de 1539, chance- clareza», de modo que todos possam entender. Em-
ler da universidade, concedendo os títulos auctorita- bora fossem conhecidos o catecismo romano e o de
te apostolica. Foi neste mosteiro que se instalou a Roberto Belarmino (que D. Miguel recomenda aos
primeira impressora da cidade (1530). No século xvi, párocos) a catequese* era ensinada pela cartilha do
com a transferência da universidade para Coimbra, jesuíta Inácio Martins. No século xix não há altera-
surgiram novos centros de cultura: o Colégio das Ar- ções de monta: D. Manuel Bastos Pina insiste com
tes, fundado por D. João III, entregue a André de os párocos para que celebrem solenemente, depois
Gouveia (1548) e depois aos Jesuítas (1555), sendo de adequada catequese, a primeira comunhão das
extinto em 1836 para dar lugar ao liceu nacional; foi crianças; e aos párocos começam a juntar-se, sobre-
o mais importante estabelecimento de ensino médio tudo nas aldeias mais afastadas da paróquia, os e as
do país durante três séculos, nele tendo ensinado catequistas, nomeadamente membros da associação
mestres como Pedro da Fonseca e o latinista Manuel do Apostolado da Oração*. Logo que chegou à dio-
Alvares, autor de uma famosa gramática latina; o seu cese, D. Manuel Coelho da Silva ordenou que, «den-
espólio está disperso pela Torre do Tombo, Arquivo tro de seis meses», se criasse em todas as paróquias
da Universidade e Biblioteca Nacional de Lisboa. a Confraria da Doutrina Cristã para o ensino da cate-
A Faculdade de Teologia foi também um pólo de di- quese e promoção da instrução religiosa. Com a cria-
fusão cultural, sendo célebres alguns dos seus mes- ção de um secretariado da catequese, organizado na
tres nas matérias bíblica e dogmática (Heitor Pinto, década de 50 pelo cónego Jaime Cunha, chegou a to-
Francisco Suarez, etc.); com o Liberalismo* caiu em das as paróquias um ensino organizado, tendo por
declínio, sendo suprimida em 1911 para dar lugar a base o chamado «Catecismo Nacional». Depois do
uma faculdade de letras. Igualmente assinalável foi o Vaticano II procurou renovar-se esse ensino, esten-
Colégio de Jesus, dos padres jesuítas*, célebre pelos dendo-se a todas as paróquias o programa de cate-
seus mestres de Filosofia Aristotélica e pelo ensino da quese de dez anos que, habitualmente, culmina com
Cartografia e da Matemática. Em alguns dos centros a celebração do sacramento do Crisma. Algumas
monásticos e diocesanos cultivou-se também a músi- paróquias e movimentos eclesiais dão agora os pri-
ca sacra e de inspiração religiosa, nomeadamente em meiros passos na organização de uma necessária
Santa Cruz, sendo D. Pedro de Cristo (séculos xvi- catequese de adultos. 6.3. Escolas católicas - semi-
- X V I I ) o compositor mais conhecido. Muitos bispos, nários: A formação do clero, antes da segunda re-
de D. João Soares à actualidade, promoveram o es- conquista cristã, fazia-se, provavelmente, junto de
tudo da música litúrgica, quer instituindo cadeiras clérigos ilustrados e nas comunidades religiosas,
de Solfejo e Cantochão (D. Álvaro de São Boaven- sobretudo Lorvão. Depois da Reconquista, o bispo
tura, 1672), quer incluindo-a no currículo teológico D. Paterno fundou a escola da catedral, onde os jo-
(D. Miguel da Anunciação, 1848), quer obrigando vens estudavam humanidades. A teologia era ensina-
ao seu conhecimento para admissão a ordens sacras da nos mosteiros e conventos, nomeadamente Santa
(D. José Manuel de Lemos, 1859). Actualmente fun- Cruz e depois, quando a universidade se instalou de-
ciona no seminário uma escola diocesana de música finitivamente em Coimbra, na Faculdade de Teolo-
sacra, com a finalidade de formar os organistas e ou- gia. Dada esta circunstância, os bispos de Coimbra
tros responsáveis dos coros paroquiais. O espólio não se apressaram a criar o seminário ordenado pelo
destas instituições eclesiásticas (cabido, mitra e câ- Concílio de Trento. Em 1673, D. Frei Álvaro de São
mara eclesiástica) encontra-se incorporado no Arqui- Boaventura informava a cúria romana que a diocese
vo da Universidade; o das colegiadas encontra-se em não tinha seminário «por haver nela uma tão insigne

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COIMBRA

Universidade, onde se ensinam todas as ciências; sem a dar resposta a alguns problemas pastorais con-
mas, ainda assim, têm os bispos duas cadeiras de cretos, sobretudo de índole social e económica».
teologia moral que pagam das suas rendas e ensinam Com o advento da República, o edifício passou para
os padres da Companhia de Jesus [...]; e, na claustra as mãos do Estado (sendo recuperado como proprie-
da sé, uma cadeira de gramática que paga o mestre - dade da diocese só em 1919), o número de alunos di-
-escola». No século xvui, D. Miguel da Anunciação minuiu e o curso voltou a ser trienal. Por isso uma
juntou os jovens candidatos ao sacerdócio num inter- das preocupações do bispo Coelho da Silva foi a de
nato que funcionou em casas de aluguer (1741-1751) aumentar a frequência de alunos, criando a Obra das
e na Quinta da Mitra, em São Martinho do Bispo. Vocações* Sacerdotais (1920), ao mesmo tempo que
Entretanto, em 1748 dava início ã construção do edi- dotava o seminário de novos estatutos (1919) que vi-
fício do seminário que recebeu os primeiros alunos goraram até aos publicados, em 1965, por D. Ernesto
em 1858 e ficaria concluído em 1765. Os primeiros Sena de Oliveira. A crise pós-conciliar fez-se sentir
estatutos, de 1748, foram aprovados pelo papa Ben- num novo decréscimo do número de alunos que se
to XIV. O seminário ficou a ser orientado pelos Pa- tem prolongado até ao presente. Em 1936, o aumen-
dres Pios Operários, que ali permaneceram até 1786. to de vocações levou D. Manuel Coelho da Silva à
Desde a conclusão do edifício, as aulas passaram a criação de um seminário menor, na Figueira da Foz,
ser internas, conseguindo o bispo fundador um bom onde se leccionavam os primeiros anos do curso de
grupo de professores, uns vindos de Espanha e Fran- preparatórios. A população escolar chegou a ser tan-
ça, e outros portugueses que mandou preparar em ta que, em 1957, D. Ernesto Oliveira mandou abrir,
Paris e Toulouse. Em 1868 as disciplinas leccionadas em Buarcos, um pré-seminário para alunos do pri-
eram a Gramática (que incluia Latim e Latinidade), a meiro ano, na dependência do seminário menor. Este
Retórica, a Filosofia e o Grego, e, no curso teológi- é hoje frequentado por um número diminuto de alu-
co, a Moral, a Dogmática, Escritura Sagrada, Direito nos que seguem a escolaridade de ensino público.
Canónico e Civil, Ritos Sagrados e Cerimónias e Ca- 6.4. Instituto Superior de Estudos Teológicos: O en-
tecismo. Na época liberal o seminário, embora não sino da teologia na diocese teve como centros os
encerrando completamente, deixou de ter, durante mosteiros de Lorvão e Santa Cruz e, depois, a Facul-
alguns anos, o curso teológico, pelo que os alunos dade de Teologia, extinta em 1910, e o seminário
frequentavam as aulas da Faculdade de Teologia. maior. Em 1971, «para promover de modo mais efi-
O curso trienal foi retomado em 1853, tendo o bis- caz os estudos filosóficos e teológico-pastorais dos
po D. Manuel Bento Rodrigues chamado para lec- candidatos ao sacerdócio ministerial», as dioceses de
cionar os professores da faculdade coimbrã, que ali Coimbra, Beja e Leiria criaram o Instituto Superior
se mantiveram até 1886, altura em que foram exo- de Estudos Teológicos de Coimbra (ISET), hoje fre-
nerados, por divergências com D. Manuel Bastos quentado por alunos teólogos das dioceses fundado-
Pina. Este prelado dedicou ao seminário o melhor ras (excepto Beja) e das de Aveiro, Portalegre e Cas-
das suas energias. No aspecto material, melhorou as telo Branco* e Cabo Verde*. Filiado na Faculdade
instalações e mandou construir de raiz dois novos de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
edifícios que permitiram a admissão de um maior desde 1991, o ISET lecciona o curso regular de Teo-
número de ordinandos, alguns deles estudando gra- logia, um curso de Cultura Teológica e cursos inten-
tuitamente. A renovação da vida espiritual, quer de sivos locais de Cultura Religiosa, contribuindo para
ordinandos quer de pensionistas, foi objecto de um a actualização teológica dos presbitérios diocesanos
regulamento (1876) que preconizava uma maior fre- e para a difusão da cultura religiosa, nomeadamente
quência dos sacramentos, a nomeação de três con- através de umas jornadas anuais de teologia e da re-
fessores efectivos, a realização de exercícios espiri- vista Estudos Teológicos publicada a partir de 1997.
tuais, a participação activa nas celebrações litúrgicas
e outros actos de piedade. Em 1883 foi criado o lu- 6.5. Colégios universitários e diocesanos: Com a ins-
gar de director espiritual interno, ocupado, a partir talação definitiva da universidade em Coimbra, no sé-
de 1886, pelo padre Santos Abranches que o prelado culo xvi e seguintes, as diversas ordens religiosas e
mandara formar em Roma e, depois, pelos padres militares construíram na cidade os seus colégios que,
Giacomo Sinibaldi, Lima Vidal e António Antunes, até 1834, formavam como que «parcelas da Universi-
todos eles também de formação romana. Os estudos dade». Extintas as ordens religiosas, os colégios fo-
filosóficos e teológicos foram igualmente renovados: ram abandonados e os seus edifícios ocupados por
em 1878 criava-se a cadeira de Filosofia Tomista serviços públicos, universitários e outros. Também o
que, a partir de 1886, seria regida por Sinibaldi; com seminário, desde a sua fundação, recebia, além de
a saída dos lentes da Faculdade de Teologia, manda- candidatos ao sacerdócio, dois outros tipos de alunos:
ram-se preparar novos professores na Universidade os colegiais, filhos das famílias nobres de todo o rei-
Gregoriana, cuja influência se fez sentir aos mais di- no, que vinham frequentar os estudos preparatórios; e
versos níveis, «podendo afirmar-se que se criou, nes- os porcionistas que, residindo no edifício, estudavam
ta época, no Seminário de Coimbra, uma verdadeira na universidade. Para obstar a diversos inconvenien-
escola teológica, tendo como modelo as universida- tes, o seminário fechou as suas portas aos porcionis-
des pontifícias, de onde provinha a maioria dos mes- tas em 1865, e deixou de leccionar os preparatórios
tres». A partir de 1903 o curso teológico foi alargado aos colegiais em 1896. Para a educação de meninas
para quatro anos, com a introdução de cadeiras que houve na diocese, no século xix, dois colégios famo-
proporcionassem aos ordinandos «os conhecimentos sos: o das Ursulinas, que funcionou entre 1851 e
fundamentais de diversas matérias que os habilitas- 1910 no antigo colégio universitário de São José dos
Marianos; e o de Santa Joana, em Aveiro, que o bis-

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COIMBRA

po Bastos Pina entregou, em 1884, à direcção das cente Ferrer (1835-1870), pelo padre João Pinto da
Terceiras Dominicanas. Depois da implantação da Gama (1871-1905), Dr. António Vasconcelos (1905-
República os colégios femininos voltaram a instalar- -1935) e cónego José Rodrigues Amado (1936-
-se em Coimbra na década de 30: o da Rainha Santa, -1973). Com a criação da Academia de São Tomás,
dirigido pelas religiosas de São José de Cluny, e o de publicou-se entre 1883 e 1893, como seu órgão ofi-
São José, dirigido pelas Dominicanas. Para rapazes cial, a revista Instituições Christãs. Além das activi-
teve a diocese, depois de 1929, o Colégio Mendes dades académicas, insere documentação da Igreja
Pinheiro, na Figueira da Foz, depois transformado universal e diocesana, sendo fundamental para o es-
em seminário menor. Em 1961, D. Ernesto Sena de tudo do bispado na segunda metade do século xix.
Oliveira fundou, em Coimbra, o Colégio de São Teo- Sucedeu-lhe o Boletim Mensal do Governo Eclesiás-
tónio que, além dos cursos pré-primário, primário, tico da Diocese de Coimbra, com carácter oficial, de
secundário e complementar, serve ainda de residên- 1893 a 1905; e a Revista Eclesiástica: Jornal Oficial
cia universitária. Também os Jesuítas dirigem na da Diocese de Coimbra, de 1905 a 1908, com perio-
diocese o colégio apostólico de Cernache, onde mi- dicidade quinzenal. Em 1915 começou a publicar-se
nistram o curso liceal. 6.6. Boletins oficiais, revistas e o órgão oficial Boletim da Diocese de Coimbra, bi-
jornais: Nos finais do século xvin começou a publi- mensal até 1936, continuando depois como publica-
car-se o «calendário» litúrgico para o ordenamento ção anual, nem sempre conseguida nos últimos
da recitação do ofício divino e celebração da missa tempos. Revistas de cultura: de 1870 a 1875 publi-
na diocese. Este calendário teve vários nomes: Ordo cou-se, em fascículos semanais, a Revista de Sciên-
(1783-1870), Almanak Ecelesiasticum (1871-1905) e cias Eclesiásticas sob a direcção do padre António
Calendarium Ecelesiasticum (1906-1973). Escrito Xavier Monteiro, então professor do seminário e
em latim, o «calendário» serviu para a diocese e para depois bispo de Beja; de 1877 a 1878 publicou-se a
o Mosteiro de Santa Cruz, até 1834; para Aveiro e Revista Theológica sob a direcção de um grupo de
Leiria e, ultimamente, para diversas dioceses. Suce- professores da Faculdade de Teologia; a Civilização
deu-lhe o Directório litúrgico, da responsabilidade Cathólica publicou-se de 1878 a 1883, sob a direc-
do Secretariado Nacional de Liturgia. Depois de ção do lente Silva Ramos, pretendendo tratar «as
1834 o «calendário» foi feito pelo ex-oratoriano Vi- altas questões sociais sempre de harmonia com os

Vista geral de Coimbra, a partir do rio.

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COIMBRA

princípios católicos»; seguiu-se-lhe, de 1884 a 1889, sociedade anónima, mudando as instalações para
sob a mesma direcção, Sciência Cathólica, mensal, uma das zonas industriais da cidade. A diocese é
para propagar a filosofia tomista; de 1894 a 1896, o também, desde 1989, a sócia maioritária da Livraria
mesmo Silva Ramos e Fortunato de Almeida publi- Cultura e Fé, instalada no Instituto Justiça e Paz, no
caram a Revista Contemporânea. Com a fundação perímetro universitário, e que tem por fim colocar ao
do CADC (1901) nasceu a revista Estudos Sociais, alcance de todos as obras de cultura e formação hu-
mensal, com publicação até 1919. Três anos depois mana e religiosa. 7. Arte - arquitectura, ourivesaria
foi substituída pela Estudos, como órgão oficial do e pintura: A presença da corte na Alta Idade Média,
CADC, e com vasta colaboração de intelectuais ca- a abastança da mitra, do cabido e de algumas ordens
tólicos do tempo, até à sua suspensão em 1970. Tam- religiosas, a instalação da universidade e a proximi-
bém alguns jornais e boletins paroquiais tiveram pa- dade das pedreiras de Ançã fizeram de Coimbra um
pel de relevo na difusão da cultura católica no último dos centros mais ricos em imóveis, estatuária e arte-
século. De 1878 a 1904 publicou-se o bisemanário factos religiosos. Do pré-românico ou moçárabe*
(diário de 1892 a 1894) A Ordem, de carácter reli- existe na diocese o mais significativo exemplar de
gioso integrista, que teve como directores Silva Ra- arquitectura religiosa: a igreja de Lourosa, de tipo
mos, Fortunato de Almeida e Abúndio da Silva. De basilical, datada de 912. Igualmente do românico
1912 a 1919, os estudantes universitários católicos possui Coimbra o modelo mais perfeito e acabado: a
publicaram O Imparcial, com carácter formativo e Sé Velha, construída a partir de 1162, por iniciativa
militante, sob a direcção de M. Gonçalves Cerejeira. do bispo D. Miguel Salomão. É obra dos arquitectos
Em 1916, como órgão da Liga da Boa Imprensa, en- Roberto Bernardo e Soeiro. Na mesma época cons-
tão criada pelo bispo Coelho da Silva, aparece o truíram-se as igrejas do Salvador (1179) e de São
Amigo do Povo, de feição popular. Foi seu fundador Tiago (sagrada em 1206) e outros três templos, en-
o cónego Martins Madeira e continua ainda hoje a tretanto desaparecidos: São Cristóvão, São Barto-
sua publicação com uma tiragem de 40 000 exempla- lomeu e Santa Justa-a-Velha. A época gótica está
res. Publica este semanário, ininterruptamente desde representada nas igrejas de Santa Clara-a-Velha
1917, a crónica «Ao calor da fogueira / A sombra do (1292), de Santa Maria de Alcáçova de Montemor-
castanheiro», possivelmente a mais antiga coluna -o-Velho, na Capela de São Pedro de Arganil, nos
jornalística do país. Como órgão do Centro Católico claustros da Sé Velha (1218) e de Celas (século X I I I ) ,
nasceu, em 1922, o Correio de Coimbra, que con- e sobretudo no retábulo flamejante da capela-mor
tinua a publicar-se como semanário diocesano e é da Sé Velha (depois de 1498), obra em madeira po-
fonte fundamental para o estudo da diocese depois licromada dos flamengos Olivier de Gand e Jean de
de 1920. Outros jornais marcaram ainda presença, Ypres. O Renascimento trouxe a Coimbra artistas
nomeadamente O Dever (1929) na Figueira da Foz e de grande qualidade, como João de Ruão e Nicolau
Boa Nova (1935) em Cantanhade, ambos ainda em Chanterene que, com os portugueses Diogo de Casti-
publicação. Entre os boletins paroquiais destacam-se lho, Marcos Pires, Tomé Velho e Tomé Novo trans-
o Notícias de Penacova (1933), hoje com publicação formaram em arte a pedra de Ançã. São destes mes-
suspensa; A Luz, que foi de várias paróquias associa- tres as obras-primas dos túmulos dos reis, do púlpito
das e hoje se publica como órgão do arciprestado de e dos claustros de Santa Cruz. Da época, sendo im-
Ansião; O Paionense, o Jornal de Figueiró dos Vi- possível recordar todas as obras essenciais, refiram-
nhos, a Voz de Serpins, o Varzeense, o Ecos do Alva, -se ainda a Capela de São João de Santa Cruz, as
A Voz da Graça e o Nova Esperança, que marcam pias baptismais da Sé Velha e da Sé Nova (mandadas
presença nomeadamente entre os emigrantes das vá- fazer pelo bispo D. Jorge de Almeida), a Porta Espe-
rias zonas da diocese. Nos últimos anos, as regiões ciosa da Sé Velha, o majestoso edifício da Sé Nova
pastorais do Sul e do Nordeste começaram também a (estilo jesuítico) e, fora de portas, as igrejas dos An-
publicar os seus boletins informativos. 6.7. Tipogra- jos (Montemor-o-Velho), Ega e Redinha, a capela
fias e livrarias: A primeira tipografia propriedade da dos Silvas (na Igreja de São Marcos), a capela da
diocese foi instalada, no seminário, em 1886, para Varziela, o retábulo da matriz de Cantanhede e o
imprimir a revista Instituições Christãs, os docu- mausoléu da igreja de Góis. Os séculos xvii e xvni
mentos do prelado e as publicações de alguns pro- estão ainda bem representados em obras como a
fessores. Em 1920, no Largo da Feira, junto à Sé Igreja de Santa Clara-a-Nova ou o neoclássico edifí-
Nova, fundou-se a Gráfica Conimbricense, tendo a cio do seminário diocesano (1748). Algumas igrejas,
diocese a quota maioritária. Aí se imprimiam os jor- nomeadamente a sé, e os conventos de clausura pos-
nais diocesanos e outras publicações de carácter reli- suíam valiosas peças de ourivesaria religiosa. No fi-
gioso. Em 1944 a diocese assumiu por inteiro a em- nal do século xix, o bispo Bastos Pina organizou um
presa, transformando-a na Gráfica de Coimbra que museu de arte sacra, juntando ao tesouro da sé mui-
se instalou no Bairro de São José, na cerca do semi- tas peças vindas dos conventos extintos, formando
nário. Dirigida até 1969 por monsenhor Francisco de um dos mais ricos espólios de ourivesaria litúrgica
Assis Figueiredo e, a partir daí, pelo padre Valentim de toda a Europa que, em 1911, passou para a posse
Marques, tornou-se numa das melhores tipografias do Estado. No campo da pintura, a época de maior bri-
do país, compondo e imprimindo jornais e revistas, lho em Coimbra é o século xvi. Além dos bispos
obras literárias e científicas, livros litúrgicos, bíblias D. Jorge de Almeida, D. João Soares e D. Afonso de
(mais de um milhão de exemplares em diversas lín- Castelo Branco que encomendaram, para a sé e para o
guas) e outras publicações de divulgação da cultura paço, obras aos melhores artistas da época, também
católica. Em 1989 a tipografia assumiu o estatuto de as ordens religiosas enriqueceram os novos colégios

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COIMBRA

que adoptaram o hábito das Eremitas de Santo Agos-


tinho. Os monges beneditinos tiveram mosteiros em
Semide e Seiça (Figueira da Foz) e, em Coimbra, o
mais amplo dos colégios universitários. As Benediti-
nas ocuparam, em 1183, o mosteiro de Semide, onde
permaneceram até à morte da última monja em
1890. Os Cistercienses marcaram presença em Seiça
(a partir de 1193), como filial de Alcobaça*, a cujo
abade prestava «sujeição e homenagem»; e em São
Paulo de Almaziva ou de Frades, a partir de 1220.
O ramo feminino cisterciense esteve em Lorvão
(1205) e Celas (fundado pela infanta D. Sancha em
1219). Os Dominicanos* chegaram a Coimbra antes
de 1227, estabelecendo-se na Figueira Velha (mar-
gem direita do Mondego), passando em 1566 para a
Rua da Sofia, onde tiveram também colégio univer-
sitário. Os Franciscanos* chegaram em 1217, tendo
o primeiro eremitério em Santo Antão dos Olivais,
onde professou Santo António; em 1247 transferi-
ram-se para o Convento de São Francisco da Ponte;
tiveram também convento em Montemor-o-Velho
(1645). O ramo feminino teve conventos em Figueiró
Foto de D. João Alves, bispo de Coimbra (1976-). In Boa dos Vinhos (1554), Montemor (1505) e depois San-
Nova, n.° 810, Maio de 1995, pág. 10. delgas (1691). As Clarissas* tiveram conventos em
Santa Clara-a-Velha, de onde passaram para Santa
e igrejas com pinturas de apreciável valor, hoje mui- Clara-a-Nova (1649), aí permanecendo até 1891; no
tas delas no museu da cidade. Além de Vasco Fer- Louriçal (Pombal) a partir de 1640, onde, depois de
nandes e Cristóvão de Figueiredo, representados em curta ausência no tempo da República, ainda perma-
obras ainda existentes em Santa Cruz, podem citar- necem; e em Vila Pouca da Beira (início do sécu-
-se nomes como Belchior da Fonseca (1553-1583), lo xix), onde estiveram até à extinção em 1889. Os
Bernardo Manuel (1558-1607) ou, mais tarde, o je- Carmelitas Descalços* tiveram convento no Buçaco
suita Manuel Henriques (7-1654). No século xvin, (1628) e colégio universitário em Coimbra. As Car-
entre outros, destacou-se o italiano Pasquale Parente melitas entraram em 1739, habitando o Convento de
que deixou obras de grande mérito em Lorvão, no Santa Teresa (1744) até 1910, e a ele regressando em
seminário e na Igreja de São Bartolomeu. Actual- 1949. As Carmelitas Calçadas chegaram a Tentúgal
mente merece destaque a obra de monsenhor Nunes em 1569, extinguindo-se o convento com a morte da
Pereira que, além de numerosos vitrais, tem grava- última professa em 1898. Os Jesuítas chegaram em
do valiosas peças em madeira, nomeadamente vias- 1542, tendo construído o Colégio de Jesus (1547) e
-sacras, para muitas igrejas da diocese. 8. Espiritua- tomado conta do Colégio das Artes (1555); expulsos
lidade. 8.1. Ordens religiosas: Antes da invasão em 1759, regressaram em 1832; de novo afastados
árabe, havia na diocese de Coimbra dois mosteiros: em 1834, regressaram em 1871. Antes do período
Vacariça e Lorvão, ambos fundados no século vi e republicano é de referir ainda a presença na diocese
que, depois do Concílio de Coiança (1055), adopta- dos Jerónimos, com convento em São Marcos
ram a Regra de São Bento. Tiveram destinos dife- (1491) e colégio universitário na cidade; os Lóios,
rentes: o da Vacariça, doado à Sé de Coimbra por que administraram o hospital real e tiveram colégio;
D. Raimundo e D. Urraca (1094) com todos os seus e as ordens militares de Cristo e de Avis, igualmente
bens, passou, em 1557, para os Eremitas de Santo com colégios universitários. Actualmente oito con-
Agostinho, já então em grande decadência, tendo gregações masculinas têm actividade na diocese: Ca-
desaparecido completamente; o de Lorvão, também puchinhos (Igreja de Santa Justa); Franciscanos
dado à sé por D. Henrique e D. Teresa (1109), foi (com casa e igreja na Avenida Dias da Silva); frades
reformado em 1205, saindo os Beneditinos* e en- menores conventuais (paróquia de Santo António
trando as Cistercienses*, que ali permaneceram até dos Olivais); Jesuítas, com colégio (Cernache), cen-
à morte da última freira em 1887. Depois da segun- tro universitário e casa de retiros; Dehonianos, com
da reconquista, multiplicaram-se os mosteiros e seminário; Combonianos, igualmente com seminário
conventos, com influência decisiva na fixação de po- e centro de animação missionária; os Espiritanos*,
pulações e na evangelização. Os Cónegos Regrantes com residência e animação missionária; e os Missio-
de Santo Agostinho* tiveram a sua principal casa em nários da Consolata, com casa na Figueira da Foz.
Santa Cruz (Coimbra) e outros mosteiros em São As congregações religiosas femininas dedicam-se à
Jorge (margem esquerda do Mondego) e Folques vida contemplativa (Carmelitas de Coimbra e Claris-
(Arganil). As Cónegas Regrantes tiveram mosteiros sas do Louriçal), ao ensino (São José de Cluny, Do-
ao lado de Santa Cruz (São João das Donas), que ter- minicanas e Doroteias), à educação da infância des-
minou com a reforma dos Crúzios no século xvi, e protegida (Irmãs do Amor de Deus e Irmãs do Bom
na margem esquerda do rio, de onde passaram para Pastor), a actividades de saúde (Filhas da Caridade
São Martinho e, em 1612, para Sant'Ana, altura em de São Vicente de Paulo, Franciscanas Hospitaleiras,

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COIMBRA

Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, Servas vino Espírito Santo, incrementado em Coimbra pela
de Maria, Filhas de São José e Hospitaleiras do Sa- Rainha Santa, espalhou-se por várias zonas da dio-
grado Coração de Jesus) e a actividades com estu- cese, de onde terá passado para os Açores. A devo-
dantes universitárias (Coração de Maria, Teresianas, ção ao Sagrado Coração de Jesus, já presente em
Irmãs de Jesus, Maria e José, etc.). De instituição séculos anteriores, teve grande difusão na segunda
diocesana devem referir-se as Criaditas dos Pobres, metade do século xix, por acção dos Jesuítas que,
com vasta obra assistencial em vários lugares da dio- de paróquia em paróquia, organizaram o Apostolado
cese, e as Missionárias dos Pobres, com centros em da Oração que foi, «pelo menos até ao aparecimento
Cadima e Coimbra. Vários institutos seculares e de da Acção Católica*, o movimento que mais positiva-
perfeição estão também presentes na diocese: Opus mente influenciou a Igreja portuguesa durante largas
Dei (agora prelatura pessoal), Cooperadoras da Fa- dezenas de anos». De carácter menos universal são
mília, Auxiliares do Apostolado, Instituição Teresia- as devoções ao Senhor da Serra (Semide) e à rainha
na e, de fundação diocesana, os institutos femininos Santa Isabel (Coimbra). Referência merece ainda a
da Sagrada Família e Servas do Apostolado. 8.2. De- devoção às Almas do Purgatório, visível em cente-
voções e piedade popular: Desde a Alta Idade Mé- nas de «alminhas» erguidas pela piedade popular à
dia que se documenta, na diocese, a devoção euca- beira dos caminhos, nas muitas irmandades e na ce-
rística, com a festa do Corpo de Deus instituída em lebração do «mês das Almas» em Novembro. 9. As-
1295, procissões anuais na cidade e noutras paró- sistência: A assistência aos carenciados foi uma acti-
quias, e a criação, em todas as freguesias, de irman- vidade permanente da Igreja, quer através do bispo,
dades do Santíssimo. Igualmente documentada é a quer do cabido da catedral, quer das ordens religio-
devoção mariana (a Catedral de Coimbra é dedicada sas, quer das irmandades* e confrarias, quer enfim
a Santa Maria desde tempos imemoriais; o cabido das Misericórdias. O Livro das kalendas e o Livro
cantava a Salve Regina desde meados do século XIII; preto dão-nos testemunho da actividade assistencial
e a solenidade da Imaculada Conceição foi instituída do cabido que, por exemplo, no Dia de Natal de cada
em 1320), que se consubstancia não apenas nas nu- ano, distribuía pelos pobres da cidade «o azeite que
merosas irmandades mas também nos inúmeros san- restasse do necessário para iluminar o Santíssimo
tuários espalhados por toda a diocese. O culto do Di- durante dois anos». Igualmente nos aparecem dádi-
vas do cabido para o dote de casamento de donzelas
pobres ou para fins sociais, como seja o conserto de
pontes. As ordens religiosas tiveram também rele-
vante actividade assistencial, construindo e dirigindo
albergarias, hospitais e gafarias, e acolhendo velhos e
abandonados. De realçar, na diocese, a actividade
dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz que, receben-
do dos reis grandes doações, distribuíam as terras
pelos colonos pobres, dando origem a diversas po-
voações. O primeiro prior, São Teotónio, fundou, em
1150, um hospital-albergaria, onde recolhia necessi-
tados e abandonados, incluindo os mouros feitos pri-
sioneiros nas razias contra os muçulmanos. Além
disso, eram diariamente dadas esmolas à porta do
mosteiro, bem como distribuídas 24 rações, primeiro
a viúvas ou donzelas carenciadas e, depois do sécu-
lo xvi, «a vinte e quatro estudantes pobres». Igual-
mente documentada é a acção social das beneditinas
de Semide, «distribuindo as suas terras e coutos pe-
los colonos para que os cultivassem», bem como a
da rainha Santa Isabel, que junto ao Convento de
Santa Clara mandou construir duas enfermarias, uma
para homens e outra para senhoras. A acção caritati-
va redobrava em épocas extraordinárias: aquando da
peste de 1599, o bispo D. Afonso de Castelo Branco
contribuía com 60 000 réis mensais para o tratamen-
to dos doentes albergados numa enfermaria em São
Sebastião (Olivais); e o Mosteiro de Santa Cruz dava
semanalmente doze alqueires de pão. Merece desta-
que também o papel das Misericórdias que, no sé-
culo xvi e depois, se fundaram em todos os conce-
lhos e outras terras populosas da diocese, «prestando
assistência aos pobres e auxílio aos viandantes» e to-
mando iniciativas sociais de vulto, como era o caso
da Santa Casa da vila de Pereira, que emprestava di-
nheiro aos agricultores para o cultivo dos campos.
Capa da Revista Eclesiástica: Jornal Oficial da Diocese Em Coimbra nasceram outras obras que merecem re-
de Coimbra, 3." Ano, n.° 49, 5 de Janeiro de 1908.
398
COLEGIADAS

ferência: o bispo D. João de Melo (1684-1704) fun- termo rural, visto nele não se encontrarem quaisquer
dou o recolhimento do Paço do Conde, destinado a outras igrejas. Em geral, estas colegiadas estavam
mulheres regeneradas e a jovens em risco moral; em sujeitas à autoridade do bispo da respectiva diocese,
1804 o cónego Caetano Seixas fundou o Colégio dos a não ser que tivessem, como a de Santa Maria de
Órfãos, que ainda hoje existe, e, em 1823, o Colégio Alcáçova de Santarém, privilégios que as pusessem
das Órfãs; D. Manuel Bastos Pina mandou construir, na dependência directa da Santa Sé ( B O T Ã O - Uma
em 1897, o primeiro bairro operário do país; D. Ma- instituição, p. 46); contudo, a de Santa Maria da Oli-
nuel Coelho da Silva fundou a Cozinha Económica veira de Guimarães, devido a uma longa tradição de
que, ainda hoje, serve mais de quinhentas refeições independência e à ambiguidade dos acordos que es-
diárias aos carenciados da cidade; em 1939, o padre tabeleceu posteriormente com os arcebispos de Bra-
Américo fundou a Casa do Gaiato, onde se recebe- ga*, sustentou com eles litígios repetidos no tocante
ram e recebem centenas de rapazes da rua; no início ao direito de visita ao longo de praticamente toda a
da década de 70 nasceram, também para crianças Idade Média e Antigo Regime, com resultados di-
abandonadas, o Lar de São Martinho e a Comunida- versos consoante as diferentes conjunturas ( S O A R E S -
de Juvenil de São Francisco. Actualmente, além de Conflitos, p. 11-29). Tinham título de «insignes» as
inúmeras obras de índole social que continuam a colegiadas mais antigas e de mais vetustas tradições,
funcionar, destaca-se a Caritas Diocesana que pre- dotadas de edifícios imponentes e de preciosas relí-
tende ser, com a criação de grupos paroquiais, a ex- quias ( C O S T A - Colegiadas, p. 99); só estas sobrevi-
pressão organizada da caridade na Igreja de Coimbra. veram à primeira vaga de extinções da centúria de
ANTÓNIO DE JESUS RAMOS Oitocentos, tendo contudo sido também suprimidas
algumas décadas mais tarde. Apenas a de Guimarães
BIBLIOGRAFIA: CARDOSO, A. Brito - A diocese de Coimbra: Esboço históri- se manteve até ao alvorecer da República, sucum-
co. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1995. IDEM - Sínodos e constituições
diocesanas da diocese de Coimbra. Lúmen. 51 (1987) 37-41, 45. IDEM - bindo após a Lei de Separação da Igreja do Estado.
O seminário de Coimbra, colégio e residência universitária. Coimbra, 1. Origens e objectivos das colegiadas: Quando, du-
1966. CARVALHO, Joaquim Ramos de; PAIVA, José Pedro de Matos - Re- rante a reforma gregoriana, se procurou estender ao
portório das visitas pastorais da diocese de Coimbra: Séculos XVII, xvin e
xix. Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. 7 (1985) 11-214. clero secular os benefícios da vida em comum vivida
COSTA, Avelino de Jesus da; RODRIGUES, Manuel Augusto, dir. - Livro pelos monges, simples igrejas paroquiais foram do-
Preto da Sé de Coimbra. Coimbra: Arquivo da Universidade, 1999. 3 vol.
DIAS, Pedro - Coimbra, arte e história. Instituto da História da Arte, 1988.
tadas de colégios clericais que copiavam os cabidos
LAVRADOR, João E. Pimentel - Pensamento teológico de D. Miguel da An- das sés (v. C A B I D O ) . Pela mesma altura e seguindo o
nunciação. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1995. MADAIL, A. da Rocha - caminho inverso, certos mosteiros cujo rigor de vida
As informações paroquiais da diocese de Coimbra pedidas pela Acade-
mia Real de História em 1721. Coimbra: Arquivo da Universidade, 1934.
e fecundidade espiritual se haviam esgotado foram
RAMOS, A. Jesus - O bispo de Coimbra D. Manuel Correia de Bastos Pi- reduzidos a igrejas seculares de tipo colegial. Em
na. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1995. RODRIGUES, Alice C. Godinho - Portugal, este foi o caso, nomeadamente, das cole-
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giadas de Santiago de Antas, São Victor, Santo An-
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e o cabido da Sé de Coimbra. Coimbra: Arquivo da Universidade, 1987. de Rates, todas situadas no Entre Douro e Minho
SEMINÁRIOS (OS) da diocese de Coimbra. Coimbra, 1959. VASCONCELOS,
António G. Ribeiro de - Nota chronológica bibliográfica das constitui- ( M A R Q U E S - A arquidiocese, p. 481 -485); a mais cé-
ções diocesanas portuguesas. O Instituto. 58 (1911) 491-505. lebre dentre estas foi , contudo, a de Santa Maria da
Oliveira, em Guimarães, transformada de cenóbio
dúplice em colegiada entre 1107 e 1110 ( R A M O S -
COLEGIADAS. As colegiadas eram igrejas em que se O mosteiro, p. 85). Já para as colegiadas do Centro e
prestava a Deus um culto solene, semelhante ao que Sul do país, é difícil afirmar com certeza se foram
tinha lugar nas catedrais. Para isso, dispunham de criadas como tal logo após a Reconquista* ou se o
um colégio de clérigos - conhecidos por cónegos, colégio de clérigos lhes foi apenso em data posterior.
raçoeiros ou beneficiados - do qual constavam um Mas o facto de se encontrar, em muitas delas, vestí-
ou mais dignitários (V. DIGNIDADES ECLESIÁSTICAS) e a gios de uma vida em comum primitiva leva a pensar
que se podiam agregar vários tipos de auxiliares. Se que o impulso por trás da sua criação teria sido ain-
examinarmos o catálogo de todas as igrejas autori- da, em todo o caso, o ideal de vita apostolica. Com
zadas pelo papa a contribuir para o esforço de guer- efeito, junto das colegiadas de Santa Maria de Alcá-
ra de D. Dinis em 1320-1321 mediante o pagamento çova de Santarém e São Pedro de Torres Vedras
de um décimo das suas rendas ( A L M E I D A - História, existiam quintas fechadas sobre si com várias casas
vol. 4, p. 90-144), o mais antigo documento que nos onde os respectivos priores e cónegos viviam em
permite ter uma visão de conjunto do território na- conjunto ( c f . C O S T A - Inventário, p. 7; R O D R I G U E S -
cional, podemos constatar que, em Portugal, as cole- As colegiadas, 234). Já em Santa Maria da Oliveira
giadas eram pouco numerosas no Norte do país, sen- de Guimarães, a comunidade de vida era ainda mais
do a organização eclesiástica nessa região baseada intensa, pois entre os seus edifícios constavam, além
em mosteiros e numa verdadeira multidão de peque- do claustro, um refeitório e um dormitório; contu-
nas paróquias rurais. Em contrapartida, elas domina- do, os cónegos não professavam votos solenes nem
vam no Centro e no Sul, encontrando a sua maior deixavam de poder possuir bens próprios, perma-
expressão no bispado de Lisboa: aí, todas as sedes necendo por isso seculares ( R A M O S - O mosteiro,
de concelho eram dotadas, pelo menos, de uma cole- p. 89-90). Com o correr do tempo, porém, o entu-
giada, dispondo as vilas maiores e as cidades de vá- siasmo pelo quotidiano partilhado e frugal foi es-
rias; todas exerciam o seu múnus pastoral não só so- friando e, tal como nas catedrais, procedeu-se à divi-
bre uma parte (ou a totalidade, consoante os casos) são dos bens das colegiadas em duas mesas: a prioral
do centro urbano mas também sobre o respectivo

399
COLEGIADAS

e a capitular. Isto aconteceu em 1191 em Santa Ma- quando não justificadas por motivos válidos (velhice,
ria de Alcáçova de Santarém ( C O S T A - Inventário, doença, serviço da Igreja, férias anuais, etc.), eram
p. 7 ; B O T Ã O - Uma instituição, p. 4 4 ) , em 1 2 2 3 em penalizadas com a supressão das distribuições ordiná-
Santa Maria da Oliveira de Guimarães ( M A R Q U E S - rias ou o pagamento de multas, existindo oficiais, os
A arquidiocese, p. 5 1 7 ; R A M O S - O mosteiro, p. 9 2 - apontadores, cuja função era precisamente registar
-93), em 1332 em São Pedro e em 1387 em São Mi- tais ocorrências para os repartidores poderem proce-
guel de Torres Vedras ( R O D R I G U E S - As colegiadas, der com justiça à distribuição dos rendimentos. Além
p. 2 3 5 - 2 3 6 ) . Pela mesma ocasião ou um pouco mais de assegurarem este serviço do coro, tão absorvente
tarde, a vida em comum cessou e o prior e os cóne- quanto fundamental, os cónegos passavam ainda uma
gos passaram a encontrar-se apenas no decorrer dos boa parte do seu tempo a celebrar ofícios pelos mor-
ofícios ou nas reuniões capitulares. As colegiadas tos, desde as simples missas de corpo presente e os
criadas mais tardiamente já não tiveram, pois, como enterramentos pedidos pelos defúntos mais pobres até
objectivo promover junto do clero paroquial o modo aos aniversários e capelas perpétuos estabelecidos pe-
de vida da Igreja primitiva. Houve-as que foram fun- los mais ricos, que incluíam a celebração da eucaris-
dações de prestígio, realizadas por poderosos que tia, a ida junto do túmulo com cruz e água benta e,
pretendiam dar ao culto divino nos seus senhorios a por vezes, a assistência às horas canónicas, entre ou-
dignidade e o esplendor que ele tinha nas sedes das tros rituais. Ora, se muitas fúndações de capelas pre-
dioceses. Podemos citar como exemplos deste tipo viam a contratação de um capelão próprio, geralmente
as de Santa Maria de Bragança e de Barcelos, ambas da linhagem do fundador, algumas delas, tal como os
instituídas pelo arcebispo de Braga no século xv, sob aniversários, ficavam a cargo da comunidade capitu-
a influência do respectivo duque-conde, que também lar, sendo os respectivos rendimentos divididos pelos
foi certamente responsável pelo engrandecimento da beneficiados efectivamente presentes nas cerimónias
de Chaves, situada noutro dos seus muitos senhorios ( M A R T I N S - A colegiada, p. 85). E, a julgar pelos li-
( M A R Q U E S - A arquidiocese, p. 4 8 6 - 4 8 7 ) . Os pró- vros de aniversários conhecidos para diversas cole-
prios soberanos não se escusaram de movimentar in- giadas portuguesas ( C O S T A - Inventário; P E R E I R A -
fluências para elevar a essa dignidade igrejas suas. Livro de aniversários da Igreja; P E R E I R A - Livro de
Assim, em 1480, o príncipe D. João, futuro rei Aniversários de Santa Maria de Alcáçova), raro era
D. João II, criou uma colegiada na Igreja de São Sal- o dia que não estava ocupado por uma, ou mais, des-
vador de Viana do Castelo, de que era padroeiro tas celebrações. A acrescentar a isto, como a maior
( R O D R I G U E S - O Entre Minho e Lima, p. 1 1 5 ) ; em parte das colegiadas eram igualmente igrejas paro-
Lisboa, D. João III patrocinou a erecção da Colegia- quiais, também tinham como função ocupar-se da
da de Nossa Senhora da Conceição em 1557, e a Ca- cura das almas. Esta podia ter estado, originariamen-
pela Real, depois de feita colegiada por Clemen- te, ligada ao priorado ou a alguma outra prebenda
te XI, chegou mesmo a basílica patriarcal ( C O S T A - específica, mas tornou-se depois, geralmente, um en-
Colegiadas, p. 100). Mas se houve colegiadas como cargo do colégio no seu conjunto, que exercia essa
esta última, promovidas a uma dignidade superior, função rotativamente, caso da colegiada de Piães
outras resultaram, pelo contrário, da despromoção de ( C O S T A - História, p. 444-445) ou recrutava um vi-
catedrais: a de Miranda, por exemplo, foi fundada gário-cura para a desempenhar, pagando-lhe um sa-
pelo papa em 1780 para suceder à respectiva sé de- lário, como acontecia em Barcelos ( M A R Q U E S - A ar-
pois da junção desta diocese à de Bragança e da quidiocese, p. 504-505). Tal sacerdote, obrigado a
transferência para aquela cidade dos respectivos bis- residência, estava encarregado da divulgação da
po e cabido; nunca chegou, porém, a constituir-se, doutrina e do controlo da moralidade pública, da ad-
ficando a catedral de Miranda desprovida de prelado ministração dos sacramentos e da celebração, aos
e de cónegos ( C A S T R O - Bragança, p. 9 5 - 9 6 ) . Por domingos e dias de festa, da missa pro populo con-
fim, algumas colegiadas foram a resposta dada pelos sagrada a todos os fiéis. Subsidiariamente, as cole-
bispos aos pedidos dos fiéis para que a cura anima- giadas ocupavam-se ainda de outras tarefas de gran-
rum das suas paróquias, negligenciada por sacerdo- de importância cultural e social, como o ensino -
tes absentistas, fosse convenientemente assegurada; desde o IV Concílio de Latrão, de 1215, eram obri-
pelo menos assim justificou D. Justo Baldino, bispo gadas a manter escolas para a instrução de meninos,
de Ceuta e da comarca de Valença, a (re) fundação e de facto encontramos mestres-escolas em algumas
da Colegiada de São Salvador de Viana do Castelo a delas, como veremos adiante - e a assistência aos
que procedeu três anos depois dela ter sido criada pobres, órfãos, peregrinos, etc., de que, todavia, pra-
pelo príncipe D. João, como dissemos, sem o seu ticamente não ficaram nenhuns vestígios na docu-
beneplácito ( R O D R I G U E S - O Entre Minho e Lima, mentação chegada aos nossos dias. 3. Estrutura e
p. 116). 2. Funções das colegiadas: A principal composição das colegiadas: Para desempenhar todas
função das colegiadas era promover o culto divino estas funções, as colegiadas dispunham de diversas
com a maior solenidade. Assim, era obrigação do categorias de membros, cujo número variou ao lon-
prior e dos cónegos participar nas horas canónicas go dos tempos, em função das necessidades e dos re-
- matinas, laudes, prima, tercia, sexta, noa, véspe- cursos disponíveis. A cabeça situava-se o prior, che-
ras e completas - que, a intervalos irregulares, se fe da comunidade e único dignitário nas colegiadas
sucediam ao longo de todo o dia e de uma parte da menores. Apresentado pelo padroeiro e confirmado
noite, e ainda na missa capitular, dedicada aos ben- pelo bispo era, no caso das colegiadas de padroado
feitores do cabido* e celebrada pelo hebdomadário real - as que nos são mais bem conhecidas - , um
após a hora de tercia. As ausências a estes ofícios, personagem cortesão, clérigo ou capelão da rainha

400
COLEGIADAS

ou do rei, a quem estes pretendiam recompensar por ( R O D R I G U E S - O Entre, p. 114 e 116). Uma quarta al-
serviços prestados ou a prestar no futuro, ajudando-o ternativa surge ainda como possível: nos estatutos
a alcançar uma prebenda com rendimentos razoáveis que redigiram por volta de 1348, os cónegos da Igre-
e sem obrigações demasiado pesadas. Com efeito, ja de São Pedro de Almedina de Coimbra, ao instala-
apenas competia aos priores celebrar as missas das rem-se nela após a morte pela peste da totalidade dos
principais festas litúrgicas, gerir os bens da mesa anteriores membros do cabido, arrogaram-se o direi-
prioral (quando não os arrendavam na totalidade, li- to de eleger todos os beneficiados, incluindo o prior
mitando-se a receber a respectiva renda) e represen- e o chantre; ignoramos, contudo, se tal decisão surtiu
tar a comunidade nas suas relações com o exterior. efeito ( P E R E I R A - As constituições, p. 224). Regra
Daí que, com frequência, acumulassem esse com geral, as dignidades e cónegos eram escolhidos entre
outros cargos dentro ou fora da Igreja: conezias ou os familiares e dependentes dos priores, os membros
dignidades em catedrais, vicariatos, ofícios do de- inferiores das próprias colegiadas ou ainda outros
sembargo régio, etc. ( R O D R I G U E S - As colegiadas, clérigos de que desconhecemos os motivos da desi-
p. 2 1 3 - 2 1 7 ; B O T Ã O - Uma instituição, p. 1 1 0 - 1 1 1 ; gnação. As suas origens geográficas e sociais são-
C O N D E - O Médio, p. 7 0 9 ) . Os restantes dignitários -nos, na maior parte dos casos, desconhecidas, mas
existentes nas colegiadas maiores - chantre, sub- quando as podemos identificar apontam para meios
-chantre, tesoureiro, mestre-escola - e os simples có- locais relativamente prósperos: entre os seus pais, ir-
negos eram designados, ou apenas pelos priores, co- mãos, tios, filhos e genros contam-se pequenos pro-
mo acontecia no bispado de Lamego* e em Torres prietários rurais, artesãos, trabalhadores liberais, to-
Vedras ( C O S T A - História, p. 2 9 1 ; R O D R I G U E S - As dos solidamente implantados nos centros urbanos
colegiadas, p. 217), ou por estes juntamente com os em que se situavam as colegiadas e nas terras em seu
capitulares, como em Guimarães ( R A M O S - O mos- redor mas também, e sobretudo, outros clérigos des-
teiro, p. 101), ou pelos prelados das dioceses a que sas e doutras igrejas, pois os laços familiares eram
pertenciam, como em Valença e Viana do Castelo um dos principais factores de promoção na carreira
eclesiástica ( R O D R I G U E S - As colegiadas, p. 220-221;
C O N D E - O Médio, p. 708). Em princípio, deviam ser
clérigos de ordens sacras, mas alguns eram tão jo-
vens que nem as podiam ainda receber ( R O L O -
A colegiada, p. 488) e outros permaneciam minoris-
tas mesmo depois de atingida a idade canónica, aca-
bando por abandonar a vida eclesiástica - como
aconteceu com Rodrigo de Melo, mestre-escola de
Santa Maria de Alcáçova de Santarém no sécu-
lo XVIII, que veio a suceder na sua casa, tornando-se
conde de São Lourenço e alcaide-mor de Elvas (SIL-
VA - Memórias, p. 115-116). Era entre estes capitula-
res de pleno direito que se escolhiam os diferentes
oficiais encarregados cada ano da condução dos ne-
gócios materiais destas igrejas: os apontadores do
coro, os recebedores das rendas, os priostes ou pre-
bendeiros, os contadores, os solicitadores e procura-
dores do cabido, os vedores e escrivãos da fazenda,
etc. ( O L I V E I R A - A insigne, p. 424; R O D R I G U E S - As
colegiadas, p. 222-224; B O T Ã O - Uma instituição,
p. 138, nota 55). Para além deles, todavia, as cole-
giadas tinham ainda outros membros que, apesar de
desempenharem praticamente as mesmas funções
no coro, não tinham voz no capítulo nem recebiam
proventos equivalentes. Com efeito, o crescimento
dos pedidos de ofícios pelos defuntos e o absentis-
mo dos cónegos levou a que se procurasse manter o
esplendor do culto nas colegiadas mediante o recur-
so à subdivisão das prebendas e à contratação de au-
xiliares e substitutos. Assim, em Santa Maria da Oli-
veira de Guimarães, já no século xiu se encontram
dez porcionários ao lado dos trinta cónegos preben-
dados, e em finais de Quatrocentos a colegiada rece-
be licença papal para dividir mais três prebendas em
seis meias-conezias ( R A M O S - O mosteiro, p. 92;
M A R Q U E S - A arquidiocese, p. 585). Em Torres Ve-
dras, nos séculos xiv e xv, multiplicam-se os capelães
das capelas funerárias e os ecónomos, sendo estes os
substitutos dos raçoeiros ausentes, remunerados com
Fachada principal da Colegiada de Nossa Senhora da uma parte dos rendimentos daqueles; alguns conse-
Oliveira, Guimarães.

401
COLEGIADAS

guiram subir na hierarquia eclesiástica e alcançar comutar os legados pios a que estavam obrigadas e
uma prebenda inteira ( R O D R I G U E S - As colegiadas, regular a aplicação do remanescente dos seus rendi-
p. 2 2 4 - 2 2 7 ) . Ecónomos podiam encontrar-se tam- mentos ( N E T O - O Estado, p. 44, 50). Em Coimbra,
bém na Colegiada de Santa Cruz do Castelo de Lis- por exemplo, foi em 1854 que o bispo suprimiu as
boa na centúria de Quatrocentos ( M A R T I N S - A Cole- colegiadas com rendimentos insuficientes ou aban-
giada, p. 22). No total, quantos clérigos gravitavam donadas pelos seus beneficiados e entregou o respec-
à volta das colegiadas portuguesas? Se o número de tivo espólio e bens remanescentes ao seminário local,
dignidades e cónegos era fixo e pode ser conhecido de onde seguiram para o Arquivo da Universidade
porque a sua alteração implicava cartas pontifícias e/ em 1917; as obrigações dos legados pios foram co-
/ou régias que chegaram, regra geral, até aos nossos mutadas em missas, orações e ofícios celebrados na
dias, o de auxiliares é difícil de determinar pois va- capela do seminário ( C A R D O S O - A diocese, p. 43).
riou segundo os recursos disponíveis. Assim, por Guimarães recebeu, nesse mesmo ano, a visita de
exemplo, no início do século xv, a colegiada de Gui- Alexandre Herculano com o intuito de recolher o
marães tinha 37 cónegos, 22 coreiros e nove oficiais cartório da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira
permanentes, mais os moços do coro; contudo, em e levá-lo para Lisboa, primeiro passo na via da ex-
1435, recebeu autorização papal para reduzir sete co- tinção, ao que os cónegos se opuseram tenazmente;
nezias à medida que fossem vagando, e em 1489 apenas em 1863, na sequência de um longo proces-
mais três, além de poder dividir outras três em so, foram os documentos removidos para a Torre do
meias-conezias, como já vimos ( M A R Q U E S - A arqui- Tombo ( O L I V E I R A - A resistência, p. 1-26). Mas, ape-
diocese, p. 5 3 4 - 5 3 5 , 5 8 5 ) . Em Santa Maria da Alcá- sar de o decreto de 1 de Dezembro de 1869 ter dado
çova de Santarém, o cabido tinha 20 membros desde às autoridades centrais o poder de suprimir todas as
o reinado de Sancho I mas, nos séculos xiv e xv, colegiadas que então subsistissem, a de Guimarães
nunca foram encontrados reunidos mais de 11 simul- foi preservada, tendo sido reorganizada por carta
taneamente ( B O T Ã O - Uma instituição, p. 1 1 7 ) ; em do rei D. Carlos em 1891: passaria a ter um dom
meados do século xvin, porém, já estavam presentes prior com funções paroquiais, sete cónegos com
17, mais quatro meios-cónegos e um vigário-cura (PE- obrigação de ensino e três beneficiados, dos quais
REIRA - Livro de aniversários de Santa Maria de Alcá- um igualmente consagrado ao ensino e dois funcio-
çova, p. 8). Quanto às colegiadas de Torres Vedras, nando como coadjutores do pároco; nela funcionaria
tinham um número bastante mais reduzido de capitu- um pequeno seminário para educação dos rapazes
lares - a de São Miguel, 11 raçoeiros, as de Santa que se destinassem ao sacerdócio. Assim subsistiu
Maria do Castelo e São Pedro, 10 cada, a de São até 1912, quando o governo da República procedeu
Tiago, oito - , sendo os efectivamente presentes me- definitivamente à sua extinção, após a promulga-
nos numerosos ainda; a eles acresciam capelães e/ou ção da Lei da Separação da Igreja do Estado. Em
ecónomos em número impossível de apurar ( R O D R I - 1967, todavia, o arcebispo de Braga, D. Francisco
GUES - As colegiadas, p. 2 1 7 - 2 2 0 ) . E havia colegiadas Maria da Silva, decidiu elevar à dignidade de dom
ainda mais pequenas: Santa Maria de Óbidos tinha prior o padre António Araújo da Costa, e desde en-
oito raçoeiros no século xv; São Tiago da mesma tão a colegiada tem de novo à sua cabeça um dom
vila, sete ( S I L V A - Óbidos, vol. 2 , p. 1 6 8 , 1 7 0 ) ; San- prior mas não dispõe de quaisquer outros digni-
ta Marinha de Lisboa e São Salvador de Valença tários nem de cónegos ( O L I V E I R A - História, p. 123-
não excediam os cinco beneficiados cada uma (PE- -136).
REIRA - Livro de aniversários da Igreja, p. 6 ; R O D R I - ANA MARIA S. A. RODRIGUES
GUES - O Entre Minho e Lima, p. 115, 116); no bis-
pado de Lamego, as de Piães e Barcos tinham quatro, BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA. F o r t u n a t o de - História da Igreja em Portu-
as de Sernancelhe, Armamar, São Martinho de Mou- gal. N o v a ed. Porto; L i s b o a , 1971, vol. 4, p. 90-144. ANDRADE, A. A.
Banha d e - C o l e g i a d a . In ENCICLOPÉDIA portuguesa-brasileira. Lis-
ros e Sendim, três, e a de São Cristóvão de Nogueira boa; Rio d e Janeiro, 1940, vol. 7, p. 122-123. BOTÃO, M a r i a de Fáti-
apenas um ( C O S T A - História, p. 4 4 3 ) . Como o des- ma - Uma instituição medieval de prestígio: a Colegiada de Santa
respeito pela obrigação de residência e o pluralismo Maria de Alcáçova de Santarém. D i s s e r t a ç ã o d e m e s t r a d o apresenta-
da à U N L / F C S H e m 1996. CARDOSO, A. B. - A diocese de Coimbra:
dos benefícios entre as dignidades e os cónegos se Esboço histórico. C o i m b r a , 1995. CASTRO, F. - Bragança e Miranda
mantiveram como o principal problema das colegia- (bispado). Porto, 1947. CONDE, M a n u e l Sílvio A. - O Médio Tejo nos
finais da Idade Média: A terra e as gentes. D i s s e r t a ç ã o d e d o u t o r a -
das mesmo para além do Concílio* de Trento ( R O L O m e n t o a p r e s e n t a d a à U A e m 1997. COSTA, A. D. S o u s a - C o l e g i a d a s .
In DICIONÁRIO de história de Portugal. Dir. Joel Serrão. Porto: Figuei-
- A colegiada, p. 497), não admira que muitas tives- rinhas, 1975, vol. 2, p. 99. COSTA, A. J. - Inventário dos b e n s e obi-
sem chegado ao século xvin bastante desfalcadas tuário de Santa Maria d ' A l c à ç o v a de S a n t a r é m . Boletim da Bibliote-
quanto a recursos humanos e incapazes de manter o ca da Universidade de Coimbra. 36 ( 1 9 8 1 ) . Separata. COSTA, M. G. -
História do bispado e cidade de Lamego. L a m e g o , 1977, vol. 1. GAU-
culto divino com a grandiosidade para a qual haviam DEMET, J e a n - Le g o u v e r n e m e n t local. In GAUDEMET, J e a n ; LE BRAS,
sido criadas. 4. Decadência e extinção das colegia- Gabriel, dir. - Histoire du Droit et des Institutions de l'Eglise en Oc-
das: Foi, contudo, a supressão dos dízimos, em 30 cident. Paris: C u j a s , 1977, vol. 2/8, p. 2. MARQUES, José -A arquidio-
cese de Braga no século xv. Lisboa, 1988. MARTINS, F e r n a n d o Carlos
de Julho de 1832 - primeiro grande golpe desferido R o d r i g u e s - A Colegiada de Santa Cruz do Castelo e a capela de
contra estas instituições pelo governo liberal, privan- D. Isabel de Sousa. D i s s e r t a ç ã o de m e s t r a d o a p r e s e n t a d a à F L U P em
1996. NETO, V. M. P. - O Estado, a Igreja e a sociedade em Portugal
do-as de uma parte considerável dos seus proventos 1832-1911. Dissertação d e d o u t o r a m e n t o a p r e s e n t a d a à F L U C e m
e incapacitando-as de cumprir a sua principal missão 1996. OLIVEIRA, Manuel A l v e s de - História da Real Colegiada de
Guimarães. G u i m a r ã e s , 1978. IDEM - A Insigne e Real Colegiada
- que precipitou a sua decadência. Pela lei de 16 de de Nossa Senhora da Oliveira no seu cerimonial e nas suas festivida-
Junho de 1848, as referidas autoridades arrogaram- des. G u i m a r ã e s , 1981. IDEM - A resistência d o c a b i d o à i n c o r p o r a ç ã o
-se ainda, com autorização dos prelados, o poder de do a r q u i v o da Real C o l e g i a d a de G u i m a r ã e s na Torre do T o m b o , bo-
letim de Trabalhos Históricos. 23: 1-4 ( 1 9 6 3 ) 1-26. PEREIRA, Isaías da
extinguir as colegiadas, recolher os seus arquivos,

402
COLÉGIO PORTUGUÊS EM ROMA

Rosa - A s c o n s t i t u i ç õ e s da Igreja d e S. Pedro d e A l m e d i n a de cerca do núncio em Lisboa, que dava conta aos órgãos da
d e 1348. Revista da Universidade de Coimbra. 31 ( 1 9 8 5 ) 2 2 3 - 2 3 6 .
IDEM - L i v r o d e a n i v e r s á r i o s da Igreja d e Santa M a r i n h a de Lisboa.
Santa Sé* de que «a ocupação principal do padre é a
Revista Municipal de Lisboa. 10 (1940). Separata. IDEM - Livro de política, no sentido de que cada um está ligado a um
a n i v e r s á r i o s de Santa M a r i a d e A l c á ç o v a d e S a n t a r é m e de S a n t i a g o dos partidos de votação e o apoia nas eleições e tam-
de C o i m b r a . Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra. 34
( 1 9 7 8 ) . Separata. RAMOS, C l á u d i a - O mosteiro e a colegiada de Gui- bém no Parlamento ou no Senado, para que depois,
marães (c. 950-1250). 2 vol. D i s s e r t a ç ã o de m e s t r a d o a p r e s e n t a d a à quando esse partido estiver no governo, dê a cada
F L U P e m 1991. RODRIGUES, A n a M a r i a S. A. - A s c o l e g i a d a s de Tor- um uma boa colocação eclesiástica e civil. E é tam-
res Vedras n o s séculos xiv e xv. In ESPAÇOS, gente e sociedade no
Oeste: Estudos sobre Torres Vedras medieval. Cascais: Patrimonia, bém esta a razão pela qual o Governo mantém e quer
1996, p. 195-274. RODRIGUES, Teresa de J e s u s - O Entre Minho e Li- manter escrava a Igreja» ( C A R D O S O - A fundação,
ma de 1381 a 1514 (antecedentes e evolução da comarca eclesiástica p. 296-297). Tinha essa mesma impressão a Irmã
de Valença do Minho). D i s s e r t a ç ã o d e m e s t r a d o a p r e s e n t a d a à F L U P
e m 1997. ROLO, Raul d e A l m e i d a - A c o l e g i a d a d e G u i m a r ã e s na Maria do Divino Coração (no século, Maria Droste
a c e i t a ç ã o d o C o n c í l i o d e T r e n t o . I n CONGRESSO HISTÓRICO DE G U I M A - zu Vischering) da Congregação do Bom Pastor, de-
RÃES E S U A COLEGIADA - Actas. Guimarães, 1981, vol. 2, p. 4 8 1 - 5 0 2 .
SILVA, L. D. Villela da - Memórias históricas da Insigne e Real Col-
dicada a amparar raparigas em perigo moral. Parti-
legiada de Santa Maria da Alcáçova da villa de Santarém. Lisboa, lhava ela as suas preocupações com os viscondes da
1817. SILVA, M a n u e l a S a n t o s - Óbidos e a sua região na Baixa Idade Pesqueira que a visitavam na casa que a congrega-
Média. 2 vol. D i s s e r t a ç ã o d e d o u t o r a m e n t o a p r e s e n t a d a à F L U L em
1996. SOARES, A. Franquelim S. Neiva - Conflitos jurisdicionais entre a
ção dirigia em Ermesinde. Por outro lado, não esca-
colegiada e o arcebispo de Braga (século xin a 1831). In CONGRESSO pava aos portugueses residentes em Roma o esforço
HISTÓRICO DE GUIMARÃES E A S U A COLEGIADA - Actas. Guimarães, 1981, de outros países para dar aos seus padres uma forma-
vol. 2, p. 11-29.
ção moral e intelectual de nível superior. Entre eles,
o reitor de Santo António dos Portugueses, monse-
COLÉGIO PORTUGUÊS EM ROMA. Fundado oficial- nhor José de Oliveira Machado, oriundo da diocese
mente pelo papa Leão XIII, através da bula Rei Ca- de Coimbra*, e o cavaleiro António Brás, um leigo
tholicae apud Lusitanos, de 20 de Outubro de 1900, natural de Braga, que, tendo ido para Roma estudar
tem por detrás desta decisão uma longa história que Belas-Artes e Matemática, ali se casara e estabelece-
se pode resumir em poucas palavras: tentar reme- ra definitivamente. Pensou-se em abrir as portas do
diar a mediocridade moral e intelectual do clero Instituto de Santo António dos Portugueses, uma
português das últimas décadas do século xix. A es- instituição que, tendo começado por ser património
sa mediocridade se referiu Ramalho Ortigão ao ser da Igreja portuguesa, foi pouco a pouco caindo nas
recebido por Leão XIII, no Outono de 1901, quan- mãos do poder civil e onde, paredes meias, viriam a
do fez uma síntese da história de Portugal e do pa- encontrar-se alunos destinados ao serviço da Igreja e
pel nela desempenhado pela Igreja Católica, moti- alunos que pretendiam cursos de outra natureza. Es-
vando no papa o comentário de que para atalhar sa circunstância desaconselhava a solução em vista.
estes males teria fundado o colégio, pois já antes Não faltou quem propusesse outra saída: a de pedir ao
recebera informações sobre o estado deplorável em episcopado espanhol que permitisse haver dentro do
que se encontrava o clero em Portugal. Entre elas as colégio do país vizinho uma secção para os alunos
portugueses, com a independência possível. A solução
definitiva, isto é, a fundação de um colégio português
em Roma, acabou por ser fruto de um encontro, reali-
zado no dia 6 de Maio de 1898: o do cavaleiro Antó-
nio Brás, do reitor do Instituto de Santo António dos
Portugueses, e ainda de dois padres estigmatinos -
Ricardo Tabarelli e Pio Gurisatti - com os viscondes
da Pesqueira, a quem caberia o apoio financeiro, e o
bispo de Meliapor, D. António Barroso, que estava
de passagem pela Cidade Eterna. A apoiar esta solu-
ção estava a vontade do papa Leão XIII, tantas vezes
inculcada aos bispos portugueses. O Colégio Portu-
guês teria assim por finalidade, como os outros co-
légios existentes em Roma, acolher, num clima de
sã convivência, condizente com a proposta da séria
formação espiritual e da aquisição de sólidos co-
nhecimentos necessários ao exercício do ministério
sacerdotal, os alunos indicados pelos bispos das di-
ferentes dioceses portuguesas. A carreira académi-
ca era proporcionada por instituições servidas por
mestres qualificados. Entre elas sobressaía a Uni-
versidade Gregoriana. Ao longo do século, porém,
foram surgindo outras escolas de ensino superior
especializadas em determinados campos do saber:
estudos bíblicos, liturgia, ciências de carácter peda-
gógico, moral, etc., cuja direcção tem estado a cargo
dos Jesuítas*, dos Beneditinos*, dos Salesianos*,
dos Redentoristas*, e também de padres seculares.
Fachada do Colégio Português em Roma, c. 1960 (in Os Não faltou em Portugal quem, passado pouco tempo
Seminários em Portugal, 1964).

403
COLÉGIO P O R T U G U Ê S EM ROMA

da fundação do Colégio Português, se insurgisse cais já referidos, houve também pouco interesse dos
contra ela, vendo na nova instituição uma expressão bispos portugueses pela nova instituição e, sobretu-
de ultramontanismo, em que os Jesuítas teriam lugar do, uma atitude de rejeição do governo português
de relevo. Segundo Trindade Coelho (1861-1908), para com os alunos nela formados, que encontrou a
essa invasão uítramontana verificava-se «pela educa- sua expressão mais odiosa no artigo 177.° da Lei de
ção que se está ministrando nos seminários», bem Separação (Abril de 1911): «Será punido com a pena
como «pela invasão dos padres portugueses» educa- de desobediência qualificada o cidadão português
dos pelos Jesuitas «no estrangeiro, em Roma princi- que exercer ou tentar exercer funções de ministro da
palmente» ( C O E L H O - Manual político, p. 275-276). religião católica em Portugal estando somente gra-
Tal situação constituía uma grande inversão e tinha duado ou doutorado nas chamadas faculdades de
origem na mudança da legislação portuguesa: pela Teologia ou Direito Canónico das universidades
lei de 1845 (Costa Cabral), o clero nacional era pontifícias; e se estiver habilitado com estudos teoló-
«português estreme», porque formado unicamente gicos feitos em Portugal, também incorrerá na san-
no país; pela lei de 1899 (Alpoim), «passou a ser en- ção deste artigo, se de futuro se graduar naquelas
xertado de romano», pelo facto de permitir que «gra- universidades e exercer ou tentar exercer as ditas
duados ou doutorados nas faculdades de Teologia* funções no território da República.» Desde a sua ori-
ou de Direito Canónico das universidades pontifícias gem até 1994-1995, frequentaram o Colégio Portu-
de Roma, com licença régia e autorização do respec- guês alunos provenientes de várias partes do mundo
tivo prelado diocesano, se sujeitem a exames nas (ao todo 740). A princípio eram unicamente portu-
disciplinas preparatórias para o curso trienal e nas gueses das dioceses metropolitanas e das províncias
que constituem este curso, ficando equiparados para ultramarinas, cujo número ascendeu a 549; depois,
todos os efeitos legais aos que tivessem frequentado em virtude da criação da Universidade Católica Por-
os seminários do reino» (Ibidem, p. 275). O colégio tuguesa e ainda porque o custo das viagens e da esta-
abriu no início do ano lectivo de 1899-1900, na Ca- da em Roma fossem altos, o Colégio Português, para
sina da Capela da Villa Borghese, sob a orientação manter-se, abriu as portas a alunos provenientes de
dos padres estigmatinos, o que durou pouco tempo, outras dioceses, sendo de 194 o seu número até hoje.
pois divergências surgidas entre eles e a Comissão O Colégio Português foi um celeiro: desde o início,
Promotora ocasionaram o seu afastamento (Janeiro dentro das possibilidades que as leis civis lhe permi-
de 1900). Assumiu, então, interinamente, a direcção tiram, contribuiu para dar vida nova à Igreja em Por-
monsenhor Machado até que, por sua iniciativa, veio tugal e às suas instituições, desde as simples paró-
de Coimbra o padre Dr. Tiago Sinibaldi, italiano, quias, movimentos apostólicos e direcção da imprensa
que Leão XIII enviara como professor de Filosofia diocesana, passando pelas cúrias, seminários, Uni-
Tomista ao seminário, a pedido do bispo Bastos Pi- versidade Católica, que requerem pessoal especiali-
na. O colégio passou a funcionar, a partir do ano lec- zado, até à «diaconia» do episcopado. Entre os bis-
tivo 1900-1901, no Palácio Alberini, de grande bele- pos saídos do Colégio Português ascenderam ao
za. Era um prédio construído por Júlio Romano, o cardinalato: D. Teodósio Clemente de Gouveia (Ma-
melhor arquitecto do seu tempo, na Via Banco Santo puto), D. António Ribeiro (Lisboa) e D. Alexandre
Spirito, posto à disposição pelo papa para residência do Nascimento (Luanda). Por estes dados pode ava-
dos alunos. A Tiago Sinibaldi sucederam na reitoria: liar-se qual tem sido a importância do Colégio Por-
Manuel Jorge da Fonseca (1913-1924), Manuel tuguês em Roma na vida da Igreja: não houve dioce-
Mendes do Carmo (1925-1928), Teodósio Clemente se de Portugal ou das suas antigas colónias, nem
de Gouveia (1934-1936), Manuel José de Sousa tão-pouco do continente, onde ele deixasse de fazer
(1936-1939), Manuel Pereira Vilar (1939-1941), chegar a sua influência.
Joaquim Carreira (1946-1954), João António da Sil- MANUEL DE ALMEIDA TRINDADE
va Saraiva (1960-1966), Manuel Cardoso de Carva-
lho (1966-1976), Teodoro de Faria (1976-1982), BIBLIOGRAFIA: CARDOSO, Arnaldo Pinto - A fundação do Colégio Portu-
guês em R o m a e a f o r m a ç ã o do clero no final do século xix. Lusitania
Amândio José Tomás (1982-). Quase todos foram vi- Sacra. Lisboa. 3 (1991) 291-347. CASTRO, José de - Pio VIII, o Colégio
ce-reitores antes de serem nomeados reitores e, co- Português e portugueses. In PORTUGAL em Roma. Lisboa: U n i ã o Gráfica,
mo tal, ficaram a responder pelo colégio, o que ex- [s.d.], vol. 2, p. 193-240. COELHO, Trindade - Manual político do cida-
dão português. Porto: E m p r e s a Litteraria e Typographica, 1908. TRIN-
plica os interstícios de datas que se podem verificar DADE, Manuel de Almeida - Memórias de um bispo. Coimbra, 1994,
na relação anterior. Como o prédio da Via Banco p. 361-373. TRINDADE, Manuel de Almeida; CARVALHO, Manuel Cardoso
- O pontifício Colégio Português em Roma. subsídios para a sua histó-
Santo Spirito não oferecesse condições para residên- ria. R o m a , 1984.
cia, dado que não fora projectado para esse fim, teve
de sofrer uma série de obras, até que se chegou à ne-
COLÉGIOS UNIVERSITÁRIOS, v. ENSINO.
cessidade de construir um novo edifício, opção to-
mada por monsenhor Manuel Cardoso de Carvalho e
pelo presidente da Comissão Episcopal dos Seminá- COMBONIANOS. O nome oficial desta congregação
rios, D. Manuel de Almeida Trindade, de acordo é Missionários Combonianos do Coração de Jesus,
com a Conferência Episcopal Portuguesa*. Para a tendo sido o seu fundador o bispo Daniel Comboni
edificação do novo prédio, na Via Nicolò V, foi ven- (Itália, 1831-Sudãç>, 1881), ardente missionário de
dido, com a permissão da Santa Sé, o Palácio Alberi- várias regiões de África que sonhou converter todo
ni, não arcando a Igreja portuguesa com nenhum en- este continente ao cristianismo, apostando para o
cargo financeiro. Não foram fáceis os primeiros efeito nos próprios africanos. No carisma desta con-
tempos da vida do colégio. Além dos problemas lo- gregação define-se que os Missionários Combonia-
nos formam «uma comunidade de Irmãos chamados

404
CONCÍLIOS ECUMÉNICOS

por Deus e a Ele consagrados mediante os conselhos congregação, mas erigir simplesmente um convento,
evangélicos de castidade, pobreza e obediência, para de alguma ordem já aprovada, em honra da Imacula-
o serviço missionário no mundo, segundo o carisma da Conceição. Só num segundo momento se deu iní-
de Daniel Comboni. Partilham a mesma vida, com cio a uma nova congregação, com numerosos con-
iguais direitos e deveres, salvo aqueles que derivam ventos submetidos à mesma regra, por intervenção
do sacramento da Ordem» (regra 10). A sua missão decisiva dos Frades Menores. O convento de Toledo
específica consiste em desenvolver a missão evange- seguiu, primeiramente, a Ordem de Cister (v. C I S T E R -
lizadora da Igreja entre aqueles povos ou grupos hu- C I E N S E S ) . Em 1494, uma bula de Alexandre VI orde-
manos que não foram ainda evangelizados ou que nou que tomassem a Regra de Santa Clara, autori-
não foram suficientemente evangelizados (regra 13). zando as monjas a fundarem novos conventos de
Actualmente estão presentes em 30 nações. Os clarissas sob invocação da Conceição e sob o mode-
membros atingem a cifra de 1832, dos quais 13 são lo do de Toledo. Em 1511 Júlio II deu-lhe regra par-
bispos, 1286 são padres, 343 irmãos e 184 escolásti- ticular, reconhecendo-a como uma nova congrega-
cos. Em Portugal, a sua fundação data de 1947, na ção com poder de fundar novos mosteiros. Mesmo
diocese de Viseu*, pelo padre João Cota, na sequên- antes de ter regra própria, a ordem difundira-se rapi-
cia de um pedido de missionários por parte do car- damente pela Espanha tendo como base, frequente-
deal D. Teodósio de Gouveia para a sua diocese de mente, os chamados recolhimentos. No século XVII
Moçambique*. A partir de então os Missionários expandiu-se também para fora do país. Em Portugal,
Combonianos conheceram uma significativa expan- além do Convento de Nossa Senhora da Conceição
são em terras lusitanas. Actualmente, possuem no em Braga, tiveram ainda: Nossa Senhora da Penha
nosso país comunidades, essencialmente com o ob- de França, Braga (1652); Nossa Senhora dos Anjos,
jectivo de preparar missionários, em Famalicão, Chaves (1685); Nossa Senhora da Conceição de
Maia, Coimbra, Santarém e Lisboa, bem como cam- Loulé (1688); Nossa Senhora da Conceição, Carni-
pos de missão em diversos países: Macau*, Filipi- de, Lisboa (1694); Nossa Senhora da Conceição, Ar-
nas, Etiópia, Quénia, África do Sul, Moçambique, rifana de Sousa (1716), além de um recolhimento
República Democrática do Congo*, Togo, Chade, fundado em 1632 em Pontével. Em 1763 havia seis
Sudão, Malawi, Uganda, Brasil*, Colômbia, Peru, conventos no país, e três no Brasil*. A lei de 1834
Equador e México. Detêm ainda a responsabilidade levou ao seu desaparecimento; voltaram em 1942.
de publicação de importantes revistas de dinamiza- Nesse ano chegaram a Campo Maior, terra natal de
ção e divulgação missionária, a saber, Além-Mar, Santa Beatriz da Silva, cinco monjas provenientes
Audácia e Família Comboniana. Os Combonianos, do Mosteiro da Conceição de Vilafranca dei Bierzo.
ao longo destas cinco décadas, lançaram profundas Vieram ocupar um antigo convento masculino, a pe-
raízes em Portugal e deram frutos amadurecidos, on- dido do arcebispo de Évora* D. Manuel Mendes da
de o trabalho dos seus missionários se caracteriza Conceição Santos. Em 1995 havia 160 mosteiros,
pela presença forte no meio do povo e pela simplici- dois deles em Portugal: Campo Maior e Viseu, com
dade de vida. 25 religiosas. Instituto de vida contemplativa, o seu
JOSÉ EDUARDO FRANCO
carisma é a celebração do Mistério de Maria em sua
Conceição Imaculada, carisma esse que inspirou a
BIBLIOGRAFIA: ALVES, Agostinho - Árvore frondosa de raízes humildes. fundação de uma congregação de vida activa, as Ir-
Além-Mar. 4 3 5 (1996) 15-18. BUTERA, L u í s - ^ força de um ideal: Da-
niel Comboni. Lisboa: Além-Mar, 1995. LOZANO, Juan Manuel - Pai-
mãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres*.
xão de uma vida: espiritualidade de Daniel Comboni. Lisboa: A l é m -
MARIA DO PILAR S. A. VIEIRA
-Mar, 1 9 9 5 .
BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal.
COMPANHIA DE MARIA. v. MONFORTINOS. Porto; Lisboa: Livraria Ed. Civilização, 1968, vol. 2, 3. DIZIONARIO degli
Istituti di Perfezione. R o m a : Edizione Paoline, 1975, vol. 2. OLIVEIRA,
Miguel de - História eclesiástica de Portugal. Lisboa: Europa-Améri-
COMPASSO. V. RELIGIOSIDADE POPULAR.
ca, 1994. UMA FLOR portuguesa: vida da beata Beatriz da Silva. C a m p o
Maior: Concepcionistas de C a m p o Maior, 1954.
CONCEPCIONISTAS FRANCISCANAS, Monjas. Em
1629 inaugurou-se em Braga o primeiro mosteiro CONCÍLIOS ECUMÉNICOS (e Portugal). 7. Introdu-
desta ordem, por iniciativa de Geraldo Gomes, cóne- ção: O concílio ecuménico foi, desde o século iv,
go da sé. As fundadoras foram quatro religiosas do uma prática introduzida na Igreja, onde uma assem-
Mosteiro de Nossa Senhora dos Remédios de tercei- bleia de bispos e outras dignidades se debruçavam
ras regulares. A Ordem das Concepcionistas foi fun- sobre questões emergentes que afectavam, na sua
dada por uma senhora nobre de Portugal, D. Brites globalidade, a comunidade cristã. Os concílios ecu-
da Silva (1424-1490), filha de D. Isabel de Meneses ménicos, hoje aceites pela Igreja, tiveram dinâmicas
e de Rui Gomes da Silva, alcaide-mor de Campo de trabalho bem diferenciadas. O hábito de reunir,
Maior e Ouguela. Era dama de D. Isabel, neta de para ponderar e deliberar, cedo entrou na prática da
D. João I, acompanhando-a para Castela quando esta comunidade cristã. A reunião de Jerusalém, narrada
se casou com D. João II de Castela. Notável por suas nos Actos dos Apóstolos (15, 6-29), foi um aconteci-
virtudes e beleza, foi vítima de intrigas na corte o mento modelar para uma prática que se irá impor a
que a levou a recolher-se a um convento em Toledo. nível local, zonal e universal. A penetração do cris-
Pouco depois, lançava os fundamentos da Ordem tianismo em áreas de cultura grega vai pedir uma no-
da Conceição, aprovada em 1489 pelo papa Inocên- va linguagem e uma organização diversa, capazes de
cio VIII. Não se pode afirmar com certeza que Bea- responder à vitalidade das novas comunidades. Para
triz da Silva tenha tido a intenção de fundar uma nova dirimir discrepâncias e conseguir consensos, sentiu-

