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A chama inextinguível

Descobrindo o cerne da Reforma

Michael Reeves

Prefácio de Mark Dever


A Reforma versou sobre o quanto Cristo ama sua esposa.
Este livro foi escrito com tal amor à minha mulher.
Para Bethan.
Copyright @ 2009, de Michael Reeves
Publicado originalmente em inglês sob o título
The Unquenchable Flame: Introducing the Reformation
pela Inter-Varsity Press,
Norton Street, Nottingham NG73HR, Inglaterra.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


EDITORA MONERGISMO
Caixa Postal 2416
Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970
Sítio: www.editoramonergismo.com.br

a
1 edição, 2016

Tradução: Josaías Ribeiro Cardoso Júnior


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto e Rogério Portella
Capa: Filipe Schulz

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da


versão Almeida Revista e Atualizada (ARA),
salvo indicação em contrário.
Sumário
Prefácio
Prólogo: Aqui permaneço
1. A religião medieval: o contexto da Reforma
2. O vulcão de Deus: Martinho Lutero
3. Soldados, linguiças e revolução: Ulrico Zuínglio e os reformadores radicais
4. Depois das trevas, luz: João Calvino
5. Paixão em chamas: a Reforma na Grã-Bretanha
6. A reforma da Reforma: os puritanos
7. A Reforma acabou?
Linha do tempo da Reforma
Leituras adicionais
Prefácio: Corremos o risco de esquecer o motivo da vida e da
morte desses homens
Esta é uma história que precisa ser contada hoje mais uma vez. Michael Reeves
nos prestou um importante serviço ao fazê-lo.
Quinhentos anos atrás, a Igreja Católica Romana alertou os reformadores
protestantes e quem se sentia tentado a segui-los que seu movimento se dividiria
e dissolveria em incontáveis facções, se eles rejeitassem a autoridade do bispo de
Roma. Os anos de conflito viraram décadas, e as décadas iniciais, daí em diante,
avançaram em séculos de separação de Roma. Agora, com meio milênio de
evidência, pode-se dizer de modo conclusivo que as acusações romanas de
instabilidade e divisão infinita eram infundadas. Elas não aconteceram.
A autoridade da Bíblia tem sido suficiente para garantir que milhões e
milhões de protestantes creiam e partilhem o mesmo evangelho por séculos. Há
recursos para apoiar missionários em milhares de lugares diferentes. E os falsos
profetas — lobos em pele de cordeiro que Jesus nos advertiu que viriam —
podem ainda estar entre nós. Há liberais que negam a Bíblia, legalistas e
moralistas que ignoram sua mensagem, e teólogos da prosperidade que a
distorcem, mas há incontáveis milhões que leram a Palavra, compreenderam-na
e creram no evangelho. O evangelho bíblico anunciado por Jesus, ensinado a
Paulo e confessado por incontáveis mestres daí em diante — entre eles, Lutero,
Zuínglio e Calvino — ainda é ensinado ao redor do mundo por homens e
mulheres sem nenhuma ligação institucional com qualquer bispo terreno, seja de
Roma ou de outro lugar. Um missionário da Assembleia de Deus nas Filipinas,
um ministro anglicano em Sydney ou na Tanzânia, um pastor batista no Brasil,
um ministro luterano em St. Louis, um ministro presbiteriano na Escócia, um
missionário coreano em Estocolmo e um pastor interdenominacional em Dubai
podem nunca se encontrar. Talvez nunca integrem a mesma organização terrena.
Mas, de modo diferente do alerta de Roma, estão e permanecerão unidos no
evangelho de Jesus Cristo. Todos eles trabalham pelo crescimento do evangelho,
do reino, da igreja ao redor do mundo. E pregam o evangelho rejeitado
oficialmente pela Igreja Católica Romana na trágica e heroica história do
século XVI.
Embora o evangelho bíblico fosse ensinado sem dúvida antes do
século XVI (veja o fascinante estudo de Marvin Anderson, The Battle for the
Gospel [A batalha pelo evangelho] [Baker, 1978]) o conflito a seu respeito
tornou-se incontornável no início do século XVI, em uma série de
acontecimentos povoados com personagens marcantes e cenas emocionantes.
Conduzem-se estudos em lugares calmos; seus frutos, porém, podem ter
implicações trovejantes. E nenhuma implicação causou mais estrondo que a
história das descobertas feitas por um monge alemão, um humanista francês e
um sacerdote suíço, dentre centenas de outros.
A justificação só pela fé exclusiva em Cristo foi pregada bem além dos
muros de Wittenberg, Zurique e Genebra. Inglaterra, Escócia, Noruega, Suécia,
Dinamarca, muitos dos estados alemães e cantões suíços, os Países Baixos —
todos foram banhados por essa maré da Reforma. Muitos não percebem hoje que
o mesmo ocorreu em grandes porções da França, Hungria, Polônia e Itália, e
milhares de outras pequenas cidades e vilas espalhadas pela Europa. Quando os
países da Europa ocidental enviaram populações para o Caribe e a América
continental, sacerdotes católicos romanos e pregadores protestantes as
acompanharam. Assim, o conflito da Reforma adentrou o Novo Mundo também.
E ainda convivemos com ele.
Este livro se concentra nas primeiras décadas dessa notável história. Com
relatos, narrações e explicações que capturam parte dos lampejos e conflitos da
época, ele conta a história da tentativa de Reforma da igreja universal e sua
rejeição por muitas autoridades e poderosos.
Nas últimas décadas, contar a história da Reforma do ponto de vista de
Roma tem se tornado aceitável. A oposição generalizada da década de 1960,
aliada a pesquisas importantes, reais e recentes sobre o século XVI, causou a
revisão de grande parte das ortodoxias históricas aceitas sobre a situação da
igreja cristã na Europa ocidental e as práticas da piedade popular no início do
período quinhentista. John J. Scarisbricke, Christopher Haigh, Eamon Duffy,
John Bossy e muitos outros refinaram a leitura mais protestante do século XVI
como um tempo de apenas corrupção e desespero. Eles explicaram os interesses
políticos e econômicos dos regentes ao apoiar as doutrinas luteranas e rejeitar as
alegações políticas da Igreja de Roma. O Livro dos Mártires de John Foxe foi
avaliado, demitologizado e corrigido. Leituras tradicionais da Reforma feitas por
todos, de Jean-Henri M. d’Aubigné a Arthur G. Dickens foram rejeitadas. Para
muitos, a “Reforma Protestante“ foi eliminada por completo da história como
pouco mais que um panfleto piedoso, mais hagiografia que história.
A própria Igreja Católica Romana se esforçou para promover a
reaproximação com os protestantes por meio da Declaração conjunta sobre a
doutrina da justificação (1999). O autor deste livro não está satisfeito com essa
declaração. Ele diz que a definição de justificação da declaração “não tem nada
da definição de justificação da Reforma. A Declaração pode ser conjunta, mas a
desconsideração da Reforma não é”.
De apelo mais popular, na América do Norte, a declaração Evangelicals
and Catholics Together [Evangélicos e Católicos Unidos] (1994) uniu
acadêmicos ou porta-vozes proeminentes dos dois lados. E até um ministro da
Igreja Presbiteriana Ortodoxa publicou um livro pela editora fundada pelo
protestante conservador Herman Baker, sugerindo que a tarefa da Reforma
acabou. Ela está finalizada e completa, Mark Noll e Carolyn Nystrom
argumentaram no livro Is the Reformation Over? [A Reforma acabou?] (Baker,
2009).
A maré está alta para os campeões da unidade. Em nosso mundo
multicultural, parece a hora certa de reduzir todos os conflitos. E os cristãos,
com o grande desejo de unidade interna e evangelismo externo, sem dúvida,
estão na linha de frente do desejo de paz e harmonia entre todos. Ainda assim,
tais apelos não são novos. No geral, os argumentos mais eficazes contra a
verdade não são falsidades óbvias, mas os ventos cruzados de outras verdades
direcionadas e aplicadas com equívoco. Normalmente, a confusão não surge
quando se negam apelos à verdade, mas quando se tenta afogá-los com
chamados à unidade.
Nesse sentido, há pessoas que não desejam que você leia este livro. Há
quem não enxergue nenhuma conexão entre os conflitos de ontem e a missão de
hoje. Existem pessoas como Peter James Lee, bispo episcopal da Virgínia, que
declarou em 2004: “Se você precisar escolher entre a heresia e a divisão, prefira
sempre a heresia”. Esse livro conta a história das que, como o arcebispo Thomas
Cranmer, discordariam de forma absoluta. Cranmer, com os bispos Latimer e
Ridley, estudaram em Cambridge e foram queimados em Oxford pelo evangelho
que Roma declarou heresia. Estes, como os descritos em Apocalipse 12.11,
“mesmo em face da morte, não amaram a própria vida”. Carreiras foram
encerradas e vidas foram tomadas pelo fato de o próprio evangelho estar em jogo
na Reforma.
Com a habilidade do acadêmico e a arte do narrador, Michael Reeves
escreveu a melhor introdução resumida à Reforma que já li. Se você estiver
procurando um livro para ajudá-lo a entender a Reforma ou apenas começar a
estudar história da igreja, esse livro dará vida à história. Depois de ler o
manuscrito, o único livro de que pude me lembrar, comparável a este, pode ser
outro título que você pode se interessar em ler na sequência: Here I Stand: The
Life of Martin Luther [Aqui permaneço: a vida de Martinho Lutero], de Roland
Bainton (Hendrickson, 2009). Da mesma forma que Bainton, Reeves oferece ao
leitor erudição séria em prosa viva. As cenas são escolhidas com cuidado e as
controvérsias teológicas pesadas e recontadas de forma judiciosa.
As personagens e sua teologia são narradas com precisão histórica e
teológica, mesmo quando a história é contada com clareza, ousadia, humor e
seriedade envolvente. Confiante que você será instruído, e esperançoso em
relação à sua edificação, eu o convido a ler e conhecer o restante da história.

— Mark Dever
Washington, D.C.
Agosto de 2009
Prólogo: Aqui permaneço
Os clarins retumbaram quando a carruagem passou pelos portões da cidade.
Milhares se enfileiravam nas ruas para vislumbrar seu herói, e muitos mais
brandiam retratos dele de janelas e telhados. Era a tarde de quarta-feira, 16 de
abril de 1521, e Martinho Lutero adentrava a cidade de Worms.
Parecia uma entrada triunfal. No entanto, Lutero sabia aonde entradas
triunfais poderiam levar. A realidade era que ele estava chegando para ser
julgado e, como Jesus, aguardava a morte. Ao ensinar que o pecador, confiando
só em Cristo, poderia — a despeito de seus pecados — ter plena confiança
diante de Deus, ele trouxera sobre si a fúria da igreja. Seus livros já haviam sido
lançados em fogueiras, e muitas pessoas esperavam que Lutero se unisse aos
escritos em poucos dias. Ele, contudo, estava determinado a defender sua
doutrina: “Cristo vive”, ele disse, “e nós entraremos em Worms apesar de todas
as portas do inferno”.
No dia seguinte, o arauto imperial foi ao alojamento de Lutero para
escoltá-lo até o julgamento. As multidões eram tão grandes que ele foi forçado a
conduzir Lutero com discrição por alguns becos até o palácio do bispo. Ainda
assim, eles não passaram despercebidos, com muitas pessoas subindo em
telhados na avidez de observar. Às quatro da tarde, Lutero entrou no salão; pela
primeira vez, o filho de um mineiro da Saxônia, vestido em seu humilde hábito
de monge, postou-se diante de Carlos V, o sacro imperador romano, senhor da
Espanha, Áustria, Borgonha, do Sul e Norte da Itália, dos Países Baixos, e “vice-
rei de Deus na terra”. Ao ver o monge, o imperador, ferrenho defensor da igreja,
balbuciou: “Ele não vai me transformar em herege”.
Lutero não deveria falar até segunda ordem. Então, o porta-voz do
imperador, apontando para a pilha de livros de Lutero em uma mesa em frente a
ele, lhe disse que ele havia sido convocado para confirmar se reconhecia os
livros publicados em seu nome e, caso os reconhecesse, verificar se ele os
renunciaria. Com uma voz suave, que o povo se esforçou para ouvir, Lutero
admitiu serem dele os livros. Então, para a comoção de todos, pediu mais tempo
para decidir se precisava retratar-se. Ele parecia hesitar. Na verdade, Lutero
esperava lidar com pontos específicos de seu ensino; ele não esperava que lhe
pedissem para rejeitar todos os seus escritos. Era necessário refletir mais quanto
a isso. Com má vontade, deram-lhe um dia para pensar e, depois disso, Lutero
foi advertido de que deveria esperar o pior se não se arrependesse.
No dia seguinte, Lutero foi readmitido na presença do imperador às seis
da tarde. O salão estava lotado, e tochas melancólicas foram acesas, tornando o
local bastante quente. Como resultado, Lutero transpirava muito. Ao observá-lo,
todos esperavam um discurso de desculpas abjetas, com a súplica de perdão por
sua hedionda heresia. Todavia, no momento em que ele abriu a boca, tornou-se
claro que isso não ocorreria. Desta vez, ele falou em voz alta e clara. Anunciou
que não se retrataria dos ataques contra as falsas doutrinas, pois isso concederia
ainda mais poder aos destruidores do cristianismo. “Bom Deus, que tipo de
ferramenta da maldade e tirania então eu seria!”. A despeito do furioso grito de
“Não!” do imperador, Lutero prosseguiu, exigindo que, se ele estivesse errado,
fosse refutado com a Escritura e, em seguida — prometeu — Lutero seria o
primeiro a queimar seus livros.
Pela última vez, perguntaram se ele retrataria de seus erros e, então, ele
concluiu:
“Estou preso pelas Escrituras que citei e minha consciência está cativa à Palavra de Deus.
Não posso e nem vou retratar-me de nada, pois não é seguro, nem correto contrariar a
consciência. Não há nada mais que eu possa fazer. Aqui permaneço. Que Deus me ajude.
Amém”.
Isso não consistiu apenas em um discurso. Para Lutero, a Palavra de Deus o
havia libertado e salvado. Ele não contava com outra segurança. Mas, com ela,
dispunha de coragem para permanecer firme quando o porta-voz do imperador
respondeu fulminando-o pela arrogância de crer ser o único conhecedor da
verdade. De fato, naquele momento parecia que Lutero se levantava contra o
mundo todo.
Dois soldados acompanharam Lutero pelo salão em meio a gritos de
“Mande-o para a fogueira!”. Uma multidão o seguiu até seu alojamento. Ao
chegar lá, ele ergueu as mãos, sorriu e gritou: “Eu sobrevivi! Eu sobrevivi!”;
então, voltando-se para um amigo, afirmou: mesmo que tivesse mil cabeças,
preferia vê-las todas decepadas a abandonar o evangelho.
De volta ao salão, o imperador declarou que o monge oposto a toda a
cristandade tinha de estar errado e, portanto, ele determinara “apostar nessa
causa meus reinos e feudos, meus amigos, meu corpo e sangue, minha vida e
alma”. Os limites foram traçados. A Reforma havia começado. E, naquela tarde,
Lutero fez mais do que escrever uma página da história; ele lançou um desafio
para cada geração.
1. A religião medieval: o contexto da Reforma
Quando o século XV acabou e o século XVI teve início, o velho mundo parecia
desaparecer às mãos do novo: o poderoso Império Bizantino, o remanescente da
Roma imperial, entrou em colapso. Colombo descobriu o novo mundo nas
Américas, Copérnico virou o universo de cabeça para baixo com o
heliocentrismo, e Lutero deu nova forma ao cristianismo (em sentido literal).
Todos os antigos fundamentos, outrora de aparência tão sólida e indubitável
agora se desfaziam nessa tempestade de mudanças, abrindo caminho para a nova
era em que as coisas seriam muito diferentes.
Hoje, olhando para trás, parece quase impossível ter a mínima noção de
como deve ter sido essa época. “Medieval” — a própria palavra invoca imagens
góticas e sombrias de monges cantando — enlouquecidos pelo claustro — e
camponeses supersticiosos em revolta. Tudo muito estranho. Em especial aos
olhos da modernidade: somos igualitaristas democráticos da cabeça aos pés, eles
viam tudo em sentido hierárquico; nossa vida gira em torno de alimentar,
amamentar e fartar o ego, eles buscavam abolir e rebaixar o ego (ou, pelo menos,
admiravam quem assim procedia). A lista de diferenças poderia prosseguir.
Ainda assim, esse foi o cenário da Reforma, o contexto em que as pessoas eram
tão apaixonadas pela teologia. A Reforma foi uma revolução, e revoluções não
lutam só a favor de algo, elas também lutam contra alguma coisa — nesse caso,
o velho mundo do catolicismo romano medieval. Assim, como era ser um cristão
nos séculos anteriores à Reforma?

