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Michael Reeves
a
1 edição, 2016
— Mark Dever
Washington, D.C.
Agosto de 2009
Prólogo: Aqui permaneço
Os clarins retumbaram quando a carruagem passou pelos portões da cidade.
Milhares se enfileiravam nas ruas para vislumbrar seu herói, e muitos mais
brandiam retratos dele de janelas e telhados. Era a tarde de quarta-feira, 16 de
abril de 1521, e Martinho Lutero adentrava a cidade de Worms.
Parecia uma entrada triunfal. No entanto, Lutero sabia aonde entradas
triunfais poderiam levar. A realidade era que ele estava chegando para ser
julgado e, como Jesus, aguardava a morte. Ao ensinar que o pecador, confiando
só em Cristo, poderia — a despeito de seus pecados — ter plena confiança
diante de Deus, ele trouxera sobre si a fúria da igreja. Seus livros já haviam sido
lançados em fogueiras, e muitas pessoas esperavam que Lutero se unisse aos
escritos em poucos dias. Ele, contudo, estava determinado a defender sua
doutrina: “Cristo vive”, ele disse, “e nós entraremos em Worms apesar de todas
as portas do inferno”.
No dia seguinte, o arauto imperial foi ao alojamento de Lutero para
escoltá-lo até o julgamento. As multidões eram tão grandes que ele foi forçado a
conduzir Lutero com discrição por alguns becos até o palácio do bispo. Ainda
assim, eles não passaram despercebidos, com muitas pessoas subindo em
telhados na avidez de observar. Às quatro da tarde, Lutero entrou no salão; pela
primeira vez, o filho de um mineiro da Saxônia, vestido em seu humilde hábito
de monge, postou-se diante de Carlos V, o sacro imperador romano, senhor da
Espanha, Áustria, Borgonha, do Sul e Norte da Itália, dos Países Baixos, e “vice-
rei de Deus na terra”. Ao ver o monge, o imperador, ferrenho defensor da igreja,
balbuciou: “Ele não vai me transformar em herege”.
Lutero não deveria falar até segunda ordem. Então, o porta-voz do
imperador, apontando para a pilha de livros de Lutero em uma mesa em frente a
ele, lhe disse que ele havia sido convocado para confirmar se reconhecia os
livros publicados em seu nome e, caso os reconhecesse, verificar se ele os
renunciaria. Com uma voz suave, que o povo se esforçou para ouvir, Lutero
admitiu serem dele os livros. Então, para a comoção de todos, pediu mais tempo
para decidir se precisava retratar-se. Ele parecia hesitar. Na verdade, Lutero
esperava lidar com pontos específicos de seu ensino; ele não esperava que lhe
pedissem para rejeitar todos os seus escritos. Era necessário refletir mais quanto
a isso. Com má vontade, deram-lhe um dia para pensar e, depois disso, Lutero
foi advertido de que deveria esperar o pior se não se arrependesse.
No dia seguinte, Lutero foi readmitido na presença do imperador às seis
da tarde. O salão estava lotado, e tochas melancólicas foram acesas, tornando o
local bastante quente. Como resultado, Lutero transpirava muito. Ao observá-lo,
todos esperavam um discurso de desculpas abjetas, com a súplica de perdão por
sua hedionda heresia. Todavia, no momento em que ele abriu a boca, tornou-se
claro que isso não ocorreria. Desta vez, ele falou em voz alta e clara. Anunciou
que não se retrataria dos ataques contra as falsas doutrinas, pois isso concederia
ainda mais poder aos destruidores do cristianismo. “Bom Deus, que tipo de
ferramenta da maldade e tirania então eu seria!”. A despeito do furioso grito de
“Não!” do imperador, Lutero prosseguiu, exigindo que, se ele estivesse errado,
fosse refutado com a Escritura e, em seguida — prometeu — Lutero seria o
primeiro a queimar seus livros.
Pela última vez, perguntaram se ele retrataria de seus erros e, então, ele
concluiu:
“Estou preso pelas Escrituras que citei e minha consciência está cativa à Palavra de Deus.
Não posso e nem vou retratar-me de nada, pois não é seguro, nem correto contrariar a
consciência. Não há nada mais que eu possa fazer. Aqui permaneço. Que Deus me ajude.
Amém”.
Isso não consistiu apenas em um discurso. Para Lutero, a Palavra de Deus o
havia libertado e salvado. Ele não contava com outra segurança. Mas, com ela,
dispunha de coragem para permanecer firme quando o porta-voz do imperador
respondeu fulminando-o pela arrogância de crer ser o único conhecedor da
verdade. De fato, naquele momento parecia que Lutero se levantava contra o
mundo todo.
Dois soldados acompanharam Lutero pelo salão em meio a gritos de
“Mande-o para a fogueira!”. Uma multidão o seguiu até seu alojamento. Ao
chegar lá, ele ergueu as mãos, sorriu e gritou: “Eu sobrevivi! Eu sobrevivi!”;
então, voltando-se para um amigo, afirmou: mesmo que tivesse mil cabeças,
preferia vê-las todas decepadas a abandonar o evangelho.
De volta ao salão, o imperador declarou que o monge oposto a toda a
cristandade tinha de estar errado e, portanto, ele determinara “apostar nessa
causa meus reinos e feudos, meus amigos, meu corpo e sangue, minha vida e
alma”. Os limites foram traçados. A Reforma havia começado. E, naquela tarde,
Lutero fez mais do que escrever uma página da história; ele lançou um desafio
para cada geração.
1. A religião medieval: o contexto da Reforma
Quando o século XV acabou e o século XVI teve início, o velho mundo parecia
desaparecer às mãos do novo: o poderoso Império Bizantino, o remanescente da
Roma imperial, entrou em colapso. Colombo descobriu o novo mundo nas
Américas, Copérnico virou o universo de cabeça para baixo com o
heliocentrismo, e Lutero deu nova forma ao cristianismo (em sentido literal).
Todos os antigos fundamentos, outrora de aparência tão sólida e indubitável
agora se desfaziam nessa tempestade de mudanças, abrindo caminho para a nova
era em que as coisas seriam muito diferentes.
Hoje, olhando para trás, parece quase impossível ter a mínima noção de
como deve ter sido essa época. “Medieval” — a própria palavra invoca imagens
góticas e sombrias de monges cantando — enlouquecidos pelo claustro — e
camponeses supersticiosos em revolta. Tudo muito estranho. Em especial aos
olhos da modernidade: somos igualitaristas democráticos da cabeça aos pés, eles
viam tudo em sentido hierárquico; nossa vida gira em torno de alimentar,
amamentar e fartar o ego, eles buscavam abolir e rebaixar o ego (ou, pelo menos,
admiravam quem assim procedia). A lista de diferenças poderia prosseguir.
Ainda assim, esse foi o cenário da Reforma, o contexto em que as pessoas eram
tão apaixonadas pela teologia. A Reforma foi uma revolução, e revoluções não
lutam só a favor de algo, elas também lutam contra alguma coisa — nesse caso,
o velho mundo do catolicismo romano medieval. Assim, como era ser um cristão
nos séculos anteriores à Reforma?
É claro que nem todos estavam preparados para aceitar a versão oficial
sem questionamento. Para citar apenas um exemplo, Roberto
Grosseteste, que se tornou bispo de Lincoln, Inglaterra, em 1235,
acreditava que o clero deveria pregar a Bíblia em primeiro lugar, não
oferecer a missa. Ele mesmo, de forma bastante incomum, pregava em
inglês, não em latim, para ser compreendido pelo povo. E entrou em
conflito com o papa várias vezes (quando, por exemplo, um sacerdote
que não falava inglês, foi nomeado para sua diocese), chegando ao ponto
de chamar o papa de “anticristo que seria condenado por seu pecado”.
Poucos poderiam escapar usando essa linguagem, mas Grosseteste era
muito famoso, não apenas pela santidade pessoal, mas como acadêmico,
cientista e linguista, que o papa se viu incapaz de silenciá-lo.
Dinâmico ou doente?
Se você já teve o azar de se encontrar em uma sala repleta de historiadores da
Reforma, o que parece causar grande comoção é perguntar em voz alta: “O
cristianismo à véspera da Reforma era vigoroso ou corrupto?”. Essa pergunta
garante o início de uma acalorada discussão. Há alguns anos, isso não provocaria
nenhum murmúrio; todos pareceriam concordar que, antes da Reforma, os povos
europeus gemiam por mudanças, odiando o jugo opressor da Igreja Romana
corrupta. Agora, nem todos têm a mesma opinião.
Pesquisas históricas, em especial a partir da década de 1980, têm
mostrado além de qualquer dúvida que, na geração anterior à Reforma, a religião
se tornara mais popular que nunca. Com certeza, as pessoas tinham suas queixas,
mas a grande maioria participava dela com gosto. Havia mais missas pagas a
favor dos mortos, mais igrejas construídas, mais estátuas de santos erigidas e
mais peregrinações que nunca. Livros de devoção e espiritualidade — tão
confusos quanto os de hoje — eram muito populares entre quem podia ler.
O zelo religioso do povo sugeria a ânsia por reforma. Por todo o século
XIV, ordens monásticas se reformavam, e mesmo o papado passou por algumas
tentativas fragmentadas de reforma. Todos concordavam com a existência de
alguns galhos mortos e umas maçãs podres na árvore da igreja. Todos riram
quando o poeta Dante colocou os papas Nicolau III e Bonifácio VIII no oitavo
círculo do inferno em sua Divina comédia. Sem dúvida, papas velhos e
sacerdotes corruptos bebiam muito antes da missa. Mas, o próprio fato de as
pessoas poderem rir mostra quão sólida e segura a igreja parecia — ela poderia
aguentar. E o fato de quererem cortar os galhos mortos só mostrava o quanto
amavam a árvore. Esses desejos de reforma não supunham a existência de uma
podridão fatal no tronco da árvore. Afinal, desejar papas melhores é algo muito
diferente de não os querer; idealizar sacerdotes e missas melhores é muito
distinto de preferir missas e sacerdócio separado. Dante também mostrou isso:
ele não só puniu os papas maus em seu inferno, como também dispensou a
vingança divina sobre os opositores dos papas, pois os papas, bons ou maus,
eram vigários de Cristo. Às vésperas da Reforma, muitos cristãos agiam assim:
devotados e dedicados ao aperfeiçoamento, não à derrubada de sua religião. Não
se tratava de uma sociedade à procura de mudanças radicais, apenas da limpeza
de abusos reconhecidos.
E então? Vigoroso ou corrupto? É uma falsa antítese. Sem dúvida, o
cristianismo anterior à Reforma era popular e animado, mas isso não fazia dele
saudável ou bíblico. Na verdade, se todas as pessoas estivessem famintas do tipo
de mudança trazida pela Reforma, isso sugeriria que a Reforma teria consistido
em um pouco mais que um movimento social natural, uma faxina moral. Isso os
reformadores sempre negaram. Não, esse movimento não representou uma
reforma moral popular; ele compreendeu um desafio ao próprio coração do
cristianismo. Os reformadores afirmaram que a Palavra de Deus estava
irrompendo para mudar o mundo; isso foi inesperado e algo contra a corrente;
não era obra humana, mas uma granada divina.
Presságios do apocalipse
A Reforma pode ter sido inesperada, a maioria das pessoas se contentaria com
uma reforma em escala menor, mas, ainda assim, no ensolarado céu medieval,
negras nuvens começavam a se formar. No início, elas não passavam do tamanho
da mão de um homem. Ninguém sabia, mas elas representavam sinais de que os
céus estavam prestes a cair sobre o catolicismo romano medieval.
A primeira dela formou-se logo sobre Roma. Em 1305, o arcebispo de
Bordeaux foi eleito papa. Entretanto, por vários motivos, ele não estava
interessado em mudar-se para Roma, como se esperava dos papas. Em vez disso,
ele fez de Avignon, no sul da França, o novo quartel-general papal. O rei da
França ficou muito satisfeito: seria muito mais fácil de lidar com um papa
francês em terreno francês. Assim, ninguém ficou muito surpreso quando o papa
eleito a seguir também era francês e escolheu permanecer em Avignon. E as
coisas continuaram desse jeito com os próximos papas. Fora da França, as
pessoas estavam menos empolgadas. Elas chamavam esse episódio de “cativeiro
babilônico da igreja”. O papa deveria ser o bispo de Roma, a igreja principal;
mas, esses homens em Avignon eram de fato bispos de Roma? Desse modo, a
cristandade começou a perder a confiança no papado.
Depois de setenta anos, o povo de Roma estava cansado; afinal, a corte
papal era a maior fonte de dignidade (e lucro) da cidade. Assim, em 1378,
quando o Colégio de Cardeais se reuniu em Roma para eleger o papa seguinte,
uma multidão os cercou, exigindo a eleição de um papa apropriado, italiano e, de
preferência, romano. É compreensível que os cardeais aterrorizados tenham
cedido às exigências da multidão. Contudo, eles logo começariam a se
arrepender da decisão quando perceberam quão dominador e agressivo era o
novo papa. Muitos começaram a cogitar a invalidade da eleição ocorrida sob
ameaças. Portanto, um novo papa foi eleito, um francês. Infelizmente, o primeiro
indicado, ainda em perfeita saúde, recusou-se a renunciar; assim, agora havia
dois papas, e, como era esperado, eles excomungaram um ao outro. Na prática,
com dois santos padres, isso implicava na existência de duas igrejas mães.