405
CONCÍLIOS ECUMÉNICOS

-se a necessidade da instituição conciliar como a factor de comunhão e unidade, na caridade. A deslo-
mais apta para unir as comunidades na caridade e na cação da capital do Império para o Oriente propicia-
doutrina. Esse esforço de sinodalidade (v. SÍNODOS) rá ao metropolita e patriarca de Constantinopla uma
funcionou a vários níveis. Para todos os efeitos, deve preeminência sobre os outros patriarcas orientais.
dizer-se que os concílios ecuménicos formarão a cú- A queda do Império do Ocidente (476), com toda a
pula do edifício sinodal. O concílio ecuménico de instabilidade que se seguiu, levará o bispo de Roma
Niceia (325), considerado o primeiro dos 21 que se a exercer uma solicitude de ordem espiritual e tem-
lhe seguiram até ao Vaticano II (1962-1965), é con- poral. As duas vertentes, exercidas no dia-a-dia e
vocado pelo imperador Constantino para dirimir nos momentos mais críticos das populações, propi-
questões doutrinais e disciplinares; a reunião da uni- ciarão um papado vigoroso. A movimentação dos
versalidade cristã, representada pelos padres que em povos do Norte e a formação de vários reinos de
Niceia se encontraram, deveu-se à circunstância de pendor belicoso vieram perturbar as vastas zonas
as igrejas locais, após esforços louváveis, se senti- geográficas da península itálica, onde o bispo de Ro-
rem impotentes para erradicar compreensões hetero- ma exercia um pontificado para todo o Ocidente
doxas que estavam a perturbar a unidade da Igreja. cristão e uma acção política em prol dos justos an-
A celebração nicena pode considerar-se uma assem- seios das populações locais. Essa acção papal fragili-
bleia ecuménica e imperial. Constantino, que tinha za-se com os inconvenientes da nomadização desses
concedido a liberdade aos cristãos, assumira politi- povos. Daí a procura de uma subtil ligação ao Reino
camente o cristianismo como a ideologia que pode- Franco, preterindo o Império do Oriente. Com a co-
ria dar nova vida ao Império em consolidação. Em roação de Carlos Magno (800) e a aceitação tácita de
virtude disso, perante a doutrina propalada por Ario uma protecção política a partir do exterior, o papado
e seus seguidores de não reconhecerem a consubs- entra numa fase da sua história onde terá sérias difi-
tancialidade do Pai e do Filho, acompanha pessoal- culdades em fazer a destrinça de competências entre
mente os trabalhos conciliares e aceita as suas for- o sacerdócio e o Império. A subserviência espiritual,
mulações doutrinais. A formalidade da convocação e aceite por muitos como mais um modelo de Igreja,
a representatividade da primeira celebração ecumé- começa a questionar-se a partir da experiência de
nica vão constituir precedente no modo como se pro- Cluny (v. C L U N I A C E N S E S ) . A libertação espiritual,
cessarão as próximas reuniões ecuménicas. No pri- protagonizada pelos primeiros cluniacenses, terá in-
meiro milénio teremos ao todo oito celebrações cidências positivas no papado dos séculos xi-xin.
ecuménicas, todas realizadas no Oriente. Nas convo- Por razões óbvias, as alterações desejadas e re-
cações, notar-se-á a vontade expressa do imperador clamadas pelos papas desses séculos irão provocar
ou da imperatriz. No decorrer dos trabalhos, o sobe- um confronto com o Império. Os resultados positi-
rano far-se-á presente ou delegará em pessoa da sua vos, visíveis após um longo processo, foram o re-
confiança. Por sua vez, as definições doutrinais e as sultado de uma reforma, iniciada por Gregório VII
determinações canónico-disciplinares serão assumi- (1073-1085), mas só concluída pelos seus sucesso-
das pelo Império. Os participantes das celebrações res. A acção de Gregório foi de tal ordem marcante
do primeiro milénio serão, na sua maioria, bispos do para a vida da Igreja que, do seu projecto de refor-
Oriente. A presença ocidental foi discreta, e o bispo ma, irão encontrar os seus sucessores temáticas sufi-
de Roma (Papa) nunca estará pessoalmente presente. cientes para justificar úteis e oportunas celebrações
Será representado por pessoas de sua confiança. ecuménicas. A natureza dos concílios ecuménicos
A presidência foi quase sempre reservada aos dele- medievais enquadra-se num período histórico, onde
gados papais. A aceitação do corpo doutrinal dos as grandes decisões já se projectavam para toda a
primeiros concílios tem oscilado de Igreja para Europa cristã; a autoridade papal é reconhecida; o
Igreja. As Igrejas do Oriente, separadas de Roma, episcopado transforma-se em sujeito activo nos con-
aceitam apenas os primeiros sete; os anglicanos fi- cílios que, periodicamente, tomam decisões de natu-
cam-se pelos quatro primeiros. A Igreja Católica reza espiritual e temporal. É a partir desse conjunto
aceita os oito concílios do primeiro milénio: Niceia de circunstâncias que as assembleias medievais se-
(325); Constantinopla (381); Éfeso (431); Calcedó- rão, efectivamente, celebrações de iniciativa papal,
nia (451); Constantinopla II (553); Constantinopla III onde a preparação e organização serão seguidas pes-
(680-681); Niceia II (787); Constantinopla IV (869- soalmente pelo bispo de Roma. A participação evo-
-870). Dos oito enunciados, dá especial importância lui significativamente em relação às celebrações do
aos primeiros quatro. 2. Ecumenicidade nos concí- primeiro milénio. De um corpo inicial limitado,
lios medievais: Após a unificação do Império Ro- avançou-se para um grupo mais alargado: bispos,
mano na pessoa de Constantino e a deslocação da abades, cabidos e representantes dos reinos cristãos.
capital para Constantinopla, iniciar-se-á um proces- A durabilidade desses concílios foi bastante curta;
so de separação político-religiosa entre o Oriente e poucos foram os que estiveram reunidos mais que
o Ocidente. A consolidação das igrejas patriarcais um ano. As actas de alguns resumem-se a notícias
(v. PATRIARCADO) (Roma, Alexandria, Antioquia, dispersas. A matéria submetida a decisões formais
Constantinopla e Jerusalém) tinha introduzido no encontra-se ordenada em cânones ou capítulos.
seio da unidade da Igreja expressões de fé nem A lista de participantes que chegou até nós é bastan-
sempre fáceis de combinar com o ideal de unidade te diversificada, segundo a fonte consultada. A críti-
católica e a legítima expressão de fé em forma plu- ca histórica aceita como número mais objectivo
ral. A primazia da sede romana, globalmente aceite aquele que se aproxima mais das várias fontes dispo-
a partir do século ui, nem sempre foi sentida como níveis. O primeiro concilio ecuménico de iniciativa

406
CONCÍLIOS ECUMÉNICOS

papal do período medieval, elencado como o nono uma situação conflituosa com o imperador Frederico
da lista geral, realizou-se no palácio papal de Latrão, II. Questionavam-se direitos eclesiásticos e prerroga-
na cidade de Roma, no início da Primavera de 1123. tivas imperiais. As correntes teóricas, trabalhadas
Durante duas semanas, três centenas de padres con- por canonistas afectos às partes em litígio, tiveram
ciliares aprovaram alguns decretos, recém-saídos da dificuldade em harmonizar os dois campos opostos.
chancelaria papal; tratou-se da aprovação de disposi- A dialéctica esgotou-se, e o imperador, perante a in-
ções acordadas na Concordata de Worms, onde a transigência de Inocêncio IV, deu-se à veleidade de
questão da investidura laica para os benefícios ecle- utilizar a força, ocupando uma boa parte do Centro
siásticos se dava por encerrada. A este concílio se- de Itália. Propunha-se com essa medida confinar o
guiu-se um segundo com o mesmo nome, em 1139. pontífice à cidade de Roma e, por razões óbvias, evi-
Inocêncio II, ao anunciá-lo, convida bispos e abades tar qualquer comunicação ou acção conjugada com o
de todo o Ocidente para um sínodo plenário. Para resto do mundo cristão. Inocêncio IV, em circunstân-
além da temática habitual, relacionada com a refor- cias difíceis, arquitecta uma fuga, iludindo a vigilân-
ma e a liberdade da Igreja, procurou-se ultrapassar cia dos imperiais. Já em terra livre, convoca um con-
uma situação cismática, criada pela eleição do anti- cílio para a cidade de Lião, onde reúne um número
papa Anacleto II. A falta de apoios consistentes à considerável de bispos e de outros representantes da
obediência cismática facilitou a decisão conciliar. cristandade europeia. Registou-se, no entanto, uma
Por forma a moralizar a vida interna da Igreja, o câ- presença conciliar inferior à das celebrações anterio-
non sétimo deste concílio declara inválido e ilícito o res. No início dos trabalhos, foi movido um processo
matrimónio contraído por um clérigo ou monge. ao imperador. Por decisão conciliar, depunha-se Fre-
O cânon 28 concede o direito aos cabidos de intervi- derico II, na qualidade de rei da Alemanha e de im-
rem na eleição do bispo local. A representação mais perador dos Romanos. Era acusado de ter violado o
numerosa deste concílio provinha da Europa Central. juramento de defensor da Igreja, de pertubar a paz e
Numerosos reinos do Ocidente tiveram também lá os de pender para a heresia. Este procedimento conci-
seus representantes. Registou-se também a presença liar, liderado por Inocêncio IV, foi o culminar do po-
do arcebispo de Braga, D. João Peculiar. As crónicas, der papal do período medieval. Do concílio ficaram-
no geral, são omissas quanto à actividade específica -nos, como matéria canónica, 22 capítulos que serão
de cada padre conciliar. O III Concílio de Latrão, con- respeitados como leis papais. Desconhece-se a totali-
vocado por Alexandre III, em 1179, enfrenta uma pro- dade da presença portuguesa em Lião. Para além do
blemática própria do regime de cristandade: enquadra- arcebispo de Braga, D. João Egas, esteve o bispo
mento político-religioso dos processos de investidura; eleito de Coimbra, D. Tibúrcio, o bispo do Porto,
como legitimar, de uma vez por todas, a eleição papal D. Pedro Salvador, e o bispo de Lisboa, Aires Vas-
resultante de um corpo eleitoral? O poder civil, cor- ques; doutros eclesiásticos portugueses não temos
porizado pelo Império, nem sempre se ateve aos câ- notícia. A nobreza também esteve representada; des-
nones do I Concílio de Latrão. Daí a tentação perió- sa apenas podemos registar Rui Gomes de Briteiros.
dica de interferir na investidura eclesiástica e de E de admitir que no decorrer do concílio a questão
questionar a eleição papal, recorrendo ao expediente de D. Sancho II tivesse merecido alguma considera-
abusivo da eleição de um antipapa. Quando os pa- ção por parte do papa. De todos os modos, a decisão
dres se reuniram em Março de 1179, já esses fantas- papal de entregar o governo e a administração do
mas se tinham afastado. De todos os modos, para reino ao conde de Bolonha, futuro D. Afonso III, foi
evitar futuras ambiguidades, decidiram, por meio de tomada após o encerramento do concílio. O II Con-
cânones, exigir dois terços de votos para a validade cílio de Lião (1274) foi convocado por Gregório X.
de uma eleição papal. Desta celebração, chegaram Os convites foram dirigidos a arcebispos, bispos, ca-
até nós algumas listas de participantes. Da presença pítulos, abades, reis e príncipes do Ocidente. Convi-
portuguesa não há notícia. O IV Concílio de Latrão dou-se também o imperador grego, assim como o
(1215) beneficiou do trabalho dos três concílios an- grão-cão da Mongólia. A resposta fícou-se aquém
teriores, dos quais retirou experiência e temática su- das expectativas. Os autores apontam para duas cen-
ficientes para fazer da nova celebração um efectivo tenas de padres. Na palavra de abertura, o papa pro-
encontro de toda a universalidade cristã. Das três punha, como tarefas prioritárias do concílio, o auxí-
sessões que se realizaram no mês de Novembro de lio a Jerusalém, a união com os Gregos e a reforma
1215, chegaram até nós 70 capítulos, que passaram a da Igreja. De Portugal, tinham-se dirigido ao concí-
fazer parte do código eclesiástico da Igreja. Da ma- lio alguns eclesiásticos. Há notícia da presença de
téria aprovada, deduz-se que se tratou de um concí- D. Pedro (Hispano), arcebispo eleito de Braga que,
lio reformador. Há decisões e orientações que co- no ano de 1276, irá ocupar a sede de Pedro, com
brem toda a área eclesiástica. Tomaram-se também o nome de João XXI; D. Ordonho Álvares, oriundo
medidas referentes à comunidade judaica, obrigan- de Portugal, mas naquele momento bispo titular de
do-a a tornar visível a sua diferença, e, por conse- Salamanca; D. Durando, bispo de Évora; D. Frei
quência, a confiná-la a espaços separados da comu- Estêvão Martins, abade de Alcobaça. Da actividade
nidade cristã. De Portugal, esteve como padre conciliar não chegou até nós qualquer referência
conciliar o arcebispo de Braga e, provavelmente, o que mereça uma atenção especial. O Concílio de
bispo de Lisboa, D. Soeiro Viegas. O I Concílio de Vienne (França) (1311) foi convocado por Clemen-
Lião (1245) dá-se num período histórico altamente te V. A oportunidade desta celebração foi, certamen-
melindroso da vida da Igreja. O papa Inocêncio IV, te, concertada com o rei de França, Filipe, o Belo.
que o convocou, recebera do pontificado anterior A morte de Bonifácio VIII (1303) não significou o

407
CONCÍLIOS ECUMÉNICOS

fim do contencioso entre a corte de França e a sede aí desenvolvida não temos notícia. O Concílio de
romana. A questão da Ordem do Templo urgia tam- Constança (1414-1418) foi convocado pelo rei Se-
bém uma resolução imediata. Esses assuntos, sentidos gismundo da Alemanha e por João XXIII, o segundo
particularmente pelo poder civil, irão condicionar o papa pisano. A celebração tinha por objectivo pôr
trabalho conciliar. De forma subtil, dar-se-á a inver- termo ao cisma em curso. Houve uma preocupação
são da autoridade religiosa pelo poder civil, cada vez em assegurar uma participação alargada. Estabelece-
mais centralizado na pessoa do monarca. Essas reali- ram-se contactos com os outros dois papas e com
dades explicam a razão da convocação e a qualidade praticamente todos os reinos cristãos. A resposta foi
de representação que se fez presente em Vienne. respeitável. No início dos trabalhos, um grupo con-
A listagem dos prelados convocados foi criteriosa- sistente questionou a confiança ao papa João XXIII.
mente elaborada de consenso com o monarca francês. Este, suspeitando não ser confirmado pelo concílio
A crítica está em crer que essa interferência real não como o único papa legítimo, dispõe-se a resignar sob
foi suficiente para privar o concílio da prerrogativa certas condições. Inesperadamente, abandona o con-
ecuménica. De facto, as crónicas tiveram o cuidado cílio e empreende uma fuga de consequências impre-
de registar o corpo alargado de padres, procedente visíveis. Por momentos, pairou sobre a assembleia
das mais variadas latitudes. Infelizmente, as temáti- perplexidade e confusão. Quem poderia legitimar
cas habituais - fé, reforma da Igreja e cruzada - fo- os trabalhos conciliares? A debandada evitou-se e o
ram secundarizadas pelos pontos acima referidos. suporte jurídico para a assembleia foi encontrado
No entanto, o papa e o concílio foram suficiente- na sua ecumenicidade (representatividade). Em ter-
mente lúcidos para não permitirem a abertura formal mos práticos, estava-se com um concílio supra pa-
do processo a Bonifácio VIII. A condenação da Or- pam. Tudo isso correspondia à teoria conciliarista
dem dos Templários, insistentemente reclamada pelo que advogava para o concílio a autoridade máxima
monarca francês, motivou uma reflexão morosa, na direcção da Igreja. O concílio depõe o papa
nem sempre isenta de paixão. A extinção da ordem João XXIII; Gregório XII, da obediência romana,
deu-se por acto administrativo papal; não foi uma resigna; Bento XIII, da obediência de Avinhão, é
sentença lavrada pelo concílio. Nesta celebração es- deposto. Após esses actos formais, os cardeais pre-
tiveram quatro bispos portugueses: D. Martinho de sentes, com os delegados das nações, que tinham di-
Oliveira, arcebispo de Braga; D. Frei Estêvão, bispo reito a voto, elegem o novo papa Martinho V. Com a
do Porto; D. Rodrigo, bispo de Lamego; este último, eleição papal, restaura-se a autoridade eclesiástica.
referenciado pela historiografia tradicional portugue- O concílio, quando chega ao seu termo, tinha cum-
sa como tendo estado em Vienne, é provável que não prido razoavelmente o seu primeiro objectivo: de-
tivesse participado; para além destes três, deve refe- volver ao papado a autoridade perdida após a morte
rir-se o nome de D. Geraldo, bispo de Palência, Cas- de Bonifácio VIII (1303). Tudo leva a crer que, na
tela. O Concílio de Vienne foi a última das celebra- celebração de Constança, não esteve qualquer bispo
ções ecuménicas medievais. Todas elas foram português. Após os primeiros anos de trabalhos con-
presididas pelos papas do tempo com a participação ciliares, D. João I fez-se acreditar por meio de dois
activa de bispos, abades, cabidos e representantes embaixadores. Nas votações, onde foi requerido o
dos reinos cristãos. Após Vienne, trabalha-se a ideia voto das nações, Portugal alinhou com os reinos da
de reconhecer o concílio como a última instância do Península que, no seu conjunto, para além da Itália,
poder decisório da Igreja. Efectivamente, aquando Alemanha, França e Inglaterra, formaram a quinta na-
da crise de Avinhão, as duas «obediências» (Roma e ção. O Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma
Avinhão), ao concordarem na convocação de um (1431-1445) foi convocado por Martinho V. A aber-
concílio para proporcionarem à Igreja um papa único tura dar-se-á com o papa seguinte, Eugénio IV. A di-
e legítimo, ativeram-se a correntes teóricas que atri- minuta presença episcopal e a ausência do papa, que
buíam ao concílio, em caso de crise maior, autorida- se fez representar apenas por um delegado, fazia pre-
de para ajuizar dos actos dos cardeais, assim como ver um confronto entre a primazia romana e o conci-
do papa eleito por eles. Com bases jurídicas discutí- liarismo. Dessa situação precária teve particular res-
veis, convocou-se um concílio para Pisa (1409), on- ponsabilidade o espírito indeciso de Eugénio IV. De
de uma parte considerável das duas obediências, cor- facto, suspeitando de um trabalho conciliar à revelia
porizada por cardeais e bispos, depôs os papas da autoridade petrina, dissolve a assembleia; esta,
eleitos por Roma e Avinhão e procedeu à escolha de por sua vez, não acata a decisão pontifícia; autono-
um papa legítimo. Os papas depostos, ao não aceita- miza cada vez mais as suas competências, até se as-
rem a decisão de Pisa, fizeram perviver na Igreja sumir como autoridade última sobre a orientação ge-
uma situação profundamente incómoda. A reunião ral da Igreja. Reclama coercitivamente, sob penas
pisana não é reconhecida pela Igreja como concílio graves, a presença de Eugénio em Basileia. O con-
ecuménico. De todos os modos, a questão da sua fronto ameniza-se com a contemporização papal
ecumenicidade continua a ser um capítulo pouco pa- que, a braços com uma crise política na península
cífico para a crítica histórica. Em Pisa houve uma itálica, acede a declarar novamente legítimo o Con-
presença portuguesa, apoiada por D. João I. Partici- cílio de Basileia. Um dos objectivos, a que se propu-
param nos trabalhos D. João Afonso de Azambuja, nha o concílio, era a união com os cristãos gregos
arcebispo de Lisboa; D. Garcia, bispo de Lamego; os orientais. O empenho para a concretização desse
mestres da Ordem de Santo Agostinho e dos Frades propósito envolveu de igual modo as duas Igrejas.
Menores. O monarca português ter-se-ia feito repre- A escolha da cidade, que deveria reunir o concílio da
sentar também por dois embaixadores. Da actividade união, irá novamente colocar em rota de colisão os

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CONCÍLIOS ECUMÉNICOS

basilienses com Eugénio IV. Efectivamente, o papa, propostas de renovação. Na fase final, notou-se falta
seguindo o parecer de uma minoria, opta pela cidade de empenho e ausência de coragem para atacar o que
de Ferrara para a nova sede do concílio em curso. Os de mais problemático se apresentava à Igreja do
gregos acatam a decisão; os padres de Basileia rejei- tempo - acumulação de benefícios, absentismo epis-
tam-na. De seguida, depõem Eugénio, acusando-o de copal e saneamento dos organismos centrais da Igre-
heresia; num segundo momento, elegem um antipa- ja. Leão X, sucedendo a Júlio II, não era a pessoa ta-
pa. O comportamento dos basilienses não irá pertur- lhada para dar uma resposta cabal a esse conjunto de
bar sobremaneira o andamento formal do concílio, urgências. Efectivamente, o papa Médicis não era
agora sedeado em Ferrara. No dia 6 de Julho de um homem da Reforma. O concílio encerrou no mês
1439, em sessão solene, dá-se a união entre duas de Março de 1517. Meses depois, eclode em terras
Igrejas, pela bula Laetentur coeli et exultet terra. As alemãs um movimento reformador que irá ter desen-
expectativas da união foram enormes. Razões reli- volvimentos profundamente desestabilizadores para
giosas e políticas geraram convicções que se irão a Igreja de Roma. Na abertura dos trabalhos con-
mostrar precárias num curto espaço de tempo. ciliares (3 de Maio de 1512), não se encontrava em
A queda de Constantinopla em 1453 foi atribuída em Roma nenhum representante do rei de Portugal,
parte à insolidariedade ocidental. Lamentavelmente, D. Manuel I. A insistências de Júlio II, é acreditado
pouco depois, velhos preconceitos acabarão por asfi- junto do concílio o embaixador de Portugal em Ro-
xiar e tornar inoperante tudo aquilo que se tinha ma, João de Faria. Será uma presença modesta. De
acordado em Florença. Após a união com os gregos, D. Manuel, poder-se-á dizer que acompanhou a evo-
o concílio teve dificuldade em agarrar uma agenda lução da celebração sem qualquer compromisso de
mobilizadora. Essa falta de dinamismo motivará a maior. 3. Trento: O Concílio de Trento (1545-1563),
sua transferência para Roma, em 1443. Dois anos após várias vicissitudes históricas, acabou por abrir
depois, o concílio é encerrado. A presença de Por- no dia 13 de Dezembro de 1545, no pontificado de
tugal no Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Ro- Paulo III. O longo período de celebração prender-se-
ma enquadrou-se no espírito e nos acontecimentos -á com os questionamentos colocados à Igreja nas
que marcaram aquela celebração. Efectivamente, primeiras décadas do século xvi. O tema da reforma,
D. João I e D. Duarte não quiseram estar ausentes de se bem que presente já nos concílios anteriores, con-
um evento que pretendia reformar e dar coesão a um tinuava a entender-se como tarefa prioritária e da
cristianismo perturbado por ideias e lideranças anta- qual se reclamava uma abrangência que mobilizasse
gónicas. A participação de todos os reinos cristãos a totalidade da Igreja. As propostas luteranas, de
seria a melhor forma de os vincular a decisões toma- conteúdo e de forma, inicialmente condenadas pela
das na aula conciliar. Os monarcas portugueses, com Igreja institucional, continuavam a despertar vivo in-
assuntos pendentes no referente à política de expan- teresse na população alemã e em consideráveis cír-
são ultramarina, enviaram os seus embaixadores culos cultos da Europa Central. Decorrente desse
com objectivos alargados, atinentes a questões polí- movimento reformador, a divisão político-religiosa
ticas e religiosas. Já em terras de Itália, acompanha- era particularmente sentida pelo imperador Carlos V.
ram as vicissitudes da conturbada celebração conci- As condenações romanas e as posteriores dietas polí-
liar. No conflito entre o concílio e o papa, a partir de ticas não conseguiram eliminar Martinho Lutero
1436, não é possível seguir de perto a posição assu- nem a torrente de ideias disseminadas pelas pessoas
mida pelos representantes portugueses. Pelas fontes afectas à pessoa do reformador. A circunstância do
disponíveis, tudo leva a crer que as duas facções ti- reformador alemão não querer a institucionalização
veram apoiantes portugueses. Pelos basilienses, já de uma nova Igreja favorece a polarização da ideia,
no período cismático, celebrizou-se o bispo de cada vez mais alargada em amplos sectores político-
Viseu*, Luís do Amaral, que chegou a receber o bar- -eclesiásticos, de que a última palavra sobre Lutero e
rete cardinalício do antipapa Félix V. O bispo do o luteranismo deveria ser dada por um concílio.
Porto, D. António Martins Chaves, que integrou a A tendência conciliarista, persistente ainda nalguns
embaixada do rei D. Duarte, foi padre conciliar em espíritos, e a configuração de um concílio de contor-
Basileia; acatando as decisões de Eugénio IV, acom- nos pouco definidos, confrontam-se com um papado
panhou o concílio para Ferrara e Florença; como cauteloso, pouco disposto a aceder a uma celebração
prova de fidelidade é-lhe concedida a púrpura em ecuménica de consequências imprevisíveis. A con-
1439. A morte surpreende-o em Roma em 1447. vergência política do momento deixava muito a de-
O V Concílio de Latrão (1512-1517) foi convocado sejar. Em França, Francisco I via na divisão religiosa
por Júlio II para esvaziar as pretensões reformadoras um factor enfraquecedor para as tendências hegemó-
do rei de França; Luís XII, com a cumplicidade de nicas de Carlos V. Daí o desinteresse francês em
alguns cardeais dissidentes, tinha convocado um contribuir para a eliminação desse elemento desesta-
concílio para a cidade de Pisa, em 1511. A dinâmica bilizador em terras germânicas. Essas ambiguidades
de celebração do V Concílio de Latrão será idêntica vieram ao encontro das hesitações do papa Clemen-
à praticada no período medieval. A presidência ca- te VII (1523-1534). Conhecedor dos apelos insisten-
berá ao papa e os bispos participantes provirão, na tes para dar resposta cabal, por via do concílio, a
sua maioria, da península itálica. O grupo conciliar uma problemática que já tinha ultrapassado a nação
não ultrapassou a centena. Os poderes políticos de alemã, mostrou-se o papa Médicis indeterminado e,
então apoiam a celebração; o próprio rei de França, ao longo do seu pontificado, outra coisa não fará que
após a morte de Júlio II, deixa cair a iniciativa de Pi- servir-se do expediente diplomático para atenuar as
sa e adere ao concílio romano em curso. Fizeram-se consequências gravosas provocadas pelas ideias lu-

409
CONCÍLIOS ECUMÉNICOS

teranas. O seu sucessor, Paulo III (1534-1549), con- jeita e a posição protestante que não assume. Admite
victo da necessidade de recorrer ao concílio, foi ex- a gratuidade do dom de Deus e a capacidade de res-
tremamente cauteloso na preparação e abertura do posta (positiva) do homem santificado (justificado).
mesmo. Para atingir os objectivos, procurou um en- Para além das decisões já referidas, outros decretos
volvimento canónico e político. O concurso do po- foram aprovados nos primeiros dois anos do concí-
der civil permitiria, de facto, uma presença episcopal lio. Em 1547, a celebração ressente-se de um certo
significativa. Para além de bispos e embaixadores, desgaste. Os cardeais delegados, enfrentando a opo-
esforçar-se-ia o papa Farnésio por fazer deslocar pa- sição imperial, decidem-se pela transferência do
ra o concílio a totalidade do colégio cardinalício. concílio para a cidade de Bolonha. Ali, não se apro-
A resposta a um tal programa seria determinante pa- vou qualquer decreto. Em 1549, Paulo III, perceben-
ra aferir do grau de interesse e vontade de reforma, do a divisão cada vez mais acentuada entre os padres
sentida, efectivamente, pela Igreja do tempo. A cele- conciliares e o grupo afecto a Carlos V, decide-se pe-
bração do Concílio de Trento, que se processará por la suspensão. Trento reabre novamente em 1551. São
três períodos (1545-1549, 1551-1552, 1562-1563), aprovados alguns decretos sobre os sacramentos e
iniciados por papas diferentes - Paulo III, Júlio III e matérias disciplinares, com incidência particular nos
Pio IV - , será a resposta da Igreja às questões can- costumes dos clérigos e no melhor enquadramento
dentes colocadas pelo cristianismo do século xvi. Na dos benefícios eclesiásticos. Nesta fase da celebra-
primeira fase dos trabalhos há ainda uma presença ção, os padres são confrontados com uma situação
discreta de padres conciliares. Era o espelho de um nova. Os protestantes, que nos primeiros anos do
cristianismo demasiado dependente do poder tempo- concílio se tinham recusado a ir a Trento, fazem-se
ral. A ausência dos reformadores suscitará dúvidas agora presentes por meio de uma representação res-
sobre a real possibilidade de se atingir a unidade de- peitável. A esperança de um diálogo frutuoso fracas-
sejada. Os poderes civis, mormente os monarcas sou devido às exigências de conciliarismo que impu-
cristãos, receosos de um concílio reformador, não in- nham aos padres de Trento; a rejeição dessas
tuíram a iniciativa em curso como uma oportunidade propostas desmotivou o empenho protestante na ce-
de bonificação espiritual. O pragmatismo funcionou, lebração em curso. Na Primavera de 1552 eclode a
de forma diferenciada, nos múltiplos interventores guerra no Sul da Alemanha; os padres, sentindo-se
da celebração ecuménica. Para Carlos V, sem excluir ameaçados com a aproximação do conflito e servin-
os territórios latinos dele dependentes, pretendia-se do-se de uma cláusula papal que lhes dava a faculda-
um corpo de doutrina e orientações disciplinares que de de decidir sobre a oportunidade da continuação
fossem capazes de unir e pacificar o cristianismo do concílio, optaram pela sua suspensão. Assim ter-
germânico. Dessa aposta distanciaram-se os monar- minava a segunda fase do concílio. O último período
cas latinos; situados em territórios pouco permeáveis recomeçou em Janeiro de 1562. Aprovaram-se al-
às novas correntes, acabaram por concluir que a cen- guns decretos referentes à Eucaristia. O dever de re-
tralidade do concílio deveria ser apenas a erradica- sidência obrigatória para os bispos foi matéria de di-
ção da heresia. No dia da abertura dos trabalhos, o fícil abordagem. A natureza do assunto prestava-se a
número era extremamente reduzido; não ultrapassa- uma reforma complicada. A descaracterização de um
va muito as três dezenas. Posteriormente, outros bis- decreto, temido por muitos, dar-se-ia, se na formula-
pos foram chegando, aumentando a ecumenicidade ção do mesmo figurassem circunstâncias justificati-
cristã. A presidência do concílio, por decisão papal, vas para um tal absentismo. Em ordem a enfatizar a
ficou sob a responsabilidade de delegados pontifí- urgência de uma decisão vinculativa, corporiza-se
cios. As faculdades de delegação permitiam-lhes um um grupo na aula conciliar que defende o imperativo
poder alargado na dinâmica da celebração. A for- de residência como de origem divina. O confronto,
mulação dogmática e a reforma disciplinar foram que se gerou entre as diversas sensibilidades, provo-
prioridades acordadas dentro e fora do concílio. Do cou na assembleia um dos momentos mais tensos da
conjunto de decretos aprovados, tiveram particular última fase do concílio. As decisões finais sobre essa
impacte os referentes à Escritura e tradição. A au- matéria foram de compromisso e consenso. Foi, de
sência dos protestantes permitiu um rápido consen- facto, vontade do concílio expressar claramente um
so em atribuir à tradição um lugar quase equipara- quadro ideal de condições que permitisse o exercício
do ao da Escritura, constituindo as duas - Escritura do múnus episcopal. Os últimos meses de Trento be-
e tradição - fonte de revelação divina. Deste modo, neficiaram da presidência arguta e dinâmica do car-
demarcavam-se dos luteranos, acérrimos defenso- deal Morone. Soube este purpurado, num curto espa-
res da Escritura como única fonte de revelação. ço de tempo, propor e fazer aprovar uma série de
A centralidade da doutrina luterana assentava na reformas institucionais que irão ser de considerável
compreensão e convicção de que a justificação do impacte na vida geral da Igreja. No início de Dezem-
crente se dava exclusivamente pela fé. Dessa certeza bro de 1563, contrariando as perspectivas ainda em
resultava uma desvalorização do concurso humano curso, decide-se Morone pelo encerramento do con-
em ordem ao acto justificativo. Os padres em Trento cílio. A presença portuguesa no decorrer dos três pe-
sentiram-se na obrigação de proceder à elaboração ríodos foi modesta. Dentro do contexto participativo
de um decreto que pontualizasse doutrinalmente a da ecumenicidade cristã, os bispos e teólogos portu-
compreensão católica da justificação. O decreto defi- gueses fizeram depender a sua deslocação a Trento
nitivo não foi de elaboração pacífica: após a apre- da pessoa do monarca. Por razões acima referidas, o
sentação de várias propostas, aprova-se a formulação rei de Portugal, D. João III, entendeu a convocação
definitiva que se move entre o pelagianismo que re- ecuménica como ocasião oportuna para a erradica-

410
CONCÍLIOS ECUMÉNICOS

ção da heresia. No primeiro e segundo períodos, ti- católica, suspeitando do impacte do evento, não se
vemos lá apenas um bispo residencial; para o pri- quiseram alhear da celebração. Corporizam algumas
meiro, deslocou-se a Trento o bispo do Porto, acções, tendentes a reclamar uma forma de presença
D. Baltasar Limpo; no segundo, tivemos lá o bispo na futura reunião ecuménica. O espectro de se vir a
de Silves, D. João de Melo e Castro. A última fase concretizar a definição dogmática da infalibildade
reabre já após a morte de D. João III. A regência que papal mobilizou um ou outro governante a pressio-
lhe sucede assume a prática de um comportamento nar os seus bispos a não subscreverem uma tal ini-
anterior: abertura às iniciativas papais e solidarieda- ciativa. Após um período de preparação cuidadosa
de na resposta aos convites romanos. Para além das deu-se finalmente a abertura dos trabalhos concilia-
representações formais, acresce registar a acção par- res. O material agendado foi debatido na aula conci-
ticipativa do arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu liar (Basílica de São Pedro) à base de um regulamen-
dos Mártires, e do bispo de Coimbra, D. João Soares, to apresentado por Pio IX. Os primeiros meses de
no último período do concílio. A intervenção oportu- actividade centraram-se nas questões levantadas pelo
na do arcebispo de Braga e a preparação teológica racionalismo, naturalismo e outras correntes de ca-
do bispo de Coimbra deixaram marcas positivas nos rácter filosófico-teológico. Desse esforço resultou a
decretos aprovados na parte final do concílio. 4. Os aprovação da constituição dogmática Dei Filius (de
concílios do Vaticano: O I Concílio do Vaticano foi 24 de Abril de 1870), através da qual se respondia
convocado e aberto por Pio IX (1846-1878) a 8 de satisfatoriamente a inquietações legítimas dalguns
Dezembro de 1869. A iniciativa enquadra-se num centros teológicos; numa linha de consenso e num
período histórico particularmente conturbado da vida justo equilíbrio, harmonizavam-se dados de fé com a
da Igreja. As instituições políticas, sociais e culturais racionalidade imperante. Dentro da programação
tinham-se alterado profundamente após a Revolução conciliar, após a aprovação do Dei Filius, devia se-
Francesa e a consolidação do liberalismo na grande guir-se o debate do esquema sobre a Igreja - De Ec-
maioria dos países europeus. Esse novo ordenamen- clesia. Do conjunto de capítulos que compunham o
to teve sérias dificuldades em harmonizar-se com as dito esquema, nenhum referia expressamente a infa-
tradicionais instituições eclesiásticas. A Igreja, por libilidade pontifícia. Contemplava-se apenas o pri-
sua vez, não se mostrou contemporizadora com as mado do Papa. Perante uma matéria tão vasta e, aci-
novas realidades que, via de regra, se tinham impos- ma de tudo, de uma vaga de fundo que pressionava
to pela via revolucionária. Daí a persistência de uma por uma definição da infalibilidade papal, a presi-
suspeição e de um confronto dilacerante entre Igreja dência do concílio permite que um grupo de trabalho
e Estado. As novas correntes de pensamento afecta- se debruce sobre as prerrogativas pessoais do Papa
vam também os centros da inteligência católica. Pe- no exercício do seu ministério. Desse esforço resul-
dia-se uma nova formulação da fé, que fosse capaz tará um esboço sobre o primado e a infalibilidade
de estabelecer o justo equilíbrio entre fé e ciência, fé pontifícia. Será a partir desse material que os padres
e conhecimento racional. Do ponto de vista institu- conciliares, deixando de parte o esquema sobre a
cional, reclamava-se uma melhor clarificação do Igreja, irão trabalhar nos próximos meses. Até à
exercício do poder primacial do bispo de Roma. To- aprovação final do documento, resultante de um de-
do este conjunto de questionamentos levou Pio IX a bate intenso, sentir-se-á a oposição de um grupo coe-
ver na iniciativa ecuménica a possibilidade de rejei- so, conhecido por «minoria», que, de forma dialécti-
tar o naturalismo imperante, de restabelecer a or- ca, se baterá por uma prerrogativa papal ligada ao
dem sobrenatural e de reforçar a autoridade da Igre- consenso de toda a Igreja. A aprovação final da defi-
ja. Na óptica papal, seria a conclusão lógica de uma nição dogmática da infalibilidade pontifícia - Pastor
vaga de fundo que se fazia sentir em amplos sectores Aeternus - define o primado da jurisdição do Papa
da Igreja. Fora de Roma, a sensibilidade episcopal sobre toda a Igreja e a infalibilidade pessoal em defi-
corroborava as preocupações papais, alargando-as, nições solenes (ex cathedra), relativas à doutrina re-
no entanto, a outras áreas sensíveis do momento: ac- velada acerca da fé e dos costumes. O texto final não
tualização do direito canónico, procura de um justo contempla de forma explícita a necessidade jurídica
equilíbrio entre Igreja e Estado e um esforço de unida- do consenso do episcopado para que as definições
de com as Igrejas do Oriente. A par dessas grandes pontifícias tenham carácter infalível. Após a aprova-
questões, perfila-se a ideia, nalguns grupos restritos, ção deste documento, acontecimentos inesperados, a
de definir a infalibilidade papal como prerrogativa Guerra Franco-Prussiana, levaram o papa a suspen-
dogmática. O poder temporal do Papa era também vi- der sine die os trabalhos conciliares. Foram quatro
vido intensamente dentro e fora de Itália. A progres- os bispos portugueses que estiveram no Concílio Va-
são do reino de Itália, determinado a prosseguir na ticano I: D. António da Trindade de Vasconcelos Pe-
unificação de toda a península até ao estabelecimento reira, bispo de Lamego; D. Inácio Nascimento Mo-
de Roma como capital efectiva, via-se de repente rais Cardoso, bispo de Faro; D. Patrício Xavier de
confrontada com um dado novo, capaz de fazer in- Moura, bispo do Funchal, e D. José Luís Alves Fei-
flectir os apoios generalizados que de toda a Europa jó, bispo de Cabo Verde. O governo português não
chegavam ao governo de Florença. Decorrente desse se mostrou particularmente entusiasmado pela cele-
contexto histórico, restringe-se o convite formal de bração. Não impediu nem facilitou a participação
participação no concílio apenas aos bispos e a alguns episcopal portuguesa. Dessa equidistância ressen-
membros do clero religioso. Pela primeira vez, o po- tir-se-ão os diplomatas portugueses acreditados em
der civil é excluído formalmente de uma celebração Roma. No decorrer dos trabalhos, os prelados por-
ecuménica. Alguns governos, de países de tradição tugueses não tiveram, de facto, uma actuação que

411
CONCÍLIOS ECUMÉNICOS

merecesse qualquer reparo por parte das duas sensi-


bilidades presentes no concílio - maioria ou mino-
ria. Sem apoios económicos e assessoria teológica,
viram-se na contigência de alinhar por posições
previamente trabalhadas e, posteriormente, amadu-
recidas na aula conciliar. Foi dessa forma que, con-
trariando a sensibilidade política de Lisboa, vota-
ram a favor da infalibilidade (Pastor Aeternus).
O II Concílio Vaticano, convocado por João XXIII,
teve a sua abertura no dia 11 de Outubro de 1962.
A iniciativa papal enquadrou-se numa linha de pon-
tificado já expressa aquando do discurso da coroa-
ção. Efectivamente, desde os primeiros dias do seu
múnus apostólico, notou-se no pensamento e na ac-
ção do sucessor de Pio XII um afastar-se de questões
políticas, privilegiando uma dinâmica eminentemen-
te pastoral. Dessa forma, a pessoa do Papa passava a
ser referência de esperança e de humanidade para
uma sociedade ávida de encontrar um novo equilí-
brio espiritual. No intuito de abrir a Igreja ao mundo
envolvente, numa procura de diálogo sincero, ama-
durece João XXIII a ideia de convocar um concílio
ecuménico. O anúncio inesperado colhe de surpresa
a sensibilidade mais conservadora da Igreja e provo- João Paulo II (à direita) abraça o patriarca de
ca um considerável entusiasmo na maioria da popu- Constantinopla, Dimitrius I (Boa Nova, Ano LXXI,
lação católica. E possível que de início, na óptica do n.o 812, Julho de 1995, pág. 8).
papa, não estivessem presentes todas as consequên-
cias de uma tal iniciativa. Talvez quisesse uma refor- ções claras para a vida das comunidades cristãs.
ma que retocasse globalmente a vida da Igreja e não A um clericalismo duvidoso sobrepôs-se uma nova
propriamente uma mudança profunda, que pusesse compreensão do povo de Deus; afirma-se uma nova
fim a uma época. De todos os modos, naquele mo- confiança no homem; à prevenção e repressão impõe-
mento a história pedia uma direcção diversa e as for- -se agora uma paciente e aturada formação das cons-
ças da história ultrapassam por vezes as intenções ciências; há uma solidariedade inequívoca com o ho-
dos seus protagonistas. Após a constituição das co- mem e o mundo; de forma implícita, reconhecem-se
missões preparatórias e da apresentação dos esque- os aspectos positivos da secularização. Um dos as-
mas elaborados para a celebração ecuménica, corpo- pectos mais significativos, que marcará o período
rizam-se duas sensibilidades de natureza diversa. pós-Vaticano II, foi certamente a constituição de al-
Uma, mais aberta, é liderada por alguns membros do guns secretariados que relançarão o diálogo ecumé-
episcopado da Europa Central; outra, de pendor con- nico (v. E C U M E N I S M O ) e religioso. Pela primeira vez na
servador, é polarizada por alguns prelados da cúria sua história, a Igreja Católica insiste mais na herança
romana. O pensamento do papa sobre o concílio e o comum que propriamente nas razões da separação dos
projecto, que o deveria orientar, são dados a conhe- outros irmãos; aceitou, de forma consciente, o pluralis-
cer no discurso inaugural, onde se espelha uma men- mo do mundo secular. Neste concílio participaram pra-
te aberta e optimista sobre o futuro da Igreja; efecti- ticamente todos os bispos portugueses da metrópole e
vamente, a bondade, o optimismo e a simplicidade do ultramar. Entre o anúncio e a abertura conciliar, há
do papa João era para os padres presentes o começo pronunciamentos cautelosos da hierarquia portuguesa
de uma nova era. A morte inesperada de João XXIII em face da expectativa renovadora; matizam-se con-
a 3 de Junho de 1963 obrigou à suspensão do concí- ceitos e refreiam-se esperanças, acarinhadas por alguns
lio. Com a eleição de Paulo VI, retomam-se nova- sectores da Igreja. Já em Roma, sem uma assessoria
mente os trabalhos conciliares. O novo papa, sem se teológica, ressentem-se do isolamento nacional e das
afastar do espírito do seu antecessor, levará o concílio repercussões inevitáveis, no domínio cultural e ecle-
até à clausura final. Após quatro sessões, a documen- sial, que os tinha afastado das correntes mais sensíveis
tação conciliar - constituições, decretos e declarações à problemática da modernidade. Efectivamente, o am-
- apresenta-se como o resultado de compromissos ha- biente teológico português, devedor do saber das aca-
vidos entre tendências e sensibilidades diferentes. demias romanas, baseava-se numa teologia repetitiva
O conteúdo, no seu todo, revela o fim de uma época e de textos, com pouca investigação, e ainda muito liga-
o início de uma outra. As afirmações de princípio da a uma atitude defensiva de Igreja que tinha caracte-
mostrar-se-ão reveladoras de virtualidades altamente rizado o pensamento teológico do século xix. Após a
positivas para a nova forma de ser Igreja. O Vatica- primeira sessão e as outras que se seguiram, o impacte
no II encerrou definitivamente o período pós-triden- conciliar foi-lhes globalmente positivo; todos se deram
tismo e abriu um novo caminho na história da Igreja. conta que, por detrás da solenidade exterior e no diálo-
A universalidade da Igreja, presente no concílio por go franco entre as diversas correntes, se divisava uma
meio de 2500 padres conciliares, num trabalho cole- vitalidade eclesial respeitável. A atitude do episcopado
gial, elaborou novas formulações de fé e deu orienta- português foi exemplar; sem um protagonismo incisi-

412
CONCÍLIOS NACIONAIS

vo, soube acompanhar, com modesta participação, os ção, de uma província eclesiástica ou de uma dioce-
que melhor preparados estavam para levar a assem- se, tomando nomes próprios: nacionais ou plenários,
bleia ecuménica a dar uma renovação digna à Igreja. provinciais (v. CONCÍLIOS PROVINCIAIS) OU diocesanos,
Já no pós-concílio, pelos mais variados meios, de- respectivamente. A estes últimos dá-se também o
monstraram estar decididos a avançar na renovação nome de «sínodos». Os nacionais podiam assumir
eclesial, evitando imobilismos esterilizantes ou prota- o carácter de mistos, quando tinham a participação
gonismos perturbadores. de personalidades políticas e se ocupavam de proble-
DAVID SAMPAIO DIAS BARBOSA mas eclesiásticos e temporais que diziam respeito
aos interesses de uma Igreja ou de uma comunidade
BIBLIOGRAFIA: ALBERIGO, Giuseppe, org. - Storia dei concili ecumenici.
Brescia: Queriniana, 1990. ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em
política determinada. 1. Origem: Os concílios nacio-
Portugal. Porto: Civilização, 1967-1970. 3 vol. BAPTISTA, Júlio César - nais surgiram na história da Igreja a par do nasci-
Portugal e o Cisma do Ocidente. Lusitania Sacra. 1 (1956) 65-203. BAR- mento das nações, erguidas da desagregação do Im-
BOSA, David S. Dias - O Concílio Vaticano I e o governo português
(1869-1870). Lusitania Sacra. 1 (1989) 11-40. IDEM - Portugal em Trento:
pério Romano. Vieram substituir os então chamados
U m a presença discreta. Lusitania Sacra. 3 (1991) 11-38. BRAZÀO, Eduardo concílios diocesanos maiores, que compreendiam o
- O Concílio Vaticano 1 visto pelos diplomatas portugueses. Lusitania Sa- clero de cada uma das dioceses em que se organiza-
cra. 9 ( 1 9 7 0 - 1 9 7 1 ) 2 5 5 - 3 0 9 . CARVALHO, J . V a z d e - O s c o n c í l i o s e c u m é n i -
c o s d a A n t i g u i d a d e c r i s t ã . Brotéria. 7 4 ( 1 9 6 2 ) 3 7 7 - 3 9 4 , 6 1 7 - 6 3 6 . IDEM - O
va o cristianismo no Império. A sua convocação e
I Concílio do Vaticano. Brotéria. 75 (Í962) 129-140. CASTRO, José de - presidência pertencia ao primaz ou metropolita mais
Portugal no Concílio de Trento. Lisboa: União Gráfica, 1944-1946. 6 vol. autorizado ou a algum legado e também os convoca-
IDEM - O s p o r t u g u e s e s e m T r e n t o . Lúmen. 25 ( 1 9 6 1 ) 7 3 9 - 7 6 2 . CONCILIUM
tridentinum, diariorum. actorum, epistularium, tractatuum nova collectio. ram os reis quando, além de assuntos eclesiásticos,
Friburgi Brisgoviae: Edidit Societas goerresiana, 1901, vol. 5. CORPO DI- tratavam também de assuntos políticos. Os decretos
PLOMÁTICO PORTUGUÊS. Lisboa: Academia Real das Ciências, 1862-1936. destes concílios obrigavam apenas os fiéis sujeitos à
15 vol. DAMINO, Pietro - // contributo teologico di Bartolomeo de Martiri
al concilio di Trento. Roma, 1962. FIGUEIREDO, António Pereira de - Por- jurisdição dos prelados que os instituíam. Tendo em
tugueses nos concílios gerais. Lisboa: Oficina de António Gomes, 1787. vista a situação de Portugal na Península, para a épo-
GAMS, Pius Bonifacius - Series episcoporum ecclesiae catholicae. Ratis- ca medieval podem considerar-se três momentos de
bonae: Typis et sumtibus Georgii Josephi Manz, 1873, p. 93-112. JEDIN,
Herbert - Geschichte des Konziles von Trient. Freiburg i. Br.: Herder, realização de concílios nacionais: o que se segue à
1951-1975. 4 vol. IDEM - Kleine Konziliengeschichte. Freiburg i. Br.: Her- difusão e triunfo do cristianismo e que, na Península,
der, 1959. Trad. portuguesa, Concílios ecumênicos: História e doutrina.
São Paulo: Herder, 1961. LEITE, António - O concílio ecuménico. Broté-
vai até ao século VIII, quando a ocupação muçulmana
ria. 6 8 ( 1 9 5 9 ) 2 4 1 - 2 5 5 . IDEM - P e r s p e c t i v a s d o II C o n c í l i o V a t i c a n o . Bro- deitou por terra a sociedade cristã e a sua organiza-
téria. 74 (1962) 129-138. IDEM - O centenário do Concílio Vaticano I. ção, inclusive eclesiástica; o da Reconquista, que
Brotéria. 89 (1969) 601-605. MANSI, G. D. - Sacrorum conciliorum nova
et amplíssima collectio. Graz: Akademische Druck/u. Verlagsanstlat,
abrange os séculos seguintes, mais particularmente
1960-1962. 53 vol. PIRES, Celestino - Os teólogos portugueses e a Graça os séculos xi e xn, aqueles em que se realizaram
no Concílio de Trento. Lusitania Sacra. 3 (1958) 67-93. PROBLEMI di Storia tais assembleias em espaço geográfico ocupado pe-
delia Chiesa. Milano: Vita e Pensiero, 1976, p. 162-214. REIS, Martins dos
la cristandade leonesa e castelhana; posteriormente,
- Portugal e o Concílio Vaticano I. Alvoradas. Évora. 48 (1969) 76-94.
SCHTTATZ, Klaus - Los concílios ecumenicos. Madrid: Ed. Trotta, 1999. o período que diz respeito ao reino de Portugal.
TRINDADE, Manuel Almeida - Memórias de um bispo. Coimbra, 1993. 2. Época romano-visigótica: No período considera-
ZAMBARBIERI, A. - Los concílios dei Vaticano. Madrid: San Pablo, 1995. do, o mais antigo concílio a referir é o chamado
WERMERS, Manuel Maria - Portugal no Concílio de Trento. Theologica.
Braga. 2 (1956) 103-156. IDEM - Portugal no Concílio de Trento. Lusitania Concílio de Elvira, perto de Granada, celebrado tal-
Sacra. 1 (1956) 205-228. IDEM - D. Fr. Baltasar Limpo no Concílio de vez entre os anos 300 e 302, a 15 de Maio. Assisti-
Trento. Lusitania Sacra. 4 (1962-1963) 91-136. WITTE, Charles Marcial ram 19 bispos e 24 presbíteros, que assinaram as
de - Cinq lettres de D o m Baltasar Limpo au cardinal Marcello Cervini.
Lusitania Sacra. 10 ( 1 9 7 8 ) 75-99. suas actas. Dezoito dos referidos presbíteros eram os
únicos representantes das suas comunidades, talvez
mesmo por delegação do próprio bispo. Assistiram
CONCÍLIOS NACIONAIS. I. Época Medieval: De um também diáconos e povo, de pé, enquanto bispos e
modo geral, entende-se por concílio a assembleia presbíteros o fizeram sentados. Dentre os bispos pre-
ordinária de bispos e outros dignitários reunidos pa- sentes, três eram oriundos de território da Lusitânia:
ra deliberar e opinar sobre matérias eclesiásticas. Ossónoba (Vicente), Évora (Quinciano) e Mérida
Mais especificamente, são as reuniões de dignitá- (Libério). Dele saíram 81 decretos, a maior parte
rios eclesiásticos, convocadas pela autoridade com- dos quais trata de faltas e defeitos que importava
petente, para discussão e resolução de questões de corrigir, quase sempre acompanhados das respecti-
fé, moral ou disciplina. O número e carácter dos as- vas sanções, o que faz deles «as actas más anti-
sistentes permitem a classificação dos concílios em guas» que se conhecem «en toda la Iglesia univer-
gerais ou universais e particulares. Os concílios ge- sal de un concilio» ( S O T O M A Y O R - La Iglesia en la
rais são convocados e presididos pelo Papa, que Espana, p. 82). A sua obra disciplinar significa a
também pode transferi-los de lugar, prorrogá-los ou reestruturação da vida eclesiástica peninsular, no
dissolvê-los; neles tomam parte bispos, abades e car- momento após as perseguições, e num ambiente ain-
deais de todas as ordens, em número suficiente para da muito impregnado de paganismo. Ainda que para
se considerar que representam moralmente toda a um âmbito geográfico restrito (a Espanha), é nas
Igreja. As suas decisões - cânones ou decretos - suas actas (cânon 33) que se acha, pela primeira vez
constituem uma importante fonte do direito canóni- na Igreja universal, a obrigatoriedade do celibato dos
co. Podem ser ecuménicos ou perfeitos quando con- clérigos consagrados ao ministério do altar. Perante
vocados, presididos e aprovados pelo Papa e imper- o alastrar do movimento priscilianista e a sua denún-
feitos quando convocados pelos cardeais, bispos ou cia ao bispo de Mérida, província onde se achavam
príncipes católicos, em casos excepcionais e extre- os principais dignitários da Igreja protectores e se-
mos de crise, para eleger um pontífice. Por sua vez, guidores de Prisciliano, reuniu-se, em 380, em Sara-
os particulares podem congregar clero de uma na-

413
CONCÍLIOS NACIONAIS

goça, um concílio que pretendia resolver a dissenção que os responsáveis desejavam para a Igreja hispâ-
entre o clero da Espanha. Pouco concorrido de bis- nica. No mesmo século e na sequência da queda do
pos e com a ausência de todos os acusados, não al- reino visigodo de Toulouse (507), o centro de gravi-
cançou o objectivo e os acontecimentos precipita- dade do poder visigótico deslocou-se para a Penínsu-
ram-se. Assim, já no mês de Setembro do último ano la, para Barcelona primeiro, para Toledo depois.
do mesmo século, reuniu-se um concílio, em Toledo, Nesta fase da sua existência como reino independen-
onde se assistiu à condenação do priscilianismo*. te em território peninsular, e ainda sob a confissão
Nele participaram um bispo da Galécia, Emerencia- ariana, os Visigodos celebraram também alguns con-
no, do conventus de Lugo, e Patruíno de Mérida, na cílios. Os que se conhecem são provinciais e dizem
Lusitânia. Apesar disso, é bem provável que em apenas respeito à parte oriental da Península. A ex-
meados do século v (447) e por ordem do papa pansão dos Visigodos e a sua vitória sobre os Suevos
(Leão I), se tenha reunido um concílio, na Galécia, (585) pôde, por um momento, fazer perigar a conti-
ainda para condenar o priscilianismo. Contudo, a nuidade do catolicismo na Espanha. Contudo, cedo o
heresia continuava com alguns adeptos, como se rei (Leovigildo) entendeu que a unidade política de-
pode ler nas actas do II Concílio de Toledo (531) ou via fundar-se na unidade religiosa, sendo o III Con-
mesmo no I de Braga (561). Este concílio, com o cílio de Toledo (589) a ratificação solene da anterior
II de Braga, reunido em 572, são as realizações conversão do rei visigodo (Recaredo) e do seu povo
mais marcantes do reino suevo em matéria conciliar ao catolicismo. Este concílio marcou o início da sé-
e representam um decisivo impulso, sob o patrocí- rie visigótica dos concílios de Toledo (porém, nem
nio régio, para a renovação ou reorganização da todos nacionais), de tão larga repercussão na história
Igreja a nível «nacional». No primeiro, convocado deste reino. O imbricamento de política e religião
com autorização do rei Teodomiro para a soleniza- neles patente veio a dar um carácter especial às rela-
ção da conversão dos Suevos, estiveram presentes ções entre os dois poderes. Igreja e Estado uniram-se
oito bispos - Lucrécio, de Braga, São Martinho, de para conservar a unidade nacional. Os concílios,
Dume, André, de Iria, Lucêncio, de Coimbra, Ma- doravante reunidos quase sempre em Toledo, sede
lioso, de Britónia e Coto, Hilderico e Timóteo, do governo político e cuja sé foi promovida a me-
cujas sedes se desconhecem. Do II Concílio de Bra- trópole e a diocese primaz durante o século vn, re-
ga ressalta a reorganização jurídica suévica, com a presentaram a máxima cooperação entre Igreja e
existência de duas importantes circunscrições ecle- Estado e vieram a ser a melhor expressão dessa uni-
siásticas na mesma província da Galécia, o sínodo dade nacional. Através deles, a Igreja deu à monar-
de Braga e o de Lugo. Presidido por São Martinho quia e governo visigóticos toda a cultura e direito
de Dume, agora bispo de Braga*, os seus decretos romano e canónico e assim influenciou a legislação
representam uma renovação da Igreja, na atitude e a prática política. A frequência de reunião dos
dos seus chefes como guias de um povo onde pre- concílios a partir do IV de Toledo (633) - 14 em 62
dominavam práticas pagãs, idólatras e supersticio- anos - é bem a prova dessa aliança. Mas o governo
sas. Na conjugação das actas deste concílio com a não foi teocrático, nem hierocrático. Há que salien-
Divisio Theodemiri acha-se a organização jurídico- tar alguns concílios reunidos na Espanha sob o po-
-eclesiástica do reino suevo: a metrópole de Braga der visigótico. Já referimos o III (589), mas outros
sujeitava a si as dioceses da parte sul do reino, isto importam também. O IV (633), reunido sob a presi-
é, Braga, Dume, Porto, Lamego, Coimbra, Viseu e dência de Santo Isidoro, em ambiente de subleva-
Idanha, e Lugo a parte norte, onde se achavam as ções e traições ao poder régio, legislou sobre esta
dioceses de Lugo, Orense, Astorga, Iria, Tui e Bri- matéria. Foi então que se regulou o acesso ao trono:
tónia. Alguns autores identificam os chamados Ca- a eleição, cometida à nobreza e ao clero. Nalguma
pitula Martini (colecção de cânones de vários con- hesitação e ambiguidade entre a aceitação da depo-
cílios gregos e do I de Toledo, de 400, adaptados sição de um rei chegado ao poder pela graça de
por São Martinho às circunstâncias da Igreja suévi- Deus e a do antigo aforismo latino, caro a Santo Isi-
ca, mas que perduraram além dela, a provar o seu doro, que adverte os governantes (rex eris si recte
valor), como um complemento do seu autor a este facias, si non facias non eris), o concílio optou pela
concílio; outros consideram-nos como as actas de responsabilização máxima dos seus reis, ungidos do
um III Concílio de Braga, o que os leva a passar pa- Senhor, no carácter sagrado da monarquia. Sobre o
ra Concílio IV o de 675. Se, apesar da qualidade mesmo tema se pronunciaram outros concílios, no-
das existentes, não abundam as fontes para o estudo meadamente o VI (636) e o VIII de Toledo (653).
da Igreja suévica, muito menos informação existe Reafirmaram a reprovação da conspiração e da se-
sobre a Igreja hispânica do território não submetido dição, reiteraram o carácter electivo da realeza e
aos Suevos, entre os finais do século v e a primeira ocuparam-se de aspectos concretos do processo. No
metade do século vi, mormente no que diz respeito primeiro explicitaram-se algumas qualidades de que
à celebração de concílios. O que se afigura mais se devia revestir o candidato ao trono; no segundo
importante é o Concílio de Tarragona, de 516, que, regulamentou-se a eleição propriamente dita, quanto
no seu cânon 13, ao mandar que o metropolita con- ao local e aos eleitores, agora reduzidos aos maio-
vocasse os bispos para os sínodos provinciais e os res Palatii. Os reis tinham o poder de convocar os
fizesse acompanhar de presbíteros, de igrejas urba- concílios, mas era apenas um costume decorrente
nas e rurais, e de alguns seculares, bem como ao das relações entre Igreja e Estado, e integrava-se nas
instituir severas penas para os bispos que, convoca- concepções de poder próprias do tempo, em que o
dos, faltassem ao concílio, revela bem a dinâmica temporal participava dos planos divinos de salvação.

414
CONCÍLIOS NACIONAIS

Foi vasta a temática religiosa de que os concílios vi- perativos de consciência que era necessário aceitar
sigóticos se ocuparam: liturgia, sacramentos, moral, por convicção religiosa. Pela confirmação régia, as
idolatria, judaísmo*. O IV Concílio de Toledo (633), deliberações conciliares transformavam-se em ver-
com os seus 75 cânones, é considerado «el más im- dadeiras leis. Da interpenetração entre cânones e
portante de todos los concílios espanoles en el terre- leis colheu-se uma importante participação da Igre-
no disciplinar» ( D I C C I O N A R I O , vol. 1, p. 569). Nos ja na condução da sociedade visigótica no seu todo
seus cânones (e nos de muitos outros), perpassam as e, em particular, na sua legislação. E de destacar o
preocupações dos responsáveis pela Igreja visigótica papel dos concílios na elaboração do Código Visi-
com a prática religiosa das populações. Os sacra- gótico, sendo de realçar, no processo, a revisão da
mentos do Baptismo, da Penitência, da Eucaristia compilação ordenada por Recesvinto, levada a cabo
são temas frequentes das discussões e decisões con- no VIII Concílio de Toledo (653) e publicada talvez
ciliares. Por eles se procurava encaminhar o povo no ano seguinte, sob o nome de Liber Judiciorum.
cristão para o fim último - a salvação - mas também Importa também referir que, desde cedo, terá havi-
se buscavam normas de vida, que haviam de moldar do uma preocupação em guardar memória dos con-
e conformar uma sociedade rude e inculta. A forma- cílios realizados e dos seus cânones. São frequentes
ção do clero foi outra das grandes preocupações con- as alusões a cânones de concílios anteriores, quer
ciliares, nomeadamente do IV Concílio de Toledo, na sua invocação como norma a seguir, quer para os
marcado pela figura de Santo Isidoro. Quanto ao reforçar e pedir o seu cumprimento. Esse testemu-
problema judaico, pode dizer-se que ele esteve pre- nho aparece tanto nos concílios de Toledo, como nos
sente durante toda a monarquia visigótica, se não provinciais, donde se prova a existência de colec-
mesmo que esta herdou uma situação de mal-estar ções canónicas, destinadas à orientação das cons-
latente entre a população cristã e a judaica. Sendo ciências, à regulamentação da prática conciliar e à
certo que os interesses e objectivos do Estado e da preservação da memória. A mais famosa é a chama-
Igreja eram coincidentes quanto aos judeus, pois pa- da Collectio canonum ecclesiae Hispanae, vulgar-
ra ambos eles representavam a impossibilidade de mente conhecida por Hispana, cuja compilação foi
alcançar a unidade que cada um procurava, não ad- atribuída a Santo Isidoro, embora sem razões con-
mira que a sua presença, nos vários contornos que cludentes. A frequente realização de concílios na Es-
podia adquirir, seja uma constante na legislação con- panha visigoda obstou a desvios e deu-lhe força e
ciliar visigótica. Os concílios também se debruçaram vigor. Na unidade procurada nos concílios - eles
sobre o património da Igreja e a sua gestão e ainda mesmos, na sua colegialidade, prova do sentido de
sobre questões de organização administrativa ecle- um corpo nacional - , a Igreja visigoda alcançou a
siástica, como a eleição, direitos e deveres do epis- consciência da sua personalidade e da sua coerência.
copado. Assim, apesar de as assembleias dos bispos Por isso, adquiriu uma faceta nacionalista, com al-
visigodos também se ocuparem de matéria política e gum cunho de autonomia, embora haja provas sufi-
secular, nunca perderam a sua razão essencial no que cientes de que mantinha os contactos com Roma e,
lhes competia de deliberação dos assuntos estrita- de um modo geral, se procurava conformar aos seus
mente eclesiásticos, nas suas vertentes de disciplina, ensinamentos e directrizes. 3. Época da Reconquis-
organização, vida material e cuidado espiritual. ta: A ocupação da Península Hispânica pelos muçul-
Além dos bispos e sacerdotes em sua representação, manos, no início do século vm, com a desorganiza-
podiam assistir também abades, sacerdotes e diáco- ção que provocou, veio alterar toda esta prática. Nos
nos e ainda seculares, como o rei, a rainha e nobres primeiros séculos da ocupação muçulmana os concí-
do seu palácio (da aula regia ou officio palatino). lios reuniram-se sob o poder emiral e foram pontuais
Daí que os concílios visigóticos possam ser conside- e circunscritos aos problemas da Espanha moçárabe.
rados mistos. Era ao rei que pertencia a apresentação Reuniram-se em Córdova, no século ix. Dois deles,
do tomo régio, isto é, da mensagem em que propu- os mais conhecidos e, talvez mesmo, os mais impor-
nha os temas - temporais e espirituais - a tratar no tantes (852 e 860), ligaram-se aos problemas da co-
concílio. É consensual que aos leigos ficava apenas munidade moçárabe. Em maioria, mas política e so-
direito a voto em questões seculares ou, quando mui- cialmente relegados para segundo ou terceiro plano
to, mistas. A legislação conciliar visigótica era confir- pelos muçulmanos, os moçárabes*, aculturados pelo
mada pelo rei que, desse modo, secundava e reforça- contacto inevitável, mas incapazes de reagir perante
va as decisões dos próprios bispos. O peso dos temas o domínio centralizador dos Omíadas, acharam na
temporais e a representação secular nos últimos con- provocação dos muçulmanos, pela sua fé ostensiva e
cílios toledanos foi tal que levaram A. Echánove a exaltada, o meio de resistir ao poder dominante e re-
considerar que a partir do XII Concílio de Toledo clamar uma superioridade que julgavam possuir e
(681) «los concílios comienzam a tomar el desagra- um protagonismo que supunham assistir-lhes. Os
dable aspecto de Cortes dei reino» (Precisiones, concílios, convocados pelo emir, de pouco valeram,
p. 276). Mas mesmo sem este exagero pode dizer- pois foi dúbia a sua posição: tanto condenavam a
-se que a confirmação régia dos cânones conciliares exaltação, como aceitavam o martírio. Reuniram-se
procurava dar-lhes mais que o valor estritamente ainda outros dois, um anterior às referidas perturba-
eclesiástico, isto é, o poder temporal atribuía-lhes o ções (839), outro ligeiramente posterior ao seu apo-
valor de lei civil, que obrigava não apenas em cons- geu (862). Ocuparam-se de problemas internos, de
ciência e sob penas eclesiásticas, mas também sob heresia (cassianismo), originariamente estranhos à
penas civis. Ao mesmo tempo, o poder régio procu- comunidade moçárabe, mas que a perturbavam, so-
rava neles não a imposição civil da lei, mas os im- bretudo quanto a concepções sacramentais e aspec-

415
CONCÍLIOS NACIONAIS

tos de prática religiosa. Assim, foi necessário esperar de D. Crescónio, abade do Mosteiro de São Bartolo-
pela sólida afirmação do poder político leonês e pela meu de Tui, como bispo de Coimbra. O avanço da
reorganização mínima das instituições religiosas do Reconquista, obrigando a repetidos arranjos no mapa
seu reino, para que eles se pudessem realizar. Ao das jurisdições eclesiásticas, com a restauração das
mesmo tempo, a reforma gregoriana, com o novo sés episcopais e a criação de novas dioceses, provo-
alento que procurou para a Igreja, havia de os revi- cou reivindicações e problemas, que obrigaram a
gorar, já no século xn, por intermédio dos legados reuniões conciliares, onde a matéria foi maioritária
apostólicos. Nestas circunstâncias, os mais impor- ou, até, exclusiva, algumas vezes. As pretensões de
tantes concílios nacionais que se realizaram na Espa- Compostela haviam de se mostrar de particular inte-
nha cristã dos séculos xi e xn, com maior interesse resse para as terras de Portugal. Desde cedo que esta
para as terras do futuro Portugal (ou, já mais tarde, diocese se mostrou activa na reunião de assembleias
do próprio reino de Portugal), foram os de Coiança de carácter eclesiástico, havendo notícia de concílios
(1055), Burgos (1081, 1117 e 1136), Palência (1101) aí realizados, de carácter reformador, na linha do de
e Valhadolid (1143 e 1155), podendo assinalar-se Coiança, em 1061, 1063 e 1075. Este último foi um
mais um outro, de menor revelância. O primeiro, grande concílio, de restauração eclesiástica, a que
sendo o mais antigo de que há notícia no reino de esteve presente o bispo D. Pedro, de Braga. Ainda
Leão é, nas palavras de G. Martinez, «más de restau- sob o ponto de vista de reorganização eclesiástica,
ración que de reforma» ( D I C C I O N A R I O , vol. 1, p. 544). um dos que assumiu grande importância para Portu-
Sob a presidência de Fernando Magno de Leão e gal foi o Concílio de Palência, de 1101. Presidido
Castela e com a assistência da rainha, dos bispos do pelo cardeal-legado Ricardo, nele foi restaurada a
seu reino, abades e outros clérigos e ainda nobres, os metrópole de Braga. Embora, em simultâneo, se as-
seus 13 cânones (cujo texto autêntico se acha no Li- sistisse a uma redução da área do seu poder, com
vro preto da Sé de Coimbra) mostram a preocupação a submissão imediata da diocese de Compostela à
da restauração da disciplina e das tradições visigóticas Santa Sé*, era um facto da maior importância para
da Igreja peninsular, tanto na vida religiosa secular Braga. No mesmo concílio tomou-se também uma
como monástica. Está patente uma certa decadência medida muito importante, relativamente ao regime e
moral do clero, fruto do processo de senhorialização estilo de vida dos cónegos seculares, isto é, dos
então em vigor na Península. Por isso se propõe o re- membros dos cabidos seculares catedralícios. Tra-
torno do clero a formas de vida mais rigorosas, de tou-se da separação dos bens da mensa episeopalis
acordo com os cânones da tradição visigótica. Po- dos da mensa eapitularis. Inicialmente, foi decisão
rém, o tempo veio mostrar que de pouco valeu tal para aplicação no âmbito da diocese local (Palência),
preocupação. A força centralizadora da reforma gre- mas a prática foi-se alargando durante os séculos xn
goriana havia de fazer tábua rasa dessas tradições, e xiii às demais dioceses da cristandade hispânica.
embora com alguma resistência local. A mudança A reorganização da vida eclesiástica na Península,
foi consumada, legalmente, em concílio posterior, is- nos seus aspectos administrativos, a par com as
to é, o de Burgos, de 1081. Impuseram-se influên- realidades políticas que se iam desenhando, come-
cias uniformizadoras, e a força poderosa dos refor- çava então a mostrar os seus múltiplos problemas.
madores obrigou a uma nova prática cultual que No que nos importa, os problemas de obediência de
alterou a tradicional, caldeada dos séculos vi ao viu. Coimbra a Braga ou a Mérida (ainda por restaurar)
Por diploma real, foi aceite o romanum mysterium in estiveram presentes no Concílio de Burgos, de
omni regno regis Alfonsi e o dignissimum romanae 1117, bem como se firmou aí um acordo entre re-
institutionis officium substitui a superstitio toletana. presentantes da Igreja do Porto e da dc Coimbra, em
Porém, a luta da Reconquista, a sua dinâmica e evo- luta por questões de delimitação territorial. Presidido
lução, haviam de fazer renascer o choque em cada pelo cardeal-legado Boso, igualmente aí se tomou
igreja que, de novo, se alcançava para a cristandade uma decisão de largo alcance no século xn. Misto de
hispânica. Com o afastamento da tradição, perdia pa- disciplina eclesiástica e de pretensões políticas, aí se
pel e significado a antiga colecção canónica da His- decidiu a promulgação de excomunhão para casa-
pânia. Começava o tempo do novo direito canónico, mentos entre parentes até ao sétimo grau de consan-
inspirado por Roma, que fazia dele um instrumento guinidade. Ainda na mesma cidade se reuniu novo
do seu poder para a submissão da Cristandade. Esta concílio, poucos anos depois (1136). Tratavam-se
influência estrangeira e uniformizadora está também essencialmente questões de disputas de territórios
presente no Concílio de Leão, de 1090, que prova- diocesanos. Em Setembro de 1143 reunia-se novo
velmente tomou alguma medida quanto à substitui- concílio, agora em Valhadolid, na presença do car-
ção da escrita visigótica pela carolina ou francesa. deal-legado Guido de Vico. Estiveram presentes di-
Contudo, mais que qualquer mudança súbita, «el gnitários das Igrejas seculares leonesa, castelhana e
concilio confirma, estimula y refuerza un cambio» portuguesa, alguns abades, gente preeminente e ain-
que se vinha operando por essa influência estrangei- da o imperador Afonso VII de Leão e Castela. Tra-
ra, no caso, particularmente francesa ( G A R C Í A Y G A R - tou-se, essencialmente, da promulgação, na Penín-
CIA - Iglesia, p. 386). Mas que a tradição ainda tinha sula, dos cânones do II Concílio de Latrão (1139),
algum peso mostra-o a decisão, do mesmo concílio, adaptados às realidades específicas da sua Igreja. Na
de aceitar a Regra de Santo Isidoro nos ofícios ecle- sequência do concílio, e agora já com a presença de
siásticos, ainda que talvez apenas no número e distri- Afonso Henriques, rei dos Portugueses, ter-se-ão tra-
buição das horas. Na mesma linha reformadora as- tado também alguns pontos de divergência entre os
sistiu-se, em 1088, no Concílio de Husillos, à eleição dois governantes presentes, talvez questões territo-

416
CONCÍLIOS NACIONAIS

que tenham sido relegados, de algum modo, os an-


seios da reforma profunda da Igreja que animara os
últimos tempos do século anterior. 4. Reino de Por-
tugal: Ter-se-ia de esperar até ao século XIII para se
verem os bispos portugueses reunidos em concílio
nacional ultrapassando, por isso mesmo, a estrita
obediência metropolítica. E isto porque, como é sa-
bido, o território de Portugal se repartia, então, por
três metrópoles eclesiásticas: Braga, Compostela e
Sevilha. Foi em 1262, quando era necessário tomar
algumas importantes decisões que envolviam o futu-
ro do reino. Desaparecida a situação de bigamia em
que o rei Afonso III vivera desde 1253, pela morte
da sua primeira esposa, Matilde de Bolonha, ocorri-
da em 1258, ao que tudo parece indicar, havia que
tomar providências que passavam pela ordem ecle-
siástica, mas cujos objectivos a ultrapassavam, em
muito. Se o interdito no reino lançado pelo arcebispo
de Compostela e pelo bispo de Mondonhedo, à or-
dem de Alexandre IV, pela contumácia de Afonso III
e Beatriz de Castela em continuarem a fazer vida em
comum já não tinha sentido, cumpria aos represen-
tantes do clero nacional intervir junto do papa (Ur-
bano IV), para o seu levantamento e consequente
regularização da situação matrimonial do rei. Isso
equivaleria ao reconhecimento e legitimação do seu
segundo casamento, o que traria a legitimação dos
filhos já nascidos. Esta, por sua vez, seria a garantia
do porvir do reino de Portugal. Foram todos estes
problemas que levaram o arcebispo de Braga, D. Mar-
tinho Geraldes, a convocar para Braga uma reunião
de todos os bispos de Portugal (independentemente
Frontispício do Livro Preto da Sé de Coimbra, 1977. da metrópole a que pertenciam) e ainda o bispo de
Tui, sufragâneo de Braga. A reunião é conhecida pe-
Lisboa, Biblioteca Nacional.
la carta que então foi enviada ao papa. Nela são refe-
riais na região da fronteira oriental portuguesa, por ridos os bispos presentes: arcebispo de Braga e os
onde se poderia expandir a luta contra os muçulma- bispos de Tui, Porto, Coimbra, Évora, Guarda, Viseu
nos. Este encontro do rei dos Portugueses com o le- e Lamego, com os representantes dos respectivos ca-
gado pontifício terá sido também oportunidade para bidos, bem como do de Lisboa (o bispo de Lisboa,
aquele se ter tornado vassalo da Santa Sé, na busca D. Mateus, recentemente eleito, não se devia en-
do seu objectivo máximo, o de ver confirmada de di- contrar em Portugal, mas na cúria papal). Quanto
reito a independência em que vivia, de facto, desde ao de Silves, D. Garcia, além de pertencer à metró-
1128, e se consolidava com o passar do tempo. Al- pole de Sevilha, fora nomeado por Afonso X de
guns anos depois (1155), sendo legado o cardeal Ja- Castela; nenhum vínculo o ligava a Portugal. O do-
cinto, de novo a mesma cidade viu a reunião de um cumento não encerra apenas o pedido, devidamente
outro concílio. Para Portugal, mais importante que as fundamentado, dos bispos portugueses ao papa, de
suas decisões terá sido a recusa do arcebispo de Bra- levantamento do interdito e da legitimação do casa-
ga, D. João Peculiar, a tomar parte nele. Isso equiva- mento do rei e dos filhos já nascidos (D. Branca e
leria a aceitar a primazia do arcebispo de Toledo, D. Dinis). Justifica também o acto de bigamia em
que o papa havia ordenado dever ser reconhecida que o rei incorrera. E quer para este, quer para o seu
por todos os metropolitas da Espanha. Mostrando-se pedido, os bispos invocam razões políticas. Para o
irreversível o processo da independência de Portu- acto do rei, isto é, para o seu segundo casamento,
gal, a partir do seu reconhecimento pela Santa Sé, sendo viva a primeira esposa, apresentam o perigo,
em 1179, e desaparecido também o império de Afon- para o reino, da sobrevivência da condessa ao mari-
so VII, deixava de ter sentido a presença de bispos do; por sua vez, o seu pedido era suficientemente
portugueses - enquanto tal - em concílios do reino justificado pelo «proveito comum», a «paz do reino»
de Leão ou de Castela. Da sua presença - ou ausên- e a necessidade de garantir uma sucessão legítima no
cia -, bem como da dos seus pares, nos concílios na- trono. Conhecendo-se esta reunião apenas por este
cionais do reino de Leão e Castela, no século xn, documento, parece lícito poder concluir-se que ela
ficou uma enorme preocupação com os problemas teve um objectivo essencialmente político. Sendo
colocados pela reorganização eclesiástica dentro dos bastante possível que o rei tivesse conhecimento da
novos quadros políticos que a Reconquista ia dese- sua realização, e até da intenção do arcebispo ao
nhando, com as suas flutuações e com alguns con- convocá-la, poder-se-á dizer que a Igreja servia ob-
frontos políticos entre os chefes cristãos. Isto explica jectivos políticos. Por um momento da história re-

