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RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre como utilizar elencos de valores para
instrumentalizar decisões na área de patrimônio cultural. Além da bibliografia especializada,
utilizo minha experiência com historiadora do Ministério Público do Rio Grande do Sul (RS).
Nos pareceres solicitados pelas promotorias, em geral, a questão que devo responder é se
determinado patrimônio possui valor histórico-cultural. Sugerimos duas tipologias para
responder essa questão. Sua adoção também fornece uma ferramenta de pesquisa eficaz,
ordenando, organizando o conhecimento, e permitindo uma participação mais ampla nos
processos decisórios.
ABSTRACT
This work aims to reflect on how to use typologies of cultural heritage values to
instrumentalize decisions in the area of cultural heritage. In addition to the specialized
bibliography, I use my experience as a historian of the Public Prosecutor's Office of Rio
Grande do Sul. In the consultaions requested by prosecutors, in general, the question I must
answer is whether a given heritage has historical cultural value. We suggest two typologies to
answer this question. Its adoption also provides an effective research tool, ordering and
organizing knowledge, and allowing for broader participation in decision-making processes.
1. Introdução
Desde Alois Riegl, no princípio do século XX, são utilizados diferentes elencos de
valores para tomar decisões referentes à preservação e à conservação do patrimônio cultural.
Seja no plano da Axiologia, seja no plano jurídico a utilização desses elencos está cada vez
mais problemática. A ampliação da concepção de patrimônio e o relativismo cultural e
epistemológico impedem que se apele aos tradicionais valores de beleza estética. Qualquer
decisão que se tome neste campo será seletiva, política e subjetiva (MAROEVIC, 1997).
O presente artigo tem por objetivo refletir sobre como utilizar elencos de valores para
instrumentalizar decisões na área de patrimônio cultural. Além da bibliografia especializada,
utilizo minha experiência com historiadora do Ministério Público do RS. Nos pareceres
solicitados pelas promotorias, em geral, a questão que devo responder é se determinado
patrimônio possui valor histórico cultural. Sugerimos duas tipologias para responder essa
questão. Sua adoção também fornece uma ferramenta de pesquisa eficaz, ordenando,
organizando o conhecimento, e permitindo uma participação mais ampla nos processos
decisórios.
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Doutora em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS, Mestre em Ciência Política pela UFRGS,
Graduada em Direito e em História pela UFRGS, Graduanda em Museologia pela UFRGS.
2. Valores do Patrimônio Cultural
2.1. Histórico
De acordo com Françoise Choay, foi em torno de 1430 que ocorreu um “despertar do
olhar distanciado e esteta, despojado das paixões medievais, que, pousado sobre edifícios
antigos, metamorfoseia-os em objetos de reflexão e de contemplação” (CHOAY, 2006, p.
44). Teria surgido, então, um novo objeto, reduzido às antiguidades, e para um público
limitado a eruditos, nobres e artistas: o monumento histórico na sua conformação inicial 4.
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Adotamos aqui os conceitos de conservação e preservação da Carta de Burra. Conservação diz respeito a todos
os processos para cuidar de um lugar de modo a manter seu significado cultural. Preservação significa manter
um lugar em seu estado atual e retardar sua deterioração. A referida Carta considera que “o termo significação
cultural designará o valor estético, histórico, científico ou social de um bem para as gerações passadas, presentes
ou futuras” (CARTA de Burra, 1991). Para a discussão a respeito do conceito de significância cultural ver:
TAINER, J., LUCAS, J. Epistemology of significance concept. American Antiquity, Cambridge, v. 48, nº 4,
p. 707-719, 1983.
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Recordemos que Riegl teoriza sobre um tipo específico de patrimônio, os monumentos históricos, ou seja,
patrimônio edificado, mas, do nosso ponto de vista, é possível atribuir os mesmos valores a patrimônio
museológico. Não estenderemos nossa discussão à possibilidade da utilização de tipologias de valores ao
patrimônio imaterial.
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Alois Riegl faz uma diferenciação entre monumentos intencionais e monumentos não intencionais (históricos e
artísticos). Monumento intencional é “uma obra de mão humana, construída com o fito determinado de
conservar sempre presentes e vivos na consciência das gerações seguintes feitos ou destinos humanos
particulares” (RIEGL, 2013, p. 9). Já os monumentos não intencionais são justamente os que começam a se
afirmar no século XV. Eles não têm seu valor atribuído pela sua destinação, mas pela subjetividade humana.