Toda a Europa dividia sua lealdade. A França, claro, apoiava o papa
francês; então, como reflexo, a Inglaterra apoiou o outro, e assim por diante. A
situação ficou insustentável, e um concílio foi convocado para resolver o
problema. A solução consistiu na destituição dos papas existentes e na eleição de
um novo. Entretanto, nenhum dos papas destituídos cederia com tanta facilidade.
Assim, havia agora três deles. O episódio chamado “Grande Cisma” só chegou
ao fim com um concílio mais robusto, o Concílio de Constança, reunido entre
1414 e 1418. Esse concílio conseguiu fazer dois dos papas concordarem em
renunciar, e o terceiro papa em Avignon, que se recusou, foi declarado deposto.
No lugar dele, um novo papa foi eleito e, com exceção de uns poucos apoiadores
remanescentes do papa de Avignon, todos aceitaram o novo. O cisma terminou,
mas ele criou uma crise de autoridade: onde estava a autoridade suprema da
igreja? Em Avignon ou Roma? E, como o concílio estabeleceu qual papa era o
papa, o concílio detinha autoridade superior à do papa? A crise de autoridade
duraria muito tempo após o fim do cisma, pois, embora o Concílio de Constança
tivesse declarado que um concílio detinha autoridade superior à do papa, os
papas lutaram com unhas e dentes contra a ideia. Com tantos concorrentes
competindo, como o cristão comum poderia saber a vontade de Deus?
Enquanto isso, com papas por todo canto, a cidade de Roma começara a
entrar em decadência. Era mais do que vergonhoso, pois, se Roma fosse a
gloriosa mãe em quem toda a cristandade depositava a esperança, ela não
poderia ser uma ruína. De fato, para recuperar seu prestígio, ela precisava tornar-
se mais gloriosa que nunca. Toda a Europa deveria se encantar. Assim, no século
seguinte, os papas renascentistas atraíram muitos astros para sua órbita: Fra
Angelico, Benozzo Gozzoli e Bernardino di Betti (Pinturicchio) estavam todos
empregados; Rafael Sanzio recebeu a missão de decorar os apartamentos
pessoais do papa no Vaticano; Michelangelo Buonarroti deveria adornar a capela
Sistina; Donato Bramante reconstruir a basílica de São Pedro. Pode ter sido
glorioso, mas também era terrivelmente caro. Era necessário obter recursos onde
fosse possível, e as pessoas começaram a reclamar de papas que pareciam mais
interessados no dinheiro delas que em sua alma, e pela arte que parecia mais
pagã que cristã. A reconstrução da basílica de São Pedro, em especial, custaria
mais caro a Roma que o pior pesadelo do papa, pois ela despertaria a ira de
Martinho Lutero.
Também surgiu um ar de corrupção em torno do local que, junto com a
extravagância, fazia de Roma a Las Vegas de sua época — em especial, sob os
Bórgias. Em 1492, Rodrigo Bórgia deu o passo simples, porém efetivo, de
comprar os votos necessários para ser eleito papa, Alexandre VI. Foi o começo
apropriado do papado capaz de fazer um cardeal ruborizar-se. Ele gerou vários
filhos com suas amantes, e havia o rumor de que tivera mais um com Lucrécia,
sua filha festeira, famigerada pelo anel usado para envenenar. Além disso,
Alexandre VI tornou-se conhecido pelo hábito de organizar orgias no Vaticano e
envenenar seus cardeais. Isso não abriu um bom precedente para o ofício de
“santo padre”: seu sucessor, o amante da guerra Júlio II, também era “papa” em
mais de um sentido, e seu sucessor, Leão X, era agnóstico (ordenado aos sete
anos, ninguém pensou em perguntar sobre sua crença). Evidentemente, o papado
teve pontos baixos antes, mas, em meio à crise de autoridade eclesiástica, era
uma péssima hora para perder a respeitabilidade.
Indulgências
No catolicismo romano medieval, quando um pecador queria confessar a
um sacerdote, este exigia a realização de muitos atos de penitência. Todo
pecado sem penitência nesta vida sofreria consequências no purgatório.
A boa notícia consistia na vida de santos tão bons que eles não só
obtiveram méritos bastantes para entrar direto no céu, evitando o
purgatório, como também obtiveram mais mérito que o necessário para
entrar no céu. Esse excesso de mérito da parte deles era guardado, por
assim dizer, no tesouro da igreja, do qual apenas o papa detinha as
chaves. O papa poderia, assim, conceder uma dádiva de mérito
(indulgência) para qualquer alma que considerasse digna, acelerando sua
jornada pelo purgatório, ou até mesmo pulando todo o purgatório (com a
indulgência “plena” ou “plenária”). No início, as indulgências plenárias
foram oferecidas aos participantes da Primeira Cruzada, mas logo
doações em dinheiro foram consideradas atos penitenciais suficientes
para merecer a indulgência. Tornava-se cada vez mais claro na mente das
pessoas: um pouco de dinheiro poderia assegurar bênção espiritual.
Houve mais do que repulsa, contudo. Em 1520, o papa emitiu uma bula
(um decreto autenticado pelo selo ou bulla do próprio papa) ordenando que
Lutero se retratasse em 60 dias ou encarasse a excomunhão e o banimento (sob o
qual ninguém seria permitido abrigá-lo ou sustentá-lo; ao contrário, as pessoas
eram obrigadas a entregá-lo). Isso confirmou o raciocínio de Lutero: ninguém
tentou refutá-lo com a Escritura, uma prova para ele de que Roma não estava
interessada na Palavra de Deus, só em silenciar quaisquer ameaças à sua
supremacia. Colocando-se acima e contra a Palavra de Deus, Roma só poderia
ser um instrumento de Satanás. Sua intensa resposta foi um tratado intitulado
Contra a execrável bula do anticristo. Assim, quando o prazo de 60 dias
terminou, o povo de Wittenberg foi convidado ao fosso de carniça do lado de
fora de um dos portões da cidade. Lutero apareceu e queimou sua cópia da bula
com as palavras: “Pelo fato de vocês confundirem a verdade de Deus, o Senhor
hoje confunde vocês. Que sejam lançados ao fogo!”. Com a bula foram
queimadas obras de teologia e livros da lei canônica, destruindo em sentido
simbólico todo o sistema eclesiástico da igreja romana.
Então, nada aconteceu. Tecnicamente, Lutero agora estava excomungado
e sob banimento, mas a autoridade de Roma já estava sendo desrespeitada. Era
uma situação que o sacro imperador romano não poderia tolerar. Lutero foi
convocado a apresentar-se diante dele no próximo concílio imperial em Worms.
A partir desse momento, Lutero passou a enfrentar a ira do imperador e do papa,
a possibilidade de ser queimado e a perspectiva do inferno se, depois de tudo
isso, ainda estivesse errado. Esse é o testemunho do poder transformador de sua
descoberta do evangelho: o monge outrora atemorizado na tempestade agora
desafiaria todos eles com a impassível afirmação “Aqui permaneço!”.
Raptado
Depois da audiência, não demorou muito para o imperador declarar Lutero “um
cismático obstinado e herege manifesto” que não deveria ser recebido e lido por
ninguém, sob a pena do castigo mais terrível. Lutero, entretanto, não ficou
esperando a condenação em Worms. Ele já havia embarcado em uma carruagem
para Wittenberg.
Todavia, no caminho, enquanto a carruagem adentrava um desfiladeiro
estreito e arborizado, um grupo de cavaleiros cercou o grupo de Lutero,
apontando suas flechas. Em meio a praguejamentos, Lutero foi retirado e levado
para longe. Todos sabiam o que teria acontecido: Lutero fora capturado para ser
executado de forma sumária e silenciosa. “Oh, Deus”, escreveu o artista
Albrecht Dürer, “se Lutero está morto, quem agora nos ensinará o santo
evangelho com tanta clareza?”. Era o que os sequestradores queriam que as
pessoas pensassem. Na verdade, eles estavam a serviço do eleitor Frederico, o
Sábio, que criou um plano para manter Lutero em custódia segura sem correr o
risco de ser visto abrigando um fora da lei. E eles não levaram Lutero para uma
vala secreta; depois de ziguezaguear pela área para despistar qualquer
perseguidor, eles chegaram, tarde da noite, ao castelo de Wartburg, a fortaleza de
Frederico na Saxônia Eleitoral.
Esse foi o lar secreto de Lutero pelos dez meses seguintes — e o cenário
de seus feitos mais extraordinários. Ele deixou a barba e o cabelo crescer,
escondendo seu visual de monge, e logo estava irreconhecível em roupas de
cavaleiro. O fora da lei Martinho Lutero desaparecera; esse personagem era
conhecido como “senhor Jorge”. Parecia um nome apropriado para um matador
de dragões. Apesar de toda a empolgação e o triunfo que ele pode ter sentido,
Lutero considerou esse período no castelo muito difícil. Ele estava solitário e
doente. Ainda assim, trabalhou em um frenesi que superou até os esforços do
ano anterior. Incapaz de pregar para uma congregação, ele escreveu um livro de
sermões. E, entre outras coisas, em menos de onze semanas, conseguiu traduzir o
Novo Testamento Grego de Erasmo para o alemão. Foi necessário lapidar um
pouco antes que a obra estivesse pronta (e algumas ilustrações foram
adicionadas, um panorama de Roma similar à descrição de Apocalipse a respeito
da destruição de Babilônia, por exemplo), mas, supreendentemente, nesse tempo
Lutero produzira uma obra-prima. A linguagem era tão enérgica, tão envolvente,
tão das ruas, que transformou a própria maneira de as pessoas falarem alemão.
Lutero estava se tornando o pai da língua alemã moderna. E o mais importante,
com a publicação da obra em setembro de 1522, Lutero realizou o sonho de que
as pessoas “pudessem desfrutar e provar a clara e pura Palavra de Deus e
agarrar-se a ela”.
Por meio de cartas, ele também buscava encorajar a reforma em
Wittenberg. Uma característica de parte do aconselhamento pastoral envolvia
chocar o leitor para promover a apreciação mais clara do evangelho. “Seja um
pecador e peque com ousadia”, ele escreveu a um jovem amigo que tentava fazer
da própria piedade a base da confiança diante de Deus,
mas creia e alegre-se em Cristo com ainda mais ousadia, pois ele é vitorioso sobre o pecado, a morte
e o mundo. Enquanto estivermos aqui [neste mundo] havemos de pecar. A justiça não habita nesta
vida, mas, como Pedro diz, nós aguardamos novos céus e uma nova terra, em que habita a justiça.
Basta apenas que, pelas riquezas da glória de Deus, cheguemos a conhecer o Cordeiro que tira o
pecado do mundo. Nenhum pecado nos separará do Cordeiro, mesmo que cometamos fornicação e
assassinato mil vezes ao dia. Você acha que o preço pago pela redenção de nossos pecados por tão
grande Cordeiro é tão pequeno?
Além disso, em Wartburg Lutero sofreu tentações e ataques que jamais o
deixariam. “Minha tentação é esta: achar que eu não conto com um Deus
gracioso.” Pode parecer uma tentação estranha, depois de todos os seus
contratempos, mas ele a enxergava como um ataque do diabo, e isso o forçava a
ser um médico especialista em dúvida. Não que isso fosse sempre óbvio. Às
vezes, ele rugia injúrias debochadas ao tentador: “Mas, se isso não for o
suficiente para você, diabo, eu também defequei e urinei; abra sua boca e
abocanhe um pedaço enorme”. Em outras ocasiões, ele defecaria no inimigo ou
lançaria seu tinteiro nele, deixando, para os peregrinos de Lutero admirarem,
uma mancha de tinta (regularmente retocada, evidentemente, de modo a
aumentar o senso de devoção — as relíquias voltaram com muita facilidade).
Muitos consideram esse lado de Lutero bastante perturbador. Ele estava
desequilibrado? Sem dúvida, Lutero não era um herói cristão limpo e
engomadinho; ele era bastante terreno. Todavia, seria errado reduzir essas
batalhas com o diabo como crises de um lunático de boca suja. Seus ataques não
se encaixam em diagnósticos médicos ou padrões de depressão normal. E suas
reações tinham um motivo: Lutero considerava a dúvida inspirada por Satanás
como algo a ser excretado, rejeitado, menosprezado e ridicularizado com risos.
Era algo sutil e tentador demais para ser combatido de frente.