Papas, padres e purgatório


Como se pode prever, todas as estradas do catolicismo romano medieval
levavam a Roma. Era opinião comum que o apóstolo Pedro, a quem Jesus disse:
“Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” [Mt 16.18], fora
martirizado e enterrado ali, permitindo a edificação da igreja, de forma bastante
literal, sobre ele. Assim, pelo fato de o Império Romano considerar Roma sua
mãe e César seu pai, o império cristão da igreja procedia agora da mesma forma:
Roma permanecia sua mãe e o sucessor de Pedro o pai ou “papa”. Havia uma
exceção bastante embaraçosa em relação a essa afirmação: a Igreja Ortodoxa
Grega, separada da Igreja de Roma desde o século XI. Mas, toda família tem
uma ovelha negra. Fora isso, todos os cristãos reconheciam em Roma e no papa
os pais insubstituíveis. Sem o papa (pai) não existiria igreja; sem a mãe igreja,
não haveria salvação.
O papa era considerado o “vicário” (representante) de Cristo na terra e,
desse modo, ele era o canal por meio de quem toda a graça divina fluía. Ele
detinha o poder de ordenar bispos que, por sua vez, poderiam ordenar
sacerdotes; e, juntos, os membros do clero eram os únicos detentores de
autoridade para abrir as torneiras da graça. Essas torneiras consistiam nos sete
sacramentos: batismo, crisma, missa, penitência, matrimônio, ordem e extrema-
unção (hoje designada “unção dos enfermos”). Às vezes, eles eram chamados as
sete artérias do corpo de Cristo, através dos quais se bombeava a corrente
sanguínea da graça de Deus. A ideia era que tudo isso parece bastante
automático, pois o povo comum, considerado ignorante e iletrado, era
considerado incapaz de expressar a fé de forma explícita. Assim, ainda que a “fé
explícita” fosse considerada desejável, a “fé implícita”, em que a pessoa vem à
igreja e recebe os sacramentos, era tida como algo aceitável. Estando o povo sob
as torneiras, recebia-se a graça.
As pessoas eram recebidas na igreja para provar da graça de Deus por
meio do batismo (em geral quando bebês). Na verdade, a missa era a parte
central do sistema todo. Isso seria óbvio no momento em que se entrava na igreja
local: toda a arquitetura conduzia ao altar em que se celebrava a missa. E seu
nome era altar por um bom motivo: na missa, o corpo de Cristo era sacrificado
de novo para Deus. Por meio desse sacrifício “sem sangue” oferecido todos os
dias, repetindo o sacrifício “com sangue” de Cristo na cruz, se apaziguava a ira
divina contra o pecado. Todo dia Jesus era oferecido de novo a Deus como
sacrifício pela expiação. Assim eram tratados os pecados diários.
No entanto, não é óbvio que faltava alguma coisa nesse sacrifício? O
corpo de Cristo não estava de fato sobre o altar, e o sacerdote manipulava apenas
pão e vinho. Essa era a engenhosidade da doutrina da transubstanciação. De
acordo com Aristóteles, cada coisa dispõe da própria “substância” (realidade
interna) e “acidentes” (aparência). A “substância” de uma cadeira, por exemplo,
é a madeira, e seus “acidentes” seriam a sujeira e a cor marrom. Pinte a cadeira e
os “acidentes” mudam. A transubstanciação concebia o oposto: na missa, a
“substância” do pão e do vinho era transformada no corpo e sangue literais de
Jesus, enquanto permaneciam os “acidentes” do pão e do vinho. Tudo pode
parecer um pouco rebuscado, mas havia relatos suficientes para persuadir os
duvidosos, histórias de pessoas recebendo visões de sangue real no cálice, carne
real na pátena e por aí vai.
O momento da transformação acontecia quando o sacerdote pronunciava
as palavras de Cristo em latim, Hoc est corpus meum (“Este é meu corpo”).
Então, tocavam-se os sinos da igreja e o sacerdote erguia o pão. Era normal o
povo conseguir comer o pão só uma vez por ano (e jamais bebiam do cálice —
afinal, e se um camponês desajeitado derramasse o sangue de Cristo no chão?),
mas a graça os alcançava apenas na contemplação do pão elevado. Era
compreensível que os mais devotos corressem com fervor de igreja em igreja
para assistir a mais missas e, assim, receber mais graça.
A missa era celebrada em latim. O povo, claro, não entendia uma palavra.
O problema era que muitos membros do clero, achavam mais rápido memorizar
as falas que aprender uma nova língua, que também não compreendiam. Assim,
quando os paroquianos ouviam “hocus pocus” em vez de Hoc est corpus meum,
quem estava errado? Mesmo os sacerdotes eram conhecidos por suavizar suas
falas. E com pouco entendimento do que se dizia, era difícil para os paroquianos
comuns distinguir a ortodoxia católica romana de magia e superstição. Para eles,
o pão consagrado tornou-se um talismã do poder divino que poderia ser
carregado por aí para impedir acidentes, dado a animais doentes como remédio
ou plantado para encorajar a boa colheita. Por muito tempo, a igreja foi leniente
em relação ao cristianismo semipagão do povo, mas isso testemunha o quanto a
missa era estimada — a ponto de a igreja decidir agir contra esses abusos: em
1215, o Quarto Concílio Laterano ordenou que o pão e o vinho transformados
“deveriam ser mantidos trancados em um lugar seguro em todas as igrejas, para
que nenhuma mão audaciosa possa pegá-los para fazer algo horrível ou ímpio”.
A base de todo o sistema do catolicismo romano medieval e de sua
mentalidade era o entendimento da salvação que remontava a Agostinho (354-
430 d.C.) — a teologia do amor de Agostinho, para ser mais preciso. (Que ironia
essa teologia do amor inspirar tamanho medo!) Agostinho ensinou que existimos
para amar a Deus. Entretanto, não podemos amá-lo por natureza, mas devemos
pedir que Deus nos ajude. Ele o faz ao nos “justificar”, o ato, segundo
Agostinho, em que Deus verte seu amor em nosso coração (Rm 5.5). Esse é o
efeito da graça canalizada por Deus nos sacramentos (segundo essa crença): ao
nos tornar cada vez mais amorosos, cada vez mais justos, Deus nos “justifica”. A
graça divina, nesse modelo, era o combustível para a pessoa se tornar melhor,
mais justa, reta e amorosa. Esse era o tipo de pessoa que, por fim, merecia a
salvação, de acordo com Agostinho. Isso era o que Agostinho queria dizer
quando falava de salvação pela graça.
Falar de Deus verter sua graça para que tenhamos amor e mereçamos a
salvação pode ter soado amável nos lábios de Agostinho; mas, com o passar dos
séculos, esses pensamentos ganharam um matiz mais sombrio. Ninguém tinha
essa intenção. Ao contrário: a atuação da graça divina ainda era descrita de
formas atraentes e otimistas. “Deus não negará graça a quem faz o melhor” era o
alegre lema nos lábios dos teólogos medievais. Contudo, como seria possível
certificar-se de ter feito de fato seu melhor? Como alguém poderia afirmar ter se
tornado o tipo de pessoa merecedora da salvação?
Em 1215, o Quarto Concílio Laterano apareceu com o que foi
considerado um auxílio para todos os que buscavam ser “justificados”: ele exigia
que todos os cristãos (sob pena de condenação eterna) confessassem seus
pecados aos sacerdotes com regularidade. Ali, a consciência poderia ser
examinada por pecados e pensamentos maus para que a impiedade pudesse ser
extirpada e o cristão se tornasse mais justo. O efeito do exercício, entretanto,
estava longe de trazer segurança a quem o levava a sério. Usando uma longa
lista oficial, o sacerdote faria perguntas como: “Suas orações, esmolas e
atividades religiosas são feitas mais para esconder seus pecados e impressionar
os outros que agradar a Deus?”; “Você tem parentes, amigos ou outras criaturas
mais amadas que Deus?”; “Você murmurou contra Deus por conta de tempo
ruim, doença, pobreza, morte de um filho ou amigo?”. No final, ficava bem claro
que ninguém era justo e amoroso, apenas uma massa de desejos sombrios.
O efeito era muito perturbador, como se pode observar na autobiografia
quatrocentista de Margery Kempe, uma mulher de Norfolk, País de Gales. Ela
descreveu como deixou uma confissão tão aterrorizada da condenação que uma
pecadora como ela sem dúvida merecia que começou a enxergar demônios a seu
redor, apalpando-a, fazendo com que ela se mordesse e arranhasse. Para a mente
moderna, é tentador atribuir essa condição, de imediato, a alguma forma de
instabilidade mental. Entretanto, a própria Margery deixa muito claro que seu
colapso emocional se devia apenas ao fato de levar a teologia vigente a sério. Ela
sabia por meio da confissão que não era justa o bastante para merecer a salvação.
É patente que a doutrina oficial da igreja deixava muito claro o fato de
ninguém morrer justo o suficiente para merecer a salvação por completo. Porém,
não havia motivo para alarme, pois também existia o purgatório. A não ser que
os cristãos morressem sem se arrepender de um pecado mortal — como o
assassinato (nesse caso as pessoas iriam para o inferno) —, eles teriam a chance
de ter todos os seus pecados lentamente purgados após a morte até a entrada no
céu purificados em sua totalidade. Por volta do final do século XV, Catarina de
Gênova escreveu o Tratado do Purgatório, em que descrevia o lugar em termos
radiantes. Lá, ela explicava, as almas saboreavam e aceitavam seus castigos por
causa do desejo de serem purgadas e purificadas por Deus. Almas mais
mundanas que a de Catarina, contudo, tendiam a ser menos otimistas quanto à
perspectiva de milhares ou milhões de anos de castigo. Em vez de se alegrar com
essa expectativa, muitos buscavam acelerar a rota pelo purgatório, para si e para
seus amados. Como as orações, as missas poderiam ser rezadas a favor das
almas no purgatório, e a graça da missa poderia ser aplicada de modo direto à
alma falecida e atormentada. Toda uma indústria do purgatório evoluiu por esse
exato motivo: os ricos estabeleciam capelas com sacerdotes dedicados a fazer
orações e missas a favor da alma do patrocinador ou de seus beneficiários
afortunados; os menos prósperos se associavam a fraternidades para pagar pelo
mesmo serviço.

Roberto Grosseteste (1168-1253)

É claro que nem todos estavam preparados para aceitar a versão oficial
sem questionamento. Para citar apenas um exemplo, Roberto
Grosseteste, que se tornou bispo de Lincoln, Inglaterra, em 1235,
acreditava que o clero deveria pregar a Bíblia em primeiro lugar, não
oferecer a missa. Ele mesmo, de forma bastante incomum, pregava em
inglês, não em latim, para ser compreendido pelo povo. E entrou em
conflito com o papa várias vezes (quando, por exemplo, um sacerdote
que não falava inglês, foi nomeado para sua diocese), chegando ao ponto
de chamar o papa de “anticristo que seria condenado por seu pecado”.
Poucos poderiam escapar usando essa linguagem, mas Grosseteste era
muito famoso, não apenas pela santidade pessoal, mas como acadêmico,
cientista e linguista, que o papa se viu incapaz de silenciá-lo.

Outro aspecto do catolicismo romano medieval impossível de ignorar era


o culto aos santos. A Europa estava repleta de santuários dedicados a vários
santos, e eles eram importantes, não apenas em sentido espiritual, mas
econômico. Com um bom número de relíquias do santo padroeiro, um santuário
poderia garantir o fluxo constante de peregrinos, tornando todos vencedores: de
peregrinos a publicanos. Como em outros aspectos, o que parecia alimentar esse
culto era o fato de Cristo ter se tornado uma figura cada vez mais assustadora na
mente do público ao longo da Idade Média. O Cristo ressurreto e assunto era
visto como o Juiz do juízo final, completamente terrível em sua santidade. Como
aproximar-se dele? Sem dúvida, ele ouviria sua mãe. Assim, quando Cristo
retornou ao céu, Maria se tornou a mediadora por meio de quem as pessoas
poderiam se aproximar dele. Porém, tendo tamanha glória concedida a ela,
Maria, por sua vez, tornou-se a inacessível e flamejante rainha do céu. Usando a
mesma lógica, o povo começou a apelar para sua mãe, Ana, a fim de interceder
junto a ela. E, assim, o culto a santa Ana cresceu, atraindo a fervorosa devoção
de muitos, incluindo-se uma desconhecida família alemã, os Luteros. E não se
contava apenas com santa Ana — o céu estava abarrotado de santos, todos
mediadores muito convenientes entre o pecador e o Juiz. E a terra parecia cheia
de suas relíquias, objetos que poderiam transmitir parte de sua graça e mérito.
Como é evidente, questionava-se a autenticidade de algumas dessas relíquias:
uma piada corrente afirmava existirem tantos “pedaços da verdadeira cruz”
espalhados pelo mundo cristão que a originária seria grande demais para um
homem carregá-la. Ora, Cristo era onipotente.
A versão oficial era que Maria e os santos deveriam ser venerados, não
adorados; mas, no dia a dia, essa era uma distinção sutil demais para pessoas que
não estavam sendo ensinadas. Com muita frequência, o exército de santos era
tratado como um panteão, e suas relíquias como talismãs de poder mágico.
Assim, como poderiam os ignorantes aprender as complexidades desse sistema
de teologia e, assim, evitar o pecado da idolatria? A resposta padrão era que,
mesmo nas igrejas mais pobres, eles estavam rodeados de figuras e imagens de
santos e da virgem Maria, em vitrais, em estátuas, em afrescos: eles consistiam
na “a Bíblia dos pobres”, os “livros dos analfabetos”. Na falta de palavras, as
pessoas aprendiam com as imagens. Deve-se dizer, entretanto, que o argumento
é um pouco superficial: a estátua da virgem Maria não consegue ensinar a
distinção entre veneração e adoração. O próprio fato de os serviços religiosos
serem em latim, língua desconhecida do povo, demonstrava que a instrução não
era mesmo uma prioridade. Alguns teólogos tentaram escapar disso
argumentando que o latim, como língua sacra, era tão poderoso que poderia
afetar até quem não o entendesse. Isso parece bastante improvável. Ao contrário,
a verdade era que o povo não precisava entender para receber a graça divina.
Bastava a “fé implícita” ainda informe. De fato, considerando-se a ausência de
instrução, não poderia ser de outra forma.

