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Fontes Canônicas da Eclesiologia Ortodoxa

- A partir do Império Bizantino -

Na literatura dos Santos Padres, aceita em todo o período bizantino


como expressão definitiva da tradição eclesiástica, não há, em termos gerais,
nenhum tratado sistemático de Eclesiologia, mas isso não significa que
determinados elementos da vida cristã, como a ordem eclesiástica, os Santos
Mistérios (Sacramentos), a tradição, não fossem essenciais no Cristianismo
Oriental.

Uma fonte imprescindível para nosso conhecimento da concepção


eclesiológica bizantina é a coleção de antigos textos canônicos, como os
decretos conciliares, comentários, e a legislação sinodal posterior. Mesmo
algumas leis imperiais relativas à vida da Igreja, enquanto aceitas como
princípios normativos da administração eclesiástica, atestam uma consciência
eclesial essencialmente idêntica à dos cânones dos diversos Concílios.

Do ponto de vista jurídico, a coleção de fontes canônicas orientais não


pode ser considerada um todo perfeitamente coerente. As tentativas de
codificação da legislação canônica ficaram longe de ser exaustivos e não
eliminaram contradições. A questão é que nunca se pensou que se prestariam
como um corpus iuris (corpo de leis) para a Igreja.

Muitos polemistas ocidentais apresentaram este aspecto como sendo


uma das debilidades básicas do Cristianismo oriental, que não teria conseguido
se dotar de um direito canônico estruturado e independente, o que fez com
que, no Império Bizantino, sucumbisse diante do poder do Estado. No entanto,
estes juízos partem da suposição de que a Igreja é uma “instituição” divina, cuja
existência interna pode ser definida adequadamente em termos jurídicos, ideia
completamente estranha aos cristãos bizantinos, posteriormente ortodoxos,
para os quais a Igreja era, antes e acima de tudo, uma comunhão sacramental
com Deus em Cristo e no Espírito, cujos membros – todo o Corpo de Cristo –
não constituem um todo limitado à ecumene terrestre, como uma agremiação
que se rege por um sistema de leis, mas se estende e abrange o mundo dos
Anjos e dos Santos, inclusive seu Cabeça divino, Cristo glorificado.

Entendia-se, desde cedo, que a administração da Igreja terrestre era algo


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necessário, que exigia, sem dúvida, o uso de conceitos e termos jurídicos, mas
todos esses organismos não esgotavam a realidade essencial e definitiva da
Igreja de Deus, e que as questões administrativas poderiam ser determinadas
ocasionalmente pelos Concílios, ou ser deixadas ao arbítrio – benévolo, e, em
princípio, cristão – dos imperadores.

Tal atitude não significava, no entanto, que os orientais fossem


indiferentes quanto aos códigos canônicos ou incompetentes em nível jurídico,
muito ao contrário. De maneira geral, se davam conta de que alguns cânones
refletiam fielmente a eterna e divina natureza da Igreja, e que era um dever
cristão prestar-lhes obediência. De outro lado, é fato que em Bizâncio as
tradições romanas sempre tiveram força suficiente para manter quase
permanentemente um corpo de competentes juristas eclesiásticos que
aconselhavam os imperadores em matéria de decretos referentes à Igreja, e
que, inclusive, introduziram na legislação e na jurisprudência eclesiástica
determinados princípios do direito romano. Igualmente é verdade que tais
juristas eclesiásticos sempre entenderam sua função como subordinada aos
princípios mais fundamentais da natureza divina da Igreja, expressa em uma
comunhão sacramental e doutrinária que unia o Céu e a Terra; ao mesmo
tempo reconheciam que não havia no Céu nenhuma legislação canônica, pois
“se a justificação vem pela lei, Cristo morreu em vão” (Gálatas 2,21), e que,
portanto, sua tarefa era limitada.

Os Concílios e Santos Padres

A coleção canônica geralmente aceita em Bizâncio – e que iria se


constituir na base do Direito Canônico na moderna Igreja Ortodoxa -, conhecida
como “Nomocanon” ou “Nomocanon em XIV Títulos”, contém os seguintes
textos canônicos de origem puramente eclesiástica:

1. Cânones Apostólicos

Coleção primitiva de 85 regras disciplinares que, na primeira metade do


século IV, serviram de texto canônico geralmente aceito na Síria. Seu conteúdo

reflete, em muitos aspectos, as práticas do período pré-niceno, mesmo que,


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certamente, não fossem de origem apostólica. No final do século V, Dionísio, o


Exíguo, traduziu para o latim uma coleção reduzida (somente 50 cânones), que
gozou de ampla aceitação no Ocidente. A introdução de toda a série de 85
cânones no direito da Igreja de Constantinopla foi obra do Patriarca João III
Escolástico (565-577), ratificada pelo Concílio Quinisexto (692).