417
CONCÍLIOS NACIONAIS

na: I: La Iglesia en la Espanã romana y visigoda. Madrid: BAC, 1979.


ccnte portuguesa, poder religioso e poder político LÍBER Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae. Ed. critica de Avelino de Jesus
estavam de acordo num mesmo objectivo, a que o da Costa. Braga: Junta Distrital; Assembleia Distrital de Braga, 1965,
clero chamou «proveito comum». Talvez em 1383 1978, 1990. 3 vol. LA COLECCIÓN canónica hispana: IV: Concílios Godos:
Concílios Hispanos. Dir. Gonzalo Martinez Diez e Félix Rodriguez. Ma-
(e não 1381, como tradicionalmente é referido) as- drid, 1984. LIVRO Preto da Sé de Coimbra. Ed. crítica de Avelino de Jesus
sistiu-se, em Santarém, a uma reunião do rei D. Fer- da Costa, Leontina Ventura e M. Teresa Veloso. Coimbra: Arquivo da
nando com os prelados e alguns clérigos do seu rei- Universidade de Coimbra, 1979, vol. 3. MARQUES, Maria Alegria Fernan-
des - O papado e Portugal no tempo de D. Afonso III (1245-1279). Coim-
no, considerada como o último concílio nacional da bra: Faculdade de Letras, 1990. Ed. policopiada. IDEM - A restauração das
época medieval. Instalado o cisma na Igreja, em dioceses de Entre Douro e Tejo e o litígio Braga-Compostela. 2." Con-
1378, as igrejas nacionais (sobretudo as mais afasta- gresso Historico, Actas do Congresso de Guimarães: Guimarães, 1996,
vol. 5. MARTINEZ DIEZ, Gonzalo - Concílios espanõles anteriores a Trento.
das do conflito) viram-se confrontadas com a neces- Repertorio de Historia de las Ciências Eclesiásticas en Espanã. 5 (1976)
sidade de proceder à escolha do papa a quem obede- 299-350. OLIVEIRA, Miguel de - História eclesiástica de Portugal. 4." ed.
cer. Os reis peninsulares foram então visitados pelo Lisboa: União Gráfica, 1968. Ruiz de LOIZAGA, Saturnino - Iglesia y so-
ciedad en el norte de Espana (Alta Edad Media). [Burgos]: La Olmeda,
cardeal cismático Pedro de Luna, núncio do papa 1991. SANTOS, Manuel dos, fr. - Monarquia lusitana. Ed. fac-similada, int.
avinhonês Clemente VII, que pretendia reforçar o A. da Silva Rego e notas de A. Dias Farinha e Eduardo dos Santos. Lis-
seu partido junto da Cristandade. Veio a encontrar boa: INCM, 1978. VIVES, José; MARÍN, Tomás; MARTINEZ, Gonzalo - Con-
cílios visigóticos e hispano-romanos. Barcelona; Madrid, 1963.
o rei de Portugal em Santarém, o qual entendeu por
bem convocar os altos dignitários eclesiásticos do
seu reino para ouvirem o cardeal e se pronunciarem II. Concílio Plenário Português: Realizou-se em
sobre a questão. E eles ter-se-ão decidido pela obe- Lisboa de 24 de Novembro a 3 de Dezembro de
diência ao papa de Roma, Urbano VI. Não se conhe- 1926. As profundas modificações sociais ocorridas
ce qualquer documento original que ateste esta reu- sobretudo na Europa em consequência da Grande
nião. A sua notícia foi divulgada por Frei Manuel dos Guerra (1914-1918) alteraram profundamente a si-
Santos, na parte V I I I da Monarquia lusitana. Ter-se-á tuação da Igreja em diversos países. A promulgação
tratado de uma reunião algo restrita, onde só toma- do novo Código de Direito Canónico (1917) exigia
ram parte dignitários partidários de Urbano VI, co- também a concretização de algumas normas genéri-
mo o arcebispo de Braga, os bispos do Porto e de cas que nele se encontravam. Em Portugal, além
Lamego, o deão de Coimbra, outros eclesiásticos e destes factores, ocorreram as medidas persecutórias
alguns letrados. Tradicionalmente conhecidos por da Igreja dos primeiros tempos da República, desig-
concílios, estas duas reuniões de prelados só em sen- nadamente a Lei da Separação (20 de Abril de 1911),
tido lato se podem assim considerar. Foram assem- que modificaram profundamente a situação da Igreja.
bleias de dignitários eclesiásticos, com carácter na- A maneira tradicionalmente preconizada para ocor-
cional, que se debruçavam sobre questões do maior rer a tais problemas era a celebração de concílios
interesse para o reino de Portugal, sobretudo no seu provinciais, especialmente para promover a discipli-
aspecto das relações com a Santa Sé. na eclesiástica e para orientações de carácter pasto-
MARIA ALEGRIA FERNANDES MARQUES ral. Assim sucedeu um pouco por todo o mundo. No
BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal.
nosso país, no entanto, pareceu preferível que em
Nova ed. Porto: Portucalense Editora, 1967-1971. 4 vol. BAPTISTA, Júlio vez de se celebrarem concílios nas quatro províncias
César - Portugal e o Cisma do Ocidente. Lusitania Sacra. I (1956) 65- eclesiásticas (Braga, Lisboa, Évora, e Goa para o Pa-
-203. BARBERO, Abilio; VIGIL, Mareei - Laformación dei feudalismo en la
Península Ibérica. Barcelona: Editorial Crítica, 1978. BRANDÃO, António,
droado* Português do Oriente) se realizasse um con-
fr. - Monarquia lusitana. Ed. fac-similada, int. de A. da Silva Rego e no- cílio plenário extensivo a todas estas dioceses, previs-
tas de A. Dias Farinha e Eduardo dos Santos. Lisboa: I N C M , 1973. CODO- to aliás no novo código. O papa Pio XI, informado
NER, Carmen - Notas sobre el III Concilio de Braga. In CONGRESSO DE ES-
TUDOS DA COMEMORAÇÃO DO X I I CENTENARIO DA MORTE DE S . FRUTUOSO -
acerca deste projecto, aprovou-o gostosamente, e por
Actas. Bracara Augusta. Número especial. 21 (1967) 117-122. COSTA, carta de 15 de Março de 1925 nomeou seu legado
Avelino de Jesus da - Data do Concílio I de Braga: 1 de Maio de 561 : Er- para presidir ao concílio o cardeal-patriarca de Lis-
ros que originaram a diversidade de opiniões. In CONGRESSO DE ESTUDOS
DA COMEMORAÇÃO DO X I I CENTENARIO DA MORTE DE S . FRUTUOSO - Actas. boa, D. António Mendes Belo. Começaram logo os
Bracara Augusta. Número especial. 21 (1967) 166-198. Reeditado, com trabalhos preparatórios, tendo sido encarregados
estampas, em Estudos de cronologia, diplomática, paleografia e históri-
co-linguísticos. Porto: Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais. 1992,
de redigir o projecto dos decretos o bispo coadjutor
p. 9-51 + 2 5 estampas. IDEM - Coimbra: centro de atracção e de irradiação de Lamego*, D. Agostinho de Jesus e Sousa, e o pa-
de códices e de documentos, dentro da Península, nos sécs. xi e xn. In JOR- dre Dr. António Durão Alves SJ. O projecto foi de-
NADAS LUSO-ESPANHOLAS DE HISTÓRIA MEDIEVAL, 2 - Actas. Porto, 1990,
vol. 4. Separata. IDEM - Dedicação da Sé de Braga: 28 de Agosto de
pois enviado a todos os bispos portugueses para que
1089: Resposta a Bernard F. Reilly. Braga: Cabido Metropolitano e Pri- o examinassem e enviassem as suas observações.
macial de Braga, 1991. IDEM - O bispo D. Pedro e a organização da dio- A 24 de Setembro de 1926, o cardeal-legado pro-
cese de Braga. 2." ed. N o prelo. DAVID, PierTe - Études historiques sur la
Galice et le Portugal du Vf au xtf siècle. Lisboa; Paris: Bertrand; Belles
mulgou o decreto de convocação do concílio para o
Lettres, 1947. DICCIONARIO de história eclesiástico de Espana. Dir. Quintin dia 24 de Novembro de 1926. Nele tomaram parte,
Aldeã Vaquero, Tomás Marin Martinez e José Vives Gatell. Madrid: Insti- como padres conciliares, 21 bispos e o vigário capi-
tuto Enrique Florez; Consejo Superior de Investigaciones Cientificas,
1972 e 1975. DICTIONNAIRE de droit canonique. Dir. R. Naz. Paris-VI: Li- tular de Angola* e Congo, sede vacante. Não pude-
braire Letouzey et Ané, 1942, vol. 3. DICTIONNAIRE historique de la Papau- ram comparecer o bispo de Viseu*, por motivo de
té. Dir. Philippe Levillain. Paris: Librairie Arthéme Fayard, 1994. ECHANO- doença, e o arcebispo-bispo de Vila Real*, ausente
VE, A. - Precisiones acerca de la legislación conciliar toledana sobre los
judios. Hispania Sacra. 14 (1961) 259-279. ERDMANN, Cari - Papsturkun- no Brasil, os quais enviaram os seus representantes
den in Portugal. Berlim: Weidmannsche Buchhandlung, 1927. FERNANDEZ que participaram nos trabalhos conciliares, mas sem
CATÓN, José Maria, dir. - El reino de Léon en la Alta Edad Media: I: Cor- voto. Não compareceram também o arcebispo de Goa
tes, concílios y fueros: II: Ordenamiento jurídico dei reino. Léon: Centro
de Estúdios y Investigación «San Isidro»; Caja Espanã de Inversiones; Ar- e patriarca das índias, e os bispos de Cochim e Ma-
chivo Histórico Diocesano, 1988 e 1992. GARCÍA Y GARCÍA, Antonio - cau* do Padroado Português do Oriente. Colaboraram
Iglesia, sociedade y derecho. Salamanca: Universidad Pontifícia, 1985 e
1987. GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo, dir. - Historia de la Iglesia en Espa-
também nos trabalhos do concílio mais de 40 sacer-

418
CONCÍLIOS PROVINCIAIS

dotes de ambos os cleros, como consultores e peritos, BIBLIOGRAFIA: IGREJA CATÓLICA. Concílio Plenário Português, 1926 -
Concílio Plenário Português (MCMXXVI): Pastoral Colectiva: Decretos:
mas sem voto. A sessão solene de abertura, realizada Apêndice (Documentos). Lisboa, 1931. 2. a ed. e m formato m e n o r data-
a 26 de Novembro de 1926 na Sé Patriarcal de Lisboa da de Lisboa, 1939. IDEM - Concilium Plenarium Lusitanum, Olisipone
com grande esplendor litúrgico, assistiram vários mi- actum An. 1926: Acta et Decreta. Lisboa, 1931.

nistros e outras autoridades, e muito povo. As outras


sessões solenes, destinadas sobretudo a discutir e CONCÍLIOS PROVINCIAIS. Ficou dito (v. CONCÍLIOS
aprovar os decretos conciliares, realizaram-se nos dias NACIONAIS) que os concílios provinciais se caracteriza-
27, 29 e 30 de Novembro e 1 de Dezembro. A sessão vam essencialmente por serem reuniões que congrega-
de encerramento celebrou-se no dia 3 de Dezembro, e vam o clero de uma província eclesiástica, convoca-
no impedimento, por doença, do cardeal-patriarca, foi dos pelo respectivo metropolita para a resolução de
presidida pelo arcebispo de Braga D. Manuel Vieira problemas próprios. Contudo, o metropolita só podia
de Matos. Nos intervalos os padres conciliares e os usar esse poder após a recepção do pálio, isto é, a in-
consultores reuniam-se em sessões de estudo para a sígnia do seu poder. No caso de impedimento ou de
discussão e exame dos decretos que depois iriam ser sede vacante, era ao bispo sufragâneo mais antigo na
submetidos à votação nas sessões solenes. O concílio promoção a uma das sés da província que cabia essa
aprovou 503 decretos ou artigos, dispostos pela mes- tarefa. Aos concílios provinciais eram chamados
ma ordem do Código de Direito Canónico: I - Das todos os bispos sufragâneos, ainda que por sagrar,
pessoas (clérigos em geral, Papa, bispos, cúria dioce- os vigários capitulares que governavam as dioceses,
sana*, cabidos, vigários forâneos, párocos e seus vi- os bispos isentos directamente dependentes da Santa
gários, religiosos, leigos e suas associações); II - Das Sé, os cabidos catedralícios, e os abades dos institu-
coisas (sacramentos e sacramentais, lugares e tempos tos religiosos, mesmo os isentos. Todos os ausentes
sagrados, culto divino, pregação, seminários, livros e por justo impedimento eram obrigados a justificar-se
outras publicações, e bens temporais da Igreja). No e a enviar procurador. Os negligentes podiam ser su-
último decreto (503) reconhece-se que a situação era jeitos a sanção disciplinar. Os leigos podiam assistir
muito diversa nas dioceses de Portugal continental e aos concílios provinciais quando procuravam justiça
insular, e nas regiões ultramarinas. Nestas, os decretos ou se defendiam, ficando excluídos de todos os de-
conciliares não poderiam ser integralmente observa- bates que diziam respeito a matérias eclesiásticas.
dos; e por isso não se aplicavam a estas regiões. Mas Na história da Igreja conhecem-se reuniões concilia-
o concílio fez votos para que tanto no Portugal euro- res provinciais desde o século in. O Concílio de Ni-
peu como nas regiões ultramarinas se introduzisse, ceia, de 325, regulamentou a sua periodização: duas
quanto fosse possível, a mesma disciplina. Como era vezes por ano, antes da Quaresma e no Outono. Mas
de regra, as actas e os decretos do concílio tiveram de esta sofreu algumas modificações, tendo vingado a
ser traduzidos para latim, e depois submetidos à revi- prática da sua realização apenas uma vez por ano.
são e aprovação da Sagrada Congregação do Concí- Para a Península sabe-se mesmo que o III Concílio
lio. Esta modificou alguns artigos e até substituiu um de Toledo a justificou, atendendo às grandes viagens
ou outro. Por fim aprovou o texto latino por decreto que implicavam e à pobreza da Igreja de Espanha.
de 27 de Março de 1929, que veio a ser promulgado e Contudo, esta periodicidade nem sempre foi obser-
publicado, juntamente com as actas e um minucioso vada, tendo havido alguma paralisia na sua prática.
índice alfabético, no ano seguinte. O texto português Como no geral, a reforma gregoriana também tentou
foi promulgado por uma longa pastoral de todo o dar-lhe novo impulso, tendo sido revitalizados du-
episcopado datada de 13 de Julho de 1930, e veio rante algum tempo. O IV Concílio de Latrão (1215),
acompanhado de um longo apêndice de documentos convocado e presidido pelo papa Inocêncio III, apro-
úteis, anteriormente emanados da Santa Sé*. Não há vou a realização anual destas reuniões. No cânon
dúvida que os decretos do concílio contribuíram nota- que a regulamenta acha-se indicado o seu objectivo:
velmente para a disciplina e ordem da Igreja em Por- a correcção e reforma da vida religiosa da respectiva
tugal, e influíram nas constituições diocesanas que se província. Também esta determinação não foi bas-
foram publicando em várias dioceses. Na segunda tante para o seu êxito, uma vez que o Concílio de
metade do século xx começou a alterar-se notavel- Constança (1414-1418) adoptou a sua periodicidade
mente a disciplina geral da Igreja. Em especial com trienal. Por norma, os concílios provinciais deveriam
os decretos do II Concílio* do Vaticano e depois ter lugar na igreja metropolitana, salvo se houvesse
com o novo Código de Direito Canónico (1983). algum impedimento ou o presidente entendesse ha-
Consequentemente, bastantes decretos do Concílio ver motivos razoáveis para a sua celebração noutro
Plenário começaram a ficar desactualizados e menos lugar da província. Aceitando a impossibilidade da
conformes com a nova disciplina da Igreja. Lembre- presença de todos os bispos e autoridades convoca-
mos, por exemplo, as reservas de pecados por si mes- das, a celebração do concílio podia ocorrer com a
mos, que desapareceram do novo código, algumas presença de dois terços deles. A sua duração era va-
penas canónicas também menos conformes com as riável, mas sempre curta: dois a quatro dias, uma se-
novas orientações do código. A Conferência Episcopal mana, no máximo. O objectivo fundamental dos
Portuguesa* não tinha poder para revogar ou sequer concílios provinciais centrava-se na busca e regula-
para alterar as disposições do concílio; por tal moti- mentação de normas que pudessem ajudar as popula-
vo recorreu à Santa Sé, tendo o papa João Paulo II ções a melhor viver a fé cristã, contribuindo assim
abolido totalmente os decretos do Concílio Plenário para uma correcção dos abusos e melhoria dos cos-
Português de 1926. tumes. Igualmente aí os responsáveis eclesiásticos se
ocupavam da administração da Igreja, no seu sentido
A. LEITE

419
CONCÍLIOS PROVINCIAIS

mais lato, que incluía também a justiça. As suas deli- de discutir e resolver questões ligadas à Igreja, mas
berações (cânones) tinham força de lei para todos os não revestiram o carácter conciliar porque não se de-
súbditos da província eclesiástica. Pelo menos a par- bruçaram sobre doutrina ou não houve promulgação
tir do século xvi (Sisto V) deviam ser submetidas à de normas morais e canónicas. No elenco que apre-
aprovação de autoridade superior, na altura a Sagra- sentamos de seguida incluímos, por isso mesmo,
da Congregação do Concílio e, posteriormente, a Sa- aquelas que se revestiram das características próprias
grada Congregação da Propaganda; mas não care- e, com a necessária ressalva, também as que a tradi-
ciam dela para entrarem em vigor. Eram incluídas, ção respeita. Para Portugal, há que considerar, antes
frequentemente, nos estatutos diocesanos, para de tudo, a sua organização provincial eclesiástica ou
maior e melhor divulgação. Apesar das característi- metropolitana. Herdeira da tradição romana do Bai-
cas deste tipo de reuniões, algumas das que tradicio- xo Império, quando Portugal se tornou independen-
nalmente se apresentam como tal não autorizam essa te, o território português estava dividido por duas
classificação, em sentido rigoroso. Muitas delas fo- grandes metrópoles, a da Galécia, com a sua sede em
ram reuniões com aparato conciliar, com o objectivo Braga, e abrangendo territórios até ao Mondego, e a

Texto final do Concílio XIII de Toledo de 683. Bragança, Arquivo Distrital - Arq. San Payo, Pergaminhos.
CONCÍLIOS PROVINCIAIS

da Lusitânia, que englobava os territórios a sul desse te e uvas no mistério da eucaristia ou o uso profano
rio, progressivamente conquistados, em definitivo, a de vasos sagrados; na segunda, insistiam na necessi-
partir desse mesmo século. Esta organização foi fon- dade da castidade sacerdotal e na preservação dos
te de litígio frequente entre a antiga metrópole de bens eclesiásticos. Tal como aconteceu com os con-
Braga e a recém-criada (no início do século xn) cílios nacionais, também os provinciais foram larga-
de Compostela, que se veio a afirmar, no século xn, mente perturbados pela ocupação muçulmana. Foi
como herdeira de Mérida, capital da Lusitânia. necessário esperar pela Reconquista*, pela afirma-
A sentença de Inocêncio III, em 1199, que lhe pre- ção do poder cristão e pela reorganização das metró-
tendeu pôr cobro, veio a dar a seguinte configuração poles para se assistir, de novo, à celebração de concí-
a cada uma delas: Braga impunha o seu poder sobre lios provinciais. Entretanto, também a reforma
o Porto, Coimbra e Viseu, em Portugal, e Astorga, gregoriana veio dar novo alento a esta prática, atra-
Tui, Mondonhedo e Lugo, além-fronteiras; Com- vés da acção dos legados papais. Tudo isto justificou
postela integrava as dioceses de Lamego, Idanha uma dinâmica própria na reunião destas assembleias,
(Guarda), Lisboa e Évora, em Portugal, e Ávila, Sa- bem como determinou um aspecto bem diferente na
lamanca e Zamora, em Castela e Leão. Por sua vez, sua composição. Para este tempo posterior à monar-
a diocese do Algarve, restaurada em meados do sé- quia visigótica e à ocupação muçulmana, apenas va-
culo xiii, ficou a pertencer à metrópole de Sevilha. mos encontrar reuniões do tipo das que nos interes-
Esta organização, verdadeiramente anómala já no sam no século xii. A problemática da geografia
seu tempo, só foi conformada à realidade política no eclesiástica trouxe como consequência uma certa di-
final do século xiv (1393/1394). Bonifácio IX proce- ficuldade para a reunião de concílios. Isso explica
deu à criação da metrópole de Lisboa, a que atribuiu que a maior parte dos que se celebraram no sécu-
as dioceses de Évora, Idanha (Guarda), Lamego e lo xii tenham sido presididos por legados apostóli-
Silves (bula In eminentissime dignitatis, de 10 de cos, e que Braga (com algumas dificuldades de afir-
Novembro de 1393); Bento XIII passava para Com- mação eclesiástica e a maioria das dioceses
postela as dioceses galegas e leonesas que Braga sufragâneas fora do território sujeito a autoridades
possuía (bula Rationi congruit, de 12 de Outubro de portuguesas, enquanto as nacionais dependiam de
1394). É pois neste quadro que têm de entender-se uma sé estranha e inimiga, Compostela) se achasse à
os concílios provinciais realizados em território de margem do processo, sem a celebração de qualquer
Portugal ou que importam a dioceses de Portugal. Os concílio. Nestas condições, a primeira reunião que se
primeiros de que há notícia são aqueles que se reuni- acha com interesse a terras portuguesas, pela obe-
ram sob o poder suevo. Uma vez que, durante esse diência de seus bispos, é a do Concílio de Santiago,
período, os limites da metrópole de Braga se identi- de 1114. Foi presidido por Diogo Gelmires, sendo
ficavam com os do reino a que pertencia, os concí- apenas bispo. Assim, formalmente, não se trata de
lios aí realizados no século vi (561 e 572) são, simul- um concílio, mas de uma reunião de bispos. Mas po-
taneamente, provinciais e nacionais, prevalecendo de considerar-se como uma extensão do Concílio de
naturalmente esta característica sobre aquela. Assim, Leão, reunido em Outubro desse mesmo ano pelo ar-
é já no período visigótico que se acha notícia de con- cebispo D. Raimundo de Toledo, legado apostólico,
cílios provinciais que nos importam, segundo o qua- e ao qual não haviam podido assistir os bispos da
dro que traçámos. O mais antigo que se conhece Galiza (em sentido lato, pois se incluía, pelo menos,
com interesse, no momento, é o de Mérida, de 666. o bispo do Porto), pela instabilidade da situação en-
Presidido pelo arcebispo Proficio, nele participaram tre D. Urraca e Afonso de Aragão. Publicaram-se al-
todos os bispos da sua metrópole, à excepção do de guns cânones sobre bens e rendimentos eclesiásticos
Viseu. Do território que veio a ser português estive- (dízimos), intervenção dos seculares na vida da Igre-
ram presentes Sclúa, bispo de Idanha, Adeodato, de ja, casamentos de consanguíneos. Os participantes
Beja, Teodorico, de Lisboa, Teodosilç, de Lamego, decidiram ainda reunir-se em Santiago, todos os
Cântabro, de Conímbriga, Pedro, de Évora, e Aloa- anos, a meio da Quaresma, «ut corrigamus malefacta
rio, de Caliábria. As suas actas deixam entrever a quae ad audientiam nostram venirent». Quer a pró-
importância que os seus participantes davam a estas pria reunião, quer esta deliberação significavam bem
assembleias, pois que a obrigatoriedade de assistên- o intuito de o bispo de Compostela atrair à sua sé os
cia aos concílios está presente em dois cânones. Esti- bispos da Galiza, sufragâneos de Braga. O tempo
pulam ainda a divisão das doações dos fiéis às igre- veio a mostrar que era uma das vias de preparação
jas em três partes: bispo, sacerdotes e diáconos, do caminho para a realização das suas pretensões
restante clero, e mandam que os clérigos devem di- metropolíticas, face à antiga Sé de Braga. Em 1120,
zer missa, ao domingo, em todas as igrejas a seu car- Diogo Gelmires alcançava a elevação da sua sé a
go. No período visigótico assinala-se ainda a reunião metropolitana e, a título pessoal, a qualidade de le-
de um concílio, em Braga, em 675, no mesmo ano gado pontifício para as províncias de Mérida e Bra-
em que se reunia o XI de Toledo, ambos com carác- ga. Abria-se-lhe, dessa forma, a oportunidade para
ter provincial, para a Galécia e para a Tarraconense, fazer valer o seu poder e a sua supremacia sobre a
respectivamente. No de Braga tomaram lugar os bis- sua rival, a Sé de Braga. E, de facto, logo em 1121,
pos de Braga - metropolita - , Tui, Porto, Astorga, convocou uma reunião conciliar para Compostela,
Britónia, Orense, Lugo e Iria. As decisões aí toma- onde pretendia ver presentes o arcebispo de Braga e
das dizem respeito essencialmente à prática religiosa os bispos seus sufragâneos, além dos de sua obe-
e à disciplina eclesiástica. Pretendiam erradicar al- diência directa. Contudo, dela estiveram ausentes o
guns vícios comuns naquela, como o emprego de lei- arcebispo de Braga e os bispos de Coimbra, Lugo e

421
CONCÍLIOS PROVINCIAIS

Mondonhedo, que assim manifestavam o seu não re- terística de provincial pela participação de Eldebre-
conhecimento dessa supremacia. E Braga consegui- do, arcediago de Lisboa, por se saber que fora o pró-
ra, entretanto, a isenção relativamente à sua legacia. prio arcebispo de Braga a sagrar o bispo de Lisboa*,
Até 1125, Gelmires convocou, anualmente, os bis- em clara sintonia com o rei de Portugal e com evi-
pos das províncias da sua legacia para concílios em dentes intuitos políticos, o pouco que dela se conhe-
Santiago de Compostela. Em todos eles participaram ce não lhe confere características essenciais de um
mais ou menos bispos portugueses, sufragâneos das concílio. Aliás, a fonte que nos transmite a notícia da
províncias de Braga e Compostela. Em alguns deles sua realização - o Líber Fidei - apenas lhe chama
tomaram-se decisões com manifesto interesse. O de «colloquium». Há notícia de uma outra reunião de
1122 fixou os limites das dioceses de Braga* e do bispos da metrópole de Braga, no século xn. Ter-se-á
Porto*, em litígio há algum tempo; o de 1124 insti- realizado em 1163, em Coimbra, para oficializar o
tuiu, na Espanha, a Trégua de Deus, já em vigor por culto de São Teotónio, o venerável primeiro prior de
outras paragens da Cristandade, e o de 1125 ouviu a Santa Cruz de Coimbra, falecido no ano anterior. Es-
exortação de Gelmires à realização de uma expedi- tiveram presentes os bispos de todas as dioceses do
ção contra os muçulmanos. O tempo de Gelmires então território português e solenemente se procedeu
(falecido em 1140) como arcebispo de Compostela à canonização do santo. Assim sendo, também esta
viu ainda a reunião de três concílios presididos por reunião não se revela com características conciliares,
legados pontifícios. Todos eles interessam a Portu- nem na forma, nem no conteúdo. No século xm, Por-
gal, quer pelos assuntos tratados, quer pela participa- tugal, tal como os restantes reinos cristãos peninsu-
ção de dignitários portugueses. Foram os de Palência lares, recebeu uma legacia apostólica. Referimo-nos
(1129), Carrion (1130) e Burgos (1136). O primeiro ao cardeal João de Abbeville, enviado por Honó-
foi convocado por Afonso VII de Leão e Castela e rio III à Espanha, em 1218. Porém, ao contrário do
presidido por D. Raimundo, arcebispo de Toledo que aconteceu em Leão e Castela, em Portugal não
e legado pontifício. Foi altamente favorável a Diogo reuniu qualquer concílio. A assembleia havida em
Gelmires, pois que obteve aí todos os direitos sobre Coimbra, em 1218, foi uma cúria régia e não uma
a Igreja de Mérida, com seus termos, castelos e per- reunião que se possa assemelhar a qualquer concílio.
tenças, para si e seus sucessores. Tal significava a Mas o século xm viu a reunião de uma assembleia
confirmação da dignidade metropolítica que alcança- episcopal em Braga, em 1261. Foi convocada e pre-
ra em 1120. Compostela substituía Mérida, capital sidida pelo arcebispo D. Martinho Geraldes. E co-
da Lusitânia, ainda em poder dos muçulmanos. Co- nhecida apenas por uma pequena notícia que, de
mo é sabido, o facto traria profundas repercussões concreto, apenas refere a existência da reunião, in-
sobre as terras e os interesses de Portugal. Nas reu- forma que teve a presença de todos os prelados da
niões de Carrion e Burgos estiveram presentes bis- província e nela se tratou do pedido do papa (Ale-
pos portugueses e outros, leoneses, dependentes da xandre IV), no sentido de se preparar uma nova cru-
metrópole de Braga. Não foram tratados assuntos zada*, de auxílio à Terra Santa, ameaçada pelos Tár-
que dissessem particularmente respeito a dioceses taros. Aliás, igual pedido se fizera à Cristandade em
portuguesas. Ao mesmo tempo que tudo isto se pas- geral. Conhecendo-se a sua existência, data de reali-
sava, Braga apresentava um papel apagado relativa- zação, composição e objectivo, nada se conhece
mente a reuniões conciliares ou mesmo meramente quanto às suas deliberações. Assim sendo, pode
diocesanas. O tempo era de afirmação e protagonis- questionar-se a sua classificação como concílio, em-
mo de Compostela, enquanto Braga se debatia não bora a sua notícia a classifique como «concilium ge-
apenas com os problemas que aquela sé lhe levanta- nerale apud Bracharam». No final do século xm
va, mas ainda com o da primazia, entretanto também (1292) parece ter havido uma reunião de eclesiásti-
trazido à liça por Toledo. E, a partir de certa altura cos, em Compostela, onde terão participado dignitá-
do século xii, o arcebispo de Braga assumia um rios portugueses. Terá sido convocada por ordem pa-
enorme protagonismo político na defesa da causa da pal, por causa de nova investida dos muçulmanos na
independência de Portugal, que era, simultaneamen- Terra Santa e do auxílio que o papa buscava na Cris-
te, a sua. Tudo isto pode ajudar a compreender esse tandade. Mas dela nada se sabe. Para o século xiv
papel, aparentemente desatento, de Braga, relativa- não há conhecimento de qualquer concílio promovi-
mente a reuniões conciliares. Para o século xn, há re- do pela metrópole de Braga, o mesmo não aconte-
ferência a algumas, poucas, reuniões na província cendo para Compostela. Há notícia de três reuniões
bracarense. Três delas terão ocorrido em Braga, uma conciliares provinciais promovidas por esta metró-
em tempo do arcebispo Paio Mendes (1118-1137) e pole, duas em 1313 e uma em 1335, embora nenhu-
as restantes no arcebispado de D. João Peculiar, uma ma se tenha realizado em Compostela. As de 1313
por cerca de 1138-1139 e outra em 1148. De todas, tiveram lugar uma em Zamora e outra em Salaman-
apenas da última se conhece algo mais que a simples ca. A primeira, reunida em Janeiro de 1313, foi con-
referência. Presidiu D. João Peculiar e estiveram vocada na sequência do Concílio de Viena (1311),
presentes os bispos D. Pedro, do Porto, D. Mendo, por certo para transmissão das deliberações aí toma-
de Lamego, D. Odório, de Viseu e D. João Anaia, de das. E nessa linha, os bispos presentes, entre os
Coimbra, bem como o cardeal Boso, legado de Eu- quais o de Évora*, redigiram uma série de constitui-
génio III, na Espanha, para a preparação do concílio ções antijudaicas, nomeadamente a proibição do de-
que o papa projectava para Reims e se veio a realizar sempenho de ofícios públicos, a convivência com
no mesmo ano. Se se pode relevar a constituição cristãos, o exercício de algumas actividades e a obri-
desta reunião que, formalmente, lhe retiraria a carac- gação do uso de trajes distintivos. A reunião de Sala-

422
CONCORDATAS

manca, do mesmo ano, teve um carácter bem especí- BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portu-
fico, local mesmo, pois os participantes fixaram-se gal. N o v a ed. Porto: P o r t u c a l e n s e Editora, 1967-1971. 4 vol. BEM, To-
m á s C a e t a n o de - Notícia prévia da collecção dos concílios celebra-
no problema do financiamento da universidade local. dos pela Igreja lusitana. Lisboa: O f f i c i n a de Miguel M a n e s c a l da
Clemente V havia proibido a afectação, que lhe vi- Costa, 1757. BRANDÃO, Francisco, fr. - Monarquia lusitana. Ed. f a c -
nha sendo feita, de uma parte dos dízimos da Igreja. -similada, int. A. da Silva R e g o e notas d e A. Dias Farinha e E d u a r d o
dos Santos. Lisboa: I N C M , 1976, vol. 5. COSTA, Avelino de J e s u s da -
Perante a reacção do bispo, que lhe comunicou que Concílios provinciais de Braga. Theologica. 1 ( 1 9 5 4 ) 2 1 1 - 2 2 3 . IDEM,
tal medida representava o encerramento da institui- coord. - A r q u i d i o c e s e d e Braga: Síntese da sua história. In DICIONÁRIO
de história da Igreja em Portugal. Lisboa: Ed. Resistência, 1984. Se-
ção, o papa reconsiderou e cometeu ao arcebispo de parata. DICCIONARIO de historia eclesiástica de Espana. Dir. Quintin
Compostela que, com os seus sufragâneos, resolves- Aldeã Vaquero, T o m á s Marin Martinez e José Vives Gatell. Madrid:
se a situação. A assembleia acabou por reiterar a Instituto Enrique Florez, C o n s e j o Superior de Investigaciones Cienti-
ficas, 1972, vol. 1. DICTIONNAIRE de droit canonique. Dir. R. Naz. Pa-
prática antiga, decidindo a afectação de um nono dos ris-IV: Librairie Letouzey et A n é , 1942, vol. 3. DICTIONNAIRE histori-
dízimos à universidade. Por sua vez, o concílio de que de la Papauté. Dir. Philippe Levillain. Paris: Librairie A r t h è m e
1335, reunido também em Salamanca, foi uma res- Fayard, 1994. FEIO, Alberto - U m ignorado concílio provincial Braca-
rense (1261). Revista Portuguesa de História. 1 ( 1 9 4 0 ) 141-143.
posta aos apelos de Bento XII, no sentido da correc- MARQUES, José - A arquidiocese de Braga no séc. xv. Lisboa: I N C M ,
ção de abusos e desvios que se verificavam na vi- 1988. MARTINEZ DIEZ, G o n z a l o - Concílios espanoles anteriores a
vência religiosa da Cristandade. Estiveram presentes Trento. Repertorio de Historia de las Ciências Eclesiásticas en Espana.
5 (1976) 299-350. MAURÍCIO, D o m i n g o s - Concílios Provinciais de Bra-
os bispos portugueses da Guarda e de Lamego e o ga? (1148-1163-1261-1462 [sic]). Brotéria. Lisboa. (1967). OLIVEIRA,
procurador do de Lisboa, bem como os representan- Miguel de - História eclesiástica de Portugal. 4. a ed. Lisboa: União
tes dos respectivos cabidos. Promulgaram-se 17 câ- Gráfica, 1968.

nones, essencialmente sobre disciplina eclesiástica.


Ainda no século xiv se assinala a realização de um CONCORDATAS. Dá-se esta designação a certos
outro concílio com interesse a terras de Portugal: o convénios ou acordos ou mesmo tratados bilaterais
de Sevilha, de 1352. Apenas com a presença do ar- entre a Igreja (representada pelo sumo pontífice ou,
cebispo e dos procuradores dos bispos sufragâneos, por vezes, pelos bispos) e os Estados, de que sur-
debruçou-se sobre disciplina eclesiástica, principal- gem direitos e obrigações recíprocos. Sobretudo no
mente a administração dos sacramentos. Decaindo passado estes convénios tiveram nomes variados co-
progressivamente a sua prática, no século xv acha-se mo privilégios (onerosos), concórdias, pazes, acor-
notícia de uma reunião, em Dezembro de 1426, em dos, modus vivendi, convenções; modernamente to-
Braga, por causa das violências do rei D. João I so- mam sobretudo o nome de acordos, protocolos e
bre o clero português. Foi convocada pelo arcebispo concordatas. Estes acordos - designamo-los assim
D. Fernando da Guerra, que escreveu aos seus sufra- de forma genérica - entre a Igreja e o Estado foram
gâneos e a outros prelados. Dos primeiros, não com- inúmeros e de ordens diversas. Muitos deles desti-
pareceu o bispo de Coimbra*, D. Fernando Couti- navam-se a resolver diferendos ou controvérsias,
nho, em litígio com o arcebispo; dos segundos, outros a obter prerrogativas ou privilégios onerosos,
esteve presente o bispo de Lamego*, D. Garcia Ro- que obrigavam as duas partes. Ém Portugal, um dos
drigues, entretanto eleito bispo de Viseu*. Porém, primeiros, se não mesmo primeiro, destes acordos
apresentou-se na sua primeira condição, que o obri- pode considerar-se o acto da vassalagem prestada
gava à obediência ao arcebispo de Lisboa, talvez por por D. Afonso Henriques ao papa. O monarca ofere-
ainda não ter tomado posse da sua nova diocese. Nos cia o reino de Portugal à Igreja romana comprome-
inícios da segunda metade do século xvi reuniram-se tendo-se a pagar o censo anual de quatro onças de
alguns concílios provinciais para dar cumprimento ouro, e o papa prometia protecção e defesa do reino,
às medidas tomadas no Concílio de Trento. Assim, a em especial contra as pretensões do rei de Leão. Ou-
reunião conciliar de Braga (1566), presidida por tro exemplo: quando se deu a expansão portuguesa
D. Frei Bartolomeu dos Mártires, as de Lisboa (1566 no mundo, com os Descobrimentos, os papas conce-
e 1574), sob o governo de D. Jorge de Almeida e a deram ao nosso país grandes prerrogativas que de-
de Évora (elevada a metrópole em 1540), em 1568, ram origem ao regime do Padroado* Português, e
sob o governo de D. João de Melo e Castro. Por este por sua vez os nossos reis comprometeram-se a pro-
tempo, a Cristandade implantada pelos Portugueses mover a evangelização, enviar missionários, susten-
no Oriente dava mostras da sua vitalidade, nos vá- tá-los, etc. Tais concessões costumavam chamar-se
rios concílios provinciais que se reuniram em Goa. privilégios, mas privilégios onerosos, que consti-
Iniciados em 1567 (D. Gaspar Jorge de Leão Perei- tuíam verdadeiros pactos ou tratados bilaterais.
ra), sendo esse o mais antigo de toda a Ásia Meridio- Muitos outros «privilégios» semelhantes surgiram
nal e Oriental, até ao final do século reuniram-se ou- através dos tempos, mas como em geral não se con-
tros, em 1575 (convocado pelo arcebispo do anterior sideravam verdadeiros tratados, concluídos após
concílio), 1585 (D. Frei João Vicente da Fonseca) e negociações, não nos referiremos a eles. Lembrare-
1592 (D. Frei Mateus de Medina). Entretanto, tam- mos apenas os principais que revestiram mais clara-
bém aqui foram esmorecendo, achando-se notícias mente a forma de um convénio ou acordo bilateral.
apenas para os anos de 1606 (D. Frei Aleixo de Me- 1. Concórdia entre D. Sancho I e os prelados (1210):
neses) e 1894-1895 (D. António Sebastião Valente). Tendo surgido sérios conflitos entre o bispo do Por-
Entretanto, em Portugal continental, apenas Évora to*, D. Martinho Rodrigues, e o rei D. Sancho I
reuniu um outro, em 1680, sob o governo de D. Frei (1185-1211), para os solucionar, chegou-se a uma
Domingos de Gusmão. Todas as outras deixaram concórdia ou composição entre este prelado e o mo-
perder essa prática. narca, que veio a ser confirmada por Inocêncio III
pela bula Iustis petentium desideriis (13 de Maio de
MARIA ALEGRIA FERNANDES MARQUES

423
CONCORDATAS

1210). Pcrdoavam-se mutuamente as injúrias e in-


justiças cometidas, e o rei restituía os bens de que
injustamente se apossara; prometia não mais se en-
volver em assuntos meramente eclesiásticos sem
que o bispo o solicitasse, e respeitar o foro eclesiás-
tico, etc. Se surgisse alguma desinteligência com o
bispo, recorrer-se-ia a uma sentença do arcebispo de
Braga* ou do Papa. Esta concórdia, como versava
assuntos mais ou menos comuns às outras dioceses,
e apesar de ter sido estabelecida só entre o bispo do
Porto e o monarca, depois da aprovação papal es-
tendeu-se a todas as dioceses do reino. 2. Concórdia
entre os prelados e D. Afonso II: Não obstante a
concórdia entre D. Sancho e o bispo do Porto, pou-
co depois as queixas e os agravos continuaram, ou
até mesmo se exacerbaram, especialmente no reina-
do seguinte de D. Afonso II (1211-1223). Os prela-
dos apresentaram fortes queixas e reclamações ao
monarca, que prometeu por escrito emendar-se e sa-
tisfazer os agravos cometidos. Estes versavam so-
bretudo os mesmos temas: foro eclesiástico, compe-
tência das duas jurisdições e bens da Igreja. O rei
prometeu reparar o mal feito, assentando-se em
pontos concretos acerca daqueles temas, que ambas
as partes deveriam observar. 3. Concórdia de
D. Sancho II (1223): Este rei celebrou duas concór-
dias com a Igreja. A primeira foi estabelecida entre
o rei e o arcebispo de Braga, D. Estêvão Soares da
Silva, e assinada em Coimbra a 25 de Junho de
1223. Nela se diz que tem por fim resolver querelas
que vinham já do tempo do rei seu pai, D. Afon-
so II. Em 11 artigos enumeram-se os pontos que o Manifestis Probatum
monarca se compromete a cumprir e fazer observar. Bula (de 23.5.1179). Lisboa,
Versam os mesmos temas: foro eclesiástico e bens Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
da Igreja. 4. Concórdia de D. Sancho II (1238): prelados e de personagens civis se multiplicaram
Continuavam as costumadas dificuldades ou mesmo em Roma. Alegavam mesmo que o reino caíra na
lutas entre o rei e seus agentes por uma parte, e as anarquia. Estas queixas levaram o papa Inocên-
autoridades e pessoas eclesiásticas por outra, com cio IV, no Concílio de Lião (1243), em que estavam
os consequentes excessos e abusos, de que a Igreja presentes vários bispos portugueses, a depor o infe-
se procurava defender sobretudo por meio de penas liz monarca, e substituí-lo pelo irmão, que, por en-
eclesiásticas, em especial excomunhões e interditos. tão, até à morte do rei em 1248, se considerou ape-
Para solucionar estes problemas estabeleceu-se no- nas «regedor do reino», e virá a ser D. Afonso III.
va concórdia entre D. Sancho II e o arcebispo de 5. Concórdia de D. Afonso III (1243): Ao assumir a
Braga, D. Silvestre Godinho. A concórdia foi incluí- regência, o futuro rei D. Afonso III assinou em Pa-
da na bula Si illustris Rex Portugaliae de Gregó- ris, a 6 de Setembro de 1243, um acordo com os
rio IX, datada de 15 de Abril de 1238 e dirigida ao prelados portugueses, a quem sobretudo devia o po-
mesmo prelado. Diz o papa que lhe chegaram quei- der e a coroa. O ainda então conde de Bolonha ju-
xas do arcebispo de Braga «contra as perseguições rou sobre os Santos Evangelhos aceitar e cumprir
feitas à Igreja e seus ministros pelo rei, difamando- fielmente uma série de pontos sobre os mesmos te-
-os, roubando-os, obrigando os clérigos a compare- mas dos acordos anteriores contra D. Sancho II.
cer nos tribunais seculares e a servir no exército, E não há dúvida que, sobretudo nos primeiros tem-
promovendo e destituindo curas de almas, e infli- pos do seu governo, os procurou respeitar, pelo que
gindo-lhes outras perseguições insuportáveis». De- não surgiram por então graves conflitos como ante-
pois enumera mais em concreto alguns destes abu- riormente. 6. Concórdia de D. Afonso III e o clero:
sos. Por fim adverte o monarca de que para o futuro Gabriel Pereira de Castro, na sua obra De manu Re-
se deve abster de tais procedimentos, que repare os gia, reproduz 11 artigos que diz ter encontrado no
males feitos, e que o mesmo façam os seus minis- livro de D. Afonso III «sobre matérias eclesiásticas»
tros e agentes, como o rei prometera. Logo que re- sem data nem lugar onde foram estipulados. Esse
cebeu a bula papal, o monarca, estando em Guima- acordo com o clero, ou melhor, sobre o clero - pois
rães, apressou-se a escrever ao arcebispo de Braga, deve ter sido celebrado com os bispos -, versa sobre
a submeter-se e a prometer cumprir o que fora esti- o foro dos clérigos: quando podiam ou deviam com-
pulado (25 de Novembro de 1238). Mas, fraco e in- parecer perante os tribunais régios, o modo como
constante como era, D. Sancho II cedo voltou à an- decorriam tais causas, etc. 7. Concordata de D. Di-
tiga maneira de proceder, pelo que as queixas dos nis (1289): Depois de bem consolidado no trono, e

424
CONCORDATAS

quando já assumira há bastante tempo o título de Depois de várias negociações, assinaram os procu-
rei, D. Afonso III caiu em excessos semelhantes aos radores dos prelados e do rei no dia 12 de Fevereiro
dos reinados anteriores, em especial usurpando bens de 1289 na Basílica de Santa Maria Maior o texto
eclesiásticos, pertencentes designadamente às or- definitivo da concordata, que se compunha de 40 ar-
dens militares, imiscuindo-se na nomeação de bis- tigos. Nicolau IV confirmou-os e inclui-os na bula
pos e outros beneficiados, etc. Por tal motivo veio a Cum olim, de 7 de Março de 1289. O rei de Portugal
ser repreendido e mesmo excomugado pelo papa também os sancionou. Os mesmos procuradores
Gregório X. Parece que D. Afonso III chegou a en- eclesiásticos e régios, muito provavelmente na mes-
cetar algumas diligências em Roma para solucionar ma altura, assinaram ainda mais 11 artigos, que são
a questão. Depois da morte de Gregório X, sucede- uma espécie de complemento ou de esclarecimento
ram-se dois brevíssimos pontificados, até que foi dos anteriores 40 artigos. Tanto uns como os outros
eleito papa, a 8 de Setembro de 1276, o português vieram a constituir lei do reino, e foram incluídos
Pedro Julião ou Pedro Hispano, que tomou o nome nas Ordenações Afonsinas (liv. n, tít. i e n). Os
de João XXI. O bispo de Lisboa, D. Mateus, que se assuntos versados nestes 51 artigos são quase os
encontrava em Roma e era amigo do rei, dirigiu a mesmos das concórdias anteriores: jurisdição ecle-
este uma carta em que lhe recomendava que escre- siástica e civil, apresentação ou nomeação para
vesse ao novo papa a felicitá-lo pela sua eleição, e benefícios, imunidades do clero, aquisição e pro-
mostrasse desejos de resolver os conflitos existentes priedade dos bens quer pelas instituições da Igreja,
com a Igreja. Assim o fez D. Afonso III e, quanto quer pelos eclesiásticos, impostos que devem pagar,
aos conflitos, que muito ambicionava resolver, atri- etc. Contêm por vezes derrogações e alterações do
buía-os, em grande parte, ao mau comportamento e direito canónico, costumes e práticas vigentes. Pode
aos abusos do clero. João XXI respondeu com uma dizer-se que foram eficazes, pois no futuro quase
carta conciliatória em que notava quanto o monarca não surgiram conflitos graves, ao menos generaliza-
se devia congratular por um filho do seu reino ter dos como antes, uma vez que se estabeleceram nor-
ascendido ao sumo pontificado, e mostrava-se bem- mas concretas que ambas as partes procuraram ob-
-disposto para resolver os diferendos existentes. As servar. Como dissemos, esta convenção dos 40 + 11
negociações em Roma não devem ter chegado se- artigos pode dizer-se que foi na verdade a primeira
quer a principiar, pois ao fim de breves oito meses concordata bilateral, com compromissos mútuos.
de pontificado morria João XXI. Mas as negocia- Teve também a particularidade muito rara de ser ne-
ções em Portugal com os prelados parecem ter co- gociada pelos prelados por parte da Igreja - o papa
meçado pouco depois. Entretanto, o rei adoeceu apenas a confirmou - e pelo rei, e por tal motivo
gravemente e, sentindo aproximar-se a morte, a 17 costuma ser apontada nos tratados de direito público
de Janeiro de 1278 convocou uma junta composta eclesiástico, ao referirem-se às partes contraentes
pelo bispo de Évora, que lhe era afecto, diversos nas concordatas. 8. Outras concórdias de D. Dinis:
dignitários eclesiásticos e civis, e perante eles pro- No reinado do rei Lavrador ainda se assinaram mais
meteu reparar os agravos, restituir o indevidamente duas concórdias. A primeira foi celebrada pelo rei
havido, indemnizar os ofendidos e queixosos, etc. com os bispos do Porto, Guarda, Lamego e Viseu, e
E fez prometer ao filho D. Dinis, que se encontrava nelas procurou dar-se satisfação a diversos agravos
presente, que assim o cumpriria. Quase um mês de- e queixas de menor momento apresentadas por
pois, a 16 de Fevereiro, morria o rei, absolvido da aqueles prelados. D. Dinis aceitou estas queixas e
excomunhão, em perigo de morte, por D. Estêvão, em carta de 23 de Agosto de 1330 procurou dar-lhes
antigo abade de Alcobaça. D. Dinis, logo que subiu satisfação. Constitui como que um complemento
ao trono, procurou cumprir o prometido; mas com- aos artigos antes concordados, cujos termos foram
preendeu imediatamente que não bastava o método também incluídos nas Ordenações Afonsinas (liv. i,
seguido nas concórdias anteriores, que quase se li- tít. IH). D. Dinis celebrou ainda um acordo com o
mitavam a que o rei prometesse satisfazer as quei- bispo de Lisboa e seu cabido, por causa da jurisdi-
xas da Igreja. Viu que, sob pena de se reincidir nos ção sobre a corte, em que se procurou determinar o
diferendos anteriores, importava entabular verdadei- que pertencia ao rei e ao bispo. Consta de 22 artigos
ras negociações e acordar em estabelecer, com con- que igualmente vieram a ser incluídos nas Ordena-
cessões de uma e outra parte, os princípios que ha- ções Afonsinas (liv. i, tít. iv). 9. Concórdia com
veriam de presidir à solução dos conflitos que D. Pedro I (1361): Nas Cortes de Elvas de 1361, o
periodicamente surgiam. Para tanto, o rei reuniu-se arcebispo de Braga, os bispos e outros dignitários
na Guarda, em 1282, com os prelados portugueses. eclesiásticos presentes expuseram por escrito as
Depois de longas negociações, com cedências mú- suas queixas e agravos. Um deles referia-se ao be-
tuas, assentaram numa série de capítulos ou artigos, neplácito régio*. A estes 36 artigos deu o monarca
que obrigariam a ambas as partes. Esses capítulos, resposta concordada com os prelados, que foi consi-
cujo texto não se conhece, foram enviados a Roma derada lei do reino, e também veio a ser incluída
para obterem a aprovação e a confirmação pontifí- nas Ordenações Afonsinas (liv. i, tít. v). 10. Concór-
cia. Mas o papa Martinho IV não aprovou totalmen- dias de D. João I: Durante o reinado deste monarca
te esta concórdia. Devolveu o texto com várias celebraram-se duas concordatas. A primeira, assina-
emendas, suprimindo alguns artigos e acrescentando da em Évora, é provavelmente de 1391. Consta de
outros. Em 1289, já no pontificado de Nicolau IV, 12 artigos de menor importância, sobre temas seme-
encontraram-se em Roma vários prelados portugue- lhantes, e que vieram também a ser incluídos nas
ses com os procuradores e plenipotenciários régios. Ordenações Afonsinas (liv. i, tít. vi). A outra foi as-

42-5
CONCORDATAS

sinada na Igreja de São Domingos de Santarém, a melhor classificaríamos de concessões feitas a Por-
30 de Agosto de 1427, com 84 artigos, e também tugal sobre os mais diversos assuntos, e que pode-
veio a ser inserida nas mesmas Ordenações Afonsi- ríamos designar por privilégios concedidos ao nosso
nas (liv. i, tít. vil). Nestas cortes confirmou-se a re- país e aos seus reis, mencionemos apenas um acor-
solução pouco antes tomada de substituir a era de do ou concordata feito em 19 de Dezembro de 1737,
César pelo ano do nascimento de Nosso Senhor Je- de que uma boa parte já possui a forma de contrato
sus Cristo suprimindo-se, para tanto, 38 no cômputo ou pacto bilateral. Refere-se à elevação dos patriar-
dos anos. 11. Concórdias de D. Afonso V: No reina- cas de Lisboa ao cardinalato, no primeiro consis-
do do Africano realizaram-se duas concórdias, am- tório após a sua nomeação, ao Tribunal da Nun-
bas de somenos importância. Na primeira, por carta ciatura, ao provimento de alguns benefícios, à
do rei, datada de Santarém de 14 de Outubro de contribuição do rei para a sustentação da grandiosi-
1455, o monarca respondia em 15 artigos às queixas dade e esplendor do culto na basílica patriarcal, etc.
apresentadas nas Cortes de Lisboa no ano anterior, Esta concordata foi assinada em Roma pelo pleni-
pelos «arcebispos, bispos, prelados e cleresia dos potenciário de D. João V, Frei José Maria da Fonse-
ditos nossos reinos, que a elas vieram». Não pôde ca e Évora, futuro bispo do Porto, que a subscreve
ser incluída nas Ordenações Afonsinas publicadas nos seguintes termos: «Io infrascrito prometto e
pouco antes. O mesmo se diga de outra concórdia, m'obbligo in virtu delia Plenipotenza datami da
muito semelhante à anterior, datada de Almeirim de S. M. a quanto sopra.» No mesmo reinado celebrou-
19 de Janeiro de 1458, em que o rei igualmente res- -se em Roma, a 30 de Agosto de 1745 uma concor-
ponde aos capítulos apresentados pelos prelados, data, assinada pelo datário, por parte da Santa Sé, e
que nem todos eram de queixas, mas continham pelo ministro plenipotenciário de Portugal, Sam-
também pedidos de medidas a tomar pelo poder ci- paio, acerca da afectação dos rendimentos de alguns
vil. 12. Concórdias de D. Manuel (1516): Leão X, benefícios eclesiásticos ou de pensões sobre eles
pela bula Providum Universalis Ecclesiae, de 20 de impostas para a sustentação da igreja patriarcal e
Abril de 1514, a pedido do rei D. Manuel, e ponde- seu cabido*. E termina: «Prometem-se ambas as
rando as muitas despesas que o monarca tinha de fa- partes sem excepção alguma, a total observância de
zer para equipar as armadas que se dirigiam para as tudo aquilo, como consta acima, que se concordou
novas terras descobertas e ali manterem o domínio respectivamente nas presentes folhas, que serão
de Portugal, e sobretudo pelos merecimentos e ser- subscritas e sigiladas por uma parte por Monsenhor
viços prestados à Igreja e à dilatação da fé, e ainda Datário, e por outra pelo Senhor Comendador Sam-
para manter a continuação das guerras contra os in- paio, Ministro em Roma da Coroa de Portugal.»
fiéis do Norte de Africa, concedeu ao monarca e aos 16. Concordata de D. Maria I (1778): As concorda-
seus sucessores as terças de certos dízimos eclesiás- tas seguintes revestem-se já mais claramente da for-
ticos do reino e das conquistas. Como a arrecadação ma moderna das concordatas ou tratados internacio-
destas terças se tornava difícil e criava graves pro- nais: negociações entre a Santa Sé* e o governo,
blemas, os prelados conseguiram que o rei renun- assinatura pelos respectivos plenipotenciários, e de-
ciasse a estas terças, recebendo em troca 153 000 pois ratificação pelo Papa e pelo chefe de Estado.
ducados ou cruzados. Esta concórdia foi sancionada A primeira foi a concordata celebrada em Lisboa a
pela bula Hiis quae pro personarum, de 25 de Julho 20 de Julho de 1778 pelos plenipotenciários, o nún-
de 1516, dada pelo mesmo papa Leão X. 13. Con- cio apostólico Bernardino Mutto, arcebispo de
córdias de D. Sebastião: No reinado de D. Sebas- Petra, pela Santa Sé, e por parte de Portugal o secre-
tião, incluindo o tempo da regência do cardeal tário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da
D. Henrique durante a menoridade do monarca, ce- Guerra, Aires de Sá e Melo. Versava especialmente
lebraram-se mais dois ou três acordos, depois con- sobre as reservas pontifícias de certos benefícios
firmados pelos papas, sobre o montante e forma eclesiásticos principais, como dignidades dos cabi-
de pagamento desta contribuição eclesiástica para dos, e outros mesmo com cura de almas. Concedia-
as guerras de Africa e a expansão ultramarina. -se à rainha e aos seus sucessores no reino o direito
14. Concórdia de D. João IV (1642): Nas Cortes de de apresentação para os benefícios que vagassem
Lisboa de 1642, em que foi confirmada a aclamação nos meses de Fevereiro, Maio, Agosto e Novembro,
de D. João IV como rei de Portugal, os prelados do ou nos três meses de Março, Julho e Novembo, na-
reino ali presentes negociaram e assinaram uma quelas dioceses onde as reservas pontifícias já esti-
concórdia tom o monarca em 27 capítulos relativos vessem limitadas a seis meses alternados. Nos ar-
sobretudo à colação dos benefícios da apresentação tigos seguintes estabeleciam-se normas precisas
da Coroa, à atribuição das comendas das ordens mi- acerca de tais provimentos. A concordata veio a ser
litares de que o rei era grão-mestre, à contribuição ratificada pela rainha D. Maria I a 11 de Agosto de
da Igreja para as despesas das guerras de Africa e da 1778 e pelo papa Pio VI a 10 de Setembro do mes-
expansão ultramarina, e agora também a prevista mo ano. Pode ainda assimilar-se a uma concordata
guerra com Castela para a consolidação da indepen- a aprovação dada em Roma pelo mesmo pontífice
dência. Como o Papa, por oposição da Espanha, com o breve Romanorum pontificum (29 de Novem-
ainda não reconhecia D. João IV como rei de Portu- bro de 1790), relativo ao funcionamento de uma
gal, esta concórdia nunca veio a ser confirmada pelo junta, já existente, para o exame dos livros que
pontífice, como geralmente sucedera nos casos an- se publicassem em Portugal. 17. Concordata de
teriores, mas entrou em vigor. 15. Concordatas de D. Maria II (1848): Com o advento do liberalismo*
D. João V: Omitindo muitos outros acordos que deram-se gravíssimas convulsões na Igreja em Por-

426
CONCORDATAS

tugal. Lembremos, por exemplo, a «deposição» de deram origem a gravíssimos e tristíssimos conflitos
quase todos os bispos do pais que tinham sido apre- entre os missionários do Padroado e os da Congrega-
sentados por D. Miguel ou se lhe haviam mostrado ção da Propaganda Fide. Como entretanto tivessem
favoráveis, e a nomeação irregular feita pelos cabi- melhorado as relações com Roma, gravemente per-
dos de vigários capitulares insinuados pelo governo, turbadas nos promórdios do Liberalismo, puderam
que passaram a governar as dioceses (com excepção entabular-se negociações com a Santa Sé relativas ao
do Patriarcado de Lisboa), dando origem ao chama- Padroado, de que resultou a concordata de 21 de Fe-
do «cisma» de 1832-1842, uma das páginas por cer- vereiro de 1857 entre Pio IX e o rei D. Pedro V, em
to mais tristes da nossa história eclesiástica: depois, que se restabelecia em grande parte o Padroado Por-
a extinção das ordens religiosas, a usurpação por tuguês do Oriente, mesmo em terras dele desmem-
parte do Estado da apresentação para todos os bene- bradas pelo referido breve de Gregório XVI. Esta
fícios eclesiásticos, a proibição de ordenações sa- concordata constituía por certo um notável triunfo
cerdotais que só se poderiam fazer mediante licença para o nosso país. Mas quando se tratou de a pôr em
do governo, a extinção dos dízimos, etc. Muitas prática revelou-se em grande parte inexequível.
destas medidas teve a Igreja de as suportar, mais ou A Igreja portuguesa e a Coroa mostravam-se incapa-
menos resignadamente; mas em alguns casos foi zes de cumprir os compromissos assumidos, uma
possível chegar-se a acordos bilaterais. Esta concor- vez que não havia religiosos, sempre os principais
data foi assinada em Lisboa a 21 de Outubro de missionários, e o clero diocesano, não obstante al-
1848 pelos plenipotenciários do papa Pio IX e da guns louváveis esforços, não conseguia satisfazer as
rainha D. Maria II, e parece nunca ter sido devida- obrigações impostas por esta concordata. Por tal mo-
mente ratificada, mas entrou em vigor, apesar de vir tivo houve necessidade de negociar e de celebrar
a ser mal cumprida. Tratava da Bula da Cruzada*, uma nova concordata entre Leão XIII e o rei D. Luís,
da reabertura de cinco seminários diocesanos, da que veio a ser assinada em Roma a 23 de Junho de
restauração de alguns cabidos, da substituição do 1886, em que se reduzia bastante o Padroado Portu-
antigo Tribunal da Nunciatura por secções especiais guês do Oriente. 19. Acordos de 1928 e 1929: E as-
dos tribunais eclesiásticos metropolitanos, do pro- sim se chegou ao fim da Monarquia. É bem conheci-
blema dos conventos de freiras em vias de extinção da a perseguição religiosa começada logo no início
pela proibição civil de receberem noviças, da venda de República pelo governo provisório, e que havia
dos bens eclesiásticos confiscados, das novas cir- de culminar com a Lei de Separação de 20 de Abril
cunscrições das dioceses que por então não chega- de 1911, com a qual o seu autor, Afonso Costa, pre-
ram a alterar-se como se previa, e vários artigos re- tendia extinguir o catolicismo em Portugal em duas
lativos às missões do ultramar. 18. Concordatas ou três gerações. Nela se previa que os seus princí-
sobre o padroado do Oriente: A evangelização das pios e principais disposições se haveriam de aplicar
terras descobertas é por certo um dos maiores títulos também ao Padroado Português do Oriente. Mas os
de glória dos Portugueses que foram «dilatando a fé novos governantes de Goa e Macau*, apesar de recru-
e o império» como canta o Épico. Constituiu-se as- tados entre os «bons republicanos» (isto é, também
sim, especialmente na índia, índochina, China e Ja- anticlericais), opuseram-se por patriotismo à aplica-
pão, o chamado Padroado Português no Oriente ou ção da Lei da Separação ao Padroado, que entendiam
seja, a organização da actividade missionária sob a dever manter-se pelo prestígio que dava e pelo influ-
égide de Portugal. No século xvn tinha decaído um xo que por meio dele Portugal podia exercer, mesmo
pouco, dada a diminuição do poder português na- fora dos territórios portugueses. O Padroado ficou
quelas regiões onde viemos a ser substituídos por assim numa situação jurídica dúbia; mas, por exem-
holandeses e ingleses, protestantes e inimigos da fé plo, o Estado continuou a subsidiar os seus missio-
católica. O marquês de Pombal deu-lhe uma terrível nários, mesmo que trabalhassem fora dos domínios
machadada - passe o termo muitas vezes emprega- portugueses. Depois da revolução de 28 de Maio de
do - com a supressão da Companhia de Jesus (v. JE- 1926, melhoraram notavelmente as relações entre a
S U Í T A S ) , que ali possuía os missionários mais nume- Igreja e o Estado. Por outro lado não se sabia com
rosos, cerca de 800, que quase não puderam ser certeza se se deveria considerar ainda válida a con-
substituídos. A desorganização das ordens religio- cordata de 1886 acerca do padroado, dada sobretudo
sas, começada no tempo de Pombal e aumentada no a situação jurídica criada à Igreja pela Lei da Separa-
Liberalismo até à sua supressão em 1834, privou ção. Manter-se-iam ainda em vigor os privilégios
também dos seus mais numerosos missionários o concedidos a Portugal no passado relativamente às
Padroado, que ficou quase só confiado à actividade missões do Oriente, uma vez que o Estado deixara
do clero de Goa*, não inferior ao da metrópole, mas de ser confessional e católico, tornando-se agnóstico
abolutamente insuficiente para manter e muito menos e até mesmo perseguidor da Igreja? Por outro lado,
para expandir a missionação, que por isso decresceu dadas as mudanças referidas, tornara-se em boa par-
muito. Como Portugal não podia cumprir as suas obri- te inadequada e mesmo quase impossível de exe-
gações missionárias, e não obstante as antigas bulas cutar a concordata de 1886. Por estes motivos, que
pontifícias que proibiam a alteração das circunscri- sumariamente se apontam no preâmbulo do novo
ções sem consentimento do rei de Portugal, o papa acordo, a Santa Sé e o governo resolveram celebrar
Gregório XVI publicou o breve Multa praeclara, de uma nova concordata ou acordo que, no entanto, se
24 de Abril de 1838, em que quase se extinguia o limitou à parte religiosa do Padroado. Foi assinado
Padroado Português fora dos territórios mais ou me- em Roma a 13 de Abril de 1928. Tem-se-lhe dado
nos sob o domínio lusitano. Estas e outras medidas diversas designações. No título chama-se-lhe «Acor-

427
CONCORDATAS

Cerimónia de troca de instrumentos de ratificação da Concordata e do Acordo Missionário entre Portuga! e a Santa Sé,
Lisboa, em 1.6.1940 (in Anais da Revolução Nacional, vol. V, fase. 62).

do», mas no texto é por duas vezes designado por mente violados, especialmente por meio da Lei da
«Protocolo». Mas não há dúvida que se trata de uma Separação de 20 de Abril de 1911. De facto, este di-
verdadeira concordata ou tratado, como se deduz até ploma do governo provisório da República e outra
do modo como foi celebrado: negociações entre Por- legislação da época eram manifestamente injustos,
tugal e a Santa Sé, assinatura pelos plenipotenciários persecutórios e opressores da consciência católica.
e depois troca dos instrumentos de ratificação a 3 de Em 1919, durante a presidência de Sidónio Pais, fo-
Maio seguinte. Mantinha-se o padroado pleno em ram restabelecidas as relações diplomáticas com a
quatro dioceses: Goa, Cochim, Meliapor e Macau; e Santa Sé, interrompidas desde 1911, e depois publi-
o semi-padroado nas dioceses de Bombaim, Manga- caram-se algumas medidas tímidas que limaram al-
lor, Quilon e Trichinópolis, com apresentação pelo gumas das principais arestas da Lei da Separação.
presidente da República dos candidatos ao episco- Outras foram implicitamente revogadas pela Consti-
pado daquelas dioceses propostos pela Santa Sé. tuição de 1913 (artigos 45."-46.°). Mas na prática a
Delimitavam-se melhor estas circunscrições ecle- situação só se podia resolver satisfatoriamente por
siásticas, e extinguia-se a diocese de Damão, cujo meio de uma concordata, como de facto se efectuou.
território português ficava incorporado na arquidio- Foi assinada em Roma a 7 de Maio de 1940. Vinha
cese de Goa, e o situado na índia passava para a acompanhada de um Acordo Missionário* de igual
de Bombaim, cujo arcebispo seria alternadamente de valor jurídico, em que se desenvolviam mais concre-
nacionalidade portuguesa e britânica. Este acordo foi tamente os princípios contidos nos artigos 26.° a 28.°
considerado no tempo como um triunfo para Portu- da Concordata. Reconhece-se a personalidade jurídi-
gal, pois, dadas as convulsões políticas da República ca, mesmo «internacional», da Igreja Católica, e
e a sua ideologia, receava-se que a Santa Sé desse mantêm-se as relações diplomáticas com a Santa Sé.
por extinto o Padroado Português do Oriente. No Garante-se a liberdade de organização e actuação da
artigo iv deste acordo de 1928 previa-se que os li- Igreja (artigo 2.°), a constituição e funcionamento li-
mites de algumas daquelas dioceses seriam poste- vre das associações ou organização da Igreja (artigos
riormente fixados e porventura alterados segundo 3.° e 4.°), a capacidade de possuir e administrar bens
parecesse mais conveniente. Foi o que se executou temporais, bem como algumas isenções fiscais muito
com o acordo de 11 de Abril do ano seguinte (1929), limitadas (artigos 5.° e 8.°), a nomeação de bispos,
que veio também a ser ratificado segundo a forma párocos e outros eclesiásticos e a sua livre actuação
usual nas concordatas e tratados. 20. Concordata de e imunidades (artigos 9.° a 15.°), a assistência reli-
7 de Maio de 1940: Como se depreende do que ficou giosa a hospitais, refúgios, asilos, prisões, etc., e às
dito, todas as concórdias, acordos e concordatas Forças Armadas (artigos 16.° a 19.°), liberdade de
entre a Igreja e Portugal eram de carácter pontual. ensino e fundação de escolas de todos os graus, bem
Destinavam-se a resolver problemas concretos, bem como de ensino religioso nas escolas públicas (arti-
definidos. Pelo contrário, a Concordata de 1940 é de gos 20.° a 21.°), reconhecimento civil de casamentos
âmbito geral, destinada, como nela se declara, a «re- canónicos e seu regime (artigos 22.° a 25.°), princí-
gular por mútuo acordo e de um modo estável, a si- pios orientadores da actividade missionária ultrama-
tuação jurídica da Igreja em Portugal, para a paz e o rina (artigos 26." a 29."), etc. Numa palavra, garan-
bem da Igreja e do Estado», que tinham sido grave- tia-se a liberdade religiosa dos católicos e da Igreja.