Em outros momentos, ele enfrentava suas dúvidas escrevendo um
versículo bíblico relevante na parede, em um móvel ou em qualquer coisa por
perto. Mais uma vez, isso é muito revelador. Ele sabia que dentro de si mesmo
havia apenas pecado e dúvida. Toda a sua esperança residia fora dele, na Palavra
de Deus. Ali, sua segurança diante de Deus não era afetada por como ele se
sentia ou como ele agiu. E, assim, ao enfrentar a dúvida, ele não buscaria
conforto dentro de si (isso seria incredulidade e pecado, a origem de toda a
ansiedade, não a cura!); pelo contrário, ele exibiria diante de seus olhos a
Palavra externa e imutável.
Katie
Não demorou muito até a maioria dos monges deixar o monastério de Lutero em
Wittenberg. E, para os que ficaram, a vida já não girava em torno de serviços
incontáveis; agora, o tempo livre deles era gasto em conversas sobre a nova
teologia regadas a canecas de cerveja. Logo, Lutero era o único que restara e,
depois disso, o eleitor decidiu lhe dar todo o monastério para ser sua enorme
casa.
Na verdade, em todos os lugares, monastérios e conventos pareciam estar
se esvaziando, com monges e freiras ouvindo sobre a descoberta de Lutero e
abandonando o catolicismo. Em 1523, um grupo de freiras de um estado alemão
diferente (onde o regente executava freiras fugitivas) escreveu a Lutero
perguntando o que deveriam fazer. Ele aconselhou a fuga e até a organizou.
Desfrutando do simbolismo, ele enviou um vendedor de arenque ao convento na
manhã de Páscoa, com a carruagem cheia de barris de arenque. Nove freiras
entraram nos barris e foram contrabandeadas para uma nova vida em Wittenberg.
As ex-freiras, evidentemente, não contavam com nenhum tipo de seguro
social e, assim, Lutero sentiu que era sua obrigação fazer com que elas se
casassem. Ele conseguiu maridos para oito delas, mas a nona, Katharina von
Bora, foi uma dificuldade. Por um período, a última coisa na cabeça de Lutero
era casamento. Ele presumiu que não demoraria muito para ser queimado como
herege, além do fato de enfrentar repetidos ataques contra a sua vida. Assim,
Lutero sentia não ser justo que ele tomasse uma esposa. Entretanto, apesar de
toda a sua impassibilidade diante do papa e do imperador, depois de dois anos, a
importunação de seus amigos e a resoluta nona freira o cansaram. Ele casou-se
com Katharina, 15 anos mais nova, em 1525.
É evidente que Martinho e Katie gostavam da companhia um do outro,
caminhando no jardim, pescando juntos ou comendo com amigos. As cartas do
casal, escritas quando Lutero viajava, eram repletas de piadas e clara afeição. Ela
era determinada o bastante para contrapor o indomável reformador. “Nos
assuntos domésticos, eu acato a Katie. Fora essa exceção, sou guiado pelo
Espírito Santo.” Assim, Lutero recorria a subornos para fazê-la ler mais sua
Bíblia.
O lar que eles construíram no antigo mosteiro era uma casa jovial e
turbulenta que, com o passar dos anos, esteve cheia com três filhos, duas filhas,
um cão de estimação e incontáveis visitantes, parentes e alunos. Lutero tinha
uma pista de boliche construída no jardim para quando ele parasse seus estudos
ou suas orações (ele orava por, pelo menos, três horas ao dia, lendo versículo a
versículo e confiando nas promessas de Deus com vigor, exigindo que ele as
cumprisse). Katie gerenciava uma considerável cervejaria particular, vendendo
parte do produto para ajudar a fechar as contas e usando o resto para lubrificar
todas as discussões teológicas durante as refeições e noite adentro. Isso não a
impediu de às vezes censurar Martinho por beber um pouco a mais nessas
ocasiões, nem de sentir-se contrariada quando os alunos gastavam a hora da
refeição tomando notas em vez de comer. Duas vezes, contudo, a tragédia
atingiu a família: as duas filhas morreram jovens, uma delas, Magdelene, nos
braços de Martinho. Ele foi vencido pelas lágrimas, mas fez o seu melhor para
consolar o restante da família com a esperança do evangelho. “Ela ressuscitará
no último dia”, ele declarou diante do caixão. Isso foi dito com uma confiança
que outrora ele teria considerado um pecado presunçoso.
Lutero e os judeus
Provavelmente, nada afasta mais as pessoas de Lutero do que seu tratado
Von den Juden und ihren Lügen [Dos judeus e suas mentiras]. Difundido
e usado como uma tradicional obra-prima alemã pelos nazistas no
século XX, e exposto em uma caixa de vidro nas Reuniões de
Nuremberg, é o suficiente para muitos desprezarem Lutero como um
antissemita odioso e toda a sua teologia como fatalmente infectada. Sem
dúvida, essa obra possui um terrível conteúdo que seria preferível ter
sido esquecido antes de sua escrita. Entretanto, não só ela foi redigida
muito depois do irromper da Reforma, depois de Lutero mudar de
opinião sobre os judeus (significando que é inteiramente inapropriado
pintar toda a sua teologia com esse tom), como também a caricatura é
uma distorção. Não há racismo envolvido.
Em 1523, ele escreveu Dass Jesus Christus ein geborener Jude sei [Que
Jesus Cristo nasceu judeu], uma crítica aos maus-tratos comuns dos
judeus pelos cristãos. Ele o dedicou a um judeu convertido de quem se
tornara amigo, e a quem Lutero mais tarde sustentou financeiramente (e
cujo filho ele abrigaria) com grande custo pessoal. Contudo, com a
passagem do tempo, ele detectou o que via como uma dureza de coração
nos judeus incrédulos, pois eles se recusavam a reconhecer que suas
próprias Escrituras os dirigiam de forma inegável a Cristo. Por fim,
levado a agir por uma virulenta apologética judaica que atacava o
cristianismo, em 1542, ele escreveu Von den Juden und ihren Lügen. Ali,
ele argumentava primeiro que ser filho de Abraão consistia sempre uma
questão espiritual, não genética; em seguida, ele prosseguiu mostrando a
partir do Antigo Testamento que Jesus deve ser o Cristo prometido; só
então ele passa para suas notórias recomendações. Embora ele
condenasse atos pessoais de vingança, ele argumentava que as então
comuns leis de blasfêmia deveriam ser aplicadas aos judeus, tornando a
religião deles um crime. Assim, as sinagogas e casas de judeus deveriam
ser destruídas como perigosos focos de blasfêmia; e, junto com outros
blasfemadores, os próprios judeus deveriam ser expulsos.
Para a audiência moderna, é difícil não apenas deixar de ler o posterior
antissemitismo racial nesse material tão desagradável, como também
entender que essas eram, na época, medidas normais contra os hereges.
Lutero argumentou que os poderes do Estado deveriam ser aplicados
para preservar o cristianismo. Embora suas recomendações sejam
repulsivas, elas não procederam da falta de cuidado espiritual.
Concluindo a obra, ele escreveu: “Que Cristo, nosso amado Senhor, os
converta com misericórdia e nos preserve firme e imutavelmente no
conhecimento dele, que é a vida eterna. Amém”.
O soldado gentil
Todavia, isso ainda não significava queimar bulas papais e escrever tratados
contra Roma. Enquanto Lutero fazia tudo isso, Zuínglio se uniu à hierarquia
católica romana ao aceitar o cargo de clérigo na Grande Igreja. Seu
temperamento fazia dele alguém muito cauteloso, agindo com covardia às vezes,
e isso significava que a Reforma em Zurique foi menos dramática e explosiva
que em outros lugares. Ligado a isso, havia o fato de Roma depender dos
mercenários suíços e, assim, embora cada vez mais preocupados com as notícias
de Zurique, os papas não sentiam que poderiam incomodar a cidade com a
excomunhão de Zuínglio. Em 1523, antes de perceber que não havia mais
homens de Zurique indo lutar por Roma, o papa sentiu que poderia escrever uma
carta amigável e cheia de elogios a Zuínglio.
Como consequência, alguns radicais em Zurique começaram a considerar
Zuínglio um obstáculo, impedindo o fluir do Espírito derramado na obra da
Reforma. Eles queriam remover essa barreira e acelerar o passo. Entretanto, a
falta de ação em Zurique não deve ser confundida tão facilmente com falta de
reforma. Zuínglio sabia que forçar a mão, embora empolgante, não efetivaria
uma mudança real. Ao contrário, ele cria que o verdadeiro segredo da reforma é
mudar o coração do indivíduo pela aplicação do evangelho. A reforma externa
das igrejas deve fluir da conversão interna se quisermos algo mais que uma
cirurgia plástica. Assim, em vez de uma campanha por mudança, Zuínglio
dedicou-se a pregar a Palavra de Deus. Tendo preparado o povo, ele então
esperaria que eles exigissem a mudança requerida pela Palavra de Deus. Os
resultados não foram rápidos, mas sua duração foi quase singular, além até de
sua morte. Quando as mudanças chegaram a Zurique, elas vieram da profunda
convicção popular de serem ordenadas pela Palavra de Deus e assim
permaneceram.
A clareza e a certeza da Palavra de Deus
Em 1522, Zuínglio escreveu uma de suas maiores obras sobre o poder e
a eficácia da Palavra de Deus. Nela, ele começa com o exame de
Gênesis 1.26, onde enxerga as três pessoas da Trindade em cooperação
para criar a humanidade à sua imagem. Pelo fato de isso ter acontecido,
Zuínglio diz, a humanidade, sendo criada à imagem desse Deus, sempre
almeja em segredo a Palavra divina. Nós nem mesmo estamos cientes
desse desejo, mas ele subjaz a todos os nossos anseios: anelamos a vida
e a luz fornecidas pela Palavra de Deus.
São essas duas características da Palavra de Deus que Zuínglio quer
examinar de fato: ela é uma palavra de poder vivificador e uma palavra
de iluminação. Primeiro, ele diz, a Palavra de Deus possui certeza
(quando Deus fala, acontece; por exemplo, quando ele diz “Haja luz!”).
Segundo, a Palavra de Deus possui clareza. Com isso, ele quer dizer que
ela não apenas é inteligível, mas fornece iluminação. Não precisamos ser
iluminados de antemão para entender a Palavra de Deus, pois não
trazemos nossa luz para a Palavra. Ao contrário, a Palavra é luz e traz
luz às nossas trevas naturais. Essa crença era essencial para o projeto de
reforma de Zuínglio: ele poderia pregar as Escrituras a todos porque as
Escrituras podem ser entendidas por todos. Elas não deveriam ser
exclusividade da elite educada. Mas, ao dizer que a Palavra de Deus
fornece sua própria iluminação, Zuínglio também queria dizer que não
reconhecemos a Bíblia como Palavra de Deus porque alguém nos diz ou
por algum argumento racional, mas porque, quando Deus fala, somos
compelidos a reconhecer sua Palavra pelo que ela é. Sabemos que as
Escrituras são divinas, não quando o papa diz, mas quando as lemos. Se
não o percebemos, a falha está em nós; ele diz:
Considere um bom vinho forte. Para a pessoa saudável seu sabor é excelente. Ele a deixa
feliz, fortalece-a e aquece seu sangue. Mas, se há alguém a sofrer com alguma doença ou
febre, essa pessoa não pode nem prová-lo, quanto mais bebê-lo, e fica admirada pelo fato
de a pessoa saudável conseguir fazê-lo. Isso não se deve a algum defeito no vinho, mas à
doença. Assim também é com a Palavra de Deus. Ela é correta em si mesma e sua
proclamação é sempre para o bem. Se há quem não a pode suportar, entender ou receber,
é porque está doente.
Essa estima à Escritura serviu de motor para a transformação de Zurique.
A Palavra de Deus, Zuínglio dizia, é como um rio poderoso e indomável.
Ela deve ser pregada com confiança completa, pois é o poder eficaz de
Deus parar criar, salvar e mudar o mundo.
As mudanças vieram, mas nem todos gostaram: os católicos genuínos
contestavam a teologia de Zuínglio; os monges temiam ser expulsos de seus
monastérios; também havia os que não queriam mudanças. Logo, rumores
sombrios sobre Zuínglio começaram a ser ouvidos nas ruas: ele era um espião a
serviço do rei da França ou (extraordinariamente) do papa; um libertino (abrindo
a velha ferida); herege; talvez fosse até o anticristo.
Fofocas eram uma coisa, mas ser chamado herege colocava em cheque a
própria essência da Reforma. Zuínglio se esforçou para defender sua teologia e,
cinco anos depois de Martinho Lutero escrever suas 95 teses, Zuínglio escreveu
67. Mas, enquanto Lutero se restringiu a atacar as indulgências e a teologia
medieval corrupta, Zuínglio apresentou um conjunto muito mais abrangente do
pensamento da Reforma. Nas teses, ele argumentava que Cristo, o verdadeiro
cabeça da igreja, governa a igreja por meio de sua Palavra, não do papa. Assim,
a Bíblia, não o papa, é o mestre. Essa foi a punhalada direta no coração das
alegações do papa e de seu poder. Ele também argumentava que a morte de
Cristo na cruz foi um sacrifício completo e não precisava ser repetido na missa.