2. Cânones dos Concílios Ecumênicos

Niceia (325): 20 cânones.

Constantinopla (381): 7 cânones.

Éfeso (431): 8 cânones.

Calcedônia (451): 30 cânones.

Quinisexto (entre o 5º e o 6º Concílios), também chamado “Trulano” ou


“in Trullo”. Seus textos canônicos receberam a classificação de “ecumênicos”:
102 cânones.

Niceia II (787): 22 cânones.

3. Cânones dos Concílios Locais

Ancira (314): 25 cânones.

Neocesareia (314-325): 15 cânones.

Antioquia (341): 25 cânones.

Sárdica (343): 20 cânones.

Gangra (primeira metade do século IV): 21 cânones.

Laodiceia (século IV): 60 cânones.

Constantinopla (394): 1 cânon.

Cartago (419): 133 cânones “Codex Canonum Ecclesiae Africanae”.

Constantinopla (859-861): 17 cânones.

Constantinopla (879-880): 3 cânones.


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4. Cânones dos Santos Padres

Os textos patrísticos compreendidos nesta categoria são, em sua maior


parte, cartas ocasionais ou respostas autorizadas, dirigidas a indivíduos
concretos. Em algumas coleções são divididos em cânones.

Dionísio de Alexandria (†265)

Gregório de Neocesareia (†270)

Pedro de Alexandria (†311)

Atanásio de Alexandria (†373)

Basílio de Cesareia (†379)

Gregório de Nissa (†395)

Gregório Nazianzeno (†389)

Anfilóquio de Icônio (†395)

Timóteo de Alexandria (†355)

Teófilo de Alexandria (†412)

Cirilo de Alexandria (†444)

Genádio I de Constantinopla (†471)

Outras coleções, de época posterior, incluem também textos dos


Patriarcas de Constantinopla Tarásio (†809), João, o Jejuno (†595), Nicéforo
(†818), e Nicolau III (1084-1111), recolhidos na coleção eslava “Kormchaya
Kniga”.

Toda esta série de textos canônicos oficiais é concebida como um marco


de referências e disposições comuns de espécie e importância diversas. A
coleção canônica mais relevante é, sem dúvida, a do Concílio Quinisexto ou
Trulano (692), concebida pelo responsável por sua convocação, o imperador
Justiniano II, como uma primeira tentativa de codificar a legislação dos Concílios
anteriores. A maior parte desses textos, inclusive os Cânones Apostólicos e os
Cânones dos Santos Padres, recebeu sua autoridade deste Concílio. Apesar do
Concílio Trulano estivesse investido de autoridade “ecumênica” na tradição da
Igreja Oriental, não foi reconhecido como tal no Ocidente. O fato de nele terem
sido condenadas explicitamente algumas práticas litúrgicas e canônicas latinas
supõe uma concepção de autoridade e de tradição eclesiástica diferente da que
regia a Igreja latina.
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Legislação Imperial

O princípio do significado relativo e transitório da lei na administração


eclesiástica pode ser uma chave para entender a facilidade, inclusive o
conformismo, com que se aceitou no Oriente a legislação imperial relativa às
questões administrativas da Igreja, uma vez que o próprio imperador era
membro da comunidade e havia se comprometido a proteger e tutelar os
princípios sacramentais e doutrinais que constituíam o fundamento da Igreja
Cristã. Não havia qualquer decreto que conferisse ao imperador autoridade
para definir ou formular esses princípios, mas sua responsabilidade para aplicá-
los e, se necessário, dirigir as questões práticas da Igreja visível, era fato
universalmente aceito. Esse é o sentido das seguintes palavras atribuídas a
Constantino: “Deus me escolheu como supervisor dos assuntos externos da
Igreja”, dito que Justiniano incorporou à sua legislação.

O Codex e as Novellae contêm uma série de leis referentes à Igreja,


abrangendo mais funções e atividades eclesiásticas que toda a legislação
conciliar anterior e posterior ao próprio Justiniano.

Um bom exemplo do estilo de Justiniano é seu Édito de 528 sobre o


modo de se escolher os candidatos ao Episcopado:

“Com nosso maior desvelo pelas Santas Igrejas, para honra e glória da
Santíssima, Imaculada e Consubstancial Trindade, pela qual cremos que tanto
nós mesmos como a comum administração (referência aos membros do corpo
administrativo) serão salvos, e seguindo a doutrina dos Santos Apóstolos (...),
ordenamos, pelo presente Decreto, que, quando em qualquer cidade aconteça
de estar vacante a Sé Episcopal, os habitantes de tal cidade devem escolher três
pessoas de reconhecida fé e santidade de vida, e adornados de outras virtudes,
para que dentre elas se eleja a mais apta a desempenhar o ministério
episcopal...”