428
CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO

O artigo 24.° proibia o divórcio aos casados catolica- -o-Velho, de São Tomé de Mira, da Sé de Viseu) e
mente depois de 1 de Agosto de 1940. Foi desde o também pontifícios. As peregrinações a Santiago de
início muito contestado, pois não faltavam pessoas ca- Compostela, à Terra Santa e mesmo a Roma contex-
sadas catolicamente que se separavam e queriam obter tuam o aparecimento do mosteiro conimbricense,
o divórcio. Após a revolução de 25 de Abril de 1974 tendo sido dentro desses circuitos de contactos inter-
aumentaram estas contestações e o governo português nacionais e de peregrinação religiosa que despertou
declarou ã Santa Sé que não podia manter esta proibi- a opção canónica regular junto dos principais impul-
ção. A Santa Sé, muito a contragosto, viu-se na neces- sionadores da fundação crúzia coimbrã (D. Telo,
sidade de consentir em alterar este artigo, o que se fez D. João Peculiar e D. Teotónio), neles se recolhendo
pelo protocolo assinado em Roma a 15 de Fevereiro também as bases constitucionais da regra adoptada.
de 1975, que aboliu a proibição do divórcio para os A opção pela vida regular agostiniana, protagoniza-
casados catolicamente. 21. Outros acordos: Depois da da em Coimbra, deve integrar-se, ainda, no quadro
Concordata de 1940 realizaram-se ainda alguns acor- histórico eclesial europeu dos séculos xi e xii. Perío-
dos bilaterais entre a Santa Sé e Portugal, mas que em do dominado pelo espírito reformista de Gregó-
geral se revestiam de formas menos solenes. Nalguns rio VII, pela centralização do poder papal e pela re-
nem foi mesmo tornado público o texto acordado. Tal novação e reforma das unidades diocesanas. Dentro
foi, por exemplo, o acordo de 1952, sobre a redução da renovação da vida religiosa diocesana e do seu
dos dias santos; os que permaneceram ficaram equipa- respectivo potenciamento se deverão integrar as ra-
rados a feriados nacionais. Houve também dois peque- zões do apoio dos bispos à expansão monástica no
nos acordos relativos ao vicariato, depois ordinariato interior das suas áreas jurisdicionais, quer reforman-
castrense. Por acordo assinado em Roma a 18 de Julho do institutos ancestrais, quer fundando outros para
de 1950, Portugal renunciava aos seus direitos de pa- os quais se propunha uma vi ta apostolica exemplar,
droado sobre as dioceses situadas em territórios da seguidora de uma estrita observância da pobreza in-
União Indiana, ficando pois o padroado reduzido à dividual, da castidade e da obediência. Ao cónego
diocese de Goa e Macau. Pelo tratado de 31 de Julho regrante propunha-se a disciplina de uma vivência
de 1974, Portugal reconheceu a soberania da União integrada no mundo temporal, vocacionada para a
Indiana sobre os territórios de Goa, Damão e Diu, e pregação, para a caridade e para a assistência ao pró-
renunciou também ao padroado sobre aqueles territó- ximo. No domínio litúrgico caracterizava-o uma ati-
rios. O mesmo deve ter sucedido quando em 1999 tude extremamente exigente para com os ofícios co-
Macau foi integrado na China. Com a independência rais e para com a Eucaristia. Pregação e sacerdócio
dos territórios ultramarinos portugueses deixou de vi- são dois lemas que impunham ao cónego regrante a
gorar neles o Acordo Missionário* de 1940. obrigatoriedade de uma formação escolar aprofunda-
A. LEITE
da. Para tal, dispunha de bibliotecas especializadas
nas diferentes áreas do saber (trivium, quadrivium,
BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal. No- teologia*, direito canónico e civil, medicina) e de
va ed. Porto: Portucalense Editora, 1967-1971. 4 v o l . BORGES, Libânio - expeditos scriptoria. Essa apurada instrução e a for-
Concordatas e concórdias portuguesas. Vila Real, 1953. BRASÃO, Eduardo
- Colecção de concordatas estabelecidas entre Portugal e a Santa Sé des-
mação vocacional para a acção pastoral do clérigo
de 1238 a 1940. Lisboa, [s.d.]. CASTRO, Gabriel Pereira - De Manu Regia. crúzio acaba por justificar que tenham sido recru-
Lisboa, 1622-1625, 1742. 2 vol. IDEM - Monomachia sobre as concórdias tados nos claustros regrantes numerosos religiosos
que os reis fizeram com os prelados em Portugal. Lisboa, 1938. LEITE, A.
- Acordos entre a Santa Sé e Portugal anteriores à Concordata de 1940. In
para ocuparem cargos da hierarquia eclesial e para
A Concordata de 1940. Portugal-Santa Sé. Lisboa, 1993, p. 11-27. SANTA- ofícios administrativos ao serviço de chancelarias e
RÉM, Visconde de - Quadro elementar. Paris, 1842; Lisboa, 1960. SILVA, tribunais. Dos séculos xi e xn, poderemos escrever
L. A. Rebelo da - Corpo diplomático português. Lisboa, 1857-1956.
que foram preenchidos por uma expansão monástica
extremamente diversificada e fértil. Lembremos,
CÓNEGO. V. DIGNIDADES ECLESIÁSTICAS.
além do caso de Cluny, o ímpeto cisterciense (v. cis-
T E R C I E N S E S ) , as diversas canónicas agostinianas como
CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO. Os a dos vitorinos de Paris ou a da área de influência
Cónegos Regrantes de Santo Agostinho em Portugal mediterrânea encabeçada por São Rufo de Avinhão
nascem dentro das estruturas históricas pró-gregoria- (e o processo protagonizado por este mosteiro na re-
nas da diocese de Coimbra*, eclodindo o seu mais novação da antiga regra canonical de Aix transfor-
significativo centro no Mosteiro de Santa Cruz, fun- mada num ordo monasterii cujo corpo redaccional é
dado em 28 de Junho de 1131, nele tendo começado organizado pelo célebre abade Letberto), a da ordem
a correr vida regular em 24 de Fevereiro de 1132. Na de Prémontré que desenvolveu um ordo novus, a da
génese de Santa Cruz e do significado que adquiriu, proliferação de um diversificado movimento eremíti-
poderemos escrever que teve, para além das caracte- co com pontos culminantes, por exemplo, no projec-
rísticas especificamente espirituais cujas raízes se to espiritual camaldolense. Na Hispânia, em Duzen-
colhem nos Actos dos Apóstolos (2, 44-45) e na tos, os mosteiros de cónegos regrantes ascenderiam
ideia de uma vida de imitação dos apóstolos segundo a 350. Na área castelhano-leonesa predominariam
o comentário de Santo Agostinho, uma conexão en- os premonstratenses, enquanto em Navarra, Catalu-
tre interesses e poderes laicais (cúria régia, alta no- nha, Portugal e Galiza proliferaram os mosteiros
breza e aristocracias coimbrãs), eclesiástico-diocesa- devedores do ordo occitânico de Lião e de São Rufo
nos ao nível do alto clero (lembremos o apoio inicial de Avinhão. A par de Santa Cruz de Coimbra men-
do bispo D. Bernardo, do arcediago D. Telo, o mes- cionam-se os mosteiros regrantes de Roncesvalles,
tre-escola D. João Peculiar, os priores colegiais de de Santa Maria dei Sar (Santiago de Compostela) e
Santiago de Coimbra, de Santa Maria de Montemor-

429
CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO

de Santo Isidoro de Leão. Os mosteiros portugueses quadro regional situado no Entre Douro e Minho,
evoluíram dentro de uma autonomia administrativa, afastado de grandes centros urbanos do Sul (mas não
posto que isso não signifique que não existissem co- dos eixos de circulação da riqueza produzida por
nexões espirituais e culturais entre todos, garantin- economias mais ruralizadas, bem como pela mais in-
do-se-lhes uma identidade comum, e que alguns de- tensa proximidade das rotas de peregrinação com-
les se distinguissem como centros orientadores de postelanas e pelos pólos urbanos afirmados neste
todo o conjunto monástico (Santa Cruz, Grijó e São contexto histórico), afirmando-se o Mosteiro de São
Vicente). O quadro de relacionamento institucional Salvador de Grijó como principal pólo coordenador
entre episcopado e canónicas regulares processar-se- dessas numerosas casas. Parte delas integrava-se na
-ia, em termos estruturais, de forma complementar e regra beneditina, reformada ou não, outra parte terá
coexistente. Conjunturalmente, poderia assumir um origens no monacato de tradição peninsular dumien-
carácter de ruptura e conflitualidade. Ruptura entre se e mesmo moçárabe*, outra derivará de eremité-
os modelos pastorais conservadores promovidos por rios. Todos eles deveriam ter comunidades muito
parte do clero diocesano e os que eram protagoniza- modestas e em crise de sobrevivência no momento
dos pelos Cónegos Regrantes nas paróquias, nas es- da sua opção pela vida canonical. Até finais do sé-
truturas colegiais e nos priorados, dentro dos quais o culo xn adoptaram o ordo agostiniano regular os
seu controlo se revelava eficaz, permitindo alcançar mosteiros de Ancede (Baião), Lordelo (Paredes),
resultados pingues em termos de recolha de dízimos Tuias e Vila Boa do Bispo (Marco de Canavezes),
e demais direitos eclesiásticos. Mas o relacionamen- Vilela (Paredes), Souto, Santa Marinha da Costa,
to dinâmico entre os vários agentes e hierarquias das Palmeira e São Torquato (Guimarães), Banho (Bar-
estruturas internas canónicas revelou-se portador de celos), Oliveira, Landim (Famalicão), Requião, São
um dinamismo também marcado por tensões con- Simão da Junqueira (Póvoa do Varzim), Bravães,
junturais e por uma pluralidade de interesses e de São Martinho de Crasto e Vila Nova de Muía (Ponte
situações históricas diferenciadoras entre si. Enquan- da Barca), Caramos (Felgueiras), Freixo e Mance-
to estruturas institucionais, os mosteiros portugueses los (Amarante), Longos Vales (Monção), Paderne
evoluíram dentro de uma especialização simultanea- (Melgaço), Refóios do Lima (Ponte de Lima), Roriz
mente pastoral de cura animarum e assistencial, de- e Vilarinho (Santo Tirso) e Moreira (Maia). Uma
tectando-se praticamente em todos a existência de parte destes cenóbios passou à regra agostiniana por
estruturas hospitalares abertas à recepção de peregri- acção impulsionadora do arcebispo D. João Peculiar
nos, pobres e enfermos. Os Cónegos Regrantes adqui- (t 1175). Detectam-se mosteiros de cónegas regran-
riram uma função cultural altamente prestigiante, de- tes, normalmente anexos aos claustros masculinos e
sempenhando um papel enérgico na estruturação de enunciando uma origem próxima de mosteiros dúpli-
uma identidade política portuguesa, neles se compul- ces, como São João das Donas, Santa Ana de Coim-
sando a memória historiográfica do reino (anais, cro- bra, São Félix de Cheias e São Miguel das Donas de
nicões, res gestae) ou afirmando-se como panteões Lisboa, além de casas de sorores em Grijó, Vila Boa
dinásticos, ao mesmo tempo que os seus claustros e do Bispo, Landim, Vila Cova e Banho. A diferentes
cemitérios se abriam à recepção fúnebre de indiví- quadros geográficos correspondem distintas actua-
duos e famílias pertencentes ao grupo social dos po- ções pastorais e uma matizada rede de conexões en-
tentes, especialmente da aristocracia e nobreza pró- tre os poderes senhoriais laicos e religiosos regio-
ximas da Casa Real, bem como das oligarquias dos nais. A rede de padroeiros e naturais que dominava
centros urbanos. Quer quanto à origem, quer quanto alguns dos mais significativos mosteiros regrantes
ao papel histórico nos séculos medievos, os Cónegos do Entre Douro e Minho não se revelava a sul, onde
Regrantes afirmam-se em dois grandes grupos tradu- preponderava o patrocínio régio. Verificaram-se
tores de assimetrias de teor regional. A sul do Douro isenções nullius diocesis nos institutos sedeados a
assistimos, no século xn, a fundações monásticas pa- sul do Douro, sendo especialmente evidentes em
trocinadas ou acolhidas directamente por Santa Cruz Santa Cruz de Coimbra, São Vicente de Lisboa e
de Coimbra, casos de São Vicente de Lisboa, Santa também em São Jorge de Coimbra. A norte, no en-
Maria de Cárquere (Resende), São Romão de Seia e tanto, o estatuto de isenção na cura animarum será
São Pedro de Folques (Arganil) e Santa Cruz de detido de modo significativo somente por Grijó e
Cortes (Ciudad Rodrigo). São Jorge de Coimbra pa- Refóios do Lima. Os obituários conhecidos eviden-
rece ter evoluído dentro de uma afiliação ou reforma ciam uma extrema coincidência entre eles nos re-
religiosa. Nestas casas, a geografia dos grandes cen- gistos de defuntos e nas obrigações espirituais con-
tros urbanos (Coimbra e Lisboa) conjuga-se com um traídas. O que só se justificará dentro de um quadro
conspecto mais serrano e eremítico das restantes ca- histórico medieval de intensos contactos e permutas
nónicas, dispersas por territórios marcados pela Re- religiosas e culturais entre os principais mosteiros.
conquista. O que não impedia, natural e compreensi- Neles celebrar-se-iam capítulos gerais com regula-
velmente, que todos esses pólos integrados na órbita ridade anual. Aos de Santa Cruz acorriam, já no sé-
de influência permanente da canónica coimbrã se en- culo xn, os priores de Santa Cruz de Cortes (Ciudad
contrassem junto de vias de circulação de pessoas e Rodrigo), São Romão de Seia, São Pedro de Arganil
de bens económicos extremamente activas na época, e também do priorado de Leiria e das demais igrejas
senão mesmo da maior importância para os contac- paroquiais de administração crúzia. Santa Cruz de
tos entre o litoral e o interior ibérico ou entre o lito- Coimbra foi protegida pelos monarcas reinantes, so-
ral atlântico português e a orla mediterrânica da bretudo por D. Afonso Henriques, que lhe concedeu
Cristandade. Um segundo grupo espalhou-se num pingues rendas e privilégios senhoriais. Salvaguar-

430
CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO

dada por renovadas bulas pontifícias de protecção ou visitadores com funções inspectivas junto dos mos-
de ampliação de privilégios apostólicos e pastorais teiros da ordem; c) a regulamentação das saídas ex-
(1138 de Inocêncio II; 1158 de Adriano IV), a canó- ternas e das licenças de ausência dos cónegos; d) a
nica crúzia ultrapassa com relativo êxito os entraves suavização do regime de jejuns e de abstinência de
conjunturalmente levantados pelos prelados conim- carnes reservando-se, às sextas-feiras, uma dieta ex-
bricenses. Das bulas outorgadas sobressaem as de clusivamente de leguminosas; e) a homogeneização
Inocêncio II (1138) e Adriano IV (1158) recomendan- do vestuário canonical; f ) a generalização da oração
do a D. Afonso Henriques que defenda os interesses mental diária e a normalização entre todos os mostei-
do mosteiro e as de Lúcio II (1144), Eugénio III ros da récita das horas canónicas; g) o aperfeiçoamen-
(1148), de novo Adriano IV (1157) e ainda Alexan- to do sistema de ensino e dos conteúdos teológico-
dre III (1162), outorgadas a pedido dos priores da -morais ministrados pelos leitores nas aulas claustrais
claustra, nas quais se decretava o estatuto protector ( M A R T I N S - O Mosteiro, vol. 1, p. 357-362). Ao longo
da Santa Sé* sobre Santa Cruz e se lhe avançava na do século xiii, o protagonismo de sucesso pastoral e
institucionalização do isento nulius diocesis. A céle- religioso demonstrado atenuar-se-á substancialmen-
bre carta de liberdade do bispo D. Miguel Salomão, te, aparecendo as novas ordens mendicantes que,
em 1163, renunciando a direitos e interesses episco- paulatinamente, disputarão aos claustros regrantes a
pais nas áreas pastorais e económicas dos Crúzios, popularidade e a capacidade de congregação dos
não teve a concordância das instâncias capitulares, fiéis. Ordens mendicantes como a franciscana e a
tornando-se título de disputa. Ao papa Celestino III dominicana que, em Coimbra, parecem ter um bom
se devem vários decretos de protecção à comunida- relacionamento com os cónegos crúzios, quer por
de. Um deles, de 1195, concedia ao prior-mor e a to- mútuo usufruto dos benefícios culturais e de ensino
dos os seus sucessores autorização para usar báculo, que este claustro proporcionava, quer por proximi-
mitra e anel episcopais nas solenidades crúzias, bem dade das regras monásticas (em Santa Cruz coligir-
como lançar bênção pontifical dentro dos lugares su- -se-ão diversos manuscritos com a regra e estatutos
jeitos ao mosteiro. Em 1203, a bula Cum olim de dominicanos), quer por nele se recrutarem vocações,
Inocêncio III consagraria a estrutura orgânica da ju- de que o mais famoso exemplo é o de D. Fernando
risdição eclesiástica de Santa Cruz, só vindo esta a de Bulhões, afiliado no hábito franciscano como
ser desmontada bem entrado o século xvi, no proces- Santo António. Santa Cruz de Coimbra e outros
so de reforma da universidade (1537) e da criação claustros seus filiais deixaram-se possuir pela simpa-
dos bispados de Leiria e Portalegre (1545). Por essa tia para com a espiritualidade dos Mendicantes.
bula, o papa conferia a Santa Cruz a base constitu- Exemplifica-o o culto local dos Mártires de Marro-
cional de isenção diocesana, estatuto este que lhe cos e mesmo o episódio, despoletado em 1283, por
permitiria desenvolver uma acção pastoral relativa- D. Mor Dias, familiar das cónegas de São João das
mente livre dos poderes episcopais particulares com Donas, a qual, seduzida pelo modelo de clausura
que o mosteiro lidava ( M A D A H I L - O privilégio; G O - franciscana, renunciaria à vida canónica para investir
MES - Organização). A orgânica sociorreligiosa des- a sua fortuna na fundação de um mosteiro de claris-
tes mosteiros contemplava a existência de cónegos sas que a própria rainha D. Isabel de Aragão viria a
com o título de dom, de presbíteros e demais ordens proteger enormemente. O episódio revela também
ministeriais, de conversos, de familiares e/ou confra- que o tempo do sucesso crúzio estava ultrapassado.
tres e sorores. Existiam, em função da dimensão e Em 1320, os Regrantes apresentavam rendimentos
riqueza dos mosteiros, os cargos de prior-mor, do financeiros muito díspares. À frente de todos encon-
prior-claustral, de vigários priorais, de oficiais mo- trava-se Santa Cruz com valores próximos das 21
násticos intraclaustro (chanceler, prepósito, mestre- mil libras, cerca de uma quarta parte das rendas de
-escola, mestre de noviços, sacristão, procurador, todo o bispado de Coimbra. Seguia-se-lhe São Vi-
hospitaleiro, camareiro, refeitoreiro, vestiário) e ex- cente de Lisboa com a soma considerável de 3150
tramuros (clérigos raçoeiros, criados e servidores). libras. Outros mosteiros ficavam-se pelas 2000 (Re-
Os decretos conciliares de Latrão IV (1215) tiveram fóios do Lima), 1500 (Vila Boa do Bispo), 1445
profunda influência nos mosteiros de cónegos regu- (Landim), 1000 (Santa Marinha da Costa), 900 (São
lares. Uma delas foi o incentivo à agremiação de ti- Jorge), 700 (Vila Nova de Muía), 600 (Roriz), 550
po sinodal, caminhando-se num espírito de plenitudo (Ancede), 500 (São Martinho de Crasto, Oliveira e
potestatis, apelando-se à reforma dos costumes, à vi- Caramos), 400 (Arganil e Freixo), 350 (Banho), 300
gilância pastoral da hierarquia secular e à renovação (Bravães, Souto e São Torquato), 250 (Vilarinho
dentro dos claustros regulares. Ao cardeal D. João e Celas da Ponte, em Coimbra), 170 (Moreira da
de Abeville, legado pontifício na Hispânia, em 1228- Maia), 165 (Vila Cova) ou 60 libras (Lordelo) de
-1229, cumpriu apelar à reforma das canónicas regu- rendimento anual. A reforma dos institutos monásti-
lares portuguesas. Em 1229, no Porto, reuniu-se o cos promovida no pontificado de Bento XII atingiria
primeiro capítulo provincial dos Cónegos Regrantes. os Cónegos Regrantes com a bula Ad decorem Ec-
Nele se renovou o apelo ao cumprimento das cons- clesiae, emanada em 15 de Maio de 1339. Este di-
tituições letbertianas oriundas de São Rufo e se vi- ploma pontifício assumiu forma constitucionalista.
tuperaram os iuvenes que não cumpriam com as tra- Nos seus 64 capítulos, Bento XII regulamentava o
dições e bons costumes dos mais velhos. Entre as acesso à clausura regrante, o governo institucional
decisões com força legal tomadas no capítulo de dos claustros (determinando-se a constituição formal
1229 enunciamos: a) a obrigatoriedade da realização de províncias), a vida comum dos clérigos e a sua
trienal dos capítulos provinciais; b) a nomeação de formação escolar e cultural. Parte importante desse

429
CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO

decreto ocupava-se da regulamentação dos bens pró-


prios dos mosteiros, impondo normas de salvaguarda
dos cartórios e arquivos monásticos e determinando
a inspecção periódica, por visitadores, às casas de
cada província. Em 1340, na cidade de Bragança,
reuniram-se os representantes dos mosteiros regran-
tes existentes nas metrópoles de Braga, Santiago de
Compostela, Sevilha e Toledo ( M A R T I N S - O Mostei-
ro, p. 507-510). Dos poucos ecos e consequências
dali resultantes atesta-se, em Portugal, uma política
de visitações inspectivas aos mosteiros. Da visitação
efectuada a São Simão da Junqueira, em 20 de Feve-
reiro de 1341, podemos concluir que em Portugal foi
nomeado como «praesidens et inquisitor» D. Fran-
cisco Pires, prior-mor de Santa Cruz, a fim de tomar
conhecimento dos rendimentos, despesas e número
dos cónegos dos mosteiros. Por esse relatório pode-
mos afirmar que as rendas de São Simão da Junquei-
ra atingiam as 784 libras e 15 soldos por ano. 58,6 %
deste valor advinha de rendas cobradas em dinheiro
nos casais e lugares do mosteiro, resultando o restan-
te da exploração directa. As despesas atingiam um
valor próximo das receitas. O mosteiro aparecia one-
rado com débitos como a colheita do rei e do primo-
génito da Coroa (9,18 %) e os encargos com os natu-
rais, próceres, infanções, cavaleiros e escudeiros,
atingindo estes um número próximo das cinco cen-
tenas, que consumiram 17,2 % das receitas. A nível
interno, São Simão da Junqueira despendia 19,1 %
com as coisas necessárias ao respectivo prior. Aos
serventes do mosteiro (trabalho rural e obras de re- Vista de conjunto do Mosteiro de São Salvador de Grijó
paração de edifícios) destinava-se 7 % das rendas. dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.
Pão e vinho, peixe e carnes levavam 23 % das re-
ceitas. Para hóspedes e pobres advenientibus desti-
nava-se 3,8 % do ganho, enquanto para azeite e ce- Grijó, em 1292, estimava-se em 11 o número de có-
ra usada na igreja se destinava 2 % dos recursos. negos com direito a prebenda. Por 1362 esse número
Da restante percentagem pagava-se ao arcediago mantinha-se, devendo acrescentar-se-lhe mais seis
por oficio de procuradoria e ao capelão. Habitavam fratres em serviço nas igrejas do respectivo padroa-
o mosteiro seis cónegos, defendendo-se que as ren- do. A comunidade completava-se com quatro con-
das apenas consentiriam um sustento honeste et de- versos* ( A M A R A L - São Salvador, p. 148-149). No
center a não mais de quatro. Entre os bens móveis mosteiro de Ancede, por 1364, residiam dez cóne-
deste cenóbio estavam os seis leitos dos cónegos, gos. Em tempos de crise claustral os números des-
um do prior, duas camas para hóspedes, quatro bois, cem drasticamente. Em 1443, São Simão da Jun-
50 ovelhas, 20 porcos e 12 vacas. O armarium era queira teria três ou quatro cónegos, Vila Nova de
modesto e vocacionado sobretudo para a liturgia Muía atingia cinco residentes e São Torquato apenas
(uma Bíblia em três volumes, um leccionário, um um cónego. Num grande mosteiro como São Vicente
antifonário, dois livros oficiais, dois colectários, dois de Lisboa, pela mesma época, o número de cónegos
saltérios, um capitulário, um epistolário, um evange- pautava-se entre 10 a 15 homens. No Norte do país
liário um missal e um ordinário). No tesouro encon- extinguir-se-iam, antes de 1500, sete mosteiros re-
travam-se dois cálices de prata, duas vestimentas grantes ( M A R Q U E S - Arquidiocese, p. 224-225).
festivas, um mantelo festivo, 12 capas de seda, qua- O quadro organizacional da economia monástica
tro dalmáticas e 15 panos de seda (1ANTT. Santa regrante, apesar de específico em cada casa, traduz-
Cruz de Coimbra, 2.a inc., M.° 35, «Alm. 60, N.° 23, -se por uma acentuada divisão dos rendimentos em
M.° 16»), Por esta descrição podemos reconstituir o mesas prioral (com cerca de 2/3) e claustral (com
quadro da vida quotidiana num claustro regrante de cerca de 1/3). Para uma gestão mais eficaz, optimi-
significado mediano e muito aquém dos índices e zou-se a criação de ovenças dirigidas por um cóne-
valores detidos por Santa Cruz, São Vicente de Lis- go-oficial responsável, podendo documentar-se
boa ou Grijó. Santa Cruz de Coimbra apresenta nú- ovenças como a das pitanças ou as da enfermaria, da
meros bastante altos em relação à sua demografia. vestiaria, da conrearia, da sacristia, da celeiraria e
Começando com 12 religiosos (1132), o seu número mesmo outras de menor significado. Os Cónegos
subiria aos 52 cónegos por volta de 1200. Por 1460, Regrantes inserem-se na evolução global da vida po-
o mosteiro tinha ainda 32 religiosos, dos quais 23 lítica e institucional da Igreja do seu tempo. Vemo-
eram de missa. Mas a generalidade das comunidades -los participantes da crise política de 1245-1248,
regrantes ficava-se muito aquém destes índices. Em presentes nas tensões que vão opondo o poder ecle-
siástico ao régio, participantes na criação do studium

432
CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO

generale português, dividirem-se no cisma da Igreja régias em Santa Cruz acabariam por conduzir à uti-
de 1378-1418 (processo particularmente visível em lização do mosteiro como comenda beneficiai. No
São Vicente de Lisboa e em Grijó), alhearem-se dos domínio da herança histórica protagonizada pelos
princípios mais puros da regra canonical ao senho- cónegos regrantes portugueses, ela é particularmen-
rializarem os seus claustros, convivendo com priores te importante para os quadros culturais que marca-
absentistas e paladinos de políticas nepotistas para ram os alvores da nacionalidade. E não apenas pela
controlo dos principais cargos monásticos, trocando formação de prelados com acção relevante nos do-
simoniacamente cargos sem consulta das comunida- mínios pastoral e diplomático. Lembre-se que de
des conventuais, apalaçando as câmaras e torres das Santa Cruz de Coimbra saíram vários dos bispos
residências priorais, comportando-se mais como cor- portugueses nomeados para Braga (D. João Peculiar,
tesãos curialistas do que como exemplos de religiosos t 1175; D. Godinho, 1175-1188, e D. Estêvão Soares
de claustro. Os mosteiros crúzios foram-se transfor- da Silva, 1212-1228), Porto (D. Pedro Sénior, 1154-
mando em comendas de bons rendimentos, cobiçadas -1174), Lamego (D. Mendo, 1147-1176, e D. Godi-
pela hierarquia eclesial e pela realeza. Em Santa Cruz nho, 1176-1189), Viseu (D. Odório, 1147-1166, e
de Coimbra os priorados de D. Gonçalo Dias (1417- D.Nicolau, 1193-1213), Coimbra (D.Miguel Salo-
-1437) e de D. Gomes Ferreira (1437-1459) pautar- mão, 1162-1176, e D.Martinho, 1183-1191) e Lis-
-se-ão por uma atitude de reestruração das bases boa (D.Álvaro, 1164-1184). Alguns cronistas refe-
económicas do domínio monástico, elaborando-se renciam também como oriundos do claustro crúzio
cadastros preciosos de toda a propriedade da institui- coimbrão bispos undecentistas de Tui, Orense e Osma.
ção, renovando-se os privilégios régios de protecção A pujança cultural crúzia revela-se pela qualidade das
aos respectivos direitos senhoriais e enfrentando-se escolas claustrais de Coimbra e de Lisboa. Nelas flo-
firmemente as tentativas do duque D. Pedro de redu- resceu não somente o estudo teológico, como tam-
ção dos monopólios crúzios na cidade de Coimbra e bém o conhecimento filosófico e das diversas artes e
na orla costeira do Baixo Mondego. Ex-abade refor- ciências cuja ordenação e hierarquia se encontravam
mador dos camaldolenses em Itália, legado pontifí- claramente expostas no Didadascalion de Hugo de
cio, figura culta e prestigiada, D. Gomes Ferreira São Vítor. O conhecimento da obra de Santo António
desempenharia também uma apreciável obra de re- de Lisboa tem vindo a revelar a qualidade superior
novação de Santa Cruz tanto nos domínios espiritual da formação escolar do santo nos claustros crúzios
e pastoral, quanto no artístico. Este espírito de re- portugueses ( C R U Z - Santa Cruz; C A E I R O - Santo An-
novação artística e intelectual do mosteiro perma- tónio; C O N G R E S S O ) . Desenvolveu-se nestes claustros
neceria nas prelaturas seguintes, especialmente nos uma pujante actividade de cópia e de escrita de ma-
governos de D.João da Costa (1463-1473) e de nuscritos particularmente brilhante nos séculos xn e
D. João de Noronha (1473-1506). As interferências xiii ( N A S C I M E N T O - Livros; M I R A N D A - A iluminura).

Vista do conjunto do Mosteiro de Santa Marinha da Costa, em Guimarães, hoje transformado em pousada.
CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO AGOSTINHO

Deve ainda acrescentar-se a capacidade crúzia en- vilégio do isento de Santa Cruz de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora,
1940. MARTINS, A r m a n d o A. - O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra:
quanto entidade criadora e promotora de modelos de Séculos xtt-xv: História e instituição. 2 vol. Tese de doutoramento apre-
edificação espiritual e mística. Desde logo com a sentada à F L U L em 1996. Texto policopiado. MARQUES, José - Arqui-
realização da hagiografia de São Martinho de Soure, diocese de Braga no século xv. Lisboa: I N C M , 1988. MÁRTIRES, Timó-
teo dos - A Crónica do Real Mosteiro de Santa Cruz. Coimbra, 1955.
exemplo de cónego que abandona o capítulo catedrá- MIRANDA, Adelaide - A iluminura de Santa Cruz no tempo de Santo An-
tico de Coimbra para edificar junto dos povoadores tónio. Lisboa: Inapa, 1996. NASCIMENTO, Aires - Livros e claustro no
de Soure uma comunidade paroquial cristã. Depois século xni em Portugal: o inventário da livraria de S. Vicente de Fora de
Lisboa. Didaskalia. 15 (1985) 229-242. 0'MALLEY - Tello and Theoto-
com a vida de D. Telo, modelo canonical de sacerdo- nio, the Twelfthcentury Founders of the Monastery oj' Santa Cruz in
te. O caso mais significativo desta criação de mode- Coimbra. Washington, 1954. SAHTA Cruz de Coimbra do século xt ao
los de santidade por parte dos Cónegos Regrantes século xx: Estudos. C o i m b r a , 1984. SANTA MARIA, Nicolau de - Chro-
nica da Ordem dos Conegos Regrantes do patriarcha St." Agostinho.
consubstancia-se no processo de canonização, em Lisboa, 1668.
1163, de São Teotónio. Esta canonização não foi
controlada por Roma, resultando antes da força ecle-
sial dos prelados portugueses, particularmente do ar- CÓNEGOS REGRANTES DE SANTO ANTÃO. A adop-
cebispo de Braga*. Este acontecimento não teve pa- ção da Regra de Santo Agostinho por parte dos
ralelo noutras ordens religiosas estabelecidas em membros desta instituição data já do final do sé-
Portugal. Os Cónegos Regrantes desenvolverão o culo xiii, quando Inocêncio IV lhes conferiu essa
culto de santos locais que nunca viriam a receber re- possibilidade e os autorizou a formularem os votos
conhecimento superior. São exemplos significativos religiosos próprios de uma ordem regular. Mais tar-
de modelos de santificação, criados pelas canónicas, de, em 1297, Bonifácio VIII concedeu-lhes a auto-
o de São Goldofre, em São Pedro de Folques, o dos nomia necessária à transformação da igreja onde se
cónegos D. Pedro, mártir em Marrocos, e o de D. Paio encontravam as relíquias de Santo Antão, em Fran-
Godinho e comunidade, mártires em São Romão de ça, em abadia e a isenção da jurisdição ordinária,
Seia. Para as clausuras femininas, acolheram-se completando assim a obra iniciada anteriormente de
manifestações devocionais para com a beata Soror constituição da Ordem de Santo Antão. Antes do
Feliciana, de São João das Donas (f 1192). O prota- século xiii, a principal função dos seus seguidores
gonismo de Santa Cruz de Coimbra destacar-se-á centrava-se no apoio aos doentes, em particular aos
também com o caso do culto dos Mártires de Marro- atingidos pelo «fogo de Santo Antão». Função essa
cos, cujas relíquias foram ali acolhidas em 1220. responsável pela sua difusão pela Cristandade des-
Com devoção particular entre crúzios e francisca- tes séculos. Em Portugal, o seu primeiro mosteiro
nos*, só em 7 de Agosto de 1483, pelo decreto Cum foi, ao que é permitido concluir a partir da esparsa
alias, seriam canonizados. São estes os modelos de informação disponível, o de Santo Antão de Bem
vida exemplar que tocaram emocionalmente os có- Espera, na diocese da Guarda*, «cabeça» de comen-
negos regrantes portugueses. Mais do que uma resul- da nos séculos seguintes. A partir deste ou em para-
tante da tradição hispânica moçárabe, que se pres- lelo terão sido fundados os mosteiros de Santo An-
sente bastante activa nos mosteiros regrantes, como tão em Lisboa, talvez cerca de 1400, de Marvila em
o atestam santorais e descrições de relíquias neles Santarém, de Santo Antão de Aveleira em Pinhel e
depositadas, estaremos aqui perante modelos infor- de São Domingos de Besteiros em Viseu. Contudo,
mais de santificação que emergem de uma época de já anteriormente à adopção da Regra de Santo Agos-
reconquista*, dominada pelo espírito cruzadístico, tinho parece ser possível retraçar a presença do culto
de proselitismo religioso dentro do Islão, o que não a este santo e dos seus fiéis no território português,
deixa de evidenciar uma fonte de referência para a pela existência de ermidas junto às principais vilas,
acção missionária que virá a ser protagonizada pelos como é o caso de Lisboa, Santarém, Coimbra e Évo-
Mendicantes. É também importante sublinhar que ra. Nesta última, a igreja de invocação de Santo An-
os cónegos regrantes portugueses não parecem ter tão é, pelo menos, anterior a 1286, possuindo em
querido ou conseguido promover a canonização de anexo uma albergaria onde os seus membros exer-
potentes, de modelos de guerreiros ou de cruzados ceriam, ao que tudo indica, as suas funções hospita-
santos, particularmente dentro da família real portu- lárias. Esta prática, comprovada no caso de Évora,
guesa, cujas primeiras gerações se fizeram sepultar seria muito provavelmente comum à de outras vilas
nos seus claustros. Tal missão, muito informalmen- onde o culto a Santo Antão e as obrigações curativas
te, acabaria por ser protagonizada por outras ordens a que os seus seguidores eram obrigados estavam já
religiosas. difundidas. É porém difícil conhecer a organização
SAUL ANTÓNIO GOMES
destas comunidades anteriormente ao século xiv. Se,
segundo Fortunato de Almeida (História, vol. 1,
BIBLIOGRAFIA: AMARAL, LUÍS Carlos - São Salvador de Grijó na segunda p. 135), estes conjuntos de frades leigos, dispersos
metade do século xtv: Estudo de gestão agrária. Lisboa: Cosmos, 1994. pelas diferentes casas religiosas, obedeciam a um
CAEIRO, Francisco da G a m a - Santo António de Lisboa: I: Introdução
ao estudo da obra antoniana: II: A espiritualidada antoniana. Lisboa, grão-mestre, a verdade é que a incipiente informa-
1 9 6 7 , 1 9 6 9 . CONGRESSO INTERNACIONAL PENSAMENTO E TESTEMUNHO: ção nada permite concluir. A reorganização das ins-
8 . ° CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE SANTO ANTÓNIO - Actas. Braga: UCP,
1996. 2 vol. COSTA, António D. Sousa - S. Antonio Canonico Regolare
tituições assistenciais operada a partir do final do
di S. Agostino e la sua vocazione francescana. Braga, 1982. CRUZ, An- século xv e em especial no decurso da primeira me-
tónio - Santa Cruz de Coimbra na cultura portuguesa da Idade Média. tade de Quinhentos, a par, com certeza, de um cres-
Porto: BPMP, 1964, vol. 2. GOMES, Saul - D o c u m e n t o s medievais de
Santa C r u z de Coimbra: I: Arquivo Nacional da Torre d o Tombo. Estu-
cente afastamento entre a mensagem espiritual desta
dos Medievais. Porto. 9 (1988) 3-200. IDEM - Organização paroquial e ordem e a comunidade dos fiéis cristãos, foram res-
jurisdição eclesiástica no priorado de Leiria nos séculos xn a xv. Lusita- ponsáveis pela rápida decadência dos Antoninos em
nia Sacra. L i s b o a . 2 ( 1 9 9 2 ) 1 6 3 - 3 1 0 . MADAHIL, A . G . d a R o c h a - O pri-

434
C Ó N E G O S REGULARES DE SANTA CRUZ

Portugal, visível na queda de vocações e na diminui- claustros crúzios revelavam-se pouco actualizados. Ao
ção de doações. Só assim se compreende que, no rei- nível das principais elites dirigentes portuguesas, gene-
nado de D. João III, quando o monarca procedeu à ralizou-se a consciência da necessidade de reformas
mudança dos Cónegos de Santo Antão de Lisboa pa- dentro dos mosteiros. Em Santa Cruz de Coimbra de-
ra o Mosteiro da Anunciada, estes se limitassem ao tectam-se inegáveis sinais de mudança e reforma inter-
número de dois. A sua união à Companhia de Jesus na já no priorado do «estrangeirado» D. Gomes Ferrei-
(v. J E S U Í T A S ) , recentemente criada, foi assim inevitá- ra (1437-1459), experiente reformador da congregação
vel. Obtida primeiro pelo prazo de cem anos, logo dos cónegos regulares camaldolenses. Nos decénios
em 1550 Júlio III a tornou perpétua e efectiva. A Or- seguintes os Crúzios experimentariam uma certa capa-
dem dos Cónegos Regrantes de Santo Antão em Por- cidade de renovação. No priorado de D. João de No-
tugal representa assim, com a sua curta existência, ronha (1473-1506) procurar-se-ia renovar o tesouro
um dos exemplos da transformação e da reorientação litúrgico, a biblioteca e as próprias estruturas do
que a espiritualidade leiga do final da Idade Média complexo monástico. A ocupação do cargo de prior-
sofreu, e que contribuiu para uma reorganização no -mor por membros da família real, após 1507, propi-
interior da estrutura eclesiástica. ciaria a reforma monástica iniciada em 1527 debaixo
HERMÍNIA VASCONCELOS VILAR da orientação de Frei Brás de Barros, prestigiado
erudito e teólogo hieronimita, conhecedor dos novos
BIBLIOTECA: ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal.
Porto, 1967, vol. 1, p. 135, 331. LE BLEVEC, Daniel - L ' o r d r e canonial horizontes filosóficos e humanísticos europeus de
et hospitalier des Antonins. Cahiers de Fanjeaux. 24 (1989) 237-254. sabor erasmiano. Debaixo da sua reforma, Santa
PEREIRA, Gabriel - A Igreja de Santo Antão. In IDEM - Estudos eboren- Cruz veria intensificar-se o mecenatismo artístico
ses: História e arqueologia. 2.' ed. Évora, 1947, vol. 1, p. 299-335.
SANTA MARIA, Nicolau de, fr. - Chronica da Ordem dos Conegos Re- que vinha afectando o cenóbio desde o reinado de
grantes do patriarcha Santo Agostinho. Lisboa, 1668. D. Manuel. O que não era bastante. Neste claustro,
D. Frei Brás de Barros executaria uma política de
CÓNEGOS REGULARES DE SANTA CRUZ. A Con- actualização da formação escolar dos religiosos, re-
gregação dos Cónegos Regulares de Santa Cruz in- vitalizando os princípios da pureza da vida apostóli-
sere-se no processo histórico moderno. Os tempos ca, da disciplina claustral e do progresso intelectual
de crise tardo-medievos que os mosteiros portugue- bem revelado pela decisão de instalar na canónica
ses de cónegos regrantes de Santo Agostinho passa- um prelo tipográfico. A renovação da vida regular
ram eram comuns à generalidade das antigas ordens no mosteiro não foi coactiva, dando-se liberdade de
regulares. Beneditinos* e cistercienses*, tanto quan- opção aos cónegos já professos. Aos que recusaram
to cónegos regrantes de Santo Agostinho, tiveram de a remodelação passou a chamar-se «cónegos ve-
adaptar-se aos projectos do poder régio moderno, lhos». Dos cerca de 70 religiosos que ali habitavam,
evidenciando-se as unidades congregacionais de escrever-se-ia, em 1532, serem exemplo de uma vir-
mosteiros e ordens, procurando-se a autonomia face tuosa e exemplar comunidade. Em 1566 determinou-
aos centros de decisão externos, unificando-se as di- -se a não aceitação, entre os Crúzios, de novos ir-
versidades tradicionais internas próprias. Durante o mãos conversos. A reforma de Brás de Barros
período medieval, as ordens religiosas concorreram permitiu também o reforço da vida claustral, am-
para a institucionalização de um poder real portu- pliando-se as fontes de rendimento da comunidade
guês. Desde cerca de 1450, a tendência inverte-se, conventual e reduzindo-se o esforço económico exi-
cabendo à Coroa promover a continuidade das or- gido pelos priores-mores. A reforma impulsionaria
dens. Mesmo no campo dos Mendicantes, onde os muito particularmente a renovação do sistema de en-
laços unitários internos eram mais palpáveis, se as- sino no mosteiro coimbrão. Criaram-se colégios
sistirá à institucionalização das respectivas provín- (São Miguel, depois designado de São Paulo e Santo
cias portuguesas por todo o século xv. O rei passa a Agostinho) especificamente vocacionados para uma
exercer um poder determinante na vida dos claus- educação com conteúdos programáticos actualiza-
tros regulares, disputando a Roma os direitos de pa- dos, tanto quanto para corresponderem às necessida-
droado e de nomeação de abades e priores-mores. des dos grupos sociais nobilitados e honrados. Neles
A própria evolução histórica da Igreja Católica ca- se ministraram Artes, Teologia e Cânones. Em 1537,
racterizar-se-ia pela rendição ao mundo material, a instalação da universidade em Coimbra viria a exi-
disputando-se no seu seio a posse de direitos, rendas, gir alterações profundas em Santa Cruz. A canónica
prebendas, cargos e honrarias, evoluindo-se rapida- perdeu não só a hegemonia do ensino de nível supe-
mente para a instituição de comendas como corolá- rior na cidade, como viu serem-lhe diminuídos dras-
rio previsível da orgânica dos poderes ocidentais de- ticamente o seu património e as suas fontes de rendi-
vedores da multiplicação de benesses, do controlo mento. Em 1545, pela bula Cum attente, uma parte
nepotista das cadeias directivas, da permissividade substancial dos bens priorais foi integrada na univer-
simoníaca de compra e venda de cargos eclesiásti- sidade. Uma outra parte serviria à institucionalização
cos. Desde meados de Quatrocentos que os antigos dos bispados de Leiria e de Portalegre. O processo
mosteiros de cónegos regrantes se viram apropriados não esteve isento de dificuldades, despoletando-se
por comendadores, uma boa parte dos quais estran- controvérsias e lides judiciais. Com a universidade,
geiros, usurpando até à exaustão os rendimentos das só em 1605 se resolveria um contrato satisfatório pa-
mesas priorais para proveito pessoal, descuidando a ra a claustra crúzia. Diminuiu o património dominial
vida claustral e a vivência espiritual dos religiosos crúzio, mas em contrapartida acrescentaram-se hon-
residentes. A crise não assumia somente um foro insti- rarias ao prior de Santa Cruz, dando-se-lhe o contro-
tucional. Sob um ponto de vista cultural e espiritual, os lo da prestigiada chancelaria universitária ( C O E L H O -

435
C Ó N E G O S REGULARES DE SANTA CRUZ

Contenda). A modernização da Ordem dos Cónegos Oliveira, Santo Estêvão de Vilela, São Miguel de Vi-
Regrantes pressupunha a sua organização institucio- larinho, Santa Maria de Muía e São Martinho de
nal em sistema congregacionista. O que não se fez Crasto ( S A N T A M A R I A - Chronica, p. 384). Entretan-
de imediato, mas dentro de um alongado período de to, pequenas casas regrantes foram-se afiliando nou-
tempo. Em 1556, Paulo V instituiu formalmente a tras ordens, como aconteceu com Santa Marinha da
Congregação dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz Costa, passada para os Hieronomitas em 1528; com
de Coimbra. Pela lista que se apresenta pode ver-se Ansede, Mancelos e Freixo, extintos em favor de
como, ainda entrado o século XVII, se processava este São Gonçalo de Amarante, da ordem dos Pregado-
fenómeno de estruturação da congregação. O núme- res; e com Cárquere, Longos Vales e Roriz, apro-
ro de mosteiros que a constituíam foi aumentando, priados pelos Jesuítas entre 1551 e 1561. Os mostei-
de tal forma que em 1630 eram já 20. Com D. Se- ros femininos da ordem extinguem-se, sobrevivendo
bastião, os Crúzios viram-se desautorizados nos seus ainda em Setecentos o de Santa Ana de Coimbra.
privilégios ancestrais que lhes concediam o exclusi- A Congregação de Santa Cruz de Coimbra traduziu
vo do controlo dos mais importantes pontos de abas- não só uma renovação institucional das formas disci-
tecimento de água em Coimbra. Apesar dos esforços plinares e litúrgicas da vida claustral, bem como o
do prior da claustra junto do rei, Santa Cruz acabou despoletar de um processo de conhecimento da sua
por não alcançar os sucessos desejados. Cumprindo própria história. Floresceram alguns importantes
uma tradição, enviaria para Roma, logo em 1558, cronistas dentro da congregação, sendo de citar os
embaixadores, afirmando-se como procuradores dos nomes de D. Gabriel de Santa Maria, D. Timóteo
interesses crúzios os célebres cónegos D. Clemente e dos Mártires, D. Nicolau de Santa Maria, D. Marcos
D. Filipe Pegado ( C O E L H O - De Coimbra). Em 1578, da Cruz, D. Francisco da Anunciada, D. José de
Santa Cruz ver-se-ia privado do seu prelo tipográfi- Cristo e D. Inácio de Nossa Senhora da Boa-Morte,
co, transferido para São Vicente de Lisboa onde per- a par de outros autores menos conhecidos (v.g.,
maneceria activo ainda na década de 1630. Na crise D. Bento da Conceição, D. André da Encarnação,
de 1580, Santa Cruz inclinou-se para o partido na- D. Possidónio da Anunciação e D. Alberto de São
cional, apoiando o prior do Crato. Apesar de rapida- João). Na reorganização do cartório da congregação
mente ultrapassado o episódio protestativo, o rei Fi- e da biblioteca crúzia destacou-se, em finais de Sete-
lipe II e seus sucessores acabariam por promover a centos, D. Pedro da Encarnação. Foi também muito
valorização do Mosteiro de São Vicente de Fora, importante a actividade de criação musical sacra po-
menorizando a canónica coimbrã. A renovação ar- lifónica desenvolvida no claustro coimbrão, atingin-
quitectónica que São Vicente sofrerá desde então do a celebridade compositores como D. Heliodoro
testemunha bem do seu lugar hierárquico na nova de Paiva ( | 1552), D.Pedro de Cristo (f 1618) e
ordenação pretendida para os Cónegos Regulares. D. Pedro da Esperança (f 1660). Na exegética bíbli-
A tradição, no entanto, seria mais forte, e o prior- ca distinguiu-se D. Pedro de Figueiró, cognominado
-geral acabaria por ter a sua cátedra fixa em Santa o Hebraico, determinando-se no capítulo geral de
Cruz de Coimbra. À sua direita, no entanto, nos ca- 1609 que se imprimissem as suas obras. Na espiri-
pítulos gerais, tomava assento o dom prior de São tualidade destacar-se-á o vulto de D. Hilário Bran-
Vicente. Em 1590 obteve-se de Roma decreto para a dão (t 1585), autor da Voz do Amado ( B R A N D Ã O -
reforma e unificação de dez mosteiros desde então Voz). Por seu turno, os cónegos crúzios continuaram
sujeitos à obediência da congregação. O processo a abastecer as fileiras do alto clero aparecendo à
institucionalizador da congregação crúzia levaria à frente dos bispados quer metropolitanos, quer ultra-
necessidade de renovação da regra religiosa. Cada marinos. Entre estes sobressaem os nomes de
capítulo geral criava determinações pontuais e oca- D. Francisco do Soveral, bispo de São Tomé (1622)
sionais, havendo necessidade de um texto unificador e depois de Angola (1627-1642) ou de D. Francisco
organicamente mais activo e estruturante. Em 1607 de Sottomaior, bispo de Targa (1636) e eleito para a
avançou-se para uma nova base constitucional. Seria diocese de Lamego* (1654). Quanto ao sentimento
em 1615, contudo, que o papa Paulo V promulgaria pietista, as claustras crúzias deixaram-se penetrar
as constituições apostólicas dos crúzios portugueses, pela sensibilidade barroca. O culto das relíquias de-
as quais sofreriam remodelação cerca de um século senvolveu-se extraordinariamente entre os Crúzios
mais tarde. Por 1612, a hierarquia institucional da desde meados de Quinhentos. Em Coimbra, refor-
congregação estava assente, afirmando-se como «ca- mar-se-iam os túmulos dos Mártires de Marrocos,
sas grandes» os mosteiros de Santa Cruz, São Vicen- de Santa Comba e de São Teotónio, entre outros.
te, Grijó, Serra do Pilar (Porto), Moreira, Landim, Em testemunho da unidade espiritual da congrega-
Refóios e o Colégio de Santo Agostinho. Eram os ção, Santa Cruz ofereceria relíquias dos seus santos
priores destas instituições, juntamente com visitado- quer aos mosteiros da ordem, caso de Grijó (1589),
res eleitos, que, em capítulo geral trienal, determina- quer aos de outras ordens, quer a dioceses (Viseu*,
vam todos os destinos da congregação. A centraliza- Leiria*), quer a altos dignitários da Igreja. Em
ção moderna do Estado passava também pela 1595, no meio de grandes festas religiosas, entra-
unificação dos antigos cenóbios de cónegos regran- riam em Santa Cruz numerosas relíquias oriundas
tes de Santo Agostinho. Em 1615, Clemente VIII da Flandres e resgatadas nos territórios europeus
confirmaria a união à congregação dos mosteiros de dominados pelo protestantismo*. Além deste campo
São Martinho de Caramos, Santa Maria de Vila Boa devocional piedoso tão especificamente católico e
do Bispo, São Salvador de Paderne, São Pedro de tridentino, desenvolve-se em Santa Cruz, especial-
Folques, São Simão da Junqueira, Santa Maria da mente após 1566, a devoção a Nossa Senhora da

436
CÓNEGOS REGULARES DE SANTA CRUZ

Vista do claustro de Santa Cruz de Coimbra.

Conceição. Enraizou-se também nesse mosteiro o versidade a fim de (re) abrirem o processo canónico
Laus Perene com a exposição soleníssima do Santís- do monarca fundador. Renovou-se, naquele momen-
simo Sacramento durante 40 horas, prática que se to, o mito do milagre de Ourique, que se assumiria
ampliaria no século xvm. Desde finais de Quinhen- como um dos tópicos motores da historiografia sete-
tos que os mosteiros regrantes se viram profunda- centista portuguesa sobre a nacionalidade. A «segun-
mente transformados. Neles foi aplicado um intenso da reformação» dos Crúzios foi preparada debaixo
programa de reformas artísticas de vulto. Neste cam- da orientação titubeante de D. Gaspar da Encarnação
po, São Vicente de Fora, em Lisboa, constitui o (franciscano, reformador da academia coimbrã, se-
exemplo mais elucidativo do novo espírito estético cretário de Estado), entre 1723 e 1752, com o patro-
que a congregação conheceu, posto que Santa Cruz cínio do rei D. João V, sendo continuada até 1760
de Coimbra concentre a parte mais significativa do por D. Francisco da Anunciação. A reforma evoluiu
esforço financeiro desta política artística barroqui- dentro de uma postura que conjugava o ascetismo
zante. A par de um programa de intensa renovação monástico com uma vivência religiosa integrada,
artística das igrejas e cómodos conventuais, germi- com certo fausto, no mundo. O hábito dos Crúzios e
nou nos claustros crúzios um sentimento de identida- a paramentaria por eles usada atingiu, então, foros
de nacional que se traduziu, entre outros aspectos, na de luxuosa indumentária ( G O N Ç A L V E S - Certos; M A R -
propalação da devoção a São Teotónio. Ali se salva- Q U E S - Figurino). Esta «reformação» não evitaria, no
guardavam os túmulos dos reis fundadores de Portu- entanto, uma certa dissolução do sentimento discipli-
gal, periodicamente enriquecidos quanto a programa nar e unitário da ordem. Os Cónegos Regulares de
estético e iconográfico. No século xvm desenrolou- Santa Cruz manifestavam-se «jacobeus», atraindo
-se uma corrente de fervor religioso nacionalista, re- as desconfianças de certos sectores do clero e do
tomando-se as tentativas, iniciadas já em tempo de próprio marquês de Pombal, que os apelidavam de
D. João III, de obter em Roma a beatificação de «sigilistas», lançando sobre eles a suspeita de não
D. Afonso Henriques. Depois de 1640, D. João IV guardarem o segredo confessional. Neste contexto
encontraria na congregação um esteio de suporte in- evidenciou-se D. Miguel da Anunciação, prior-geral
telectual e religioso para a causa portuguesa do da congregação eleito em 1737 e elevado ao episco-
maior significado. Lembre-se que este monarca viria pado conimbricense no ano seguinte, acabando por
a receber sepultura em São Vicente de Fora. Em cair em desfavor junto do poderoso ministro de
1753 reunir-se-ia no claustro crúzio de Coimbra uma D. José, pelas suas posições pouco consentâneas
comissão constituída por religiosos e lentes da uni- com a ideologia do despotismo iluminado. Em 1767,

437
CÓNEGOS REGULARES DE S A N T A CRUZ

o marquês dc Pombal não hesitou em extinguir a to Agostinho (1590-1593 e 1599-1602), D.Cristó-


Academia Litúrgica (instituída pela bula Gloria Do- vão de Cristo (1593-1596), D. Lourenço do Espírito
mini, em 1747, para a leccionação das disciplinas de Santo (1602-1605), D. Acúrsio (irregular: 1605),
Sagrados Ritos e de História Eclesiástica) e a im- D. Bernardo da Piedade (eleição cassada em 1605),
prensa instaladas em Santa Cruz. Em 1770 seriam D. António das Chagas (por nomeação papal de 11
suprimidos pelo papa Clemente XIV os mosteiros de de Janeiro de 1606), D. Miguel de Santo Agostinho
Grijó, Vila Boa do Bispo, Caramos, Landim, Pader- Pessanha (1609-1612, 1618-1621, 1627-1630, vigá-
ne, São Simão da Junqueira, São Jorge, Refóios do rio-geral em 1640), D. Dionísio da Misericórdia
Lima e Moreira da Maia, convertendo-se os respecti- (1612-1615), D.Jerónimo da Cruz (1615-1618 e
vos patrimónios e rendas em favor do Mosteiro de 1630-1633), D.António da Cruz (1621-1624
Mafra, que será administrado pelos Cónegos Regula- e 1639-1640), D.Sebastião da Graça (1624-1627),
res desde 1771. A congregação passou a ser consti- D. Luís dos Santos (1633-1636, 1647-1650 e 1663
tuída apenas pelos conventos de Mafra, Serra do Pi- por breve pontifício), D. Paulo de Santo Agostinho
lar, São Vicente de Fora e Santa Cruz com o colégio Barreto (1636-1639), D. Leonardo de Santo Agosti-
anexo da Sapiência. Valorizou-se, então, o Mosteiro nho (1653-1656, sendo bispo eleito de Cabo Verde),
de Mafra, nele se estabelecendo um real colégio sob D.Jerónimo da Ressurreição (1650-1653), D.Mi-
a protecção régia. Em 1772, São Vicente de Fora se- guel dos Anjos Perestrelo (1659-1660), D.José de
ria suprimido em favor da (re) estruturação da cáte- Cristo Pereira de Bretiande (vigário-geral em
dra patriarcal de Lisboa, passando parte dos seus 1660-1663).
rendimentos para o Convento de Mafra, que se pre- SAUL ANTÓNIO GOMES

tendia afirmar como «o mais respeitável de toda a


BIBLIOGRAFIA: ACTAS dos capítulos do Mosteiro de Santa Cruz. Ed. Mário
Congregação», nele tendo passado a residir conjun- Brandão. Coimbra: Arquivo da Universidade, 1946. ALMEIDA, Fortunato
turalmente o prior-geral como sucedeu com D. Ber- de - História da Igreja em Portugal. Ed. D a m i ã o Peres. Porto: Civiliza-
nardo de Nossa Senhora da Porta. Com a Viradeira, ção, 1968. AZEVEDO, Pedro de - Rol dos C ó n e g o s Regrantes de Santo
Agostinho d e D. Gabriel de Santa Maria. Boletim da Segunda Classe da
em 1777, a congregação vê-se reabilitada, repondo- Academia das Sciências de Lisboa. Coimbra. 11 (1918). BRANDÃO, Hi-
-se a importância hierárquica de Santa Cruz. Impor- larião, fr. - Voz do Amado. Introd. de Maria de Lurdes Correia Fernan-
tante foi, também, a reabilitação de D. Miguel da des. Lisboa: Presença, 1993. BRANDÃO, Mário - Cartas de Frei Brás pa-
ra os priores do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Coimbra, 1937.
Anunciação, especial defensor dos cónegos crúzios e COELHO, Maria Helena - Receitas e despesas do Mosteiro d e Santa Cruz
dos seus modelos espirituais. D. Maria I, em 1780, de Coimbra em 1534-1535. In HOMENS, espaços e poderes. Séculos xi-
anularia os decretos que suspendiam a «segunda re- -xvi: II: Domínio senhorial. Lisboa: Horizonte, 1990, p. 93-171. COE-
LHO, Maria Helena; SANTOS, Maria José A z e v e d o - De Coimbra a Ro-
formação», sendo também restituídos à congregação ma: Uma viagem em metade de Quinhentos. Coimbra: C o i m b r a Ed.,
os mosteiros de Grijó e de Santa Maria de Refóios 1990. IDEM - Contenda entre a universidade e o Mosteiro de Santa Cruz
( N E T O - Terra). Dificultados os noviciados nas or- de C o i m b r a na segunda metade do século xvi: Breves notas. In CON-
GRESSO UNIVERSIDADE (S). HISTÓRIA, MEMÓRIA, PERSPECTIVAS - Actas. Coim-
dens regulares desde 1791, assaltados e destruídos bra, 1991, vol. 3, p. 39-61. GONÇALVES, N o g u e i r a - Certos aspectos do
parte dos mosteiros com as Invasões Francesas hábito dos cónegos regrantes da congregação de Santa Cruz. Boletim
(1807-1810), desincentivados pela falta de apoio dos Cultural da Câmara Municipal do Porto. Porto. 24: 3-4 (1961). Separa-
ta. MARQUES, José - Figurino crúzio visto da segunda metade do sécu-
governos liberais estabelecidos após 1820, os Cóne- l o x v i i i . I n CONGRESSO INTERNACIONAL DO BARROCO, 1 - Actas. Porto,
gos Regulares sofreriam o destino da exclaustração 1991, p. 531-548. Separata. MÁRTIRES, T i m ó t e o dos, fr. - Crónica de
definitiva em 1834. Mosteiros unidos à congregação Santa Cruz. O Instituto. Coimbra. 103, 106 (1955). Separata. NETO,
Margarida — Terra e conjlito: Região de Coimbra (1700-1834). Viseu:
de Santa Cruz: Santa Cruz de Coimbra (1527), São Palimage, 1997. SANTA MARIA, Nicolau de - Chronica dos Conegos Re-
Vicente de Lisboa (1537), Colégio de Santo Agosti- grantes de Santo Agostinho. Lisboa, 1668. SANTOS, C â n d i d o dos - Estu-
nho (1538), São Salvador de Grijó (1539), Santo dantes e constituição d o s colégios de Santa Cruz d e Coimbra
(1534-1540). Revista da Faculdade de Letras. Série de História. Porto.
Agostinho da Serra do Porto (1542), São Salvador 4 (1973). Separata. SILVA, A. Pereira da - A questão do sigilismo em
de Moreira (1563), Nossa Senhora de Landim Portugal no século xviu. Braga, 1964. IDEM - Jacobeia. In VERBO: Enci-
clopédia luso-brasileira de cultura. Vol. 11, col. 267. IDEM - Sigilismo.
(1563), Santa Maria de Refóios do Lima (1564), São In VERBO: Enciclopédia luso-brasileira de cultura. Vol. 11, col. 66.
Jorge de Coimbra (1568), São Salvador de Paderne
(1595), Santa Maria de Vila Nova de Muía (1595), CÓNEGOS DO SANTO SEPULCRO (séculos xii-xv).
São Simão da Junqueira (1595), Santo Estêvão de Muito pouco se sabe ainda sobre a presença, influên-
Vilela (1595), São Martinho de Caramos (1595), São
cia e difusão desta ordem em Portugal. A escassez
Pedro de Folques (1595), Santa Maria da Oliveira
documental, conjugada com a rareza de investigação
(1599), Vila Boa do Bispo (1605), São Miguel de
historiográfica sobre o percurso dos Cónegos do
Vilarinho (1610), São Martinho de Crasto (1615),
São Teotónio de Viana (1630). Priores-gerais da Santo Sepulcro no território nacional, tem obrigado
congregação até 1663: D. Bento de Camões os poucos autores que se têm dedicado ao seu estudo
(1539-1543), D. Dionísio de Morais (1543-1545), a repetirem, incansavelmente, os dados perpetuados
D . A f o n s o Pereira (1545-1548), D.Filipe Pegado pelas crónicas dos séculos xvn e xvm. Na verdade,
(1548-1551), D.Francisco de Mendanha (1551- estas constituem, a par das inquirições realizadas nos
-1554 e 1555-1558), D. Clemente da Silva reinados de D. Afonso III e D. Dinis, as principais
(1554-1555), D.Basílio da Silva (1558-1561 e bases documentais, aparentemente disponíveis, para
1572-1575), D. Lourenço Leite (1561-1564, 1569- o seu estudo. Através delas parece ser lícito con-
-1572 e 1578-1580), D.Manuel de Brito (1566), cluir da possível presença desta ordem em Portu-
D.Jorge Barbosa (1566), D.Pedro da Assunção gal desde o século xn, mercê do conjunto de doa-
(1575-1578, 1581-1584, 1587-1590, 1596-1599), ções que lhe foram feitas, tanto por particulares,
D. Simão de Cristo (1584-1587), D. Acúrsio de San- como foi o caso de Emisu Trastamires no início
daquele século, como por personagens régias, co-

438
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA

mo a rainha D. Teresa, mãe de Afonso Henriques, plo, em Aragão. Ausência de uma verdadeira in-
identificada nas Inquirições de 1258 como doadora fluência espiritual ou debilidade material que punha
de São Paio de Gouveia e da vila de Ladário, no em causa a sua existência autónoma? Dificuldades
concelho de Penalva do Castelo. Neste local, aliás, internas de sobrevivência ou predomínio político e
teria a ordem detido, a par da herdade de Sezures, do económico da Ordem do Hospital que veio a receber
couto de Ladário e de outros bens dispersos, o seu a sua herança?
primeiro mosteiro, asserção repetida por vários auto- HERMÍNIA VASCONCELOS VILAR

res, mas que nos parece, contudo, de difícil compro-


BIBLIOGRAFIA: MARTINEZ DIEZ, G o n z a l o - La orden y tos caballeros dei
vação documental, no que se refere à sua precedên- santo Sepulcro en la corona de Castilla. Burgos: La O l m e d a , 1994.
cia temporal. A principal casa religiosa desta ordem IDEM - La Orden dei Santo Sepulcro. 1 Jornadas de Estúdio. Calatayud-
localizou-se, pelo menos a partir da centúria de Du- -Zaragoza, 1991. SILVA, Eduardo Norte Santos - Uma ordem de cavala-
ria: A ordem equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém (das origens à
zentos, na Igreja de Santa Maria de Águas Santas, actualidade). Lisboa, 1988. VALENTE, Vasco -A Ordem do Santo Sepul-
onde a par da instituição colegial teria existido um cro em Portugal (notas para o seu estudo). Porto, 1924.
mosteiro de relativa importância. Enquanto a exis-
tência da igreja parece remontar ao século xii, a data CÓNEGOS DE SÃO JOÃO EVANGELISTA, v. LÓIOS.
da sua passagem para a órbita dos Cónegos Re-
grantes do Santo Sepulcro é-nos, no entanto, des- CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA. Se des-
conhecida. Tanto Francisco Brandão, na Monarquia de o princípio da história da Igreja os bispos costu-
lusitana, como Frei Lucas de Santa Catarina, nas mavam reunir-se para resolverem assuntos de inte-
Memórias da Ordem Militar de S. João de Malta, resse comum e alcance geral, nomeadamente através
afirmam ter a mesma pertencido à Ordem do Santo dos concílios* particulares ou gerais, só neste século
Sepulcro, questionando contudo a data da sua inclu- se instituíram as conferências episcopais a partir do
são, que o segundo acaba por situar, com alguma II Concílio do Vaticano, embora o Código de Direito
probabilidade, no decurso do reinado de Afonso III. Canónico de 1917, no seu canôn 292, previsse a pos-
Contudo, a verdade é que já em 1215 esta igreja per- sibilidade de reunião dos bispos ao nível da provín-
tencia aos Cónegos do Santo Sepulcro, conforme in- cia eclesiástica (em Portugal, em número de três:
dica a bula de Inocêncio III, datada de 9 de Setem- Braga, Évora e Lisboa). A sua origem encontra-se li-
bro desse ano. Segundo esta, o referido pontífice gada ao surgir de novas nações ou à reestruturação
tomava sob a sua protecção todas as casas conven- geográfica ou política das já existentes. 1. Natureza
tuais (v. C O N V E N T O S ) da referida ordem sitas na Pe- das conferências episcopais: Agrupamento de bis-
nínsula Ibérica e os seus bens, salientando entre ou- pos de uma nação ou de uma região mais vasta com
tras, localizadas nos reinos hispânicos, a Igreja de características religiosas semelhantes, as conferências
Santa Maria de Águas Santas, com todas as suas li- episcopais têm poder deliberativo sobre determinadas
berdades, pertenças e bens detidos em Portugal. Esta matérias e delas fazem parte todos os bispos do respec-
enunciação coloca uma imediata questão sobre as tivo território e outras pessoas por direito equiparadas.
formas de organização interna desta ordem no terri- O II Concílio do Vaticano (1963-1965) prescreveu-as,
tório português pressupondo, aparentemente, a exis- fazendo delas um dos meios concretos de exercício da
tência de uma hierarquia que encontraria nesta igreja colegialidade episcopal, proclamada pelo mesmo con-
do bispado do Porto* a «cabeça» organizadora. Ima- cílio. O actual Código de Direito Canónico (1983), no
gem que é reforçada pela menção feita em 1320- seu cânon 444, estatui: «A Conferência episcopal, ins-
-1321 de que o Mosteiro de Vila Nova de Penalva tituição permanente, é o agrupamento dos Bispos de
era anexo ao de Águas Santas. Extintos em 1489 e uma nação ou determinado território, que exercem
incorporados os seus bens na Ordem do Hospital em conjunto certas funções pastorais a favor dos
(v. HOSPITALÁRIOS) com o objectivo de reforçarem a fiéis do seu território, a fim de promoverem o bem
defesa desta última ordem na sua luta contra os Tur- maior que a Igreja oferece aos homens, sobretudo
cos, os Cónegos do Santo Sepulcro acabaram por se por formas e métodos de apostolado conveniente-
extinguir no território nacional, deixando para trás um mente ajustados às circunstâncias do tempo e do lu-
amplo conjunto de interrogações, cuja resposta ainda gar, nos termos do direito.» Nos termos do mesmo
hoje se desconhece. Com efeito, nada se pode afir- código, se a erecção, supressão ou alteração das con-
mar sobre a proveniência social dos seus membros e ferências episcopais compete à autoridade suprema
sobre a área de influência, tanto geográfica como so- da Igreja, já a elaboração dos seus estatutos, a esco-
cial, desta ordem que as inquirições do século XIII lha do seu presidente, secretário e demais órgãos, as-
apresentam como especialmente protegida pelos pri- sim como a sua dinâmica de trabalho dependem dos
meiros monarcas. A ser efectivamente assim, que re- membros que a integram. As conferências actuam de
lações privilegiadas mantinham os Cónegos Regran- forma colectiva sobre um largo conjunto de matérias
tes do Santo Sepulcro com a realeza das primeiras definidas pela lei comum ou por especial mandato
décadas da nacionalidade e quais as razões explicati- da Santa Sé, salvaguardando-se, nas demais, a auto-
vas dessa protecção? Que inserção no meio laical, nomia própria de cada bispo diocesano. «Elas ac-
onde a memória das doações parece ter-se perdido tuam e defendem a catolicidade da Igreja no âmbito
na voragem do tempo? Do mesmo modo se perfila do seu território, fomentando a unidade na fé e na
um conjunto de interrogações sobre os motivos sub- única missão, sem se desligarem da Igreja universal»
jacentes à sua extinção e, sobretudo, no que se refere ( G O M E S - Conferências, p. 413). 2. Breve historial:
ao acatamento obediente da bula de extinção em Desde a segunda metade do século xix que o papado,
Portugal, contrariamente ao que ocorreu, por exem- através dos núncios apostólicos, insistia na necessi-

439
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA

dade de os bispos de Portugal se reunirem entre si tro); a seguir, num degrau abaixo, vinham os outros
para coordenarem a sua acção, o que só veio a acon- bispos, de acordo com a precedência da sua ordena-
tecer no início do século seguinte. Mas, «não obstan- ção episcopal. Ao todo 18 bispos, incluindo o Secre-
te o nosso Episcopado se reunir habitualmente todos tário da Conferência, que era auxiliar de Lisboa»
os anos desde 1932, a Conferência Episcopal Portu- ( T R I N D A D E - Memórias, p. 294). Com a institucio-
guesa teve início somente em 16 de Maio de 1967, nalização da conferência em 1967, e embora contra a
data em que foram aprovados os seus primeiros Es- proposta inicial do mesmo patriarca de Lisboa, «vin-
tatutos, pouco depois confirmados pelo Santo Padre, gou o princípio de que, após a cessação de funções
nos termos do Decreto conciliar Christus Dominus so- de Gonçalves Cerejeira como Patriarca de Lisboa,
bre o múnus pastoral dos Bispos (nn. 37-38)» ( C O N F E - o presidente da Conferência seria eleito» (Ibidem,
RÊNCIA - Documentos: 1, p. 5). No entanto, desde p. 298), o que veio a acontecer em 1972, com
1957 que os bispos de Angola e Moçambique se reu- D. Manuel de Almeida Trindade. Dos oito primeiros
niam regularmente, por iniciativa da Santa Sé. Ao mandatos para presidente eleito, três foram desem-
contrário destes, os bispos de Macau e Timor e o penhados por D. Manuel de Almeida Trindade, bispo
prefeito apostólico da Guiné integraram então a de Aveiro, três pelo novo patriarca de Lisboa, D. An-
Conferência Episcopal Portuguesa de pleno direito, tónio Ribeiro, e dois por D. João Alves, bispo de
a par dos bispos residenciais, coadjutores e auxilia- Coimbra. Em 1999, de novo a presidência voltou a
res das dioceses das três províncias eclesiásticas da ser entregue ao patriarca de Lisboa, D. José da Cruz
então metrópole ( c f . Ibidem, p. 250-251). Mas já Policarpo. Nos termos dos seus estatutos, a confe-
desde o Concílio Plenário Português de 1926 que os rência, dotada de personalidade jurídica pública, «é a
bispos reuniam assiduamente para um retiro anual - entidade representativa da Igreja em Portugal, em
inicialmente no Luso e depois nos Olivais, em Lis- conformidade com os seus objectivos ( C O N F E R Ê N C I A -
boa - e aproveitavam essa oportunidade para tratar Estatutos, art. 1.° § 2). 3. Estrutura: A Conferência
de assuntos respeitantes à Igreja em Portugal. Em Episcopal Portuguesa, nos termos dos seus estatu-
1984, numa importante carta pastoral, e testemu- tos - aprovados em 1967, revistos em 1971, ajusta-
nhando a importância que atribuem a este órgão para dos em 1976 em função da nova geografia resultante
a vida da Igreja e a acção pastoral desenvolvida em da descolonização, adaptados ao novo Código de Di-
cada diocese, os bispos reavivam a memória nos se- reito Canónico em 1984, aperfeiçoados em 1991 e
guintes termos: «Recordamos, como uma das pri- novamente revistos em 1997 - , foi constituída com
meiras e mais importantes intervenções colegiais dos os seguintes órgãos: a assembleia plenária, que reú-
Bispos Portugueses neste século, a Pastoral Colecti- ne ordinariamente duas vezes por ano e que elege os
va de 24 de Dezembro de 1910 e o Protesto colec- seus presidente, vice-presidcnte (s) e secretário; es-
tivo de 5 de Maio de 1911, a propósito da violência tes, com outros dois membros escolhidos para o efei-
anti-religiosa da Primeira República. Outras, sobre a to, constituem o conselho permanente que promove
vida portuguesa se seguiram em 1917 e 1922. Em li- a execução das suas deliberações e resolve os casos
gação com o surto renovador da década de 30 (em urgentes que não requeiram uma assembleia extraor-
que se inscreve também e fundamentalmente o Con- dinária, além de dirigir o secretariado-geral e de
cílio Plenário de 1926), ficaram também célebres as coordenar os outros órgãos da conferência; as comis-
reuniões Plenárias do Episcopado no Luso (Abril de sões episcopais, criadas para estudar e acompanhar
1932 e Fevereiro de 1933) e em Lisboa (Novembro os problemas que se colocam em campos de acção
de 1933), de que saiu a criação da Acção Católica pastoral específicos; e, por último, o secretariado-
Portuguesa, apresentada ao público em "Nota Oficio- -geral e os diversos secretariados nacionais, órgãos
sa" de 16 de Novembro de 1933» ( C O N F E R Ê N C I A - Do- técnicos de informação e execução das decisões da
cumentos: 3, p. 71). A estas assembleias plenárias ti- conferência. Na sua assembleia plenária de 21 a 24
nham acesso apenas os bispos residenciais, sendo de Novembro de 1972 foram dados passos no senti-
que os bispos auxiliares - então em número diminu- do de procurar uma melhor e mais eficaz estrutura-
to - só participavam quando nela desempenhavam ção dos órgãos da conferência, nomeadamente defi-
cargos oficiais, como o de secretário. Essas reuniões nindo a competência de cada uma das comissões
decorriam sob a presidência de D. Manuel Gonçal- episcopais e dotando-as de um regulamento interno.
ves Cerejeira, cardeal-patriarca de Lisboa, que, no «Seguiram a orientação de ampliar a responsabili-
dizer de um dos seus pares, tinha uma «concepção dade das comissões, para deixarem a Assembleia
monárquica» do seu papel e exercia um verdadeiro Plenária mais livre para o estudo dos problemas de
ascendente sobre o conjunto do episcopado portu- fundo, relacionados com a missão essencial da Igre-
guês, fazendo valer a sua dignidade cardinalícia e o ja [...]. Ainda em ordem à maior eficiência dos ór-
seu grande prestígio pessoal. «A sala de reuniões, gãos da Conferência, assentaram nas bases do seu
num dos ângulos do espaçoso edifício [do palácio da financiamento e definiram as linhas de solução de
quinta onde fora construído o Seminário dos Oli- alguns problemas de ordem económica que afectam
vais], era o retrato da mentalidade hierárquica da a Igreja em Portugal» ( C O N F E R Ê N C I A - Documentos: 1,
época: as cadeiras que eram fixas e com espaldares, p. 285). Logo de início foram criadas doze comis-
dispostas em forma de U; na parte central, dois de- sões episcopais: Doutrina da Fé; Liturgia; Pastoral;
graus acima da dos outros bispos, estava a cadeira Clero e Religiosos; Seminários; Apostolado dos Lei-
do Cardeal Patriarca; logo abaixo, sentavam-se os gos e Família; Missões; Educação Cristã; Acção So-
dois bispos metropolitas (o Arcebispo Primaz de cial e Caritativa; Migrações; Meios de Comunicação
Braga, de um lado, e o Arcebispo de Évora, do ou- Social; e Universidade Católica (cf. Ibidem, p. 255).

440
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS INSTITUTOS RELIGIOSOS

de 1977, e a Comissão dos Episcopados da Comuni-


dade Europeia (COMECE), em que está representa-
da desde 1984 (cf Ibidem, p. 44). Em 1988, a Santa
Sé solicitou «a todas as Conferências Episcopais o
estudo de um texto relativo ao estatuto canónico e
jurídico das Conferências Episcopais», a que os bis-
pos portugueses também responderam ( c f . Ibidem,
p. 308-311). 4. Documentação e publicações: Uma
das formas de acompanhar as preocupações da hie-
rarquia católica e analisar a evolução do pensamen-
to do episcopado português ao longo das últimas dé-
cadas reside na consulta da documentação pastoral
produzida pela conferência (cartas, declarações e
notas), a par dos comunicados das reuniões da as-
sembleia plenária e do conselho permanente, que se
encontram coligidos e publicados em 4 volumes, até
hoje. O mesmo já não acontece relativamente às re-
flexões e pronunciamentos das diversas comissões
episcopais e respectivos secretariados nacionais. Es-
sa lacuna pode ser ultrapassada através da consulta
das publicações editadas sob a responsabilidade di-
recta ou indirecta da Conferência Episcopal Portu-
guesa e dos seus diversos órgãos, nomeadamente: a
revista Lúmen, publicada desde 1937, inicialmente
como «revista do clero e para o clero», actualmente
da responsabilidade do Secretariado-Geral da Con-
ferência Episcopal; e o Boletim de Informação Pas-
toral (1959-1970), editado pelo Secretariado de In-
formação Religiosa do episcopado. Para os anos
mais recentes, após o desaparecimento do jornal
Capa dos Estatutos da Conferência Episcopal Portuguesa, Novidades, em 1974, e da efémera existência de No-
1997. va Terra: Semanário de opinião e informação
(Maio de 1975-Fevereiro de 1977), consuíte-se tam-
Ao longo dos anos verificaram-se alguns acertos ins- bém Agência Ecclesia, boletim semanal do Secreta-
titucionais, em ordem a uma maior funcionalidade riado Nacional das Comunicações Sociais da Igreja,
da conferência. A Comissão Episcopal do Clero e em publicação desde 1994, antecedido por outros
Religiosos e a dos Seminários vieram a ser transfor- boletins, ainda sob a forma de policópias: Centro
Católico de Informação e Serviço de Apoio à Im-
madas numa única Comissão Episcopal do Clero, prensa, publicações dos anos 70 e 80.
Seminários e Vocações nas eleições de 1972, en-
quanto em Abril de 1969 fora criada uma Comissão PAULO F. DE OLIVEIRA FONTES
Mista Bispos/Religiosos, para se ocupar dos assun- BIBLIOGRAFIA: ANUÁRIO Católico de Portugal. Lisboa: Secretariado-
tos relativos às congregações religiosas e à sua arti-
culação com a Conferência Episcopal ( c f . Ibidem,
-Geral do Episcopado, 1968; 1975; 1981; 1986-1987; 1988-1990;
1991-1994. CÓDIGO de Direito Canónico. Ed. anotada de Pedro Lom-
p. 257). A Comissão Episcopal de Pastoral acabou bardia e Juan Ignacio Arrieta; trad. portuguesa de José A. Marques.
Braga: Theologica, 1984. C O N F E R Ê N C I A EPISCOPAL P O R T U G U E S A - Docu-
por vir a desaparecer também em 1972, enquanto a mentos pastorais: 1: 1967-1977. Lisboa: Of. da União Gráfica, 1978.
das Migrações se alargou ao Turismo, nas eleições IDEM - Documentos pastorais: 2: 1978-1982. Lisboa: Secretariado-
de Julho de 1970 ( c f . CONFERÊNCIA - Documentos: 1, -Geral do Episcopado, 1984. IDEM - Documentos pastorais: 3: 1983-
-1990. Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado; Rei dos Livros,
p. 284). Em Abril de 1976, «para maior eficácia, [1991], IDEM - Documentos pastorais: 4: 1991-1995. Lisboa: Secreta-
fundiram-se numa só as Comissões Episcopais do riado-Geral do Episcopado; Rei dos Livros, 1996. IDEM - Estatutos da
Conferência Episcopal Portuguesa. Lisboa: Secretariado-Geral do
Apostolado dos Leigos e da Educação Cristã e Famí-
lia» {cf Ibidem, p. 307), sendo novamente separa- Episcopado, 1998. G O M E S , Manuel Saturnino Costa - Conferências
episcopais: algumas reflexões. Didaskalia. 29 (1999) 375-415. M A -
das, em 1978, em duas novas comissões: dos Leigos TOS, Luís Salgado de - Os bispos portugueses da Concordata ao 25 de
Abril: alguns aspectos. Análise Social. 125-126(1994)319-383. T R I N -
e da Educação Cristã ( c f . CONFERÊNCIA - Documen- DADE, Manuel de Almeida - Memórias de um bispo. Coimbra: Gráfica
tos: 2, p. 242). Entretanto, em 1984 foi criada a Co- de Coimbra, 1993.
missão Episcopal da Família (cf. CONFERÊNCIA - Do-
cumentos: 3, p. 76-77), cuja problemática estivera CONFERÊNCIA NACIONAL DOS INSTITUTOS RELI-
até então entregue a uma das duas outras comissões, GIOSOS (CNIR). 1. Origens: «A Conferência Nacio-
conforme se constata nas anteriores eleições trienais nal dos Superiores Maiores dos Institutos Religiosos
de 1972, 1975, 1978 e 1981. Por outro lado, a confe- Masculinos», nas palavras de D. Gabriel de Sousa,
rência nomeia representantes seus para participarem OSB, abade de Singeverga, no I Congresso de Reli-
em determinados fora sociopastorais ou integrarem giosos (Lisboa, 1958), «teve, em Portugal, quase ge-
outras estruturas eclesiais, como o Conselho das ração espontânea. A seguir a 1926 surgiu um peque-
Conferências Episcopais da Europa (CCEE), de que no movimento de reuniões de superiores maiores
a Conferência Episcopal Portuguesa é membro des- que se realizavam, geralmente, em Lisboa, na Casa
441
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS INSTITUTOS RELIGIOSOS

dos Padres Espiritanos e que foram inspiradas e ani- te, os secretários da CNIR e da FNIRF fazem parte
madas pelo superior provincial de então, e depois ar- da Comissão Bispos Consagrados; a CNIR tem rela-
cebispo de Luanda, D. Moisés Alves de Pinho. ções de especial solidariedade com a FNIRF e reali-
E nestas reuniões informais, espontâneas, sem qual- za, todos os anos, aos mais diversos níveis acções co-
quer protocolo, sem qualquer estatuto e que se reali- muns: assembleias gerais, reuniões de direcção para
zaram durante vários anos, que devemos analisar as reflexão, formação e coordenação de iniciativas de
razões da criação da CNIR. A Santa Sé* tomou co- interesse comum. Para a concretização destes e ou-
nhecimento destas reuniões, bem como de movimen- tros objectivos a CNIR, além de secretariados dioce-
tos idênticos que também noutras nações iam surgin- sanos ou regionais, tem com a FNIRF as comissões
do, e resolveu incrementá-las e oficializá-las. Foi mistas que desenvolvem acções qualificadas em vá-
apenas há cinco anos», afirma o senhor D. Gabriel, rias áreas de carácter pastoral e social tais como: Co-
«que nasceu oficialmente a nossa Conferência Na- missão de Formação, Comissão Justiça e Paz, Comis-
cional dos Institutos Religiosos e, tendo a ideia ga- são de Missões, Comissão de Pastoral Vocacional,
nhado também os Institutos Femininos, foi possível, Comissão de Reflexão (em união com as direcções,
em 1954, no mês de Setembro, realizar, em Fátima, organiza a Semana de Estudos sobre a Vida Consa-
conjuntamente, uns Dias de Oração e Estudo, peque- grada) e a comissão da revista Vida Consagrada.
no Congresso que rasgou novas perspectivas e nos 4. União das Conferências Europeias de Superiores
fez antever a possibilidade de mais amplas realiza- Maiores (UCESM): A CNIR está também federada
ções» (das Actas do I Congresso Nacional de Reli- na UCESM, cuja sede funciona em Bruxelas e que
giosos, realizado em Lisboa, de 8 a 13 de Abril de reúne, estatutariamente, em assembleia geral, de dois
1958). 2. Natureza e objectivos à luz dos estatutos: em dois anos, os representantes de mais de 40 confe-
A Conferência dos Superiores Maiores dos Institutos rências de religiosos/as dos países europeus nela ins-
Religiosos Masculinos existentes em Portugal foi critos. A UCESM representa, assim, mais de 460 000
erecta por autoridade da Santa Sé, sob a designação religiosos/as de toda a Europa. 5. Estatísticas da
de Conferência Nacional dos Institutos Religiosos CNIR em 1996: Na CNIR estão federados, actual-
(CNIR). Permanece «sob orientação suprema» da mente, 40 institutos, com um total de 2151 membros
mesma Santa Sé ( c f . cânon 709), por quem são apro- dos quais vivem em Portugal 1570; trabalham nas
vados os estatutos que a regem (artigo 1 F o r m a m a missões ad gentes 470, trabalham com emigrantes ou
CNIR os institutos religiosos masculinos e as socie- residem no estrangeiro 120, tendo em formação 580
dades de vida apostólica federados existentes em Por- escolásticos, noviços e postulantes.
tugal, representados pelos respectivos superiores JOSÉ LAPA
maiores ou equiparados, conforme o direito (arti-
go 2.°). A CNIR goza de personalidade jurídica canó- CONFERÊNCIAS VICENTINAS. Nome pelo qual é
nica (decreto da Congregação dos Religiosos e Insti- vulgarmente conhecida a obra da Sociedade de São
tutos Seculares, de 27 de Outubro de 1954, Protocolo Vicente de Paulo (SSVP), considerada, nos termos
01900/54) e civil (comunicação do Governo Civil de do actual Código de Direito Canónico (1983), uma
Lisboa, de 17 de Janeiro de 1975, artigo 3.°). A CNIR associação privada de fiéis. Iniciadas em França, a
tem a sua sede central em Lisboa. Pode constituir se- 23 de Abril de 1833, as Conferências Vicentinas sur-
cretariados regionais, mesmo em conjunto com a giram em Portugal em 1859, por iniciativa dos pa-
FNIRF (Federação Nacional dos Institutos Religiosos
Femininos), de âmbito diocesano ou interdiocesano,
onde for julgado oportuno (artigo 4.°). De acordo
com o cânon 708, Mutuae Relationes 21 e 61, Per-
fectae Caritatis 23, a CNIR tem por fim realizar um
trabalho de coordenação e auxílio mútuo entre os di-
versos institutos de modo a: a) tornar mais fortes os
laços de solidariedade que os une na prossecução do
ideal de perfeição evangélica; b) promover o bem dos
institutos pelo estudo e, na medida do possível, pela
solução dos problemas comuns, tendo sempre em
conta a autonomia, a finalidade específica e o caris-
ma de cada instituto; c) promover a coordenação de
uma maior eficiência prática em trabalhos de colabo-
ração apostólica; d) difundir a doutrina acerca da vida
consagrada na Igreja e promover o seu melhor conhe-
cimento; e) cooperar com a hierarquia nos planos da
pastoral de conjunto e em outras questões de comum
interesse para o melhor serviço da Igreja (artigo 5.°).
3. Inserção e comunhão eclesial: A CNIR promove a
comunhão eclesial aos mais variados níveis: com
a Santa Sé, através da nunciatura apostólica e com a
Conferência Episcopal Portuguesa* (CEP); o presi-
dente participa nas suas assembleias e jornadas pasto-
rais; o presidente, o vice-presidente e, alternadamen-
Grupo de congregados de São Vicente de Paulo no 1

442
CONFERÊNCIAS VICENTINAS

dres Sena Freitas e Emilio Miei, da Congregação da prio Cristo, nasceu a ideia da «visita aos pobres nos
Missão, e do conde de Aljezur, que, sob a invocação seus domicílios», novidade e protótipo das activida-
de São Luís de França, fundaram a primeira confe- des vicentinas, através das quais se procurava aliar
rência masculina na paróquia de Santas Justa e Rufi- a caridade individual ao sentido da justiça social.
na (data de 31.10.1859 a sua agregação à SSVP). O primeiro regulamento da Sociedade de São Vicen-
Nascida da estreita relação existente com o movi- te de Paulo, aprovado em 1835, definia o seu âmbito
mento católico a nível internacional, a iniciativa im- e objectivos nos seguintes termos: «art. 1 a Socie-
plantou-se progressivamente noutros centros urbanos dade de S. Vicente de Paulo recebe em seu seio to-
do país, à medida do desenvolvimento do próprio dos os mancebos cristãos que queiram unir as suas
movimento social católico: em 1877, no Funchal; e orações e participar das mesmas obras de caridade,
em 1879, no Porto, por iniciativa do conde de Sa- seja qual for o país em que se achem; art. 2.°: [...]
modães, outra figura emblemática do catolicismo nenhuma obra de caridade deve ter-se por alheia à
português. Criadas por iniciativa de sete estudan- Sociedade, ainda que o fim desta seja principalmente
tes da Universidade da Sorbona, sob a liderança de a visita das famílias pobres» - Apud ANUÁRIO. (1931)
Frederico Ozanam - beatificado a 22 de Agosto 294. Foi em Itália, por ocasião de uma peste em Bo-
de 1997 as conferências nasceram no contexto lonha, que, em 1855, surgiram os primeiros grupos
de aproximação dos católicos à nova realidade social organizados de senhoras, por iniciativa de Celestina
e política, marcada nomeadamente pelo aparecimen- Scarabelli. A iniciativa teve aprovação papal em
to do proletariado industrial (considerados como os 1859, equiparando-a às Conferências de São Vicente
«novos bárbaros»), pelo nascente movimento ope- de Paulo. Embora seguindo o mesmo regulamento,
rário (concretamente, as revoltas operárias de Lião, as conferências masculinas e femininas desenvolve-
de 1831-1834), pelo socialismo utópico (também de ram o seu trabalho de forma independente, a partir
inspiração cristã) e pela liberdade e democracia, no de sedes gerais distintas: em Paris e em Bolonha. Em
contexto da revolução de 1848 (a «ére nouvelle» a Portugal, a primeira conferência feminina foi criada
que aludia o título do novo jornal francês, fundado no Porto, em 1887, sendo sua presidente D. Maria da
nesse mesmo ano por Ozanam, com o dominicano Natividade Guedes de Carvalho Portugal e Mendes
Lacordaire e o padre Maret). Inicialmente constituí- Brandão. Em Lisboa, a primeira conferência femi-
das só por homens, as conferências tinham por ob- nina só surgiria em 1925, na freguesia de São Se-
jectivo a santificação dos seus membros através da bastião da Pedreira, o que explica que o Conselho
prática da caridade cristã e do seu envolvimento na Superior de Portugal das Conferências Vicentinas
tarefa de reconciliação social, atendendo «às muitas Femininas tenha permanecido no Porto até 1939, da-
necessidades e poucos direitos do povo» (Ozanam, ta em que foi transferido para Lisboa. A fundação do
22.2.1848). A sua organização correspondia a um conselho superior feminino data de 1915, enquanto a
novo tipo de organização confraternal, agora direc- do masculino data de 1908, tendo permanecido no
cionada para uma situação concreta: o apoio às fa- Porto até ao início da década de 50. Esta obra, com
mílias atingidas socialmente pela pobreza, conside- importante trabalho sociocaritativo a nível local, é
rada já não como virtude evangélica mas expressão uma expressão típica da primeira fase do catolicismo
da marginalização que apela à regeneração social. social*, enquadrando-se no movimento católico que,
Da convicção de que era necessário agir como o pró- desde o século xix, se desenvolveu a partir da inicia-

Semana Vicentina no patriarcado (in Novidades, Ano 1933, Tomo II, n.° 11705, pág. 1).