Isso desafiava o propósito do sacerdócio, pois a incumbência dos padres era
celebrar a missa. Ele atacou a prática de rezar aos santos, negou a existência do
purgatório, e defendeu que só a fé em Cristo, não nossas boas obras, pode salvar.
Essa foi a primeira salva de tiros contra Roma. Mas foi uma salva potente.
Zurique recrutada
Chegou a hora do confronto entre Zuínglio e seus oponentes. Um debate público
foi organizado para o dia 29 de janeiro de 1523, e Zuínglio deveria defender sua
posição ali. Quando o dia chegou, a prefeitura estava lotada, pois ocorreria uma
tensa luta teológica com o futuro de Zurique em jogo. Zuínglio entrou e, quase
de imediato, deixou claro que contava com armas melhores. Ele falou enquanto
mantinha cópias do Novo Testamento em grego, do Antigo Testamento em
hebraico e da Vulgata em latim diante de si. E estava claro que ele os conhecia
muito bem; ele conseguia citar longas passagens dos textos originais de
memória. Em suma, ele foi imbatível, e o debate, um completo triunfo para ele.
Ninguém ousava encarar esse peso-pesado teológico com a acusação de heresia.
E mais: Zuínglio levou tanto a melhor que o concílio da cidade regulamentou de
imediato que apenas a pregação bíblica seria legal em Zurique.
Evidentemente, isso mudou tudo. Mas, a primeira pergunta agora era:
como isso poderia acontecer? Muitos poucos conheciam a Bíblia bem o bastante
para conseguir pregar de forma realmente bíblica. E, assim, Zuínglio começou a
trabalhar na criação de uma escola para pregadores. O primeiro estágio era uma
escola de gramática para moços, a fim de alfabetizá-los. Depois disso, o estágio
seguinte era uma faculdade teológica. Ali, os estudantes recebiam, como
Zuínglio expressou, “o dom de línguas” (o conhecimento de hebraico, grego e
latim) e lhes ensinava a “profetizar” (pregar). Com seus dias dedicados ao estudo
bíblico e às palestras sobre teologia, surgiu uma geração de pastores e
missionários treinada no conhecimento da Bíblia. Desses períodos de estudo
vieram comentários sobre vários livros da Bíblia, bem como uma tradução
completa e ricamente ilustrada, publicada como a Bíblia de Zurique em 1531.
Assim, Zuínglio carregou os compartimentos de bomba da Reforma em Zurique,
tornando a invasão bíblica quase impossível de resistir.
Era inevitável que alguns monastérios começassem a fechar; monges e
freiras abandonavam esses locais ou passavam a tratá-los como hotéis. As igrejas
estavam sendo completamente transformadas: relíquias, imagens de santos,
crucifixos, velas, altares e vestes sacerdotais foram removidos. Até os órgãos
foram retirados, pois Zuínglio desaprovava a música instrumental na igreja,
temendo que sua beleza tentasse as pessoas a idolatrar a própria música. No
entanto, a mudança principal ocorreu na Páscoa de 1525. Em vez de celebrar a
missa, pães comuns foram colocados em pratos de madeira em uma mesa
simples no meio da igreja; do lado, havia um jarro de vinho. Nada foi entoado
em latim; todo o culto ocorreu no alemão suíço que o povo podia entender.
Então, pela primeira vez, as pessoas, ainda assentadas nos bancos, receberam
não apenas o pão, mas também o vinho. E com isso, não mais recebendo os
sacramentos da Igreja de Roma, o rompimento estava completo.
Anna Zuínglio
Bem cedo, Zuínglio convenceu-se de que Roma estava errada ao insistir
no celibato de seus sacerdotes. A Bíblia não ensinava isso. Porém, ele
cria que se casar consistiria em uma pedra de tropeço desnecessária para
quem não tinha ainda alcançado o conceito da autoridade da Bíblia sobre
o papa. Assim, em 1522, ele casou-se em segredo com Anna Reinhart.
Só depois de dois anos, ele sentiu que o povo conseguiria aceitar isso e,
então, os dois se casaram oficialmente e tiveram muitos filhos, dos quais
vários morreram na infância.
Em casa, Zuínglio mostrava que, embora desaprovasse a música na
igreja, na realidade, ele era um músico talentoso e capaz de tocar vários
instrumentos diferentes. Em geral, esses talentos parecem ter sido usados
para divertir as crianças e mandá-las dormir!
Quando Zuínglio morreu, seu tenente e sucessor, Heinrich Bullinger,
recebeu Anna e os dois jovens filhos remanescentes em sua casa.
Radicalização
Lutero e Zuínglio enfrentaram presença de radicais. Em Wittenberg e Zurique
havia aqueles que pensavam que a Reforma estava caminhando muito devagar
ou não na medida por eles desejada. A história da Reforma Radical diz respeito
principalmente a Zurique, pois os radicais de lá, no final, obtiveram muito mais
sucesso. Eles deixaram o legado mais duradouro. Antes de tudo, entretanto,
precisamos brevemente retornar a Wittenberg.
O ano é 1521. Martinho Lutero, ao voltar da Dieta de Worms, foi raptado
e colocado em custódia preventiva no castelo de Wartburg. A Reforma em
Wittenberg, portanto, encontrou-se por um tempo nas mãos do colega de Lutero,
Andreas Karlstadt. Foi um erro: Karlstadt era impetuoso, e forçava a reforma em
um ritmo com que o povo não poderia lidar. No Natal, por exemplo, ele deu pão
e vinho ao povo, ordenando que eles mesmos pegassem o pão do prato, em lugar
de inseri-lo na boca das pessoas como os sacerdotes católicos faziam. Os
presentes ficaram chocados e horrorizados. Eles criam que o pão era o próprio
corpo de Cristo: pegá-lo com as mãos imundas representava um sacrilégio
terrível. Um homem tremia tanto que derrubou o pão. Karlstadt mandou que ele
o pegasse, mas o homem estava tão abalado emocionalmente que não foi capaz.
Todavia, Karlstadt não estava sozinho ao forçar a reforma acelerada.
Assim que os males da idolatria foram proclamados dos púlpitos, tornou-se
quase impossível deter as multidões que realizavam tumultos iconoclastas
regados a álcool. Isso não significa negar a sinceridade religiosa dos destruidores
de imagem. Muitos eram profundamente contrários às imagens e a tudo o que
elas representavam. A questão se resumia ao fato de não haver muitos
passatempos empolgantes no século XVI; assim, destruir estátuas, quebrar
vidros e queimar imagens de madeira lhes parecia algo divertido. Pessoas
bêbadas e as entediadas não precisavam de muito para serem aliciadas. E toda a
experiência era deliberadamente programada para ser divertida. Em um caso, por
exemplo, uma estátua de madeira da virgem Maria foi acusada de ser uma
feiticeira. Ela foi lançada no rio para ser testada. Sendo de madeira, ela
evidentemente flutuou; assim foi condenada e queimada. Todo mundo adorava
lembrar essa.
Para piorar, três homens da área de Zwickau chegaram a Wittenberg,
afirmando serem profetas que não precisavam da Bíblia, pois o Senhor falava
com eles. Rejeitaram o batismo infantil e defendiam o avanço do reino de Deus
por meio do massacre dos ímpios: “Nasça de novo ou morra!”. As comportas da
mudança foram abertas, e as águas começaram a correr. Wittenberg estava em
uma espiral rumo ao caos.
Lutero, ignorando a sentença de morte que pairava sobre ele, saiu do
esconderijo para pedir uma reforma mais cuidadosa. Pregou uma série de
sermões em que, como Zuínglio, defendia que a verdadeira reforma viria pela
conversão do coração das pessoas, não pela alteração de práticas externas. E, à
semelhança de Zuínglio, disse que o poder de mudar os corações encontrava-se
só na Palavra de Deus, não em martelos, fogo e força:
Eu não constrangerei ninguém pela força, pois a fé deve vir livremente sem compulsão. Observem
meu exemplo: Eu me opus às indulgências e aos papistas, mas nunca pela força. Eu apenas ensinei,
preguei e traduzi a Palavra de Deus; fora isso, não fiz mais nada. Enquanto eu dormia ou bebia a
cerveja de Wittenberg com meus amigos Filipe e Amsdorf, a Palavra enfraqueceu o papado de tal
forma que nenhum príncipe ou imperador jamais seria capaz. Eu não fiz nada; a Palavra fez tudo.
Os radicais, Lutero acreditava, não compreendiam o alvo da Reforma. Seu
ataque era contra a ideia de que poderíamos fazer algo para obter mérito diante
de Deus. O ataque dos radicais objetivava questões externas como as imagens,
os sacramentos e, no caso dos “profetas” de Zwickau, a Bíblia. A mensagem de
Lutero anunciava a salvação toda como um dom puro a ser recebido com fé
simples. A mensagem deles era que coisas externas deveriam ser rejeitadas.
Menno Simons
Talvez o maior líder anabatista e defensor dessas posições teológicas seja
o holandês Menno Simons. Nascido treze anos depois de Lutero, como o
alemão, ele foi sacerdote católico romano. Contudo, as dúvidas
surgiram. E, com seu irmão Pieter, ele começou a se sentir atraído pela
causa anabatista. Em 1535, Peter foi sugado para a confusão em Münster
e morto. Menno ficou assustado e escreveu seu primeiro livro, Teghens
de grouwelijcke ende grootste blasphemie van Jan Van Leyden [Contra a
blasfêmia de Jan van Leyden]. Era um sinal de alerta para o anabatismo
pacifista, e Menno se tornaria o líder deles. Sob sua direção, o
anabatismo afastou-se de revoluções sangrentas e revelações
particulares. Os menonitas deveriam ser pacíficos e bíblicos. Assim,
Menno selou a vitória do radicalismo pacífico e bíblico do mártir
anabatista de Zurique, Felix Mantz. Müntzer e Münster se tornariam
ruínas do passado; Menno ofereceu ao anabatismo um futuro.
Renascença
Aos 10 de julho de 1509: Lutero e Zuínglio haviam acabado de se tornar
sacerdotes, um aterrorizado e o outro ansioso pela batalha, e Jean Cauvin nascia
na cidade agrícola de Noyon, a quase 100 km ao norte de Paris. Cauvin era
francês e sempre consideraria a França sua terra natal, e Noyon seu lar na terra.
Mas, foi como “Calvino” (o nome soava muito melhor em latim) que ele
lideraria a próxima geração da Reforma.
Calvino nasceu a tempo de conhecer o mundo anterior à Reforma.
Crescendo em meio à vida e aos assuntos da igreja local, ele se lembraria, mais
tarde, de beijar parte de um dos corpos de santa Ana (ela tinha muitos
espalhados por toda a Europa). Mas, sua vida começou como o oposto de
Lutero: seu pai realmente o queria como sacerdote. Assim, com quase 12 anos,
ele foi enviado a Paris para estudar teologia. Por séculos, Paris fora a nave mãe
dos estudos teológicos na Europa, mas a faculdade de Calvino logo teria algo
surpreendente para arrogar para si: dentro de poucos anos, ela teria como ex-
alunos Erasmo, o líder da reforma moral da igreja, Calvino, e Inácio de Loyola,
o general da Contrarreforma católica. Entretanto, depois de cinco anos, o pai de
Calvino abandonou o sonho do sacerdócio para o jovem João, retirou-o de Paris
e enviou à Orleans para estudar direito. Lutero enfurecera o pai ao abandonar a
carreira de direito para tornar-se sacerdote, o pai de Calvino parece ter se
decepcionado com a igreja. Seja como for, ele estava chegando à conclusão do
pai de Lutero de que havia perspectivas melhores no direito.
Em Orleans, o jovem Calvino foi atraído pelo mundo intelectual do
humanismo renascentista e apaixonou-se. Ali havia uma comunidade de
acadêmicos dedicados à redescoberta das belezas clássicas da Grécia e de Roma.
Por meio de seu saber, eles estavam trazendo o renascimento da era dourada. Era
empolgante, mas também muito confortável e tranquilizador. Com certeza havia
críticas à igreja, mas de forma gentil, de dentro dela. O apego à virgem Maria e a
crença no purgatório nunca eram questionados. Calvino lançou-se nisso,
esperando que, em poucos anos, pudesse provar seu valor e roubar a coroa de
príncipe da nova erudição pertencente a Erasmo.
Entretanto, havia algumas pessoas no novo círculo social de Calvino que
sabiam mais sobre a graça de Cristo que Erasmo. Pelo menos, Lutero pensaria
que sim. Primeiro, havia o primo de Calvino, Pierre Robert, apelidado
“Olivétan” [Olivetano] por causa de sua lâmpada à óleo de oliva, usada para seus
estudos, que nunca parecia se apagar à noite. Revelando a tendência da família
para o trabalho quase incessante, ele conseguiu produzir uma tradução completa
da Bíblia para o francês quando contava 29 anos. E havia Melchior Wolmar, que
ensinou grego a Calvino. Essa era a iniciação de um círculo muito mais arrojado.