A famosa Novella 6 contém toda uma série de ordenanças sobre a


existência da Igreja no marco do sistema vigente no Império Romano.
Obviamente que, em princípio, não poderia haver contradição entre cânones
eclesiásticos e leis imperiais. O próprio Justiniano ordenou que os cânones
tivessem força de lei, mas os comentaristas posteriores admitiram a possibilida-
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de de contradição, caso no qual teriam prioridade os cânones. Sempre é


importante lembrar que, apesar de todo o poder atribuído aos imperadores em
assuntos da Igreja, eles não estavam acima dos dogmas e das leis da Igreja.
Entre os muitos exemplos que podem ser mencionados, há a negação explícita
de autoridade doutrinal ao imperador por escritores anti-iconoclastas como
João Damasceno e Teodoro Estudita, bem como a oposição do Patriarca Nicolau
I, “o Místico” (901-907, 912-925), ao quarto matrimônio civil do imperador Leão
VI (886-912). No entanto, é impossível entender o regime e a consciência
eclesiástica bizantina sem ter em conta a legislação imperial. Depois do Código
de Justiniano, o corpo mais amplo de documentos jurídicos de importância está
nas Leges Novellae, promulgadas pelo próprio Justiniano e seus sucessores,
especialmente Leão VI (886-912), como anexos ao Código.

Outras coleções legislativas importantes para a vida da Igreja são as


Eclogas dos imperadores da dinastia isáurica, promulgadas entre os anos 739 e
741, que incluem, inclusive, modificações na legislação de Justiniano,
especialmente no que dizia respeito ao matrimônio e divórcio. Basílio I (867-
886) promulgou vários decretos que, em parte codificavam, e em parte
modificavam a legislação anterior.

O Prócheiron, publicado entre 870 e 878, era um manual para juristas


que, assim como as Eclogas, continha disposições a respeito do matrimônio e
outros assuntos eclesiásticos. Seu título VII, por exemplo, tratava dos
matrimônios proibidos, o título XI, do divórcio, e o título XXVIII tratava da
qualificação dos clérigos, com normas para sua nomeação.

O Código chamado Basílicum, cuja primeira parte foi publicada sob


Basílio I, e a segunda sob seu sucessor, Leão VI, reproduzia algumas leis de
Justiniano, omitindo outras, fazendo uma seleção que teve incidência sobre a
administração eclesiástica do Império Bizantino medieval.

Outro importante código, publicado ao tempo da dinastia macedônia,


provavelmente obra do Patriarca Fócio, é a Epanagogê (“Recapitulação da Lei”),
conhecida por sua descrição do Imperador e do Patriarca de Constantinopla
como “os mais nobres e mais necessários membros da sociedade”. Nele há
também regras sobre a disciplina eclesiástica e o status legal das propriedades
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da Igreja, e ainda sobre o matrimônio. Não se sabe se a Epanagogê chegou a ser


promulgada oficialmente e adquirir, portanto, força de lei, mas o fato é que ela
foi muito citada e repetida em coleções de textos legais posteriores. Seu
modelo de “diarquia” estabelecida por Deus, cujos cabeças são o Imperador e o
Patriarca - em sintonia com a ideia de Justiniano de uma harmonia entre Igreja e
Estado, exaltando, porém a posição do “Patriarca Ecumênico” de
Constantinopla, como “alto oficial do Império” – estava muito próximo da
ideologia que prevaleceu em Bizâncio durante o século IX, depois da vitória
sobre a iconoclastia imperial (movimento contra a existência e veneração dos
santos ícones). Desde então, esse modelo serviu como padrão nos territórios
eslavos, onde os Patriarcas compartilhavam a “diarquia” com governantes civis.

Codificações da Legislação Eclesiástica

A época de Justiniano foi testemunha da aparição não somente de seu


famoso Codex, mas também de outras codificações da legislação eclesiástica,
apesar de, em épocas precedentes, já existirem diversas coleções de caráter
sistemático e em ordem cronológica.

Não somente durante o reinado de Justiniano, mas também após sua


morte, o Patriarca de Constantinopla João III Escolástico (565-577), com
formação jurídica, contribuiu notavelmente para essa codificação. A ele se
atribui a composição não somente de uma coleção de 50 títulos, na qual os
cânones conciliares foram divididos em ordem temática, mas também uma
coleção paralela de éditos imperiais, dividida em 87 capítulos.