Dinâmico ou doente?
Se você já teve o azar de se encontrar em uma sala repleta de historiadores da
Reforma, o que parece causar grande comoção é perguntar em voz alta: “O
cristianismo à véspera da Reforma era vigoroso ou corrupto?”. Essa pergunta
garante o início de uma acalorada discussão. Há alguns anos, isso não provocaria
nenhum murmúrio; todos pareceriam concordar que, antes da Reforma, os povos
europeus gemiam por mudanças, odiando o jugo opressor da Igreja Romana
corrupta. Agora, nem todos têm a mesma opinião.
Pesquisas históricas, em especial a partir da década de 1980, têm
mostrado além de qualquer dúvida que, na geração anterior à Reforma, a religião
se tornara mais popular que nunca. Com certeza, as pessoas tinham suas queixas,
mas a grande maioria participava dela com gosto. Havia mais missas pagas a
favor dos mortos, mais igrejas construídas, mais estátuas de santos erigidas e
mais peregrinações que nunca. Livros de devoção e espiritualidade — tão
confusos quanto os de hoje — eram muito populares entre quem podia ler.
O zelo religioso do povo sugeria a ânsia por reforma. Por todo o século
XIV, ordens monásticas se reformavam, e mesmo o papado passou por algumas
tentativas fragmentadas de reforma. Todos concordavam com a existência de
alguns galhos mortos e umas maçãs podres na árvore da igreja. Todos riram
quando o poeta Dante colocou os papas Nicolau III e Bonifácio VIII no oitavo
círculo do inferno em sua Divina comédia. Sem dúvida, papas velhos e
sacerdotes corruptos bebiam muito antes da missa. Mas, o próprio fato de as
pessoas poderem rir mostra quão sólida e segura a igreja parecia — ela poderia
aguentar. E o fato de quererem cortar os galhos mortos só mostrava o quanto
amavam a árvore. Esses desejos de reforma não supunham a existência de uma
podridão fatal no tronco da árvore. Afinal, desejar papas melhores é algo muito
diferente de não os querer; idealizar sacerdotes e missas melhores é muito
distinto de preferir missas e sacerdócio separado. Dante também mostrou isso:
ele não só puniu os papas maus em seu inferno, como também dispensou a
vingança divina sobre os opositores dos papas, pois os papas, bons ou maus,
eram vigários de Cristo. Às vésperas da Reforma, muitos cristãos agiam assim:
devotados e dedicados ao aperfeiçoamento, não à derrubada de sua religião. Não
se tratava de uma sociedade à procura de mudanças radicais, apenas da limpeza
de abusos reconhecidos.
E então? Vigoroso ou corrupto? É uma falsa antítese. Sem dúvida, o
cristianismo anterior à Reforma era popular e animado, mas isso não fazia dele
saudável ou bíblico. Na verdade, se todas as pessoas estivessem famintas do tipo
de mudança trazida pela Reforma, isso sugeriria que a Reforma teria consistido
em um pouco mais que um movimento social natural, uma faxina moral. Isso os
reformadores sempre negaram. Não, esse movimento não representou uma
reforma moral popular; ele compreendeu um desafio ao próprio coração do
cristianismo. Os reformadores afirmaram que a Palavra de Deus estava
irrompendo para mudar o mundo; isso foi inesperado e algo contra a corrente;
não era obra humana, mas uma granada divina.
Presságios do apocalipse
A Reforma pode ter sido inesperada, a maioria das pessoas se contentaria com
uma reforma em escala menor, mas, ainda assim, no ensolarado céu medieval,
negras nuvens começavam a se formar. No início, elas não passavam do tamanho
da mão de um homem. Ninguém sabia, mas elas representavam sinais de que os
céus estavam prestes a cair sobre o catolicismo romano medieval.
A primeira dela formou-se logo sobre Roma. Em 1305, o arcebispo de
Bordeaux foi eleito papa. Entretanto, por vários motivos, ele não estava
interessado em mudar-se para Roma, como se esperava dos papas. Em vez disso,
ele fez de Avignon, no sul da França, o novo quartel-general papal. O rei da
França ficou muito satisfeito: seria muito mais fácil de lidar com um papa
francês em terreno francês. Assim, ninguém ficou muito surpreso quando o papa
eleito a seguir também era francês e escolheu permanecer em Avignon. E as
coisas continuaram desse jeito com os próximos papas. Fora da França, as
pessoas estavam menos empolgadas. Elas chamavam esse episódio de “cativeiro
babilônico da igreja”. O papa deveria ser o bispo de Roma, a igreja principal;
mas, esses homens em Avignon eram de fato bispos de Roma? Desse modo, a
cristandade começou a perder a confiança no papado.
Depois de setenta anos, o povo de Roma estava cansado; afinal, a corte
papal era a maior fonte de dignidade (e lucro) da cidade. Assim, em 1378,
quando o Colégio de Cardeais se reuniu em Roma para eleger o papa seguinte,
uma multidão os cercou, exigindo a eleição de um papa apropriado, italiano e, de
preferência, romano. É compreensível que os cardeais aterrorizados tenham
cedido às exigências da multidão. Contudo, eles logo começariam a se
arrepender da decisão quando perceberam quão dominador e agressivo era o
novo papa. Muitos começaram a cogitar a invalidade da eleição ocorrida sob
ameaças. Portanto, um novo papa foi eleito, um francês. Infelizmente, o primeiro
indicado, ainda em perfeita saúde, recusou-se a renunciar; assim, agora havia
dois papas, e, como era esperado, eles excomungaram um ao outro. Na prática,
com dois santos padres, isso implicava na existência de duas igrejas mães.
Toda a Europa dividia sua lealdade. A França, claro, apoiava o papa
francês; então, como reflexo, a Inglaterra apoiou o outro, e assim por diante. A
situação ficou insustentável, e um concílio foi convocado para resolver o
problema. A solução consistiu na destituição dos papas existentes e na eleição de
um novo. Entretanto, nenhum dos papas destituídos cederia com tanta facilidade.
Assim, havia agora três deles. O episódio chamado “Grande Cisma” só chegou
ao fim com um concílio mais robusto, o Concílio de Constança, reunido entre
1414 e 1418. Esse concílio conseguiu fazer dois dos papas concordarem em
renunciar, e o terceiro papa em Avignon, que se recusou, foi declarado deposto.
No lugar dele, um novo papa foi eleito e, com exceção de uns poucos apoiadores
remanescentes do papa de Avignon, todos aceitaram o novo. O cisma terminou,
mas ele criou uma crise de autoridade: onde estava a autoridade suprema da
igreja? Em Avignon ou Roma? E, como o concílio estabeleceu qual papa era o
papa, o concílio detinha autoridade superior à do papa? A crise de autoridade
duraria muito tempo após o fim do cisma, pois, embora o Concílio de Constança
tivesse declarado que um concílio detinha autoridade superior à do papa, os
papas lutaram com unhas e dentes contra a ideia. Com tantos concorrentes
competindo, como o cristão comum poderia saber a vontade de Deus?
Enquanto isso, com papas por todo canto, a cidade de Roma começara a
entrar em decadência. Era mais do que vergonhoso, pois, se Roma fosse a
gloriosa mãe em quem toda a cristandade depositava a esperança, ela não
poderia ser uma ruína. De fato, para recuperar seu prestígio, ela precisava tornar-
se mais gloriosa que nunca. Toda a Europa deveria se encantar. Assim, no século
seguinte, os papas renascentistas atraíram muitos astros para sua órbita: Fra
Angelico, Benozzo Gozzoli e Bernardino di Betti (Pinturicchio) estavam todos
empregados; Rafael Sanzio recebeu a missão de decorar os apartamentos
pessoais do papa no Vaticano; Michelangelo Buonarroti deveria adornar a capela
Sistina; Donato Bramante reconstruir a basílica de São Pedro. Pode ter sido
glorioso, mas também era terrivelmente caro. Era necessário obter recursos onde
fosse possível, e as pessoas começaram a reclamar de papas que pareciam mais
interessados no dinheiro delas que em sua alma, e pela arte que parecia mais
pagã que cristã. A reconstrução da basílica de São Pedro, em especial, custaria
mais caro a Roma que o pior pesadelo do papa, pois ela despertaria a ira de
Martinho Lutero.
Também surgiu um ar de corrupção em torno do local que, junto com a
extravagância, fazia de Roma a Las Vegas de sua época — em especial, sob os
Bórgias. Em 1492, Rodrigo Bórgia deu o passo simples, porém efetivo, de
comprar os votos necessários para ser eleito papa, Alexandre VI. Foi o começo
apropriado do papado capaz de fazer um cardeal ruborizar-se. Ele gerou vários
filhos com suas amantes, e havia o rumor de que tivera mais um com Lucrécia,
sua filha festeira, famigerada pelo anel usado para envenenar. Além disso,
Alexandre VI tornou-se conhecido pelo hábito de organizar orgias no Vaticano e
envenenar seus cardeais. Isso não abriu um bom precedente para o ofício de
“santo padre”: seu sucessor, o amante da guerra Júlio II, também era “papa” em
mais de um sentido, e seu sucessor, Leão X, era agnóstico (ordenado aos sete
anos, ninguém pensou em perguntar sobre sua crença). Evidentemente, o papado
teve pontos baixos antes, mas, em meio à crise de autoridade eclesiástica, era
uma péssima hora para perder a respeitabilidade.

Estrelas da manhã da Reforma


A segunda nuvem no outrora claro céu medieval começou a se formar no norte
da Inglaterra, sobre Yorkshire. Ela foi causada pelo nascimento, por volta de
1320, de John Wycliffe. Ele foi ordenado sacerdote e mudou-se para Oxford,
onde suas opiniões teológicas lhe tornaram a figura mais controversa da
Universidade, e suas conexões com a família real o tornaram influente. Por
quase toda a vida de Wycliffe, os papas residiram em Avignon e, assim, ele
cresceu em uma atmosfera em que a autoridade religiosa era questionada de
forma constante. Com a posse de dois papas em 1378, Wycliffe começou a
identificar publicamente a Bíblia, e não o papa, como a suprema fonte de
autoridade espiritual. O papado, ele argumentava, era apenas uma invenção
humana, enquanto a Bíblia, detentora de autoridade, determinava a validade de
todas as crenças e práticas religiosas. Com base nisso, ele rejeitava a doutrina
extremamente filosófica da transubstanciação.
Em poucos anos, esse discurso deixou Oxford — e todo o país —
fervilhando. Wycliffe foi obrigado a aposentar-se, o que ele fez na desconhecida
paróquia de Lutterworth em Leicestershire, onde viveu pelos últimos anos de sua
vida como pároco. No entanto, não ficou ocioso nesse período: escreveu tratados
populares explicando seus pontos de vista, comissionou pregadores e organizou
uma tradução da Vulgata (versão latina da Bíblia) para o inglês. Felizmente para
Wycliffe, ele morreu em 1384, antes de o Concílio de Constança condená-lo por
heresia (depois disso, seus restos mortais foram exumados, queimados e
espalhados). Ainda assim, seu legado foi grande. Com a Bíblia em inglês em
suas mãos, seus seguidores na Inglaterra dedicaram-se à prática ilegal de ler a
Bíblia em grupo e em segredo. Foi provavelmente por isso que eles ficaram
conhecidos como “lollardos”, um termo que provavelmente significava “aquele
que sussurra”, em referência ao hábito de ler a Bíblia em segredo. Eles
consistiriam uma audiência muito receptiva para a Reforma que chegaria um
século depois.

Indulgências
No catolicismo romano medieval, quando um pecador queria confessar a
um sacerdote, este exigia a realização de muitos atos de penitência. Todo
pecado sem penitência nesta vida sofreria consequências no purgatório.
A boa notícia consistia na vida de santos tão bons que eles não só
obtiveram méritos bastantes para entrar direto no céu, evitando o
purgatório, como também obtiveram mais mérito que o necessário para
entrar no céu. Esse excesso de mérito da parte deles era guardado, por
assim dizer, no tesouro da igreja, do qual apenas o papa detinha as
chaves. O papa poderia, assim, conceder uma dádiva de mérito
(indulgência) para qualquer alma que considerasse digna, acelerando sua
jornada pelo purgatório, ou até mesmo pulando todo o purgatório (com a
indulgência “plena” ou “plenária”). No início, as indulgências plenárias
foram oferecidas aos participantes da Primeira Cruzada, mas logo
doações em dinheiro foram consideradas atos penitenciais suficientes
para merecer a indulgência. Tornava-se cada vez mais claro na mente das
pessoas: um pouco de dinheiro poderia assegurar bênção espiritual.