Por volta da década de 1520, o grego era a língua da Reforma. A Universidade
de Sorbonne, em Paris, campeã da velha ortodoxia, observara com clareza os
perigos do grego e do hebraico, e tentou deter segundo a lei o que era uma óbvia
abertura para a heresia. Mentes pretensiosas, armadas com o conhecimento das
línguas bíblicas, poderiam se considerar capazes de entender as Escrituras por
conta própria, apenas lendo o texto. Entretanto, os professores de Sorbonne
argumentavam, o verdadeiro significado da Escritura encontra-se em seu sentido
“místico”, que nenhum homem pode conhecer “a menos que ele seja educado na
faculdade de teologia”.
Talvez Wolmar tenha passado para Calvino mais que seu conhecimento
de grego, talvez ele tenha emprestado algumas cópias dos escritos de Lutero.
Seja como for, o “renascimento” começou a significar algo mais pessoal para
Calvino que o retorno da era clássica. Como ele escreveu depois, após esse
período “Deus, por uma súbita conversão, subjugou e conduziu minha mente a
uma disposição ensinável”. Não sabemos mais do que isso. Era característico de
Calvino, que nunca gostou de falar sobre si. Mas, apesar de todo o desejo de
continuar sua vida particular de estudos, João agora se tornara, como ele
expressou, um “amante de Jesus Cristo”.
França em chamas
As coisas pareciam positivas para a Reforma na França. O jovem rei Francisco I
não era um fanático caçador de bruxas, mas um monarca humano e esclarecido,
protetor de quem falava em reformar e purificar a igreja. Então, em 1528,
alguém levou uma faca a uma proeminente estátua milagreira da virgem Maria
em Paris, decapitando a Madonna e a criança, esmagando a cabeça dos dois e
pisando no dossel. Francisco chorou ouvindo as notícias e liderou uma procissão
pelas ruas para expiar o pecado. Era exatamente o tipo de comportamento que
Lutero condenara em Wittenberg, mas os seguidores de Lutero sofreriam pelo
escândalo. Foram colocadas em prática medidas contra até quem ocultasse os
luteranos. Além disso, o papa logo faria um apelo especial a Francisco, para que
ele eliminasse “a heresia luterana e outras seitas a infestar o reino”.
Então, nesse momento tão tenso, o novo reitor da Universidade de Paris,
Nicholas Cop, começou o novo semestre com um discurso luterano demais para
aliviar a situação. Com sua prisão iminente, ele fugiu do país e foi para Basileia,
Suíça, unindo-se a pessoas como Erasmo e outros refugiados como Olivetano. O
nome de Calvino entrou sem demora para a lista negra. Talvez, ele tivesse
ajudado no discurso de Cop. As autoridades vieram à sua procura e,
aparentemente, ele conseguiu sair do quarto no último minuto, descendo pela
janela em uma corda feita de lençóis. Seu quarto foi revistado, sua
correspondência inspecionada e, agora, Calvino estava em fuga.
Assim, a temperatura subiu mais um pouco. Em uma noite de outubro de
1534, placas atacando a missa foram colocadas em cidades por toda a França.
Uma delas foi pregada na porta dos aposentos do rei no castelo de Amboise.
Ninguém sabia quem as escrevera, todavia, não deveriam ser pessoas
moderadas. Autointitulados Articles véritables sur les horribles, grands et
importables abus de la messe papale, inventée directement contre la sainte cène
de notre Seigneur, seul médiateur et seul sauveur Jésus-Christ [“Verdadeiros
artigos sobre os horríveis, grandiosos e importantes abusos da missa papal,
idealizada diretamente contra a ceia do Senhor de Jesus Cristo“], eles
protestavam contra os blasfemos “engano” e “idolatria” da missa. Se isso não
estava claro na mente do rei antes, agora se tornara: “Reforma” era outra palavra
para sedição perigosa. Ele conduziu outra procissão por Paris para expiar o
sacrilégio, mas, desta vez, adicionando um novo sacrifício para apaziguar a
deidade ofendida: ao longo da rota da procissão, piras foram acesas para queimar
36 transgressores que supostamente contribuíram com as placas.
Tudo isso deixou a vida muito mais tensa para Calvino, que tentava não
chamar atenção. Embora concordasse com a teologia das placas, Calvino
lamentava o estilo acalorado dos que fizeram os letreiros e dos destruidores de
estátuas. Talvez motivado por isso, ele escreveu sua primeira obra de teologia,
não contra Roma, mas contra os anabatistas. Esse era um sinal precoce de algo
que jamais abandonaria seu pensamento: ele odiava aqueles que, pervertendo a
Reforma ou por seu comportamento descontrolado traziam má fama à Reforma.
Calvino rapidamente sentiu que a situação na França estava ficando
intolerável. O país tornou-se um Egito, uma terra de servidão que ele deveria
deixar para adorar o Senhor. E, assim, cruzando a fronteira, Calvino tornou-se
um exilado. Foi claramente uma decisão difícil, e ele nunca deixou de
saudosamente relembrar sua bela pátria, esperando que, um dia, ela fosse liberta.
Para isso ele trabalharia: do exílio ele convocaria seus conterrâneos à resistência.
De volta ao combate
Enquanto Calvino vivia feliz no exílio em Estrasburgo, Genebra se encontrava
uma bagunça. O autor das placas francesas com ataques à missa havia chegado
(como pastor) e partido, e reinavam a confusão doutrinária e o caos político. Por
fim, a política mudou o suficiente para Genebra querer Calvino de volta e, assim,
três anos depois de expulsá-lo da forma mais fria, a cidade lhe enviou um
caloroso convite para voltar. Ele teria rido se pudesse; só a ideia de retornar era
terrível demais para se pensar nisso. Quando Farel (que estava ocupado demais
para voltar) insistiu que ele aceitasse, Calvino respondeu que preferiria “cem
mortes a essa cruz”.
Porém, com Bucer e Farel unindo-se, ele foi persuadido. Pobre Calvino!
Em 1541, ele voltou a Genebra com Idelette e seus filhos, e subiu a ladeira da
pequena Rue des Chanoines, onde a cidade lhe providenciara uma pequena casa
mobiliada. Com um pequeno quintal e uma estonteante vista dos Alpes, a cidade
buscava amenizar a situação. Porém, Calvino jamais confiaria nos genebrinos de
novo. Ele vivia de malas prontas, por assim dizer, sempre preparado para ser
expulso de novo.
O ar estava pesado de expectativa enquanto ele subia de volta a seu
antigo púlpito. A congregação preparou-se para uma torrente de anátemas que
sem dúvida procederia de um amargo deportado que agora tinha voz pública. Em
vez disso, Calvino apenas continuou a exposição do versículo que ele começara
na última vez em que esteve ali, três anos e meio antes. A mensagem era a mais
clara possível: Calvino não voltou com objetivos pessoais (longe disso!), mas
viera como pregador da Palavra de Deus.
Entretanto, se a Palavra de Deus se tornasse o cetro pelo qual Deus
governaria sua igreja em Genebra, algo deveria ser feito para garantir isso. O
problema era que o concílio da cidade tomou para si o poder do papa e exercia
controle, de forma estrita, sobre tudo que acontecia na igreja. Calvino sabia da
necessidade de atacar enquanto era bem-vindo. Assim, no mesmo dia do retorno,
ele submeteu ao concílio da cidade uma lista de propostas para a reforma ampla
da igreja de Genebra. A maior parte foi aceita.
As propostas deixavam muito claro que a Reforma não se restringia ao
rompimento com Roma, significava dedicação à reforma contínua pela Palavra.
A igreja reformada deveria sempre se reformar. Calvino propôs, entre outras
coisas, que cada lar recebesse uma visita pastoral todo ano, que todos
aprendessem o catecismo que explicava a fé evangélica, e que só quem o fizesse
fosse recebido à mesa do Senhor. E, para ter absoluta certeza de que Genebra
jamais seria mencionada na mesma frase que a comunidade polígama de Jan van
Leiden em Münster, ele propôs que um comitê disciplinar fosse organizado para
garantir a sociedade ordeira.
O comitê não detinha poder para impor disciplina e, uma vez organizado,
geralmente distribuía reprimendas verbais sobre os faltosos aos sermões ou às
aulas de catecismo. Contudo, sua fama era de um grupo bastante severo. Em um
curioso contraste com a Wittenberg de Lutero, o comitê tentou impedir os
cidadãos de frequentar tavernas, substituindo-as por “abadias”, onde eles podiam
estar sob supervisão com uma Bíblia francesa. Previsivelmente, o plano não foi
um grande sucesso. E, quando foi elaborada uma lista com os nomes cristãos
aceitáveis (como “Jacques” e “Jean’) e inaceitáveis (como “Claude” e “Monet”),
alguns começaram a sentir que havia coisas demais sendo prescritas. Ou seja,
muitos genebrinos não gostavam de receber ordens para viver a vida santa dos
comprometidos quando eles mesmos não eram comprometidos. “Ah, nós não
queremos esse evangelho aqui, vá procurar outro”, certa vez Calvino acusou os
genebrinos de dizer. É quase possível ouvi-los choramingando.
Tudo isso garantiu a Calvino a reputação de aiatolá protestante. Mas, ela
sempre foi injusta. O homem não pode ser julgado pela cidade. Ele era, como
disse, um “acadêmico tímido” sem pretensões de poder despótico, e sem
qualquer chance de obtê-lo. Sendo refugiado francês, não cidadão de Genebra,
ele não podia votar nem exercer qualquer cargo secular, e vivia na cidade apenas
pela graça diária do concílio, que poderia, por capricho e a qualquer momento,
expulsá-lo de novo.
Ainda assim, o próprio fato de ele ser imigrante ajudou a alimentar o
ressentimento contra Calvino como testa de ferro de todas as reformas. A
situação não melhorou com a onda imensa de imigrantes, em geral provenientes
da França, que estava tomando Genebra. Quando Calvino retornou à cidade em
1541, a população de Genebra consistia em quase 10 mil habitantes, mas, no fim
de sua vida, o número de residentes era mais que o dobro. Os refugiados recém-
chegados eram de maioria francesa, como Calvino, que transformaram a cidade,
introduzindo indústrias, como a relojoaria, e até mudando a principal língua das
ruas para o francês.
É possível ter uma impressão do apelo exercido por Genebra sobre os
evangélicos atormentados na França com o que uma mulher da cidade-natal de
Calvino, Noyon, disse ao chegar lá:
Oh, como estou feliz por ter abandonado o amaldiçoado cativeiro babilônico e por logo ser libertada
de minha prisão final! Ai de mim se estivesse agora em Noyon, onde não ousaria abrir minha boca
para confessar a fé com sinceridade, ainda que os sacerdotes e monges vomitassem todas aquelas
blasfêmias ao meu redor! Aqui não só tenho liberdade de dar glória a meu Salvador ao estar diante
dele com ousadia, como sou orientada.
As pessoas deixavam para atrás a vida anterior para viver abertamente como
evangélicos e ouvir o ensino das Escrituras.
Embora os imigrantes estivessem felizes, sua chegada acendeu a habitual
xenofobia, e as tavernas estavam cheias de ideias sobre o que fazer com eles.
Uma ideia popular é que eles deveriam “arrumar um barco, colocar todos os
franceses e banidos nele, e enviá-los rio Ródano abaixo” de volta à França. O
nome de Calvino estava implícito.
A coisa começou a ficar feia. Mulheres foram presas ao serem flagradas
dançando, provocando uma feroz reação contra Calvino; cartazes com dizeres
rudes e impublicáveis sobre ele foram colados pela cidade — um até mesmo em
seu púlpito. Era um presságio do pior porvir, quando, no início da década de
1550, ocorreram tumultos e tensões liderados por um grupo que amava
partidarismo e odiava Calvino. Durante seus sermões, as pessoas começaram a
tentar abafá-lo, algumas tossindo, outras fazendo ruídos inconvenientes com
seus assentos.
Parecia que Calvino não sobreviveria por muito tempo em Genebra. Em
1553, ele declarou, sem o apoio da lei, não permitir que um dos líderes dessa
facção contrária a Calvino, os “libertinos”, participasse da ceia do Senhor.
Esperando que o domingo seguinte fosse o último, ele pregou com um nó na
garganta, mas, ainda assim, recusou-se a desistir. Diante da mesa do Senhor, ele
anunciou: “Morrerei antes de minha mão estender as coisas sagradas do Senhor
aos julgados escarnecedores”. Quase inexplicavelmente, Calvino não foi
expulso. Porém, sua vida na cidade estava por um fio.
Miguel Serveto
Nesse momento mais sombrio aconteceu o evento que lançaria a pior
sombra sobre o nome de Calvino: Miguel Serveto foi queimado por
heresia em Genebra. A imagem de Calvino ao lado da pira, com um
sorriso sinistro no rosto, sem dúvida oferece um bom combustível para a
lenda de “Calvino, o Inquisidor Protestante”. Mas, o que aconteceu? O
monstro foi finalmente revelado?