O final do século VI se distinguiu pelo surgimento de outra coleção,


semelhante à de João Escolástico, porém anônima, dividida em 14 títulos, com
uma recompilação paralela de diferentes éditos imperiais. O autor anônimo se
mostrou familiarizado com a obra de um colega ocidental contemporâneo, o
monge Dionísio, “o Exíguo” (†555), autor da primeira coleção latina de cânones
conciliares, do qual adotou o “Código Canônico Africano”, que, assim como os
“Cânones do Concílio de Cartago”, chegou a ser grandemente apreciado em
Bizâncio.

A obra completa de João Escolástico e a do autor anônimo supracitado


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foram reeditadas e complementadas nos séculos seguintes na forma de


Nomocânones. O princípio que guiou a apresentação de uma nova forma de
manual canônico foi a necessidade dos juristas e oficiais eclesiásticos bizantinos
terem um compêndio sistemático da legislação vigente quanto a problemas que
surgiam na vida diária da Igreja.

O Nomocânon em Catorze Títulos, que adquiriu sua forma definitiva em


883, provavelmente sob a supervisão do Patriarca Fócio, compreendia um
número muito maior de textos, e, de maneira geral, foi aceito como satisfatório
por várias gerações de canonistas, e serviu muitas vezes como base para novos
comentários canônicos.

Os dois Nomocânones foram traduzidos para o eslavo. O Nomocânon em


Catorze Títulos foi a base da chamada Kormchaya Kniga, a coleção canônica
comumente aceita no mundo eslavo em suas diversas versões.

Além dos Nomocânones circulavam em Bizâncio outras obras canônicas


de referência, como, por exemplo, a Sinopsis Canônica de Estêvão de Éfeso,
composta provavelmente no século VI e revisada e completada em datas
posteriores, e que incluía um comentário de Aristenos.

No século XIV dois renomados juristas de Tessalônica publicaram diversas


coleções sistemáticas, nas quais os cânones estavam separados dos éditos
imperiais. Um desses juristas, Constantino Hermenopoulos, muito conhecido
entre os historiadores do Direito Romano por sua Hexabiblon, compôs uma
Epítome como apêndice a seu compêndio da legislação civil; o outro jurista,
Mateo Blastares, Sacerdote e monge, publicou uma coleção canônica
acompanhada de disposições mais recentes e de comentários críticos de temas
canônicos.

Comentários e Críticas

Durante o reinado de João II Comneno (1118-1143), um intelectual e


historiador bizantino, João Zonaras, escreveu um comentário ao anônimo
Nomocânon em Catorze Títulos.

De mentalidade sistemática, Zonaras explicou os textos canônicos por


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ordem de importância e segundo um esquema coerente do ponto de vista


lógico, mas artificial do ponto de vista histórico.

Para Zonaras os chamados “Cânones Apostólicos” gozavam de maior


autoridade que os textos conciliares, e as decisões dos Concílios Ecumênicos
tinham mais peso que as dos Concílios locais, sendo de menor importância os
cânones particulares dos Padres Apostólicos.

Um contemporâneo de Zonaras, Alexios Aristenos, autor de um


comentário sucinto, baseado em uma coleção abreviada (epítome) de cânones,
não tardou em dar-se conta da dificuldade da aplicação, nesse sentido, de um
princípio lógico, uma vez que os Concílios Ecumênicos desciam por vezes a
detalhes praticamente de pouca importância, ao passo que alguns textos que
Zonaras considerava secundários continham aspectos doutrinários e
eclesiológicos de grande importância. O propósito de Aristenos, mais que
determinar a relação entre os textos e sua importância, era explicar seu sentido
em seu contexto histórico.

O terceiro grande comentarista do século XII, Teodoro Balsamon, em sua


obra mais importante, dedicada a comentar o Nomocanon de Fócio em sua
totalidade, empreendeu com entusiasmo a tarefa a ele confiada pelo imperador
Manuel I Comneno (1143-1180) e o Patriarca Miguel de Anquíalo (1170-1178),
de coordenar sistematicamente a legislação imperial com os cânones
eclesiásticos.

A tarefa implicava, de fato, uma codificação dos diferentes Éditos


promulgados pelos imperadores, cujas estipulações a respeito da Igreja
continham, às vezes, certa contradição com as normativas eclesiásticas. A tarefa
específica de Balsamon se referia às instâncias concretas nas quais uma lei de
Justiniano, incluída no Nomocanon, havia sido omitida ou estava em aberta
contradição com outra constante do Basilicum. Em princípio, Balsamon deu
preferência ao Basilicum sobre Justiniano e, por conseguinte, em determinadas
instâncias, sobre o Nomocanon de Fócio.