Talvez, para o legado de Wycliffe, os alunos visitantes de Oxford que


levaram consigo os ensinos dele ao retornar à Boêmia (na atual República
Tcheca) tenham sido mais importantes que os lollardos. Ali, as ideias de
Wycliffe foram recebidas com entusiasmo por muitos, incluindo-se o reitor da
Universidade de Praga, João Hus. Sem dúvida, Hus não tinha a mente perspicaz
de Wycliffe, mas ele se tornou importante ao desempenhar o papel de guardião
de Wycliffe. Quando ocorreram tentativas de erradicar os ensinos de Wycliffe da
Boêmia, Hus o defendeu, e tornou-se cada vez mais claro em suas críticas à
igreja, a ponto de ter negado em público o poder dos papas de editar
indulgências e expressar dúvidas sobre a existência do purgatório.
Hus foi excomungado e convocado ao Concílio de Constança para
defender suas opiniões. Previsivelmente, ele se encontrava muito relutante
quanto ao risco de ser queimado como herege ao se lançar com tanta facilidade
na cova dos leões; contudo, foi-lhe dada a garantia de salvo-conduto e, assim, ele
prosseguiu. A garantia nada valia; ele foi preso de imediato e, depois de seis
meses na prisão e de um julgamento falso em que ele se recusou a renunciar às
suas opiniões, João Hus foi condenado à morte por heresia em 1415.
Sua morte deu início à revolta armada de seus seguidores na Boêmia,
onde ele se tornara um herói nacional. A partir de 1420, uma série de cruzadas
foi lançada contra o que a Europa católica considerava os “hussitas heréticos”,
estes surpreendentemente venceram, permitindo-lhes assim estabelecer uma
igreja independente e hussita no coração da Europa católica. Ali, livres do
controle papal, os pregadores hussitas receberam permissão para anunciar a
Palavra de Deus com liberdade, e recebiam o pão e o vinho na comunhão, em
lugar da missa católica. Além de deixar esse considerável espinho na carne de
Roma, afirma-se que, pouco antes de morrer, Hus pronunciou estas palavras:
“Vocês queimam esse ganso hoje [“Hus” significa “ganso” em tcheco] mas, em
cem anos, surgirá um cisne cujo canto não poderão silenciar”. Quase um século
mais tarde, Martinho Lutero soltou a doutrina da justificação só pela fé pelo
mundo. Grande admirador de Hus, Lutero cria ser o cisne prometido; após sua
morte, as igrejas luteranas passariam a usar cisnes como grimpas e o reformador
seria representado com um cisne. Lê-se na base da grande estátua de Hus em
Praga: “Grande é a verdade, e ela prevalece”; sem dúvida, Hus e sua mensagem
tinham um futuro.

Livros, perigosos livros


A outra nuvem importante no céu formou-se sobre Avignon. Talvez não seja
surpreendente, mas essa nuvem parecia a mais inocente de todas, e mantinha
pouca relação com os papas locais. Ela se formou por causa de um jovem que
crescia ali com o nome de Petrarca. Francesco Petrarca cresceu não só para ser
um poeta, mas para tornar-se o maior estudante de literatura clássica de seu
tempo. Por volta do ano 1330, ele passou a acreditar que a história consistia de
dois períodos: a gloriosa era clássica da civilização e cultura, e o que ele chamou
“Idade das Trevas” de ignorância e barbarismo, iniciada pela queda da Roma
Imperial, no século V, e que continuava até seus dias. No entanto, Petrarca
também sonhava com a terceira e futura era (que, presumivelmente, seria trazida
pela compra dos livros de Petrarca) em que a civilização clássica renasceria.
Estimulado pela perspectiva do renascimento (ou “renascença”) da
cultura clássica, os seguidores de Petrarca, que passaram a ser conhecidos como
“humanistas”, acreditavam ser capazes de acabar com a Idade “Média” ou “das
trevas” em seus dias. “Ad fontes!” (De volta às fontes!) era seu grito de guerra
quando sitiavam a ignorância de seus dias com as belas armas da cultura e
literatura clássicas. Uma pena para a Roma papal, pois foi nas trevas da Idade
Média que ela crescera, e a luz da nova erudição não seria gentil com ela.
O principal pilar do poder eclesiástico era a Doação de Constantino, que
pretendia ser uma carta do século IV do imperador romano Constantino ao papa,
explicando que ao transferir a capital de Roma para Constantinopla (agora
Istambul), doava ao papa o senhorio sobre a metade ocidental do Império
Romano. Com base nisso os papas medievais afirmaram sua autoridade política
sobre a Europa. Os papas eram superiores aos reis. Entretanto, quando um
acadêmico humanista chamado Lorenzo Valla examinou o documento, sua
perícia humanista em latim permitiu perceber que a carta tinha sido, na verdade,
escrita usando latim e terminologia do século VIII, não IV. Era uma falsificação.
Ao publicar suas descobertas em 1440, ele não apenas puxou o tapete de uma
das principais alegações papais, mas lançou dúvida sobre todas as alegações do
papa. Afinal, que outras crenças tradicionais poderiam ser forjadas?
O maior legado de Valla, entretanto, consistiu na Collatio Novi
Testamenti [Anotações do Novo Testamento], uma coletânea de notas não
publicadas em sua vida. Nelas, ele usou o conhecimento de grego para mostrar a
existência de erros na tradução oficial latina, a Vulgata, usada pela igreja. Valla
não viveu para ver os efeitos que seus pensamentos teriam. Entretanto, o maior
acadêmico humanista da geração seguinte, Erasmo de Roterdã, descobriu,
publicou e utilizou as Anotações de Valla para produzir o livro que seria usado
como a maior arma contra o catolicismo romano medieval.
Em 1516, Erasmo voltou às fontes e publicou uma edição grega do Novo
Testamento acompanhada não da tradução latina oficial, mas de sua tradução
particular. Ao fazê-lo, Erasmo esperava que a atenção maior à Bíblia produzisse
alguma reforma moral saudável na igreja. Porém, ele nunca pensou que isso
causaria danos a Roma. Ele até dedicou a publicação ao papa, que lhe enviou
uma carta de gratidão e uma recomendação. Um pouco cedo demais, parece.
Pois, quando o Novo Testamento de Erasmo diferia da Vulgata oficial, poderia
haver implicações teológicas. Em Mateus 4.17, por exemplo, Jesus dizia na
Vulgata: “fazei penitência”; Erasmo traduziu como “sede penitentes” e, mais
tarde, “arrependei-vos”. Se Erasmo estava correto, então Jesus não incentivava o
sacramento externo da penitência como Roma ensinava, ele mencionava a
necessidade interna dos pecadores de mudar a mente e afastar-se do pecado. E se
Roma não lia a Bíblia com correção nesse versículo, o que mais ela poderia
entender errado, e que tipo de autoridade espiritual ela era? O Novo Testamento
de Erasmo mostrava-se uma bomba-relógio.
Ao mesmo tempo em que sua erudição desafiava o status quo, os
humanistas, novamente seguindo Petrarca, tendiam a ser bastante críticos dos
teólogos de sua época. Para os humanistas, os teólogos pareciam interessar-se
apenas pelas perguntas mais obscuras e irrelevantes, como: “Quantos anjos
podem dançar na cabeça de um alfinete?”, ou: “Deus poderia tornar-se um
pepino em vez de homem?”. Para os humanistas, o teólogo característico desse
pensamento “sutil”, Duns Scotus, tornou-se o modelo de estupidez, e quem o
seguisse era ridicularizado como “Dunce” (estúpido), como ele.
Os teólogos não estavam sozinhos como alvos da sátira humanista. Um
ano depois da morte do papa Júlio II, em 1513, uma pequena peça chamada
Iulius exclusus e coelis [Júlio excluído do céu] começou a circular. Erasmo
nunca admitiu sua autoria (teria sido uma admissão muito tola), mas o fato de
termos uma cópia dela com a letra dele sugere o que todo o mundo suspeitava.
Nela, Júlio chega aos portões do céu totalmente vestido de sua armadura, como
de costume, e exibindo sua conhecida barba, a qual ele tinha deixado crescer
como um juramento de vingança contra seus muitos inimigos. Sabendo que
poderia encontrar resistência, ele trouxera (mais uma vez, como de costume) um
considerável guarda-costas que poderia arrombar os portões se necessário.
Então, o porteiro Pedro faz Júlio parecer bastante tolo e superficial, depois do
que a peça chega ao que seu título tornara uma conclusão bastante previsível. No
final, contudo, o que importava não era tanto que os humanistas pudessem rir às
custas da igreja e de seus teólogos, mas o que as piadas deixavam claro: que,
com o humanismo, uma abordagem diferente da verdade passou a desafiar a
autoridade da igreja. Seria possível que os acadêmicos soubessem mais que o
papa? Poderiam Roma e seu exército de teólogos estar errados?
Toda a controvérsia provocada pelos humanistas talvez não fosse tão
importante caso a erudição ficasse confinada em torres de marfim. A tecnologia,
entretanto, conspirou com eles. Por volta de 1450, Johannes Gutenberg
desenvolveu a primeira imprensa e, por volta de 1480, oficinas tipográficas
surgiam por toda a Europa. Agora, os livros poderiam ser produzidos em grande
escala e mais rápido que nunca. O conhecimento se espalharia com velocidade a
partir de agora. O primeiro livro a ser impresso foi a Bíblia Latina de Gutenberg
— algo muito significativo: chegou a era da palavra.
2. O vulcão de Deus: Martinho Lutero
Pouco antes da meia-noite do dia 10 de novembro de 1483, na pequena cidade
mineradora de Eisleben, Alemanha central, nasceu um filho de Hans e Margarete
Luder. No dia seguinte, ele foi diligentemente levado para ser batizado, e
recebeu o nome do santo do dia, Martinho. A família vinha de uma linhagem de
camponeses, mas o negócio de mineração de cobre foi bom para Hans, e ele
trabalhou duro para melhorar suas condições. Com o passar dos anos, ficava
mais claro que o jovem Martinho tinha um cérebro maior que o dos outros, e
Hans desejava capitalizar isso. Uma carreira de direito seria a coisa certa para
ele. Hans o matriculou na Universidade de Erfurt, onde, em sintonia com as
aspirações sociais do pai, Martinho começou a ser conhecido pelo nome mais
elegante, “Lutero”.
Havia uma pequena preocupação para Hans: seu filho parecia levar a
religião muito a sério. O herói de Martinho era o príncipe Wilhelm de Anhalt, o
nobre que se tornou monge franciscano e era tão devoto que se espancava e
morreu de fome — não o tipo de modelo que Hans desejava para o filho
promissor. Então, o pior aconteceu. Voltando da universidade após uma visita
aos pais, Martinho, agora com 21 anos, foi subitamente pego por uma
tempestade de julho. Um raio caiu tão perto que o derrubou no chão. Sem a
chance de fazer a última confissão a um sacerdote, sem qualquer extrema-unção,
a perspectiva que o aguardava após a morte era terrível demais para se
considerar. Quando ele atingiu o chão e perdeu o fôlego, um voto involuntário se
seguiu: “Santa Ana, ajuda-me! Eu me tornarei monge!”. Embora involuntário,
voto era voto. Era como se um raio do céu o tivesse forçado a tornar-se monge.
Seu pai estava furioso: desperdiçar toda a educação caríssima; isso não era um
raio do céu, era obra do diabo.
Ainda assim, Martinho foi para o monastério. Seu cabelo foi cortado de
forma que apenas um ralo círculo permanecesse, e ele trocou as roupas do
mundo pelo santo hábito de monge. Receber essa nova indumentária era um ato
bastante simbólico, pois dizia-se que um homem poderia restaurar a inocência ao
se tornar monge e, assim, assemelhar-se a um bebê recém-lavado de seus
pecados no batismo. Lutero queria apenas isso: “Nós, jovens monges […] não
contínhamos a alegria diante desse delicioso discurso sobre nosso santo
monasticismo”.
Entrar no monastério significava integrar um mundo de regras. Havia
regras sobre como e quando ajoelhar-se, regras sobre como andar, como falar,
para onde e quando olhar, regras sobre como usar os talheres. Nas primeiras
horas do dia, os monges deixavam suas pequenas celas e iam às horas canônicas
na capela, começando com as matinas no meio da noite, então outra vez às seis
da manhã, às nove, ao meio-dia, e assim por diante. Em outros momentos, a vida
era dedicada a escalar a íngreme ladeira para o céu: pensava-se que usar roupas
de baixo que incomodavam e congelar no vento do inverno eram especialmente
agradáveis a Deus e, de vez em quando, Lutero não aceitava pão ou água por três
dias (só depois do irromper da Reforma ele começou a ganhar peso).
Lutero aceitava tudo. Porém, quanto mais ele fazia, mais atormentado se
sentia. Todas as orações na capela, por exemplo: elas deveriam proceder do
coração. Todo monge sabia que seria julgado por todos os pais-nossos
insinceros. Mas eles eram sinceros o bastante? E se ele se atrasasse? Em algum
ponto, todo monge descobriria que doença ou outras obrigações o impediam de
chegar à capela. Alguns ficavam felizes em pagar outro monge para rezar essas
orações perdidas a seu favor. Não Lutero: ele usava seus fins de semana para
tirar o atraso.
Havia ainda todos os outros problemas: deixar os olhos vagarem,
gargalhar, cantar mal. Havia incontáveis pecados que precisavam ser absolvidos,
e Lutero não criaria atalhos quando sua salvação estava em jogo. No
confessionário, ele deixava os confessores exaustos, levando até seis horas por
confissão para catalogar seus pecados mais recentes (e, no processo, perdendo a
capela e, assim, adicionando mais orações à lista de afazeres). Porém, Lutero não
era um caso incomum em tudo isso. Os monges eram instigados a esquadrinhar
suas memórias em busca de um pecado não confessado. Esperava-se isso.
No final da confissão, a pessoa recebia a absolvida do sacerdote.
Infelizmente, contudo, o perdão dependia da verdadeira contrição do coração
(além da realização de certos atos de penitência). Para Lutero, que levava o
assunto a sério, isso implicava uma introspecção ainda maior enquanto analisava
sua motivação ao se confessar. Ele realmente estava arrependido ou apenas
queria evitar a punição divina pelo que ele fez? O arrependimento forçado não
era aceitável.
Sua perspectiva de vida pode ser resumida em 1507, quando celebrou a
primeira missa como sacerdote. De repente, enquanto estava no altar, o terror
tomou conta de si. Agora, pela primeira na vida, ele teria de falar diretamente
com o Juiz de toda a terra. Lutero jamais ousara fazer isso antes, sempre rezando
aos santos ou Maria. Como ele, pecador, poderia dirigir-se ao Juiz?
Em tudo isso, Lutero — desesperado — buscava uma solução para o
problema da salvação, solução que parecia tão oculta por tudo o que ele sabia. O
estudo particular da Bíblia não era permitido para os monges, mas Lutero
conseguiu achar um lugar tranquilo na biblioteca em que ele passava o tempo
livre com a Bíblia, vasculhando-a à busca de respostas e, no processo,
construindo um extraordinário conhecimento dela.
Então, em 1510, ele recebeu a oportunidade de sua vida: foi enviado para
resolver assuntos do monastério em Roma. Para um monge que se via cada vez
mais em falência espiritual, isso equivalia a ganhar na loteria. Em Roma, o
peregrino estava mais perto dos apóstolos e dos santos que em qualquer outro
lugar. O local se encontrava tão cheio de relíquias deles (conferidoras de vários
benefícios espirituais) que representavam uma verdadeira mina de ouro para a
alma. Quando teve o primeiro vislumbre da cidade santa, ele prostrou-se em
terra. Então, ao chegar ali, correu de lugar santo em lugar santo, acumulando
mérito em cada um deles. Seu único arrependimento naqueles dias felizes foi
que seus pais ainda estavam vivos; se não estivessem, ele poderia tê-los libertado
do purgatório em virtude de todo o mérito acumulado. Além disso, ele não
conseguiu celebrar a missa em São João de Latrão (que supostamente assegurava
a salvação instantânea da mãe do celebrante).
Foi um tempo abençoado em Roma; ainda assim, foi ali, no coração
pulsante da cristandade, que pequeninas sementes de dúvidas foram plantadas na
mente de Lutero. Roma se tornara um frenético mercado espiritual. Com todas as
pessoas pagando por missas a favor de si mesmas e de entes falecidos, as missas
eram realizadas duas vezes mais rápido, tão rápido que não podiam ser
compreendidas; em uma igreja, dois sacerdotes até celebravam missas ao mesmo
tempo em um só altar. Isso levaria um monge sério a pensar. Então, ele decidiu
escalar a scala sancta [escada sagrada]. Esta era a escada que, supostamente,
Jesus subiu ao se postar diante de Pilatos e que, depois, havia sido trazida para
Roma. Ao escalar a escada, beijar cada degrau e repetir o pai-nosso em todos
eles, assegurava-se ao pecador que poderia escolher a alma que quisesse para
ficar livre do purgatório. Evidentemente, Lutero apegou-se a essa oportunidade.
Contudo, ao chegar ao topo, ele foi forçado a questionar: “Quem sabe se isso é
verdade?”. Suas dúvidas não melhoraram na volta para casa, ao visitar a dama de
Augsburg, uma idosa que alegadamente alimentava-se apenas da missa. O fato
de que ela não parecia ter qualquer interesse em assuntos cristãos sugeria a
ocorrência de algo estranho. Ainda assim, não havia qualquer sinal da
proximidade de uma revolução. A questão era simples: a igreja precisava de uma
limpeza.
Ao retornar, Lutero foi transferido para o monastério agostiniano na
pequena cidade de casinhas de barro, Wittenberg. Seu superior percebeu que,
com seu talento, Lutero seria um bom professor de teologia (e isso lhe
possibilitaria passar tempo com a Bíblia, significando que ele talvez conseguisse
resolver suas ansiedades espirituais). Permitir que Lutero tivesse essa liberdade
com a Bíblia foi um ato de que Roma logo se arrependeria muito, mas, por
enquanto, Lutero havia se tornado professor de Bíblia na novíssima
Universidade de Wittenberg.
Wittenberg podia ser pequena, mas era a capital do politicamente
poderoso estado da Saxônia Eleitoral, e abençoada pelo eleitor Frederico, o
Sábio, quando este permitiu que sua fascinante coleção de relíquias fosse
abrigada lá. Era um lugar digno de peregrinação: a igreja do castelo continha
nove alas que exibiam com orgulho mais de 19 mil relíquias. Ali, era possível
observar um punhado da palha do berço de Cristo, um fio de sua barba, um
prego da cruz, um pedaço de pão da Última Ceia, um galho da sarça ardente de
Moisés, um pouco do cabelo de Maria e alguns pedaços de sua roupa, além de
incontáveis dentes e ossos de santos celebrados. A veneração de cada item valia
a indulgência de cem dias (com um dia adicional por ala); isso significava que o
piedoso visitante poderia somar quase 2 milhões de dias fora do purgatório.