443
CONFERÊNCIAS VICENTINAS

tiva de leigos católicos (v. LAICADO), organizados em estrutura: Conselho Geral, a nível mundial, com
congregações (v. CONGREGANISMO), sociedades ou ou- sede em França; Conselho Superior ou Nacional, a
tras formas de associação, para viverem e manifesta- nível de cada país; Conselho Central, a nível de cada
rem os seus ideais religiosos, intervindo nos mais diocese; e Conselhos Particulares que ligam as con-
variados campos da sociedade. Como sublinhava o ferências de uma mesma cidade ou região. As confe-
episcopado português em 1984, no seu 150.° aniver- rências propriamente ditas, suas unidades básicas,
sário, «Ozanam, ao fundar a Sociedade de S. Vicente congregam um certo número de confrades que reú-
de Paulo, procurou fazer de cada conferência uma nem regularmente e, sob o patrocínio de São Vicente
escola para o leigo cristão, com vista a torná-lo um de Paulo, «esforçam-se por aliviar aqueles que so-
apóstolo em permanente serviço directo de amor a frem, em espírito de justiça e de caridade e por um
Deus, vivido na relação com o próximo» (CONFERÊN- compromisso pessoal» (ANUÁRIO, 1991/1994, p. 575).
CIA - Documentos: 3, p. 338). Articulando-se com a Para além da sua acção directa, a SSVP tem mantido
estrutura paroquial e diocesana da Igreja Católica, as centenas de obras especiais - infantários, creches,
conferências implantaram-se progressivamente por jardins de infância, patronatos, centros de convívio,
todo o país: o Anuário Católico de Portugal de 1931 lares para idosos, roupeiros e também construção de
e de 1932 assinala a sua presença em praticamente casas (por intermédio do Património dos Pobres)
todas as dioceses. Aquando da instituição da Acção através nomeadamente da Associação das Obras So-
Católica Portuguesa* em 1933, a SSVP é das poucas ciais de São Vicente de Paulo e da Associação das
organizações que subsistem mantendo a sua autono- Obras Assistenciais das Conferências Femininas de
mia. O processo de renovação eclesial trazido pelo São Vicente de Paulo (cf. SOCIEDADE, p. 98-99). En-
II Concílio* do Vaticano também se repercutiu na quanto movimento de dimensão internacional, a
SSVP, levando à revisão da sua regra inicial, que se SSVP encontra-se espalhada por 129 países (dados
mantivera sem quaisquer alterações, apenas com al- de 1994, cf. BOLETIM. 87: 4, p. 8), num total de mais
guns aditamentos em 1850 e 1856. Assim, em 1967, de 40 00Ó conferências agrupando para cima de
a Assembleia Mundial de Paris aprovou uma regra 700 000 vicentinos ( c f . SOCIEDADE, p. 98). Em Portu-
experimental, com validade de 1968 a 1973, data de gal, a SSVP está implantada em todas as dioceses do
realização da Assembleia Mundial de Dublin, «con- país, existindo actualmente cerca de 877 conferên-
vocada expressamente para definir a Regra que nos cias, agrupando 10 578 vicentinos e vicentinas, con-
métodos e no espírito se adequasse ao inundo em rá- centrando-se o maior número nas dioceses do Porto,
pida evolução» (SOCIEDADE, p. 100). O movimento de Lisboa, de Braga e de Viana do Castelo, e o me-
português teve importante participação neste proces- nor nas dioceses de Miranda-Bragança e de Vila
so, na sequência do qual e, mais concretamente, da Real - dados de 1995, cf ANUÁRIO. (1995/1998) 751
realização da II Assembleia Europeia em Lisboa o que se explicará sociologicamente pelo maior ou
(1976), os ramos masculinos e femininos existentes menor desenvolvimento industrial e urbano existente
no país se fundiram, passando a SSVP a ser dirigida nessas regiões. Desde 1908 que se publica regular-
por um único conselho nacional. De base inteira- mente o Boletim Português da Sociedade de S. Vi-
mente laical, isto é, constituída por leigos católicos, cente de Paulo, inicialmente a partir do Porto e, de-
embora com a presença e apoio de conselheiros ecle- pois de 1918, a partir de Lisboa, existindo ainda hoje
siásticos, a SSVP organiza-se através da seguinte com periodicidade trimestral, como órgão do seu

ORGANIGRAMA DO CONSELHO NACIONAL DE PORTUGAL

Fonte: Adaptado de Boletim Português da Sociedade de São Vicente de Paulo. 87: 4 (1994) 22.

444
CONFISSÃO

Conselho Nacional. Também existiu um Boletim das descortinavam sinais da penitência pública, topam-
Conferências Femininas da Sociedade de S. Vicente -se livros penitenciais, prescrevendo a aplicação das
de Paulo, publicado em Lisboa de 1948 a 1967 (?). penas segundo o peso das faltas cometidas. Desta
Para o estudo desta forma de apostolado é também praxis resultou, em ordem ao literal cumprimento
útil a consulta de outras publicações locais que, dan- das penitências taxadas, a obrigatoriedade de uma
do conta das actividades e iniciativas realizadas, são acusação minuciosa dos pecados, menos para conhe-
expressão da sua vitalidade e implantação no país, cer o verdadeiro estado da alma do pecador do que
ao longo de século e meio. para ajuizar da materialidade da falta em sua exten-
PAULO F. DE OLIVEIRA FONTES são. Estava em causa a determinação da pena a apli-
car, sem a satisfação da qual o pecado ficava irre-
BIBLIOGRAFIA: ANUÁRIO Católico de Portugal. Edições de 1931, 1932,
1933, 1941, 1947, 1953, 1957, 1968, 1975, 1981, 1986-1987, 1988-
misso. Vai-se abrindo assim, através dos séculos ix a
-1990, 1991-1994 e 1 9 9 5 - 1 9 9 8 . BOLETIM das Conferências Femininas xi, o caminho à necessidade de, por um lado, aliviar
da Sociedade de S. Vicente de Paulo. ( 1948-1967). BOLETIM Português o ónus destas satisfações, denominadas, na lingua-
da Sociedade de São Vicente de Paulo. ( 1908-). CAMPOS, Maria Emília
Ferreira dos Santos de Noronha - As conferências de S. Vicente de Pau- gem do tempo, «tarifárias», e, por outro, de conside-
lo e a sua influência nas almas femininas de boa vontade. [Lisboa, rar a confissão das faltas objecto do perdão divino, o
1 9 4 3 ] , CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA - Documentos pastorais: 3:
que acarretava verdadeiro sacrifício para o penitente
1983-1990. Lisboa: Secretariado Geral do Episcopado; Rei dos Livros,
[1991], FRÉDÉRIC Ozanam, intellectuel catholique. Revue d'Histoire de pela vergonha e humilhação sentidas. Daí a irrupção
l'Eglise de France. 2 1 4 ( 1 9 9 9 ) 5 - 1 0 7 . SOCIEDADE d e S ã o V i c e n t e d e das penitências ao arbítrio dos confessores que aca-
P a u l o . I n SECRETARIADO NACIONAL DO APOSTOLADO DOS LEIGOS - Perftl
dos movimentos e obras do apostolado dos leigos. Lisboa: Secretariado
bam por ter, na própria declaração do pecador, meios
Nacional do Apostolado dos Leigos, [s.d.], p. 97-101. TORRES, Alberto para aquilatar da sua culpabilidade em cada uma das
Pinheiro - A Sociedade de S. Vicente de Paulo em Portugal. Porto, faltas cometidas e agir em conformidade, com pru-
1961.
dência e bondade, podendo dar uma orientação espi-
ritual personalizada. O De vera et falsa poenitencia
CONFISSÃO. A referência do Evangelho de São João (século xi) do Pseudo-Agostinho, de inegável impor-
(20, 23), em que a teologia católica fundamenta o sa- tância na doutrina penitencial atribuída aos Doutores
cramento da Confissão, tornou-se ao longo dos sé- do século xu que viam no sentimento de vergonha
culos objecto de acesa controvérsia, mormente quan- dos confessados uma verdadeira penitência, a nível
do o protestantismo liberal se empenha na análise do de satisfação obrigatória, reconhece-a suficiente para
depósito da revelação cristã. Das palavras de Jesus se obter a remissão das faltas. Passou então a ganhar
parece forçoso inferir que o perdão dos pecados e a foros de axioma a afirmação de Yves de Chartres:
infusão da graça santificante obriga, fora os casos de «neque enim sine confessione emendationis (pecca-
excepção, ao conhecimento das faltas por parte do ti) queunt dimitti», ou seja, não pode haver remissão
ministro sagrado, habilitado de jurisdição, a quem de pecados sem prévia confissão. E, obviamente, os
compete ajuizar sobre a matéria declarada pelo peni- ministros do sacramento, detentores do poder de «li-
tente. De fora, porém, ficou explícita menção às con- gar e desligar», são os sacerdotes. Ao horizonte do
dições em que se desenvolveriam o acto da acusação século xu pertence, ainda, o abrandamento das
e a manifestação do arrependimento. E aí se concor- penas, a anarquia na satisfação das culpas, o pro-
da residir a fonte da diversificada gama de interpre- gressivo desuso da penitência pública ou canónica e
tações de teólogos e canonistas no decorrer dos tem- a acentuação do relevo da contrição, que Abelardo
pos, sobretudo quando as heresias sopram e a dúvida brilhantemente defendeu como parte principal do ac-
se instala no espírito dos crentes. Aqui, pois, o moti- to sacramentário, por deverem os homens mover-se
vo por que a prática do sacramento da Penitência, pelo amor de Deus ofendido e não pelo medo do ri-
que o vulgo consagrou de confissão e envolve uma gor da sua justiça. Doutrina comum à de Ricardo de
reconciliação interna com Deus e externa com a São Vítor, que, embora não considere a confissão
Igreja, não se manteve inalterada historicamente, obrigatória em caso de necessidade, por não estar o
embora na essência o ficasse. Houve, de facto, uma pecador, em circunstâncias normais, ameaçado de
evolutiva aclaração desde a era apostólica, sem se condenação eterna, considera indispensável recorrer-
conhecer com segurança e em concreto o rito da re- -se-lhe. Quando se equaciona o peso da contrição
concialiação do penitente, mencionando-se, na altura perfeita e da atrição, os teólogos julgam a primeira
do aparecimento da Didaché, a declaração dos peca- suficiente, mesmo sem a confissão, para se obter o
dos a preceder a «fracção do pão» e se distingue o perdão dos pecados. Coube à escola franciscana com
«fazer penitência» da confissão das acções pecami- São Boaventura estabelecer uma precisa distinção
nosas, a ponto de no século IH a disciplina peniten- entre contrição e atrição, sublinhando a importância
cial, em termos gerais, se assemelhar à presentemente da absolvição que torna bastante a simples atrição.
praticada: obrigatória declaração das faltas ao minis- Isto conduziu à doutrina tomista da matéria e forma
tro do sacramento e cumprimento das condições para da penitência. Para São Tomás, a eficácia do sacra-
o perdão impetrado. Se de princípio vigorava a peni- mento está pendente da absolvição que efectivamen-
tência pública e a correspondente aplicação de pesa- te traduz a concessão do divino perdão. O problema,
das penas pautadas pela lei, segundo a natureza dos porém, de natureza disciplinar, que na altura se pôs,
delitos cometidos, no termo do século v já se vis- foi o da necessidade do recurso à confissão sacra-
lumbra, sobretudo no Oriente, a possibilidade de se mental. Seguindo o evoluir histórico da doutrina res-
optar por aquela ou pela privada, quanto aos pecados peitante ao sacramento da penitência, reconhece-se
ocultos, e a tendência dos fiéis para recorrer à últi- uma posição comum entre a corrente franciscana e a
ma. De notar que na Igreja irlandesa, onde não se dominicana, acerca da importância da absolvição

445
CONFISSÃO

a conceder pelo sacerdote, a quem se devem decla- cias e das disposições interiores. A posição doutriná-
rar os pecados, podendo considerar-se os finais do ria é a comum na época, afirmando ser Deus quem
século xiii, quanto à essência, o período da sua fixa- perdoa através da absolvição do sacerdote, depen-
ção definitiva. Impusera o IV Concílio de Latrão dendo deste a penitência a satisfazer, o que implica o
(1215) - tão relevante na vida da Igreja pelas suas poder de ordem e jurisdição. Não deixa, assim, de
preocupações pastorais - , no cânone 21, que todos ser de relativo, mas circunstancial, interesse a opi-
os fiéis no uso das suas faculdades eram obrigados nião acerca do confessor a que o rei deve recorrer
à confissão auricular dos pecados ao seu cura uma para se confessar. No diálogo teológico quatrocentis-
vez cada ano, a fim de poderem receber com respei- ta Horologium Fidei, o franciscano Frei André do
to o sacramento eucarístico. De contrário, seriam Prado, ao tratar do décimo artigo do Credo - a re-
interditos de entrar no templo e privados de sepul- missão dos pecados (cap. x) - que fora do baptismo
tura eclesiástica, devendo o sacerdote agir com o se faz pelo sacramento da Penitência, acentua a im-
discernimento de um médico experimentado e abs- portância da contrição para tranquilidade da cons-
ter-se de trair o penitente no que quer que fosse, por ciência em ordem à recepção da eucaristia. Por moti-
palavras, sinais ou outra forma, sob pena de deposi- vo de necessidade, como em perigo de naufrágio no
ção do seu ministério. Se o sigilo rigoroso se precei- mar e na iminência de combate aos sarracenos, dis-
tua, a fim de se satisfazer a necessidade psicológica serta escolasticamente em resposta ao interlocutor, o
da alma humana em aliviar o peso da consciência, infante D. Henrique, bastar a contrição. Se, no en-
procurava-se também o controlo social, embora tanto, houvesse oportunidade, adianta dever a con-
cumulativo com o cuidado da salvação da alma. fissão fazer-se a um ministro mesmo cismático, he-
Exigia, no entanto, a generalização deste manda- rege ou condenado, e até a alguém não sacerdote.
mento eclesiástico a existência de um clero sufi- A doutrina da confissão ao leigo que corria na Idade
cientemente preparado e de um público receptivo à Média era assim admitida. A propósito, será de notar
obediência. Para o primeiro requisito, importava as- que o novo Código do Direito Canónico recupera,
segurar a instrução dos confessores: o segundo pres- em certas condições, a legitimidade de se poder tam-
sentia-se viável através da pregação. Eis como, na bém recorrer a um ministro acatólico. Interessados
emergência, avulta o papel das ordens mendicantes por obras de teologia e espiritualidade, o respeitante
que se apresentavam em condições propícias a essa ao sacramento da Reconciliação constituía para os
dupla função: a do pregador zeloso e a do pregador príncipes da ínclita Geração matéria de sua parti-
instruído. E se uma vez mais, neste dobrar da Idade cular estima. Sabe-se pela leitura do testamento do
Média, se põe o problema geográfico-sociológico da malogrado infante D. Fernando que o livro das con-
cidade e do campo, o analfabetismo da maioria dos fissões pertencente à sua biblioteca e pedido de em-
curas, e mais esmagador dos leigos, tornava pouco préstimo em 1431 ao Abade de Alcobaça para copiá-
praticável a leitura. A fim de se acorrer, porém, a es- -lo não é a obra homónima de Santo Agostinho, mas
te urgente trabalho educativo, havia que socorrer-se o Livro das confissões de Martin Pérez, manual de
da pregação e da escola, conventual e claustral, paro- confessores em castelhano, que D. Duarte igualmen-
quial e universitária. Situa-se nestes páramos cronoló- te possuía, tão meticuloso se mostrava no exame de
gicos o Liber Poenitentiarius (1247) do canonista consciência individual e na análise circunstanciada
Frei João de Deus, português e mestre de Bolonha, dos pecados, ligados às condições concretas das pes-
utilizado como compêndio por seus alunos. De larga soas dos vários estratos sociais e profissões (Leal
difusão ao tempo, por precioso guia para o clero em- conselheiro, cap. xxv, xxvi, LXVI-LXVII). O escrito em
penhado na direcção das consciências, contam-se língua vulgar, considerado perdido, Oras da confis-
hoje esparsos pela Europa mais de sessenta códices. som, do infante D. Pedro, era, segundo Rui de Pina,
O autor dedicou-o a D. Aires Vasques, titular da Sé «uma confissão a qualquer christão mui proveitosa».
de Lisboa*, cujo bispado pastoreou de 1244 a 1258, Determinara o referido IV Concílio de Latrão que se
sendo ele próprio, desde 1243, membro do cabido. realizasse por ano um sínodo nas dioceses, resolução
Elaborou-o precisamente para responder à súplica de irregularmente seguida no Ocidente. As deliberações
não poucos conventuais e clérigos seculares devota- chegadas na íntegra até ao presente - embora bem
dos à prática do ministério da confissão, valendo-se diminutas em relação a quantos, de facto, tiveram lu-
da Escritura Sagrada e comentários bíblicos, como gar entre nós desde a fundação da nacionalidade ao
ainda das Decretais e do Decreto de Graciano. Divi- Concílio de Trento, e de tanta importância, como se
de-se em sete capítulos e setenta e dois títulos, tra- sabe, para o conhecimento da vida religiosa e social,
tando da penitência em geral; dos cânones peniten- permitem, no que respeita à prática sacramental, que
ciais, de obrigatório conhecimento pelo confessor; se acompanhe a atenção dada à penitência sobretudo
do pecado e sua confissão; dos deveres do ministro nos aspectos considerados de mais notória importân-
do sacramento para com os penitentes e de quem é cia. As do primeiro, de que não é possível determi-
competente para exercê-lo; bem como da confissão nar o prelado e a data, mas se coloca cerca de 1240,
dos clérigos até ao Papa e dos leigos; e, por fim, da e a que se atribui influências dos famosos estatutos
penitência dos membros das ordens mendicantes e sinodais parisinos do bispo Eudes de Sully, cujas
dos pecados a ser evitados. Trata-se de uma obra disposições legislativas se difundiram por toda a Eu-
teórico-prática, destinada sobretudo a instruir con- ropa, bem como outras do Synodal de l'Ouest são,
fessores na maneira de escutar a confissão e aplicar a sem dúvida, as mais antigas que de Portugal se co-
penitência, sempre, porém, temperada pela com- nhecem. A provável autoria do bispo lisbonense
preensão e brandura na consideração das circunstân- D. João (12387-1241) ajusta-se ao reflexo marcante

446
CONFISSÃO

exercido pelo sínodo de Sully que fora uma espécie linguística e literária. No subtítulo 31.°, consagrado
de tratadinho disciplinar dos sacramentos, com ex- aos sacramentos da confissão, comunhão e extrema-
cepção do da Ordem, tendo em vista facultar aos -unção, necessários à salvação das almas, expressa-se
curas de almas, a maioria de cultura rudimentar, as o motivo para o prelado se preocupar com os dioce-
normas essenciais a seguir na sua administração. sanos que «nam se querem confessar nem cumun-
Idêntica era, aliás, a doutrina ensinada ao tempo gar», pois suas almas, jazendo «no aço do diaboo e
nas escolas da Cristandade e, por conseguinte, tam- morrendo em tal stado seriam condenados pera sem-
bém em Bolonha, onde possuía catédra o citado ca- pre no fogo infernal». Nesse sentido ordenava-se
nonista João de Deus, coevo deste prelado e amigo que todos os responsáveis, «em suas igrejas e mos-
do sucessor, D. Aires Vasques (1244-1248), que o teiros e capelas, se trabalhem sempre de saberem se
nomeou membro do cabido de Lisboa e a quem, com adoece ou emferma algum seu freigues eloguo no
algum fundamento, se poderá endossar a orientação começo de sua infermidade o vaam visitar e o cons-
que, neste particular, o texto luso em sua versão lati- selhem e requeiram que se conffesse e receba os
na ostenta. Os tópicos privilegiados vão da postura sanctos sacramentos da sancta madre Egreja enquan-
do ministro ao lugar para ouvir de confissão, dos pe- to stá em seu emtender e faça seu testamento»; ad-
cados reservados ao interrogatório a fazer, da peni- moestassem em cada domingo os fiéis a que se con-
tência a aplicar ao sigilo a guardar. Assim, prescre- fessem e comunguem «três vezes ou ao menos huua
via-se uma atitude humilde e os olhos pregados no vez cada anno por dia de Pascoa de Resurreiçom»;
chão, um lugar da igreja onde todos pudessem ver o confessassem as crianças de ambos os sexos ao che-
acto; aliás, fora desta, só em caso de necessidade ou gar aos sete e aos catorze lhes dessem a comunhão;
doença. Eram reservados os crimes de homicídio, sa- punissem a recusa da confissão à hora da morte com
crilégio, simonia, incesto e pôr mãos violentas em a negação do enterro religioso; esclarecessem que,
clérigos, fogo posto e cópula com animais. Para a se a absolvição podia ser dada por qualquer sacerdo-
rectidão do acto sacramental importava atender, nas te em caso de perigo de vida, ficaria o penitente com
faltas graves, às circunstâncias de pessoas e de luga- a obrigação de se apresentar a quem competiria ou-
res; proceder a diligente inquirição dos pecados; vi-lo, se escapasse. Preceituava-se, ainda, caso fosse
ponderar a penitência a prescrever e, em casos de solicitado ao ministro próprio, que este não negasse
furto, usura, rapina e fraude, pedir-lhes missas e es- a permissão de procurar outro confessor, bem como
molas, bem como acautelar a restituição a fazer; se ordenava a beneficiados e curas que tivessem um
proibir que se fizessem perguntas sobre o nome do rol de confessados, ou seja, que cada ano fizessem
cúmplice e tão só acerca das condições que mudam a «huum livro», no qual escrevessem «todollos seus
qualidade dos actos, conservar o sigilo mesmo sob freigueses per seus proprios nomes, assy homens co-
ameaça de morte. Ordenava-se a admoestação fre- mo molheres, e de seus filhos e filhas e servidores de
quente ao povo para se confessar, mas principalmen- ydade de sette annos pera cima» - livro que à cúria
te no início da Quaresma, como estava prescrito, sob seria entregue «çarrado e asignado, declarando em
pena de se negar sepultura eclesiástica ao que não o elle quaes foram confessados e comungados e quaes
fizesse ao sacerdote próprio, como os cânones deter- foram confessados e nom comungados», a fim de o
minavam. O articulado do texto quatrocentista do sí- ordinário diocesano ver e proceder «contra os revees
nodo de Lisboa, convocado em 14 de Fevereiro de e desobedientes», tudo isto a cumprir até ao último
1413 por D. João Afonso Esteves de Azambuja, con- domingo antes da festa de São João. Dos restantes
tém o elenco dos pecados reservados na diocese e três sínodos quatrocentistas, de que se conhecem os
constitui um documento histórico precioso. Vê-se textos ou assuntos tratados, o do arcediagado de Va-
que preocupava o prelado a cultura do clero e a sua lença do Minho (1482), transcrito pelo administra-
conduta moral, o convívio dos cristãos com os ju- dor, o dominicano D. Frei Justo Baldino, ordena que
deus, a prática de superstições, sortes e magia. De haja em todas as igrejas o elenco dos «casos papaes,
notar a expressa menção da contracepção, da viola- episcopaes e sacerdotaaes», para os curas não alega-
ção do celibato, dos que «cometem pecado contra rem ignorância, se perguntados, nos casos a absolver
natura assi como com allimarias ou per outra manei- ou não. O de Lisboa de 1484, sob a égide de D. Jor-
ra», dos «que levam armas ou mercadorias defessas ge da Costa, tratou da confissão e comunhão anuais,
aos mouros», dos «que prometem ter castidade ou e do dever dos párocos lerem nos domingos e festas
voto e vaao contra elle e o britam e o nom comprem as constituições ix e xiv que incidiam sobre a maté-
ou o nao teem», dos «que entram em ordem contra ria. Sem dúvida eram de particular relevo, não pela
voontade de sua espossa com quem ja ouve compa- novidade, mas ao menos pelas reiterações feitas, os
nhia». E, se a obrigatoriedade da confissão ao minis- assuntos versados nos sínodos, os que se referem ao
tro próprio se aviva, ordena-se aos que têm «cura e sacramento da Penitência. As constituições de D. Dio-
encargoo das almas» permaneçam no lugar da sua go de Sousa, do mesmo ano em que iniciou o pasto-
residência desde a primeira semana da Quaresma reio da diocese do Porto (24 de Agosto de 1496), estão
«ataa que todos seus fregueses sejam confessados», à altura das exigências do apostolado que, como bispo
sob pena de multa pecuniária. O importante sínodo ilustrado e zeloso, via necessitar o rebanho: a cate-
(11 de Dezembro de 1477) do conhecido reformador quese e a disciplina eclesiástica. Tratam os títulos 23
e arcebispo de Braga, D. Luís Pires, que fora antes e 27 a 30 da confissão, que adverte ser de direito di-
do Algarve, Porto e Évora, deu azo às constituições vino e canónico, obrigatória uma vez por ano e ao
medievais portuguesas mais relevantes, não apenas pároco, a partir dos sete anos, excepto em perigo de
pelas matérias tratadas, como pela invulgar qualidade morte, importando, por isso, visitarem os doentes,

447
CONFISSÃO

embora «não sejam requeridos», a fim de que se grande contrição e arrependimento de seus pecados e
confessem e comunguem. Recorda que, com o Bap- se reconciliem uns com os outros, poendo cada reitor
tismo, Confirmação, Extrema-unção e Eucaristia, é ou capelão em sua freguesia todos os da dita idade
um dos cinco sacramentos necessários para a salva- em rol por seus proprios nomes, em tal maneira que
ção sem os quais nenhum fiel, capaz de recebê-los, sejam todos confessados até dia de Páscoa da Res-
poderá salvar-se. O Domingo de Pascoela seria o surreição». Depois, só com o pagamento de um arrá-
prazo limite da desobriga, não consentindo os curas, tel de cera para as obras da sé poderia alguém ser
a partir de então, que os «revees assim homes como ouvido de confissão e absolvido da excomunhão em
molheres e moços» permaneçam na igreja por serem que havia incorrido, sendo, após a Dominica in Al-
«como membros podres e afastados da cabeça que bis, considerado vitando e denunciado por excomun-
hé christo Jhesu», e os obrigasse a pagar, pelo tempo gado, sem que se lhe possa dar sepultura «em sagra-
que andaram sem se confessarem, «depois do termo do nem se ore nem se faça por ele sacrifício nem se
passado, hum real por dia». Particular atenção é da- receba oferta nem esmola por ele». E, mesmo «que o
da à confissão dos clérigos que, no entanto, podiam direito não constanga [constrinja] nem obrigue qual-
livremente recorrer a quem os ouvisse para serem quer cristão a se haver de confessar e comungar mais
absolvidos dos pecados, incluindo os reservados ao de uma vez no ano», manda-se a todos os priores e
bispo, uma vez na Quaresma, outra no Advento, e curas do bispado «que tenham tal cuidado que sai-
quantas mais a saúde da alma e a celebração da mis- bam se em suas freguesias há algum enfermo e o re-
sa exigirem. E, se na lista dos pecados reservados queiram e amoestem que se confesse e comungue e
figuram o matrimónio clandestino, a feitiçaria e o receba os outros sacramentos e assim faça seu testa-
público «arrenegador», ordena-se que ao chegar à mento desencarregando em todo sua consciência».
Septuagésima se faça «huum rol em cada freiguesia» Há, porém, nos títulos 8 e 9 destas constituções claro
em que se ponha o nome de todos os casados, ho- apelo a uma espiritualidade mais exigente, sobretudo
mens e mulheres, e dos solteiros de mais de catorze para o clero, e a preocupação com a justa liberdade
anos; e, no fim do tempo da desobriga, outro de que de consciência e o indispensável estado de graça pa-
constem os que tiverem de sete a esta idade, no- ra a celebração da eucaristia. Mais: admite que, em-
meando-se «as pessoas por seus nomes ou alcunhas bora todo o fiel se deva confessar «ao seu próprio
e logares em que vivem» e assentados nele, por letra sacerdote e não ao outro», lhe seja pennitido «esco-
do cura, se confessados e comungados. Do catecis- lher outro mais letrado ou discreto» ou, se «houver
mo, por certo o mais antigo impresso em vernáculo, algum escândalo entre ele e o próprio cura ou prior»,
que aparece em apêndice no exemplar conhecido das com sua própria licença, um outro, conquanto seja
ditas constituições, consta um título acerca das cir- idóneo; manda, em virtude da obrigação de ser mais
cunstâncias dos sete pecados mortais, que se especi- perfeito e virtuoso que os demais, «maiormente
ficam e devem também confessar-se, «porque ellas àqueles que continuamente hão-de dizer missa», que
agravom ou fazem mais leve o peccado». Quanto à se confessem aos seus confessores ao menos uma
sua obrigatoriedade, lembra que a há «todallas vezes vez cada mês e os clérigos de ordens sacras, não
que mortalmente pecamos, mas por despenssaçom e presbíteros, três, «uma pós Natal e outra pós Páscoa
hordenança da Igreja nom som os leigos obrigados a e Pentecostes», comunicando seu cumprimento ao
elle mais que hüa vez no anno, tirando se forem respectivo arcipreste, sob pena de multa pecuniária;
doentes ou passarem mal, ou as molheres estiverem adverte que os ditos sacerdotes «tanto que sentirem
em parto, ou os homês e molheres estiverem postos que incorreram em pecado se confessem logo, nem
em algúu priigo de morte»; quanto ao ministro, só é se entremetam a dizer missa e celebrar tão alto sa-
o «sacerdote e nom outra pessoa, cá aos apostollos e cramento sem se confessarem». Para isso, concede-
aos seus sucessores que sam os ditos foi soomente -se-lhes até a faculdade de poderem escolher livre-
dado poder de legarem e a solverem», pelo que a mente confessor, a quem se comete jurisdição para
confissão aos leigos, permitida em tempo de necessi- «absolver de todos os casos pontificais, salvo de ex-
dade e «por húu sinal de obdiencia», nem absolve os comunhão maior». Recai sobre os respectivos arci-
pecados nem isenta da obrigação de voltar a confes- prestes e vigários o ónus de enviar à cúria diocesana
sar-se. As legislações sinodais de Quinhentos, ante- o rol dos sacerdotes «revéis e contumases, quando
tridentinas, que da confissão tratam, pertencentes a remeterem os roles dos outros não confessados».
Braga e Guarda são da primeira década do século xvi A menos de um mês de sua entrada em Braga, o ar-
e seguem a mesma orientação. Assim, a egitaniense cebispo D.Diogo de Sousa (1505-1532), transfe-
deveu-se aos cuidados do bispo D. Pedro Vaz Ga- rido da Sé do Porto, reuniu um sínodo em 15 de
vião (1496-1516), que foi capelão-mor da corte do Dezembro de 1505, cujas constituições pouco se di-
rei Venturoso, onde viveu quase sempre, e reuniu um ferenciam das promulgadas em 1496 para a diocese
sínodo diocesano, em 12 de Maio de 1500, cujas donde vinha. Apenas aparece, como novidade, a
constituições viram em Salamanca a luz da impres- obrigação de todo o cura de almas em cada domingo
são. No que à confissão se referem, os títulos 7, 8 e 9 perguntar aos fiéis no ofertório da missa se há «al-
reafirmam, na quase totalidade, o que já era hábito e gúu doente na freiguisia, e tanto que o souber [...] o
estava prescrito pelo direito canónico: os capelães vãao logo visitar, posto que pera isso nom sejam re-
e curas do bispado ao entrar «a Septuagésima queridos». Em tudo o mais, que a confissão requer,
amoestem seus fregueses assim homens como mu- repõe-se o de ordinário preceituado onde é inteira a
lheres, grandes e pequenos, que de idade de sete consonância teológica, canónica e pastoral. Deste
anos para cima forem, se venham confessar com período antetridentino e do declinar de Quatrocen-

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CONFISSÃO

tos, mais precisamente de 1489, é o Tratado de con- em castelhano por Frei Tomás Duran e dedicado a
fissom, impresso em Chaves, de autor não identifica- D. João III, cuja segunda parte «trata dela penitêcia e
do, mas que bem pode atribuir-se a um conventual de aqllas cosas q para oyr confesiones e dar penitê-
franciscano da diocesse bracarense, na altura gover- cias» se precisam saber. Entre outras mais, embora
nada pelo arcebispo D. Jorge da Costa (1486-1501) algo híbridas, apontem-se: o Memorial de pecados.
que celebrou um sínodo em Dezembro do ano ante- Nova arte de confissam (1529), do monge jeronomi-
rior, de que só resta escassa referência. Perpassa-o ta Frei António de Beja, tanto destinada aos confes-
vincada mentalidade mediévica na pessimista visão sores como aos penitentes, a fim de distinguirem os
antropológica e no brandir atemorizador do fogo in- pecados graves, para «dizer suas fraquezas e confes-
fernal, destinado a levar o penitente a precaver a sal- sar suas culpas; e o Memorial de cõfessores (1531),
vação da alma na confissão contrita dos pecados co- composto a pedido de alguns religiosos, empenhados
metidos. Pela estrutura, descortina-se que se destina no ministério, e atribuído ao também jerónimo Frei
a leitores instruídos, clérigos e leigos, pois, se a pri- Brás de Barros, composto no intuito de levar a «co-
meira parte é concebida ad usum confessoris, como nhecer geralmête os pecados mortaes». No mesmo
juiz a quem cabe conhecer e discernir a situação âmbito se situam, destinados a portugueses, refle-
concreta declarada pelo réu, a fim de pesar a culpa e xo do bilinguismo corrente e testemunho do inter-
aplicar a pena, a segunda, quantitativamente mais câmbio ibérico, traduções ou reedições de textos
extensa, concerne ad usum penitentis, a quem impor- castelhanos afins. Citem-se: a Arte pera bem con-
ta bem examinar a própria consciência. Percebe-se, fessar (1537), impressa sob o patrocínio do cardeal
assim, que se trata de um guia para o confessor se D. Henrique; o Norte de confessores (1540) de Frei
orientar na prática do sacramento, e para o penitente Francisco Monçom, pregador de D. João III, incidin-
proceder a uma auto-análise, ajudado pelo cura de do sobre a maneira de proceder dos ministros da pe-
almas ou pregador, dada a situação de analfabetismo nitência e de resolver os casos e dúvidas apresenta-
da esmagadora maioria dos fiéis. Infere-se, desta for- dos; o Confessionário muy provechoso assi pera
ma, como era importante o rigoroso reconhecimento sacerdotes como pera penitêtes (1546), compilado
das faltas cometidas e das circunstâncias agravantes, pelo teólogo Juan Pedraza e dedicado ao arcebispo
de que resultasse a consciência da malícia dos actos, de Lisboa, D. Fernando de Meneses, tendo por fina-
da gravidade da culpa e da necessidade de contrição. lidade ajudar a discernir quando se peca mortal ou
Impressiona a casuística expressa, de flagrante com- venialmente nos dez mandamentos e nos sete vícios
penetração psicológica, da humana fraqueza. A por- capitais. Chega-se desta forma ao aparecimento do
menorização intencional de certos pecados, como a Manual de confessores, e penitêtes (1549), compos-
luxúria e o furto, acaba por constituir aviso sempre to por um religioso franciscano e examinado e revis-
pertinente para os fiéis moralmente formados. A cor- to pelo célebre canonista e docente conimbricense
respondência entre o questionário e o catecismo - Martim Azpicuelta Navarro, por ordem do cardeal
quanto aos vícios capitais, mandamentos e credo - , D. Henrique, que será reimpresso, difundido e objec-
patente no elenco apresentado, mostra como doutri- to de adições mercê da sua qualidade e segurança
nariamente um se impregnava no outro. E não será doutrinária, reconhecida procura e utilidade, por vir
exagero reconhecer este Tratado de confissom, pre- ao encontro de «quasi todas as duvidas, e casos, que
cioso cimélio da literatura religiosa portuguesa, nas confissões soe occorer acerca dos pecados, ab-
animado por uma espiritualidade rigorista talvez solvições, restituyções, e censuras». Cinco anos vol-
próxima da observância franciscana apostada na re- vidos, surgia também naquela cidade o Confessioná-
formação disciplinar. Referências à confissão não rio [...]. Arte de confissam breve, muyto proveitosa
se confinam apenas a estes tratados, pois se encon- assi pera o confessor como pera o penitente (1554),
tram nos sacramentais que proliferam na Idade Mé- atribuída ao próprio bispo de Coimbra*, o agostinho
dia e prosseguiram na Moderna, como do arcediago D. Frei João Soares, mas firmada por um anónimo
de Valdeira, da diocese de Leão, editado em Lisboa religioso beneditino, de que o primeiro capítulo ver-
(1502), emendado e reimpresso (1539) por ordem do sa sobre a «ordem que o penitente há de Ter em sua
arcebispo de Braga, D. Henrique, para uso na dioce- confissam». Ainda nesta cidade se imprimiu por or-
se. Importará, no entanto, notar que continuaram a dem do arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires,
aparecer obras destinadas a confessores e penitentes, que em mente teria a sua vastíssima diocese, o Tra-
mas assumindo abertamente a diferenciação. A mais tado de avisos de confessores (1560), com prólogo
conhecida dentre as últimas, publicada a primeira de Frei Henrique de São Jerónimo e revisto pelo teó-
vez em 1520, é de um leigo, Garcia de Resende, o logo Frei Martinho de Ledesma, dominicanos, sendo
cronista e secretário de D. João II, intitulado Breve a parte inicial dirigida aos ministros da penitência, a
memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõ- quem era destinado o tratado. A edição de 1681 con-
fissã e reeditado em 1529 com o nome de Confessio- tém um minucioso questionário acerca dos manda-
nário, autêntico questionário destinado a ajudar o mentos e vícios, descendo ao exame centrado em ca-
exame de consciência. De assinalar, a do pregador da estado e aos casos em que se devia negar a
apreciado em Sevilha e Portugal, André Constantino absolvição. Será curioso notar a preocupação do au-
Ponce de Leon, Confisson de un peccador delate de tor em indagar sobre a forma como se tratavam os
Iesus Christo, impressa em Évora (1554) por André escravos e traçar o perfil do pregador como médico.
de Burgos, e, com análogo alcance, o Manipulum A obra é uma compilação que teve presente uma ou-
curatorum nuevamête impresso em romãce (1523), tra mandada elaborar pelo cardeal D. Henrique para
de Guido de Monteusto Rocherii, vertido do latim o arcebispado eborense. Visava o autor acorrer às ca-

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CONFISSÃO

rências que sofrem as almas por falta de confessores cados. Os mestres João da Costa e Jerónimo Montei-
idóneos, pois a maioria não é letrada. Pressente-se, ro, em seus processos inquisitoriais de 1550, dão azo
pois, entre a hierarquia eclesiástica e as congrega- a atribuir-se-lhes a defesa de uma «espécie de con-
ções religiosas, haver quem acorresse com zelo a fa- fissão só a Deus» e da dispensabilidade da mesma,
cultar instrumentos destinados a suprir as necessida- salvo se houvesse alguma dúvida na fé, porque dos
des pastorais, contribuindo para dignificar a prática outros pecados não existiria necessidade. Na mesma
do sacramento da Penitência. Particular atenção era linha, agrupavam-se os estrangeirados ou de forma-
dada ao momento delicado da confissão auricular, ção académica estrangeira, erasmianos, enquanto
constituído pela declaração dos pecados e circuns- tributários desse património ideológico, e, se esco-
tâncias agravantes de forma a ser avaliada a culpa e lares franceses, suspeitos de inquinação luterano-
a estabelecer-se a correspondente satisfação, que a -calvinista, por alinharem na relutância pela missa
heterodoxia erasmiana beliscara pela falta de sensi- e confissão, desvalorizando, se não rejeitando, o mo-
bilidade ao dado sacramental, eclesial e litúrgico, e o mento auricular. Foram os casos de Fernão de Pina,
reformismo luterano e calvinista frontalmente ataca- guarda-mor da Torre do Tombo, filho do cronista
va, em época de humanismo renascentista, mais vol- Rui de Pina; de D. Lopo de Almeida, de elevada as-
tado para a vida e a cultura que interessado na insti- cendência social e aluno da escola universitária aqui-
tuição eclesiástica. De trás vinha a desvalorização da taniense, que centrava a confissão nas relações da
confissão, agravada pela massiva ignorância religio- consciência do homem com Deus, porque as consti-
sa e pelo sentir de correntes franciscanas dissidentes, tuições diocesanas só obrigavam ao foro externo; de
escutadas no período medievo, que, ao lançar a sus- Frei Roque de Almeida, capucho franciscano, cu-
peição sobre os actos devocionais exteriores, iam ao nhado do Clenardo, seu aluno em Paris, e ouvinte de
ponto de considerá-la um empecilho à perfeição es- Lutero; de Lucas da Costa, deão da Sé da Guarda,
piritual. Padecia-se da falta de precisões doutrinárias que escutou também pregações protestantes nas iti-
mais rigorosas, como o piedoso Frei João Claro, nerâncias pela estranja, tão descrente na confissão
coevo dos príncipes de Avis, já deixava perceber nos auricular que durante anos deixou de frequentá-la;
seus comentários acerca da confissão auricular que do padre André Ferreira, vigário em terras de Espo-
relega para um lugar secundário, sinal de menos im- sende, que desaprovava a confissão à semelhança da
portância conferida ao sacramento. Com a entrada seita luterana; do fidalgo Pêro Correia, residente em
dos bordaleses no professorado universitário conim- Évora, que sentia ser «hum jugo grave confessar
bricense, que a Inquisição* neutralizou, desde Diogo hum homem seus maus pensamentos e carnais a ou-
de Teive aos Gouveias, de João da Costa a Jerónimo tro homem e as mulheres confessar suas fraquezas e
Monteiro, não apenas se sobrevalorizava a fé em re- carnalidades a hum homem carnal [...], nem se acha-
lação às obras, mas subiam as críticas à confissão va lugar em todos os scriptos dos Apostolos que isso
auricular, aliás tópicos da cartilha erasmiana também mandasse»; e de Frei Valentim da Luz, eremita de
por Damião de Góis aceites. Com efeito, se Erasmo Santo Agostinho, pregador, mestre de noviços e mui-
duvida seriamente da origem divina desse momento to dado ao ministério do confessionário, queimado
controverso de sacramento, sem no entanto se adian- na fogueira na repressão de 1560, amigo do célebre
tar a rejeitá-la, ficando pela prudente atitude de lhe Frei Luís de Montoya, que manteve nas suas decla-
melhorar o espírito, tanto no que respeita aos con- rações ao Tribunal do Santo Oficio «que nam se tira-
fessores como aos penitentes, o Doutor Marcial de va da Escriptura efficazmente a obrigaçam da con-
Gouveia é categórico ao opinar: «em tempo de ne- fissam auricular», proposição considerada herética e
cessidade, basta confessar-se o homem a Deus; e ca- contrária ao magistério da Igreja Romana. Do laicato
da dia, ao menos, nos havíamos de confessar a Deus aos religiosos e seculares, passando pelas camadas
de todos os nossos pecados, com muita contrição e cultas, o ambiente abria brechas no respeitante ao
arrependimento [...]. A verdadeira confissão e boa dogma da confissão sacramental e prática necessária,
há-de ser primeiro do peito [...]. Deus não come se- em ordem à salvação eterna. O Concílio de Trento,
não corações». Mais: estando em Braga a ler o Psal- ao reflectir sobre a situação e sobre o impacte da po-
tério, «dissera que havia duas confissões, mental e sição protestante, reafirmou a doutrina tradicional e
auricular [...], e que era justo que, depois que o peca- precisou com rigor a sua disciplina. A assembleia
dor se há confessado a Deus de todos os seus peca- ecuménica, reaberta a 1 de Maio de 1551 pelo papa
dos, se vá ao sacerdote para o consolar e lhe dizer Júlio III (1550-1555), na sessão de 25 de Novembro
que não desespere e para o aconselhar, e que Deus é promulgou solenemente o decreto sobre o sacramen-
grande e que não torna mais a pecar e lhe dê a absol- to da Penitência, em nove capítulos e treze cânones.
vição depois de ouvir seus pecados». Já se quis ver Toda a ossatura doutrinária se espraia por três partes,
nesta posição o método inaciano expresso nos Exer- atinentes à sua origem divina e necessidade, à sua
cícios espirituais do exame de consciência que a me- amplitude e à sua natureza judicial. Assim, foi Cristo
ticulosidade dos «confessionáros» acaba por apontar. quem instituiu o sacramento da Penitência, conferin-
E, se não pode acusar-se Marcial de Gouveia de ne- do aos apóstolos e legítimos sucessores o poder de
gar a instituição divina da confissão auricular, dimi- perdoar e reter os pecados, metaforicamente dito po-
nui notoriamente a sua importância e obrigatorieda- testas clavium = poder das chaves, cometidos depois
de em tempos e dias taxativos, e privilegia a piedade do baptismo, se confessados com dor e detestação, e
interiorista musculada na relação directa do homem propósito firme de não reincidir. Exige-se, por ne-
com Deus, valendo menos a fórmula que o espírito, cessária, a íntegra declaração, em segredo, ao sacer-
o arrependimento mais do que a declaração dos pe- dote credenciado para escutá-la, de todas as faltas

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CONFISSÃO

mortais e suas circunstâncias, a que Lutero chamava de 1565 e nova tiragem a 23 de Outubro, a Summa
a «carnificina das consciências», uma vez averigua- Caietana, tresladada em português, «com muytas
das em cuidado e prévio exame. A amplitude desta annotações, e casos de consciência, e decretos do
faculdade estende-se a todos os pecados cometidos, Sagrado Concilio Tridentino», obra de Frei Diogo
sem limite de frequência, sendo a sua natureza judi- do Rosário, seu confrade no hábito dominicano. Re-
cial, isto é, ad modum judicium = a modo de senten- comendara a assembleia conciliar que aos sínodos
ça. Juiz e médico, o confessor deve aconselhar o pe- diocesanos importava serem o meio imprescindível
nitente e, em face das faltas cometidas, dar-lhe uma desse plano global de transformações e reforma das
penitência expressa em obras a satisfazer, avaliadas paróquias. Por isso, o que mais premia era continuar
com prudência as condições de poder cumpri-las. a acorrer à de há muito sentida necessidade de for-
Confirmou-se, também, o direito de o Papa e os bis- mar «curas de almas» preparados, doutrinária e mo-
pos reservarem pela sua gravidade certos pecados, ralmente, conscientes da ciência e prudência indis-
cuja absolvição competiria apenas a quem tivesse pensáveis para o exercício do ministério sacerdotal,
para tal jurisdição ordinária ou subdelegada, manten- sobretudo no delicado e importante acto da confis-
do-se a obrigatoriedade da confissão anual pela Qua- são. A considerar, apenas, as constituições publica-
resma para os fiéis entrados no uso da razão. O Ca- das entre nós de Lisboa a Goa*, até ao fim do sécu-
tecismo (1564) de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, lo, para além de uma boa dezena, podem seguir-se as
figura proeminente em Trento, aparecido antes do directrizes presentes na prática do sacramento da pe-
Catecismo Romano (1566), veiculará toda esta nitência. As do Porto, saídas em 1585, por iniciativa
orientação no seu capítulo quinto, em que lembra, de D. Frei Marcos de Lisboa, à distância de quase
como em directório espiritual, doutrinário, litúrgico duas décadas da promulgação das decisões tridenti-
e pastoral, serem quatro «as principais condições nas, permitem ver o inegável relevo dado aos aspec-
que há-de ter a confissão pera que mereça o peniten- tos disciplinares, a envolver clero e fiéis, no referen-
te frutuosamente ser absolto»: a primeira ordena te ao sacramento da confissão, em seu título quinto e
«que o pecador, antes que venha os pés do confessor, ao longo de dez «constituições». Encabeça-o o seu
pense cuidadosamente em seus pecados, e escodri- conceito teológico onde se afirma que «nam tam so-
nhe os cantos de sua consciência, pera o qual exame mente acrecenta a graça que se recebeo pelos Sacra-
tanto mais há-de tomar, quanto mais tempo há que se mètos do baptismo, e confirmação; mas ainda a res-
não confessou»; a segunda é ser inteira, o que obriga titue aos que pelo peccado mortal a perderam, e os
o penitente a vir determinado a que «por sua vontade livra da culpa delle, e da perda eterna que muda em
não ficará nenhum pecado mortal por confessar»; a temporal; e abre o paraíso, e dá esperança de salva-
terceira é «ser chorosa, e contrita, scilicet, que tenha ção». Recorda que ao chegarem os «annos da discri-
dor e arrependimento de seus pecados», pelo que çam», no entrar dos sete, é-se obrigado a confessar
«alguns Santos chamaram a este sacramento Bau- ao próprio cura, pela Quaresma, e comungar aos
tismo de lágrimas»; a quarta vir o penitente «apare- catorze pela Páscoa, conforme o tradicionalmente
lhado pera aceitar e cumprir a penitência que lhe estabelecido. A admoestação de abades, reitores e
derem». Pela bula Benedictus Deus, de Pio IV, ex- curas aos fregueses para seu cumprimento deve co-
pedida a 26 de Janeiro de 1564, se confirmaram os meçar no domingo da Septuagésima, lembrando-lhes
decretos do Concílio* de Trento, com obrigatória «que façam confessar todos seus filhos, e pessoas
aplicação, a partir de 1 de Maio, ao menos na parte que em sua casa tiverem», e, «ao menos o dia antes
respeitante à reforma e ao direito positivo. Solicitava que confessem, e o dia da confissão, se desocupem
o papa aos prelados que os observassem e aos mo- dos trabalhos temporaes, e cuidem somente em seus
narcas que auxiliassem, através da intervenção do peccados, e se arrependam delles». Desta data à
braço secular, a sua execução. Enviou o pontífice, Quinquagésima têm os mesmos de organizar um rol,
pois, a D. Sebastião, pelo breve Sacri Tridentini, de «indo em pessoa por todas as ruas, partes, e casas de
3 de Junho, um exemplar autêntico dos referidos de- sua freguesia», donde constem «todos seus freigue-
cretos e logo a 24 do mesmo mês insta para não ses, e seus nomes, e seus sobrenomes, e a rua, ou
demorar a sua execução. O rei, por razões também lugar, quintam, ou casal, em que viverem; e viven-
políticas, de imediato ordenou às justiças dependen- do com outrem, sam filhos, criados ou escravos».
tes do aparelho de Estado que não pusessem embar- Cominam-se penas pecuniárias para os faltosos à
go algum a essa aplicação. Conhecem-se dos mes- «desobriga», inclusive clérigos; e a negação de se-
mos duas edições em vernáculo, saídas em Lisboa, pultura em sagrado, sufrágios e orações públicas a
por mandado do arcebispo cardeal D. Henrique, a excomungados e rebeldes contumazes. Mantém-se
18 de Setembro e 15 de Outubro, e de obrigatória a liberdade de escolha de confessor, mas só por ou-
notificação ao povo, para o que se deveria publicar tro «mais letrado ou discreto» e se houver sinal de
nas paróquias; e outra em Braga, a 14 de Dezembro, ódio ou escândalo no pároco próprio. Insiste-se nas
por iniciativa do primaz, D. Frei Bartolomeu dos determinações de Trento para que apenas se aceitem
Mártires. O reino ficava assim lançado em órbitas religiosos de qualquer «Religiam que sejam», a ou-
das deliberações tridentinas, dependendo o ritmo da virem de confissão, se aprovados pelo ordinário de
sua aplicação da dinâmica dos seus prelados no em- lugar. E se sacerdotes sem cura de almas ou aprova-
bate com a inércia e resistência do clero e fiéis. Vê- dos pelo prelado residencial se atreverem a fazê-lo,
-se que, a nível do sacramento da Penitência, o zelo salvo in articulo mortis, seja-lhes aplicada uma mul-
do arcebispo bracarense faz com que se imprima na ta pecuniária, e se mesmo assim algum tentar «enga-
cidade, nos prelos de António Mariz, a 31 de Maio nar as almas [...] seja preso, e da prisam pague dous

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CONFISSÃO

mil reys, e seja degradado por dous anos fora do Bis- te, descobrindo-se, porém, no momento da absolvi-
pado». De novo, em conformidade com as disposi- ção. Recomenda que, em cada domingo, à estação da
ções tridentinas, determina-se que os sacerdotes, se missa, lembrem os fiéis a obrigação de comunicarem
habitualmente celebrarem, devem confessar-se «ao se há enfermos na freguesia, para serem visitados em
menos cada oyto dias» e os outros clérigos de ordens ordem à confissão. Insiste, pedagogicamente, no cui-
sacras uma vez cada mês, com escolha livre de con- dado de obterem conhecimento das circunstâncias
fessor; e as abadessas, freiras professas e noviças fi- (quis, quid, ubi, cur, quibus auxiliis, quomodo e
zessem também uma confissão e comunhão mensal e quando) agravantes, susceptíveis de mudar a espécie
nas festas principais do ano. Ordenava-se aos médi- de pecado, o que levará o confessor a interrogar o
cos e cirurgiões que aconselhassem os doentes, sob penitente, no que seguirá o elenco dos mandamen-
ameaça de os deixar de tratar a partir do terceiro dia tos, devendo fazê-lo, porém, com cautela «particu-
da visita, a confessar-se e comungar. Por altura da larmente com as molheres moças, e pessoas rudes»,
«desobriga», os curas de almas deviam perguntar de forma a não as ensinar a pecar; e concretiza a ma-
aos penitentes «se sabem a doutrina christam, e ao neira de se haverem com os surdos-mudos. De notar
menos, a oraçam do Pater noster, e Ave Maria, e o será o pormenorizado elenco casuístico de faltas mo-
Credo, e os mandamentos da lei de Deus, e da Igre- rais, curioso reflexo do quotidiano sociológico. Ana-
ja», descendo o interrogatório a indagar «se está em- lisadas as de Braga, de 1639, e só impressas em
baraçado com alguma pessoa particular no pecado 1697, topa-se com uma chamada de atenção para o
sensual; ou he dissoluto neste vício, per qualquer caso dos penitentes que se encontram habitualmente
modo, que seja; ou tem occasiam das portas a den- no mar, por ter o bispado uma longa faixa atlântica;
tro», a ponto de, se oportuno, dilatar-se a absolvição. e, ainda, com um destaque para o modelo do confes-
Quanto aos casos reservados, que se especificam, o sor que deve ser discreto, virtuoso, de bom exemplo,
de heresia ao bispo e os ocultos ao Papa, concede teólogo ou canonista ou, ao menos, bom casuísta, a
o Concílio de Trento que os ordinários de lugar pos- fim de saber distinguir «entre lepra e lepra, pois
sam perdoar. Impõe-se que haja «confessionários em há-de ser juiz de peccados». Por sua vez, as de Lis-
lugares públicos, e apparentes da Igreja, feitos de boa de 30 de Maio de 1640, do tempo do arcebispo
modo que o sacerdote possa estar assentado de huma D. Rodrigo da Cunha, reimpressas em 1737 e acres-
parte, e o penitente posto de giolhos da outra, fican- centadas de «copioso reportorio», trazem uma exten-
do entre ambos hum repartimento de madeira com sa enumeração de delitos e detêm-se na obrigação do
grades ou ralo, per que somente se possam secreta- pagamento das dízimas e no satisfazer das restitui-
mente ouvirem as confissões de quaesquer peniten- ções. Ressalta, sem dúvida, a saliência dada à gra-
tes», sendo obrigatório se se tratar de mulheres. vidade do sigilo sacramental e do pecado da solici-
É terminante a proibição do confessor receber di- tação na confissão, cujo conhecimento pertence ao
nheiro ou sequer aceitá-lo, se oferecido pelo confes- Santo Ofício, aspectos também presentes nas do Por-
sado, ficando sujeito a pena de suspensão a divinis. to de 1687, que contêm uma referência à visita do
Como «juizes espirituaes» e médicos de suas almas, pároco, na quadra quaresmal, aos presos das cadeias
são obrigados os confessores a examinar a consciên- e aos doentes dos hospitais, para os levar a cumprir o
cia dos penitentes «com muita diligência e descri- preceito da confissão e cumunhão anual. Logo após
ção», incorrendo, no entanto, na condenação «em o regresso de Trento, reuniu, em 1566, o metropolita
cárcere perpétuo» no aljube episcopal, e na privação bracarense, D. Frei Bartolomeu dos Mártires, um sí-
do «officio sacerdotal, e benefícios» que tiverem, se nodo provincial com a presença dos bispos de Coim-
por algum modo, figura, sinal, indício, jeito, aceno bra e Miranda, empenhado como estava em cumprir
descobrirem ou derem a entender mesmo em geral, as disposições conciliares, exterminar os costumes
directe ou indirecte, pecado ou pecados, e também corruptos, revitalizar a caridade cristã, tornar flores-
coisa por onde se possa entender ou presumir quem cente a religião e a virtude. A minuta preparatória
cometeu o pecado que lhes foi dito em confissão, mostra com eloquência os largos propósitos que o
ainda que seja mandado por superior, sob imposição animavam, embora o que a assembleia sinodal deli-
de juramento, ameaça de excomunhão ou por medo. berou ficasse aquém, em pormenorização, do dese-
Prevenia-se assim, debaixo de tão severo castigo, a jado. Com efeito, apenas três aspectos foram con-
guarda do sigilo sacramental. Para o recto desempe- templados, a evidenciar, em prioridades pastorais, a
nho deste grave mistério, recomendava o sínodo por- importância dada ao sacramento da Penitência e o
tuense que reitores, curas e demais confessores se cuidado a haver em sua administração: proibir que
exercitassem «de saber bem livros de casos, e trata- se aceitassem, sob pena de excomunhão, sacerdotes
dos de consciência, e de confíssam». Por último, avi- de outra província eclesiástica para ouvir confissões,
vava a advertência pastoral de trabalharem muito por bem como presbíteros vagos de que se lançava mão;
«alimpar as consciências» dos penitentes e «com ca- assegurar a existência nas igrejas paroquiais de con-
da confessado de idade pera comungar» se deterem fessionários, vistos de todos e com separadores de
o tempo suficiente. Em outras constituições diocesa- madeira entre o ministro e o penitente, onde se aten-
nas de sínodos convocados ao longo do século xvn, dessem, e apenas aí, as mulheres de qualquer condi-
mantêm-se, na generalidade, a mesma conhecida ção e idade; evitar nas admoestações públicas a vio-
substância doutrinária e parâmetros disciplinares. lação do sigilo. A reimpressão de Coimbra, de 1681,
O de Viseu de 1617 ordena, no aspecto litúrgico, que deste Concilium Provinciale Bracharense IV, con-
os sacerdotes se apresentem no confessionário senta- tém, além de uma nova edição do Tratado de avisos
dos, revestidos de sobrepeliz e, se párocos, de barre- de confessores de Frei Henrique de Távora, da auto-

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CONFISSÃO

ria do presbítero bracarense padre Manuel de Barros e a memorização das fórmulas essenciais; na admi-
e Costa, abade de Refontoura, uma Suma breve de nistração da confissão a partir dos sete anos e da co-
casos reservados, no arcebispado de Braga, que su- munhão desde os catorze. As de 1572 da vila alente-
biam a catorze, explicitados um a um, de forma a jana de Entradas, no governo do arcebispo de Évora,
convertê-la num autêntico tratado casuístico. De no- D. Jorge de Melo, o visitador recomenda ao prior
tar que o tratamento conceptual dado a cada um, a que, na estação da missa, insista com os paroquianos
primar pela clareza e rigor doutrinário, que eviden- «para que se confessem muitas vezes no ano» e lhes
cia, em tempos de heresia luterana, a preocupação de expusesse «a maneira que an de ter em suas confis-
lhe dar destaque, principiando por ela a enumeração. sões e o tempo que an de tomar para examinarem
De resto, a primeira visita pastoral do prelado às ter- bem as suas consciências», não devendo sem este
ras trasmontanas da vastíssima arquidiocese, alon- exame «ser ouvidos nem admitidos a confissom por-
gando-a a Chaves e Barroso, levou-o a criar no pró- que se por negligencia de não tomarem ho tempo pê-
prio paço cátedras de Casos de Consciência, que ra cuidarem em suas culpas deixam de confessar al-
confiou a dois religiosos dominicanos, e se alarga- guns pecados mortais a tal confissom he nulla e sam
ram ao Colégio de São Paulo, sob a direcção dos Je- obrigados a tornar se a confessar de novo». E, na de
suítas, onde chegaram a frequentá-las cento e trinta 1585, à mesma freguesia, o representante do prelado
alunos, dado ser obrigatória para concorrer aos bene- recomenda ao pároco que «na quaresma declare [aos
fícios. Como a descentralização favorecia a acessibi- fiéis] algüas cousas spirituais pertencentes a suas
lidade dos candidatos, pela bula Ad sacrum aposto- confições e conscientias». Literatura específica havia
latus de 11 de Setembro de 1561 foi fundada em para acorrer a este diligente zelo. Circulavam, entre
Viana do Castelo uma cátedra de Teologia Moral os séculos xiii e xvi, as Sumas de teologia moral de
Prática; e mais escolas do género se abriram em feição pastoral, casuística e oxomologética, enquan-
Freixo de Espada à Cinta, Chaves e no mosteiro de to, nos dois séculos imediatos, apareciam, de cariz
Pombeiro, segundo parece poder concluir-se da do- racionalista e a marcar a era dos «sistemas morais»,
cumentação coeva. A renovação do arcebispado pas- as Institutiones e as Summae de casibus e Summae
sava, pois, pela melhor preparação dos sacerdotes confessorum, e inúmeros livros afins, que obedecem
para ministrarem o sacramento da Penitência, sendo a um pendor casuístico, correndo em latim, em ver-
o mesmo zelo norma da Ordem Dominicana (v. DO- náculo ou em tradução, de autores portugueses e es-
MINICANOS). Assim, no capítulo provincial de Lisboa, trangeiros, impressos em tipografias nacionais e eu-
de 2 de Maio de 1574, recomendava-se a observân- ropeias cuja abundância não deixa de impressionar.
cia em todos os conventos do que estava determina- Se a quantidade de obras publicadas correspondia ao
do acerca da lição dos Casos de Consciência, a que objectivo louvável de formar confessores idóneos,
os superiores mensalmente presidiriam e todos os ir- em particular do clero diocesano e religioso, e peni-
mãos, em particular estudantes e letrados, assisti- tentes esclarecidos, as mesmas não escondem o in-
riam. Se o do Porto de 1576 delibera que os confes- tuito de encaminhá-los para o proveitoso manejo de
sores de mulheres deviam contar 35 anos completos técnicas e meios de persuasão exigíveis no santo mi-
e ser recomendados por sua vida e costumes, o de nistério e sua privilegiada importância no controlo
1587 mostra, pelas nomeações então feitas, a rede moral e social. Atente-se que a obrigatoriedade im-
de titulares que, nos conventos do Porto, Setúbal, plicava para seu cumprimento abeirar-se o penitente
Azeitão, Elvas, Évora, Aveiro, Abrantes e Benfica, do pároco próprio, ainda que existisse alguma possi-
eram incumbidos de dirigi-las. A preocupação domi- bilidade de procurar outro sob determinadas condi-
nante da cúria generalícia expressa nas ordenações ções. Recordam-no taxativamente as constituições
do geral, Xisto Fabri de Luca, de 12 de Abril de do Porto de 1541, promulgadas por D. Frei Baltasar
1588, traduz-se na obrigatoriedade dos religiosos do- Limpo e as de D. Frei Marcos de Lisboa, de 1585,
mínicos ouvirem de confissão todos os penitentes se- acima referidas. A reforma do clero, de que Trento
culares, sem acepção de pessoas, nobres e ricos, fazia uma preocupação dramática, no contexto histó-
pobres e ignorantes, observando o regulamentado no rico conhecido, visava tanto a ciência como a forma-
respeitante ao sexo feminino, bem como criar-se nos ção moral, espiritual e pastoral, estando em sintonia
conventos, onde não existiam cursos de Artes e Teo- com a aspiração de ver o sacerdote sobressair no re-
logia, uma lição de Casos de Consciência, conforme banho como espelho e modelo - a evangélica can-
o preceituado nos capítulos provinciais. Em actas deia acesa posta no monte para iluminar em redor.
das visitas pastorais, do período anterior e posterior Para Frei António de Beja, no Memorial dos peca-
a Trento, onde se patenteiam as preocupações pasto- dos, devia o confessor ter «em si tam jütas sciencia e
rais dos prelados, quanto ao cumprimento dos deve- sanctidade: come tem onrra e dignjdade». Frei Luís
res do clero paroquial, há observações e directrizes de Granada, na introdução à versão castelhana da
acerca da prática do sacramento da confissão. As das Summa Caietana, incita os prelados a «desterrar la
freguesias de Óbidos, de Fevereiro de 1467, e Mafra, ignorancia y rudeza de sus ministros, causadores de
de Abril de 1512, da diocese de Lisboa, por exem- muy grande parte delos males dei mundo». Chama-
plo, insistem na confissão quaresmal ao pároco; na -lhe mesmo «calamidade dela Yglesia», pois quem
grave responsabilidade de pais e patrões que des- só considere «quãtos Curas y confessores, assi cléri-
curam e dificultam a filhos e criados satisfazerem o gos como religiosos, aura en todos los reynos Despa-
preceito pascal; no desleixo dos curas de almas em na (donde entra Castilla, Portugal, Aragon, Cataluna,
lerem as constituições aos fiéis nas determinações Valencia, Galizia, y reyno de Granada, con las índias
sobre a matéria; no inquérito sobre a doutrina cristã orientales y occidentales) vera claramète quãtos mil-

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CONFISSÃO

lares de confessores aura, no solo en ynumerables al- siásticos e seculares, revista e acrescentada segundo
deas y lugares pequenos, sino en muy populosas o concílio tridentino. Frei Tomás de Chaves publi-
grandes cibdades, que ni saben latin, ni ay remedio cou, em 1574, um resumo em latim da obra de Fran-
para que dexen de confessar, y ni todos tan rudos que cisco Victoria, Summa Sacramentorum Ecclesiae,
dexen de entender algo, si lo lee em légua inteligible». com uma versão portuguesa. Em 1565 saíra a Summa
A gravidade desta situação levou D. Frei Bartolomeu Caetana, de Frei Diogo do Rosário. A Summa Diana
dos Mártires, após as primeiras visitas a paróquias (resolutiones morales), do teatino D. Antonino Dia-
do arcebispado, a «assentar em seus paços duas cáte- na, era conhecida no país, através da edição de Vene-
dras de Casos de Consciência», e encomendou a Frei za de 1646, embora a l. a fosse de Palermo de 1629.
Diogo do Rosário traduzir em linguagem a Summa Refira-se que, como esta, outras obras morais se de-
Caietana que mandou imprimir à sua custa e distri- tectam em bibliotecas conventuais, sinal da sua difu-
buir pela arquidiocese. O cardeal D. Henrique teve são em Portugal, tais como: do franciscano Frei Ma-
idêntico gesto ao fazê-la editar na oficina lisboeta nuel Rodrigues, em três tomos, Suma de casos de
de João Blávio destinada em particular aos confes- consciência, com «advertências muy provechosas
sores da diocese eborense e «en especial a los para confessores, con un ordem judicial a la postre,
treynta sacerdotes» que com grandes expensas suas en la qual se resulve lo mas ordinário de todas las
lhes promovera o ensino, «para que salgan diestros matérias morales», editada em Salamanca (1597);
en el sacro officio de confessar». O padre Manuel Memorial de pecados, y aviso de vida Christiana, do
Rodrigues, ao falar, na Summa de casos de consciên- dominicano Frei Juan Covarrubias (1531); Casus
cia (1567), da ciência que o confessor deve ter, aten- Conscientiae (summa casuum constientiae sive de
ta à distinção dos pecados, com inteira percepção da instructione sacerdotum), do jesuíta Francisco Tole-
realidade lembra que não «tienen necessidade de do, em latim e de um prelo de Colónia (1603); Sum-
tanta sciencia los que confiessan en aldeas, como ma de [la] Theologia Moral y Canónica (1632), do
aquellos que oyen confessiones en pueblos dõnde ay franciscano Frei Henrique de Villalobos; Quaestio-
tratos y negociaciones». A matéria do matrimónio e nes Morales Theologiae (in septern ecclesiae sacra-
usura, simonia, contrato e restituição era por certo menta), do trino Frei Leandro do Santíssimo Sacra-
a mais dificultosa; e advertia Frei Henrique de Távo- mento, em 4 volumes (1642-1679); Practica [dei
ra, no Tratado de avisos de confessores (1560), orga- oficio] de Curas e Confessores [y doctina para peni-
nizado por ordem de D. Frei Bartolomeu dos Márti- tentes], do clérigo regular Bento Remígio Noydeus,
res, com nova edição em 1681, que por ignorância do em Madrid (1670); El confessor instruído (1673), do
confessor ficavam «muitos penitentes em seus odios, célebre pregador jesuíta italiano do século xvn, Pao-
deshonestidades; e cargos de fazêdas alheas por mui- lo Segneri, a quem pertencem Pratica dei Confessio-
tos annos com grande dano de suas almas e scandalo nário (1687) e Summa de la Theologia Moral
dos proximos». Importava, assim, auxiliar os peni- (1690), com impressões em Coimbra e Lisboa nos
tentes a prepararem a confissão, fazendo um exame anos de 1756, 1693 e 1694, Pratica dei Confessioná-
de consciência, pormenor a salientar na orientação rio (1687) e Summa de la Theologia Moral (1690),
pós-tridentina, conducente à interiorização do senti- do capuchinho Frei Jaime Corella; Promptuario de
mento da culpabilidade, à detestação do pecado e theologia moral (muy util e necessário para todos os
emenda de vida, o que exigia que o ministro se com- que se quiserem expor para confessores e para a
penetrasse do seu papel de juiz e médico. A legalida- devida administração do Santo Sacramento da Pe-
de e a espiritualidade eram os horizontes em que se nitencia), do seráfico Francisco Lagarra, traduzido
devia situar o sacerdote na prática de um ministério em português pelo padre Manuel da Sylva Moraes
que era ciência e arte. As sumas e manuais que se (1749); El Confessor instruído (en lo que toca su
escreveram e difundiram, na linha orientadora tri- complice en el pecado torpe contra el sexto precepto
dentina, tinham em consideração o grau de cultura dei decálogo, segundo las constituciones ultimas de
dos destinatários, ora se situando ao nível mais ele- N. SS. P. Benedicto XIV) (1757), de José Vicente
mentar do Compendio e sumario de confessores, Dias Bravo; Instruções para novos confessores (em
atribuído a Frei António de Azurara, ora ao do apro- que se trata miudamente de toda a pratica do Sacra-
fundado e modelar Manual de Azpicuelta Navarro, mento da Penitencia), 2 volumes (1796), do agosti-
em sua versão completa, autêntico best-seller duran- niano Frei João de Deus. Instrumento privilegiado se
te mais de um século, que a citada obra do padre torna, assim, para a reforma dos costumes e renova-
Manuel Rodrigues pretendeu superar, ampliando a ção da vivência cristã das comunidades, o sacramen-
panóplia de casos e dúvidas deixados sem tratamen- to da Penitência, cuja frequência se incrementa, até
to por aquele último. O conventual Frei Gomes da pela denominada «hipervalorização» da morte da al-
Silva, autor de Annotationes sex mille et octingentae ma. Nota-se, desta forma, a partir de Trento, maior
ad summam moralem Fr. Artesani Astensi Ordinis insistência na confissão semanal, acompanhada da
Minoris (Veneza, 1519), acabou por proceder a uma preparação devida, acentuando-se, no entanto, mais
ampliação da suma de Frei Francisco Artesani, de o seu enquadramento jurisdicional-canónico do que
Asti, que gozava de grande autoridade nos domínios o seu lado espiritual ascético-místico. E, porque o
teológico e moral, e se destinava a servir, em Portu- zelo, por vezes, conduz ao rigor, o debate sobre a
gal, para instrução dos confessores. Frei Luís de graça e a justificação, a contrição e a salvação eterna
Granada, em 1556, publica o Guia de pecadores e intensifica-se, não apenas por motivo das posições
em Coimbra aparece, em 1568, a Summa de casos de do evangelismo reformista, mas ainda dos próprios
consciência de Frei Juan Pedrosa, destinada a ecle- movimentos doutrinário-espirituais surgidos no inte-