Seu entusiasmo pela legislação imperial recente não o impediu, no


entanto, de afirmar explicitamente a supremacia dos cânones eclesiásticos
sobre os Éditos imperiais, apesar de acontecer de apresentar ele ocasionalmen-
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te alguma definição conciliar em relação às leis do império, de modo a favorecer


estas.

A ênfase no papel do Imperador levou Balsamon a também sublinhar em


certas ocasiões a autoridade do Patriarca Ecumênico nos assuntos gerais da
Igreja. De fato, ele concebia a Igreja como uma magnitude centralizada no
marco ideal de um Império cristão universal.

Uma abundante literatura canônica foi dedicada a analisar os problemas


levantados pelos cânones, pela legislação imperial e pelos próprios comentários
sobre a matéria. Tal literatura, quase sempre de caráter polêmico, é uma das
fontes mais importantes para a compreensão da eclesiologia bizantina
medieval, que, em outros campos, não teve uma exposição verdadeiramente
sistemática.

Um dos problemas mais prementes levantados por essa literatura é a


relação canônica entre o Patriarca e os Primazes Provinciais ou Metropolitas. Os
debates sobre esse tema afetavam implicitamente o papel do Imperador nos
assuntos eclesiásticos, uma vez que todos coincidiam em aceitar que o Patriarca
Ecumênico não era somente uma autoridade eclesiástica, mas também um
“funcionário” do Estado. Sua função “profana” se expressava no direito de
coroar o Imperador (um privilégio datado do século X) e no costume de que, e
caso de necessidade, deveria ele assumir a regência do Império.

A nomeação do Patriarca como “funcionário imperial” dependia


formalmente de sua investidura pelo Imperador, uma cerimônia que se seguia à
eleição de três candidatos pelo Sínodo. Por outro lado, os textos não
contemplavam uma intervenção oficial do Imperador na eleição dos
Metropolitas, havendo até mesmo cânones que condenavam severamente essa
possibilidade, de maneira que a dependência ou independência dos
Metropolitas em relação ao Patriarca, na qualidade de “servidores do Estado”,
implicava também a relação com o Imperador.

No século X surgiu uma discussão entre Eutímio, Metropolita de Sardes,


que defendia o direito do Patriarca de escolher um Metropolita dentre três
candidatos apresentados pelo Sínodo, e um autor anônimo que sustentava que

os cânones atribuíam ao Patriarca o direito de ordenar os Metropolitas, mas


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não o de elegê-los. Como resultado da polêmica, Nicetas, Metropolita de


Amasía, escreveu um tratado que reivindicava os direitos do Patriarca.

Ao que tudo indica, o debate acabou se resolvendo em favor de uma


centralização imperial e patriarcal, uma ideia que também se pode encontrar
nos escritos de Balsamon, especialmente em seu comentário do cânon 28 do
Concílio de Calcedônia (*). Porém, nos séculos XIII e XIV, com o declínio do
poder imperial, o Patriarcado adquiriu mais prestígio e maior independência
diante do poder civil. Uma série de Patriarcas do período dos “Paleólogos”
defendeu simultaneamente maior independência em relação ao Estado e uma
autoridade mais ampla sobre os Metropolitas. O Patriarca Atanásio I (1289-1293
e 1303-1310) chegou, inclusive, a dissolver um Sínodo. Sua correspondência e
suas Encíclicas são de grande interesse do ponto de vista canônico e
eclesiológico.

O exemplo de Atanásio foi imitado pelos Patriarcas do século XIV,


especialmente Calixto e Filoteo, com a noção de “autoridade universal”
(kêdemonía pantôn) desempenhada pelo Patriarca de Constantinopla tal qual se
reflete nas Atas patriarcais de seu tempo.

Decretos Sinodais e Patriarcais

Durante todo o período bizantino o Patriarca de Constantinopla foi, de


fato, o cabeça da Igreja oriental. Em princípio, sua autoridade foi um
considerada um “privilégio de honra, depois do Bispo de Roma” (II Concílio
Ecumênico, cânon 3). Posteriormente, o IV Concílio Ecumênico, Em seu cânon
28, falou de privilégios “iguais” aos de Roma, e outorgou ao Bispo da capital
imperial uma extensa jurisdição patriarcal, assim como o direito de receber as
apelações contra sentenças dos Primazes regionais. Esses privilégios e direitos
se baseavam no prestígio da cidade imperial e nunca desembocaram na ideia de
uma “infalibilidade” do Patriarca.