O Sacro Império Romano


Importante para a história de Lutero é a entidade singular do Sacro
Império Romano. Ele consistiu basicamente na tosca tentativa de trazer o
velho Império Romano de volta quatrocentos anos depois de Roma ter
caído (mas agora, cristianizado, consistindo no Sacro Império Romano).
Contudo, a versão sacra era um pouco menor que a original: compunha-
se do que agora é Alemanha, Áustria, Suíça, Holanda, República Tcheca
e partes do norte da Itália. Na verdade, isso não poderia ser considerado
realmente um império. Nos dias de Lutero, os sacros imperadores
romanos supervisionavam uma mistura de estados, muitos dos quais, na
realidade, eram governados por príncipes e duques locais que deviam
lealdade ao imperador (e que se encontravam com ele para tratar de
assuntos imperiais em concílios imperiais regulares ou “dietas”). Os sete
príncipes mais importantes eram conhecidos como “eleitores”, por
elegerem os novos imperadores. Esses eleitores eram homens poderosos
que podiam se dar ao luxo de ter uma mentalidade bastante
independente. Os eleitores da Saxônia Eleitoral, onde Lutero vivia, sem
dúvida eram assim, e isso se mostraria essencial para a sobrevivência de
Lutero.
“Quando a moeda no cofre ressoa, a alma do purgatório voa”
Assim dizia Johann Tetzel, o televangelista itinerante das indulgências, que
acendeu a fúria de Lutero. Outro de seus jingles mais populares era: “Coloque
seus centavos no prato, e os portões de pérola se abrem no ato”. Com seus
sermões lúgubres e seu quarteto viajante, ele dificilmente era sutil. “Vocês não
ouvem as vozes de seus pais mortos em lamentações”, ele perguntava às
audiências, “e outros que dizem: ‘Tenha misericórdia de mim porque estamos
passando por duro castigo e dor’? Você pode nos redimir disso com uma
pequena esmola”. E, para isso, o preço era uma pechincha. Ele nem mesmo
pedia ao povo que se confessasse. Bastava o dinheiro. Então, a indulgência
salvaria a pessoa do purgatório ainda que esse indivíduo fosse culpado de
estuprar a “mãe de Deus”. Evidentemente, Tetzel fazia muito sucesso e,
enquanto as pessoas se livravam do purgatório, o papa conseguia dinheiro para
reconstruir a basílica de São Pedro como a joia da coroa do Vaticano.
Por trás disso tudo, entretanto, havia um tom de descontentamento pelo
fato de o dinheiro alemão estar sendo usado para financiar projetos
arquitetônicos italianos. Mas, ninguém se importava com isso como Lutero. Para
o devotado monge, a maneira como essas indulgências estavam sendo oferecidas
significava que ninguém precisava arrepender-se de seus pecados de verdade, e
isso era um escândalo. No “dia de todos os santos” (1º de novembro), de 1517,
os méritos dos santos deveriam ser oferecidos em Wittenberg. E, assim, na
véspera do “dia de todos os santos”, ele pregou na porta da igreja uma lista de 95
teses para um debate sobre a questão das indulgências. Todos as veriam no dia
seguinte.
É comum imaginar Lutero martelando os pregos furiosa e ruidosamente,
e suas teses como um grandioso protesto contra Roma, criando um espetacular
começo para a Reforma. Entretanto, essas teses foram escritas em latim, a língua
da academia, e era muito comum pregar notas na porta da igreja. As teses, assim,
não eram um protesto dramático e popular, mas uma convocação para uma
disputa acadêmica. Se as 95 teses pretendessem ser um manifesto da Reforma,
elas teriam consistido em um esforço bem fraco: não continham uma menção à
justificação só pela fé, à autoridade da Bíblia ou, na realidade, a qualquer ideia
reformada central. Isso aconteceu porque Lutero ainda não cogitava nenhuma
reforma. As teses não questionavam as relíquias e as indulgências, apenas o
abuso delas (só muito depois que ele descreveria com jocosidade uma coleção de
relíquias maior que a de Wittenberg, que incluía “três chamas da sarça ardente”,
“metade da asa do arcanjo Gabriel” e “duas penas e um ovo do Espírito Santo”).
As teses eram um ataque ao mau uso das indulgências feito por um monge que
ainda funcionava segundo a mentalidade do catolicismo romano medieval. Essas
teses afirmavam a existência do purgatório e buscavam defender o papa e as
indulgências da má fama que esse abuso lhes daria. Nas 95 teses, Lutero foi um
bom católico.
As 95 teses provocaram grande perturbação, mas foi uma perturbação
que talvez não acontecesse se Lutero não tivesse desenvolvido um entendimento
completamente diferente do cristianismo. Sem qualquer intenção, Lutero iniciara
uma reação em cadeia: “Deus me enviou a essa situação contra minha vontade e
conhecimento”.

De filho de Roma a herege


A primeira reação veio, previsivelmente, do traficante de indulgências Johann
Tetzel. Ele emitiu de pronto violentas exigências de que Lutero fosse queimado
como herege, além de publicar uma resposta a Lutero com argumentos a favor
da superioridade das indulgências sobre meros atos de amor, pois o amor próprio
é superior ao amor ao próximo. Não demoraria muito para o clamor contra
Lutero crescer e, no ano seguinte, 1518, o papa decidiu conferir a Rosa de Ouro,
a maior honra que ele poderia conferir, ao eleitor Frederico, o Sábio (com o claro
entendimento de que Frederico, em gratidão, naturalmente desejaria entregar
Lutero para ser julgado).
Contudo, um oponente mais formidável que Tetzel logo apareceu: Johann
Eck. Em 1519, Eck mostrou-se um hábil debatedor contra Lutero em Leipzig e,
para assegurar a condenação do monge, expandiu com sagacidade o tópico do
debate ao sugerir que a verdadeira questão tratava da autoridade. Quem detinha a
palavra final: a Bíblia ou o papa? Essa era a armadilha, claro, em que — Eck
planejava — Lutero se condenaria. O teólogo nomeado pelo papa para responder
Lutero já havia deixado claro: até a Escritura recebe seu poder e autoridade do
papa. Lutero ousaria contradizê-lo?
Aconteceu que Lutero caminhou direto para a emboscada de Eck, e disse
poder entender a Escritura sem o papa, mesmo contra o papa. Eck o encurralou,
e chamou Lutero de discípulo dos “condenados e pestilentos” hereges John
Wycliffe e Jan Hus. Lutero ficou horrorizado, negando-o. Ele se recusava a ser
associado à heresia; entretanto, durante uma pausa no debate, ele examinou mais
uma vez o que Hus ensinara e começou a perceber que Eck estava certo: ele se
identificava mais com Hus que com Roma. Ao retornar, Lutero admitiu que de
fato concordava com muito do que Hus ensinou, e isso era exatamente do que
Eck precisava. Ele seguiu de imediato a Roma para garantir a resposta papal.
E o mais importante: Eck fertilizou as crescentes dúvidas de Lutero sobre
o papado. Nos meses seguintes, ficava cada vez mais claro para ele que, se
Roma considerasse o papa uma autoridade acima da Escritura, ela jamais poderia
ser reformada pela Palavra de Deus. A palavra do papa sempre triunfaria sobre a
de Deus. Nesse caso, o reino do anticristo estava estabelecido, e essa já não seria
a igreja de Deus, e sim a sinagoga de Satanás.

Entrando pelos portões abertos do paraíso


Em todo esse período, seu entendimento do cristianismo estava mudando. É
comum pensar que os conceitos da Reforma de Lutero surgiram em um lampejo.
Relatos antigos de sua vida falam sobre isso acontecendo em datas remotas,
como 1513 (daí a ideia das 95 teses de 1517 como uma proclamação do início da
Reforma). Entretanto, o próprio Lutero deixou claro que sua ruptura aconteceu
quase dois anos depois das 95 teses. Seria o ponto final de uma longa e dolorosa
jornada.
A razão para a afixação de suas 95 teses era a crença que a maneira de
vender as indulgências barateava o arrependimento; e, na época, o
arrependimento consistia no centro do pensamento de Lutero. Tudo surgiu por
conta do crescente senso da radicalidade do pecado humano. Lutero começara a
enxergar a extrema ingenuidade do ensino medieval: “Deus não negará graça a
quem faz o melhor que pode”. Isso sugeria que a humanidade era moralmente
neutra, até boa, significando que nosso “melhor” é aceitável a Deus. Porém,
Lutero considerava a existência do problema no nosso coração: o amor-próprio
molda cada parcela de nossos desejos. Como resultado, nosso “melhor” não é
nada além de amor-próprio.
A única resposta para o problema do amor próprio, ele concluiu na época,
é a autocondenação. Deus, em sua justiça, odeia e castiga o pecado do amor-
próprio. Se desejamos ser salvos, devemos aceitar esse juízo sobre nós. Em vez
de chamar Deus de mentiroso, fingindo-se justo e amoroso, a tarefa do pecador é
dizer “amém” à acusação divina. Só quando se admite digno do inferno alguém
pode estar pronto para o céu. Isso era a salvação: não confiar na promessa divina
de salvação, mas aceitar a condenação. Tratava-se da salvação pela humildade.
Essa ideia sombria de que a única solução para o amor-próprio consistia
no ódio-próprio e na autoacusação foi construída sobre um conceito assustador a
respeito de Deus. Lutero conseguia ver Deus apenas como Juiz, não como amor
— sua justiça continha apenas a punição de pecadores, seu “evangelho”, apenas
a promessa de juízo. Esse era um Deus diante de quem ele só poderia se curvar
de medo. Esse terror de Deus
Lutero encontrava sempre que entrava na igreja da cidade de Wittenberg. Em uma pedra em alto
relevo acima da entrada do cemitério nos arredores da igreja, Lutero via, esculpida em uma mandorla
(auréola em forma de amêndoa), Cristo assentado sobre o arco-íris como juiz do mundo, tão furioso
que as veias se sobressaiam, ameaçadoras e inchadas, em sua testa.[1]
Considerando a investigação constante e abrangente do brilhante intelecto de
Lutero, essa foi uma fase sombria de sua teologia que não poderia durar muito.
Esse esquema não funcionou. Todas as autoridades, da Bíblia a Agostinho,
ensinavam a importância do Deus amoroso, mas esse esquema não tinha espaço
para um Deus de amor. Como alguém poderia amar um Deus assim?
Por algum tempo, a resposta fugiu dele. Então, em 1519, quando
examinava mais uma vez as questões de confissão e arrependimento, ocorreu a
Lutero que, depois da confissão do pecador, o sacerdote pronunciaria a promessa
divina de perdão. Era uma maneira completamente nova de enxergar as coisas:
agora, a questão era — o pecador confiaria na promessa divina? E, com isso,
tudo mudou. Agora, ele via que o perdão independe de quão certo o pecador se
encontra a respeito de sua contrição real; o perdão decorre apenas do
recebimento da promessa divina. Assim, a esperança do pecador encontrava-se
não em si mesmo, mas fora dele, na palavra da promessa.
Enquanto ele se ocupava com esses pensamentos, estudando em sua cela
na torre do monastério, ele voltou ao versículo aterrador sobre a justiça de Deus,
Romanos 1.17:
Ainda que, como monge, eu vivesse de forma irrepreensível, sentia-me pecador perante Deus, e
tinha a consciência muito perturbada. Eu não conseguia crer que Deus era aplacado pela minha
satisfação. Eu não amava o justo Deus que pune pecadores e, na verdade, eu o odiava em segredo, se
não com blasfêmia, sem dúvida murmurando muito; eu estava irado contra Deus e disse: “Como se
não bastasse que miseráveis pecadores, eternamente perdidos por causa do pecado original, sejam
esmagados por várias espécies de calamidades pela lei do Decálogo, Deus ainda acrescentou dor em
cima de dor por meio do evangelho, e também com o evangelho nos ameaça com sua ira justa!”.
Desse modo, eu me irava, com a consciência furiosa e perturbada. Todavia, golpeava com
persistência a passagem de Paulo, querendo entender com ardor o que ele queria dizer com “a justiça
de Deus”.
Por fim, pela misericórdia divina, meditando de dia e de noite, dei atenção ao contexto das palavras,
a saber: “Pois a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo
viverá pela fé.” Então comecei a entender que a justiça de Deus é aquela pela qual o justo vive por
um dom divino, a saber, pela fé. E esse é o significado: a justiça de Deus é revelada no evangelho,
isto é, a justiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: “O
justo viverá pela fé”. Foi quando senti como se tivesse nascido de novo e adentrado o próprio paraíso
por portões abertos.
Aqui, nessa “experiência da torre”, Lutero descobriu um Deus de todo diferente
e outra maneira de ele se relacionar conosco. A justiça, a glória e a sabedoria de
Deus: estas não são maneiras de ele se opor a nós. Essas são coisas que Deus
tem e partilha conosco. Aqui, Lutero enxergou, pela primeira vez, as verdadeiras
boas novas do Deus bondoso e generoso que concede aos pecadores o dom de
sua justiça. A vida cristã, portanto, não poderia tratar da luta do pecador para
alcançar a justiça humana reles e pessoal; tratava-se de aceitar a justiça divina
perfeita e pessoal. Agora havia o Deus que não quer nossa bondade, mas nossa
confiança. Todos os conflitos e toda a ansiedade poderiam ser substituídos pela
confiança sólida e fé simples na recepção do dom.
Essas boas novas reformaram o coração de Lutero, e essa mensagem ele
passaria a proclamar para trazer reforma ao entendimento alheio. Logo ficaria
claro que essa descoberta não só lhe deu alegria e confiança muito notáveis; ela
lhe garantiu o que só se pode ser visto como uma explosão sobre-humana de
energia para divulgar tudo isso.