Miguel Serveto era um radical espanhol da laia de Fausto Socino, que
esperava o progresso da Reforma e a rejeição do que ele considerava
crenças corrompidas, como a Trindade. Por séculos, a Espanha abrigara
grandes populações judaicas e muçulmanas, e muitos cristãos espanhóis
consideravam a Trindade um obstáculo, deixando os cristãos de fora do
alegre clube monoteísta espanhol. Serveto tornou-se a voz desse
movimento, argumentando que a Trindade representava uma crença
adicionada mais tarde à religião monoteísta simples e sem floreios do
Antigo Testamento, em que só Deus Pai era Deus. Se pudéssemos todos
voltar a essa verdade básica e original, então judeus e cristãos não
precisariam mais se separar.
Católicos e protestantes ficaram de igual modo horrorizados com a
defesa de um deus completamente diferente. Entretanto, os católicos o
capturaram primeiro, nos limites da fronteira francesa de Genebra, em
Viena. Tendo-o considerado culpado de heresia, também conseguiriam
queimar apenas sua efígie primeiro — pois ele escapou pelos telhados e
cruzou a fronteira para Genebra.
Calvino era tão odiado ali que parecia um bom lugar para fugir. Mesmo
ao ser preso em flagrante, Serveto permanecia otimista: da prisão ele
escreveu ao concílio da cidade, exigindo a prisão de Calvino e
oferecendo-se caridosamente para ficar com a casa e os bens do
reformador quando ele fosse executado. Em 1553, pedidos assim
pareciam realistas. Entretanto, a própria Genebra foi acusada por toda a
Europa católica de ser um abrigo para hereges; mesmo o concílio da
cidade podia enxergar que, ao tolerar Serveto, isso mostraria que Roma
estava certa.
Calvino, seu teólogo, foi convocado para atuar como promotor. Como se
esperava, Serveto foi declarado culpado e, em concordância com outras
cidades protestantes na Suíça e na Alemanha, Genebra pronunciou a
sentença de morte. Não houve nenhuma polêmica: toda a cristandade
concordava com a pena de morte como sentença apropriada para heresia
e, nas décadas anteriores, vários feiticeiros, conjuradores e satanistas
confessos (confessos enquanto seus pés estavam sendo grelhados,
evidentemente) foram torturados e queimados em Genebra. Isso ocorreu
no século XVI.
Também em 1553, Calvino não estava em posição de exercer qualquer
influência sobre a pena. Na verdade, ele pediu uma pena de morte mais
leniente, decapitação, o que lhe foi negado. Por fim, ele foi visitar
Serveto na prisão uma última vez para tentar convencê-lo. Ele fracassou
e, assim, Serveto foi levado aos portões da cidade e queimado.
Quando as chamas subiam, Serveto gritou: “Ó, Jesus, Filho do Deus
eterno, tem piedade de mim!”. Se ele estivesse preparado para gritar: “Ó,
Jesus, eterno Filho de Deus”, ele nunca teria sido queimado. É
perturbador o que isso revela. As duas confissões estão em polos
opostos. Porém, o fato de hoje termos dificuldade em enxergar isso
demonstra como o espírito erasmiano de pouca doutrina saiu-se
vencedor.
A maré vira
Em 1555, era como se as nuvens subitamente desparecessem e o sol brilhasse de
novo. Os favoráveis a Calvino venceram as eleições para o concílio da cidade.
Isso iniciou uma revolta. Espadas foram brandidas, e o líder do antigo partido
contrário a Calvino confiscou o bastão de autoridade da cidade. Não poderia
haver símbolo mais claro de um golpe de Estado. Então, todos se lembraram de
que coisas assim não acontecem em cidades suíças de respeito, e os líderes
foram condenados à decapitação, pregados no pelourinho e esquartejados.
Muitos conseguiram fugir intactos antes de serem presos, mas tudo havia
mudado. Era uma nova era, o partido contra Calvino estava fora de cena, e isso
daria a Calvino a liberdade de fazer coisas a que ele jamais se aventurara antes.
O que Calvino faria com essa oportunidade recém-chegada? Ele
estabeleceu um programa ultrassecreto para a evangelização de sua pátria
França. Ele já estava bem estabelecido como líder exilado do protestantismo
francês, tendo contato regular com muitas igrejas clandestinas dali. Mas, depois
de 1555, seus esforços foram levados a um nível muito mais ambicioso. Uma
rede secreta foi montada, e abrigos seguros e esconderijos organizados, de forma
que os agentes do evangelho poderiam cruzar a fronteira da França para plantar
novas igrejas clandestinas (algumas até subterrâneas). Com máquinas de
impressão secretas instaladas em Paris e Lyon para prover-lhes recursos, tudo foi
um incrível sucesso. A procura por literatura logo ultrapassaria o que as
máquinas poderiam suprir, e a imprensa tornou-se a indústria dominante em
Genebra na tentativa de lidar com a necessidade.
Mais de 10% de toda a população da França tornou-se reformada, com
dois milhões ou mais congregando nas centenas de igrejas plantadas. O
calvinismo tinha bons resultados em especial entre a nobreza, e quase um terço
dela parece ter se convertido, dando à fé reformada uma influência política
desproporcional a seu tamanho real. O antigo sonho de Calvino de ver a França
evangélica começava a parecer uma possibilidade. Ele escreveu uma confissão
de fé para a igreja ali e a apoiou em tudo o que era possível. Apesar do
crescimento do evangelicalismo na França, os franceses precisavam muito de
encorajamento: quando, por exemplo, uma igreja foi invadida em Paris, mais de
cem pessoas foram presas e sete queimadas. Embora ele escrevesse para
confortá-los como alguém em liberdade, jamais falou como se estivesse em uma
torre de marfim. Sentindo a iminente ameaça de martírio em Genebra, suas
cartas são salpicadas por toda parte de menções ao sangue que ele sabia que logo
seria derramado: “É verdade que agora falo de fora da batalha, porém, não muito
distante, e não sei por quanto tempo, pois até onde se pode julgar, nossa vez se
aproxima”.
De Calvino ao calvinismo
Calvino jamais desejou a existência de algo chamado “calvinismo”; ele
odiava a palavra, e passou a vida lutando pelo que cria ser a simples
ortodoxia da igreja primitiva pós-apostólica. O termo “calvinismo”
sugeria uma nova escola de pensamento. Entretanto, o chamado
“calvinismo” passou a existir, e sua história levaria muitos a entender de
forma equivocada o próprio homem. Como resultado, uma das imagens
mais populares de Calvino hoje é a de um homem obcecado com a
eleição divina de quem será salvo ou não.
A dificuldade começou na verdade com um estudante holandês, Jacó
Armínio, treinado para ser pastor na academia de Genebra cerca de vinte
anos após a morte de Calvino.
Voltando a Amsterdã, ele começou a ensinar algumas coisas bem
diferentes do que Calvino ensinara, em especial com respeito à
predestinação. Ele opinava que Deus predestina as pessoas para a
salvação com base no conhecimento prévio da fé que elas teriam (em
lugar de a base consistir na própria vontade divina, como Calvino
ensinava). Depois da morte de Armínio, em 1609, seus seguidores
(chamados “arminianos”) compuseram a Remonstrância, uma petição
para que cinco de suas posições centrais fossem aceitas pela Igreja
Reformada Holandesa.
Em 1618-1619, um sínodo de teólogos reformados reuniu-se em Dordt
(ou Dordrecht) para lidar com Os cinco artigos da remonstrância. Em
resposta a esses cinco pontos, eles produziram os Cinco artigos contra
os remonstrantes, mais tarde resumido no acrônimo “TULIP”:
Ao norte da fronteira
As coisas funcionaram de forma diferente na Escócia, embora a Reforma
escocesa tenha começado em tons parecidos. Ao mesmo tempo em que a
literatura luterana estava sendo contrabandeada para a Inglaterra e discutida em
Cambridge, ela fazia incursões à Escócia, encontrando ávidos leitores em St.
Andrews. Como na Inglaterra, alguns dos convertidos evangélicos começaram a
pregar as novas doutrinas. Entretanto, nenhum deles fez muita diferença até que,
em 1528, um deles, Patrick Hamilton, foi preso e queimado por heresia em St.
Andrews. Ele melhorou a imagem do evangelicalismo na Escócia, fazendo
muitos se perguntarem que nova doutrina era essa, por que era tão perigosa e por
que um homem morreria por ela.
Uma coisa diferente da Escócia era que o rei (Jaime V, na época) detinha
completo controle da igreja em seu país. Assim, em sua mente, não havia
necessidade de romper com Roma como Henrique VIII da Inglaterra fizera. O
que ele ganharia? A coroa escocesa jamais estaria interessada em cortar laços
com Roma.
Em 1542, Jaime morreu, abrindo uma janela de oportunidade para a
Reforma. O monarca por direito era agora a infante Maria da Escócia, mas Jaime
Hamilton, conde de Arran, governava no papel de regente. No ano seguinte,
ocorreu algo extraordinário: “A fase piedosa de Arran”. O próprio Arran tinha a
extraordinária capacidade de alternar entre o catolicismo e o protestantismo, mas
naquele ano, ele era protestante. O resultado foi um ano de legislação a favor dos
protestantes: uma versão bíblica na língua local foi sancionada (e vendeu bem);
pregadores evangélicos foram comissionados; e o proeminente cardeal David
Beaton, católico romano, de St. Andrews foi até preso.
Então, Baton encabeçou uma revolta e, depois de um ano, Arran decidiu
ser católico de novo. Ler a Bíblia no próprio idioma foi declarado ilegal outra
vez e, como claro sinal de que os bons tempos estavam de volta, o proeminente
pregador evangélico George Wishart foi capturado, julgado e queimado como
herege.
Entretanto, os protestantes escoceses não eram do tipo que deixariam
barato esse tipo de tratamento. Um pequeno grupo disfarçado invadiu o castelo
de St. Andrews, assassinou Beaton, pendurou seu corpo na janela e prosseguiu
para conquistar o castelo. Durante o ano seguinte, o castelo se tornou um local
de refúgio para os protestantes ingleses, que mantiveram seu controle até serem
bombardeados por tropas francesas chamadas para ajudar.
Muitos dos derrotados foram condenados a servir como galerianos em
navios franceses, acorrentados a bancos para remar o dia todo sob a ameaça do
chicote. Entre eles, estava o antigo guarda-costas, portador do sabre, de Wishart
e, mais tarde, pregador dos réus do castelo, John Knox. Seus colegas de prisão
conheciam sua teologia: seu primeiro sermão, sobre o papa como a prostituta da
Babilônia, foi inequívoco. Mas, agora, no navio, eles começaram a conhecer seu
fervor. Eles costumavam ser ameaçados com tortura se não reverenciassem a
imagem da virgem Maria ou a assistissem à missa, quando celebrada a bordo.
Entretanto, quando Knox se recusou e a imagem de Maria foi forçada sobre seu
rosto para que ele a beijasse, Knox a agarrou e lançou ao mar. Depois disso, os
captores pararam de tentar e, após quase dois anos tornando a vida deles
miserável, ele foi libertado.
Knox passou um tempo na Inglaterra, tentando fazer Cranmer acelerar
sua Reforma, mas, quando Maria, a Sanguinária, subiu ao trono, ele partiu para
Genebra. Para ele, Genebra era um paraíso: “A mais perfeita escola de Cristo
que já houve sobre a terra desde os dias dos apóstolos”. Isso o fez sonhar com
sua terra natal. Knox conseguiu viajar nos anos seguintes, chegando até a passar
brevemente pela Escócia, onde foi recebido de modo caloroso pelo crescente
número de protestantes escoceses, que começavam a vê-lo como um tipo de líder
exilado. Na maior parte do tempo, porém, ele aguardava em Genebra,
acumulando ira enquanto assistia como os eventos na Grã-Bretanha se
desenrolavam.
Em 1558, sua ira estourou e ele libertou de sua pena a obra The First
Blast of the Trumpet Against the Monstruous Regiment of Women [O primeiro
toque da trombeta contra o monstruoso governo das mulheres]. Pelo “governo”
das mulheres, ele se referia aos reinos das duas rainhas católicas, Maria da
Escócia e Maria, a Sanguinária, da Inglaterra. Na mente de Knox, a raiz de todos
os horrores em ataque contra a Grã-Bretanha era o “monstruoso” fato de as
mulheres governarem, quando o comando era reservado aos homens. A obra
surgiu em uma hora desastrosa, pois, pouco depois da publicação, Maria, a
Sanguinária, morreu, o que poderia deixar Knox livre para voltar para a
Inglaterra. Entretanto, não havia como Isabel permitir que o autor dessa obra
vivesse em seus domínios. Talvez ele não tenha escrito com ela em mente, mas
Isabel jamais perdoou Knox pelo insulto e sempre nutriu uma profunda suspeita
de tudo que viesse de Genebra.
Contudo, no ano seguinte (1559), Knox finalmente retornou à Escócia.