Contudo, era inevitável que os temas doutrinais de maior relevância


fossem resolvidos em Constantinopla pelo Patriarca e os Bispos que, com ele,
constituíam o Sínodo permanente. Em ocasiões especiais, e para resolver
problemas mais delicados, se convocava a reunião de assembleias mais repre-
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sentativas que, às vezes, eram presididas pelo próprio Imperador e incluíam os


demais Patriarcas ou seus delegados.

As decisões mais relevantes desse magistério permanente estão


expressas no Synódikon da Ortodoxia, um texto litúrgico extenso que, desde o
ano 843, se lê nas Igrejas do Oriente no 1º Domingo da Grande Quaresma, em
comemoração ao final do movimento herético iconoclasta (contra os ícones). O
Synódikon e os documentos emanados do Sínodo Patriarcal são as fontes mais
fidedignas para se conhecer a compreensão que a Igreja bizantina tinha de si
mesma do ponto de vista eclesiológico.

No texto do Synódikon, que começa com uma solene ação de graças pelo
triunfo da Ortodoxia sobre “todas as heresias”, há uma comemoração específica
dos defensores da verdadeira fé durante o período iconoclasta. A isso se soma
uma série de louvores aos Patriarcas do período seguinte, e se encerra com a
anatematização de diversos hereges. Desde o século IX este documento
recebeu algumas adições, como resultado de disputas doutrinais posteriores
resolvidas mediante decretos de diversos Sínodos realizados em Constantinopla.

A lista de Patriarcas do período compreendido entre os anos 751 e 1416


é, em si mesma, um testemunho de capital importância para se conhecer a
maneira como foram resolvidos alguns problemas tanto de caráter interno
como de repercussão externa. A sucessiva menção de Inácio, Fócio, Estêvão,
Antônio, Nicolau e Eutímio como Patriarcas ortodoxos “de eterna memória”
demonstra que os famosos cismas produzidos durante os séculos IX e X entre
Inácio e Fócio, Nicolau e Eutímio, com as consequentes excomunhões
recíprocas, foram considerados como praticamente inexistentes.

Porém a omissão na relação dos Patriarcas do final do século XIII de


nomes como os de Nicéforo II (1260-1261), Germano III (1265-1267), João XI
Beccos (1175-1282), Gregório II de Chipre (1283-1289) e João XII Cosmas (1294-
1303) reflete o repúdio da “União de Lyon” (1274) e dos termos da reconciliação
dos “arsenitas” com a Igreja oficial em 1310. Os “arsenitas”, que haviam se
recusado a reconhecer a destituição do Patriarca Arsênio Autoriano em 1260,
obtiveram em 1310 sua completa reabilitação e uma parcial “damnatio
memoriae” (“condenação da memória”) para alguns de seus sucessores.
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O Synódikon também descreve o magistério bizantino em ação contra o


platonismo de João Ítalo (1076-1077), 1082) e contra os desvios cristológicos de
seu contemporâneo Nilo de Calábria, assim como as de Eustrácio de Niceia
(1117), Sotérico Panteugeno (1155-1156), Constantino de Corfú e João Irênico
(1169-1170), e, finalmente, a solução dada no século XIV às grandes disputas
doutrinais sobre a “deificação” e as “energias” (hesicasmo). Infelizmente, não
foram conservadas as Atas dos Sínodos patriarcais desse período, mas somente
as dos dois últimos séculos do Império Bizantino.

Essas Atas constituem uma inesgotável fonte de informações sobre as


relações entre a Igreja e o Estado, os procedimentos canônicos e a prática da
oikonomía (de que se falará adiante); de fato, são uma das mais importantes
ilustrações do modo como os bizantinos entenderam a relação entre lei e graça
no seio da Igreja Cristã.

Oikonomía

O termo oikonomía (economia) não pertence ao vocabulário legal. No


Novo Testamento, e no sentido de “administração doméstica”, oikonomía
designa o plano divino de salvação: “E nos revelou o mistério da sua vontade, de
acordo com o querer e projeto que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer
convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da
plenitude dos tempos (Efésios 1,9-10). Porém, esse plano divino de
recapitulação da história e do universo foi confiado a homens (**).