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CONFISSÃO

rior da Igreja Católica. O jansenismo*, com o seu se- defendesse ninguém ser obrigado, no foro da cons-
nho rigorista, se bem que condenado em sua seiva ciência, a fazer a sua confissão anual na paróquia,
herética pela bula Cum occasione (1653) de Ino- a frequentá-la para cumprir o preceito dominical,
cêncio X e pela Unigenitus (1713) de Clemente XI, ouvir a palavra de Deus e instruir-se nas verdades
continuou a seduzir, em seu rigorismo místico, da fé e nos mandamentos. Na verdade, não é di-
quantos se inquietavam com a decadência moral, a ferente desta directiva o que o bispo do Algarve,
especulação teológica deletéria, o barroquismo litúr- D. Francisco Gomes de Avelar, numa pastoral de
gico sensorial, o laicismo político, o racionalismo e 4 de Fevereiro de 1790, verbera como abuso: o pro-
a libertinagem crescentes. No casuísmo e probabilis- cedimento de certos penitentes que na Quaresma fu-
mo das correntes dominicana e jesuítica, de que Me- giam a confessar-se ao pároco próprio e evitavam os
dina (1528-1580) e Suarez (1548-1617), docente em sacerdotes que cumpriam o dever de examiná-los so-
Coimbra, foram os iniciadores credenciados de uma bre a doutrina cristã. Esta literatura, que incidia
evolução moral assente no princípio de se poder se- sobre a matéria e jurisdição para absolver, continuou
guir «toda a opinião simplesmente provável», em a proliferar no século xvii, como se vê, por exemplo,
que alguns viam o corredor aberto ao laxismo dissol- na Explicação dos casos reservados conferente ao
vente. Pretendeu-se, por isso, contrapor-lhes um Breve do Senhor Papa Clemente VIII, com duas edi-
neo-augustinismo reabilitador da interioridade e da ções (1611 e 1671), de Frei Lourenço Portel, concei-
conduta austera, de que a confissão auricular seria o tuado canonista na corte de D. João IV, confessor e
motor das consciências num caminho afinal próximo director espiritual de religiosas. Pertencem-lhe, ainda,
do puritanismo calvinista e do pietismo luterano. duas obras latinas, com impressão também no es-
Inscrevem-se nestes horizontes contextuais a jaco- trangeiro, situadas no mesmo âmbito: Responsiones
beia* e a não menos famosa questão do sigilismo*. aliquorum casuum moralium ad personas regulares,
Teve esta querela, de matiz político-religioso e si- ac etiam saeculares (1618 e 1629) e Dúbia Regula-
nuosas dimensões regalistas, reflexos em directórios ria, eive accurata, brevique discussio difficultatum
pastorais de certa voga na segunda metade de Sete- circa religiosam personam, ac etiam circa Sacerdo-
centos, como se verifica no anónimo Idéa de hum tem regularem confessiones saecularum excepientem
perfeito pároco instruído nas suas obrigações, e ins- (1618). A lembrar o escrito análogo de Frei Luís de
truindo as suas ovelhas na solida piedade, com uma Granada é o livro do inaciano de Castelo de Vide e
edição de cinco volumes em 1772 e outra em 1785, doutor em Teologia, Francisco Leitão, Remedio de
de acintosa feição antijesuítica, a acusar a Compa- peccadores, exercido de justos (1678), cuja primeira
nhia - «corpo infecto» que «procurou lançar fora os parte contempla o sacramento da Penitência e a se-
livros bons, e úteis», substituindo-os «por maus e gunda o da Eucaristia*. Com uma estrutura a poder
nocivos», e «dominar as consciências de todos» - de filiar-se entre os manuais de confessores, são as
ter por política «que ninguém seja instruído a fundo obras do jesuíta e mestre de Moral na Universidade
na Religião», insistindo ser a ignorância desta «mui- de Évora*, padre João Fonseca. O Espelho de peni-
to própria para fazer fanaticos, e para introduzir na tentes (1687) trata do sacramento da Reconciliação,
igreja huma obediencia cega a tudo que se manda» do exame de consciência, voltado para os manda-
sob o pretexto religioso. A obra, da autoria de mentos e a condição social das pessoas, para levar à
D. Frei Inácio de São Caetano, carmelita descalço e confissão bem feita, indispensável à reforma de vida.
inquisidor-geral, teve, ao tempo, larga difusão, pois Indicando os meios destinados a ajudar a não incor-
até na diocese de Goa era, pela hierarquia, recomen- rer em pecados graves nem cometer faltas leves, e
dada. Ao tratar dos sacramentos, em sua quarta parte ainda com um apêndice ilustrativo de exemplos aco-
(cap. x a XIII), pormenoriza as faltas a confessar, o modados às matérias tratadas, esta obra, ao longo de
ministro próprio a considerar, e o sigilo a guardar. uma dúzia de capítulos, dá atenção às circunstâncias
Na explanação sobre os artigos do Credo, há ainda o que rodeiam os actos cometidos, constituindo o seu
obrigatório excurso teológico relativo à remissão dos Guia dos enfermos, na esteira das mediévicas Artes
pecados. Da sua leitura poderão ser retiradas signifi- bene moriendi, útil complemento. Do mesmo é a
cativas ilações acerca da mentalidade ideológica e Sylva moral, e histórica (1696), que explana discur-
dos intuitos do autor que exalta a função paroquial, sos de diversas matérias afins, polvilhados de narra-
ministério de mui grande influência «no bem públi- tivas edificantes. Dividida em centúrias, trata espe-
co, e no socego dos Estados, e da sociedade civil» e cialmente da confissão. Ojacobita pregador régio e
na formação de «vassalos fieis, e bem sujeitos ao mestre de Moral no colégio lisboeta de Nossa Se-
Rei, e aos seus Ministros», o que não acontecia, na nhora da Escada, em que, sob os auspícios dos sobe-
época, no país e seus domínios onde, «exceptuando ranos, os clérigos párocos e confessores eram prepa-
alguns poucos illuminados», havia «huma deplorá- rados, Frei Manuel Guilherme, com o pseudónimo
vel ignorancia do que he util, e necessário a hum de Manuel Velho, publicou Conselheiro fiel (1727-
perfeito eclesiástico». Aquele religioso, que foi -1728), em três partes, com máximas espirituais para
confessor de D. Maria I e bispo de Penafiel, fizera convencer a razão e levar ao arrependimento o peca-
também publicar em seu nome um Compendio de dor. Confina-se ao género do manual de piedade as-
theologia moral, para formar dignos ministros do cético de coloração sigilista a Escada mística de Ja-
sacramento da Penitencia, de 6 tomos, em 1776, cob (1758), que aponta a eclesiásticos, religiosos e
com nova edição em 1784. Devia perfilhar-se ofi- leigos a via da perfeição pela observância da regra
cialmente em Portugal o princípio galicano, cons- e pautada em vinte e seis degraus. Pode aproximar-
tante da declaração de 1700, que condenava quem -se desta a conhecida obra do oratoriano padre Ma-

455
CONFISSÃO

nuel Bernardes, Pão partido aos pequeninos (1696), preparatórias das festas dos oragos, incluíam ser-
de estruturação catequética em suas perguntas e res- mões obrigatórios sobre a confissão e a eucaristia, e
postas, cuja segunda parte, em que expende uma in- a necessidade, perante o imprevisto da morte, de se
trodução sobre os bons costumes, se inicia com um viver em estado de graça. Dissipar a ignorância reli-
tratado sobre a confissão, sem se desviar da doutrina giosa, que chegava ao ponto de se confundir a fór-
da Igreja e com uma severa crítica aos maus confes- mula do acto de contrição com a ave-maria, era ob-
sores. Através da leitura das constituições sinodais, jectivo paralelo ao de acorrer à falta de educação
ante e pós-tridentinas, sem dúvida com maior espec- cristã. Entre meados do século xvi e o fim de Seis-
tro a partir de Trento, nota-se que a menção ao sigilo centos, os Jesuítas arrancam em força nesta activida-
e às penas cominadas aos seus violadores talvez se de e os missionários apostólicos, surgidos em 1679
justificasse. A tentação de se utilizar de alguma for- na Ordem Franciscana e preparados em Brancanes
ma o conhecimento obtido no momento da confissão (Varatojo) sob a direcção de Frei António das Cha-
auricular procederia da obrigação que pesava sobre gas, vêem juntar-se-lhes os padres vicentinos de Ri-
os fiéis de, na desobriga anual, se deverem abeirar lhafoles com presença marcante desde o último
do pároco próprio que assim podia controlar o reba- quartel do século xvin e seguinte. O resultado era pa-
nho confiado. E, embora se estipulassem em concre- tente no índice de confissões. Em 1673, só em Erve-
to os casos permitidos para a escolha do confessor delo (Chaves), durante três meses de pregações, as-
pelo penitente, também era compreensível o risco de cenderam a 13 200, a ponto de Frei António das
uma não declaração integral dos pecados por razões Chagas dizer que o pregador era «o varejador e os
psicológicas e sociais. Motivo de constrangimento confessores os apanhadores». A incidência socioló-
constituía, em particular, a necessidade de não se gica das pregações recaía, sobretudo, na restituição
omitirem, como se disse, as circunstâncias agravan- de furtos cujo montante, por desconhecimento do
tes do acto que mudavam, em espécie, a falta come- paradeiro do lesado ou dificuldade insuperável de
tida. Por sua vez, o escrúpulo que atinge as almas ti- compensá-lo, acabava por reverter em beneficio
moratas e experimenta progressivo aumento nos de obras pias, sufrágios ou esmolas aos pobres; no
séculos xvi e xvii - Delumeau considera-o «um fe- perdão das injúrias e agravos para bem da concórdia
nómeno de civilização, ao menos num certo nível da comunidade; na luta, por vezes, contra os infanti-
cultural» - cedo merece a atenção dos tratadistas. cídios de recém-nascidos, praticados com ou sem ig-
Assim, o franciscano Frei Lourenço Portel, expe- norância de sua gravidade. Devido à afluência de
riente por longa prática no serenar de espíritos escru- gente, missionários e párocos passavam os dias no
pulosos, publicou, em 1617, o Tratatus de serupulis. confessionário, chegando a munir-se de um vade-
Disputatio única de serupulis, destinado a religiosos -mecum, espécie de manual casuístico de consulta
e seculares. Segue-se, com o compilado sobre o que rápida e eficaz. Da autoria do padre Manuel José
acerca do assunto dizem os teólogos, o Tratado dos Gonçalves do Couto, sacerdote diocesano de Braga,
escrupulos [...] para quietar consciências timoratas foi publicado, em 1859, um volume-cartilha de algu-
(1629), de Frei João Cardoso, agostiniano e depois mas centenas de páginas, Missão abreviada, que te-
seráfico da Província dos Algarves. O âmago do pro- ve larga expansão, perfazendo até 1914 dezasseis
blema que afecta estes doentes espirituais está no edições com cerca de 116 000 exemplares impres-
discernimento entre sentir e consentir, pois só neste sos. No título se explicita a finalidade da obra que se
reside o pecado e se deve avaliar o grau de culpabili- destinava a «despertar os descuidados, converter os
dade. Ao encontro da delicada e pertinente questão pecadores, e sustentar o fruto das missões». Dirigi-
ia também o escrito do padre João da Fonseca, de da, como se propunha, ao «povo de aldeia», reputa-
elucidativo título: Antídoto da alma para medicina -se «utilíssimo para os parochos, para os cappelães»,
de escrupulosos, remédio de tentados e preservativo para qualquer sacerdote animado pelo desejo de sal-
de enganos e ilusões, que pode haver nas matérias var almas e toda a pessoa «que faz oração publica».
espirituaes (1690). A abundância de missões popula- Sem ser propriamente de índole jansenista, era, no
res, estáveis e itinerantes (pedâneas), sobretudo a entanto, marcada por um estrito rigorismo doutriná-
partir do Concílio de Trento, impulsionadas por je- rio, com reflexões várias atemorizadoras sobre o pe-
suítas*, franciscanos*, lazaristas*, oratorianos*, de cado e sua gravidade, a confissão, recomendando a
norte a sul do país, através do interior rural e encra- geral, a penitência e a fuga das ocasiões de infracção
vado na montanha, fez sentir a necessidade da práti- grave. Na era oitocentista persiste a literatura doutri-
ca sacramental da confissão e comunhão, como ali- nária sobre a confissão de cerne pastoral e alcance
cerce de uma espiritualidade assente na conversão, apologético. Refira-se o Compendio teológico para
na perseverança e no aperfeiçoamento moral. A pre- uso dos novos confessores, do presbítero da Guarda,
gação teatralizada e a catequese mecanizada, a leitu- António da Ascensão Oliveira, destinado em espe-
ra edificante e a formação da consciência na privaci- cial a orientar, no plano da justiça e do direito das
dade do confessionário eram os meios mais usados coisas, como no desenvolvimento do título se escla-
na evangelização. Recorria-se a um exemplário terri- recia, o modo de adquirir domínio, fechar contratos
ficante sobre a hediondez do pecado e as penas do e proceder a restituições segundo as leis pátrias, o
inferno, pondo-se em prática a denominada «pastoral jus natural e canónico. Conhecido por o seu Tratado
do medo» que imperava particularmente na religiosi- dos sacramentos (1859) haver servido de compêndio
dade e piedade popular, se bem que os oradores de- para o curso de Teologia* do seminário* daquela
vessem ser «leões no púlpito, mas cordeiros no con- diocese, o autor dá realce à penitência ao longo de
fessionário». As pregações de tríduos e novenários, 33 parágrafos, forrageados na tradição escolástica

456
CONFISSÃO

agostiniano-tomística. Por sua vez, A necessidade da dos na arquidiocese, que ainda integrava parte de
confissão para a felicidade deste e do outro mundo Trás-os-Montes, compreendendo: a blasfémia públi-
(1856), do polígrafo padre José de Sousa Amado, ca, o homicídio voluntário exceptuada a justa defesa,
subscritor de abundante e diversificada obra, nivela- incêndio por fogo posto na intenção de causar dano e
-se à apologia. Do próprio magistério da Faculdade sacrilégio local. Com idêntico intuito foi convocado
de Teologia saíram dissertações académicas que to- o Concílio Plenário* Português que reuniu, de 24 de
cavam ou se centravam nesta matéria, como sucedeu Novembro a 3 de Dezembro de 1926, os bispos do
com a Philosophia da confissão sacramental, apre- continente, ilhas, colónias e Padroado do Oriente,
sentada, em 1875, a concurso para a docência e mas os decretos, entrados em vigor a partir de 24 de
constituída por duas partes: racionalidade e benefí- Maio de 1931, só em 1939 foram publicados. Como
cios da confissão sacramental. O despertar do pro- pontos negros no mapa da Igreja em Portugal, apon-
testantismo em Portugal, a partir da segunda metade tavam-se o laxismo, o enfraquecimento dos laços fa-
do século xix, com a difusão da Bíblia em vernáculo miliares, a ignorância da doutrina cristã e o abando-
e a passagem de sacerdotes católicos para as igrejas no da frequência dos sacramentos. Ao tratar destes
evangélicas, com notória expressão na região do (P. ii, t. i), expõe no capítulo v (n.os 224-240) a maté-
Porto, leva o prelado, cardeal D. Américo, a publicar ria canónica acerca da Penitência, recordando os ci-
em 1878 uma extensa carta-pastoral sobre o proble- tados cânones 870 a 910. A recomendação ao con-
ma, onde consagra significativo passo ao sacramento fessor para atender primeiro os homens e só depois
da Penitência, detendo-se na controvertida necessi- as mulheres é observação a notar, embora acentue
dade da confissão auricular, meio ordinário para se que não haja acepção de pessoas, reafirme o princí-
obter o perdão dos pecados. A contraditá-lo, sai o pio da plena liberdade na escolha do ministro da Pe-
ex-padre Guilherme Dias da Cunha com um folheto nitência, considere salutar na Quaresma a procura de
crítico, em que na matéria se detém, voltando ao as- outro diferente do habitual, sublinhe a guarda do si-
sunto em 1889 com o opúsculo A confissão auricu- gilo, recomende a confissão de crianças e a dos fiéis
lar, então editado. Na réplica que houve lugar, o po- nas festas mais solenes, incentive a circularidade pe-
lemista padre Sena Freitas e o professor de Teologia nitência-eucaristia. A apologética popular, de perfil
e decano do seminário maior portuense, Manuel Fili- homiliético e cariz exemplarista, que utiliza a esta-
pe Coelho, alongam-se na resposta à argumentação ção da missa e a radiodifusão católica, teve nos
protestante acerca da confissão, exaltando apologeti- anos 40 um paladino, de linguagem directa e despre-
camente a sua origem divina e a obrigatoriedade e tensiosa, no padre António Brandão, pároco da Ce-
benefício da sua prática. Análise mais detida, ba- dofeita (Porto), que se abalançou a ministrar um cur-
seada no magistério eclesiástico e na disciplina ca- so pastoral de religião, da eucaristia ao matrimónio,
nónica, consagra ao tema o decano da Faculdade de encontrando no sacramento da Penitência terreno pa-
Teologia de Coimbra e professor da cadeira de Po- ra combater a investida protestante. Para si, a confis-
lémica, Luís Maria da Silva Ramos, autor de A con- são auricular era, na altura, a verdade católica mais
fissão auricular e as indulgências. O Código de Di- discutida e atacada, entendendo que as reacções iam
reito Canónico, que Bento XV promulgou (em 27 de da inteira rejeição à recepção sem preparação devida
Maio de 1917), consagra quarenta cânones (870 a e não ascendia a cinco por cento o número de católi-
910) ao sacramento da Penitência (liv. m, P. i, tít. v, cos capazes de defender, com êxito, a sua fé neste
cap. i a iv), reafirmando a doutrina tradicional da sacramento face aos protestantes, seus inimigos mais
confissão com incidência sobre: o ministro, por ser encarniçados. Sob o título polémico de A confissão,
mestre e juiz, e sua jurisdição, a quem recomenda instituição divina ou invenção dos padres reuniu
prudência no interrogatório e rigor na manutenção num volume de algumas centenas de páginas, dividido
do sigilo; a obrigatoriedade da confissão anual, sem em lições, as palestras proferidas. É patente, em vá-
bastar a sacrílega por nula; o preceituado acerca do rios pontos, o apoio doutrinário procurado na obra
lugar da celebração; a reservação dos pecados, de de Silva Ramos, atrás mencionada. Aparecido em
que a falsa denúncia perante os juízes eclesiásticos 1948, obteve certa expansão, ao menos no meio
de um sacerdote inocente acusado do crime de soli- eclesiástico, por constituir um auxiliar acessível para
citação no acto sacramental seria, ratione sui párocos e para pregadores de tríduos e missões po-
(c. 894), o único à sé apostólica reservado. Reper- pulares. A progressiva dessacralização, indiferen-
cussão imediata do novo código em Portugal, por tismo religioso e osmótica tendência laicismo/tole-
necessidade urgente de pôr em conformidade a legis- rância confessional reflectiu-se na «desafeição»
lação diocesana com as disposições universais pro- acentuada dos crentes pelo sacramento da penitência
mulgadas, encontra-se no Sínodo de Braga (25 a 27 muito controlado pela teologia integrista e pastoral
de Julho de 1918), reunido pelo arcebispo D. Ma- tridentina. Notava-se, contraditoriamente, que «o
nuel Vieira de Matos que deplora a ignorância reli- mais humano dos sacramentos» ia perdendo o favor
giosa e fala de uma «nova geração de crentes». dos católicos, perante a cada vez maior afirmação
Desta forma houve a preocupação de inserir grande da conduta individualista e autonomia moral. A in-
número de cânones, como se vê na constituição v tervenção do Concílio* Vaticano II, surgida nos
(n.os 320-353), consagrada à Penitência. De salientar, anos 60, tenta inflectir o rumo tradicionalista, de fei-
segundo a mentalidade do tempo, a preocupação ção «intimista e individualista», da prática do sacra-
com a vigilância da moralidade feminina, a insistên- mento da Penitência, procurado, no fundo, por devo-
cia no zelo dos párocos em ouvir confissões na vés- ção para tranquilizar a consciência dos «complexos
pera e dias festivos, a indicação dos pecados reserva- de culpabilidade». O Ordo Poenitentiae (2 de De-

457
CONFISSÃO

zembro de 1973), publicado pela Sagrada Congrega-


ção para o Culto Divino, estabelecendo princípios
doutrinais, normas litúrgico-pastorais, ritos e mode-
los de celebrações penitenciais para diversos tempos
e categorias de pessoas, vinca a ideia de reconcilia-
ção em lugar de confissão e sublinha o carácter co-
munitário e eclesial do sacramento. Incrementa-se,
desta forma, o abandono do termo «confissão», que
corporizava a face «privada» de que a Penitência se
revestira nos últimos séculos, remetida sobretudo pa-
ra a acusação dos pecados, e faz-se emergir o termo
«reconciliação», em conformidade com a prática vi-
gente na Igreja primitiva. Ia-se assim ao encontro do
voto do Vaticano II que desejava vê-la consagrada
na revisão da disciplina do sacramento, aparecendo
com mais evidência a sua natureza e efeitos, se assu-
midas a reflexão teológica e as perspectivas abertas
pela doutrina conciliar em ordem às necessidades es-
pirituais e concretas dos fiéis. Lembrava-se que o pe-
cado, sendo ofensa feita a Deus, também se reveste
de uma dimensão social e comunitária a não mini-
mizar, enfraquecendo-se a ideia generalizada de
assunto estritamente privado. Reafirma ainda os
elementos constitutivos do acto sacramental: arre-
pendimento, acusação, reparação e absolvição, che-
gando a prever as circunstâncias desta, antes mesmo
da declaração dos pecados, ligada sempre à conver-
são interior, cuja importância sublinha. Adianta o
Ordo, dentro deste espírito, três formas de celebrar
a reconciliação: a do penitente de modo individual; a
de vários penitentes com acusação e absolvição in-
dividuais; a de vários penitentes com acusação e Confissão, em Fátima, ao ar livre, na década de 50.
absolvição gerais. De atender que esta apenas se
permite em circunstâncias absolutamente especiais, Poenitentiae, em interpretações e comentários apro-
determinadas pelos bispos, e quando se preveja que fundados da doutrina e praxis ali expendidas, com
os fiéis possam vir a ficar durante largo tempo priva- insistência no carácter comunitário e social do peca-
dos da reconciliação sacramental por carência de do, «com o mistério da iniquidade que avassala o
clero disponível. A acusação é, pois, apenas adiada, mundo», e no povo de Deus, como comunidade de
continuando obrigatória para as faltas graves. Os es- perdão, em que o compromisso pessoal e a conver-
quemas apresentados denotam a preocupação de in- são do penitente evitam a sua dissolução na massa
cutir, em comunidades assaz heterogéneas, o sentido anónima da culpabilidade colectiva. O ritual das ce-
do pecado e a necessidade da conversão, pairando a lebrações procura inculcar a paciência em relação ao
tónica na preparação da assembleia e na orientação quotidiano e o empenhamento na «partilha, entreaju-
do exame de consciência colectivo. Toma-se, portan- da, luta pela justiça e compromisso apostólico», ou
to, pastoralmente em alguma conta a realidade so- seja, ressituar o sacramento da Reconciliação no
ciológica de um catolicismo do povo, «de muita reza centro da eclesiologia sacramental, com menos sa-
e pouco padre», em crescimento nos meios rurais, crifícios psicológicos e talvez mais benefícios espiri-
importando reconhecer e aproveitar os valores da re- tuais. Em 1983, apareceu o aguardado novo Código
ligiosidade popular e as oportunidades únicas ofere- do Direito Canónico que não pretendia «substituir a
cidas pelas grandes concentrações de manifestação fé, a graça e principalmente a caridade na vida da
de fé, proporcionadas pelas festividades de santos Igreja ou dos fiéis», mas tornar mais fácil o «desen-
taumaturgos e pelas peregrinações a santuários na- volvimento ordenado», e este «quer da sociedade
cionais e regionais. Fátima e até o Sameiro são disso eclesial, quer também de cada um dos homens que
paradigmas eloquentes. Depara-se aqui com a con- dela fazem parte». No liv. iv, «Do múnus santifica-
fluência entre a «religião do povo» e a «religião dos dor da Igreja», os cânones 959 a 991 são reservados
padres», campo propício ao exercício de uma inteli- ao sacramento da Penitência. Reafirma-se a confis-
gente pastoral dos sacramentos da Reconciliação e são individual, integrada pela absolvição, como úni-
da Eucaristia, onde pode ter lugar uma pregação co modo ordinário para o penitente, consciente de
orientada para uma confissão individual com acon- pecado grave, se reconciliar com Deus e a Igreja,
selhamento privado de casos. A leitura das revistas mas admite-se, sob condições, a absolvição simultâ-
Lúmen e Communio, em alguns de seus números nea a vários penitentes, sem confissão individual
pós-conciliares, através de textos da autoria de por- prévia (c. 961), e sublinha-se a tradicional imagem
tugueses, permite-nos acompanhar o sentido e alcan- do confessor juiz e médico. A abertura inovadora,
ce das directrizes teológicas e pastorais do Ordo dentro de um assumido espírito ecuménico, surge no

458
CONFRARIAS

cânone 844, em seus primeiros quatro parágrafos, civilisation. In ACTES de la Recherche en Sciences Sociales. 62/63
sendo de atender sobretudo ao § 2 que reza: «Todas ( 1 9 8 6 ) 5 4 - 6 8 . IGREJA CATÓLICA. C o n c í l i o P l e n á r i o Português, 1926 -
Pastoral Colectiva. Decretos. Lisboa, 1939. IGREJA CATÓLICA - Sínodo
as vezes que a necessidade exigir ou a verdadeira Diocesano de Braga [1918], Braga, 1919. LAVRADOR, João E. Pimentel
utilidade espiritual o aconselhar, e desde que se evite - Pensamento teológico de D. Miguel de Anunciação. C o i m b r a , 1995.
o perigo de erro ou de indiferentismo, aos penitentes MACHADO, D i o g o Barbosa - Bibliotheca lusitana. C o i m b r a , 1965-
-1967. 4 vol. MARQUES, J o ã o Francisco - Para a história do protestan-
a quem seja física ou moralmente impossível recor- tismo em Portugal. Revista da Faculdade de Letras. Porto. 2: 12
rer a um ministro católico, é-lhe lícito receber os sa- (1995) 431-475. MARQUES, José - Tratado de confisson: Novos dados
cramentos da reconciliação, eucaristia e unção dos para o seu estudo. Vila Real, 1986. MARTINS, José V. de Pina - Estudo
p r e l i m i n a r . In TRATADO de confissom (1489). L i s b o a , 1 9 7 3 . NOTA P a s -
doentes de ministros não católicos, em cuja igreja toral do C o n s e l h o P e r m a n e n t e da C E P sobre a exortação apostólica
existam aqueles sacramentos válidos.» Parecendo «Reeonciliatio et Paenitentia». Lumen. Lisboa. 46 (1985) 17-19. N o v o
ainda tímido, é, no entanto, um enorme passo em (O) « O r d o Paenitentiae». Lumen. Lisboa. 35 ( 1 9 7 4 ) 32-33. PEREIRA,
Isaías da Rosa - Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481). Lusita-
frente face à doutrina canónica tradicional modelada nia Sacra. Lisboa. 8 (1967-1969) 102-221. Publicada em 1970. IDEM -
pelo integrismo tridentino. Outras determinações pa- Visitações d e São Miguel de Sintra e d e Santo A n d r é de M a f r a (1466-
-1523). Lusitania Sacra. Lisboa. 10 (1978) 135-257. PRADO, A n d r é do
pais promulgadas para a Igreja universal foram moti-
- Horologium Fidei: Diálogo com o infante D. Henrique. Lisboa, 1994.
vando aplicações pautadas pelas conferências epis- PROSPERA, Adriano - Tribunali delia conscienza. Torino, 1996. RIBEIRO,
copais dos vários países do mundo. Assim, João Arnaldo - C o m o vai o sacramento da Penitência no Brasil?. Lumen.
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Bispos que se debruçara sobre este tema, enfatizan- dades penitenciais: um caminho de renovação eclesial a prosseguir. Lu-
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publicou, em 1985, uma «Nova Pastoral» em que t h o l o m e u dos Mártires. Cartório Dominicano Português, século xvt.
exorta os sacerdotes a reservarem tempo e lugar para Porto. 2 (1972). RUSCONI, Roberto - De la prédication à la confession:
Transmission et contrôle de modèles de c o m p o r t e m e n t au xm siècle.
a confissão individual, pois, como ministros do sa- In FAIRE Croire. R o m a , 1981, p. 67-85. SYNODICON Hispanum: II: Por-
cramento, são «arautos e instrumentos do perdão di- tugal. Ed. crítica de A n t o n i o Garcia y Garcia. Madrid, 1982. SANTOS,
vino». Pretende-se desta forma acentuar o valor e Eugénio Francisco dos - A s missões do interior e m Portugal na Época
M o d e r n a . Bracara Augusta. 38 (1984) 93-119. SILVA, A n t ó n i o Pereira
significado da acusação pessoal sacramentária no da - A questão do sigilismo em Portugal no século xviii. Braga, 1964.
que respeita ao encontro do pecador com a mediação IDEM - Teologia moral e m renovação. Didaskalia. 1 : 2 (1971) 263-
da Igreja na pessoa do sacerdote. A mensagem do -318. IDEM - A primeira s u m a portuguesa d e teologia moral e sua rela-
ção com o « M a n u a l » de Navarro. Didaskalia. 2 ( 1 9 7 2 ) 355-403.
texto da «nota» visa a situação real do povo portu- SILVA, Inocêncio Francisco da - Dicionário bibliográfico português.
guês «onde não é difícil detectar rupturas e conflitos, Lisboa, 1973. 25 vol.
que em vez de serem resolvidos pelo diálogo, o res-
peito mútuo e a justiça, se agudizam na divisão ou
então contribuem para alimentar uma resignação fa-
talista e sem esperança». Assim, teológica e pasto- CONFRARIAS. 1. Natureza e atribuições: Na pers-
ral mente, se vem interpretando e aplicando, em con- pectiva canónica, confrarias são associações de fiéis
sonância com o magistério da Igreja, a doutrina e a constituídas organicamente com o fim de exercerem
prática do sacramento da Reconciliação no findar do obras de piedade ou caridade e de promoverem o
século (v. PENITÊNCIA). culto público, aspecto que as permite diferenciar das
pias uniões*, que não contemplam esta última ver-
JOÃO FRANCISCO MARQUES tente. O Código de Direito Canónico de 1917 apenas
BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal.
reconhecia o estatuto de confraria às que se tinham
Porto; Lisboa, 1967-1971. 4 vol. ANSELMO, António Joaquim - Biblio- constituído através de um decreto formal de erecção,
grafia das obras impressas em Portugal no século xvt. Lisboa, 1926. emanado da autoridade eclesiástica competente. Ac-
BIBLIOGRAFIA cronológica da literatura da espiritualidade em Portugal:
1501-1700. Porto: Instituto de Cultura Portuguesa, 1988. BÉRIOU, Nico-
tualmente, as confrarias podem ou não ser erigidas
le - Autour de Latran IV (1215): La Naissance de la Confession Mo- desta forma, tomando, consoante o caso, a desig-
derne et sa Diffusion. In PRATIQUES de la Confession des Pères du désert nação canónica de associações públicas ou privadas.
à Vatican II: Quinze études d'histoire. Paris, 1983, p. 73-92. BETHEN-
COURT, Francisco - As visitas pastorais: U m estudo de caso (Entradas, As confrarias, cuja designação provém do étimo lati-
1572-1593). Revista de História Económica e Social. Lisboa. 19 ( 1987) no confraternitas, são também conhecidas por con-
25-35. CÓDIGO de direito canónico. Trad. port. Braga, 1983. COELHO, fraternidades, fraternidades e, principalmente, ir-
António José - O sacramento da Reconciliação. Lumen. Lisboa. 4 2
(1981) 311-314. COSTA, António Domingues de Sousa - Doutrina peni- mandades, denominação que o código reservava às
tencial do canonista João de Deus. Braga, 1956. DA MEMÓRIA dos livros pias uniões constituídas como corpo orgânico. As
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de Caminha. Porto: Centro Interuniversitário de História da Espirituali-
confrarias tinham como principais finalidades a as-
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sentimento religioso em Portugal (séculos xvi a xvtu). Coimbra, 1960.
que para a veneração do respectivo patrono e a reali-
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Fr. Valentim da Luz. Coimbra, 1975. FERNANDES, Maria de Lurdes C. - confraternal. Através dos múltiplos campos de acção
As artes da confissão: Em t o m o dos manuais de confessores do sécu-
lo xvi em Portugal. Humanística e Teologia. I I (1990). Separata. IDEM
que desenvolveram na sociedade portuguesa, pode
- D o manual de confessores ao guia de penitentes: Orientações e cami- hoje afirmar-se que as confrarias, umas mais do que
nhos da confissão no Portugal pós-Trento. Via Spiritus. 2 (1995) 47-65. outras, foram fundamentais para reforçar os elos da
GOMES, J. Pinharanda - História da diocese da Guarda. Braga, 1981.
HAHN, Alóis - Contribution à la sociologie d e la c o n f e s s i o n et autres solidariedade humana e da fraternidade cristã, garan-
f o r m e s Institutionnalisées d ' a v e u : autothématisation et processus de tindo formas de atenuar as dificuldades materiais dos

459
CONFRARIAS

homens, principalmente em situações de fome, de das melhores sínteses de critérios para distinção de
doença, de pobreza ou de cativeiro; amparando confrarias. Um deles baseia-se na forma de acesso a
crianças, inválidos e idosos; enterrando os mortos e estas associações, a qual ajuda a determinar se se
orando por eles; acolhendo peregrinos e viajantes; tratam de confrarias abertas, fechadas ou de adscri-
etc. Por outro lado, como expressão orgânica aceite ção automática, figurando nas primeiras as que ad-
pela Igreja para enquadrar a vida religiosa dos lei- mitem ingresso após a solicitação para o efeito e a
gos, elas contribuíram para o fortalecimento da vi- respectiva autorização de admissão, dada pelos ir-
vência do catolicismo, não apenas através de uma mãos. As segundas possuem um número restrito de
prática caritativa baseada no amor ao próximo como associados, que são substituídos de forma regula-
forma de assegurar a salvação individual, mas tam- mentada, geralmente após a morte ou saída de um
bém através da orientação doutrinal dos fiéis, do es- membro. As últimas são compostas de elementos
tímulo da procura dos sacramentos, do culto dos que a integram naturalmente, em virtude da sua filia-
mortos, e do exercício de outras actividades devo- ção, como por exemplo as irmandades que se identi-
cionais e piedosas. Do ponto de vista social, apesar ficam com uma determinada comunidade. Outro tipo
de muitas vezes legitimarem e adensarem as diferen- de classificação possível fundamenta-se no critério
ças existentes na sociedade, as confrarias tiveram de pertença a uma categoria social ou a várias, con-
um papel relevante na construção da identidade dos soante se trate, no primeiro caso, de confrarias hori-
vários grupos que a compunham, reforçaram os zontais, que reflectem a segmentação social comuni-
processos de integração e de coesão comunitária e tária ou, no segundo, de confrarias verticais, que a
multiplicaram os tempos, espaços e formas de so- negam simbolicamente e aceitam a presença de indi-
ciabilidade, principalmente em torno das festas e víduos com interesses sociais muito distintos. Um
celebrações religiosas. Não é ainda de menosprezar outro critério classificativo baseia-se nos níveis de
a sua capacidade de intervenção política, nomeada- integração ecológico-cultural dos irmãos e de ex-
mente através da criação de maiores oportunidades pressão da identidade colectiva assumida pela con-
de exercício do poder ao nível local, factor que mui- fraria, que pode representar os interesses dum grupo
to contribuiu para o seu sucesso. Estas característi- social, duma comunidade, duma comarca ou duma
cas do movimento confraternal acentuaram-se de região mais vasta. Maldonado chama ainda a aten-
forma diferente consoante o espaço, o âmbito crono- ção para a existência de tipos mistos de confrarias e
lógico em análise e a tipologia das confrarias a que de tipologias que se baseiam na conjugação dos cri-
nos referimos. 2. Tipologias: Existem vários tipos de térios apresentados ( M A L D O N A D O - Para compreen-
confrarias, consoante os critérios com que as classi- der, p. 8 8 - 9 0 ) . Existem ainda outros factores de pon-
ficamos. A tipologia que obtém maior aceitação en- deração que podem ser utilizados no traçado de
tre os especialistas é a que diferencia estas associa- tipologias. Gilles G. Meersseman, por exemplo, tipi-
ções a partir da sua principal função, distinguindo fica as irmandades medievas em função do meio em
desta forma as confrarias penitenciais, as caritativas, que surgem: rurais, nas paróquias rurais; urbanas,
as devocionais e as de ofícios. No primeiro caso en- nas cidades; ou abaciais, se têm por centro um mos-
contram-se as que centram a sua actividade na ex- teiro ou convento. Catherine Vincent refere ainda um
piação dos pecados, através de flagelações ou outras critério estritamente social, que separa as grandes
práticas de disciplina, à imagem e veneração do so- das pequenas confrarias, por nas primeiras se encon-
frimento de Cristo. Outrora, estas associações eram trarem elementos da alta sociedade, factor que per-
frequentes na Europa mediterrânica. No segundo mite estabelecer uma hierarquia socioeconómica en-
grupo encontram-se as confrarias que se destinam tre as irmandades ( V I N C E N T - Des charités, p. 2 8 -
sobretudo à prática da caridade cristã e da beneficên- -29). Também a legislação canónica tem contribuído
cia. No terceiro grupo situam-se as vocacionadas pa- para a classificação das entidades confraternais. As-
ra a celebração de uma devoção especial, como o sim, o actual código distingue as associações públi-
Rosário ou o Santíssimo Sacramento, bem como as cas de tiéis tendo em conta a sua abrangência geo-
que visam promover qualquer outra devoção, como gráfica e a autoridade eclesiástica de que dependem,
sucede com as associações religiosas encarregues do classificando-as em universais ou internacionais, na-
culto e da festa nos santuários. A quarta categoria cionais ou diocesanas, consoante sejam erectas pela
agrupa as confrarias de ofícios, as quais, apesar de Santa Sé, pela conferência episcopal ou pelo bispo
terem uma finalidade cultual e de assistência aos diocesano (cân. 312, 1). Não é fácil aplicar critérios
seus membros, se caracterizam sobretudo pelo refor- de diferenciação das irmandades, atendendo a diver-
ço da sociabilidade e da integração profissional. sos factores, como a dinâmica do movimento confra-
O problema da definição de tipologias tem suscitado ternal, patente nas sucessivas transformações funcio-
grande reflexão e várias propostas da parte de inves- nais das irmandades, nas mudanças de invocação ou
tigadores estrangeiros. Maurice Agulhon, que estu- na alteração do local de sede, situação que se com-
dou as formas de sociabilidade na França meridional, plexifica quando rareiam as fontes de informação ou
acentuou a diferença entre as confrarias-associação e os dados para se poderem estabelecer tipologias com
as confrarias-instituição, colocando no primeiro gru- segurança. 3. Formas de organização: Para conhecer
po as penitenciais e profissionais, e no segundo as li- a estrutura e formas de organização das confrarias é
gadas à gestão do culto, do património ou da obra de necessário recorrer aos seus estatutos, também de-
um organismo religioso, a exemplo das confrarias signados por compromissos ou regimentos. Contudo,
de âmbito fabriqueiro ( A G U L H O N - Pénitents, p. 23- muitos destes documentos, sobretudo os mais an-
-24). O espanhol Luis Maldonado apresentou uma tigos, desapareceram. Para a Idade Média, em Por-

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CONFRARIAS

tugal, em 1992, apenas se conheciam cerca de 23 corpo os capelães que eram recrutados para satisfa-
compromissos, sendo três do século xn e cinco da zer os serviços religiosos e os legados pios a que es-
centúria seguinte ( C O E L H O - As confrarias, p. 158- tas irmandades, muitas vezes, estavam obrigadas.
-159). Por outro lado, muitas irmandades nunca che- 4. Evolução histórica: 4.1. Idade Média: As raízes
garam sequer a ter estatutos. O estudo das formas de das confrarias medievais remontam aos collegia ro-
organização das confrarias deve ter em conta que es- manos, alguns deles localizados no território que
tas podem variar em função de vários factores, como actualmente constitui Portugal, e ainda às guildas
o tipo de irmandade que analisamos, o seu próprio germânicas, vocacionadas para o fomento da socia-
evoluir histórico e a época a que nos reportamos. bilidade masculina e para o reforço das relações
A análise da estrutura confraternal encontra-se faci- amigáveis entre os seus componentes. Na perspecti-
litada para o período que se segue ao final do sécu- va de Angela Beirante, é notória a influência destas
lo xix, dada a tendência para a padronização dos associações de cariz pagão nos compromissos de al-
compromissos, imposta pelo Estado e pela Igreja, gumas das mais antigas confrarias portuguesas, fac-
embora esta implique uma atenção especial às varia- tor que certamente contribuiu para a desconfiança
ções que cada caso apresenta face aos modelos em que a Igreja lhes votou nos primeiros tempos da sua
vigor na época. Contudo, as novas fórmulas, que difusão na Cristandade. Por este motivo, a Igreja
vieram retirar especificidade às irmandades, dificul- procurou enquadrar estas confrarias, a maior parte
tam por vezes o conhecimento das suas antigas es- delas, leigas e de criação espontânea, na vida dos
truturas, nomeadamente nos casos em que não pos- mosteiros e das paróquias, estabelecendo-as aí e pro-
suímos os anteriores compromissos. As designações curando canalizá-las para a difusão de um convívio e
dos órgãos confraternais e dos cargos que lhes estão de uma solidariedade de matriz cristã, onde a oração
inerentes, bem como as suas atribuições e importân- em conjunto poderia ajudar a cimentar as relações
cia, também não são uniformes, podendo estes úl- estabelecidas ( B E I R A N T E - Confrarias, p. 5-6). As
timos variar consoante o tipo de confraria, ou até no primeiras confrarias preocuparam-se sobretudo em
interior duma mesma associação religiosa, de acordo reforçar solidariedades horizontais entre membros de
com o período que abordamos. Para avaliar esta di- um mesmo corpo social, numa sociedade onde as re-
versidade, basta pensarmos que na Época Moderna o lações de natureza vertical eram predominantes, mas
chefe máximo duma irmandade podia ter o nome de não respondiam totalmente às necessidades de pro-
juiz, reitor, administrador, provedor, ou, ainda, prior, tecção dos indivíduos, e numa época em que se co-
no caso duma irmandade de clérigos. Apesar da com- meçava a acentuar a desagregação da família alar-
plexidade do tema e da necessidade de estudar o que gada. As primeiras irmandades que nos surgem
sucede caso a caso, é possível definir algumas linhas documentadas, «datáveis pelo menos do século xn,
de orientação para este período. Assim, quando exis- devem ter surgido dentro da própria Igreja, congre-
tiam, as assembleias de irmãos, também chamadas gando apenas religiosos e estendendo-se depois ao
juntas ou cabidos, vocacionadas para a resolução de mundo dos laicos. A sua finalidade inicial era rezar
casos mais importantes ou inovadores na vida das pelos mortos, confrades e benfeitores», posição que
confrarias, depois do século xvi foram gradualmente acentua o problema da salvação da alma entre as
perdendo importância em favor das mesas adminis- principais motivações associativas ( T A V A R E S - Insti-
trativas, que tinham a responsabilidade da gestão tuições, p. 102). O surto das confrarias de caridade
quotidiana destas associações. As mesas, cada vez ocorreria apenas a partir do século XIII, com muitas
mais nas mãos duma oligarquia aristocrática que ten- destas instituições a assumirem um importante papel
dia a perpetuar-se no poder, chamava a si a resolu- na criação, gestão e manutenção de pequenos hospi-
ção dos principais assuntos das confrarias. Da mes- tais ou na adopção de responsabilidades em relação
ma forma, acentuam-se na Época Moderna alguns aos já existentes. Em Lisboa, vários destes hospitais
padrões de admissão e de exclusão das irmandades, estavam controlados por confrarias de mesteres.
que condicionaram substancialmente a sua composi- Apesar do predomínio da vertente caritativa, pode
ção social. Muitos dos compromissos deste período, afirmar-se que, no final da Idade Média, a maior par-
sobretudo entre o final dos séculos xvi e xvm, apenas te das irmandades procuravam responder a uma plu-
aceitavam no seu seio cristãos com boa capacidade ralidade de funções que iam desde o fornecimento
económica, com «limpo sangue, sem raça alguma de de socorros mútuos até à prestação de auxílio espiri-
judeu, mouro, mulato, nem descendentes de outra in- tual aos seus membros e aos mais necessitados.
fecta nação», o que teoricamente subtraía destas O alargamento da esfera de intervenção assistencial
agremiações, entre outros, os cristãos-novos e os das confrarias para além do círculo restrito dos seus
mais necessitados. Em muitos casos, estavam ainda associados, aos mendigos, doentes, presos, peregri-
excluídos dos meios confraternais os menores de nos, viajantes e outros, não pode deixar de ser rela-
idade e as mulheres. Na prática, nem sempre era as- cionado com a difusão das ordens mendicantes e do
sim, pois conhecem-se várias situações onde, por ideal de ajuda aos mais pobres e carenciados. Esta
exemplo, os descendentes de judeus e as mulheres crescente abertura à sociedade encontra-se expressa
chegaram, ainda que episodicamente, a ocupar car- também na composição social das confrarias que,
gos de chefia ( P E N T E A D O - Confrarias, p. 28, 30). As cada vez mais, passavam a integrar gentes prove-
confrarias mais importantes, além dos seus mesários, nientes de diversos grupos sociais. A maioria das
dispunham ainda de um corpo de servidores, cujas confrarias portuguesas medievas foram criadas a
características diferiam também em função dos crité- partir do século xiv e localizavam-se em igrejas pa-
rios já enunciados. Entre outros, faziam parte deste roquiais e capelas próprias. Eram compostas sobre -

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CONFRARIAS

tudo dc leigos, embora pudessem admitir clérigos. de Quatrocentos. No caso das confrarias, esta inter-
Esta característica favoreceu o desenvolvimento de venção fez-se sobretudo através da elaboração de
estratégias confraternais para escapar ao controle ju- novos compromissos e da reforma dos antigos, da
risdicional eclesiástico e subtrair o património das inventariação dos seus bens e propriedades em vá-
associações da sua alçada. Uma constante preocupa- rios pontos do país, do crescente controle das contas
ção que, por vezes, obrigava as irmandades a pro- das irmandades por parte dos oficiais régios e da co-
curarem o apoio da Coroa, factor que facilitou a sua dificação dos seus métodos de actuação, traduzida
caminhada para a submissão à tutela régia. De acor- pela publicação do Regimento como os contadores
do com a escassa documentação que chegou até nós das comarcas hão de prover sobre as capelas, hos-
para o período medieval, em termos geográficos, en- pitais, albergarias, confrarias (1514). Mas a face
tre os séculos xii e xv, as confrarias parecem ter-se mais visível desta intervenção da Coroa foi, contudo,
concentrado no Noroeste do país, onde se localizava o apoio e o estímulo do monarca à difusão das ir-
a maior densidade populacional, e no Centro-Sul, so- mandades de misericórdia por todo o país, a partir
bretudo na área dos rios Mondego e Tejo, e nas pro- do modelo da de Lisboa, criada por D. Leonor, com
ximidades de Lisboa, onde o desenvolvimento urba- o apoio do rei (1498). Como salientou Isabel dos
no se tinha feito sentir de uma forma mais intensa. Guimarães Sá, a expansão das Misericórdias, asso-
Com efeito, as confrarias parecem ter tido terreno ciações com uma acentuada vocação de auxílio cari-
favorável ao seu aparecimento nas áreas mais po- tativo, surgiu como o produto da vontade política de
voadas. Em Portugal, é possível comprovar a sua D. Manuel que, em 1499 e 1500, enviou várias «car-
presença, desde cedo, em cidades e vilas como tas às câmaras municipais exortando-as a seguir o
Guimarães, Coimbra, Santarém, Lisboa e Évora exemplo de Lisboa», procurando assim «dotar o rei-
( C O E L H O - As confrarias, p. 151-153). No que diz no de instituições, se não totalmente homogeneiza-
respeito aos meios rurais, para os quais os estudos das, pelo menos obedecendo a um padrão comum,
monográficos são mais escassos, conhecem-se me- fornecido pelo compromisso da Misericórdia de Lis-
lhor os casos localizados nos arredores de Torres boa» (1516) (Sá - Quando o rico, p. 59). A implan-
Novas e Guimarães, onde as confrarias possuíam tação destas irmandades nas vilas e cidades portu-
uma certa vitalidade. Em 1502, os oficiais da Coroa guesas, facilitada pelos privilégios concedidos pelo
recensearam vinte confrarias torrejanas, sendo sete monarca, fez-se muitas vezes à custa da supressão de
da vila e treze do seu termo, onde se localizavam as confrarias secularmente estabelecidas ao nível local.
mais antigas. A maior parte delas tinha sido fundada Noutros casos, estas confrarias coexistiram, mas a
no século xiii ( L O P E S - A confraria, p. 10-11), o que presença das Misericórdias retirou-lhes prerrogati-
nos obriga a matizar a tese de Catherine Vincent, se- vas, como a de poderem conduzir os mortos à sua
gundo a qual as confrarias começaram por surgir nas sepultura, que era exclusiva das irmandades leonori-
urbes, alargando-se depois, por mimetismo, aos nas, facto que deu origem a importantes conflitos
meios rurais ( V I N C E N T - Les Confréries, p. 43-44). institucionais. Assim sucedeu em Viana do Castelo,
A partir de muitos dos compromissos aprovados no com o confronto que opôs a Misericórdia local à
século xiv e, principalmente, na centúria seguinte, é Confraria do Nome de Jesus dos Mareantes, o qual
possível constatar uma crescente motivação devocio- obrigou esta última a uma espécie de recomposição
nal nas irmandades portuguesas, bem como o incre- orgânica, com a abertura, ainda que não definitiva,
mento de novas formas de culto, como resposta às a membros de todos os grupos sociais, como forma
grandes angústias religiosas do conturbado final da de concorrer com a Misericórdia e superá-la (MO-
Idade Média. Foi neste contexto que se verificou o REIRA - Os mareantes, p. 99). Pode afirmar-se que,
surto de diversas confrarias dedicadas à Vera Cruz, neste sentido, as irmandades leonorinas reduziram
moda piedosa originária do Norte da Europa, a o espaço de manobra às restantes confrarias locais,
exemplo da de Coimbra e da dos mercadores de Bor- em matéria caritativa, remetendo o seu domínio de
gonha, em Lisboa ( G O M E S - Notas, p. 93). 4.2. Idade implantação para a esfera devocional, obrigando-as a
Moderna: Os tempos modernos podem ser caracteri- desenvolver as suas actividades sobretudo no quadro
zados, em primeiro lugar, por uma maior intervenção dos espaços paroquiais e dos centros de peregrina-
da Coroa no domínio das confrarias, nomeadamente ção. Esta estratégia teve o aval da Coroa, que facili-
na definição dos seus padrões de organização e fun- tou a passagem gradual da maior parte dos hospitais
cionamento. Este aspecto está bem patente na refor- do reino para as Misericórdias. Numa boa parte dos
ma das instituições hospitalares e de assistência ma- casos, os municípios e as confrarias que os detinham
terial e espiritual desenvolvida desde o reinado de viram-se desapossados deles ainda no século xvi,
Afonso V e, de modo mais sistemático, por D. Ma- embora em algumas localidades tenham existido
nuel, através do estabelecimento de hospitais gerais, hospitais que permaneceram ainda durante muito
fundados com o patrocínio régio, a partir da incorpo- tempo ligados a irmandades, como sucedeu no Por-
ração dos pequenos hospitais das confrarias, como to, com o da Confraria de Nossa Senhora da Silva.
sucedeu em Lisboa com o Hospital de Todos-os- Neste contexto, foi enorme o sucesso da implantação
-Santos. Foram no mesmo sentido as intervenções da das Santas Casas, com uma centena de Misericórdias
Coroa para regular e fiscalizar a gestão destas insti- sedeadas em território português, em apenas um sé-
tuições, sob o pretexto de as tornar mais eficazes na culo. Este êxito permitiu, em primeiro lugar, um
prossecução dos seus fins e anular situações de ne- alargamento das possibilidades de protagonismo das
gligência no cumprimento das obrigações pias e cul- elites locais, que muitas vezes alternavam o acesso
tuais, cada vez mais frequentes ao longo da centúria aos cargos destas importantes irmandades com a

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CONFRARIAS

Bandeiras da Misericórdia do Porto, óleos sobre tela, século xvm, pertencentes à Santa Casa da Misericórdia do Porto.

ocupação de outros, nomeadamente nos órgãos ca- devoções do Santíssimo Sacramento, das Almas do
marários. Por outro lado, permitiu ainda um maior Purgatório e de Nossa Senhora do Rosário. O apare-
reconhecimento da capacidade e do poder de inter- cimento de muitas destas associações deveu-se à ini-
venção do rei nas confrarias, e uma crescente procu- ciativa do clero, interessado em contrariar os argu-
ra da sua protecção e dos seus privilégios como meio mentos protestantes, baseados na justificação pela
de garantir um futuro menos incerto aos organismos fé, na recusa da indispensabilidade dos sacramentos
de sociabilidade religiosa. No caso das Misericór- e da veneração da Virgem. Com efeito, as autorida-
dias, a afirmação da autoridade da Coroa foi levada des eclesiásticas não só se esforçavam por instituir
a cabo com sacrifício da jurisdição eclesiástica. Com as confrarias mais necessárias à prossecução desses
efeito, durante o Concílio de Trento, «a instâncias da fins, como ainda quase obrigavam os paroquianos a
delegação portuguesa, criou-se a figura das confra- aceitá-las, sustentá-las, e facultar-lhes as condições
rias sob protecção régia, posteriormente transferida necessárias para que pudessem promover, com dig-
para a legislação portuguesa» (SÁ - As Misericór- nidade e esplendor, os fundamentos da crença cató-
dias, p. 7), que as subtraía da visitação eclesiástica lica. O sucesso destas novas formas de devoção
no espiritual. Esta figura jurídica estendia-se ainda a confraternal, algumas delas introduzidas antes do
algumas das confrarias devocionais mais importan- Concílio de Trento, parece ter sido conseguido em
tes como a da Senhora da Merceana, da Senhora de detrimento de outros cultos, como os que se relacio-
Nazaré ou dos Remédios de Lamego ( M O N T E I R O - navam com o santoral. Mas esta renovação das invo-
Código, p. 110). Da parte da Igreja, apenas a partir cações afectou também as confrarias marianas. No
da constituição Quaecumque, de 1604, se procurou concelho da Feira, por exemplo, o aumento do nú-
regular e controlar estas instituições de modo mais mero de irmandades, no século xvn, fez-se à custa
efectivo. Este documento obrigava as novas confra- das que estavam centradas no culto da Virgem, as
rias a formalizar a sua erecção e a obter a aprovação quais se viram preteridas a favor da implementação
do seu compromisso perante o ordinário, para serem das irmandades do Santíssimo Sacramento. Uma ou-
por ele reconhecidas. Foi também a partir do sécu- tra especificidade da Idade Moderna foi a supressão
lo xvii que a Coroa começou a acentuar a sua preten- e a reorientação das irmandades do Espírito Santo,
são de afastar as confrarias da alçada eclesiástica, que existiam em número asinalável nos finais do sé-
através de legislação específica e de uma prática con- culo xv. Nos coutos de Santa Maria de Alcobaça,
creta nesse sentido, sobretudo por intermédio dos pro- por exemplo, várias das associações religiosas, ermi-
vedores das comarcas ( A B R E U - Memórias, p. 233- das e hospitais da invocação do Divino Espírito San-
-234). Uma das características mais marcantes do to foram aglutinadas pelas novas irmandades da mi-
movimento associativo português, entre os séculos sericórdia, à semelhança do que se passou em outros
xvi a xvm, foi o surto duma quantidade imensurável pontos do país. Noutros casos, o desaparecimento
de confrarias e irmandades, esmagadoramente sedea- das irmandades do Espírito Santo favoreceu a intro-
das em paróquias, a maior parte delas centradas nas dução das novas devoções tridentinas. Uma outra so-

463
CONFRARIAS

lução consistiu na sua anexação às confrarias do rios factores criaram sérias dificuldades à sobrevi-
Santíssimo Sacramento. Nas paróquias onde os ir- vência das confrarias portuguesas. O primeiro foi o
mãos do Divino Espírito Santo resistiam mais às decréscimo generalizado dos seus rendimentos, devi-
intenções de supressão por parte das autoridades ecle- do a sucessivas más gestões, com gastos superiores
siásticas, estas encarregavam-se de esvaziar o signi- às receitas, nomeadamente na promoção dos esplen-
ficado social de determinados ritos festivos que habi- dores do culto. Outra causa deste decréscimo foi a
tualmente promoviam, como os bodos ( P E N T E A D O - falta de pagamento dos empréstimos de capital a que
Confrarias, p. 37-38). A Igreja interviu assim no estas associações procediam, pois desde meados do
estabelecimento do quadro de confrarias ao nível século xvii que se tinham vindo gradualmente a as-
paroquial. Mas foi mais longe, ao estimular o esta- sumir como instituições de crédito, cedendo dinheiro
belecimento de uma hierarquia dos cultos, a qual a juros (normalmente, 5 %). No caso da Confraria da
encontrou visibilidade ao nível da diferenciação das Senhora de Nazaré, em 1781-1785, os quantitativos
confrarias. Esta diferenciação, quantas vezes reflexo emprestados e os seus réditos constituíam perto de
da intenção eclesiástica de privilegiar determinadas metade das suas receitas. Mas desde 1770 que se
associações e formas de religiosidade, obtinha tradu- avolumavam as dificuldades para receber todos os
ção no modo como se estruturava o espaço religioso, capitais emprestados, tomando-se a cobrança das dívi-
com os cultos mais importantes a decorrerem no al- das o principal problema da instituição ( P E N T E A D O -
tar principal e nos altares do lado em que era procla- Peregrinos, p. 350-351), sobretudo por desleixo e
mado o Evangelho. Contudo, se a Igreja interferiu ineficácia dos mesários na cobrança, que muitas ve-
no escalonamento das associações religiosas, a Co- zes a evitavam, para proteger os seus apaniguados.
roa também não deixou de o fazer, pois tomava parte Nas Misericórdias, acentuam-se os sinais de crise a
activa na resolução de conflitos de precedências, ar- nível financeiro, com o cargo de provedor a signifi-
bitrava casos de supressão ou anexação de irmanda- car «gerir dívidas e créditos malparados» (SÁ -
des, etc. A graduação da importância das confrarias Quando o rico, p. 84). A estes problemas somaram-
numa comunidade dependia de diversos factores, co- -se os efeitos da legislação pombalina, que limitava
mo a sua antiguidade, o conjunto dos seus rendimen- a extensão dos bens imóveis afectos a legados pios e
tos, o estatuto social dos seus administradores, a lo- obrigava à denúncia das capelas vagas a favor da
calização e o esplendor dos espaços de culto, etc. Coroa. Ao mesmo tempo, acresciam as dificuldades
Isabel dos Guimarães Sá defende que as Misericór- das confrarias para conseguirem cumprir as múlti-
dias, até finais do século xvin, foram as mais impor- plas obrigações de missas e capelas instituídas, pro-
tantes irmandades estabelecidas nas principais loca- vocadas sobretudo pela desvalorização dos rendi-
lidades do país, aceitando apenas a elite local e mentos que lhe estavam vinculados, o que contribuía
relegando para outras confrarias os indivíduos que para inibir a realização de novos legados e retirar-
não poderiam ter acesso a esta agremiação (SÁ - As -lhes importância social. Constata-se uma menor ca-
Misericórdias, p. 2). Esta situação foi amplamente pacidade de aliciamento de benfeitores. Muitos deles
comprovada para Setúbal. Mas no antigo concelho passaram a confiar nos familiares para a execução
da Pederneira (Nazaré), por exemplo, a opulência da das suas últimas vontades, preterindo as estruturas
Misericórdia não se comparava com a da Confraria confraternais ( A R A Ú J O — A morte, p. 322). O início da
da Senhora de Nazaré, a qual administrava o impor- cobrança da décima sobre os rendimentos das irman-
tante santuário mariano do Sítio, e veio posterior- dades completava este cenário de atrofiamento. Em
mente a aglutinar esta Santa Casa. Pode afirmar-se consequência, os cargos das mais importantes con-
que na primeira metade do século xvin a prática as- frarias começam a perder atractivos para as elites lo-
sociativa dos católicos e as confrarias pareciam estar cais, que os deixaram de procurar com tanta insistên-
a atravessar um bom momento. Só em Lisboa Oci- cia, democratizando-se o acesso àqueles lugares. Ao
dental, em 1719, existiam 143 irmandades que parti- mesmo tempo, baixou o número de entradas de no-
cipavam na Procissão do Corpo de Deus e em toda a vos confrades, sobretudo os provenientes dos grupos
cidade, em 1742, este número ascendia a 202 (LOU- sociais mais prestigiados. A consequente diminuição
SADA - Espaços, vol. 1, p. 251-252). A maior parte de receitas reduziu as possibilidades de uma acção
delas eram reconhecidas socialmente pela sua inter- caritativa mais relevante por parte das confrarias, ou
venção nas cerimónias religiosas fúnebres e pela sua mesmo a realização de grandes festejos públicos.
gestão dos cuidados com a alma dos mortos. Mas a Por toda a parte começavam a soçobrar confrarias,
densidade das confrarias variava geograficamente. principalmente fora dos meios urbanos. Do ponto de
Uma análise comparativa efectuada às irmandades vista político, constatou-se ainda um acréscimo do
da região de Fundão, Alcobaça, Gaia e Lisboa, em controle das confrarias por parte da Coroa. A provi-
1758, num universo superior a 300 associações espa- são de 6 de Junho de 1785 considerava de jurisdição
lhadas por 106 paróquias, permitiu apurar que a régia todas as confrarias que não mostrassem ser de
densidade destas associações por paróquia oscilava fundação episcopal, o que muitas vezes lhes era difí-
entre 1,8 (Fundão) e 4,2 (Alcobaça). Contudo, no cil de comprovar. Para além disso, necessitavam de
primeiro caso, as freguesias menos populosas, com obter a autorização superior para a realização de em-
um máximo de cem vizinhos, não chegavam a ter, préstimos monetários ou para a aceitação de legados
em média, uma irmandade, constatando-se assim a pios. Alargava-se o braço tentacular do Estado às
existência de populações que não possuíam este tipo confrarias, através da intervenção dos provedores e
de enquadramento social e religioso ( P E N T E A D O - do desembargo do paço. Mesmo as que tinham con-
Confrarias, p. 23). Na segunda metade do século, vá- seguido alguns privilégios legais, como as Miseri-

464
CONFRARIAS

ZERRA - Os estrangeiros, vol. 2, p. 56). O rol das crí-


ticas estendia-se ainda á prática de uma caridade que
muitos consideravam encorajadora da mendicidade e
desincentivadora do trabalho. As Invasões France-
sas, no dealbar do século xix, e as guerras entre ab-
solutistas e liberais, com o consequente depaupera-
mento do património de muitas irmandades e a
desestruturação de outras, ajudaram a traçar um ca-
minho que foi de declíneo para muitas destas asso-
ciações religiosas. 4.3. Idade Contemporânea: A im-
plantação do regime liberal no país provocou
algumas das mais profundas alterações na vida das
confrarias portuguesas. Talvez as primeiras a sofre-
rem os efeitos da acção do novo regime tenham sido
as confrarias dos ofícios. A extinção da estrutura
corporativa dos mesteres e a queda dos seus privilé-
gios, em 1834, contribuíram decisivamente para o
seu enfraquecimento. A Confraria do Rei Salvador
do Mundo dos calafates de Lisboa, por exemplo, que
desde o final de Setecentos somava dívidas assinalá-
veis, e que vira reduzir o número de irmãos antes de
1824, conseguira garantir a realização da sua festa
até 1830. Mas as faltas de pagamento no Arsenal e a
obrigatoriedade do serviço militar para os seus mem-
bros, após 1834, repercutiram-se no seu funciona-
mento. A confraria começou por implementar, em
1836, algumas medidas de saneamento económico,
conseguiu mudar a sua sede para uma capela no
claustro da catedral, em 1841, e resolveu alargar as
condições de entrada, em 1853, admitindo estranhos
ao ofício, sem que estas soluções tenham impedido a
sua extinção, consumada em 1854 com a entrega dos
seus bens na sé (IANTT. Col. Olisiponense, 680).
Este caso permite-nos destacar alguns aspectos.
O primeiro é a tendência destas associações para a
Nossa Senhora da Misericórdia, óleo sobre madeira,
passagem de um sistema de adscrição automática pa-
século xvii, pertencente à Santa Casa da Misericórdia do ra um de admissão aberta, alargando ao exterior do
Porto. grupo socioprofissional a possibilidade de entrada,
como estratégia de sobrevivência. Este tipo de alte-
rações procurava ainda responder à legislação que
córdias e as irmandades do Santíssimo, no início do ordenava o fim da necessidade de ser incorporado
século xix, já os tinham perdido ( A B R E U - Memórias, em alguma confraria, compromisso ou irmandade
p. 245, 279). Reduzia-se o papel das principais con- para exercer uma determinada profissão, como tinha
frarias nas estratégias políticas locais, com o Estado chegado a acontecer. Por último, o exemplo que citá-
a interferir na eleição dos seus mesários, procedendo mos remete-nos para o facto de muitas das confra-
frequentemente à sua nomeação directa, como suce- rias de ofícios terem já dificuldades de sobrevivência
deu na Confraria da Senhora de Nazaré, a partir de no final do Antigo Regime. Neste sentido, o Libera-
1780, e em diversas Misericórdias do país. A estes lismo apenas apressou a sua extinção, como sucedeu
factores de crise no movimento confraternal portu- com a secular Confraria de Santa Maria de Sá dos
guês adicionavam-se outros. O terramoto de 1775 pescadores e mareantes de Aveiro, decadente no
tinha contribuído para a desactivação de várias ir- princípio de Oitocentos e suprimida em 1855 ( N E V E S -
mandades no país, nomeadamente na capital, con- A confraria, p. 23). As confrarias de ofícios que ti-
firmando a tendência para o decréscimo do número veram de lutar pela sua continuidade sofreram, em
destas associações ( L O U S A D A - Espaços, vol. 1, vários pontos do país, a concorrência das irmanda-
p. 252). Por outro lado, sobretudo nos meios urba- des paroquiais que, com o auxílio dos párocos, pro-
nos, começavam a surgir novos modos de sociabili- curaram aproveitar-se da sua penosa situação para
dade, atractivos e concorrenciais. A tudo isto junta- captarem os seus bens, como aconteceu com a ir-
vam-se os efeitos erosivos da crítica iluminista, mandade dos livreiros, em Lisboa e com a do Corpo
centrada sobre os excessos provocados pelas festas Santo de Massarelos, no Porto, ambas espoliadas
das irmandades, geradores de distúrbios sociais, o pelas suas congéneres do Santíssimo Sacramento
número de dias que elas roubavam anualmente ao (COMPROMISSO, p. 40 e APONTAMENTOS, p. 40). À medi-
trabalho, e os seus gastos excessivos que, como de- da que ocorria o desaparecimento de boa parte das
fendeu Lima Bezerra, em 1791, poderiam ser melhor antigas confrarias de ofícios, os trabalhadores tive-
aplicados em «hum fundo para ajudar a sustentar os ram de recorrer a colectas esporádicas para respon-
pobres da Parochia, e a sua Escola Patriótica» (BE-

465
CONFRARIAS

der às necessidades dos colegas em caso de doença, de superintendência das novas autoridades civis,
empobrecimento, invalidez ou morte de familiares. com o objectivo de conseguir uma correcta gestão
Contudo, a incerteza do método tornou imperativa a das irmandades e evitar as «fraudes e descaminhos»
organização dos grupos profissionais para estes fins, que nelas ocorriam ( M O N T E I R O - Código, p. 18, 22,
a qual passou, entre outros, pelo recurso à criação de 33). A portaria de 23 de Junho de 1852 e outros di-
associações mutualistas (PEREIRA - Elementos, p. 1 8 7 ) . plomas que se seguiram codificaram todas as forma-
A maior parte delas foram fundadas entre as décadas lidades que, do ponto de vista estatal, deveriam ser
de 1850 e 1870, substituindo, em diversos casos, as cumpridas no processo de organização ou reforma
antigas irmandades, como sucedeu com a Associa- dos estatutos das irmandades. Obrigavam, entre ou-
ção de Classe dos Sapateiros ( 1 8 6 2 ) (ex-Confraria tros, a que estes documentos reguladores da vida das
de São Crispim), com o Compromisso Marítimo de irmandades especificassem as atribuições das suas
Vila Real de Santo António ( 1 8 6 6 ) e, provavelmen- mesas e oficiais; que estas levassem à aprovação ré-
te, com a Associação Fraternal dos Calafates Lisbo- gia as transacções de imóveis que pretendessem
neneses ( 1 8 6 2 ) ( R O S E N D O - O mutualismo, p. 2 8 2 , efectuar; que existindo sobras na sua gestão, elas
284, 288). Este tipo de associações atraiu ainda ou- fossem aplicadas a actos de beneficência; que em ca-
tros tipos de irmandades. À medida que os organis- so de necessidade estas corporações subsidiassem o
mos de carácter mutualista se implantavam, acen- ensino primário; que os seus devedores não pudes-
tuava-se o decréscimo do número de confrarias de sem ser escolhidos para as mesas administrativas;
ofícios, desadequadas às novas necessidades sociais. que nos seus processos eleitorais não se procedesse a
Das 160 irmandades e ordens terceiras recenseadas distinções de âmbito social nem se escolhesse forço-
pelo Governo Civil de Lisboa em 1888, a maior par- samente o pároco da freguesia; que as mesas cessan-
te delas de âmbito devocional, apenas uma escassa tes não pudessem nomear as suas sucessoras e que as
minoria permanecia ligada, pelo menos na desig- escrituras de mútuo fossem devidamente regista-
nação, a um grupo socioprofissional, como o com- das, para maior controle dos dinheiros emprestados
provam as referências às confrarias da Senhora da ( M O N T E I R O - Código, p. 34-36). Os resultados difi-
Encarnação dos cortadores, de Nossa Senhora-a- cilmente poderiam ser melhores. Em 1861, das 8704
-Franca dos cerieiros, do Senhor Jesus e Senhora da irmandades e confrarias existentes no país, apenas
Piedade dos serigueiros, de Santa Maria Egipcíaca 501 não possuíam estatutos ( C A S C Ã O - Vida, p. 541).
dos archeiros, de Santo Elói dos ourives do ouro, e
de Santa Catarina dos livreiros. A maior alteração ao
funcionamento das confrarias, no século xix, viria a
ser provocada pelo aumento da sua sujeição em rela-
ção às autoridades civis. Este aspecto foi particular-
mente evidente a partir da publicação do Código Ad-
ministrativo de 1842. Em primeiro lugar, o papel
fiscalizador destas associações, reservado desde
1832 aos administradores do concelho, bastante pró-
ximos dos jogos de interesses locais, passou para as
mãos dos governadores civis, legítimos representan-
tes do poder executivo nos distritos e menos permis-
sivos. Em segundo lugar, a regulação da prática ad-
ministrativa, religiosa e beneficente das confrarias
passava a efectuar-se através de compromissos for-
çosamente aprovados pelas referidas autoridades.
Com efeito, a portaria de 30 de Dezembro de 1852
estabelecia que as novas irmandades eram obrigadas
a requerer ao governo a aprovação dos seus estatu-
tos, que deveriam estar adequados às leis gerais, e
ainda uma licença para se constituírem, sem a qual
não se poderiam reunir. No caso das associações de
fiéis já existentes, passavam a ser consideradas ile-
gais todas as que não tivessem compromisso aprova-
do pelo governo ou pelo prelado diocesano, com as
consequências que daí advinham, de que a maior era
a possibilidade de extinção involuntária. Na prática,
os católicos reunidos nas confrarias estavam coagi-
dos a obterem o aval do Estado para validar os seus
compromissos, pois a autoridade eclesiástica não era
considerada suficiente para isentá-los da intervenção
dos oficiais régios ou para legitimar esta forma de
associativismo. Ganhava força, entre nós, a tese jurí-
dica de que a aprovação episcopal não poderia ser
impeditiva da «soberania temporal do Reino». Esta
deveria ser exercida através de medidas inspectivas e Imagem do milagre de Nossa Senhora da Nazaré a
D. Fuas Roupinho. Gravura, século xvm.