De imediato, seus sermões vulcânicos alimentaram o sentimento protestante (e
algumas revoltas). Ele foi declarado criminoso, mas um poderoso grupo de
nobres e cidadãos protestantes se dispôs a defender Knox e lutar pelo
protestantismo. Ao mesmo tempo, o catolicismo começava a ser associado com
algo estrangeiro, como na Inglaterra. A própria Maria, a rainha da Escócia, era
francesa demais: criada na França, vivia na França, estava casada com um
francês, com mãe francesa (que tinha assumido o cargo de regente no lugar de
Arran); para muitos escoceses, havia o incômodo sentimento de que a Escócia
estava sendo transformada em uma província da França. Assim, o patriotismo
escocês começou a fundir-se com o protestantismo escocês na tentativa de se
livrar dos franceses católicos.
Evidentemente, tudo isso era música para os ouvidos de Isabel lá na
Inglaterra. Ela amava a ideia de ter a Escócia protestante ao norte em vez de
estar cercada pelo que era uma desconfortável prensa católica, com a Escócia
católica ao norte e a França católica ao sul. Ela decidiu enviar tropas ao norte
para ajudar os protestantes a vencer. A mera aparição deles foi o suficiente para
alterar a situação e, em 1560, o Parlamento Escocês conseguiu decretar que o
papa não detinha nenhuma autoridade na Escócia e que, agora, toda a doutrina e
a prática deveriam ser conformadas à nova confissão de fé (a Confissão
escocesa) esboçada por John Knox. Maria da Escócia pode não ter gostado, mas
ela ainda estava na França e, quando chegou à Escócia, um ano depois, foi
obrigada a aceitar. Agora, a Escócia era um país calvinista.
Que reviravolta extraordinária! Em 1558, Inglaterra e Escócia eram
católicas; em 1560, protestantes. Evidentemente, como na Inglaterra, seria
necessário mais tempo para o protestantismo tornar-se uma convicção pessoal e
popular. Na páscoa de 1561, por exemplo, menos que 10% da população de
Edimburgo estava preparada para receber a ceia do Senhor calvinista. A
população não se manteve especialmente apegada à missa, ela precisava
entender a nova teologia. Existia a carência de pregadores treinados e da liturgia
protestante antes de as pessoas aceitarem o evangelicalismo com sinceridade.
Política e teologia
Talvez o aspecto mais notável da reforma na Inglaterra e na Escócia consista em
suas muitas diferenças da reforma ocorrida em Wittenberg, Zurique e Genebra.
Em poucas palavras, a reforma movida mais pela teologia parece diferenciar-se
da reforma mais promovida pela política. Para os reis e rainhas da Inglaterra, a
política estava no centro de sua mente, o que não ocorreu no caso de Lutero,
Zuínglio e Calvino. Pode-se observar o mesmo nas diferenças entre a reforma na
Inglaterra e na Escócia: na Inglaterra, a Reforma seguiu o método de cima para
baixo, conduzida por monarcas (e usada pelos reformadores); na Escócia, ela foi
predominantemente de baixo para cima, exigida pelo povo, apesar do monarca.
Se essa diferença prova algo, é que o cerne da Reforma consistia em um
movimento doutrinário. Não se buscava a reforma política, social ou moral com
roupagem teológica; bem no fundo, havia um conjunto de perguntas teológicas:
“O que é o evangelho?”, “Como podemos saber?”, “O que é salvação e como
posso ser salvo?”, “Quem é o povo de Deus, e o que é a igreja?”. O próprio fato
da facilidade da percepção da diferença entre Martinho Lutero e Henrique VIII
diz tudo. Era bem possível usar a Reforma para fins políticos (como Henrique
fez), mas a Reforma em si foi uma revolução teológica (como Lutero
demonstrou).
6. A reforma da Reforma: os puritanos
Quem eram os puritanos?
“Puritano”: termo mais usado como arma que descrição. Para a grande maioria,
trata-se de uma lama verbal que, uma vez atirada contra alguém, faz a vítima
parecer um pedante risível e rabugento fazendo caretas. Para a pequena minoria,
a palavra deve ser brandida como a descrição de uma equipe de ouro, unida com
as mais impecáveis credenciais teológicas e espirituais.
A expressão foi cunhada como termo pejorativo depois que Isabel
tornou-se rainha: para o inglês médio, havia o “papista” católico de um lado, e o
“preciosista” ou “puritano“ — alguém que exagerou do outro lado. Isso sugeria
um tipo de santarrão caçador de picuinhas que se considerava mais santo que os
outros. Essa não era uma descrição justa: as pessoas às quais ela foi aplicada
jamais se enxergavam como indivíduos puros (bem longe disso, como o
constante testemunho de sua pecaminosidade demonstra). Todavia, nem a outra
descrição é muito precisa: os chamados puritanos diferiam uns dos outros,
muitas vezes de modo marcante. Eles podiam discordar sobre o propósito da
cruz, sobre como ser salvo; o poeta John Milton, um puritano incontestável, nem
mesmo cria na Trindade, o Deus de todos os credos cristãos.
Então, quem eram os puritanos? Talvez John Milton tenha se expressado
muito bem quando mencionou a “reforma da Reforma”, pois esse era o alvo que
unia todos os puritanos. Isso não significava que se eles achassem puros, mas
que desejavam purificar o que não havia sido purificado na igreja e em si
mesmos. Eles queriam reforma e, embora tivessem ideias diferentes de como ela
deveria ser, todos tencionavam aplicar a Reforma ao que ela não tinha ainda
tocado. Eles pensavam que a Reforma era algo bom, mas que não estava
completa ainda.
Extirpando o “papismo”
O puritanismo teve início quando Isabel estabeleceu a Igreja da Inglaterra com
seu peculiar protestantismo inglês. Todos os protestantes se deleitaram em ver a
Inglaterra recobrada de Roma, mas os que logo seriam chamados puritanos eram
as pessoas que jamais se conformariam com a criação de Isabel. Não que eles
desejassem deixar a Igreja da Inglaterra; ela ainda era a igreja, afinal (os poucos
que a deixaram nos primeiros anos do reinado de Isabel, de modo geral, não são
conhecidos como puritanos). No entanto, na visão deles, era uma igreja muito
sem personalidade, pela metade, precisando de uma boa quantidade de reformas
adicionais. Ao serem exilados no reinado de Maria, muitos deles tinham visto na
Suíça como as coisas poderiam ser e, da mesma forma que os ingleses de hoje
meneiam a cabeça quando comparam seu sistema ferroviário com o suíço, os
puritanos meneavam a cabeça quando comparavam a igreja de Isabel com a
Genebra de Calvino. Por exemplo, os ministros da Igreja da Inglaterra ainda
eram chamados sacerdotes e vestiam trajes especiais: sem dúvida, pensavam os
puritanos, isso não levaria o povo a pensar que eles estavam ali em sentido
primário não para ensinar, mas para oferecer o sacrifício da missa? O sinal da
cruz ainda era usado no batismo: certamente isso distraía as pessoas do
verdadeiro sentido do batismo, transformando-o em mero ritual. Um anel de
casamento ainda era dado nas cerimônias da Igreja da Inglaterra: isso não
encorajaria as pessoas a considerar o casamento um sacramento, como Roma
defendia, com o anel como sinal externo? As pessoas ainda deviam se ajoelhar
na comunhão (para receber, em vez de pão real, uma hóstia, para que nada do
corpo de Cristo caísse no chão): isso não sugeria a adoração do pão e do vinho,
como na missa? E quanto às práticas como a crisma? Onde isso está na Bíblia?
O problema era que, embora Isabel fosse protestante, ela não gostava do
que chamava de “inovações” e, instintivamente, preferia os antigos costumes
(como jurar, ao estilo católico, “pelo corpo de Deus!”). Ela considerava
completamente sem importância o tipo de coisa pelo que os puritanos se
contorciam. Em sua mente, a questão da religião na Inglaterra fora fechada em
1559: a Inglaterra era protestante, e não havia nada mais a ser dito. Contudo,
para os puritanos, a ideia de uma “instituição” religiosa era inteiramente contra
uma convicção protestante fundamental: a igreja devia ser continuamente
reformada para alinhar-se cada vez mais à Palavra de Deus.
E não se tratava apenas de como seria o serviço religioso dominical.
Nenhum puritano podia considerar a obra da reforma completa quando a maioria
da população ainda tinha pouco ou nenhum entendimento da justificação só pela
fé. Não bastava reformar o modo de a igreja operar; a Reforma deveria
transformar a vida do indivíduo, obtendo não só uma adesão externa ao
protestantismo, mas o evangelicalismo interior e sincero.
As sementeiras para isso foram as universidades, em especial Cambridge,
onde tutores influentes como Laurence Chaderton adotaram a visão de que o
principal propósito da universidade era suprir a terra com pregadores. Em sua
faculdade, não era permitido aos alunos estudar ali por muito tempo, esperava-se
que eles partissem para assumir um púlpito. Quando partiam, a amizade formada
na universidade consistia na chave para o apoio mútuo.
Reformando almas
Embora Richard Baxter tenha ministrado quase um século depois da
primeira geração de puritanos, todos os puritanos teriam repetido com
sinceridade o que ele disse sobre a seguinte questão:
Como podemos achar que a reforma está terminada, quando livramo-nos de algumas cerimônias
e mudamos alguns trajes, gestos e formas? Não, senhores! Converter e salvar almas é a nossa real
atividade. Essa é a principal parte da reforma.
Baxter deveria ser o modelo puritano do que isso implicava. A fim de
alcançar essa reforma, ele cria na insuficiência da pregação regular; era
preciso dedicar tempo às pessoas garantindo que elas entendessem o
evangelho por si próprias, aplicando-o à situação delas e sendo seu tutor
pessoal. Assim, na paróquia de Kidderminster, na década de 1650,
Baxter começou a visitar todos os paroquianos uma vez ao ano,
passando uma hora com cada família, e visitando cerca de quinze
famílias por semana. O resultado foi admirável:
Em uma palavra [nunca acredite em um puritano quando ele diz que será breve!], quando
fui até lá pela primeira vez, havia apenas uma família na rua que adorava a Deus e
invocava seu Nome e, quando parti, havia algumas ruas em que não restava uma família
que não o fizesse, professando séria piedade, dando-nos esperanças de sua sinceridade.
O monarca alegre
Não demorou muito para o povo querer um rei de novo. Eles ofereceram a coroa
a Cromwell (que a recusou) e, quando ele morreu em 1658, a falta de um
sucessor capaz significava que eles precisavam ser rápidos em oferecê-la a
Carlos, o filho do rei executado.
Carlos II, proclamado rei em 1660, era o completo oposto de tudo que a
Inglaterra tinha visto na última década. O “monarca alegre”, como ele se tornou
conhecido, parecia ter tantos cães da raça spaniel quanto amantes; sabe-se com
certeza que ele conseguiu ter quatorze filhos ilegítimos com sete delas. Sob a
república, o adultério era crime capital; sob Carlos, agora a castidade era punida
— com escárnio. E (alguém se atreveria a dizer?) Carlos era muito diplomático
quanto às diferenças teológicas sendo, no máximo, um católico romano
reservado (sabe-se que ele se converteu ao catolicismo romano no leito de
morte).
Nessa atmosfera, a reação ao puritanismo foi popular e brutal. Em 1662,
o Livro de oração comum foi reimposto; e, agora, para acabar com a discussão
de uma vez por todas, o clero era forçado a declarar que a obra não continha
nada contrário à Palavra de Deus e que, consequentemente, eles não poderiam se
desviar dela em suas igrejas. Cerca de dois mil clérigos — um quinto deles —
recusaram-se e foram removidos do ministério. Então, para impedi-los de
assumir outro ministério, o Conventicle Act [Ato do conventículo] de 1664
tornou ilegal assembleias religiosas com mais de cinco pessoas fora da Igreja da
Inglaterra. No ano seguinte, o Five Mile Act [Ato das cinco milhas] impedia
esses ministros de se distanciaram cinco milhas [7,5 km] de qualquer “cidade,
vila ou burgo” onde tivessem ministrado antes. O puritanismo estava sendo
legalmente amordaçado.
Entretanto, os ministros puritanos continuavam em ação. Alguns clérigos
expulsos conseguiram ser renomeados para outros lugares. Além disso, havia
lugares (por exemplo, nas Midlands, onde hoje está Birmingham) que ficavam a
mais de cinco milhas de qualquer “cidade, vila ou burgo”, e todos eles se
tornaram fortalezas não conformistas. Outros pastores puritanos enfrentaram as
consequências. Quando, por exemplo, em 1665 e 1666, Londres sofreu um surto
de praga e um incêndio global, muitos deles ficaram ilegalmente com as
congregações em sofrimento para ministrar a elas (e adverti-las do pecado do
qual a “praga das pragas e o fogo eterno resultarão”). Como resultado desse
desrespeito da lei, a perseguição tornou-se mais intensa e cerca de vinte mil
puritanos foram lançados na prisão pelos próximos vinte anos. Na Escócia, era
pior: a pena de morte foi imposta para a pregação ilegal, e a tortura era liberada
como instrumento na busca por suspeitos.