Para Paulo, proclamar a Palavra de Deus é uma oikonomía que Deus lhe
havia confiado: Porque, se prego de livre vontade, tenho recompensa; contudo,
como prego por obrigação, estou simplesmente cumprindo uma incumbência a
mim confiada (I Coríntios 9,17); por isso se há de considerar os pregadores
como servos de Cristo e encarregados (oikónomoi – “ecônomos”) de anunciar
os mistérios de Deus: “Que todos nos considerem como servos de Cristo e
encarregados dos mistérios de Deus (I Coríntios 4,1). Esse encargo pertence,
especificamente, aos que desempenham a função de dirigir a Igreja: “Me alegro
em meus sofrimentos por vocês, e completo no meu corpo o que resta das
aflições de Cristo, em favor do seu corpo, que é a igreja. Dela me tornei ministro
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de acordo com o encargo (oikonomía) por Deus a mim atribuído de apresentar-


lhes plenamente a palavra de Deus (Colossenses 1,24-25). Nas Epístolas
pastorais a oikonomía está confiada especialmente aos Bispos (epískopoi): “Por
ser administrador (oikónomoi - ecônomo) da obra de Deus, é necessário que o
bispo seja irrepreensível (Tito 1,7).

Nos Padres Gregos oikonomía significa comumente “história encarnada”,


sobretudo nas controvérsias cristológicas do século V. De maneira subsidiária,
se emprega o termo também em textos canônicos, quando se trata,
obviamente, do ministério pastoral confiado à Igreja no contexto do plano
divino de salvação da humanidade. Assim, por exemplo, Basílio de Cesareia, em
sua Carta a Anfiloquio (que chegou a se tornar um texto normativo nas coleções
canônicas bizantinas), depois de ratificar o princípio defendido por Cipriano da
nulidade de batismo administrado por hereges, continua: “Contudo, se isso
supõe um obstáculo para a oikonomía geral [de Deus], haverá de se acolher o
costume e seguir o parecer dos Santos Padres que dirigiram a Igreja”. O costume
a que Basílio se referiu era algo habitual na Ásia Menor, onde o ministério a um
grande número de pessoas (“serviço à multidão”) havia conferido validade à
prática de aceitar o batismo administrado por hereges. De qualquer forma,
Basílio justifica a oikonomía pelo temor de que uma austeridade excessiva se
convertesse em um obstáculo para a salvação de alguém (***).

Nas versões latinas do Novo Testamento, e no vocabulário eclesiástico


posterior, oikonomía se traduziu normalmente por dispensatio (dispensa).
Assim, no Direito Canônico ocidental, dispensatio adquiriu o sentido específico
de “dispensa”, ou seja, “exceção à lei, estabelecida pela autoridade
competente”, enquanto o texto de Basílio, assim como outras inumeráveis
referências a oikonoía na literatura canônica bizantina, interpreta o termo em
sentido bem mais amplo. Isto quer dizer que não se trata somente de uma
exceção à lei, mas ainda da obrigação de decidir, em casos individuais, o que
seja o mais razoável no contexto do plano divino de salvação. Em algumas
ocasiões a rigidez canônica pode resultar inadequada para levar a cumprimento

a realidade universal do Evangelho, pois, em si mesma, não dá a segurança de


que sua aplicação obedece realmente à vontade de Deus.
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Para a Igreja bizantina – para usar uma expressão do Patriarca Nicolau, o


Místico (901-907 e 912-925) – oikonomía é “a imitação do amor de Deus pelo
homem”, e não simplesmente uma “exceção à regra”. Aliás, às vezes
oikonomía – empregando-se diretamente ou não o termo – se converte em um
elemento da própria regra. Nesse sentido, por exemplo, o cânon 8 do Concílio
de Niceia especifica que os Bispos novacianos (****) deveriam ser aceitos como
Bispos quando a Sede Episcopal do lugar estava vacante, mas se a Sede
estivesse ocupada por um Bispo ortodoxo, os Bispos novacianos somente
poderiam ser aceitos como Sacerdotes (Presbíteros). Vê-se, pois, que, neste
caso, a unidade e o bem estar da Igreja estavam acima de qualquer possível
interpretação da “validade” de uma ordenação sacerdotal não exatamente
ajustada aos cânones.

Oikonomía, ou seja, o desígnio de Deus sobre sua Igreja, encerra uma


flexibilidade vital que vai além de uma interpretação puramente legalista da
validade sacramental.

Igualmente, o princípio de oikonomía desempenha um papel importante


na legislação sobre o Matrimônio. O propósito essencial dessa legislação
consiste em expressar e proteger o conceito de que o único Matrimônio cristão,
ou seja, sua realidade sacramental, está projetado – “em referência a Cristo e à
Igreja (Efésios 5,32) – na eternidade do Reino de Deus. Logo, o Matrimônio não
é um simples contrato, indissolúvel enquanto os esposos estão neste mundo,
mas trata-se de uma relação eterna, que não se rompe com a morte. De acordo
com as palavras do Apóstolo Paulo, se pode “tolerar” um segundo matrimônio,
mas não se pode considera-lo “legítimo em si mesmo”, mesmo que realizado
em favor de um(a) viúvo(a) ou de um(a) divorciado(a): “Digo, porém, aos
solteiros e às viúvas: é bom que permaneçam como eu. Mas, se não conseguem
controlar-se, devem casar-se, pois é melhor casar-se do que ficar ardendo de
desejo (I Coríntios 7,8-9). Em ambos os casos, se permite um segundo
Matrimônio exatamente por oikonomía e como um “mal menor”, excluindo-se
por completo a ideia de um quarto Matrimônio.