4 66
CONFRARIAS

A obrigatoriedade legal de aprovação dos estatutos proposta tinha uma lógica evidente, pois apenas as
pelos governadores civis e a sua superintendência confrarias de Nossa Senhora de Nazaré e da Guia,
sobre as confrarias acabou por contribuir para a se- sedeadas em santuários, aproveitando os recursos
cundarização da autoridade eclesiástica sobre estas provenientes das grandes romarias e dos empréstimos
associações. Foi neste contexto que se produziu a a juros, tinham rendimentos suficientes para distribuir
governamentalização da maior Misericórdia do país, pelo distrito ( M A C E D O - Estatística, p. 258). Com efei-
a de Lisboa, em 1851. Para o Ministério do Reino e to, pode-se afirmar que, na maior parte dos casos, a
para a jurisprudência nacional, estas associações situação era de asfixia económica das pequenas con-
eram, cada vez mais, entendidas como de «natureza frarias. No concelho de Bragança, de 22 irmandades
exclusivamente civil». A Igreja ripostava, defenden- recenseadas num inquérito estatal, em meados do sé-
do que as confrarias não poderiam ser instituídas culo xix, apenas 4 possuíam rendimentos acumula-
sem o consentimento da autoridade eclesiástica e re- dos superiores a 2000 réis. Cerca de 40 % dos rendi-
vindicando para si a faculdade de fiscalizá-las (SOU- mentos globais concelhios pertenciam à Confraria de
SA - Direito, p. 345). O debate prolongou-se até ao Santo Cristo, que administrava o Santuário do Outei-
fim da vigência da Monarquia Constitucional mas, ro. Este panorama foi agravado com o estabeleci-
ainda em 1909, a erecção canónica de confrarias não mento de um quadro legal que aumentou a agonia fi-
tinha validade sem os estatutos serem previamente nanceira da maior parte das associações religiosas.
aprovados pelas autoridades públicas. Controlados Segundo o Código Civil, as confrarias estavam im-
os compromissos e o processo da sua elaboração, o pedidas de adquirir bens imobiliários, bem como de
Estado dominava também as funções sociais das ir- aceitar a sua doação, a não ser que efectuassem a sua
mandades, acabando por redireccioná-las para as conversão em fundos públicos consolidados. Excep-
áreas que pretendia fomentar. Esta acção era comple- tuavam-se desta obrigação os bens necessários ao
mentada através da legislação que vinha especificar exercício das funções confraternais, cujo critério era
os sectores e as condições em que as confrarias po- sempre aferido pelo governador civil. Esta situação
deriam ou não aplicar os seus rendimentos. De acor- dificultava a vida destas corporações, tornando-as
do com o Código Civil de 1867, segundo o qual as ainda mais dependentes do Estado, sobretudo em si-
confrarias eram entendidas como pessoas morais tuações de dificuldade económica, pois eram obriga-
de utilidade pública, destinadas à prática de actos de das a ter a sua autorização para a venda dos seus tí-
piedade e de beneficência, os seus capitais deveriam tulos ou inscrições de dívida pública. Por outro lado,
ser aplicados na causa pública, e não ter em vista «a pelo menos desde a portaria de 4 de Setembro de
realização de interesses materiais», como o entesou- 1843 que os bens adquiridos pelas irmandades, sem
ramento ( S O U S A - Direito, p. 346). As consequências licença da Coroa, ficavam a pertencer à fazenda ré-
desta política foram mais evidentes no caso das con- gia e que, desde a lei de 22 de Junho de 1866, a acei-
frarias devocionais, obrigadas legalmente a aplicar, tação de dádivas de foros e censos referentes a pré-
pelo menos, um décimo do seu rendimento em acti- dios rústicos e urbanos ficava sujeita às leis da
vidades de beneficência pública. Este mecanismo desamortização. Além destas limitações, as confra-
de coacção estatal encontrava-se facilitado pela ca- rias sofriam também restrições no que diz respeito à
pacidade de fiscalização e de punição exercida pelos aceitação de bens de heranças por via testamentária,
governadores civis sobre os orçamentos e as contas estando apenas isentas desta medida as irmandades
destas agremiações, realizados segundo padrões ri- leonorinas, por não serem consideradas instituições
gorosos e oficiais. No caso de incumprimento dos de criação eclesiástica ( M O N T E I R O - Código, p. 75).
orçamentos aprovados ou de «má gestão económi- Este caso permite realçar o estatuto privilegiado al-
ca», tinham a faculdade de suspender o mandato das cançado pelas irmandades de beneficência, nomea-
mesas das confrarias e nomear comissões adminis- damente as Misericórdias, bem como a distinção
trativas da sua responsabilidade e confiança. Não legal que se gerou entre estas e as confrarias devo-
era, aliás, rara a intervenção dos governadores civis cionais, durante o Liberalismo ( B I G O T T E - Situação,
no sentido de «corrigirem» verbas previstas para fes- p. 43). Mas o cerco ao património das confrarias foi
tividades religiosas, canalizando-as para a promoção mais longe. Em caso de extinção, estavam proibidas
do ensino, com a consequente perda do esplendor de entregar os seus bens e valores a outra congénere,
dos actos de culto das confrarias. Desde a década de mesmo que esta se instituísse debaixo de idêntica
1840, pelo menos, que esta concepção da gestão dos designação. Os bens em referência deveriam passar
dinheiros das irmandades era dominante entre as au- para algum estabelecimento de beneficência conce-
toridades públicas. O governador do distrito de Lei- lhio ou para a junta de paróquia, sendo considerados
ria, por exemplo, pronunciava-se em 1856 a favor de pertencentes ao Estado. Neste contexto, eram raras
uma maior aplicação das «sobras» das irmandades as confrarias que poderiam demonstrar pujança eco-
na criação de escolas primárias e no «progresso litte- nómica e as poucas que o faziam eram muitas vezes
rario e civilisador» das gentes, o que permitiria tam- transformadas em bancos de crédito agrícola ou in-
bém elevar a qualidade da sua administração, pois dustrial, por indicação do governador civil, como su-
nas freguesias rurais muitos mesários não sabiam ler cedeu com a Confraria/Real Casa de Nossa Senhora
nem escrever, ficando dependentes do pároco. Por de Nazaré, a partir de 1855, e com a Misericórdia de
outro lado, defendia que a distribuição dos exceden- Viana do Castelo que, entre 1841 e 1873, efectuou
tes deveria ser alargada para além do quadro paro- um número elevado de empréstimos a pequenos to-
quial, em benefício do distrito, segundo as priorida- madores. Tal como no passado, os problemas econó-
des traçadas no governo civil. No caso de Leiria, esta micos da maior parte das confrarias, acelerados pela

467
CONFRARIAS

desvalorização monetária e associados à redução das de reacção católica ao processo de descristianização


obrigações das missas dos legados, contribuíram pa- e anticlericalização da sociedade, merece destaque o
ra diminuir a importância que muitas delas ainda ti- acréscimo do número de pedidos de protecção real
nham na esfera cultual, ao mesmo tempo que provo- por parte das principais confrarias, boa parte delas
caram a erosão da generosidade dos fiéis, agravando sedeadas em centros de peregrinação, um dos espa-
a sua situação. Estes factores, afectando a capacida- ços simbólicos máximos do vigor católico nos últi-
de de sobrevivência destas associações de fiéis, e mos anos da Monarquia, e da conjugação de esfor-
contribuindo para o arrefecimento do fervor religio- ços entre a Coroa e a Igreja para a resistência aos
so, acabaram por conduzir muitas delas à extinção. avanços republicanos (v. SANTUÁRIOS). Entre as con-
No distrito de Viana do Castelo, onde o catolicismo frarias que obtiveram a protecção régia neste período
tinha, apesar de tudo, uma grande vitalidade, consta- contavam-se as da Senhora do Sameiro (1888), da
tou-se, entre 1861 e 1871, uma quebra de 2 4 % no Senhora da Agonia de Viana do Castelo (1890),
número de irmandades ali existentes. A partir de da Senhora do Rosário do Barreiro (1890) e da Se-
meados da década de 1880, na área urbana de Coim- nhora da Rocha de Carnaxide (1898). Com a implan-
bra, assistiu-se também ao decréscimo de irmãos tação da República, em 5 de Outubro de 1910, as
inscritos nas confrarias, facto que confirma uma me- «reais confrarias» ligadas aos principais santuários
nor capacidade de atracção sociorreligiosa destas as- foram das primeiras a serem afectadas. Algumas fo-
sociações, a que não foi alheio o progresso das ram extintas, como sucedeu em Meca (Alenquer),
ideias laicizantes ( C A S C Ã O - Vida, p. 541). No século com a Real Irmandade de Santa Quitéria. Outras, ao
xix assistiu-se, pois, ao desaparecimento duma parte abrigo de um decreto de 28 de Outubro que permitia
significativa das irmandades anteriormente existen- aos governadores civis dissolver as antigas mesas e
tes. Na paróquia dos Milagres (Leiria), por exemplo, nomear comissões administrativas, viram os seus
todas as confrarias de Antigo Regime, excepto a do cargos mais importantes ocupados por republicanos,
Santuário do Senhor dos Milagres, sucumbiram no que procuraram desmantelar os elos que as ligavam
período que antecedeu a instauração da República à Monarquia. Muitas destas confrarias reconverte-
( L A C E R D A - Breves, p. 62). Muitas tiveram de se as- ram as suas principais atribuições, procurando res-
sociar para poderem subsistir. Na capital, em 1888, ponder a necessidades sociais mais prementes,
pelo menos 25 % das confrarias paroquiais tinham sobretudo no campo da instrução pública e da assis-
mais do que uma invocação, sendo de supor que na tência social. Este processo foi geralmente acompa-
esmagadora maioria dos casos se tratava do resulta- nhado de uma renovação dos estatutos e de uma mu-
do de uma aglutinação de irmandades, por razões de dança de designação: a Confraria/Real Casa de
sobrevivência. Do ponto de vista da dinâmica do Nossa Senhora da Nazaré passava a denominar-se
movimento confraternal, a centúria de Oitocentos Casa da Nazaré e a sua congénere de Nossa Senhora
pode ainda ser caracterizada pelo aparecimento de da Piedade da Merceana passava a Associação de
algumas associações religiosas ligadas a novas ten- Beneficência da Merceana. Na Irmandade da Senho-
dências devocionais, como as confrarias do Imacula- ra dos Remédios de Lamego, por exemplo, os novos
do Coração de Maria, que surgiram em Portugal de- estatutos contemplavam ainda, além dos fins religio-
pois de 1842, na esteira da grande arquiconfraria sos e beneficentes, objectivos «civis», no âmbito da
criada no Porto pelo padre Pereira da Silva, e preten- promoção turística, comprometendo-se a mesa a fa-
diam ser uma forma de reacção dos fiéis ao crescen- zer «do Monte dos Remcdios uma estancia de ve-
te anticlericalismo e a um mundo considerado hostil, rão» com parque, hotel e festival anual, por ocasião
onde os valores católicos e religiosos perdiam terre- das festas da Virgem ( C O M P R O M I S S O , p. 7-9). Numa
no. Como notou Geraldo Dias, «para muitos crentes, conjuntura desfavorável, muitas das irmandades que
o Coração poderoso da Mãe de Jesus, seria, de facto, promoviam peregrinações colectivas aos santuários
uma espécie de alibi esperançoso face a uma situa- interromperam este tipo de deslocações, como suce-
ção humana de instabilidade, uma afirmação do deu com a do Círio da Prata Grande, que deixou de
triunfo da Virgem e de Deus perante o caos dos polí- ir ao Sítio da Nazaré até 1926 ( P E N T E A D O - A Senho-
ticos» ( D I A S - Um certo, p. 386). Foi sobretudo no ra, p. 72). As receitas dos centros de peregrinação e
Norte de Portugal, mais conservador, que estas con- das suas confrarias diminuíram drasticamente, ou fo-
frarias, associadas às do Santíssimo Sacramento, en- ram mal aplicadas. A renovação dos compromissos
contraram campo favorável à sua germinação. Tam- das irmandades tinha um alcance mais geral e fora
bém sob a protecção das últimas casas monásticas imposta pelo decreto de 21 de Março de 1911, sob
femininas existentes no país se desenvolveram algu- o pretexto de surgirem dificuldades «diariamente
mas associações de fiéis de forte cariz espiritual, co- na execução de disposições obsoletas», sendo ne-
mo a Confraria do Sagrado Coração de Jesus de Se- cessário harmonizá-las «com as leis da Republica»
mide, demonstrando que a missão de manter aceso o ( D U A R T E - Manual, p. 147-148). Muitos dos antigos
facho do catolicismo tradicional até ao regresso das compromissos, alguns deles ainda estabelecidos
corporações religiosas não coube exclusivamente às antes de 1834, foram então alterados segundo um es-
ordens terceiras. Para melhor compreender a história quema padronizado que contribuiu para a descarac-
das confrarias portuguesas neste período urge estu- terização das identidades de muitas destas associa-
dar o papel alternativo que tiveram também as novas ções (Ibidem, p. 150-165). De início, apesar do novo
formas de associativismo religioso, a exemplo da regime ter mantido em vigor algumas das disposi-
Sociedade de São Vicente de Paulo, constituída em ções legais do final da Monarquia, como as de 1872,
Portugal a partir de 1859. Ainda dentro do contexto relativas à organização dos estatutos, que garantiam

468
CONFRARIAS

a tutela do Estado sobre as confrarias, foi proceden- quadro da exaltação dos costumes e dos heróis na-
do à publicação de novos diplomas que interferiram cionais, ou para a criação de novas tradições, com o
na vida destas associações religiosas. Também as apoio do regime político de então. Ao nível paro-
instruções provenientes das autoridades civis dos quial, verificou-se a preocupação das autoridades
distritos tiveram, por vezes, consequências gravosas eclesiásticas pela criação das irmandades recomen-
sobre o seu funcionamento, nomeadamente quando dadas canonicamente. As constituições sinodais de
alargavam os contributos financeiros que tinham de Lamego ( 1 9 5 3 ) , por exemplo, obrigavam à sua cria-
prestar. A Junta Central de Aveiro, por exemplo, em ção no prazo de seis meses após a sua promulgação,
14 de Abril de 1915, obrigou todas as irmandades da atribuindo aos párocos a sua direcção ( C O N S T I T U I -
região, desde que reunissem determinadas condi- ÇÕES, p. 6 0 ) . Era o caso das confrarias da Doutrina
ções, a ceder capitais para os hospitais de alienados, Cristã, encarregues de promover a catequização dos
para a luta antituberculose e para outras actividades fiéis e a assistência à missa, a confissão mensal, a
de assistência pública ( A M O R I M - Das confrarias, primeira comunhão e a desobriga colectiva das
p. 7), contribuindo desta forma para reduzir a sua ca- crianças, ao mesmo tempo que estimulavam a ade-
pacidade de fomento do culto. A Igreja procurava são, através de grande número de indulgências. Nou-
manter a sua posição sobre as confrarias, quer do tros bispados, constatava-se ainda a tendência para
ponto de vista jurídico, reconhecendo apenas as que adequar as confrarias devocionais às estratégias ecle-
se tinham sujeitado à autoridade eclesiástica, de siásticas de penetração católica. Os estatutos da
acordo com o Código de Direito Canónico, quer in- Confraria das Almas de São Tiago de Fontes ( 1 9 4 1 ) ,
centivando-as a participar na promoção de algumas na diocese de Vila Real, por exemplo, estabeleciam
devoções no interior das paróquias. O próprio Códi- como sua finalidade a promoção da devoção das al-
go de Direito Canónico recomendava a existência, mas, o sufrágio dos irmãos e falecidos e a oração pe-
em cada uma destas circunscrições, de confrarias do la Acção Católica Portuguesa*, divulgando as vanta-
Santíssimo e da Doutrina Cristã. No final da I Repú- gens de lhe pertencer. A Igreja portuguesa deixou
blica, o estado das confrarias em Portugal não era o expressa a sua posição institucional sobre as confra-
mais animador. Em 1925, monsenhor Pereira Júnior rias no Regulamento Geral das Associações dos
classificava a situação de crítica, culpabilizando o li- Fiéis, aprovado pelo episcopado em Fátima, em
beralismo e a crise financeira. Para este eclesiástico, 1937. Ao contrário do que acontecera com as asso-
impunha-se a renovação das confrarias com o auxí- ciações de fiéis encarregues do incremento do culto
lio dos párocos ( J Ú N I O R - Confrarias, p. 174-176). católico, cujo direito de criação e orientação o Esta-
No que diz respeito às irmandades de cariz assisten- do Novo tinha reconhecido à Igreja, no domínio da
cial, a República privilegiou claramente as Santas assistência manteve o princípio liberal de que as ir-
Casas. A Lei 1641 de 29 de Julho de 1924 e outros mandades com fins beneficentes estavam sujeitas ao
diplomas que se lhe seguiram, na sequência do domínio da autoridade civil. Desta forma, restringia
I Congresso Nacional das Misericórdias, autoriza- à esfera do Estado o exclusivo de fundação ou ma-
vam o governo a liquidar os défices das gerências nutenção de organismos confraternais na área assis-
destas associações, desde que elas mantivessem ser- tencial, não reconhecendo à Igreja capacidade de in-
viços de assistência em hospitais. Tornaram as Mise- tervenção nesse domínio, nem a sua tutela sobre
ricórdias a instituição oficial concelhia para apoio estes. Ao mesmo tempo, o Estado dotava as referi-
aos indigentes e instituíram um adicional de 5 % so- das associações de generosos meios, fazendo-as vi-
bre todas as contribuições directas do Estado, cujo gorar sob a sua dependência e tutela. Na prática,
produto lhes deveria ser entregue, através das Co- tornava-as simples distribuidores locais de finan-
missões Municipais de Assistência. As Misericór- ciamentos nacionais, segundo regras bem definidas
dias, entendidas como associações profanas de be- ( F O N S E C A - História, p. 1 6 9 ) , alteração que reduziu
neficência, passavam a estar «municipalizadas», a capacidade das elites dirigentes destas irmandades
dependentes dos subsídios estatais, e com orçamen- controlarem os critérios do sistema distributivo e uti-
tos e estatutos aprovados pelo governo. A revolução lizarem-nos para aumentar o seu próprio prestígio e
de 28 de Maio de 1926, a implantação do Estado poder. Para evitar conflitos com a Igreja, que revin-
Novo e a crescente influência da Igreja neste contex- dicava estas associações como sendo de criação
to viriam a criar, no imediato, condições para o esta- eclesiástica, em 1945, era publicado o Decreto-lei
belecimento de um terreno mais favorável ao exercí- 3 5 1 0 8 de 7 de Novembro de 1 9 4 5 que desdobrava as
cio das actividades confraternais, sobretudo de Misericórdias numa associação assistencial e numa
natureza devocional. A Igreja era reconhecida a ca- confraria canónica, exclusivamente com fins cul-
pacidade de criar e orientar associações para o incre- tuais. Deste modo, tornava a primeira um organismo
mento do culto católico. Retomavam-se as peregri- de protecção e dependência do Estado, vocacionado
nações aos santuários, muitas delas organizadas por para o exercício da assistência local, e a segunda nu-
confrarias restauradas e com novos estatutos, apro- ma instituição «apagada e subalterna perante a asso-
vados pela hierarquia da Igreja, em que procura- ciação laica» ( B I G O T T E - Situação, p. 2 2 8 ) , onde o
vam recuperar a sua antiga identidade patrimonial e espírito religioso original dificilmente pontificaria.
cultual. Várias destas confrarias tiveram papel im- O regime saído da revolução de Abril de 1974 pro-
portante na campanha de «purificação das roma- cedeu à nacionalização dos hospitais das Misericór-
rias», incentivadas por eclesiásticos que assumiram dias e de outras irmandades, integrando-os na rede
o seu comando, enquanto outras serviram para a re- de serviços de saúde do país, e revindicando para si
cuperação nostálgica de antigas peregrinações, no a possibilidade de rescisão unilateral destas institui-

469
CONFRARIAS

ções. A fundação da União das Misericórdias Portu- de Torres Novas. Torres Novas, 1993. LOUSADA, Maria Alexandra - Es-
paços de sociabilidade em Lisboa: finais do século xviu a 1834. Lisboa,
guesas, após o quinto congresso destas irmandades 1995. 2 vol. Dissertação d e doutoramento apresentada à F L U L . MACE-
(1976), e o aparecimento da União das Instituições DO, António da Costa - Estatística do distrito administrativo de Leiria.
Particulares de Solidariedade Social (IPSS), na sua Leiria, 1855. MALDONADO, Luis - Para compreender el catolicismo po-
pular. Estella, 1990. MEERSSEMAN, Gilles Gérard - Ordo Fraternitatis:
maioria de inspiração cristã, vieram criar as bases Confraternité e pietà dei laici nel medioevo. Roma, 1977. MONTEIRO, A.
para o reconhecimento social e político destes orga- Xavier de Sousa - Código das confrarias: Resumo do direito eclesiásti-
nismos. A publicação do Decreto-lei 519-G/79 e, so- co, civil, administrativo e criminal relativo a estas instituições. Coim-
bra, 1870. MOREIRA, Manuel António Fernandes - Os mareantes de Via-
bretudo, a sua reformulação através do Decreto-lei na e a construção da atlantidade. Viana do Castelo, 1994. NEVES,
119/83 de 25 de Fevereiro vieram reduzir as formas Francisco F. - A confraria dos pescadores e mareantes de Aveiro
de tutela estatal sob a actividade administrativa destas (1200-1855). Aveiro, 1973. OLIVEIRA, Augusto - Lei da Separação:
Subsídios para o estudo das relações do Estado com as Igrejas no regi-
associações. Em 1991, a Misericórdia de Lisboa reto- me republicano. Lisboa, 1914. PENTEADO, Pedro - Confrarias portugue-
mava o seu estatuto jurídico original. Na década de sas da Época Moderna: Problemas, resultados e tendências da investi-
80, várias confrarias foram reactivadas ou reforçadas, gação. Lusitania Sacra. 2: 7 (1995) 15-52. IDEM - Peregrinos da
memória: O santuário de Nossa Senhora de Nazaré: 1600-1785. Lis-
numa conjuntura politicamente não adversa, após a boa, 1998. IDEM - A Senhora da berlinda: Devoção e aparato do Círio
publicação do Código de Direito Canónico (1983), da Prata Grande á Virgem de Nazaré. Ericeira, 1999. PEREIRA, Fernan-
do Jasmins - Assistência. In DICIONÁRIO de história da Igreja em Portu-
que lhes conferiu um papel de destaque como meio gal. Dir. A. A. Banha de Andrade. Lisboa: Resistência, 1980, vol. 2,
de intervenção dos leigos ao nível cultual e assisten- p. 631-717. PEREIRA, José Pacheco - Elementos para o estudo da origem
cial. Não existe, contudo, uma ideia rigorosa do seu do m o v i m e n t o operário n o Porto: As associações mutualistas (1850-
-1870). In UTOPIE et socialisme au Portugal au xix siècle: actes du col-
número global nem da importância da sua actividade. loque. Paris, 1982, p. 185-206. PEREIRA, Miriam Halpern - Artesãos,
Actualmente, e a julgar pelos dados disponíveis, a operários e o liberalismo: Dos privilégios corporativos para o direito ao
maior densidade de confrarias situa-se nas dioceses trabalho (1820-1840). Ler História. 14 (1988) 41-83. ROSA, Maria de
Lurdes - O Estado manuelino: a reforma das capelas, hospitais, alber-
do Noroeste do país (Braga, Viana do Castelo e Por- garias e confrarias. In O TEMPO de Vasco da Gama. Dir. Diogo Ramada
to), onde a percentagem de católicos praticantes é su- Curto. Lisboa: Difel, 1998, p. 205-210. ROSENDO, Vasco - O mutualis-
perior à de outros pontos do país. É principalmente no mo em Portugal Lisboa, 1996. SÁ, Isabel dos Guimarães - Quando o
rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império portu-
arcebispado de Braga, que há várias décadas possui guês: 1500-1800. Lisboa, 1997. IDEM - As Misericórdias e a protecção
um dos melhores índices de missializantes do país e régia: etapas de uma relação privilegiada. In ENCONTROS sobre as trans-
uma presença eclesiástica assinalável, que se constata formações na sociedade portuguesa: 1480-1570. Lisboa, 1996, p. 1-13.
IDEM - A reorganização da caridade em Portugal em contexto europeu
o maior número destas associações de fiéis. (1490-1600). Cadernos do Noroeste. 1 1 : 2 (1998) 31-63. SOUSA, Mar-
PEDRO PENTEADO noco e - Direito eclesiástico português. Coimbra, 1910. TAVARES, Maria
José Ferro - Instituições d e assistência e d e culto. Pobreza e morte em
BIBLIOGRAFIA: São várias as confrarias portuguesas que possuem um pe- Portugal na Idade Média. Lisboa, 1989. VAUCHEZ, André - Les laies au
queno estudo de carácter monográfico ou algum artigo que elucide o Moyen Age: Pratiques et expériences religieuses. Paris, 1987. VINCENT,
seu passado. Algumas foram j á objecto de investigação universitária, Catherine - Des charités bien ordonnées: Les confréries normandes de la
n o m e a d a m e n t e através de teses de mestrado e doutoramento. Nesta bi- fin du XIIIE siècle au début du XVIE siècle. Paris, 1989. IDEM - Les confré-
bliografia, na impossibilidade de serem referidos todos os casos, optou- ries médievales dans le royaume de France: xnf-xv' siècle. Paris, 1994.
-se por registar apenas as obras que mais d e perto serviram à elaboração
do texto. Para um a p r o f u n d a m e n t o bibliográfico, sugere-se a consulta
de algumas das principais obras aqui referenciadas, para além de GO-
MES, J. Pinharanda - Confrarias, Misericórdias, ordens terceiras, obras CONGO. V. ANGOLA.
pias e outras associações de fiéis em Portugal nos séculos xix e xx. Bi-
bliografia institucional (contributo). Lusitania Sacra. 2: 8/9 (1996-
-1997) 611-648. ABREU, Laurinda de - Memórias da alma e do corpo. CONGREGAÇÃO DO BOM PASTOR (Congregação de
A Misericórdia de Setúbal na modernidade. Viseu, 1999. AGULHON, Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor). Ins-
Maurice - Pénitents et francs-maçons de l'ancienne Provence: Essai
sur la sociabilité méridionale. a
3 . e d . Paris, 1984. ALMEIDA, Fortunato
tituto de origem francesa, chegou a Portugal em finais
de - História da Igreja em Portugal. Porto; Lisboa, 1967-1971. 4 vol. do século xix, quando a hostilidade em relação às or-
AMORIM, Aires de - Das confrarias do concelho da Feira (séculos xvn a dens religiosas já se atenuara. O seu carisma é ser
xx). Aveiro, 1976. APONTAMENTOS para a história da cidade do Porto:
A Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos-Porto. Porto, testemunha do amor de Jesus e agente de reconcilia-
1992. ARAÚJO, Ana Cristina - A morte em Lisboa: Atitudes e represen- ção, tendo como missão trabalhar junto de mulheres
tações: 1700-1830. Lisboa, 1997. BEIRANTE, Ângela - Confrarias me- e jovens em situações de carência ou marginalidade.
dievais portuguesas. Lisboa. 1990. BEZERRA, Manuel G o m e s de Lima -
Os estrangeiros no Lima. Viana do Castelo, 1992. 3 vol. BIGOTTE, 1. Fundação: Maria Eufrásia Pélletier (canonizada
J. Quelhas - Situação jurídica das Misericórdias portuguesas. 2." ed. em 1940) nasceu em Noirmoutier, França, em 1796.
Seia, 1994. CASCÃO, Rui - Vida quotidiana e sociabilidade. In HISTÓRIA Aos 21 anos professou na Ordem de Nossa Senhora
de Portugal. Dir. José Mattoso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993,
vol. 5, p. 517-541. CÓDIGO de Derecho Canónico y legislación comple- da Caridade do Refúgio, fundada por São João Eu-
mentaria. 3." ed. Madrid, 1949. CÓDIGO de Direito Canónico. Braga, des no século xvn e dedicada especialmente à reabi-
1984. COELHO, Maria Helena da Cruz - As confrarias medievais portu-
guesas: espaços de solidariedades na vida e na morte. «Cofradías, gré-
litação da mulher. Em 1825 foi nomeada superiora
mios, solidariedades en la Europa medieval». Estella, 1992, p. 149- do mosteiro de Tours e em 1829 saiu com algumas
-183. COMPROMISSO da Irmandade da gloriosa virgem mártir e doutora irmãs para fundar um mosteiro em Angers. As ca-
Santa Catarina do Monte Sinay da corporação dos livreiros. Lisboa,
1869. COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios.
sas da ordem eram autónomas e não podiam intera-
Porto, 1913. CONSTITUIÇÕES sinodais da diocese de Lamego. Lisboa, judar-se. Nesta altura ela quis modificar a estrutura
1954. DIAS, J. A. Geraldo - U m certo Porto devoto no Porto do libera- da congregação de modo a estabelecer um genera-
lismo: A Arquiconfraria d o Imaculado Coração de Maria. Humanística
e Teologia. 14 (1992) 383-392. DUARTE, Dionísio - Manual anotado
lato numa casa central a partir da qual fosse possí-
das irmandades, confrarias e corporações. Lisboa, 1916. FONSECA, Car- vel coordenar e orientar todas as casas, podendo as-
los Dinis da - História e actualidade das Misericórdias. Lisboa, 1996. sim expandir-se mais facilmente. Foi-lhe negada
GOMES, Saúl António - Notas e documentos sobre as confrarias portu-
guesas entre o fim da Idade Média e o século xvn: o protagonismo do- a pretensão por parte da ordem, mas aberta a possi-
minicano de Sta. Maria da Vitória. Lusitania Sacra. 2: 7 (1995) 89-150. bilidade de, através de Roma, formar uma nova
JÚNIOR, Pereira, mons. - Confrarias. Acção Católica. 10 (1925) 174- congregação; a nova fundação aconteceu e esten-
-176. LACERDA, José Ferreira de - Breves apontamentos para a história
da fundação da Igreja do Senhor Jesus dos Milagres no concelho deu-se rapidamente a outros continentes, guardando
de Leiria. Leiria, 1911. LOPES, João Carlos - A confraria dos lavradores o mesmo carisma e espiritualidade da Ordem do

470
CONGREGAÇÃO DO BOM PASTOR

Refúgio. Considera-se o dia 16 de Janeiro de 1835, bro de 1910 a casa fechou e as religiosas saíram do
data do decreto papal, a aprovação da Congregação país. Nesta data havia nas duas casas 46 irmãs que
de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor de atendiam 441 raparigas. Apesar da saída das religio-
Angers, o início oficial da fundação. À morte da sas, a obra nunca morreu de todo em Lisboa, pois al-
fundadora em 1869 eram já 110 conventos em 16 gumas raparigas reuniram-se sob a liderança de uma
províncias, que envolviam cerca de 18 000 pessoas delas e, com a ajuda de uma senhora da Associação
em todo o mundo, entre religiosas e pessoas assisti- de Santa Maria Madalena, organizaram um atelier
das. 2. Presença em Portugal: A sua história em de bordados no qual reproduziam o antigo modo de
Portugal pode ser dividida por etapas: 1881-1910 vida, embora vivessem nas suas próprias casas. Atra-
(da fundação à dispersão com a República); 1910- vés de correspondência, as religiosas davam uma
-1937 (da dispersão à criação da província portugue- certa orientação; mas, como as distâncias eram gran-
sa); 1937-1962 (da criação da província ao aggiorna- des, o instituto acabou por abrir uma casa em Tui
mento trazido pelo II Concílio do Vaticano). Entre (Espanha) em 1914 e muitas antigas recolhidas pas-
1881-1910 foram fundadas duas casas em Portugal, saram para lá. Após o ano de 1926, o ambiente tor-
Porto e Lisboa, a partir de iniciativas distintas. O pa- nou-se menos hostil; em 1927 o governo, apoiado
dre Luís Martins Rua conheceu a Obra do Bom Pas- pelo patriarca de Lisboa, solicitou o regresso das Ir-
tor em Pau (França), tendo diligenciado para que as mãs do Bom Pastor para retomar a obra interrompi-
religiosas viessem para o Porto. Nesse esforço teve a da. O Estado comprou, para o efeito, uma quinta em
colaboração de D. Jerónima Júlia do Vale Cabral Ri- Carnide, e em 1927 voltaram as primeiras religiosas.
beiro; efectivamente, em 10 de Maio de 1881 chega- A partir daí retomou-se a expansão da congregação:
vam as primeiras cinco religiosas. Depois de alguns 1930 - Vila Nova de Gaia; 1932 - Coimbra. Em
contratempos, instalaram-se na Quinta Amarela, na 1932 abriu-se o noviciado na casa de Vila Nova de
Rua do Vale Formoso. Em 1894 assumiu o cargo de Gaia e em 1936 foi criada a província portuguesa
superiora da casa Maria Droste zu Vischering, que com sede na mesma casa. A expansão continuou:
morreu no Porto em 1899 com fama de santidade, 1942 - Torres Vedras; 1943-1972 - Serpa; 1944 - Vi-
aos 36 anos, sendo beatificada em 1975. A revolu- seu; 1952 - Ponta Delgada; 1953-1980 - prisão de
ção republicana levou ao encerramento da casa e as Tires; 1956 - Ermesinde; 1962-1967 - Portalegre;
religiosas, mesmo as portuguesas, foram para a excepto Ermesinde, todas as fundações foram solici-
França e para a Alemanha. A fundação de Lisboa tadas pelo Estado ou por instituições particulares.
deveu-se À iniciativa de D. Teresa de Saldanha (v. IR- Depois de 1962, mantendo os mesmos objectivos, as
M Ã S D O M I N I C A N A S DE SANTA CATARINA DE S E N A ) , q u e co- fundações prosseguiram, embora assumindo, por ve-
nhecera o trabalho da congregação em Barcelona e, zes, características diversas das anteriores. As mu-
à frente da Associação de Santa Maria Madalena, or- danças trazidas pelo II Concílio do Vaticano e a rápi-
ganizou tudo para a vinda das irmãs. As religiosas da evolução da mentalidade social rasgaram novos
chegaram em 1887, quatro anos após o primeiro pe- rumos, tanto na vida das comunidades como nos mé-
dido. Provisoriamente instaladas na Rua do Grilo, todos usados nas respectivas actividades. A vida das
num antigo convento de agostinhas, cinco meses de- comunidades sofreu alterações, desde a modificação
pois foram para a Rua da Bela Vista à Graça onde, do hábito, a revisão das constituições (a última data
em 1890, inauguraram um edifício novo. Em Outu- de 1987), e a própria configuração comunitária; os

Irmã Maria do Divino Coração estabelecendo as classes de preservação no recolhimento do Bom Pastor (in Irmã Maria
do Divino Coração, Porto, 1907).

471
CONGREGAÇÃO DO BOM PASTOR

noviciados diminuíram e as pequenas casas substituí- viver em comunidade sem serem religiosas. A con-
ram os grandes conventos. Quanto aos métodos usa- gregação recebeu a aprovação de direito diocesano
dos nas actividades específicas, tem-se dado prefe- a 8 de Dezembro de 1968. Em 1996 eram 162 reli-
rência aos «lares» - pequenos agregados familiares - giosas distribuídas por 25 comunidades em nove
em lugar dos grandes internatos. Verificou-se, pois, dioceses.
um fenómeno de descentralização e fragmentação, o MARIA DO PILAR S. A. VIEIRA

que levou ao encerramento de algumas comunida- BIBLIOGRAFIA: CONGREGAÇÃO DA DIVINA PROVIDÊNCIA E SAGRADA FAMÍLIA -
des. A congregação tem dois ramos: contemplativas Uma vocação uma opção. Braga: CDPSF, 1993. FERREIRA, Rosa Sá -
e activas; o trabalho faz-se com adolescentes e jo- Congregação da Divina Providência e Sagrada Família. Braga, 1996.
Texto policopiado. VINDE e vede. Lisboa: Paulinas, 1995.
vens em risco; mães solteiras e seus filhos; jovens e
mulheres em dificuldades sociais e familiares; apoio
à ex-reclusa; comunidades de inserção; apoio às ex- CONGREGAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO. V. ESPIRITANOS.
-educandas; pastoral paroquial; evangelização nas
missões. Publicam a revista semestral Irmã Maria. CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS FRANCISCANAS HOS-
Em 1995 eram 199 religiosas em Portugal, distribuí- PITALEIRAS DA IMACULADA CONCEIÇÃO. Outras
das por 19 comunidades, em sete dioceses, com irra- designações: Irmãs Hospitaleiras dos Pobres pelo
diação para Angola. Amor de Deus (oficial perante o Estado desde 1874
MARIA DO PILAR S. A. VIEIRA até 1910), Congregação das Irmãs Hospitaleiras da
Ordem Terceira de São Francisco em Lisboa (oficial
BIBLIOGRAFIA: BIERBAUM, Max - Maria do Divino Coração Droste zu
Vischering. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1967. CONGREGA-
perante a Santa Sé desde 1876 até 1900), Irmãs
ÇÃO (A) de N." S." da Caridade do Bom Pastor de Angers em Portugal: Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas (oficial de
um século, 1881-1981. Texto policopiado. CONGREGAÇÃO do Bom Pas- 1900 a 1964). A história dos primeiros tempos da
tor: Portugal. Texto policopiado, [s.d.]. DIVINO CORAÇÃO, Maria do - Au-
tobiografia. Lisboa: Congregação do B o m Pastor, 1993. FILIPE, N u n o - congregação está ligada à história das irmãs francis-
O segredo de um sorriso. Lisboa: Congregação de Nossa Senhora do canas de Calais (v. FRANCISCANAS MISSIONÁRIAS DE
B o m Pastor, 1993. GUILLON, Clément - .4 vontade de Deus em tudo. Er- NOSSA S E N H O R A ) de quem adoptaram, em 1871, a re-
mesinde: Congregação do Bom Pastor, 1983. MILCENT. Paul - S.João
Eudes. Porto, 1978. PÉCARD, Marie Antoinette - Depuis Le Refuge de gra, as constituições, o costumeiro e o hábito, sendo
Tours jusqu'au Bon-Pasteur d'Angers. Angers: Centre Spirituel Mai- embora uma congregação autónoma, de acordo com
son-Mère, 1994. RICCIARDI, A. ... mais nobre pela caridade: A bem-
aventurada Maria do Divino Coração Droste zu Vischering. Porto,
o projecto inicial dos fundadores. 1. Fundadores:
1977. SCHENK, Juan E. - Passou fazendo o bem: Santa M." Eufrásia O padre Frei Raimundo dos Anjos Beirão pode con-
Pélletier. Coimbra, 1991. siderar-se um dos co-fundadores. Nasceu (Raimundo
Maria Ferreira da Silva Beirão, 1810-1878) em Lis-
CONGREGAÇÃO DA DIVINA PROVIDÊNCIA E SA- boa, filho de Francisco António Ferreira, lente da
GRADA FAMÍLIA. Fundada por um sacerdote dioce- Universidade de Coimbra e professor régio de Hu-
sano com a colaboração da uma senhora, o seu apa- manidades no Convento de São Vicente de Fora,
recimento enquadra-se nos parâmetros normais da nesta cidade. Professou na Ordem Terceira Regular
época: um fundador sacerdote com uma co-funda- de São Francisco de Assis no Convento de Nossa
dora. O cónego Dr. Adão Salgado Vaz de Faria nas- Senhora de Jesus (Mercês, Lisboa), sendo ordenado
ceu em 1907, em Vila Nova de Famalicão, arquidio- em 1833. Depois da dissolução das ordens religiosas
cese dc Braga. Através do ministério da pregação e em 1834, entrou para capelão da Armada e foi tam-
confissão percebe a necessidade de fundar uma obra bém capelão do Recolhimento de Nossa Senhora da
que responda às carências do tempo. Assim, em 26 Rosa. Mais tarde obteve da Santa Sé a carta de mis-
de Outubro de 1945 inicia em São Clemente de San- sionário apostólico, tendo granjeado fama de orador
de (Guimarães) a Obra da Divina Providência e Sa- sacro. Nessas viagens como pregador tomou contac-
grada Família, com a colaboração de D. Maria Rosa to com as religiosas franciscanas capuchinhas da
Campos. O fundador faleceu em 1990 na casa-mãe Imaculada Conceição de Aldeia Galega (Montijo),
da congregação. D. Maria Rosa Campos nasceu em no Ribatejo, que estão na origem das Franciscanas
1891 na Póvoa de Varzim. Estudou no Colégio do Hospitaleiras da Imaculada Conceição. Fundada a
Sagrado Coração de Jesus, das Irmãs Doroteias, na congregação em 1871, a ela dedicou os últimos anos
sua terra natal. Aos 18 anos entra na referida congre- de vida. Faleceu em Lisboa no convento das Trinas
gação donde sai por motivos de doença. Recuperada em 13 de Julho de 1878. Nesta data, a congregação
a saúde, dedica-se ao serviço da Igreja em diferentes contava já com 171 religiosas professas trabalhando
actividades apostólicas, sendo convidada pelo padre em 23 casas. Madre Maria Clara do Menino Jesus
Dr. Adão a colaborar na congregação nascente. Fale- (Libânia do Carmo Galvão Mexia de Moura Teles e
ceu em 1973 no Seminário de São Tiago em Braga. Albuquerque, 1843-1899), filha de família nobre,
O carisma da congregação é, à semelhança da Sagra- que nasceu na Quinta do Bosque, na Porcalhota, ho-
da Família, ser apoio concreto em ambiente domésti- je Amadora, pode considerar-se a outra co-
co à vida e vocação de todos os homens, através de -fundadora. Ainda criança perdeu a mãe, e na epide-
uma vida simples, escondida e fraterna. Este carisma mia de febre-amarela de 1857 faleceu o pai. Vai
traduz-se em serviços domésticos e sociais, em insti- então, juntamente com uma irmã, para o pensionato
tuições católicas ou de orientação católica e acção da Ajuda criado por D. Pedro V e dirigido pelas Ir-
pastoral, no exercício da caridade entre raparigas e mãs da Caridade (v. IRMÃS DE SÃO VICENTE DE PAULO)
senhoras carenciadas material ou espiritualmente. para acudir às órfãs da nobreza vitimada pelas epide-
Além disso, também apoiam a obra das Colabora- mias. Em 1862, já no governo de D. Luís, essas reli-
doras, recebendo jovens e senhoras que pretendam giosas são expulsas do país e a jovem Libânia vai

2
47
CONGREGAÇÃO DAS I R M Ã S FRANCISCANAS HOSPITALEIRAS DA I M A C U L A D A CONCEIÇÃO

ma de Cima (onde hoje está o Hospital de Santa Ma-


ria), em 1856 para Carnide e depois para o Convento
de São Patrício, cedido pelos padres irlandeses, por
volta de 1858. Em São Patrício, além das alunas in-
ternas e pensionistas, havia também uma aula gratui-
ta para alunas externas, sustentada pela Associação
Protectora das Meninas Pobres, dirigida por D. Tere-
sa de Saldanha (v. IRMÃS D O M I N I C A N A S DE SANTA CATA-
RINA DE SENA). Entretanto, em 1857 chegavam de
França as Irmãs da Caridade de São Vicente de Pau-
lo para tratar os doentes e órfãos de uma epidemia
de cólera-morbo (1856) e de febre-amarela (1857)
que grassava em Lisboa. Cinco anos depois, com ba-
se na legislação de 1834, foram expulsas do país por
serem religiosas e francesas. A partir daí, o padre
Beirão começa a alimentar a ideia de fundar uma
congregação portuguesa, que suprisse a lacuna dei-
xada pelas religiosas francesas e evitasse perante o
governo civil os inconvenientes de uma congregação
estrangeira. Pertencendo as irmãs de São Patrício à
ordem terceira secular e sendo proibido em Portugal
o noviciado e as profissões religiosas, o padre Bei-
rão, através de informações de padres franciscanos*
portugueses em Roma, entrou em contacto com as
Irmãs Franciscanas Hospitaleiras de Calais, cujo tra-
balho se assemelhava ao pretendido para São Patrí-
cio. Envia então para Calais quatro recolhidas de
São Patrício, a fim de ali fazerem o noviciado e rea-
Irmã Maria Clara do Menino Jesus (in L'Osservatore lizar uma profissão religiosa reconhecida pela Igreja,
Romano, Ano VI, n.° 23, pág. 12). dando assim começo à congregação portuguesa.
Quatro meses depois, elas voltam sem professar. São
enviadas mais quatro, das quais duas regressam já
para casa da marquesa de Valada sua parente. Ali fi-
professas: Susana Gonçalves e Libânia Galvão (ma-
cou até 1867 quando foi para a Casa de São Patrício,
dre M. Clara); mais tarde, outras duas irmãs profes-
primeiro como pensionista e depois como religiosa
sam em Calais. A primeira comunidade é formada a
de votos em 1869. Em 1870 foi para Calais fazer o
partir do grupo das capuchinhas que aderiu à nova
noviciado, nas Irmãs Hospitaleiras e Mestras, donde
congregação. Após a posse da Madre Maria Clara do
volta, já professa, em 1 de Maio de 1871 na qualida-
Menino Jesus em Maio de 1871, iniciam-se as dé-
de de superiora local e mestra de noviças, nomeada
marches do padre Beirão com vista à aprovação da
pela superiora de Calais, tendo tomado posse em 3
congregação: pelo governo civil, como uma associa-
de Maio de 1871. A seguir à morte do padre Beirão,
ção de beneficência (22 de Maio de 1874); pela San-
a madre Maria Clara assumiu plenamente o governo
ta Sé, como congregação religiosa autónoma em re-
da congregação. Em Outubro de 1878 reuniu o pri-
lação às Franciscanas de Calais, embora observando
meiro capítulo geral do qual saiu eleito o primeiro
as mesmas constituições (27 de Março de 1876). Tu-
conselho geral. Apesar da doença cardíaca que a mi-
do indica que a direcção das Franciscanas de Calais
nava desde 1887, conduziu a congregação com fir-
pretendia a filiação plena do convento de Lisboa,
meza nos abalos e dificuldades por que a mesma
contrariamente ao que pensava o padre Beirão. Após
passou nos anos 90. Em 1896 foi nomeada pela San-
intensa troca de correspondência e diligências das
ta Sé superiora-geral vitalícia e fundadora da con-
duas partes junto ao Vaticano, a situação definiu-se a
gregação. Morreu no convento das Trinas em 1 de
favor da congregação portuguesa. Em 3 de Maio do
Dezembro de 1899. Sepultada no Cemitério dos
mesmo ano a Irmã Maria Clara foi apresentada co-
Prazeres, os seus restos mortais foram transladados,
mo superiora-geral, consumando-se a separação de
juntamente com os do padre Beirão, para Caminha
Calais, embora as constituições fossem as mesmas
em 1954 e desde 1988 os dois fundadores repousam
até 1900. A partir de 1876 são designadas popular-
na cripta da casa-mãe em Linda-a-Pastora. 2. Con-
mente como «Trinas» por terem instalado a casa
gregação: As origens desta congregação estão liga-
principal e o noviciado no antigo convento das trinas
das às Franciscanas de Calais. As religiosas de São
do Mocambo, assim chamado por ter pertencido às
Patrício provinham, em boa parte, do Recolhimento
religiosas trinitárias desde o século xvii. A congrega-
das Capuchinhas da Imaculada Conceição da Aldeia
ção manteve o seu ritmo de crescimento e expansão
Galega. Para resolver o problema do sustento das ir-
pelo país e ultramar, apesar de alguns percalços co-
mãs, o padre Beirão abriu, anexo ao recolhimento,
mo o chamado «Caso das Trinas» nos anos 90, tão
um pensionato para educar meninas. Com pouca
explorado pela imprensa anticongreganista. Quando
clientela naquele lugar, dada a distância de Lisboa,
a fundadora faleceu, o instituto tinha implantado já
ele transferiu o pensionato e o recolhimento para es-
101 casas das quais se mantinham abertas 79, cinco
ta cidade em 1845; primeiro para uma quinta na Pal-

473
CONGREGAÇÃO DAS I R M Ã S F R A N C I S C A N A S H O S P I T A L E I R A S DA I M A C U L A D A CONCEIÇÃO

delas no ultramar (então português); as religiosas gação Mariana do Colégio Romano, chamando-lhe
eram 492, incluindo as noviças. Em 1910o número «primária», e conferiu ao geral da Companhia de Je-
de irmãs alcançara 595 sem contar noviças (46) e sus a faculdade de lhe agregar as demais congrega-
postulantes (27). A revolução republicana abalou ções. À congregação-mãe concedeu a Santa Sé* bas-
fortemente a congregação; apesar de «extinta» por tantes graças e privilégios, que se comunicavam a
decreto governamental, muitas religiosas vestidas todas as congregações, quando se lhe agregavam.
como seculares e em grupos de três puderam conti- O papa Sisto V, na bula Superna dispositione, de 5
nuar o seu trabalho, sobretudo no Norte do país. Ao de Janeiro de 1587, conferia ao geral da Companhia
generalizar-se a perseguição às irmãs, em Janeiro de de Jesus a faculdade de erigir, em todas as igrejas,
1911, transferem para Tui (Espanha) a casa-mãe e o colégios e casas da ordem, as congregações, não só
noviciado. Ali se foi reestruturando e, pouco tempo de estudantes mas também de outros fiéis ou mistas,
depois, além das casas abertas na Galiza, chegavam e multiplicá-las, segundo as conveniências. Nesse
ao Brasil (Pará) as primeiras religiosas em Junho de ano de 1587 foram publicadas as primeiras regras
1911, seguidas de outras nos anos seguintes (em 1914 das congregações pelo geral padre Cláudio Aquavi-
já haviam alcançado o Nordeste e o Sul do país). Pas- va. As congregações, que a princípio incluíam só es-
saram também de Goa* para a índia inglesa. Mesmo tudantes, passaram desde então a admitir todas as
na clandestinidade a congregação não deixou de classes sociais. Expandiram-se rapidamente por todo
crescer: Moçambique (1922), Açores, Goa e Damão o mundo (v. LAICADO. ÉPOCA M O D E R N A ) . Em Portugal,
(1929). A acalmia surgida em Portugal depois de foram instituídas as congregações para estudan-
1926 favorece a acção das irmãs tanto no continente tes: em 1583, na Universidade de Évora e no Colé-
como em Africa. Em 1936 transfere-se o noviciado gio de Santo Antão de Lisboa; em 1584, nos colé-
de Tui para Caminha. O instituto já tinha então novi- gios de Braga e Bragança; em 1588, no de Angra
ciados na índia* (Bombaim, 1911) e Brasil (Penedo, (Açores); em 1599, no de Coimbra; em 1618, nos de
1913). A renovação trazida pelo II Concílio do Vati- Funchal (Madeira) e Portalegre; e a seguir nos res-
cano levou à revisão das constituições, publicadas tantes colégios. Nas missões populares pelo país, os
em 1965. Em 1969-1970 elabora-se um novo texto Jesuítas costumavam estabelecer confrarias*. É pro-
que ficou à experiência até 1977. A aprovação ponti- vável que muitas dessas confrarias estivessem estru-
fícia definitiva será dada em 1981. O carisma da turadas à semelhança das congregações. Nesse tem-
congregação, fortemente enraizado no carisma fran- po, dava-se por vezes o nome de confraria à
ciscano, com particular incidência na hospitalidade e Congregação Mariana, até que este nome veio a pre-
acolhimento, traduz-se em trabalhos no campo da valecer. As congregações caracterizavam-se pela ri-
saúde, educação, assistência a crianças e idosos, pro- gorosa estrutura, pragmatismo de eficácia e homoge-
moção social, catequese e ministérios eclesiais. Em neidade dos membros em cada núcleo; eram, pois,
31 de Dezembro de 1995 o instituto tinha 197 comu- diferentes das confrarias. As agregações à «prima
nidades com 1744 religiosas professas a trabalhar em primária» sucedem-se em cadência regular. Até
12 países. Em 1996 fundaram-se mais quatro casas 1620, aparecem, já agregadas, 15 congregações por-
em Moçambique* e uma na África do Sul. Publicam tuguesas. Há também notícia de várias congregações
um boletim informativo trimestral (Notícias da Con- no mesmo lugar: duas em Lisboa, Coimbra, Bragan-
gregação) desde 1974. ça, Funchal, três em Braga. A lista seria mais exten-
MARIA DO PILAR S. A. VIEIRA
sa se registasse todas as congregações existentes,
embora não estivessem ainda agregadas a Roma. As
BIBLIOGRAFIA: ALVES, Adelina - Chamava-se Libânia. Porto: Simão Gui- congregações foram-se especializando, sucessiva-
marães, Filhos, L. da , 1993. CARVALHO, Maria Lucília L. de - A irmã dos mente, em Portugal, e tomaram diversas denomina-
pobres. Fátima: Tipografia de Fátima, L. d a , 1993. C O N F H I C - Cader-
nos para a renovação da CONFHIC. Lisboa, 1979-1995. IDEM - Fontes ções. Em Lisboa, em 1593, o padre Inácio Martins
da CONFHIC. Lisboa: Oficinas Gráficas da Rádio Renascença, 1989, instituiu a Congregação Mariana para os soldados da
vol. 1 e 2. IDEM - FONTES da CONFHIC. Lisboa: Gabinete Comercial guarnição e escreveu os seus estatutos. No colégio
Gráfico, L. da , 1992, vol. 3. MOURA, Rosa Helena M e n d e s de - P.' Rai-
mundo Beirão: Onde houver o bem a fazer. Petrópolis: Ed. Vozes, do Porto, em 1601, fundou-se a congregação para
1989. IDEM - Sob o olhar providencial de Deus. Salvador: Contraste; eclesiásticos e nobres. No mesmo colégio, em 1602,
Editora Gráfica, Ld. a , 1991. REMA, Henrique Pinto - Crónica do Cente- era constituída a congregação dos estudantes, e nela
nário da CONFHIC: 1876-1976: I: O nosso livro de família: II: Das
origens à República. Braga: Tip. Editorial Franciscana, 1976, 1979. entraram o bispo, o governador da cidade e a alta no-
breza. Em Coimbra, em 1602, surgira a congregação
para operários ou oficiais mecânicos, dedicada a
CONGREGAÇÃO MARIANA. A primeira Congrega- Nossa Senhora das Neves, a qual se ramificou, de-
ção Mariana começou no Colégio Romano, em pressa, pelas freguesias da cidade. Na Universidade
1563. João Leunis, jovem jesuíta flamengo-belga de Coimbra, em 1603, nascera a Congregação de
que ali era professor de Gramática, fundou entre os Nossa Senhora da Expectação, de que faziam parte o
seus discípulos uma associação sob a protecção de reitor, alguns lentes e estudantes. Na Igreja de São
Nossa Senhora. A associação reunia-se na Capela Roque, em Lisboa, fúndava-se, em 1612, a Congre-
delia Annunziata do Colégio Romano e chamou-se gação de Nossa Senhora da Doutrina, só para ofi-
Congregação da Anunciada, denominação adoptada ciais mecânicos e nenhum fidalgo nela podia ser ad-
nos inícios, por outras congregações. O modelo de mitido. Esta congregação, que no século xvii já
Roma produziu frutos e logo foi imitado nos colé- contava com 800 membros, foi a mais prestigiada
gios da Companhia de Jesus (v. JESUÍTAS). O papa em Portugal. Em Évora, em 1620, fundou-se uma
Gregório XIII, pela bula Omnipotentis Dei, de 5 de célebre congregação com o nome de Inácio Peniten-
Dezembro de 1584, erigiu canonicamente a Congre-

474
CONGREGAÇÃO DOS SAGRADOS CORAÇÕES

te, a qual recebeu outras designações (Penitente e Bis saeculari, de 27 de Julho de 1948, deu notável
Convertido, Penitência de Santo Inácio, Irmandade impulso às congregações marianas, e neste do-
da Penitência e Anacoretas de Santo Inácio). Os seus cumento chamou-lhes «Acção Católica* sob o pa-
congregados visitavam os hospitais, varriam e lim- trocínio e a inspiração da Bem-Aventurada Virgem
pavam as salas dos doentes, faziam-lhes as camas e Maria». O secretariado central das congregações ma-
consolavam-nos. No Colégio de Santo Antão de Lis- rianas, na cúria generalícia da Companhia de Jesus,
boa, em 1694, organizou-se a Congregação de Santo em Roma, edita a revista Acies Ordinata; e em mui-
Inácio para os clérigos que cursavam aulas de Moral, tos países as congregações publicavam diversas re-
e difundiu-se logo pela terra portuguesa. Em 1651, o vistas. Em Portugal, editou-se o Mensageiro de Ma-
príncipe D. Teodósio inscreveu-se na congregação ria, órgão das congregações marianas, 1905-1950, e
castrense de Elvas, por saber que era constituída sucedeu-lhe, desde 1951, a revista Magnificai, ac-
por soldados. No Colégio de Santo Antão fundou-se, tualmente ainda em publicação. Depois do II Concí-
por volta de 1654-1656, a Congregação da Boa- lio* do Vaticano, as congregações, por decisão dos
-Morte, a qual contava, em breve, mais de mil con- Jesuítas, foram gradualmente substituídas pelas Co-
gregados do povo e da nobreza, entre eles D. João IV munidades de Vida Cristã (CVX).
e a rainha D. Luísa de Gusmão. Este grande mo- J. VAZ DE CARVALHO

vimento mariano expandiu-se, igualmente, pelo ul-


BIBLIOGRAFIA: BARAGLI, E. - II método delle Congregazioni Mariane.
tramar. No Brasil, em 1586, surgiu na Bahia a pri- Roma, 1964. BUSUTTIL, E. - Commentarium in Const. Apost. «Bis sae-
meira Congregação Mariana; a seguir, a do Rio de culari». Roma, 1949. CARVALHO, J. Vaz de - As Congregações Maria-
Janeiro; em 1665, no Pará, a do Terço, sob a invoca- nas em Portugal de 1583 a 1620. I n C O N G R . MARIOLOGICI INTERNATIONA-
LIS CAESARAUGUSTAE 1979 - Actas. R o m a , 1986, vol. 7, p. 183-197.
ção de Nossa Senhora da Luz; segundo informações MANUAL das Congregações de Maria Sanctissima. 3. a ed. Lisboa, 1894.
de 1614, a Confraria dos Oficiais Mecânicos nos MARIN, H. - Las Congregaciones Marianas: documentos pontifícios.
Zaragoza, 1953. MARTINS, M. - Congregações Marianas. Braga, 1947.
colégios da Bahia e de Pernambuco; na primeira PAULUSSEN, L. - Annuarium Societatis Iesu. R o m a , 1963. OLIVEIRA,
metade do século xvin, no Recife, a Congregação M. Alves de - Congregação Mariana. In VERBO: Enciclopédia luso-
de Nossa Senhora da Paz. Em Angola*, no colégio -brasileira de cultura. Lisboa, 1967, vol. 5, col. 1380-1382. VILLARET,
É. - Les Congrégations Mariales: I: Des origines à la supression de la
de Luanda, instituíram-se as congregações seguintes: Compagnie de Jésu (1540-1773). Paris, 1947. IDEM - Congrégations de
a de Nossa Senhora do Socorro, a de São Francisco la Sainte Vierge. In DICTIONAIRE de Spiritualité Ascétique et Mystique
Xavier, a das Onze Mil Virgens para estudantes, e a Doctrine et Histoire. Paris: Beauchesne, 1953, vol. 2, col. 1479-1491.
dos Negros. Na China, em 1609, em Pequim, fun-
dou-se a Congregação da Mãe de Deus; no mesmo
ano, em Nanquim, uma Confraria de Nossa Senhora, CONGREGAÇÃO DA MISSÃO, v. VICENTINOS.

estruturada como a de Pequim. No Japão, em 1576,


foi instituída a primeira Congregação Mariana; flo- CONGREGAÇÃO DOS MISSIONÁRIOS DO CORAÇÃO
rescentes congregações de Nossa Senhora da Anun- DE MARIA. v. CLARETIANOS.
ciada no Seminário de Arima e no colégio de Naga-
sáqui; e muitas outras nas cristandades nipónicas. Na CONGREGAÇÃO DOS MISSIONÁRIOS PASSIONIS-
TAS. v. PASSIONISTAS.
Europa, enxameavam as congregações. Em 1658, já
havia mais de 1500 congregações em todo o mundo.
Durante quase dois séculos, elas foram constituídas CONGREGAÇÃO DA OLIVEIRA, v. PORTO.

exclusivamente por homens, salvo raras excepções.


Foi só em 1751 que o papa Bento XIV, pelo breve CONGREGAÇÃO DOS SAGRADOS CORAÇÕES. Foi
Quo tibi, concedeu às congregações femininas a li- em plena Revolução Francesa que nasceu, em Poi-
cença geral de poderem agregar-se à «prima primá- tiers, o ramo masculino e feminino da Congregação
ria». Devido à supressão da Companhia de Jesus em dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, no dia de
1773, as congregações viram-se privadas da direcção Natal de 1800, fundada por Pierre Coudrin e Hen-
e organização dos Jesuítas, entraram em declínio e riette Aymer de la Chevalerie. As constituições fo-
ficaram sob a jurisdição episcopal. Depois da restau- ram aprovadas pela autoridade eclesiástica em 1817,
ração da Companhia de Jesus em 1814, retomaram o juntamente com o lema: «Contemplar, viver e anun-
seu tradicional dinamismo e todas as que se funda- ciar o amor salvador de Deus, incarnado em Jesus
vam nas igrejas e casas de jesuítas continuaram a ser Cristo.» Inicialmente, a nova congregação dedicou-
agregadas à «prima primária». Disseminadas por con- -se à formação nos seminários, a pregar missões pa-
siderável número de países, desenvolveram fecundo roquiais e a abrir colégios e casas de formação, com
apostolado eclesial, religioso e cultural (v. MOVIMENTOS o intuito de renovar o cristianismo pela expansão da
ECLESIAIS CONTEMPORÂNEOS). Em 1940, havia 7 300 000 devoção aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria
congregados, assim distribuídos pelos cinco continen- na velha Europa. O ideal missionário também foi um
tes: Europa, 4 435 000; América, 2 510 000; Ásia, dos pilares inspiradores da fundação deste instituto.
150 000; Oceânia, 100 000; África, 85 000. Nesta da- Mas só em 1826 partem os primeiros missinários pa-
ta, Portugal contava 400 congregações agregadas à ra a Oceânia. No âmbito do trabalho missionário dos
«prima primária» com mais de 20 000 congregados. Sagrados Corações vai destacar-se, no Havai entre
Saliente-se o considerável número de agregações, ao 1864 e 1873, o empenhamento do padre Damião de
longo de quatro séculos: desde 1563 a 1940, regis- Veuster, que recebeu o título de Apóstolo dos Lepro-
tavam-se 67 000 congregações agregadas; em 1949 sos. Em Portugal, o início da fundação desta congre-
passavam de 75 000; em 1965, elevavam-se a 85 556. gação verificou-se por ocasião de duas viagens reali-
O papa Pio XII, mediante a constituição apostólica zadas pelo padre Mateó Crawley-Boevey, entre 1926
e 1928, para pregar retiros ao clero português. Deste

475
CONGREGAÇÃO DOS SAGRADOS CORAÇÕES

trabalho de pregação resultou um contacto promissor CONGREGAÇÃO DO SANTÍSSIMO REDENTOR.


com D. Manuel Gonçalves Cerejeira, que tinha aca- V. R E D E N T O R I S T A S .
bado de ser nomeado bispo auxiliar do patriarca de
Lisboa. Este pediu ao padre Matéo que obtivesse do CONGREGAÇÃO SCALABRINIANOS DE SÃO CAR-
superior-geral uma equipa de formadores para o no- LOS. V. SCALABRINIANOS.
vo Seminário Maior dos Olivais. Deste modo, che-
gou, a 26 de Fevereiro de 1931, ao Seminário Maior CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS FEMININAS. A vida
de Cristo-Rei, um grupo de sacerdotes dos Sagrados consagrada concretiza-se por diversos vínculos e
Corações, dirigidos pelo padre Vitor Cadillac, ao compromissos de consagração, nomeadamente pelos
qual se vieram juntar nos anos seguintes outros con- votos religiosos, expressão pública da opção de vida
frades, os quais se mantiveram na formação do clero assumida. As formas de vida consagrada podem
diocesano até 1947. Estes religiosos tiveram uma apresentar-se como institutos de vida consagrada,
importante influência na renovação da música litúr- sociedades de vida oapostólica e outras formas de
gica do seminário, especialmente pela acção do pa- vida, tais como a vida eremítica, virgindade e outras
dre Pascal Piriou, que desempenhou também o cargo formas não institucionalizadas. Os institutos de vida
de vice-reitor. E também de salientar o papel dos Sa- consagrada podem ser: institutos religiosos* (de vi-
grados Corações na promoção e assistência espiri- da activa e contemplativa) e institutos seculares*,
tual das paróquias lisboetas, a partir de 1939 com a tanto masculinos como femininos. O membro de um
chegada de um grupo de missionários da província instituto religioso faz publicamente os três votos -
holandesa. As suas missões populares contribuíram de castidade, pobreza e obediência - vividos em fra-
para reavivar a fé, para a promoção vocacional e pa- ternidade. Os de vida activa têm uma acção apostóli-
ra criar até comunidades paroquiais novas. Tiveram ca externa nas obras próprias dos seus institutos, ou
grande impacte os seus congressos eucarísticos em individualmente. Os que exercem uma acção não ex-
Lisboa que contribuíram para a promoção da devo- terna, vivendo em maior recolhimento uma vida de
ção a Jesus Sacramentado. Em 1950, o cardeal Cere- contemplação mais estrita, são os institutos de vida
jeira confiou à congregação a exclusividade da paró- contemplativa. O membro de um instituto secular
quia de Nossa Senhora de Penha de França, ficando faz a consagração sem votos públicos, sem obriga-
como pároco o padre Ansfrido, apoiado por mais ção de vida comunitária; não altera o seu estilo de
dois coadjutores. Desta paróquia, que teve um papel vida laical, vivendo nas condições comuns da vida
importante na irradiação da espiritualidade do Sagra- no mundo, a sós, na família ou em grupo de vida fra-
do Coração de Jesus, nasceram obras de acção socio- terna conforme a sua regra de vida, seguindo uma
caritativa e educacional, em que se destacam as Es- espiritualidade que lhe é própria. 1. Dos primórdios
colas-Oficinas Cristo Operário, criadas em 1957. ao século xix: A vida monástica apareceu nos pri-
Entretanto uma série de outras paróquias foram en- meiros tempos do cristianismo. Tendo-se iniciado no
tregues ao cuidado da congregação, a saber, Santa Oriente, logo esta forma de vida se estendeu à Euro-
Iria de Azóia, São João da Talha, Bobadela, Pedreira pa Ocidental. Segundo Fortunato de Almeida, na Al-
dos Húngaros, São Bartolomeu da Charneca e Gali- ta Idade Média, em território que mais tarde seria
nheiras. Desde 1956 que desenvolvem trabalho mis- português, a vida religiosa abrangia quatro fórmu-
sionário em Moçambique*, na região da Beira, sen- las - tanto para homens como para mulheres: ceno-
do-lhe permitido no ano seguinte abrir o Seminário bitas ou monges que viviam em comum nos chama-
Padre Damião na Praia da Vitória dos Açores, o qual dos cenóbios ou mosteiros; anacoretas, pessoas que
se manteve em funcionamento até ao ano de 1971. depois de viverem em comunidade se retiravam para
Entre 1963 a 1974, mantiveram em funcionamento o celas solitárias; eremitães que habitavam lugares de-
Seminário Menor Padre Mateó em Baltar (Paredes) sertos; e reclusos que habitavam as povoações, mas
na diocese portuense, e dois seminários maiores, um encerrados em celas isoladas. Eram frequentes os
no Porto e outro em Lisboa. Todavia, o grande in- mosteiros dúplices, com uma comunidade de mon-
vestimento feito pela congregação no sentido de ges e outra de monjas, separadas pela igreja que era
implantar-se em Portugal através de membros na- comum. Os mosteiros eram autónomos no início; a
cionais foi desfeito com o dealbar do regime demo- partir do século x aparecem as congregações que
crático, em consequência do abandono de muitos eram associações de mosteiros com governo central.
candidatos a religiosos e até de muitos dos seus mes- No século xii são feitas tentativas de renovação mo-
tres. Actualmente contam apenas com cinco mem- nástica pelo papa. Também é nesta época que sur-
bros de origem portuguesa que trabalham em Lisboa gem - e logo entram em Portugal - as ordens mendi-
juntamente com mais quatro estrangeiros. Neste mo- cantes: Franciscanos* e Dominicanos*, precedidas e
mento, a congregação está empenhada, tanto em acompanhadas por outras ordens: Beneditinos*, Cis-
Portugal como a nível internacional, em fundar um ter (v. CISTERCIENSES), Cónegos Regrantes de Santo
terceiro ramo da congregação composto por leigos Agostinho*, Carmelitas*, Trinitários*, Hospitalá-
que assumam a vivência do carisma dos Sagrados rios* de Santo Antão, Eremitas de Santo Agosti-
Corações e desenvolvam tarefas em conformidade nho*, todas elas com o respectivo ramo feminino.
com o seu estado. Editam ainda a revista Reino a fim Por volta dos séculos XIII e xiv apareceram também
de divulgar a espiritualidade destes religiosos. mulheres que se consagravam à penitência e vida de
piedade, embora não estivessem ligadas a nenhuma
JOSÉ EDUARDO FRANCO regra religiosa especial. Viviam em mosteiros, ermi-
BIBLIOGRAFIA: MAIRE, Elie - Histoire des Instituís Religieux et Mission- das ou nas próprias casas, na condição de solteiras,
naires. 2." ed. Paris: P. Lethelleux-Libraire, 1930.

476
CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS M A S C U L I N A S

Campolide (1633) e em 1768 fundaram uma casa em


Braga. A partir do século xvi ao século xvm podem-
-se acrescentar: Carmelitas* (Calçadas e Descalças);
Ordem dos Jerónimos (V. J E R Ó N I M O S ) , que teve uma
casa feminina, o Mosteiro de Jesus em Viana do
Alentejo (1553); as Concepcionistas*, também co-
nhecidas como Freiras da Conceição; as Agostinhas,
na vertente reformada que eram as Agostinhas Des-
calças; as Ursulinas*; a Ordem da Visitação* (Salé-
sias); as Capuchinhas Francesas e a Ordem de São
Salvador. As Capuchinhas Francesas chegaram a
Portugal em 1666 com D. Maria Francisca Isabel de
Sabóia, mulher de Afonso VI, e tiveram somente
uma casa em Lisboa. As religiosas da Ordem de
São Salvador eram conhecidas como Brígidas ou
Inglesinhas, por terem sido fundadas por Santa Brí-
gida no século xiv. Refugiaram-se em Portugal em
1594 para fugir às perseguições religiosas na Irlan-
da, de onde eram originárias. Voltaram para o seu
país em 1861, em virtude do clima de intolerância
que grassava em Portugal (v. IRMÃS D O R O T E I A S ) . Das
congregações presentes em Portugal em 1995, esta-
beleceram-se no país antes do século xix (ressalva-
dos os períodos de hostilização) as seguintes: Car-
melitas Descalças (Monjas Descalças da Ordem da
Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo)
- 1585; Clarissas* (Ordem de Santa Clara) - 1258;
Monjas Concepcionistas* Franciscanas (Ordem da
Marie Rivier (1768-1838), fundadora das Irmãs da
Apresentação de Maria (in Boa Nova, Ano LXX1I, Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem
n.o 822, Junho de 1996). Maria) - 1629; Salésias (Ordem da Visitação de
Santa Maria) - 1784; Dominicanas Irlandesas (do
Bom Sucesso) - 1639; Monjas Dominicanas (c. 1220).
viúvas, e mesmo casadas. Eram conhecidas como 2. Século xix: OS anos de 1834 e 1910 são dois mar-
devotas, deo-votas, virgens eclesiásticas ou canóni- cos políticos que assinalam a história das congrega-
cas, famulas de Deus e emparedadas. Estas últimas ções religiosas em Portugal desse período (v. C O N G R E -
existiram por todo o século xiv e parte do século xv. GANISMO). O ideário da Revolução Francesa, no final
No final da Idade Média o estado geral das ordens do século xvm e em todo o século xix, alastrou-se até
monásticas era preocupante, com a disciplina muito Portugal, provocando um conflito entre a Igreja e o
relaxada. Para isso contribuíram o estado geral da Estado que, latente até 1820, veio à luz com a guerra
sociedade, o Cisma do Ocidente* e a riqueza de al- civil entre liberais e absolutistas. Os liberais, res-
guns conventos. No século xvi iniciou-se a renova- ponsáveis pela extinção das ordens religiosas, dis-
ção da vida religiosa com a fundação de institutos tinguiram o clero secular, que consideravam útil, do
em que predominava a ideia de apostolado, numa clero regular, para eles, inútil ( S I L V E I R A - As or-
oportunidade semelhante à que favoreceu as ordens dens). O decreto de J. A. de Aguiar de 1834 extin-
mendicantes no século XIII. Também contribuiu para guiu todos os conventos masculinos e ordens mili-
essa renovação o Concílio de Trento, que suprimiu tares, incorporando os seus bens à Fazenda Pública
as comendas, restringiu as isenções, regulou a ad- Nacional; os conventos femininos permaneciam,
missão de religiosos e submeteu à clausura absoluta sem noviciados, votados à morte lenta. Deu-se o
os mosteiros de mulheres. Por outro lado, a própria rompimento das relações com a Santa Sé, só reatadas
Coroa proibiu a construção de novos conventos sem em 1841. Seguiu-se a assinatura de uma concordata
licença régia já no início do século xvn, proibição em 1848, sem que se alterasse, de facto, a situação.
reiterada em diversas ocasiões. Apesar dessas medi- A hostilidade latente de alguns sectores da sociedade
das, as fundações eram numerosas, o que dificultava acabou por obrigar à saída de algumas congregações
a sua sustentação. Até ao século xvi, as principais or- como foi o caso das Brígidas e o emblemático caso
dens que se estabeleceram em Portugal e que tinham das Irmãs de São Vicente de Paulo* (v. VICENTINOS).
o ramo feminino foram: Ordem de São Bento (V. BE- Contudo, o clima adverso não impediu que as con-
NEDITINOS e BENEDITINAS), Ordem de Cister, Agosti-
gregações que aqui permaneceram continuassem o
nhas* (nas modalidades de Cónegas Regrantes de seu trabalho dentro do possível (por ex. as Ursuli-
Santo Agostinho e Eremitas da Observância Ordiná- nas). Em finais do século xix, apesar da legislação
ria), Ordem de São Domingos (v. DOMINICANOS e D O - existente, começam a aparecer congregações religio-
MINICANAS) da Santíssima Trindade, cujo ramo femi-
sas de fundação portuguesa; foram-se introduzindo
nino era conhecido por Trinas. As Trinas tiveram um igualmente comunidades e congregações estrangei-
convento em Guimarães (1653); em Lisboa o Mos- ras à sombra de uma relativa tolerância, graças às
teiro de Nossa Senhora da Soledade do Mocambo suas actividades de benemerência. O trabalho que
(1657) e o de Nossa Senhora dos Remédios em

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Legenda: * • Entrada própria; 1.» coluna: casas em Portugal; 2.» coluna: membros em Portugal; 3.' coluna: data de fundação do instituto; 4." coluna: data de entrada em
Portugal dos institutos estrangeiros e P - fundação portuguesa. As falhas existentes no quadro devem-se à falta desses dados no material disponível.

desenvolviam preenchia um espaço, sobretudo jun- particular incidência na história das congregações
to das classes urbanas desfavorecidas, que o Estado religiosas em Portugal, culminando na luta do Estado
liberal não era capaz de suprir. Das congregações contra a Igreja; essa hostilidade nunca tinha deixado
existentes em Portugal em 1995, 14 estabeleceram- de se manifestar da parte de alguns sectores sociais e
-se no século passado. Dessas, 10 eram estrangei- respectiva imprensa desde o século xix, sobretudo
ras: Congregação do Bom Pastor* - 1881; Francis- em relação às congregações religiosas. O clima de
canas Missionárias de Maria* - 1895; Franciscanas relativa tolerância, que permitira o trabalho de vários
Missionárias de Nossa Senhora* 1875; Hospitaleiras institutos religiosos, toldou-se em Fevereiro de 1901
do Sagrado Coração de Jesus 1894; Irmãs de São com o chamado Caso Calmon. Sectores anticlericais
José de Cluny* - 1881; Irmãs de São Vicente de que abrangiam tanto republicanos como monárqui-
Paulo - 1857; Irmãs Doroteias - 1866; Irmãzinhas cos exigem, então, a plena aplicação da legislação de
dos Pobres - 1884; Religiosas do Sagrado Coração 1834 que não fora revogada (v. ANTICLERICALISMO).
de Maria* - 1871; Teresianas - 1884. Os quatro ins- Na sequência desse incidente, o governo procedeu a
titutos portugueses fundados no século passado tive- um inquérito; apurou-se haver realmente em Por-
ram como objectivo a educação e a assistência social, tugal conventos com vida monástica e noviciados,
procurando suprir lacunas causadas pelas dificulda- além de outras comunidades; muitas casas foram
des colocadas à entrada de congregações estrangei- imediatamente fechadas. Em virtude disso, foi expe-
ras. Foram elas: Irmãs Dominicanas de Santa Catari- dido um decreto - a lei Hintze Ribeiro de Abril de
na de Sena* - 1868 (popularmente conhecidas como 1901 - que mandava regularizar os estabelecimentos
Dominicanas Portuguesas); Congregação das Irmãs de ensino, caridade, beneficência e propaganda no
Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Concei- ultramar assim como as congregações religiosas que
ção* - 1871 (conhecidas como Irmãs Hospitaleiras os dirigiam, sujeitando-os à fiscalização do Estado e
Portuguesas); Irmãs de Jesus Maria José* - 1880 e à jurisdição eclesiástica ordinária portuguesa. Peran-
Irmãs Vitorianas* - 1884. 3. Século xx: A implan- te essa situação, os institutos viram-se obrigados a
tação da República em 5 de Outubro de 1910 teve organizar associações civis com estatutos próprios;
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a titularidade dos imóveis ficou, muitas vezes em tos retomados pelo movimento militar de 1926 que
nome de religiosas, outras vezes em nome de asso- põe fim à I República. Após 1926, as relações da
ciações. Esses procedimentos vão ter consequências Igreja com o Estado melhoram, e em 1929 é autori-
por ocasião da expulsão e expropriação das congre- zada a entrada no país das ordens e congregações ex-
gações religiosas em 1910. Como alguns dos seus pulsas em 1910. Finalmente, pela assinatura, em
bens estavam em nome individual de cidadãos es- 1940, da Concordata e do Acordo Missionário* re-
trangeiros, esses institutos puderam reavê-los mais gulava-se a situação jurídica da Igreja Católica em
tarde, apelando para tribunais internacionais. Im- Portugal e sanava-se a questão religiosa que vinha
plantada a República, imediatamente se legislou no desde o século xix. Era o início de uma nova etapa
sentido de diminuir e mesmo anular a presença da nas relações entre a Igreja e o Estado. Indicador da
Igreja Católica na sociedade portuguesa. Com rela- nova situação é o número de congregações religiosas
ção ao clero regular, pôs-se em vigor legislação do femininas que aqui se estabelecem pela primeira
século xviii e o decreto de 1834; anulou-se o decreto vez, não mencionando já as que empreenderam o re-
de 1901 e promulgou-se um outro, determinando torno, iniciado com cautela, nas décadas anteriores.
que os estrangeiros, membros de corporações reli- Verificando as datas de entrada e/ou de fundação das
giosas, fossem expulsos do país, enquanto os nacio- congregações a trabalhar em Portugal em 1995, no-
nais eram compelidos à vida secular; os bens das ta-se um movimento ascendente a partir dos anos 20,
corporações extintas passavam à posse do Estado e que alcança o topo nos anos 30 e 40; nessas duas dé-
proibia-se aos seus membros, autorizados a viver em cadas estabeleceram-se em Portugal pela primeira
Portugal, exercer o ensino e intervir na educação di- vez 23 institutos estrangeiros e fundaram-se oito
recta ou indirectamente. Face a esta situação, os ins- nacionais. Os 30 anos que medeiam entre o fim da
titutos religiosos dispersaram-se e a maior parte saiu Segunda Guerra Mundial e a Revolução de 25 de
do país; as poucas casas que restaram, em geral no Abril de 1974 são anos de expansão e mudanças.
Norte, mantiveram-se, exteriormente, secularizadas Os novos tempos exigem mais preparação profis-
e em semiclandestinidade. As congregações estran- sional e as congregações investem mais na forma-
geiras procuraram integrar os seus membros em ou- ção dos seus membros. Por outro lado, seguindo as
tras casas na Europa, pelo menos nos primeiros tem- directrizes do II Concílio do Vaticano, os institutos
pos, destinando-os depois para novas fundações. As repensam carisma e missão, num esforço de adap-
congregações de origem portuguesa - num primeiro tação às exigências dos novos tempos; organizam-
momento dispersas pelo país - aos poucos reorgani- -se capítulos extraordinários e inicia-se um proces-
zam-se e vão continuar o trabalho em outras para- so de revisão das respectivas constituições que, em
gens. Dois destinos são maioritariamente escolhidos: alguns casos, chegou até aos anos 80. A guerra co-
Espanha e Brasil*. Pela proximidade com Portugal e lonial foi sentida de perto por muitas congregações
facilidade de comunicação, assim como semelhanças que trabalhavam no terreno. A mudança de regime,
culturais, a Galiza é o primeiro destino, em especial trazida pelo 25 de Abril de 1974, e a consequente
Tui. São muitas as congregações que ali estabelecem independência dos antigos territórios ultramarinos,
os seus noviciados e casas-mãe, além de abrirem es- introduziu profundas transformações no país, fruto
colas para receber as antigas alunas portuguesas. É o da democratização e rápida evolução da sociedade.
caso, por exemplo das Irmãs Franciscanas Hospita- Além do impacte desses acontecimentos, alguns
leiras da Imaculada Conceição, Franciscanas Missio- institutos enfrentaram ainda o problema do retorno
nárias de Maria, as Irmãs Doroteias, as Religiosas do de Africa de muitas religiosas que ali trabalhavam.
Sagrado Coração de Maria, e as Dominicanas de Aquando das mudanças do II Concílio do Vaticano
Santa Catarina de Sena que vão para Salamanca. Ou- e das novas condições políticas, deu-se a saída de
tro destino é o Brasil, quer como segunda etapa bastantes religiosas professas e a diminuição de vo-
de um caminho iniciado em Espanha ou nos países cações, resultando daí a redução dos seus efectivos
de origem, quer como destino definitivo, como foi o e o consequente envelhecimento dos seus quadros.
caso das Irmãs de Jesus Maria José, que permanece- Acentuou-se, também, a tendência para uma nova
ram em Portugal na clandestinidade e aos poucos se forma de apostolado: deixaram-se as grandes estru-
transferiram na totalidade para aquele país. Entretan- turas em favor de pequenas comunidades de inser-
to, acalma-se a perseguição; em 1914, o chefe do go- ção, muito embora algumas congregações, das mais
verno, Bernardino Machado, pronuncia-se pela pri- numerosas em Portugal, devido ao seu carisma, te-
meira vez a favor de um entendimento com a Igreja. nham mantido a organização em poucas casas com
Por outro lado, com a participação de Portugal na grandes comunidades. É este o caso da Congrega-
Grande Guerra, a partir de 1916, atenua-se a questão ção da Apresentação de Maria, das Irmãs Hospita-
religiosa; efectivamente, a exigência de assistência leiras do Sagrado Coração de Jesus, das Salesianas
religiosa e hospitalar aos militares em campanha (Filhas de Maria Auxiliadora) e das Teresianas
e feridos de guerra reclamava a assistência de con- (Companhia de Santa Teresa de Jesus), cujo núme-
gregações religiosas; a presença portuguesa em An- ro de casas e de elementos podem ser constatados
gola* e Moçambique* (cujos territórios haviam sido no quadro anexo. Outra tendência deste período é a
atacados pela Alemanha) através de escolas e assis- valorização da profissionalização e da formação
tência social foi igualmente sentido como campo pri- permanente. As fundações portuguesas têm rareado
vilegiado das congregações religiosas. Com Sidónio ultimamente; nos anos 60 foram fundadas duas
Pais termina a perseguição aberta à Igreja e, apesar congregações e um instituto secular; nos anos 70
da curta duração, o seu governo preconiza propósi- apenas uma. Quanto à entrada de institutos estran-

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CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS M A S C U L I N A S

geiros, se nos anos 60 e 70 acusou uma diminuição, devido à sensibilidade galicana. Foi o caso de Ana
na década de oitenta recrudesceu o movimento de Maria Javouhey, fundadora das Irmãs de São José de
entradas. O ingresso de Portugal na União Europeia Cluny* com monsenhor d'Héricourt, bispo d'Autun;
e o incremento das relações com os PALOP têm ou o de Maria Eufrásia Pélletier, das irmãs do Bom
trazido novos desafios às congregações de vida acti- Pastor, com monsenhor Montblanc, bispo de Tours.
va e institutos seculares. Na Europa, tem-se intensi- As congregações estrangeiras que entraram em Por-
ficado o trabalho junto das populações que sofrem o tugal naquela época eram, maioritariamente, prove-
impacte da integração; em África, reiniciou-se o tra- nientes de França - sete congregações; de Espanha
balho interrompido em 1975, agora sob novas pers- vieram duas e de Itália uma. A presença francesa
pectivas. A maioria dos institutos implantados ac- explica-se pelo grande movimento de renovação re-
tualmente em Portugal fixou-se no país a partir do ligiosa que se manifestou por toda a França em
século passado; o maior grupo fixou-se depois de meados do século xix; expressão disso foi o apare-
1920. As congregações que aqui se estabeleceram no cimento de perto de 300 congregações. Em maior
século xix eram todas de vida activa e o trabalho que número do que o país necessitava, a tendência foi
desenvolveram preenchia uma lacuna, sobretudo de sair de França, demandando outros países ou ter-
junto às classes urbanas desfavorecidas, que o Esta- ritórios coloniais, traduzindo aí o seu carisma ( c f .
do liberal não era capaz de suprir. De modo geral, L A N G L O I S - Le catholicisme, p. 435-449). A implan-
essas congregações, tanto nacionais como estrangei- tação da República em 1910 trouxe grandes mudan-
ras, eram de fundação recente (século xix), dedican- ças no apostolado da Igreja. O vazio provocado pela
do-se a trabalhos de assistência, educação e promo- saída das congregações vai ser muitas vezes preen-
ção da mulher*, desenvolvidos em grandes colégios, chido por organizações e movimentos laicais. Cria-
abrigos e orfanatos. Mesmo quando filiadas nas ram-se então novas organizações e movimentos de
grandes famílias - franciscana, dominicana, carmeli- leigos; os de fundação anterior redobraram as suas
ta, por exemplo - concretizam a sua espiritualidade actividades. Será desses movimentos e organizações
em actividades variadas. Outra característica da que irão surgir algumas fundadoras de novas congre-
maioria dos institutos fundados no século xix é a or- gações religiosas, marcadas por um ambiente forte-
ganização interna com um governo-geral, constituí- mente secularizado, próprio dos anos 10 e 20 em
do pela superiora-geral e o seu conselho, dos quais Portugal. Integradas na dinâmica apostólica da Igreja
dependem as várias casas, directa ou indirectamente. e próximas da hierarquia, a fundação de institutos re-
Pensada para facilitar a expansão através da união de ligiosos é quase sempre uma decorrência de activi-
esforços, esta organização originou por vezes confli- dades que essas mulheres já desenvolviam. Por isso,
tos entre superioras - que têm um projecto e querem a tónica do trabalho estava na assistência social e na
autonomia para levá-lo a cabo - e os superiores hie- catequese, a todos os níveis, visando a recristianiza-
rárquicos que procuram interferir na orientação do ção da sociedade portuguesa afectada por tantos
instituto. Estes casos foram mais comuns em França, anos de campanha contra a Igreja Católica. É o caso

Casa Provincial das Irmãs da Apresentação de Maria, em Setúbal.