“Os raios do sol afastam a noite”


Lutero passou o ano seguinte, 1520, escrevendo. Na verdade, ele escrevia mais
rápido do que três impressoras poderiam imprimir, e foi obrigado a desacelerar o
ritmo para elas. Em vez de escrever em latim acadêmico, ele escreveu no alemão
usado pelo povo, para que o povo comum, e não apenas os eruditos, pudesse
entender o evangelho. Sua velocidade extraordinária, seu estilo fácil e sua
mensagem explosiva combinaram-se com as recém-descobertas maravilhas da
impressão gráfica para, dentro de semanas, tornar Lutero o autor alemão mais
lido.
A primeira obra principal, Carta à nobreza cristã da nação alemã, foi o
toque da trombeta da Reforma de Lutero contra as muralhas defensivas que
Roma construiu ao redor de si. Havia três muralhas desse tipo, ele dizia: a
primeira defesa de Roma era a alegação de que o papa consistia no poder
supremo na terra; a segunda que só o papa podia interpretar as Escrituras; a
terceira que ninguém, senão o papa detinha autoridade para convocar um
concílio e, assim, reformar a igreja. Com esses muros em pé, Roma era
inexpugnável e irreformável. Lutero atacou ao argumentar que não há distinção
entre o clero e os leigos, significando que as alegações do papa não tinham
fundamento e que todo cristão detinha o direito de interpretar a Escritura e
convocar um concílio para reformar a igreja. Como isso mudaria as coisas!
Campos de debate completamente novos se abriram quando os cristãos passaram
a perceber seu direito de interpretar as Escrituras por si próprios, sem o papa.
Isso traria um dos grandes desafios da Reforma: por exemplo, sem recorrer ao
papa, o que se deveria fazer quando as pessoas favoráveis à reforma
discordassem quanto a sua interpretação da Escritura?
Um mês depois, Do cativeiro babilônico da igreja apareceu. Essa obra se
seguiu à primeira com um ataque contra a alegação romana de que a graça de
Deus fluía apenas dos sacramentos controlados pelos sacerdotes. Se Lutero
estava certo quanto ao dom da justiça de Deus ser recebido com a confiança
simples, não poderia ser assim. Na verdade, ele argumentava, se a Bíblia, e não o
papa, merece confiança, então há apenas dois sacramentos (batismo e ceia do
Senhor), não sete, como Roma argumentava.
A terceira, e talvez mais importante, das principais obras de Lutero
naquele ano foi Da liberdade cristã. Tendo desferido seus ataques, essa obra
representava a explicação positiva do evangelho, e ele a dedicou ao papa, pois,
apesar de todos os seus ataques a Roma e aos papas, ele ainda queria salvar o
pontífice. Em seu cerne encontra-se a história de um rei que se casa com uma
prostituta, a alegoria de Lutero para o casamento entre o Rei Jesus e o pecador
perverso. Quando eles se casam, a prostituta se torna, por posição, uma princesa.
Não é que ela tornou seu comportamento mais “real” e, assim, ganhou o direito
de ter a mão do rei. Ela era e é uma meretriz ímpia da cabeça aos pés. Entretanto,
quando o rei fez seus votos matrimoniais, a situação dela mudou. Assim, ela é ao
mesmo tempo uma prostituta de coração e uma rainha por posição. Do mesmo
jeito, Lutero entendia que o pecador, ao aceitar a promessa de Cristo no
evangelho, torna-se assim pecador de coração e justo por posição. O que
aconteceu foi a “alegre troca”: ela dá a ele tudo de que dispõe (seu pecado), e
todos os bens dele (justiça, bem-aventurança, vida e glória) são concedidos por
ele a ela. Assim, ela pode exibir com confiança “seus pecados diante da morte e
do inferno e dizer: ‘mesmo que eu tenha pecado, meu Cristo, em quem creio,
não pecou, e tudo que lhe pertence é meu, e tudo que é meu pertence a ele”. Esse
era o entendimento de Lutero sobre a “justificação só pela fé” e é com essa
segurança, ele argumentava, que a meretriz, então, começa a tornar-se parte da
realeza em seu coração.
Evidentemente, Roma não deixaria tudo isso incólume. Mesmo na
articulação positiva do evangelho, Lutero sem dúvida desagradava a muitos. O
inquisidor de Colônia, por exemplo, sentia que a alegoria de Lutero a respeito do
rei e da prostituta transformava Cristo em um cafetão:
Como se Cristo não se desse ao trabalho de distinguir e escolher, mas simplesmente aceita a noiva
mais suja e não se preocupa com […] uma amante pura e honrada! Como se Cristo exigisse dela
somente fé e confiança, e não tivesse interesse em sua justiça e outras virtudes!

O novo entendimento de Lutero sobre fé e pecado


Em Da liberdade cristã, Lutero mostrou que, por causa de seu novo
entendimento do evangelho, ele agora operava com definições muito
diferentes de pecado e fé. As coisas que antes ele entendia serem pecado
(assassinato, adultério etc.), ele entendia agora como meros sintomas do
problema real: a incredulidade.
Este é o pecado do mundo: não acreditar em Cristo. Não que não haja pecado contra a lei
além desse; mas este é o verdadeiro pecado principal, o qual condena o mundo inteiro
mesmo que ele não pudesse ser condenado por nenhum outro pecado.
O pecado, portanto, poderia ser descrito como “um homem encurvado
para si” ou “um homem que espera em si”, pois pecado é não olhar para
Cristo com confiança, mas olhar para si mesmo. Mas, isso é
precisamente o conteúdo de todos os seus esforços de devoção
anteriores: confiar em si mesmo!
Em contraste, a fé já não é mero assentimento em assistir à missa, nem
era algo a ser “feito”. Esse é um erro fácil de cometer ao pensar sobre a
justificação só pela fé: ela pode soar como se, em vez de todas as velhas
obras e penitência, a fé agora é a única coisa que devemos “fazer” — e
até nos esforçar — para sermos salvos. O perigo, assim, seria incorrer na
velha introspecção que torturava Lutero, questionando a “realização” do
ato com fé suficiente. Talvez fosse mais útil descrever a descoberta de
Lutero como “justificação pela Palavra de Deus” em vez de “justificação
pela fé”, pois é a Palavra de Deus que justifica aqui, e não a nossa fé.
Para Lutero, a fé não é algum recurso interno que devemos convocar; se
fosse, pela definição dele, isso seria pecado! Para ele, a questão “eu
tenho fé suficiente?” distorcia a fé de forma completa, ao esperar e
confiar em si mesmo, em lugar de Cristo. A fé é algo passivo, significa
apenas aceitar, receber, crer em Cristo — levar Deus a sério no que ele
promete no evangelho.

Houve mais do que repulsa, contudo. Em 1520, o papa emitiu uma bula
(um decreto autenticado pelo selo ou bulla do próprio papa) ordenando que
Lutero se retratasse em 60 dias ou encarasse a excomunhão e o banimento (sob o
qual ninguém seria permitido abrigá-lo ou sustentá-lo; ao contrário, as pessoas
eram obrigadas a entregá-lo). Isso confirmou o raciocínio de Lutero: ninguém
tentou refutá-lo com a Escritura, uma prova para ele de que Roma não estava
interessada na Palavra de Deus, só em silenciar quaisquer ameaças à sua
supremacia. Colocando-se acima e contra a Palavra de Deus, Roma só poderia
ser um instrumento de Satanás. Sua intensa resposta foi um tratado intitulado
Contra a execrável bula do anticristo. Assim, quando o prazo de 60 dias
terminou, o povo de Wittenberg foi convidado ao fosso de carniça do lado de
fora de um dos portões da cidade. Lutero apareceu e queimou sua cópia da bula
com as palavras: “Pelo fato de vocês confundirem a verdade de Deus, o Senhor
hoje confunde vocês. Que sejam lançados ao fogo!”. Com a bula foram
queimadas obras de teologia e livros da lei canônica, destruindo em sentido
simbólico todo o sistema eclesiástico da igreja romana.
Então, nada aconteceu. Tecnicamente, Lutero agora estava excomungado
e sob banimento, mas a autoridade de Roma já estava sendo desrespeitada. Era
uma situação que o sacro imperador romano não poderia tolerar. Lutero foi
convocado a apresentar-se diante dele no próximo concílio imperial em Worms.
A partir desse momento, Lutero passou a enfrentar a ira do imperador e do papa,
a possibilidade de ser queimado e a perspectiva do inferno se, depois de tudo
isso, ainda estivesse errado. Esse é o testemunho do poder transformador de sua
descoberta do evangelho: o monge outrora atemorizado na tempestade agora
desafiaria todos eles com a impassível afirmação “Aqui permaneço!”.

Raptado
Depois da audiência, não demorou muito para o imperador declarar Lutero “um
cismático obstinado e herege manifesto” que não deveria ser recebido e lido por
ninguém, sob a pena do castigo mais terrível. Lutero, entretanto, não ficou
esperando a condenação em Worms. Ele já havia embarcado em uma carruagem
para Wittenberg.
Todavia, no caminho, enquanto a carruagem adentrava um desfiladeiro
estreito e arborizado, um grupo de cavaleiros cercou o grupo de Lutero,
apontando suas flechas. Em meio a praguejamentos, Lutero foi retirado e levado
para longe. Todos sabiam o que teria acontecido: Lutero fora capturado para ser
executado de forma sumária e silenciosa. “Oh, Deus”, escreveu o artista
Albrecht Dürer, “se Lutero está morto, quem agora nos ensinará o santo
evangelho com tanta clareza?”. Era o que os sequestradores queriam que as
pessoas pensassem. Na verdade, eles estavam a serviço do eleitor Frederico, o
Sábio, que criou um plano para manter Lutero em custódia segura sem correr o
risco de ser visto abrigando um fora da lei. E eles não levaram Lutero para uma
vala secreta; depois de ziguezaguear pela área para despistar qualquer
perseguidor, eles chegaram, tarde da noite, ao castelo de Wartburg, a fortaleza de
Frederico na Saxônia Eleitoral.
Esse foi o lar secreto de Lutero pelos dez meses seguintes — e o cenário
de seus feitos mais extraordinários. Ele deixou a barba e o cabelo crescer,
escondendo seu visual de monge, e logo estava irreconhecível em roupas de
cavaleiro. O fora da lei Martinho Lutero desaparecera; esse personagem era
conhecido como “senhor Jorge”. Parecia um nome apropriado para um matador
de dragões. Apesar de toda a empolgação e o triunfo que ele pode ter sentido,
Lutero considerou esse período no castelo muito difícil. Ele estava solitário e
doente. Ainda assim, trabalhou em um frenesi que superou até os esforços do
ano anterior. Incapaz de pregar para uma congregação, ele escreveu um livro de
sermões. E, entre outras coisas, em menos de onze semanas, conseguiu traduzir o
Novo Testamento Grego de Erasmo para o alemão. Foi necessário lapidar um
pouco antes que a obra estivesse pronta (e algumas ilustrações foram
adicionadas, um panorama de Roma similar à descrição de Apocalipse a respeito
da destruição de Babilônia, por exemplo), mas, supreendentemente, nesse tempo
Lutero produzira uma obra-prima. A linguagem era tão enérgica, tão envolvente,
tão das ruas, que transformou a própria maneira de as pessoas falarem alemão.
Lutero estava se tornando o pai da língua alemã moderna. E o mais importante,
com a publicação da obra em setembro de 1522, Lutero realizou o sonho de que
as pessoas “pudessem desfrutar e provar a clara e pura Palavra de Deus e
agarrar-se a ela”.
Por meio de cartas, ele também buscava encorajar a reforma em
Wittenberg. Uma característica de parte do aconselhamento pastoral envolvia
chocar o leitor para promover a apreciação mais clara do evangelho. “Seja um
pecador e peque com ousadia”, ele escreveu a um jovem amigo que tentava fazer
da própria piedade a base da confiança diante de Deus,
mas creia e alegre-se em Cristo com ainda mais ousadia, pois ele é vitorioso sobre o pecado, a morte
e o mundo. Enquanto estivermos aqui [neste mundo] havemos de pecar. A justiça não habita nesta
vida, mas, como Pedro diz, nós aguardamos novos céus e uma nova terra, em que habita a justiça.
Basta apenas que, pelas riquezas da glória de Deus, cheguemos a conhecer o Cordeiro que tira o
pecado do mundo. Nenhum pecado nos separará do Cordeiro, mesmo que cometamos fornicação e
assassinato mil vezes ao dia. Você acha que o preço pago pela redenção de nossos pecados por tão
grande Cordeiro é tão pequeno?
Além disso, em Wartburg Lutero sofreu tentações e ataques que jamais o
deixariam. “Minha tentação é esta: achar que eu não conto com um Deus
gracioso.” Pode parecer uma tentação estranha, depois de todos os seus
contratempos, mas ele a enxergava como um ataque do diabo, e isso o forçava a
ser um médico especialista em dúvida. Não que isso fosse sempre óbvio. Às
vezes, ele rugia injúrias debochadas ao tentador: “Mas, se isso não for o
suficiente para você, diabo, eu também defequei e urinei; abra sua boca e
abocanhe um pedaço enorme”. Em outras ocasiões, ele defecaria no inimigo ou
lançaria seu tinteiro nele, deixando, para os peregrinos de Lutero admirarem,
uma mancha de tinta (regularmente retocada, evidentemente, de modo a
aumentar o senso de devoção — as relíquias voltaram com muita facilidade).
Muitos consideram esse lado de Lutero bastante perturbador. Ele estava
desequilibrado? Sem dúvida, Lutero não era um herói cristão limpo e
engomadinho; ele era bastante terreno. Todavia, seria errado reduzir essas
batalhas com o diabo como crises de um lunático de boca suja. Seus ataques não
se encaixam em diagnósticos médicos ou padrões de depressão normal. E suas
reações tinham um motivo: Lutero considerava a dúvida inspirada por Satanás
como algo a ser excretado, rejeitado, menosprezado e ridicularizado com risos.
Era algo sutil e tentador demais para ser combatido de frente.
Em outros momentos, ele enfrentava suas dúvidas escrevendo um
versículo bíblico relevante na parede, em um móvel ou em qualquer coisa por
perto. Mais uma vez, isso é muito revelador. Ele sabia que dentro de si mesmo
havia apenas pecado e dúvida. Toda a sua esperança residia fora dele, na Palavra
de Deus. Ali, sua segurança diante de Deus não era afetada por como ele se
sentia ou como ele agiu. E, assim, ao enfrentar a dúvida, ele não buscaria
conforto dentro de si (isso seria incredulidade e pecado, a origem de toda a
ansiedade, não a cura!); pelo contrário, ele exibiria diante de seus olhos a
Palavra externa e imutável.