Por sua própria natureza, oikonomía não pode ser definido como uma
norma legal; de fato, já se produziram abusos ou uso indevido do termo. Ao
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longo de toda a sua história, a Igreja do Oriente conheceu certa polarização


entre partidos “rigoristas”, especialmente nos círculos monásticos, e outros
mais flexíveis, formados por eclesiásticos que advogavam exatamente pelo
sentido mais amplo da oikonomia, inclusive em relação ao Estado.

De fato, oikonomía, sendo um conceito aberto à multiplicidade de


maneiras de se por em prática o Evangelho, implica conciliação, e, por vezes,
para se chegar a esta, discussão e certa tensão. A Igreja oriental, ao ter entre
seus santos representantes de ambos os grupos, reconheceu em todos eles o
esforço comum por preservar a fé ortodoxa.

É fato que, em Bizâncio, ninguém se atreveu a por em dúvida o princípio


de oikonomía, mas se aceitava as palavras de Eulógio, Patriarca de Alexandria
(581-607): “Se pode praticar corretamente a oikonomía sempre que a santa
doutrina permaneça incólume”. Em outras palavras, oikonomía diz respeito às
implicações práticas da fé cristã, mas sem nunca por em perigo a Verdade.

_____________________________

(*) Cânon 28 - Concílio de Calcedônia:

“Seguindo em todas as coisas as decisões dos Santos Padres e reconhecendo o


cânon que simplesmente foi lido perante os cento e cinquenta Bispos – amados
de Deus, a quem congregou na cidade imperial de Constantinopla, Nova Roma,
nos tempos do imperador Teodósio, de feliz memória – nós promulgamos e
decretamos também as mesmas coisas acerca dos privilégios para a Igreja mais
santa de Constantinopla, visto que é a Nova Roma, pela mesma razão que os
Padres devidamente concederam os privilégios ao trono da Antiga Roma,
porque era a cidade real. E a maioria dos cento e cinquenta Bispos, agindo pela
mesma consideração, concedeu iguais privilégios ao Trono santo da Nova Roma,
julgando justamente que a cidade é honrada com a Soberania e o Senado,
desfrutando dos mesmos privilégios que a Antiga Roma imperial, também
devendo nas matérias eclesiásticas magnificar-se como ela e alinhar-se após ela,
de modo que no Pôntico, Ásia e dioceses da Trácia, os metropolitas e Bispos das
mencionadas Dioceses, assim como as daquelas que se encontram entre os
bárbaros, deverão ser ordenados pelo acima citado Trono Santo da Igreja mais
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John Meyendorff

Tradução, adaptação e notas: Pe. Gregório Teodoro

santa de Constantinopla; de modo que cada Metropolita das Dioceses


mencionadas, junto com os Bispos de sua província, ordenem os seus próprios
Bispos provinciais, como foi declarado pelos divinos cânones; entretanto, como
se disse anteriormente, os Metropolitas das Dioceses mencionadas deverão ser
ordenados pelo Arcebispo de Constantinopla, após as eleições terem se
realizado apropriadamente, segundo o costume, e relatadas a este”.

(**) No trecho que antecede a “Anamnesis” (palavras do Senhor na Ceia –


Eucaristia -), na Divina Liturgia de S. João Crisóstomo, o Sacerdote diz:

“Ele (Jesus Cristo), vindo e cumprindo toda a economia (oikonomía) da


salvação (geralmente traduzido por ‘obra de redenção’) por nós, na noite em
que foi entregue, ou antes, em que se entregou pela vida e salvação do mundo,
tomou o pão em suas mãos santas, puras e imaculadas, deu graças, o abençoou,
o santificou, e, tendo-o partido, o deu aos seus santos discípulos e apóstolos,
dizendo...”

(***) Este se tornou o sentido, dentro de limites naturais, da oikonomía


praticada pela Igreja.

(****) Os novacianos - de Novaciano, Sacerdote romano - se recusavam a


readmitir em comunhão os chamados “lapsi” (lapsos) - os cristãos batizados que
tinham renegado a fé e realizado sacrifícios aos deuses pagãos em tempo de
perseguição.

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