Importante lembrar que nesse contexto revolucionário houve uma divisão do
patrimônio em duas categorias, móveis e imóveis, em função do tratamento diverso que
deveriam receber. Os bens móveis foram destinados a um depósito, o museu, que tinha por
função instruir a nação (CHOAY, 2006, p. 101). Já os bens imóveis produziam problemas
mais complexos, como, por exemplo, lhes dar novas destinações (CHOAY, 2006, p. 101).
Isso é importante, pois, em geral, se utilizam elencos de valores para justificar a conservação
de bens imóveis. Do nosso ponto de vista, eles podem ser utilizados para qualquer patrimônio
material, arquitetônico ou museológico 5.
O valor de memória intencional “tem, em geral, desde o início, quer dizer, desde a
edificação do monumento com um fim específico, de fazer que, em certa medida, um
momento nunca se torne passado, tem de mantê-lo sempre presente e vivo na consciência dos
vindouros” (RIEGL, 2013, p. 31). Assim, entendemos que o valor de memória intencional é
um valor histórico aplicado para monumentos intencionais, o que faz essa categoria
despicienda. Segundo Riegl, esse terceiro tipo de valores de memória aproxima-se dos
valores de atualidade ou de contemporaneidade.
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Utilizamos aqui a tradução do francês da obra de Riegl de Claudia dos Reis e Cunha, pois a tradução da
Edições 70 está muito obscura.
Percebemos que Riegl viu, com muita clareza, algumas questões que, em sua época,
ainda estavam recém surgindo. Percebeu que o tratamento dos monumentos, em uma
sociedade de massas, não dependeria somente da opinião de especialistas e eruditos. E que
valores como de antiguidade, de uso e de novidade, relacionados às massas, iriam crescer e
dominar os debates no século XX.
Uma das melhores e mais completas, que é a adotada pelo Getty Conservation
Institute. Randon Mason, em texto fundamental, expõe a tipologia e destaca a contingência
dos valores, ou seja, o fato de serem socialmente construídos (MASON, 2002, p. 8). Por isso,
caracteriza seu elenco como provisória. Segundo o autor, o que modestamente corresponde à
nossa experiência prática, os valores na conservação do patrimônio são tratados de duas
maneiras: ou um tipo de valor predomina e apaga a consideração de outros; ou os valores são
tratados como uma caixa preta, com todos os aspectos do valor patrimonial reduzidos ao
“significado”. Em minha atividade no Ministério Público do RS, em geral, o pedido de
parecer sobre bens patrimoniais vem em forma de pergunta: o bem tem significado cultural?
Assim, é possível acionar a caixa preta, respondendo de forma afirmativa ou negativa de
forma a reunir “todos os valores em uma declaração agregada de significado, [de modo que]
os diferentes tipos de valor patrimonial são mistificados ou tornados secundários e, portanto,
negligenciados” (MASON, 2002, p. 8).
1. valores socioculturais: Compreende valor histórico, valor social/simbólico, valor político, valores
relacionados ao artesanato ou ao trabalho, valor social, valor espiritual/religioso, valor estético.
2. valores econômicos: Compreende valor de uso, valor de não uso, valor de existência, valor de
opção, valor de legado.
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Além de Riegl, os autores consultados são: CURTIS, Júlio Nicolau de. Patrimônio ambiental urbano de
Porto Alegre. In: CICLO DE PALESTRAS SOBRE PATRIMÔNIO CULTURAL, 1, 1979,
Porto Alegre. Conferências realizadas no 1º Ciclo de Palestras sobre patrimônio cultural. Porto Alegre:
Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1979, p. 52-5; MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. O patrimônio
cultural entre o público e o privado. In: CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.). O direito à memória:
patrimônio histórico e cidadania/DPH. São Paulo: DPH, 1992, p. 193-194; MARCHESAN, Ana Maria Moreira.
A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007.
O trabalho do Conselho Nacional do Ministério Público aponta para a dimensão
jurídica da valoração do patrimônio cultural. Quando ocorre um dano ao patrimônio cultural
não passível de restauração ou compensação, é necessário estabelecer uma indenização.
Assim, o elenco de valores instrumentaliza metodologias para fazer essa quantificação.
Embora o estudo se dirija ao patrimônio material, os exemplos são todos referentes a
patrimônio edificado.
Na área da Museologia, há o pioneiro trabalho de Antonio Carlos dos Santos Oliveira
estabelecendo um modelo para valoração de objetos museológicos. A partir do inventário e
da ficha catalográfica, o autor associa valores objetivos e subjetivos, permitindo determinar a
significância do objeto para o museu, “possibilitando ao museólogo gerenciar o acervo de
uma forma precisa e construir políticas de preservação” (OLIVEIRA, 2020, p. 7).
O trabalho de Oliveira é bastante minucioso e dirigido ao patrimônio museológico.