Ainda assim, apesar desses florescimentos tardios na árvore do
puritanismo, o regime de Carlos II estava atacando as próprias raízes, fazendo-os
murchar. Não foi apenas a mordaça dos pregadores; logo surgiu a lei de que os
cargos públicos só poderiam ser ocupados por anglicanos e que apenas os
anglicanos podiam ir para a universidade. A questão não era apenas que os não
conformistas se tornaram cidadãos de segunda classe, incapazes de progresso e
influência sociais; o problema real para eles era que Cambridge e Oxford haviam
sido seminários e centros de treinamento puritanos. Com grande parte da
próxima geração impedida de qualquer educação do tipo, os homens de calibre
teológico morreram, deixando o puritanismo como um movimento cada vez
mais superficial, que não seria levado a sério de novo. O puritanismo, afinal, era
um movimento preocupado com palavras (e a Palavra de Deus) e, assim, quando
os puritanos não eram mais educados, o músculo do movimento se estagnou.
Pior: sem laços fortes com ancoradouros bíblicos, com o passar dos anos, muitos
deles encontraram-se vagando à deriva, longe das crenças básicas cristãs como a
Trindade.
Pelo fato da lentidão de sua morte, é difícil dizer com certeza quando a
era puritana terminou. Não houve um cataclismo final, uma última resistência.
Ainda havia evangélicos na Igreja da Inglaterra, mas tantos deles foram
expulsos, silenciados e suprimidos que o antigo movimento viu-se cada vez mais
disperso e sem liderança, até que por volta de 1700 ninguém mais falava muito
dos “puritanos“. Até lá, as pessoas falariam com desdém dos “dissidentes”, um
grupo rejeitado, impotente e de segunda classe e ignorado com facilidade. Mas,
em outro sentido, se o puritanismo era “a reforma da Reforma”, perguntar
quando a era puritana terminou significa perguntar quando (ou se) a Reforma
terminou. Essa é a questão que trataremos a seguir.
De volta ao futuro
Quanto mais perto se observa, mais claro se torna: a Reforma não foi, em sentido
primário, um movimento negativo, voltado ao afastamento de Roma; ela
consistiu em um movimento positivo, voltado ao Evangelho. A pura reação
negativa era a marca de certos radicais, mas não da Reforma principal.
Infelizmente, para nós hoje, obcecados com inovações, isso significa que não
podemos alistar a Reforma apenas na causa do “progresso”. Os reformadores
não estavam atrás de progresso, mas de regresso: eles nunca se sentiram
dominados pelas novidades como ficamos, nem impacientes com algo antigo por
sua antiguidade; ao contrário, a intenção deles era desenterrar o cristianismo
antigo e originário, o cristianismo soterrado sob séculos de tradições humanas.
Assim, precisamente por isso a validade da Reforma se mantém para
hoje. Se a Reforma tivesse sido apenas uma reação à situação histórica de cinco
séculos atrás, se significasse apenas um pouco do “progresso” do século XVI,
esperaríamos que ela tivesse chegado ao fim. Mas, como um projeto para se
aproximar cada vez mais do evangelho, ela não pode acabar.
A situação hoje dá testemunho, mais que nunca, da necessidade da
Reforma. A doutrina da justificação é rejeitada como insignificante, errônea ou
perturbadora. Algumas novas perspectivas sobre o que o apóstolo Paulo quis
dizer com a justificação, em especial quando tendem a remover a ênfase da
necessidade de conversão pessoal, têm confundido as pessoas, deixando o artigo
que Lutero afirmou que não pode ser abandonado ou comprometido justamente
assim: abandonado ou comprometido. E não são só as novas leituras da Bíblia. A
cultura do pensamento positivo e da autoestima tem varrido a necessidade de o
pecador ser justificado. Em suma, o problema de Lutero ser torturado pela culpa
diante do Juiz divino é rejeitado como um problema do século XVI, e sua
solução, portanto, mostra-se desnecessária para nós hoje.
Mas, na verdade, é precisamente nesse contexto que a solução de Lutero
surge como notícias muito alegres e relevantes. Pois, tendo abandonado a ideia
de que podemos ser culpados diante de Deus e, assim, precisar de sua
justificação, nossa cultura sucumbe ao velho problema da culpa de formas mais
sutis — e para as quais ela não tem respostas. Hoje, somos todos bombardeados
com a mensagem de que seremos mais amados quando nos tornarmos mais
atraentes. Isso pode não ter mais relação com Deus, mas ainda representa uma
religião de obras, profundamente encravada no ser. Para isso, a Reforma tem as
boas novas mais radiantes. Como Lutero expressou: “Os pecadores são atraentes
por serem amados; eles não são amados por serem atraentes”. Só essa mensagem
do amor de Cristo, contrário ao senso comum, apresenta a solução séria.
A Reforma consiste em uma mensagem profundamente relevante, bela e
doce, que oferece alegria e desafia a morte: não surpreende que Richard Sibbes
tenha chamado a Reforma de “a chama que o mundo inteiro jamais será capaz de
extinguir”.
Linha do tempo da Reforma
1304 Nascimento de Petrarca, “o pai do humanismo”.
1520 Lutero publica seus três tratados da Reforma e queima a bula papal.
1528 Execução de Patrick Hamilton na fogueira (em St. Andrews) por heresia.
1547 Morte de Henrique VIII. Seu filho evangélico, Eduardo VI, ascende ao
trono.
1559 Calvino produz sua edição final e definitiva das Institutas. Retorno de John
Knox à Escócia.
1572 Milhares de protestantes franceses são mortos nos massacres do dia de são
Bartolomeu.
O contexto da Reforma
Para ter uma boa ideia de como era viver na Europa católica romana medieval,
tente Princes, Pastors and People: The Church and Religion in England, 1500–
1700 [Príncipes, pastores e o povo: a igreja e a religião na Inglaterra, 1500-
1700], de S. Doran e C. Durston (Routledge, 1991). Ou, para um pouco mais de
profundidade, Religion and Devotion in Europe c.1215-c.1515 [Religião e
devoção na Europa c.1215-c.1515] de R.N. Swanson (Cambridge University
Press, 1995).
Mas, para penetrar na mente medieval desfrute do fascinante The Discarded
Image: An Introduction to Medieval and Renaissance Literature [A imagem
descartada: introdução à literatura medieval e renascentista] (Cambridge
University Press, 1994) de C. S. Lewis.
Martinho Lutero
** Todo cristão deveria ler a clássica biografia de Lutero por Roland Bainton,
Here I Stand: A Life of Martin Luther [Aqui permaneço: A vida de Martinho
Lutero] (Abingdon, 1950). Um exuberante e viciante livro de cabeceira.
** E por que não tentar ler algo do próprio Lutero? Você pode ler seu excelente
Da liberdade cristã. A versão inglesa é gratuita em
<http://www.theologynetwork.org/historical-theology/starting-out/the-freedom-
of-the-christian.htm>. Ou, se quiser um pouco mais, Timothy Lull reuniu uma
excelente pequena coletânea das obras mais importantes de Lutero em seu
Martin Luther’s Basic Theological Writings [Escritos teológicos básicos de
Martinho Lutero] (Fortress, 1989).
A Reforma na Grã-Bretanha
O livro que ajudou muitos a ver o que motivava os reformadores ingleses foi o
clássico Five English Reformers [Cinco reformadores ingleses] do bispo John
Charles Ryle (Banner of Truth, 1960). Excelente!
Para ver o coração de um reformador inglês, dê uma olhada nas orações diárias
de John Bradford, online em <http://www.theologynetwork.org/historical-
theology/starting-out/dailymeditations-and-prayers.htm>.
Uma pequena e útil introdução é o já mencionado Princes, Pastors and People.
A narrativa clássica da Reforma na Inglaterra é The English Reformation [A
Reforma inglesa] de A. G. Dickens (2. ed., Pennsylvania State University Press,
1989). Sua abordagem está desatualizada hoje, mas ele ainda serve para ter uma
boa ideia da história em geral.
Para obter um panorama da Reforma enquanto ela varria a Europa, tente o
Reformation: Europe’s House Divided 1490-1700 [Reforma: a casa dividida da
Europa] (Penguin, 2003) de Diarmaid MacCulloch. Ou para uma leitura com
menos opiniões, veja The European Reformation [A Reforma europeia] de Euan
Cameron (Clarendon, 1991).
Os puritanos
**O primeiro livro deve ser O caniço ferido de Richard Sibbes. Prepare o lenço!
Você pode encontrá-lo online em português em <http://monergismo.com/wp-
content/uploads/canico-ferido_sibbes.pdf>.
** Para um delicioso menu do puritanismo, veja K. M. Kapic e R. C. Glason,
The Devoted Life: :
** Outro jeito excelente de beneficiar-se da sabedoria puritana é o livro de James
I. Packer, Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã (Editora
Fiel).
A Reforma acabou?
Para um excepcional e profundo exame do entendimento reformado da
justificação, leia The Doctrine of Justification by Faith [A doutrina da
justificação pela fé] do grande puritano John Owen. Disponível em
<http://www.ccel.org/ccel/owen/just.i.html>. Owen exigirá um período de
mastigação, pois ele é um alimento sólido.
Embora este autor discorde de suas conclusões, Is the Reformation Over? An
Evangelical Assessment of Contemporary Roman Catholicism [A Reforma
acabou? Uma avaliação evangélica do catolicismo romano contemporâneo]
(Baker and Paternoster, 2005), por Mark Noll e Carolyn Nystrom, é útil ao
esboçar o atual estado das relações protestantes-católicos.
Para um valioso conjunto de ensaios analisando as diferenças que permanecem
entre protestantismo e catolicismo romano, veja John Armstrong (ed.), Roman
Catholicism: Evangelical Protestants Analyze what Divides and Unites Us
[Catolicismo romano: protestantes evangélicos analisam o que nos une e divide]
(Moody, 1994). Mark Husbands e Daniel J. Treier também reuniram uma útil
coletânea de artigos examinando questões sobre a doutrina da justificação em
Justification: What’s at Stake in the Current Debates [Justificação: o que está em
jogo nos debates atuais] (IVP and Apollos, 2004).
[1] Oswald Bayer, “Justification: Basis and Boundary of Theology” in: Joseph A. Burgess & Marc Kolden
(orgs.), By Faith Alone: Essays in Honor of Gerhard O. Forde. Eerdmans, 2004, p. 78.
[2] J. I. Packer & O. R. Johnston, “Historical and Theological Introduction” in: Martin Luther on The
Bondage of the Will. James Clarke & Co., 1957, p. 43-4.
[3] R. Bainton, Erasmus of Christendom. William Collins Sons & Co., 1969, p. 33.
[4] Os anabatistas não devem ser confundidos com os batistas. Apesar de semelhanças e pontos em
comum, os batistas não se originaram dos anabatistas; sua história é diferente e tem início um século mais
tarde, na Inglaterra.
[5] Os reformadores convencionais são geralmente chamados de reformadores “magisteriais” por causa de
sua cooperação com os magistrados seculares.
[6] O teólogo chamava-se Pierre Caroli (1480-1545?). Doutor em teologia pela Sorbonne, passou por
experiências comuns a todos os que se tornavam protestantes. Ele se desentendeu com Calvino e o acusou
de arianismo em 1536. Calvino refutou a acusação com a publicação de Confessio de Trinitate propter
calumnias P. Caroli (1537). [N. do R.]
[7] Quase uma década depois, em 1545, Caroli reapresentou a acusação contra Calvino e também contra
Farel de arianismo e sabelianismo ao publicar Refutatio blasphemiae Farellistarum in sacrosanctam
Trinitatem. Calvino a refutou com Pro G. Farello et collegis eius adversus Petri Caroli theologastri
calumnias defensio. [N. do R.]
[8] R. Bainton, Erasmus of Christendom. William Collins Sons & Co., 1969, p. 153.
[9] Edmund Morgan, The Puritan Family: Religion & Domestic Relations in 17th Century New England.
Harper Perennial, 1966, p. 16.
[10] Esse tipo de trocadilho era muito comum na Inglaterra de Isabel. Mar, em inglês, significa “estragar,
desfigurar”, e prelate significa “prelado” — um título eclesiástico honorífico. [N. do T.]
[11] Prato tradicional da Escócia, feito com estômago de carneiro recheado com vísceras de carneiro,
flocos de aveia e temperos. [N. do R.]
[12] Inn, no presente contexto, refere-se a um prédio para reuniões estudantis, principalmente de alunos de
direito, em Londres, termo que caiu em desuso no inglês moderno. [N. do E.]
[13] Disponível gratuitamente com o título O caniço ferido em http://monergismo.com/wp-
content/uploads/canico-ferido_sibbes.pdf [N. do T.]
[14] M. A. Noll & Carolyn Nystrom, Is the Reformation Over? An Evangelical Assessment of
Contemporary Roman Catholicism. Baker and Paternoster, 2005, p. 12-3, 23.
[15] Noll & Nystrom, p. 232.
[16] Ibid.