Como reformar uma igreja


Enquanto isso, em Wittenberg, os líderes estavam começando a fazer a reforma
parecer apenas ataques a sacerdotes e imagens de santos, comer o que fosse
possível em dias de jejum e, em geral, fazer tudo diferente só para menosprezar
os antigos costumes. Na mente de Lutero, esse era um erro doentio. Era tão ruim
quanto a obsessão de Roma com o exterior e, assim, impor determinado
comportamento. O problema que ele via na igreja não consistia em imagens
físicas; primeiro, as imagens precisavam ser removidas do coração.
Lutero saiu de seu esconderijo, retornou a Wittenberg e, em vez de usar a
força para reformar, buscou persuadir as pessoas com as Escrituras por meio da
pregação clara e simples. Ele acreditava que a Palavra de Deus deve primeiro
convencer as pessoas e, então, as velhas estruturas rotas entrariam em colapso.
Foi exatamente isso que ele defendeu diante do imperador: as Escrituras devem
dirigir e ditar o pensamento e a prática. Como resultado, Lutero não cria na
necessidade de implantar um grande programa de avanço da reforma religiosa.
Ele desejava apenas libertar a Palavra de Deus e deixar que ela fizesse todo o
trabalho.
No entanto, fazê-lo representava uma tarefa enorme. Como as coisas
estavam, a própria estrutura de toda a missa da igreja militava contra a utilização
da Bíblia. Assim, Lutero reescreveu a liturgia para torná-la um mestre da Bíblia.
Entre outras mudanças, havia a introdução do canto congregacional (antes, as
pessoas apenas assistiam aos sacerdotes). Para garantir o conteúdo dos cânticos,
Lutero compôs hinos para o povo (ele era um homem para quem o ouvido
importava, amando letra e música). Provavelmente, o hino mais famoso foi o
hino de batalha da Reforma, Castelo Forte, cujas palavras fizeram as ideias de
Lutero conhecidas de milhões:
O príncipe do mal, com seu plano infernal,
Já condenado está! Vencido cairá
Por uma só palavra.
Além de tudo isso, ele reestruturou a forma de governo da igreja; providenciou
pregadores para outras cidades; encorajou e aconselhou reis e príncipes
interessados na Reforma, da Suécia à Transilvânia; e escreveu catecismos
(explicações básicas da fé projetadas para serem memorizadas). O catecismo era
algo que Lutero levava muito a sério. Ele cria que todos deveriam memorizá-lo,
que os indispostos a aprendê-lo deveriam ser barrados da ceia do Senhor, que os
pais deveriam negar comida e bebida a filhos assim e, que, em último caso, essas
pessoas deveriam ser exiladas. Ele sabia que não poderia forçar a fé, mas insistia
que as pessoas conhecessem ao menos a verdade. E, de muitas maneiras, isso
pareceu funcionar. Poucos anos depois, ele concluiu que havia jovens de 15 anos
em Wittenberg mais conhecedores da Palavra de Deus “que todas as
universidades e doutores de outrora”.

Katie
Não demorou muito até a maioria dos monges deixar o monastério de Lutero em
Wittenberg. E, para os que ficaram, a vida já não girava em torno de serviços
incontáveis; agora, o tempo livre deles era gasto em conversas sobre a nova
teologia regadas a canecas de cerveja. Logo, Lutero era o único que restara e,
depois disso, o eleitor decidiu lhe dar todo o monastério para ser sua enorme
casa.
Na verdade, em todos os lugares, monastérios e conventos pareciam estar
se esvaziando, com monges e freiras ouvindo sobre a descoberta de Lutero e
abandonando o catolicismo. Em 1523, um grupo de freiras de um estado alemão
diferente (onde o regente executava freiras fugitivas) escreveu a Lutero
perguntando o que deveriam fazer. Ele aconselhou a fuga e até a organizou.
Desfrutando do simbolismo, ele enviou um vendedor de arenque ao convento na
manhã de Páscoa, com a carruagem cheia de barris de arenque. Nove freiras
entraram nos barris e foram contrabandeadas para uma nova vida em Wittenberg.
As ex-freiras, evidentemente, não contavam com nenhum tipo de seguro
social e, assim, Lutero sentiu que era sua obrigação fazer com que elas se
casassem. Ele conseguiu maridos para oito delas, mas a nona, Katharina von
Bora, foi uma dificuldade. Por um período, a última coisa na cabeça de Lutero
era casamento. Ele presumiu que não demoraria muito para ser queimado como
herege, além do fato de enfrentar repetidos ataques contra a sua vida. Assim,
Lutero sentia não ser justo que ele tomasse uma esposa. Entretanto, apesar de
toda a sua impassibilidade diante do papa e do imperador, depois de dois anos, a
importunação de seus amigos e a resoluta nona freira o cansaram. Ele casou-se
com Katharina, 15 anos mais nova, em 1525.
É evidente que Martinho e Katie gostavam da companhia um do outro,
caminhando no jardim, pescando juntos ou comendo com amigos. As cartas do
casal, escritas quando Lutero viajava, eram repletas de piadas e clara afeição. Ela
era determinada o bastante para contrapor o indomável reformador. “Nos
assuntos domésticos, eu acato a Katie. Fora essa exceção, sou guiado pelo
Espírito Santo.” Assim, Lutero recorria a subornos para fazê-la ler mais sua
Bíblia.
O lar que eles construíram no antigo mosteiro era uma casa jovial e
turbulenta que, com o passar dos anos, esteve cheia com três filhos, duas filhas,
um cão de estimação e incontáveis visitantes, parentes e alunos. Lutero tinha
uma pista de boliche construída no jardim para quando ele parasse seus estudos
ou suas orações (ele orava por, pelo menos, três horas ao dia, lendo versículo a
versículo e confiando nas promessas de Deus com vigor, exigindo que ele as
cumprisse). Katie gerenciava uma considerável cervejaria particular, vendendo
parte do produto para ajudar a fechar as contas e usando o resto para lubrificar
todas as discussões teológicas durante as refeições e noite adentro. Isso não a
impediu de às vezes censurar Martinho por beber um pouco a mais nessas
ocasiões, nem de sentir-se contrariada quando os alunos gastavam a hora da
refeição tomando notas em vez de comer. Duas vezes, contudo, a tragédia
atingiu a família: as duas filhas morreram jovens, uma delas, Magdelene, nos
braços de Martinho. Ele foi vencido pelas lágrimas, mas fez o seu melhor para
consolar o restante da família com a esperança do evangelho. “Ela ressuscitará
no último dia”, ele declarou diante do caixão. Isso foi dito com uma confiança
que outrora ele teria considerado um pecado presunçoso.

O que é essa Reforma


Na mesma época em que Martinho estava se unindo a Katie, ele se envolveu
com o que talvez tenha sido o diálogo mais importante da Reforma com o
erudito que publicou o Novo Testamento Grego que o convertera: Erasmo. Aqui
estavam dois ex-monges agostinianos tentando reformar a igreja. Entretanto,
como seu diálogo mostrava, eles tinham ideias muito diferentes de como essa
reforma deveria ser. Para Erasmo, era simples: ele queria apenas dar à igreja um
bom banho moral. Esfregue a corrupção, lave a hipocrisia, e tudo ficará bem.
Com a passagem dos anos, contudo, ele ficou cada vez mais incomodado com o
fato de Lutero querer dizer algo inteiramente diferente com “reforma”. Enquanto
Erasmo desejava incentivar os papas a serem papas melhores, Lutero queria se
livrar logo dos papas. Erasmo desejava limpar o sistema católico romano, Lutero
queria queimá-lo e substituí-lo de modo integral.
E, assim, em 1524, Erasmo escreveu Diatribe sobre o livre-arbítrio, em
que ele argumentava que, embora Lutero estivesse certo ao dizer que jamais
conseguiremos obter mérito diante de Deus, ele fora longe demais. Pois, Erasmo
sussurrava, Deus é como um pai amoroso e aceita nossos desajeitados esforços e
sorrisos como se eles realmente valessem algo. Erasmo sempre gostou de
posicionar-se como sábio, acima dos rudes extremos das mentes mais
mesquinhas, e esse era o Erasmo típico, buscando um sofisticado meio-termo
entre Roma e a Reforma. Mas, é claro, ele sorria; como Lutero ele queria
defender a graça divina. Contudo, Deus iria mesmo recompensar uma boa obra?
Erasmo não conseguia entender que Lutero depositasse toda a certeza da
salvação só em Cristo, e nada em seu desempenho pessoal.
Todas as diferenças surgiam de como Lutero e Erasmo entendiam o
cristianismo. Erasmo era o tipo que sempre dizia como as coisas na Bíblia eram
muito mais complicadas do que pareciam à primeira vista. Assim, as massas
precisariam de uma grande mente como a dele para entendê-las ou, mesmo se ele
não pudesse entendê-las (e isso se aplicava a muitas coisas), então elas deveriam
ser listadas entre os incontáveis mistérios desse obscuro texto, a Bíblia.
Considerando o quanto a Bíblia não era clara, ele acreditava que os cristãos não
deveriam definir questões doutrinárias como a Trindade, o papel de Deus na
salvação e outros assuntos complicados. Deus os deixara vagos, portanto, eles
não devem ter importância e provavelmente distraem da atividade mais
importante que é avançar na vida cristã. “A suma da nossa religião é paz e
unanimidade”, ele disse certa vez, “mas essas coisas dificilmente permanecem a
não ser que definamos o mínimo possível”.
O cristianismo para Erasmo era essencialmente moralidade com um mínimo de declarações
doutrinárias não muito amarradas… A atitude de Lutero era muito diferente. Para ele, o cristianismo
era, antes de tudo, uma questão de doutrina, pois a verdadeira religião era, antes de tudo, uma
questão de fé, e a fé é correlativa à verdade… Para Lutero, o cristianismo era uma religião dogmática
ou não era nada… A concepção de Erasmo do cristianismo sem dogmas e a indiferença etérea do
humanista às questões doutrinárias lhe pareciam tão essencialmente anticristãs quanto possível.[2]
Na época, Erasmo era o mais reverenciado erudito do mundo e, como a Diatribe
sobre o livre-arbítrio veio de uma figura tão eminente (e que tinha sido tão
instrumental em sua conversão), Lutero realmente leu o livro. Normalmente, ele
somente lia algumas páginas de polêmica contra si antes de usá-las como papel
higiênico. Por causa da reputação acadêmica de Erasmo, parecia que ele era um
peso-pesado; mas, isso era teologia, e Erasmo não era teólogo. Nessa arena,
Erasmo era como uma formiga atacando um rinoceronte.
Lutero respondeu com Da vontade cativa, atacando com ferocidade os
argumentos moderados de Erasmo. E foi realmente brutal. Lutero recusou-se a
falar sobre o cerne da salvação no estilo frio e desapaixonado de Erasmo. Ele
achava Erasmo suave em demasia com a questão central: somos capazes de fazer
algo a favor da nossa salvação? Em completo contraste com Erasmo, Lutero
estava resoluto de que, apesar de tudo o que livremente escolhemos fazer, nunca
escolhemos agradar a Deus por natureza e, portanto, toda a nossa salvação deve
ser obra de Deus, não nossa.
A diferença fica evidente nas palavras usadas pelos dois homens para descrever suas depressões.
Lutero chamava a sua de Anfechtung. A palavra sugere um ataque externo, um ataque do diabo. A
única esperança estava em uma vitória externa de Cristo, que por nós derrotou o diabo, a morte e o
inferno. Erasmo chamava suas depressões de pusillanimitas, literalmente fraqueza de espírito,
covardia, para a qual temos a palavra portuguesa pusilanimidade. Isso implica fraqueza interior, que
o homem pode fazer algo para remediar ao recuperar o controle. No caso de Lutero, o esforço moral
era inútil, mas não tanto para Erasmo.[3]
Por Erasmo não conseguir confiar inteiramente na graça de Deus, Lutero
concluiu com tristeza que Erasmo devia ser estranho a ela. Com seu Novo
Testamento Grego, ele havia, como Moisés, libertado muitos da escravidão;
porém, como Moisés, ele jamais entrou na Terra Prometida. A gritante diferença
entre eles mostrava que a reforma dos abusos e a Reforma eram dois projetos de
todo distintos. A primeira era o chamado para o homem agir melhor; a segunda,
a admissão de que ele não era capaz e, assim, deveria confiar na graça suficiente
de Deus que os moralizadores negavam de modo implícito.