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CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS M A S C U L I N A S

das Servas de Nossa Senhora de Fátima*, cuja fun- veram relevância histórica, mesmo que já desapare-
dadora fora mentora de uma obra social - a Obra de cidas ( v . VIDA RELIGIOSA).
MARIA DO PILAR S. A. VIEIRA
Santarém assumindo posteriormente a União
Gráfica, escolas e creches; ou as Criaditas dos Po- BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal.
bres*, com um trabalho de evangelização a partir Porto: Portucalense, 1967-1971. 4 vol. DUFOURCQ, Elizabeth - Les con-
da promoção social dos mais desfavorecidos em grégations religieuses féminines hors de l'Europe. Paris: Librairie de
l'Inde Éditeur, 1993. 4 vol. HOSTIE, R a y m o n d - Vie et mort des ordres
seu próprio meio, e cuja fundadora iniciara o seu rèligieuses. Paris: Deselée de Brouwer, 1972. LANGLOIS, Claude - Le
apostolado nas Conferências de São Vicente de catholicisme au féminin: Les congrégations françaises à supérieure gé-
Paulo. Outro ponto a considerar é o tipo de relação néral au XIX' siècle. Paris: Cerf., 1984. OLIVEIRA, Miguel de - História
eclesiástica de Portugal. Lisboa, 1994. SILVEIRA, Luis Espinha da - As
que se estabeleceu entre os diversos institutos reli- ordens religiosas à data da extinção. Notas de conferência proferida
giosos. Os mais antigos, já reinstalados em Portu- nos Encontros de História: 1994-1995: «D. Domingos Frutuoso e o seu
gal, vão ajudar as novas congregações, sobretudo tempo», Convento de São Domingos, Lisboa, 1994. TURIN, Y v o n n e -
Femmes et rèligieuses au xtX' siècle. Paris: Nouvelle Cité, 1 9 8 9 . VINDE e
no que se refere à formação dos seus membros: vede. Lisboa: Paulinas, 1995.
uma irmã de São José de Cluny prepara a M. Cecí-
lia, fundadora das Reparadoras de Fátima; as Ser- CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS MASCULINAS. De
vas de Nossa Senhora de Fátima vão ter uma irmã modo a regular e a definir com rigor e distinção a
doroteia como mestra de noviças por seis meses; as pluriformidade de vida religiosa que se tem desen-
Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria prepa- volvido historicamente na Igreja, o Código de Direi-
ram o grupo inicial das Reparadoras de Jesus Sacra- to Canónico promulgado em 1983 designa as con-
mentado; as Religiosas do Sagrado Coração de Ma- gregações e as ordens religiosas pelo nome de
ria ajudam as Reparadoras Missionárias da Santa Institutos Religiosos. Estes, por sua vez, constituem
Face no noviciado, enquanto a prioresa do Carmelo junto com os Institutos Seculares (que é uma forma
de Faro as orienta na vida contemplativa... Por ou- recente de vida consagrada, em que os consagrados,
tro lado, há congregações portuguesas fundadas por a teor das constituições do instituto, não emitem ne-
egressas de outros institutos, como é o caso da fun- cessariamente votos públicos e não têm necessaria-
dadora da Fraternidade Franciscana da Divina Pro- mente vida comunitária, para que possam continuar
vidência, que saiu das Franciscanas Missionárias de as suas actividades normais in saeculó) aquilo que se
Maria; ou a fundadora das Servas da Sagrada Famí- designa geralmente por Institutos de Vida Consagra-
lia, antiga religiosa teresiana, para citar apenas dois da ( c f . cc. 710-730). Paralelamente, existem as So-
exemplos. Quanto às actividades desenvolvidas pe- ciedades de Vida Apostólica, em que «o seguimento
las congregações religiosas no século xx, elas são de Jesus Cristo não se exprime pela profissão reli-
mais diversificadas que no século xix. Sem abando- giosa dos três votos mas com outros compromissos,
nar os trabalhos de educação e assistência, interes- vivendo a própria consagração em vida comum e
sam-se pela imprensa, ajudam nas tarefas paroquiais num mesmo espírito», tendo em vista a prossecução
e, na educação, inserem-se no ensino oficial. Fazem- de um fim de carácter apostólico. Neste sentido, não
-no em comunidades de inserção. Em relação aos no- sendo Institutos de Vida Consagrada aproximam-se
mes das congregações religiosas femininas, observa-se destes, tanto mais que em alguns casos os seus mem-
que os institutos fundados em Portugal no século xix bros podem professar os conselhos evangélicos (cf.
se ligaram mais directamente ao santo padroeiro: Ir- cc. 731-746). As modernas congregações religiosas
mãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, Irmãs de situam-se numa linha de continuidade do grande mo-
Jesus Maria José, Irmãs Franciscanas de Nossa Se- vimento da denominada «vida religiosa» ou «vida
nhora das Vitórias, Irmãs Franciscanas Hospitaleiras monástica» que brotou e se desenvolveu no seio
da Imaculada Conceição. Os institutos fundados no do cristianismo a partir dos séculos iv/v, aquando do
século xx, na quase totalidade, procuram traduzir processo da chamada «constantinização» da Igreja.
no nome, além do patrono, o carisma, reflectindo, de No plano eclesiológico, a vida religiosa surge e de-
certa forma, o clima religioso da época da fundação. senvolve-se como uma experiência marginal em re-
Assim, por exemplo, dentre os 19 institutos portu- lação à estrutura hierárquica, que depois é reconhe-
gueses fundados no século xx, o maior número é o cida como uma mais-valia e enquadrada na própria
das «servas» ou «ao serviço» (oito), «criadas» (um), Igreja institucional, mas mantendo um estatuto autó-
«oblatas» (um), expressando assim um sentimento nomo. Experiência marginal que se apresenta, por
de humildade, serviço e oferecimento, características vezes, como reacção crítica à «acomodação» da vida
próprias dos anos 20 e 40, e que se traduzia no traba- dos baptizados em Cristo, resultante da oficialização
lho desenvolvido por esses institutos. O sentido da da religião cristã como religião de Estado no âmbito
«reparação» é também uma constante nesses anos, do Império Romano, deixando de ser uma religião
visível no nome de quatro congregações religiosas perseguida para ser uma religião ordenada e ordena-
femininas; a preocupação pela missão deu nome a dora do próprio sistema político em que se insere.
três... Quanto aos patronos, Nossa Senhora é invoca- Neste quadro, o monaquismo cristão apresenta-se
da no nome de cinco congregações religiosas femini- como uma proposta de regeneração do cristianismo
nas, o Coração de Jesus, ou o Divino Coração, em através de uma vivência que se pretendia radical do
três, assim como a Divina Providência, para citar Evangelho, num dinamismo de regressus às fontes
apenas os mais correntes. Em 1995, Portugal conta- da fé, tendo como modelo a vida de Cristo e as co-
va com 97 congregações religiosas femininas de vi- munidades cristãs primitivas. Aqui o apelo à fuga
da activa, seis de vida contemplativa e 13 institutos mundi, ou seja, a exigência de recolhimento em rela-
seculares. O quadro anexo inclui também as que ti- ção ao bulício e às preocupações da sociedade e a

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CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS MASCULINAS

tentar profissão dos votos religiosos são vistos, ori- aparecem os eremitas primitivos, também chamados
ginariamente, na óptica deste movimento de contra- anacoretas, que eram viri religiosi que se retiravam
corrente, como forma de substituir o ideal de martí- para o deserto ou lugares ermos, aí vivendo uma vi-
rio num quadro de ausência de perseguição política da de solidão extrema, oração intensiva, jejum e pe-
aos seguidores de Cristo. Deste modo, a motivação nitência como forma de, assim, experimentar uma
fundamental e fundante do monaquismo cristão as- maior intimidade com Deus. A estes pioneiros deve-
senta no ideal «do seguimento ou imitação de Cristo, mos juntar os cenobitas, que experimentavam uma
que naquele género de vida se podia realizar sem vida de desprendimento do mundo não isoladamen-
[...] meios-termos, sobretudo mediante o despreendi- te, mas comunitariamente, partilhando o trabalho e a
mento radical do "mundo", como salienta insistente- oração. De facto, dá-se uma evolução natural do er-
mente Basílio. O monge quer seguir "o caminho hu- mitismo para o cenobitismo: «com o correr do tem-
milde de Cristo", o caminho estreito e árduo de que po a vida eremítica será substituída pela vida comu-
fala a escritura» (JEDIN - Manual, vol. 2, p. 469). nitária, como se aquela fosse uma forma imperfeita,
A vida religiosa cristã apresenta-se, pelo seu estilo como um estádio superado da vida monástica. Ainda
de vida, como uma consciência crítica dentro da que a mesma história se encarregará de oferecer fre-
própria Igreja, tendo como modelo as comunidades quentes revivescências do eremitismo* ao longo dos
do cristianismo primitivo, proclamando a exigência séculos, até aos nossos dias». No entanto, «no mon-
de um regresso às origens, às fontes do Evangelho ge cenobita, disse São Bento, encarna-se a mais ge-
de Cristo e da fé e caridade que dele emana. Assim nuína raça de monges» (Ibidem, p. 31-32). Com
sendo, é preciso ter em conta que «A história das efeito, São Bento (e a regra religiosa cenobítica, cuja
formas de vida religiosa somente é inteligível se a autoria lhe é atribuída) é considerado o fundador do
considerarmos como uma parte integrante da história monaquismo cristão organizado no Ocidente (v. BE-
da Igreja. O que quer dizer que a história da vida re- NEDITINOS), paradigma que vai inspirar ou pelo me-
ligiosa há-de ter todas as características que configu- nos vai ser tido em conta pela proliferação das mais
ram a especificidade da história da Igreja. Se, como diversas formas de vida religiosa que a história da
disse a Lúmen Gentium, a vida religiosa surge da vi- Igreja vai registar. Mas nestes alvores da vida reli-
da mesma da Igreja, somente poderá alcançar uma giosa, não podemos esquecer a importância das co-
inteligibilidade completa se se explica dentro do munidades e legislação monástica protagonizadas
contexto eclesial donde nasce» (ALVAREZ - História, por São Pacómio, São Basílio e até por Santo Agos-
vol. 1, p. 25). Como precursores da vida religiosa tinho. O florescimento da vida monástica durante a
Idade Média vai marcar indefectivelmente a história
da cultura e da sociedade ocidental, na medida em
que os mosteiros foram os grandes centros promo-
tores de educação, de cultura, de espiritualidade e,
paradoxalmente, de produção de riqueza. A impor-
tância estruturante que os monges tiveram na con-
servação e transmissão da cultura, na educação do
clero e das elites culturais, no povoamento, na pró-
pria estruturação das nacionalidades, na expansão e
«inculturação» do cristianismo (unificando pela dou-
trina de Cristo, eclesiologicamente entendida, a di-
versidade de povos e de culturas da medievalidade
europeia), constitui um dos vectores fundamentais
para compreender a elaboração da civilização cristã
ocidental. Por exemplo, a partir do século vi as esco-
las monacais passaram a servir de modelo às escolas
episcopais que formavam o clero, pois eram centros
proficuçs de cultura e também de exemplum de vida
cristã. E dos mosteiros que saem os grandes forma-
dores e quadros técnicos da medievalidade, é tam-
bém destes que saem os grandes pedagogos que vão
formar e aconselhar os reis, fundar as universidades
e outras instituições de ensino. Mas a história da vi-
da religiosa não é um continuum de dedicação abne-
gada a Cristo e ao Evangelho. Ela é uma história li-
near que comporta, no entanto, um dinamismo que
podemos chamar «cíclico», caracterizado pelo flo-
rescimento fervoroso, pela decadência e pela conse-
quente exigência profética de renovação e até de
restauração. Com efeito, o monaquismo contribuiu,
na sua potenciação da vida cristã como instância
crítica e reformadora, para promover, nos seus dife-
rentes andamentos, a renovação da Igreja. A sua
Capa da revista mensal Boa Nova, dos Missionários da história feita de luz e sombras, de ruína, de crítica,
Boa Nova.

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CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS MASCULINAS

de adaptação e de renovação, explica em grande antigas, como é o caso da reforma carmelita. Este
medida a evolução e a pluriformidade da vida reli- processo de renovatio vai ser influenciado pela De-
giosa cristã. Na própria medievalidade assiste-se a votio moderna, pela Imitação de Cristo, pela demanda
este dinamismo. Comece-se desde logo por recor- de uma maior interioridade de carácter mais indivi-
dar a primeira tentativa de renovação no quadro da dualizante e pelo cultivo de uma relação devocional
reforma carolíngia a que se seguirá, como ponto com Deus marcada por uma maior dimensão afecti-
marcante, a reforma de Cluny (v. C L U N I A C E N S E S ) que va. Este esforço de renovação e expansão da vida
vai arrastar consigo a necessidade de renovação da religiosa não abranda na passagem crítica da Idade
vida religiosa em geral e vai inspirar a própria re- Moderna para a Idade Contemporânea. Não obstante
forma da Igreja hierárquica - a célebre reforma gre- os duros golpes dados na vida religiosa pelo ilumi-
goriana. Reformas que procuram incrementar uma nismo racionalista, pelo movimento político-ideológi-
maior exigência e rigor da experiência religiosa co que se inspira no ideário da Revolução Francesa,
contra o relaxamento da vida monástica. Mas é no pelo liberalismo político, pelo regalismo e nacio-
século xiii que a vida religiosa conhece um signifi- nalismo anti-ultramontano, pelo positivismo, pelo
cativo avanço, com a fundação das ordens mendi- cientismo e pelo humanismo agnóstico (v. A G N O S T I -
cantes - Dominicanos* e Franciscanos*. As ordens C I S M O ) , uma nova forma de vida religiosa nasce e
mendicantes no século XIII são assim chamadas pelo desenvolve-se extraordinariamente: as congregações.
facto de os seus membros poderem auferir a sua O nascimento do movimento congreganista (v. CON-
subsistência pelo recurso ao peditório público e pelo G R E G A N I S M O ) no seio da Igreja Católica deve ser
esforço do seu trabalho e já não pela colecta de dízi- compreendido como uma resposta efectiva às novas
mos como era tradição das ordens monásticas anti- necessidades, ou seja, aos sinais de decadência da
gas. Portanto, viviam da mendicidade, numa atitude sociedade sacral em evolução crescente para uma so-
de dependência da providência, a qual se revelava na ciedade laica e secularizada. As congregações reli-
generosidade espontânea dos fiéis. Os Irmãos Prega- giosas, em linha de continuidade com a tradição mo-
dores, mais conhecidos por Dominicanos (Ordem nástica e nela profundamente inspiradas no que
dos Pregadores), e os Irmãos Menores, mais conhe- respeita à espiritualidade e à vinculação comunitária,
cidos por Franciscanos, compõem este novo tipo de são, todavia, uma tentativa de recriação da vida re-
vida religiosa. Os Mendicantes não são monges pro- gular do passado. O ordenamento monástico e con-
priamente ditos, mas irmãos (fratres) que procuram ventual enfermava de ausência inovadora que articu-
viver entre os homens de modo a convertê-los pelo lasse os antigos valores regulares com os desafios
testemunho e pela palavra, e não na solidão, retira- emergentes das sociedades modernas. O velho mo-
dos do mundo. Devido à proibição do IV Concílio naquismo apresentava-se incapaz, no seu excessivo
de Latrão (1215) que impedia a formação de ordens imobilismo, para atender às exigências das socieda-
que seguissem novas regras, estas novas ordens de- des modernas, marcadas por uma dinâmica muito
veriam adoptar uma das antigas regras. De facto, os mais acelerada e, por isso, mais instável. As novas
Dominicanos adoptaram a regra dita de Santo Agos- congregações estavam vocacionadas e estruturadas
tinho e foram confirmados canonicamente como para a missão, eclesialmente patrocinada e confirma-
cónegos regulares. No entanto, os Franciscanos go- da, de atender «as necessidades dos Homens de cada
zaram de uma excepção no quadro daquela determi- tempo e lugar, no seu evoluir humano» (VINDE,
nação conciliar, mercê de uma tradição que dizia ter p. 11). O substantivo congregação (congregado) de-
São Francisco apresentado um projecto de regra à riva do verbo latino congregare que significa reunir,
Santa Sé antes do referido concílio; em virtude dis- criar comunidade, sob a orientação de um determi-
so, viram aprovada uma regra redigida pelo funda- nado ideal (carisma), em função do qual são elabora-
dor em 1221. Ao trocar a vida «secular» (exiit de das regras que devem orientar a vida dos membros
saeculo) pela vida consagrada a Cristo (Deo vota), dessa mesma comunidade. Embora o termo «congre-
os religiosos mendicantes propunham-se viver po- gação» (aliás, como acontece com o termo «ordem»)
bres, em conformidade com aquilo que o Evangelho costume ser o nome vulgarmente atribuído a todos
narra ter sido a vida de Jesus. Esta nova forma de vi- os institutos religiosos* em sentido lato, ele diferen-
da religiosa - mendicante mais flexível e adaptada cia-se tecnicamente da ordem religiosa pela não so-
para acompanhar o aumento da mobilidade na socie- lenidade dos votos públicos, como definia o Código
dade medieval, pelo recrudescimento do comércio, de Direito Canónico de 1917, definição que consagra
quebra o imobilismo e a estabilidade do monaquis- a distinção entre votos simples e solenes realizada
mo tradicional e torna-o, desta forma, mais maleá- pela primeira vez por Santo Inácio de Loyola. Histo-
vel para responder às exigências do seu tempo. No ricamente, até ao século xvm todos os institutos reli-
dealbar da modernidade assiste-se a uma nova ex- giosos eram designados em sentido estrito por «or-
periência de renovação e readaptação da vida reli- dens religiosas». Só a partir de 1784, ano em que
giosa tradicional, demasiado enredada em comodis- Pio VI aprovou a última ordem religiosa, a dos Ir-
mos, privilégios e vícios, e até em ignorância. Este mãos da Penitência de Jesus Nazareno, é que a Igre-
estado lastimável de decadência vai ser confrontado ja passou a criar congregações. No âmbito da histó-
com o reactivo movimento de renovação que vai in- ria da Igreja, as diferentes congregações surgiram, à
crementar a vida religiosa em moldes novos. Para semelhança das ordens, pelo protagonismo de um ou
tal muito contribuiu não só a fundação de novos ins- mais indivíduos que, sentindo-se inspirados pelo Es-
titutos religiosos como é exemplo a Companhia de pírito Santo, enfatizaram um dos ideais de vida pro-
Jesus em 1540 (v. JESUÍTAS), como a renovação das postos por Cristo nos Evangelhos e constituíram-no

484
CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS MASCULINAS

como carisma, que é a referência fundamental e a ra- no aqui e agora da história dos homens. O grande
zão de ser, existir e agir das comunidades que fun- boom do movimento congreganista aconteceu com o
dam. Na linha do ordenamento regular anterior, os dealbar da Época Contemporânea, concretamente
membros das congregações religiosas possuem um depois da proclamação dos Direitos do Homem no
modo de vinculação similar, independentemente do pós-Revolução Francesa e no quadro de seculariza-
carisma: os votos de pobreza, castidade e obediência ção* progressiva da sociedade, bem como num am-
(algumas congregações acrescentam um quarto vo- biente marcado pela crítica à vida religiosa tradicio-
to - normalmente facultativo - , como, por exemplo, nal. Este surgimento maciço de congregações com
os Jesuítas adunam o voto de obediência ao Papa ou carismas vários enquadra-se numa tentativa eclesial
os Dehonianos* o voto de oblação). Estes compro- de travar o movimento secularista numa sociedade
missos vinculativos, normalmente realizados em em claro distanciamento progressivo em relação ao
duas fases (uma temporária e outra perpétua) são modelo medieval de Cristandade que a Igreja, atra-
significativos de toda a vida religiosa, na medida em vés das congregações, pretende continuar, embora
que pretendem testemunhar existencialmente a mais com uma maior flexibilidade, pela adaptação ao evo-
radical sequela Christi proposta pelo Evangelho, isto luir movediço dos novos tempos. No caso português,
é, a renúncia e entrega ao Senhor da Vida dos gran- o movimento congreganista emerge nos finais do
des desejos que mobilizam os homens na sua exis- século xviii e ao longo do século xix, em diferentes
tência terrena: a ambição de possuir bens, o desejo andamentos cadenciados por uma sociedade em
de comungar com outrem do prazer carnal e de pro- transformação política acelerada, e interessada, à
criação, e a vontade de realizar a sua liberdade indi- semelhança de outros países da Europa dita ilumina-
vidual, orientando esta vida oblativa para «a pessoa da, em enfraquecer o poder ultramontano, interna-
mesma de Jesus Cristo, no seu modo de viver intei- cionalista e centralista da Igreja Romana e em valo-
ramente para Deus e para os homens» que «é o fun- rizar as chamadas Igrejas nacionais ou galicanas.
damento último e a definitiva justificação da vida Neste âmbito, as congregações vão sofrer os precal-
consagrada» ( A L O N S O - La vida, p. 3 2 ) . Esta entrega ços dos conflitos entre galicanos e ultramontanos, e
pretende ser significativa, então, de uma vida total- dos ataques do movimento ateu e secularista que se
mente doada a Cristo e ao seu Evangelho sem torna culturalmente influente e, em alguns períodos,
quaisquer condições ou cedências, entrega essa que dominante. Neste âmbito, imprime-se, no pontifi-
se pode exprimir na contemplação, no serviço dos cado controverso de Pio IX, uma tentativa de re-
pobres, na acção missionária, na educação, na as- novação das ordens tradicionais em virtude de um
sistência aos doentes, na reabilitação social dos movimento de auto-renovação, mas também por
desprotegidos, etc. Neste sentido, os religiosos são, instigação da hierarquia eclesiástica. Para apoiar este
essencialmente, testemunhas e sinais proféticos e processo de renovação é significativa a criação da
antecipativos da comunhão escatológica com Deus, congregação pontifícia De Statu Regularium (1846)

Colégio de Montariol, das Missões Franciscanas.


CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS MASCULINAS

com o objectivo de reabilitar e ordenar a vida reli- gime monárquico constitucional em relação às congre-
giosa, à semelhança da congregação criada, anterior- gações, verifica-se o regresso dos institutos expulsos e
mente, com o mesmo nome por Inocêncio X, em a implantação de novas congregações (Salesianos*,
1649, e suprimida por Inocêncio XII em 1698. Visa- Claretianos*, Redentoristas*...), que entraram num
va-se reparar as fracturas provocadas pela Revolução franco processo de expansão, particularmente no cam-
Francesa e pelo liberalismo* e fazer voltar as ordens po da educação, da assistência e da vida cultural do
e congregações ao carisma fundacional na sua dinâ- país. Expansão que foi, em certa medida, consagrada e
mica interna. Este esforço de renovação por parte da facilitada pela lei de Hintze Ribeiro em 1901, que au-
hierarquia resultava da convicção de que a reforma- torizava oficialmente as congregações que tivessem
ção da vida regular resultaria na renovação da pró- como objectivo desenvolver obras de educação e de
pria Igreja em geral. Com efeito, este processo de assistência no país. Porém, a I República vai infligir
reabilitação da vida religiosa vai contribuir para a um novo golpe neste dinamismo ascensional da vida
sua expansão e consolidação, surgindo na Igreja uma religiosa em Portugal, expulsando novamente os reli-
série de novos institutos fundados na diversidade dos giosos (que já somavam várias centenas) e ficando
carismas bebidos no Evangelho e para responder às com a posse dos seus bens não sem consequências ne-
mais diversas necessidades da Igreja: missões, edu- gativas na capacidade do Estado suprir os grandes ser-
cação, assistência aos pobres e aos doentes, etc. Não viços que as suas organizações prestavam em vários
obstante esta enorme proliferação congreganista, domínios. A mudança de regime em 1926 vai dar iní-
muito orientada para a acção educativa e missioná- cio a um novo período de progressiva ascensão da pre-
ria, a vida religiosa continua moldada, ao longo do sença dos institutos religiosos em Portugal: verifica-se
século xix, em formas muitas delas retrógadas, quer um novo regresso das ordens expulsas, nomeadamente
quanto à disciplina e à formação, quer quanto ao dos Jesuítas; implantam-se novos institutos (Dehonia-
modo de compreender o estatuto do religioso na pró- nos, Combonianos*, Consolatinos*, Baptistas*, Lassa-
pria Igreja, isto é, como institutos superiores de per- listas*, Paulistas*, Monfortinos*, Marianos*, Irmãos
feição, distinguindo-se com uma certa «presunção» Maristas, Passionistas, Verbitas, Filhos da Caridade,
dos outros estados de vida cristã. Isto leva a que se Irmãos Missionários do Campo, Scalabrinianos*...)
desenvolva um processo crítico que vai exigir um que vão conhecer, no quadro de um clima político fa-
repensar da vida religiosa mais adaptada à mentali- vorável, uma grande difusão, quer fundando colégios,
dade e ao mundo contemporâneo que não a com- seminários e obras de assistência social, quer assumin-
preendia. O II Concílio do Vaticano consagra este do diversos campos de missão nas colónias portugue-
movimento de rectualização, fornecendo orientações sas e outros territórios. Para tal muito contribuíram as
para a renovação da vida religiosa. Neste sentido, determinações da Concordata* e do Acordo Missioná-
determina no decreto Perfectae Caritatis: «O modo rio* que obrigavam as congregações estrangeiras a
de viver, de orar e trabalhar seja devidamente adap- abrirem casas de formação na metrópole portuguesa
tado às actuais condições físicas e psicológicas dos como condição sine qua non para o envio de missio-
religiosos, bem como, segundo a índole de cada ins- nários seus para as colónias. Estes institutos conti-
tituto, às necessidades do apostolado, às exigências nuam, não obstante a queda do número de vocações, a
da cultura, às situações sociais e económicas, e isto exercer a sua missão na fase da instauração e consoli-
em toda a parte, mas sobretudo em terras de Mis- dação do regime democrático de 1974, assumindo,
sões» (n.° 3). O concílio define os princípios gerais além do mais, responsabilidades de apoio às Igrejas
que vão inspirar o aggiornamiento dos institutos re- locais, nomeadamente na paroquialidade, de modo a
ligiosos: reforço da norma última do seguimento de suprir também a carência de clero secular*. A ascen-
Cristo, respeito pela identidade e missão particular são e o crepúsculo das congregações num país herdei-
dos institutos, participação de todos os institutos na ro de um catolicismo generalizado remou ao sabor do
vida da Igreja, atenção às necessidades da Igreja, jul- triunfo das ideologias governativas dominantes, bem
gar as diferentes situações à luz da fé e esforço de como dos interesses políticos emergentes num Estado
uma permanente renovação espiritual. De facto, a re- nem sempre coerente com a honra dos seus princípios.
flexão proporcionada pelo Vaticano II vai contribuir Todavia, a persistência carismática dos fundadores e
para uma renovação da vida religiosa e para uma continuadores das congregações da mais diversa índo-
maior humanização desta, num processo de abertura le teimou em não desistir de implantar-se no território
aos novos tempos. A caminhada da implantação das português sempre que houve o mínimo de condições
congregações religiosas em Portugal (um pouco à para o efeito. A sua presença foi fervorosamente dese-
semelhança do que acontece nos outros países), du- jada por uns e menos respeitada por outros. Esta diver-
rante o século passado e ao longo deste século, tem gência de entendimento da importância do seu papel
sido um processo árduo e pouco linear devido às deveu-se, em grande medida, ao que elas representa-
contigências da história da evolução da sociedade ram e significaram em termos de poder: uma macror-
portuguesa durante estes dois séculos. A queda da ganização que ultrapassava as barreiras do Estado e se
monarquia absolutista em 1820 e a consequente as- furtava facilmente ao seu total controlo. Não obstante
sunção do liberalismo político vai trazer dificuldades as divergências, hoje a dimensão do valor do seu pa-
às ordens religiosas (que viviam uma situação de de- pel na sociedade e na Igreja portuguesa regista um sal-
cadência), culminando na sua expulsão e nacionaliza- do bastante positivo. A nível social, o trabalho das
ção dos seus bens em 1834, pela força do decreto le- congregações tem colmatado muitas lacunas na assis-
gislativo de Joaquim António de Aguiar. A partir de tência às classes mais desprotegidas, na educação e na
meados do século xix, em virtude da tolerância do re- promoção cultural, em áreas em que nem o Estado,

486
C O N G R E G A Ç Õ E S RELIGIOSAS M A S C U L I N A S

Legenda: * - Entrada própria; 1." coluna: casas em Portugal; 2." coluna: membros em Portugal; 3.' coluna: data de fundação do instituto; 4.a coluna: data de entrada em
Portugal dos institutos estrangeiros; P - institutos de origem portuguesa; R - reentrada em Portugal ou refundação em Portugal.

nem a sociedade civil, por si só, poderiam resolver BIBLIOGRAFIA: A G U I A R , António Joaquim de - A propósito da extinção
globalmente. Por seu lado, no que se refere à Igreja, os das ordens religiosas em Portugal. Porto: Typ. Central, 1899. A L M E I D A ,
Fortunato de - História da Igreja em Portugal. Nova ed. preparada e
religiosos têm tido uma acção inestimável de presença
em campos a que as estruturas eclesiásticas tradicio-
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nais nunca poderiam chegar com eficácia, desde o tra- drid: ITVR, 1988. IDEM - La utopia de la vida religiosa. 2." ed. Madrid:
ITVR, 1985. I D E M - Virginidad, sexualidad, amor en la vida religiosa.
balho missionário ad intra e ad extra até à evangeliza- 4. a ed. Madrid: ITVC, 1988. A L V A R E Z G O M E S , Jesus - Historia de la vi-
ção da cultura, bem como o serviço religioso a da religiosa. Madrid: Publ. Claretianas, 1990. 3 vol. I D E M - La vida re-
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à luz do concílio. Braga: Apostolado da Oração, 1980. B R A N C O , Manuel
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devido à prestação de serviços importantes à socieda- vares Cardoso & Irmão, 1888. C P.-Ofuturo das ordens religiosas em
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487
CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS MASCULINAS

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ta» faz, assim, parte integrante da «questão religio-
1909. VINDE e vede: Formas de vida consagrada na Igreja. Lisboa: Edi- sa» que atravessou o debate sociopolítico e cultural
ções Paulinas, 1995. do Portugal oitocentista, desde o final do Antigo Re-
gime até ao desenvolvimento da política religiosa da
CONGREGANISMO. A expressão «congregação» I República. Nesta perspectiva, a problemática do
(do latim congregaíione-) sugere genericamente congreganismo coloca-se a partir do debate sobre o
formas de sociabilidade e refere-se a processos de lugar e a autonomia da religião e da Igreja na socie-
socialização, que evocam no terreno religioso, em dade, nomeadamente em face das diversas formas de
primeiro lugar, a dimensão comunitária da existên- regalismo*, bem como das várias atitudes e medidas
cia social do cristianismo. Desta asserção decorre a de restrição da influência religiosa na sociedade, em
designação diferencial de certas correntes protes- particular da Igreja Católica Romana. A memória da
tantes independentes (v. P R O T E S T A N T I S M O ) que se re- expulsão de Portugal (1759) e posterior extinção
conhecem como Igrejas congregacionais, assumin- (1773) da Companhia de Jesus permanece como pri-
do formas eclesiológicas de influência puritana, meiro referencial desta problemática, na medida em
baptista e calvinista. Todavia, a utilização da ex- que tais medidas encarnavam a recusa por parte do
pressão congreganismo, como conceito oitocentis- poder político da existência de concorrência à sua
ta, refere-se especificamente à dinâmica católica, soberania. Contudo, a existência de ordens e congre-
distinguindo-se assim do congregacionalismo pro- gações religiosas surgiu no final do Antigo Regime
testante. De uma maneira geral, o congreganismo associada ao diagnóstico da sua crise e decadência.
diz respeito às diversas formas organizadas de vida Se tal percepção correspondia, em certa medida, a
consagrada masculina e feminina, canonicamente uma situação objectiva, neste período a crítica às or-
estatuída dentro do catolicismo romano e expressa dens religiosas inscreve-se numa compreensão mais
através de votos, simples ou solenes, de pobreza, ampla da transformação social, equacionada em ter-
castidade e obediência, e que encerram teologica- mos da necessidade de regeneração, conceito de-
mente uma dimensão escatológica corporizada na corrente da apreciação da situação social como de
própria vida comunitária, diferenciando-se da orga- decadência. Já no primeiro período liberal, após a
nização secular e diocesana. Se esta designação revolução de 1820, nos debates sobre a situação do
abarca múltiplas formas organizadas de vida consa- reino e as medidas regeneradoras preconizadas para
grada, em termos históricos e canónicos, refere-se, a religião e a Igreja patenteava-se a subalternização
de modo mais restrito, a uma dimensão confrater- do clero regular em detrimento do secular. As raí-
nal que se diferencia das ordens de vida monástica zes de tais posições são diversas e nelas se cruzam
e de tradição mendicante, pela sua vertente activa e elementos do iluminismo, da concepção da religião
pelas suas características organizativas, segundo ca- como bem público e da perspectiva romântica da
rismas específicos. Centradas na consagração pes- realização do homem, expressão de mentalidades
soal e comunitária, as congregações religiosas cor- que julgavam as congregações religiosas como anti-

488
CONGREGANISMO

-sociais, na medida em que eram encaradas como -revolução, do antiliberalismo e do ultramontanismo.


um Estado dentro do Estado e consideradas incenti- Por outro lado, o anticongreganismo denunciava
vadoras de modos de vida não valorativos do traba- também o que era considerado como secretismo e
lho e da constituição de família, tomados como re- manipulação, crítica que encerrava uma percepção
ferência da realização e felicidade humana. Com da realidade como complot. Esta acusação, feita com
a extinção das ordens religiosas em 1834 e a res- particular destaque à Companhia de Jesus, assentava
pectiva venda dos bens monásticos, corno bens de na afirmação da existência de uma acção que visava
mão-morta que eram, verificou-se uma importante alargar a influência clerical através da manipulação
transferência de propriedade e uma profunda trans- das consciências, nomeadamente da mulher e do
formação nas formas de subsistência do clero e or- poder político. Estas foram algumas das teses já de-
ganização da vida religiosa em geral (v. E C O N O M I A ) . fendidas nas Conferências do Casino (1871), no-
0 alcance desta extinção teve profundo impacte so- meadamente por Antero de Quental em As causas
cial e cultural, pois correspondeu também ao desa- da decadência dos povos peninsulares, persistindo
parecimento de centros de produção cultural e de na argumentação do republicanismo, ao pretender
assistência, através dos quais a Igreja Católica man- desenvolver uma consciência e uma ideologia cívi-
tinha uma extensa e enraizada presença no conjunto cas em contraponto à religião tradicional - o catoli-
da sociedade. Sentida esta extinção como ataque à cismo romano. Este debate e intensa polémica, em
sua liberdade, desde cedo, o catolicismo defendeu que participaram figuras destacadas do liberalismo
a existência das congregações religiosas como im- monárquico e republicano, radical e laicista, susci-
portantes para a missionação interna e nos territórios tou em Portugal, como ocorria na época em outros
ultramarinos, como consta do programa da Socieda- contextos nacionais, um confronto entre os sucessi-
de Católica, logo em 1843 ( c f . C L E M E N T E - Nas ori- vos governos e a Igreja Católica. O Estado e, atra-
gens). Este desiderato encontrou sempre resistência vés deste, vários protagonistas políticos, entre eles
por parte dos liberais que o consideravam uma ex- a Maçonaria*, disputavam a influência da Igreja
pressão ultramontana e antiliberal. No entanto, a par- Católica Romana na sociedade, sendo a problemáti-
tir dos finais da década de 50 assistiu-se à paulatina ca em torno das congregações religiosas a media-
restauração de congregações religiosas em Portugal, ção e o referencial desse confronto. A restauração e
quer masculinas - como os Franciscanos*, os Jesuí- a intervenção pública das congregações religiosas,
tas*, os Lazaristas (Congregação da Missão*), os masculinas e femininas, se foram pretexto para este
Espiritanos*, os Beneditinos*, os Redentoristas* ou afrontamento político-religioso, suscitaram simulta-
os Salesianos* —, quer femininas - como as Irmãs neamente, no meio católico, a iniciativa daqueles
Doroteias*, as Irmãs Dominicanas de Santa Catarina que «defendendo a Religião e a Igreja» se destaca-
de Sena*, Congregação das Irmãs Franciscanas Hos- ram como impulsionadores do movimento católico.
pitaleiras*, etc. Neste contexto, importa assinalar Neste confronto esgrimiam-se diversos argumentos.
que a extinção não afectara directamente algumas Por um lado, considerava-se que as congregações
comunidades estrangeiras, que mantiveram signifi- religiosas eram dependentes do estrangeiro, formas
cativa actividade religiosa, como aconteceu em Lis- estrangeiras de religião, portanto desnacionalizado-
boa com os dominicanos irlandeses do Corpo Santo ras; promotoras de formas de sectarismo e de intole-
ou com os lazaristas franceses em São Luís dos rância; organizações obscurantistas, de dominação e
Franceses, a partir de meados da década de 50. de manipulação de pessoas e consciências; fautoras
Quando em 1857 as Irmãs da Caridade, de origem de decadência moral e social quer pela utilização de
francesa, procuraram instalar-se em Portugal, desen- fundos com proveniências desconhecidas, quer pelo
cadeou-se uma fortíssima reacção que conduziu à afrontamento ao próprio Estado e à ordem social, co-
sua expulsão em 1862. Nesta polémica intervieram mo foram considerados nos casos das Trinas (1891)
muitas figuras públicas condenando a presença das e Calmon (1901). Por outro lado, estas eram entendi-
congregações religiosas, associando-as à intransi- das e defendidas por diversos sectores católicos e
gência católica, denunciada como expressão da adul- políticos como uma dinâmica importante de recris-
teração do cristianismo evangélico pelo papado e in- tianização e influência necessária à própria civiliza-
tromissão deste na vida nacional. 2. Restauração ção, enquanto capazes de responder aos problemas
católica e anticongreganismo: A questão do congre- sociais e de garantir de modo proficiente a soberania
ganismo e do anticongreganismo transformou-se portuguesa em territórios coloniais. O ambiente críti-
num aspecto importante do debate político-religioso co gerado em torno da sua legitimidade favoreceu o
no final da Monarquia Constitucional e durante a aparecimento de novas sensibilidades e formas de
vida religiosa activa, característica de novas congre-
1 República. Esta contenda assumiu progressivamen- gações, assente no princípio da utilidade social.
te uma dimensão ideológica que a converteu em ins- Mesmo a legislação de Hintze Ribeiro (1901) sobre
trumento de luta política por parte do radicalismo li- associações religiosas, no contexto do Caso Calmon,
beral e republicano. O anticongreganismo tornou-se, se correspondeu a uma necessidade de satisfação de
assim, uma das variáveis do anticlericalismo*. O que determinados sectores políticos, continuou a consi-
fora uma contestação de formas da vida religiosa, derar a religião como referencial moralizador da so-
afirmou-se como questionamento do lugar e da fun- ciedade (a sua função social) e o valor da actividade
ção da instituição eclesial na sociedade. Uma das di- civilizadora das congregações missionárias, legaliza-
mensões mais contundentes deste anticongreganismo das agora como associações. Perante a situação de
manifestou-se no antijesuítismo, na medida em que ataque às congregações religiosas, os meios católi-
os Jesuítas eram considerados expressão da contra-

489
CONGREGANISMO

cos defendiam-nas como fundamentais para respon- ao Papa (Porto: Figueirinhas, 1986, p. 219-237).
der às necessidades do país na esfera assistencial e, Esta consciência de rivalidade é também expressão
sobretudo, na actividade missionária, como única de resistência à pulverização de formas de vida re-
garantia de assegurar a soberania portuguesa em ligiosa no seio do próprio catolicismo. Alguma ar-
territórios ultramarinos, especialmente em determi- gumentação anticongreganista ressurgiu social-
nadas regiões africanas (c/ J E S U S - As ordens). mente no debate sobre a implantação de novas
Apesar de todas as dificuldades, e do forte afronta- correntes religiosas no país. Em 1995, aquando do
mento ideológico em torno do congreganismo, debate público em torno da Igreja Universal do
deu-se o desenvolvimento de congregações com Reino de Deus (IURD), alguns dos argumentos uti-
actividades no campo do ensino, e no campo assis- lizados anteriormente contra as congregações reli-
tencial, particularmente através de instituições de giosas reapareceram ( c f . R U U T H - Deus), revelando
integração social (casas para órfãos, asilos ou casas a persistência dessas sensibilidades, agora desloca-
de correcção), como aconteceu no caso dos Sale- das para a área do protestantismo, apreciado na sua
sianos. Logo no início da revolução republicana, a vertente de seitas religiosas. Porém, este conjunto
8 de Outubro de 1910, foram tomadas medidas an- de argumentos esconde perspectivas que se refe-
ticongreganistas, com o restabelecimento da legis- rem a uma percepção redutora da dimensão do reli-
lação pombalina referente à expulsão dos Jesuítas e gioso nas sociedades.
da de Joaquim António de Aguiar referente à extin- ANTÓNIO MATOS FERREIRA
ção das casas religiosas, posteriormente integradas
num quadro mais global de política religiosa radi- BIBLIOGRAFIA: AUBERT, C. I. - Cartas sobre o estado actuaI da reli-
cal com expressão na Lei da Separação do Estado e gião catholica em Inglaterra. T r a d u z i d a s do Francez por José de
Souza A m a d o , e seguidas d e a l g u m a s o b s e r v a ç õ e s contra A. Hercu-
da Igreja (20 de Abril de 1911). Depois de 1918, lano, e o P a d r e R o d r i g o V. de A l m e i d a , e d e outra especial e m que se
restabelecidas as relações diplomáticas entre o go- m o s t r a a n e c e s s i d a d e do p r o x i m o r e s t a b e l e c i m e n t o d e a l g u m a s or-
verno português e a Santa Sé, verifica-se a progres- d e n s R e l i g i o s a s em Portugal. Lisboa: I m p r e n s a F r a n c i s c o Xavier de
Souza, 1850. CATROGA, F e r n a n d o - O l a i c i s m o e a q u e s t ã o religiosa
siva reabertura de casas religiosas por parte de em Portugal ( 1 8 6 5 - 1 9 1 1 ) . Análise Social. 24: 100 ( 1 9 8 8 ) . CLEMENTE,
congregações que tinham sido expulsas, tendo a Manuel J o s é M a c á r i o do N a s c i m e n t o - Nas origens do apostolado
contemporâneo em Portugal: A «Sociedade Católica» (1843-1853).
actividade missionária constituído o seu principal 2." ed. B r a g a : U n i v e r s i d a d e Católica P o r t u g u e s a , 1993. C o l e c ç ã o
fundamento. Esta perspectiva acentuou-se depois M e m o r a b i l i a Christiana. CÓDIGO de Direito Canónico (1983). Edição
da celebração da Concordata e do Acordo Missio- anotada a c a r g o de Pedro L o m b a r d i a e J u a n Ignacio Arrieta. Tradu-
ção p o r t u g u e s a a c a r g o de José A. M a r q u e s . 2 e d . B r a g a : Edições
nário (1940), até porque a possibilidade dessa acti- T h e o l o g i c a , 1997. COELHO, [José F r a n c i s c o ] T r i n d a d e - Manual polí-
vidade ultramarina estava condicionada à abertura tico do cidadão portuguez. P r e f á c i o de A l b e r t o d ' 0 1 i v e i r a (ministro
em Portugal de casas para a formação do pessoal de Portugal na Suissa). L i s b o a : Parceria A. M. Pereira Livraria Edi-
tora, 1906. CORREIA, José E d u a r d o Horta - Liberalismo e catolicis-
missionário, facto que suscitaria posteriormente in- mo: O problema congregacionista (1820-1823). C o i m b r a : U C , 1974.
tensa actividade religiosa por parte de múltiplas FERREIRA, J o s é M a r i a C a b r a l - U m a p e r i g o s a l e m b r a n ç a : B r e v e leitu-
congregações. Já depois do II Concílio* do Vatica- ra da p r e s e n ç a e e v o l u ç ã o das o r d e n s religiosas na primeira m e t a d e
do século xx português. In MARUJO, A n t ó n i o - Vida de Deus na terra
no verificaram-se mudanças profundas no estilo e dos homens. Lisboa: C í r c u l o d e Leitores, 1999, p. 17-41. C o l e c ç ã o
nas actividades dessas mesmas congregações em N o v a C o n s c i ê n c i a . FRADES (OS) julgados no tribunal da Razão. Obra
Portugal. Depois de 1974 e com a descolonização, p o s t h u m a d e Fr.*** D o u t o r C o n i m b r i c e n s e . Lisboa: I m p r e s s ã o Ré-
gia, 1814. GRAINHA, M a n o e l B o r g e s - Os Jesuítas e as congregações
verifíca-se que membros das congregações missio- religiosas em Portuga! nos últimos trinta annos: A proposito do caso
nárias passaram a assumir novas tarefas pastorais das Trinas. Porto: Typ. da E m p r e z a Litteraria e T y p o g r a p h i c a , 1891.
IRMÃS (AS) da Caridade ou a questão do momento. Lisboa: Typ. de
em muitas dioceses do país, ao mesmo tempo que J o a q u i m G e r m a n o d e S o u s a N e v e s , 1858. LEMOS, J.[oão] d e - Os fra-
mantêm laços com esses territórios agora indepen- des: defeza, justificação, e apologia insuspeitíssimas. 3. a ed. G u i m a -
dentes, constituindo elos de relacionamento entre rães: C e n t r o de P r o p a g a n d a Catholica em Portugal, 1884. JESUS, Qui-
rino Avelino de - As ordens religiosas e as missões ultramarinas.
Portugal e os novos países. 3. Questões em aberto: Lisboa: T y p o g r a p h i a da C a s a Catholica, 1893. MATTA, J o s é C a e i r o -
Durante grande parte dos séculos xix e xx, houve Condição legal das ordens e congregações religiosas em Portugal
na sociedade portuguesa uma atitude de combate e desde 1834. C o i m b r a : I m p r e n s a da U n i v e r s i d a d e , 1905. MONTES
[MOREIRA], A n t ó n i o - A r e s t a u r a ç ã o da Província F r a n c i s c a n a de
de desconfiança em torno da existência social de Portugal e m 1891. Archivo Ibero-Americano. 42 ( 1 9 8 2 ) 165-168,
formas organizadas de vida religiosa consagrada, 509-650. NETO, Vítor - C o n g r e g a n i s m o e a n t i c o n g r e g a n i s m o : d u a s
expressão da influência organizada da Igreja Cató- faces d e u m a m e s m a questão. In MATTOSO, José, dir. - HISTÓRIA de
Portugal: 5: O Liberalismo (1807-1870). C o o r d . Luís Reis Torgal e
lica Romana. Durante muitas décadas esse con- J o ã o L o u r e n ç o R o q u e . Lisboa: C í r c u l o d e Leitores, 1993, p. 2 7 6 - 2 7 8 .
fronto e combate teve nos Jesuítas o seu alvo ob- IDEM - O Estado, a Igreja e a sociedade em Portugal (1832-1911).
jectivo e simbólico, porém, mais recentemente tal Lisboa: I N C M , 1998. OLAIO, N u n o M i g u e l da Silva Pereira - Carlos
João Rademaker (1828-1885): Percurso do restaurador da Compa-
atitude deslocou-se para outras formas de organi- nhia de Jesus em Portugal. Lisboa: F L U L , 1999. Texto m i m e o g r a f a -
zação social da religião, como o Opus Dei*, num do. RUUTH, A n d e r s ; RODRIGUES, D o n i z e t e - Deus, o demónio e o ho-
contexto mais secularizado e laicizado, e, como mem: o fenómeno Igreja Universal do Reino de Deus. Lisboa:
Colibri, 1999. C o l e c ç ã o S o c i o l o g i a e A n t r o p o l o g i a . SEABRA, E u r i c o
ocorria anteriormente, apresentando-o de algum de - Acção catholica e jesuítica em Portugal. Porto: T i p o g r a f i a do
modo em concorrência e em contraponto com a Porto M e d i c o (a vapor), 1913. D i s s e r t a ç ã o d e c o n c u r s o a o g r u p o de
sciencias politicas na F a c u l d a d e de E s t u d o s Sociais e de Direito na
Maçonaria. Esta problemática de concorrência en- U n i v e r s i d a d e de Lisboa. IDEM - A Egreja, as congregações e a Repú-
tre forças diversas que procuram influenciar a so- blica: A separação e as suas causas. P r e f á c i o d e A f o n s o Costa, de
ciedade também se verifica internamente à Igreja 2 9 de J u l h o de 1914. 2." ed. Lisboa: Livraria C l a s s i c a Editora,
[1914], IDEM - Os Bens das congregações no direito portuguez e no
Católica, pois a rivalidade entre congregações e direito internacional: Commentario á s leis nacionaes. Lisboa: Typo-
destas com a organização diocesana faz-se sentir graphia «A Editora L i m i t a d a » , 1915. VILLARES, A r t u r - A s o r d e n s re-
ou, pelo menos, não deixa de ser denunciada, como ligiosas em Portugal n o s princípios do s é c u l o xx. Revista de Histó-
ria. 13 ( 1 9 9 5 ) 195-223. VINDE e Vede: Formas de vida consagrada na
o descreveu D. António Ferreira Gomes em Cartas Igreja. L i s b o a : Paulinas, 1994.

490
CONGRESSOS

CONGRESSOS. «Os congressos católicos são reu- tal designação seja preferida para nomear aquelas
niões de católicos que têm por fim tomar e actuar, assembleias especializadas e de amplitude e envol-
por meio de deliberações comuns, resoluções ade- vência mais reduzidas que as dos congressos, achan-
quadas aos tempos presentes e úteis para a Igreja» do-se resíduo deste costume nominativo nos Dias de
( S P I R A G O - Catecismo, p. 3 5 9 ) . A realização cultural Catequese, nos Dias de Acção Católica e, também,
designada pelo nome de congresso é uma novidade na designação preferencial de «semana» (ex.: SEMANA
do século xix, e não surgiu como criação da cultura DE ESTUDOS MISSIONÁRIOS; SEMANAS DE TEOLOGIA; S E M A -
católica. Situados na ordem canónica, os sínodos, NA DE PASTORAL), quando não em outras designações
os concílios e os capítulos são assembleias congres- de análogo formalismo (curso, encontro, jornada, se-
sistas, mas o tipo de acção cultural chamada «con- minário, simpósio, etc.) que se acham nas inventa-
gresso» difere daqueles tipos de assembleias canó- riações destas iniciativas. Os primeiros dias cató-
nicas. A moda dos congressos nasce na Áustria, por licos, logo transformados em congresso, decorreram
inspiração de Metternich, face às questões diplomá- na cidade de Mogúncia (Alemanha), em 1848, por
ticas que separavam a França napoleónica das outras iniciativa dos católicos alemães conduzidos pelo
potências europeias. Clemente Metternich planeou o doutrinador da política social, o cardeal Guilherme
primeiro congresso para a cidade de Praga, sem su- von Ketteler, e foram prosseguidos pelos militantes
cesso, mas conseguiu realizá-lo em Viena de Áus- católicos, entre eles Ludvigue Windthorst e outros
tria, corria o ano de 1814 - foi o célebre «Congresso leigos de equivalente estatura. Estes congressos, se
Dançante», porque as crónicas do tempo mostram bem que nascidos da iniciativa hierárquica, tiveram
como se dançou de mais e não se evitou uma guerra o cuidado de um efectivo envolvimento dos leigos,
europeia e duas guerras mundiais. A época que reto- de modo que a Alemanha assistia não a uma reacção
ma a moda lançada por Metternich situa-se nos mea- da hierarquia mas a uma movimentação dos católicos.
dos do século xix, de tal forma que o congresso se A organização católica alemã acha naqueles dias ca-
assume como uma forma cultural típica. Assiste-se a tólicos as raízes de acção e as determinantes de pen-
uma internacionalização romântica dos problemas samento. Logo católicos de outros países - Bélgica,
grupais e nacionais, das vivências comuns e indivi- França, Itália, Espanha, Estados Unidos - se move-
duais. O congresso é, a par de acontecimento cultu- ram em análogo sentido organizativo, em que o con-
ral, um evento social: permite o encontro de gentes gresso tinha a vantagem de permitir uma avaliação
diversas, o conhecimento pessoal de nomes ouvidos do número e da qualidade de militantes passíveis de
e lidos, dá azo às confraternizações sob a forma de selecção para as grandes tarefas consequentes. Estes
recepções, banquetes, bailes, sessões solenes. Exige congressos apresentam-se como nacionais e como
um vestuário adequado, requer a viagem, o acto de político-sociais, englobando a direcção hierárquica
sair de uma terra para a outra, e a mulher participa, e a militância laical, num projecto de acção católica
ainda que, então, mera acompanhante desta moda orgânica. Deles nasceram associações, uniões, ini-
social que à cultura se impõe. Os instrumentos facili- ciativas pastorais e dinâmicas culturais, gerando
tadores desta mobilidade que os congressos reque- instituições, valorizando santuários*, e criando co-
rem apresentam-se desde logo: abertura de novas es- munhão eclesial. O fim do século opera uma certa
tradas e introdução de transportes de maior conforto. metamorfose nos congressos de tipo social, dando-
Surge também o apoio logístico, em que as precárias -lhes um cunho cultural, litúrgico e pastoral. Veri-
tabernas, albergarias, pousadas e estalagens que a ficou-se que o congresso era passível de uma con-
Europa herdara dos costumes medievais dão lugar versão peregrinacional, em que os católicos não se
aos hotéis de luxo, equipados com água e saneamen- juntassem apenas para a discussão política, mas
to, banhos e comodidades. Quanto à Igreja, já socor- se reunissem também para a oração. O modelo sur-
rendo-se de congregações, já servindo-se de insta- giu em França, por iniciativa de Maria Emília Tami-
lações próprias, abre lugares de estalagem para os sier, que em 1874 organizou a chamada «Peregrina-
viajantes, clero e leigos em serviço. Os problemas ção Eucarística de Avinhão». Esta iniciativa inspirou
enfrentados pela Igreja a partir de 1820 exigem uma o projecto dos congressos eucarísticos, de modo que,
partilha nacional e internacional de ideias, e um na origem dos congressos católicos, há a considerar
confronto de posições. A Questão Romana, o libe- três experiências: a política, de Metternich, como
ralismo*, a promoção do pensamento social cristão impulsionador geral desta novidade, a intervenção
(v. CATOLICISMO S O C I A L ) , a crise do modernismo*, as organizativa nacional dos católicos alemães e as pe-
difíceis situações da Igreja em França, Portugal regrinações ou concentrações eucarísticas francesas.
(v. IGREJA E ESTADO, ÉPOCA C O N T E M P O R Â N E A ) , Alema- A experiência francesa é a que internacionaliza os
nha e Itália, a necessidade de internacionalização da congressos católicos, pondo a tónica nos congressos
solidariedade das comunidades católicas, a influên- eucarísticos. A Obra dos Congressos Eucarísticos In-
cia do I Concílio do Vaticano, a urgência de pro- ternacionais foi criada em 1881 e logo nesse ano,
mover a sociedade cristã à vivência das crises da era por iniciativa de Filiberto Vrau, se realizou o I Con-
industrial, mas uma vivência com capacidade de res- gresso Eucarístico (Nice, 1881). Celebrando o cente-
posta, foram as causas que determinaram o recurso à nário deste, o quadragésimo sexto efectuou-se em
prática dos congressos. Os primeiros congressos ca- Lourdes (1981), nele participando considerável e lu-
tólicos foram nacionais, realizaram-se na Alemanha, zida representação de povos de língua portuguesa
e não se chamaram propriamente congressos, mas (Brasil, Portugal, Angola, etc.). É o culto eucarístico
«dias católicos» (Katholikentag). A designação que internacionaliza o congresso católico e ainda em
«dias» permaneceu até ao nosso tempo, ainda que nossos dias os Congressos Eucarísticos Internacio-

491
CONGRESSOS

nais são, porventura, os de maior significado e que


implicam maior movimentação de actos preparató-
rios, de fundos e de gentes. A nível nacional, e de-
certo por influência da necessidade de valorização
laical e pelo peso dos organismos laicais como os da
Acção Católica*, os congressos nacionais privile-
giam o ternário da problemática social e do interven-
cionismo da ordem católica na sociedade, segundo o
postulado da instauração do reinado social de Cristo
no mundo. Mesmo a nível internacional, este caris-
ma é patente, como se prova, aliás, pelo discurso po-
lítico e social emergente do Congresso Católico In-
ternacional de Lisboa (1895). Este tipo de discurso
prolonga-se até aos congressos levados a efeito ain-
da cerca de 1930, e acha prova nos congressos por-
tugueses, em que, a maior parte deles, entre 1871 e
1930, envolve as questões da organização laical, das
obras católicas, da acção social católica, da promo-
ção socioprofissional, da intervenção na vida políti-
ca, para a qual se criaram os protótipos orgânicos do
Partido Nacionalista, da União Católica Portuguesa
(1913) e do seu braço político-partidário, o Centro
Católico Português (v. PARTIDOS CONFESSIONAIS), cujas
estruturas socioprofissionais foram, em 1933, de cer-
to modo absorvidas pela orgânica da nova Acção
Católica Portuguesa. Enquanto a nível nacional, e
mesmo a nível diocesano, se efectuavam congressos D. Manuel Vieira de Matos, bispo promotor de
de acção social, o desenvolvimento dos congressos congressos.
internacionais como que parou, sobretudo em virtu-
de da guerra de 1914-1918. A realização regular dos
ticas e o ambiente de meditação propiciam favores
Congressos Eucarísticos Internacionais só foi decidi-
aos congressistas. O roteiro temático aponta-nos con-
da no Congresso Eucarístico Internacional de Roma
gressos oficiais e não oficiais. Dentro destes, identifi-
(1922), em que participaram os portugueses, entre
cam-se os congressos de maior presença clerical - os
eles o arcebispo bracarense D. Manuel Vieira de Ma-
teológicos, os pastorais e os litúrgicos - e os de maior
tos, que foi o maior promotor de congressos a nível
participação laical - sociais, profissionais, político-
diocesano e nacional, congressos esses que foram
-sociais, de acção católica. Na especialidade, acha-
dos mais variados tipos. A cronologia dos congres-
mos congressos sociais, pastorais, litúrgicos, apostó-
sos oferece uma variação de componentes diocesa-
licos, eucarísticos, marianos e missionários. Não
nas. A introdução da iniciativa coube à diocese do
entrando em linha de conta com as várias modalida-
Porto, que nos finais do século xix e até aos anos pri-
des de assembleias, e tomando só como base as que
meiros do século xx manteve a dianteira, graças às
se intitularam de congresso, é possível avaliar em
nascentes associações católicas e a leigos, como o
cerca de duas centenas os congressos efectuados no
conde de Samodães e Roberto Woodhouse. A dio-
país, em que se realizaram outras formas de assem-
cese de Braga acorda cedo para os congressos, se-
bleia. Esses congressos são arciprestais, regionais,
guindo o caminho indicado pelos católicos do Por-
diocesanos, interdiocesanos ou metropolitanos, na-
to, enquanto Manuel Vieira de Matos, na Guarda,
cionais e internacionais. Congressos são também os
abre idêntico caminho. A sua transferência para
chamados Dias da Igreja Diocesana, porque, sendo
Braga fará desta diocese a verdadeira capital dos
concentrações de fiéis, estes dispõem de algumas
congressos. Entre 1915 e 1930, nenhuma outra dio-
horas para, em grupo e plenário, reflectirem sobre
cese competiu com as iniciativas de Braga, onde,
questões de actualidade da sua Igreja particular.
junto a congressos gerais (por exemplo, os das
A grande fase dos congressos pode situar-se entre
Obras Católicas), se reuniram congressos de espe-
1871 e 1940, uma vez que a partir desta data a pre-
cialidade profissional (músicos e pregadores, entre
ferência vai para assembleias restritas de especiali-
outros). A época de D. Manuel Gonçalves Cerejeira
dade: cursos, dias, encontros, colóquios, semanas e
amplia a importância de Lisboa, sem prejuízo do
outras formas equivalentes. Há uma decadência con-
significado que já D. António Mendes Belo dera às
gressista a partir de 1940, já por efeito da II Guerra
realizações congressistas. Outras capitais diocesa-
Mundial, já por aperto das disponibilidades econó-
nas - Coimbra, Évora, Aveiro, Bragança, Faro,
micas, já por certos índices de crise e de fricção sur-
Guarda - tentam ou realizam congressos em pleni-
gidos nas gerações eclesiais, já pelo carácter forma-
tude, mas a ascensão do Santuário de Fátima* como
tivo de pequenos grupos de chefia e de acção, que as
que faz deslocar, no decénio de 1940 para diante, o
reuniões restritas servem melhor do que as reuniões
eixo dessas realizações. A maior parte das assem-
de amplo acesso, como são os congressos. O mesmo
bleias (dias, encontros, jornadas, semanas...) acaba
tema, ainda que em diferentes acepções, repete-se no
por ter lugar em Fátima, onde as capacidades logís-
tempo, em obediência a peculiares constantes. O mo-

492
CONGRESSOS

vimento congressista contemporâneo começa, tam- Pio X; um mariano, o Congresso do Cinquentenário


bém em Portugal, no último quartel do século xix, e da Imaculada Conceição (Porto, 1904) que produziu
constitui como que morosa e prudente introdução ao vários trabalhos de mariologia, v.g. a monografia do
movimento do século xx. O primeiro congresso ca- conde de Samodães, O culto de Maria Santíssima na
tólico português realizou-se no Porto (1871) e tem a diocese do Porto; um socioprofissional, como foi o
singularidade de constituir um congresso que, nasci- I Congresso dos Jornalistas Católicos Portugueses
do da iniciativa laical, teve um carácter misto. A tes- (Lisboa, 1905), em que verdadeiramente se lançou o
ta dos leigos encontrava-se o conde de Samodães, projecto nacional da Boa Imprensa e o novo diário
que obteve a participação de vários oradores e escri- Opinião; e, por fim, os Congressos do Partido Na-
tores católicos, alguns deles ligados à Faculdade de cionalista (1903 a 1909) que alternavam, já que os
Teologia* de Coimbra. Apesar de ser um congresso dirigentes eram simultâneos, com os Congressos das
de evidente acção católica, intitulou-se prudente- Agremiações Populares Católicas Portuguesas (cinco
mente Congresso dos Escritores e Oradores Católi- entre 1906 e 1910). Nos Congressos do Partido Na-
cos. Este evento significa a fundação da Associação cionalista estudava-se a aplicação política da pasto-
Católica do Porto e do diário A Palavra, que tanta ral; nos Congressos das Agremiações estudava-se a
influência viria a ter no país, de 1872 a 1910, e que aplicação pastoral da política. O cardeal D. António
se reuniu de novo no II Congresso de Oradores e Mendes Belo (e com ele Bento Castelo Branco, José
Escritores Católicos (Braga, 1878), em que brilha- de Sousa Gomes, Pulido Garcia, Jacinto Cândido,
ram D. António de Almeida, o conde de Samodães Lino Neto, Zuzarte de Mendonça) foi o obreiro deste
e José de Sousa Amado. Foi necessário um trânsito movimento que preconizava, desde logo, o futuro
de quase vinte anos para que a hierarquia organizas- partido cristão que só fogueou no Centro Católico
se um congresso. Veio este na forma do I Congresso Português. Visto o primeiro decénio, em que são
Católico da Província Eclesiástica de Braga (1889), evidentes as constantes laical e política, olhemos o
que reuniu as dioceses sufragâneas bracarenses. No tempo que vai desde 1910 a 1920. Há três anos de
seu conjunto, as conclusões deste congresso são um silêncio, até 1913. Em Abril de 1913, herdando a
programa de cristianização da sociedade portuguesa. experiência das alas juvenis académicas e católicas,
Dois anos depois (1891) efectuava-se o segundo surge a Federação das Juventudes Católicas Portu-
congresso, em que se salientou o padre Martins Ca- guesas. E um dos efeitos do novo Centro Académico
pela, na promoção do ensino da filosofia tomista. de Democracia Cristã (CADC), de Coimbra. Antó-
O leque de autores e de comunicações é enorme, nio de Oliveira Salazar, Francisco de Sousa Gomes
quando comparado com o do primeiro congresso, e Veloso, Alvaro Diniz da Fonseca, Zuzarte de Men-
as conclusões apresentam maior vigor e determina- donça, Alberto Diniz da Fonseca, Joaquim Diniz da
ção. Todos estes congressos oferecem um perfil pas- Fonseca, Manuel Gonçalves Cerejeira, eis a geração
toral, social, caritativo e intervencionista. Quatro federacionista. A federação realiza, entre 1913 e
anos mais tarde (1895) e a propósito das celebrações 1918, cinco congressos anuais, conseguindo o mila-
antonianas, teve lugar o polémico e disputado Con- gre de se ver proibida de levar por diante o de Viseu
gresso Internacional Católico de Lisboa, que pôs o (1917). É todo o laicado jovem, orientado pela hie-
nosso país à frente do modelo de congresso interna- rarquia, que postula a restauração cristã da sociedade
cional, e concitou para Portugal a colaboração de a todos os níveis no ideário da democracia cristã.
inúmeros participantes, ainda que alguns deles não Mais velhos, a seu lado, estão os Congressos dos
estivessem pessoalmente presentes. As actas deste Médicos Católicos (três, entre 1915 e 1918), mas o
congresso são o ponto da situação do pensamento impacte viria da fundação do Centro Católico Portu-
pastoral e social da Igreja, um lustro antes do novo guês, e do seu primeiro congresso (1919), quando se
século, e os seus discursos, teses e comunicações propôs realizar os fins da União Católica Portuguesa
prenunciam em muito as dificuldades que o pensa- e, para tanto, assumiu posições parlamentares com
mento eclesial iria afrontar. A reacção ao movimento grandes vantagens. O nível nacional ganho pelos
católico veio no Congresso Socialista de Tomar, que congressos católicos não obstou à realização de con-
parodiou os congressos católicos, apelando à revolu- gressos diocesanos, como fossem o das Obras Cató-
ção e à violência contra as propostas de diálogo so- licas do Algarve (1916) e o Congresso das Obras
cial dos católicos. O novo século foi inaugurado com Católicas da Arquidiocese de Braga (1920), cujas
o Congresso Católico do Porto (1900), segundo a de- actas são interessantíssimo documento literário e
terminação do bispo D. António José de Sousa Bar- pastoral. O pós-sidonismo recebe uma organização
roso. É um congresso misto, de tipo sociopastoral, eclesial mais forte e mais consciente, e por isso o pe-
de colaboração de leigos e de hierarquia. Continuou ríodo entre 1920-1930 é considerado uma época de
a discussão dos problemas já erguidos nos anteriores ouro na esfera das iniciativas congressistas. A prova
congressos bracarenses. No Ínterim, o laicado or- está na enumeração daqueles congressos que, por
ganizava-se. Até 1910, e mencionando apenas as sua natureza, prerrogativa e envolvência, comportam
iniciativas de maior peso, temos cinco tipos de con- maior índice de influência. Muitos outros ficam por
gressos: os do clero (1905 e 1906), destinados a referir entre os que vamos citar. O Centro Católico
valorizar a profissão e a defender os respectivos reúne-se em segundo congresso (1921), os médicos
interesses no caso das dotações e direitos; um de reúnem-se no quinto congresso (1922) e Coimbra as-
catequese, realizado na Guarda (1905) por Manuel siste ao VI Congresso da Federação das Juventudes
Vieira de Matos e que foi o nosso primeiro congres- Católicas Portuguesas (1922). Continuam anualmen-
so catequético, para lançamento do Catecismo de te os congressos das obras bracarenses, a par dos

493
CONGRESSOS

quais os músicos e os pregadores também se reúnem em Barcelos (1931) e tiveram, durante algum tempo,
em congresso. Neste decénio surgem novas apetên- periodicidade anual. Braga celebra também o I Con-
cias: Braga realiza o I Congresso Eucarístico Arqui- gresso Nacional de Catequese (1932) que preparou,
diocesano (1924). Dele nasceria o que veio a ser na palavra de pedagogos, didactas, catequistas e teó-
esse marco miliário da cultura eucarística, o I Con- logos, a educação da juventude portuguesa na fé. Es-
gresso Eucarístico Nacional (Braga, 1924), em que o te período tem uma singularidade - é a introdução
papa se fez representar por D. António Mendes Be- dos congressos do Apostolado dos Leigos, dos movi-
lo. As festas, e sobretudo as comunicações e as teses mentos de espiritualidade, e da Acção Católica Por-
lidas neste congresso, são uma suma de teologia eu- tuguesa*. Tamanho movimento como que ultrapassa o
carística, como se lerá na Memória do Congresso decénio e continua até 1960, numa sequência alheia
Eucarístico Nacional. A sé primaz continua na dian- ao tempo. O Apostolado da Oração* é decerto o mo-
teira: em Vila Real (1926) organiza o I Congresso vimento mais antigo entre os de espiritualidade lai-
Litúrgico Nacional, que foi um teste para o segundo, cal, ainda que também comporte sacerdotes e reli-
o chamado Congresso Litúrgico Nacional Romano- giosos. No entanto, o seu primeiro congresso (Braga,
-Bracarense, que serviu para entronização do rito 1930) ainda se situa na dinâmica de Vieira de Matos
bracarense na reforma de Manuel Vieira de Matos, e encontra, entre os seus oradores, entidades her-
com o apoio dos Beneditinos*, entre eles o notável dadas das Agremiações Católicas (Lino Neto, Ber-
liturgista D. António Coelho. As actas deste con- nardo Chousal, Garcia de Carvalho) a par de novos
gresso valerão para além do nosso tempo, em serie- nomes do apostolado católico. O segundo congres-
dade e em modernidade. É o tempo do início da série so (Porto, 1945) já apresenta um perfil novo, se
dos Congressos das Misericórdias Portuguesas (o bem que na linha da conquista espiritual do mundo.
primeiro em 1924, o quinto em 1976). A coroação O terceiro congresso (1957) volta a Braga e decorre
deste movimento cultural processou-se no Congres- sob o signo do Monumento a Cristo-Rei, enquanto
so Mariano Nacional (Braga, Maio de 1926) acerca o quarto (Lisboa, 1965) é uma apoteose juvenil do
do qual a respectiva Memória nos permite afirmar movimento. A maior parte cabe à Acção Católica
quanto, de juízo, afirmámos acerca do Congresso Li- Portuguesa. O primeiro congresso foi o de um orga-
túrgico. Nunca antes fora possível reunir tão sérios nismo, a Juventude Católica Feminina, que ocorreu
mariólogos, leigos e sacerdotes, que documentam, em Lisboa (1934) e foi apresentado qual nova dinâ-
mais do que uma visão teológica copiada, uma funda mica da Igreja em sociedade e terá dado, pela pri-
autonomia mariológica, nascida no peito de teólogos meira vez, uma ideia inequívoca do valor da condi-
portugueses. O período de 1930 a 1940 tem algumas
singularidades. A primeira é a da difusão dos con-
gressos eucarísticos, algumas vezes chamados jorna-
das, e das Jornadas Marianas, algumas vezes desig-
nadas congressos. E quase impossível que não haja
pelo menos uma Jornada Eucarística e uma Jornada
Mariana, ou por arciprestado, ou por zona pastoral,
ou por vigararia, ou por termo, ou por diocese. A con-
sulta da imprensa regional católica obriga a pôr de
lado todas essas iniciativas noticiadas em meia dúzia
de linhas e a só registar as que ocupam largas par-
celas da primeira página. Eram todas iguais: con-
centração, missa, procissão, comunhão geral e, por
vezes, ou sessão solene, com os graves da terra, ou
coro dialogado. A maior parte deles nem chegou à
notícia de jornal, enquanto outros tiveram direito
a memória, mas ficaram para a posteridade os coros
de poetas como Alvaro de Proença, Moreira das Ne-
ves e Manuel Ferreira da Silva, e muitas composi-
ções musicais, cânticos e marchas processionais,
verdadeiras auroras da música religiosa moderna, em
que sobressaem melodias como as do «Queremos
Deus», do «Somos Cristãos pelo Baptismo» e da
«Divina Eucaristia» - texto musical típico de inicia-
ção catequética. Começam a aparecer as assembleias
que preferem a designação de «semanas», mas os
congressos continuam. Entre eles têm de ser regista-
dos o Congresso Antoniano (1931) e a sucessão de
um novo modelo, o Congresso Missionário (cinco,
entre 1931 e 1937), sempre com a participação de
padres missionários de primeira linha, de leigos
de bom estilo, e de especialistas em missionologia,
cujos escritos se encontram parcialmente impressos.
Os Congressos Missionários Nacionais começaram Actas do III Congresso Internacional dos Médicos
Católicos, em Lisboa, 1947. Acção Médica 12 (1947/1948).

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CONGRESSOS

ção feminina nas tarefas laicais da Igreja. Porém, o de 1940-1950, encontramo-nos com três signifi-
fenómeno de maior categoria de quantos a Acção cativos congressos de teologia mariológica e ma-
Católica Portuguesa* facultou viria no ciclo das riânica: o Congresso Mariológico Luso-Espanhol
chamadas Semanas Sociais* Portuguesas, que o car- (1944), o II Congresso Mariano Nacional (Évora,
deal Cerejeira apresentou ao país como a primeira 1946) e o Congresso Mariológico sobre a Assunção
universidade católica, aberta a toda a gente. As se- de Nossa Senhora (Lisboa, 1947). Nos três foram
manas incluíram quatro cursos (Lisboa, 1940, Coim- múltiplas as teses e as comunicações, em tempo im-
bra, 1943, Porto, 1948 e Braga, 1952) versando os pressas. O decénio de 1950-1960 assinala um em-
temas da doutrina social cristã, das bases cristãs de pobrecimento. É o tempo das semanas e dos encon-
uma ordem nova, do problema do trabalho e do pro- tros de delido eco e de quase inaudível voz. No
blema da educação. As tarefas congressistas desta entanto, Braga ainda se faz ouvir: I Congresso Inter-
organização prosseguem no decénio de 1940-1950. nacional de Estudos Martinianos (1950) e II Con-
Importa assinalar o II Congresso da Juventude Cató- gresso Mariano Nacional (1954), que concentrou de-
lica Feminina (1942), o II Congresso Internacional zenas de oradores, teólogos e mariólogos. No vector
dos Médicos Católicos (1947) e o I Congresso dos mariológico, o tema de Fátima ganhou relevo, bas-
Professores Primários Católicos (1948), em todos tando citar três congressos internacionais: Congresso
eles se produzindo textos interventivos de intempo- Internacional da Mensagem de Fátima e a Paz (1951),
ral qualidade, aliás impressos. Entre as iniciativas onde esteve o cardeal Fulton Sheen, o Congresso In-
achou mais funda repercussão e lavrou mais denso a ternacional sobre Fátima e a Paz (Fátima, 1992) e o
I Decenal da Acção Católica Portuguesa (1944) em I Encontro Internacional sobre a Pastoral de Fátima
que militantes, operários e intelectuais fizeram o ba- (1992), cujas actas se encontram publicadas. Até
lanço de um decénio de trabalho na sociedade. E nos 1974 as dioceses levaram a efeito cursos de pastoral
livros das teses então lidas que se sentem os sobres- em regime de congresso, como Aveiro (1949-1965)
saltos da nossa sociedade e se adivinham as graves e Portalegre (1960-1968), enquanto surgiam (1975)
questões que, a partir de 1945, iriam gerar a crise da os Encontros Nacionais de Pastoral Litúrgica. Évora
Acção Católica Portuguesa, que explodiria nos anos celebrou o IV Centenário da Fundação da Universi-
60, por impulsividade da crise eclesial e da influên- dade e as ordens e as congregações religiosas inicia-
cia crítica do II Concílio do Vaticano. Nenhum outro ram a sequência dos seus regulares congressos (des-
organismo eclesial terá produzido comparável quan- de 1958). Na mesma época assinalam-se as Semanas
tidade e comparável diversidade de cursos, conferên- Teológicas de Lisboa (1961-1969) e outras varieda-
cias, ciclos, estudos, dias, encontros e jornadas que, des de semanas de estudo. São relevantes os con-
na verdade, constituem congressos de especialidade. gressos do I Centenário do Sameiro (Braga, 1964), o
Ultrapassando o tempo, e indo para o decénio de Congresso de Estudos do XIII Centenário da Morte
1950-1960, há a assinalar o I Congresso da Juventu- de São Frutuoso (Braga, 1966), o V Congresso Ma-
de Independente Católica Feminina (1950), o I Con- riológico Internacional (Lisboa, 1967) e o II Con-
gresso dos Homens Católicos (1950), o I Congresso gresso Eucarístico Nacional (Braga, 1974), que fe-
da Juventude Universitária Católica (1953) e o temi- chou com chave de ouro o episcopado do arcebispo
do e polémico I Congresso da Juventude Operária D. Francisco Maria da Silva. Após 1975 verificou-
Católica (1955), acerca dos quais existe numerosa -se uma certa paragem, ocorrendo a retoma com
bibliografia. O I Congresso dos Homens foi um de- o Congresso Nacional dos Leigos (Fátima, 1988), o
safio à profissão de fé. Durante a I República tinha- Congresso Internacional Comemorativo do IX Cen-
-se criado a Obra da Missa para os Homens, destina- tenário da Dedicação da Sé de Braga (1989), o
da a atrair o elemento masculino ao culto litúrgico. Congresso Internacional Comemorativo da Morte
Este congresso tomou idêntica premissa e aguardou de D. Frei Bartolomeu dos Mártires (Braga, Guima-
as inscrições. A ocorrência teve significado e, no ca- rães e Viana do Castelo, 1991), o Congresso Inter-
so vertente, devem registar-se alguns dos nomes que nacional de História Missionação Portuguesa e En-
participaram: Joaquim Diniz da Fonseca, Manuel contro de Culturas (Lisboa, 1992), o Congresso de
Correia de Barros, J. S. Silva Dias, Arnaldo de Mi- História do IV Centenário do Seminário de Évora
randa Barbosa, Alberto Pinheiro Torres, Xavier
Pintado, João Carlos Alves, Fernando Magano, o (1993), o Congresso Internacional Pensamento e
romancista Francisco Costa, José de Santa Clara Testemunho no 8.° Centenário do Nascimento de
Gomes e tantos outros, que discutiram a origem e o Santo António de Lisboa (1995) e as Jornadas Ma-
destino do homem, o valor da família à luz dos di- riológicas dos 350 Anos da Proclamação de Nossa
reitos divino e humano, a intervenção da pessoa na Senhora da Conceição Padroeira de Portugal (Évo-
sociedade, a valorização profissional e a justiça da ra, 1996), enquanto se continuou a série dos Con-
sociedade e do Estado. À distância do tempo, os tex- gressos Internacionais de Psiquiatria São João de
tos lidos nestas sessões só não parecem revolucioná- Deus (o primeiro em 1979, o sexto em 1996). Na
rios por causa da subtileza do estilo dos oradores. vertente final do século xx registamos o Congresso
No decénio de 1960-1970, ainda encontramos res- Internacional sobre Fenomenologia e Teologia das
quícios: o Congresso da UCIDT (1960), o VII Con- Aparições (Fátima, 1997), o Congresso Eucarístico
gresso Internacional dos Farmacêuticos Católicos Nacional (Braga, 1999) e o Encontro Nacional de
(1963) e o VII Congresso Internacional do Secre- Movimentos Laicais (Lisboa, 2000). É impossível
tariado Internacional dos Engenheiros e Quadros oferecer uma listagem plena, e mais impossível ain-
Económicos Católicos (Lisboa, 1969). No decénio da registar o elenco de autores e de oradores de tan-
tos congressos. O roteiro temático temporal e geo-

495
CONGRESSOS

gráfico dos indicados sugere o seu significado na GRESSO INTERNACIONAL - Actas. Braga: U C P / F T ; Cabido Metropolitano,
cultura religiosa portuguesa. 1 9 9 0 , 4 v o l . CONGRESSO COMEMORATIVO DO I V CENTENÁRIO DA M O R T E
DE D. FR. BARTOLOMEU DOS MÁRTIRES - Actas. Braga: B r a c a r a A u g u s -
J. PINHARANDA GOMES
ta, 1 9 9 1 . CONGRESSO DE HISTÓRIA DO I V CENTENÁRIO DO SEMINÁRIO DE
ÉVORA - Actas. Évora: Instituto S u p e r i o r de Teologia, 1993. 2 vol.
BIBLIOGRAFIA: GOMES, J. Pinharanda - Os congressos católicos em CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE FÁTIMA E A P A Z - Actas. Santuário de
Portugal: Subsídios para a história da cultura católica portuguesa F á t i m a , 1 9 9 3 . CONGRESSO NACIONAL DOS LEIGOS, F á t i m a , 1 9 8 8 - Lei-
contemporânea, 1870-1980. Lisboa: S e c r e t a r i a d o N a c i o n a l p a r a o gos em congresso. Lisboa: Rei dos L i v r o s , 1990. ENCONTRO INTERNA-
A p o s t o l a d o dos Leigos, 1984. A p õ e a c a d a entrada u m a a d e q u a d a fi- CIONAL SOBRE A PASTORAL DE FÁTIMA, 1 - A Pastoral de Fátima: Actas.
cha b i b l i o g r á f i c a . IDEM - O pensamento teológico contemporâneo em S a n t u á r i o d e Fátima, 1993. FENOMENOLOGIA e teologia das aparições.
Portugal. Braga: T h e o l o g i c a , 1991. SPIRAGO, F. - Catecismo católico Actas. Fátima, 1 9 9 8 . M I S S I O N A Ç Ã O PORTUGUESA E E N C O N T R O DE C U L T U -
a
popular. Lisboa: U n i ã o G r á f i c a , 1958, 3. P. C o m o b i b l i o g r a f i a acti- RAS. CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA - Actas. Braga: UCP,
va posterior: I X CENTENÁRIO DA D E D I C A Ç Ã O DA S É DE B R A G A . CON- 1993. 4 vol.

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