Mas é possível aproximar os dois projetos de quantificação da valoração. Verificamos como,
na área de patrimônio, o diálogo entre autores e temas é precário.
O repertório patrimonial que se encontra dentro do triângulo deve ser ativado para se
constituir em patrimônio. E o que significa ativar esse repertório? Significa escolher
determinados referentes e expô-los de uma ou outra forma. Lógico que isso equivale a
articular um discurso que será endossado pela sacralidade dos referentes. Esse discurso
dependerá dos referentes escolhidos, dos significados desses referentes, da importância
relativa que lhes outorguem, de sua relação e do contexto. Laurajane Smith fala em “discurso
autorizado do patrimônio” (SMITH, 2006, p. 29) 10. Assim, nenhuma ativação patrimonial é
neutra ou inocente, sejam conscientes ou não os gestores do patrimônio. (PRATS, 1997, p.
32). “No plano da realidade social, não ativa quem quer, mas quem pode”. Trata-se de uma
escolha política que, na maior parte das vezes, é feita pelos poderes constituídos. Mesmo
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Sánchez-Carretero discute o sentido do termo patrimonialização e a polêmica envolvendo a adoção de
“heritagization”. (SÁNCHEZ-CARRRETERO, 2012, p. 199-200). Para nossa finalidade consideramos
patrimonialização a ativação de um patrimônio cultural, o que compreende um processo e é socialmente
construído.
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Authorized heritage discourse (AHD).
quando outras esferas atuam nesse processo, é preciso o aval do poder, pois “sem poder não
existe patrimônio” (PRATS, 1997, p. 35).
Notícia do dia 2 de setembro de 2022, informa que, em Santa Catarina, foi sancionada
a lei que cria a “Rota Turística do Tiro” com o objetivo de “incentivar a prática de tiro no
Estado e a ampliação e desenvolvimento das atividades nos clubes e em escolas de tiro como
fonte de geração de emprego e renda” (BORGES, 2022). A rota passa por 29 cidades. Há
uma justificativa no sentido que a prática de tiro é uma herança trazida pelos colonizadores
europeus que deve ser cultivada (BORGES, 2002). Essa discutível patrimonialização
relaciona-se à recente situação de flexibilização e incentivo do governo ao uso de
armamentos. Percebemos que dentro do modelo de Prats, o critério invocado é histórico, a
prática do tiro seria uma herança dos colonizadores. Além do valor histórico, se apela para o
valor de uso:
A região da "Rota Turística do Tiro", mesmo sendo algo considerado novo,
demonstra enorme potencial para o desenvolvimento do turismo para as pessoas
portadoras de CAC's 11, trazendo uma nova leva de pessoas para conhecerem o
Estado, promovendo e divulgando os Clubes e Escolas de Tiros de Santa Catarina e,
consequentemente contribuindo para potencializar o desenvolvimento
socioeconômico dos municípios envolvidos e do Estado (SARGENTO Lima, 2021).
Referências Bibliográficas
11
Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores.
BRASIL. Extrato de acordo de cooperação técnica nº1/2014, de 14 de março de 2014.
Diário Oficial da União. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Brasília,
DF, 14 de março de 2014. Disponível em
https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?
jornal=3&pagina=2&data=14/03/2014. Acesso em 10 de setembro de 2022.
CUNHA, Claudia dos Reis e Cunha. Alois Riegl e o Culto Moderno dos Monumentos.
Vitruvius, ano 5, junho de 2006. Disponível em:
https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/05.054/3138. Acesso em 25 de agosto de
2022.
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos e outros ensaios estéticos. Lisboa:
Edições 70, 2013.
SÁNCHEZ-CARRRETERO, Cristina. Hacia a una antropología del conflito aplicada ao
patrimonio. In: SANTAMARINA, Beatriz (org.). Geopolíticas patrimoniais: de cultura,
naturalezas e inmaterialidades. Editorial Germania: Valencia, 2012. Disponível em:
https://digital.csic.es/handle/10261/98651?mode=full. Acesso em 8 de setembro de 2022.
SMITH, Laurajane. Uses of Heritage. New York: Routlege, 2006. Disponível em:
https://rbb85.files.wordpress.com/2015/11/laurajane-smith-uses-of-heritage.pdf. Acesso em 8
de setembro de 2022.
SILVA, Roger. Pedra Fundamental do Parque da Orla é lançada: veja como vai ficar. Zero
Hora, Porto Alegre, 5 de julho de 2022. Disponível em:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2022/07/pedra-fundamental-do-parque-
da-orla-e-lancada-veja-como-vai-ficar-cl58piogg00ba01674h9ctg1o.html. Acesso em 10 de
setembro de 2022.