Passando a Reforma adiante


Em 1530, nove anos depois de Lutero aparecer diante dele em Worms, o
imperador Carlos V decidiu convocar outra dieta imperial, desta vez em
Augsburgo. As forças do islã chegaram até Viena e representavam uma iminente
ameaça à cristandade (eles permaneceriam assim por 150 anos, quando o
crescente do islã foi derrotado fora de Viena, e os vienenses comeram croissants
para celebrar). Carlos queria enfrentá-los com uma força cristã unificada, o que
implicava a necessidade de lidar com as diferenças religiosas no império.
Evidentemente, Lutero não poderia ir. Ele ainda era um herege
condenado sob banimento do imperador. Ainda assim, em Augsburgo, seu jovem
colega Filipe Melâncton compôs uma confissão de fé luterana para ser
submetida ao imperador. Lutero estava muito satisfeito com ela. O imperador,
não. Entretanto, nove príncipes do império assinaram a confissão e, com isso, o
luteranismo tornou-se oficialmente uma força séria a ser considerada. As coisas
haviam mudado desde a última dieta e o confronto entre o imperador e o monge.
Por trás desse crescimento inicial da Reforma estava a incansável pena
de Lutero. Ela gerou quarenta volumes de comentários bíblicos, livros de
sermões, tratados e obras teológicas. Mais importante que todas eles, contudo, é
sua tradução do Antigo Testamento para o alemão, completada em 1534 e
publicada com prefácios, notas e ilustrações. “Aqui, vocês encontrarão as faixas
e a manjedoura em que Cristo repousa”, anunciava o prefácio. Lutero sempre
enfatizava que toda a Escritura trata apenas de Cristo, pois é apenas pela fé nele
que alguém poderia ser salvo. Seus problemas com o livro de Tiago derivavam-
se exatamente por esse motivo; ele considerava não haver Cristo o suficiente.
Em um domingo, quando a passagem bíblica do dia era de Tiago, ele apenas leu
o texto e, então, disse à congregação: “Não quero pregar isso”, e prosseguiu
pregando outra coisa.
A morte tão temida por Lutero em outro tempo lentamente rastejou até
ele. A mudança era que agora ele ansiava ver Cristo. Entretanto, foi um declínio
doloroso. As constantes e imensas exigências sobre ele destruíram sua saúde.
Em 1534, ele sofreu o primeiro de uma série de ataques cardíacos. Ao andar,
sofria de um abcesso doloroso na perna, com frequentes e excruciantes dores
ocasionadas por pedras nos rins; ao trabalhar, ele lutava com fortes dores de
cabeça, tonturas e um zumbido alto rugindo em seus ouvidos.
Ainda assim, sua personalidade poderia inflamar um rinoceronte. Alguns
o amavam, outros desejavam que ao menos ele pudesse ser um pouco menos
rude e bruto. Sem dúvida, ele não era um ideal cintilante. Entretanto, talvez esse
homem sanguíneo e franco fosse o necessário para a grandiosa e aparentemente
impossível tarefa de desafiar e reorientar toda a cristandade. Ele representou uma
terapia de choque para o mundo. E, de alguma forma, sua personalidade parece
apropriada para o evangelho por ele descoberto: ele não inspira aperfeiçoamento
moral em possíveis discípulos; ao contrário, sua humanidade evidente testifica a
absoluta necessidade da graça divina para o pecador.
Em janeiro de 1546, Lutero tinha 63 anos e se considerava muito velho.
Contra os temores de Katie, ele desafiou o congelante inverno de Saxônia ao
viajar até Eisleben, sua cidade natal, para julgar uma disputa. Chegando lá,
sentindo que não teria muito tempo, seus pensamentos voltaram-se para a
ressurreição após a morte; durante a ceia, a conversa foi sobre se
reconheceríamos ou não uns aos outros na ressurreição. Ele tinha certeza que
sim.

Lutero e os judeus
Provavelmente, nada afasta mais as pessoas de Lutero do que seu tratado
Von den Juden und ihren Lügen [Dos judeus e suas mentiras]. Difundido
e usado como uma tradicional obra-prima alemã pelos nazistas no
século XX, e exposto em uma caixa de vidro nas Reuniões de
Nuremberg, é o suficiente para muitos desprezarem Lutero como um
antissemita odioso e toda a sua teologia como fatalmente infectada. Sem
dúvida, essa obra possui um terrível conteúdo que seria preferível ter
sido esquecido antes de sua escrita. Entretanto, não só ela foi redigida
muito depois do irromper da Reforma, depois de Lutero mudar de
opinião sobre os judeus (significando que é inteiramente inapropriado
pintar toda a sua teologia com esse tom), como também a caricatura é
uma distorção. Não há racismo envolvido.
Em 1523, ele escreveu Dass Jesus Christus ein geborener Jude sei [Que
Jesus Cristo nasceu judeu], uma crítica aos maus-tratos comuns dos
judeus pelos cristãos. Ele o dedicou a um judeu convertido de quem se
tornara amigo, e a quem Lutero mais tarde sustentou financeiramente (e
cujo filho ele abrigaria) com grande custo pessoal. Contudo, com a
passagem do tempo, ele detectou o que via como uma dureza de coração
nos judeus incrédulos, pois eles se recusavam a reconhecer que suas
próprias Escrituras os dirigiam de forma inegável a Cristo. Por fim,
levado a agir por uma virulenta apologética judaica que atacava o
cristianismo, em 1542, ele escreveu Von den Juden und ihren Lügen. Ali,
ele argumentava primeiro que ser filho de Abraão consistia sempre uma
questão espiritual, não genética; em seguida, ele prosseguiu mostrando a
partir do Antigo Testamento que Jesus deve ser o Cristo prometido; só
então ele passa para suas notórias recomendações. Embora ele
condenasse atos pessoais de vingança, ele argumentava que as então
comuns leis de blasfêmia deveriam ser aplicadas aos judeus, tornando a
religião deles um crime. Assim, as sinagogas e casas de judeus deveriam
ser destruídas como perigosos focos de blasfêmia; e, junto com outros
blasfemadores, os próprios judeus deveriam ser expulsos.
Para a audiência moderna, é difícil não apenas deixar de ler o posterior
antissemitismo racial nesse material tão desagradável, como também
entender que essas eram, na época, medidas normais contra os hereges.
Lutero argumentou que os poderes do Estado deveriam ser aplicados
para preservar o cristianismo. Embora suas recomendações sejam
repulsivas, elas não procederam da falta de cuidado espiritual.
Concluindo a obra, ele escreveu: “Que Cristo, nosso amado Senhor, os
converta com misericórdia e nos preserve firme e imutavelmente no
conhecimento dele, que é a vida eterna. Amém”.

Depois da refeição, ele sentiu dores e um aperto no peito. Deitando-se na


cama, recitou Salmos 31.5 (“Nas tuas mãos encomendo o meu espírito”) e,
então, jocosamente mandou os presentes orarem “por nosso Senhor Deus e seu
evangelho, que tudo fique bem com ele, pois o Concílio de Trento e o maldito
papa estão muito furiosos com Deus”. A piada tinha uma mensagem séria: sua
morte não importava, pois o evangelho é o poder de Deus para salvar e não pode
ser silenciado pela morte de um servo ou a fúria de um inimigo. Por último, no
que quase pareceu uma repetição de seu julgamento em Worms, perguntaram-
lhe: “Você está pronto para morrer confiando em seu Senhor Jesus Cristo e
confessar a doutrina que ensinou em seu nome?”. Um claro “sim” foi a resposta.
Pouco depois, ele deu o último suspiro. Não havia sacerdotes presentes, não
havia sacramentos administrados, e nenhuma última confissão foi feita. Em vez
disso, havia simples confiança diante de Deus. Tudo era um testemunho de como
seu ensino havia mudado as coisas.
Lutero foi enterrado, apropriadamente, embaixo de seu próprio púlpito.
Anos antes, quando Lutero foi raptado e considerado morto, Albrecht Dürer
clamara: “Oh Deus, se Lutero está morto, quem agora nos ensinará o santo
evangelho com tanta clareza?”. Agora que ele estava morto, a questão era: eles
poderiam acreditar de fato em Lutero, que tudo ficaria bem com o Senhor Deus e
seu evangelho?
3. Soldados, linguiças e revolução: Ulrico Zuínglio e os
reformadores radicais
Martinho Lutero não estava sozinho como profeta da Reforma. Depois de dois
meses do nascimento de Lutero, Ulrico Zuínglio (ou Huldrych Zwingli), o
“mercenário de Deus”, nasceu em Wildhaus, uma bela vila nos alpes suíços.
Os alpes eram maravilhosos — Zuínglio sempre pensou assim — mas
não era fácil ganhar a vida neles no século XV, e muitos suíços achavam mais
fácil ganhar dinheiro tornando-se mercenários. Eles eram muito bons nisso: os
bravos e disciplinados lanceiros suíços e arqueiros à la Guilherme Tell eram
temidos pela Europa por suas façanhas militares. Os dias de glória logo se
seguiriam com Júlio II, o papa que gastou mais tempo de armadura no comando
dos exércitos papais que celebrando a missa em Roma. Ele queria que os
musculosos suíços se tornassem seus guarda-costas pessoais e integrassem a
coluna de seu exército.
Nada disso teria parecido muito relevante para Ulrico Zuínglio quando,
aos 22 anos, ele se tornou o sacerdote da paróquia da pequena cidade de
Glarona. Ele estava em uma confortável carreira na igreja. Mas, Glarona era
quase um acampamento militar, fornecendo alguns dos maiores contingentes de
homens para o exército papal. Sendo um ferrenho patriota, Zuínglio decidiu
juntar-se a seus homens como capelão do exército, e passou a lutar pelo santo
padre e pela santa madre igreja. A experiência o transformaria para sempre. Em
1515, eles enfrentaram o imenso exército do rei Francisco I da França em
Marignano, fora de Milão. Foi um massacre em que mais de dez mil suíços
morreram. A visão romântica dos nobres suíços lutando com honra por uma
causa santa afogou-se naquele sangue. Zuínglio percebeu que se enganara a
respeito da guerra e do papa. O choque o forçou a questionar em que mais ele
poderia estar enganado.

Um estranho mundo novo


Voltando a Glarona, ele percebeu ter passado anos lendo comentários bíblicos,
mas sem jamais ter lido a própria Bíblia. Assim, em 1516, ele comprou uma
cópia recém-saída da gráfica do Novo Testamento Grego de Erasmo e tomou o
revolucionário passo de tentar entendê-lo. Isso não soa nada revolucionário hoje,
mas mostra com que profundidade a Reforma mudou a Europa. Naquela época,
ir direto para a Bíblia e tentar entendê-la era considerado algo perigosamente
subversivo. Sem a orientação do papa, as pessoas podiam fazer a Bíblia dizer
qualquer coisa. Pior: isso implicava que o papa não era o intérprete da Escritura
nomeado por Deus.
Essa era uma ladeira escorregadia para o cisma, para afastar-se dos
braços da “santa madre igreja”. Contudo, Zuínglio experimentou mais que a
emoção de quebrar as regras. Ao abrir seu exemplar do Novo Testamento, ele
desfrutou do que alguém raras vezes usufruiu na Europa por um milênio: pôde
ler a própria Palavra de Deus, as próprias palavras que o Espírito Santo
concedera aos apóstolos para escrever. Ele estava tão empolgado que copiou
muitas das cartas de Paulo e memorizou quase todo o Novo Testamento em
grego. Para Zuínglio, isso significou uma jornada semelhante à de Colombo
vinte anos antes: ele encontrou um novo mundo na Bíblia, um mundo com que
ele nunca sonhara. Mas, se foi assim que Zuínglio foi convertido, esta não foi
uma conversão ao estilo de Lutero. Ele não tinha problemas sérios com o culto
dos santos, tornando-se sacerdote do santuário da Virgem Negra de Einsiedeln,
em 1516; e ele não tinha um problema real com o papado, recebendo com
alegria a pensão papal por seus serviços no exército papal. De fato, após dois
anos, um mês depois de Lutero ter sido convocado a Roma para explicar-se, ele
foi apontado capelão papal. Ele permaneceria parte do sistema romano por mais
alguns anos, mas sua teologia estava evoluindo nesse período. Ele gastava sua
pensão papal com livros e começou a estudar hebraico para também poder ler o
Antigo Testamento do jeito, ele acreditava, que Deus o tinha ditado.
Enquanto isso, as multidões de peregrinos que iam a Einsiedeln
propagavam sua reputação como pregador. E foi assim que, em 1518, o menino
do vilarejo com forte sotaque camponês foi nomeado pregador na Grossmünster
(Grande Igreja) em Zurique. Não foi uma nomeação popular; embora o povo não
tivesse problema com suas opiniões, houve oposição porque ele admitiu ter
visitado uma prostituta recentemente. Entretanto, ele parecia arrependido de
verdade e, em todo caso, essa pequena comoção foi eclipsada quase de imediato
pelo que Zuínglio fez a seguir. No sábado, 1º de janeiro de 1519 (seu aniversário
de 35 anos), ele subiu ao púlpito sob as altas torres da Grande Igreja e anunciou
que, em vez de pregar leituras predefinidas e encher seus sermões de
pensamentos dos teólogos medievais, ele pregaria todo o Evangelho de Mateus
versículo a versículo. E, ao terminar isso, ele continuaria seguindo pelo resto do
Novo Testamento. A Palavra de Deus chegaria a todas as pessoas de forma pura,
inalterada e constante: esse era o único alvo de Zuínglio e Zurique seria
reformada assim.
Mais um acontecimento mudaria Zuínglio de maneira significativa. Em
1519, a praga atingiu Zurique e quase levou Zuínglio consigo. Isso foi tão
marcante para ele como o raio que quase atingiu Lutero catorze anos antes:
levado à beira do abismo da morte, ele foi forçado a pensar na eternidade. Mas,
enquanto Lutero invocou santa Ana, Zuínglio descobriu que só poderia confiar
na misericórdia divina. Quando ele se recuperou, era um homem mudado, um
homem com a missão de fazer algo corajoso para Deus. Agora, ele enxergava
com clareza que a confiança em coisas criadas — santos ou sacramentos — era
flagrante idolatria. Ele conduziria o coração do povo dos ídolos para o Deus vivo
de misericórdia.

O soldado gentil
Todavia, isso ainda não significava queimar bulas papais e escrever tratados
contra Roma. Enquanto Lutero fazia tudo isso, Zuínglio se uniu à hierarquia
católica romana ao aceitar o cargo de clérigo na Grande Igreja. Seu
temperamento fazia dele alguém muito cauteloso, agindo com covardia às vezes,
e isso significava que a Reforma em Zurique foi menos dramática e explosiva
que em outros lugares. Ligado a isso, havia o fato de Roma depender dos
mercenários suíços e, assim, embora cada vez mais preocupados com as notícias
de Zurique, os papas não sentiam que poderiam incomodar a cidade com a
excomunhão de Zuínglio. Em 1523, antes de perceber que não havia mais
homens de Zurique indo lutar por Roma, o papa sentiu que poderia escrever uma
carta amigável e cheia de elogios a Zuínglio.
Como consequência, alguns radicais em Zurique começaram a considerar
Zuínglio um obstáculo, impedindo o fluir do Espírito derramado na obra da
Reforma. Eles queriam remover essa barreira e acelerar o passo. Entretanto, a
falta de ação em Zurique não deve ser confundida tão facilmente com falta de
reforma. Zuínglio sabia que forçar a mão, embora empolgante, não efetivaria
uma mudança real. Ao contrário, ele cria que o verdadeiro segredo da reforma é
mudar o coração do indivíduo pela aplicação do evangelho. A reforma externa
das igrejas deve fluir da conversão interna se quisermos algo mais que uma
cirurgia plástica. Assim, em vez de uma campanha por mudança, Zuínglio
dedicou-se a pregar a Palavra de Deus. Tendo preparado o povo, ele então
esperaria que eles exigissem a mudança requerida pela Palavra de Deus. Os
resultados não foram rápidos, mas sua duração foi quase singular, além até de
sua morte. Quando as mudanças chegaram a Zurique, elas vieram da profunda
convicção popular de serem ordenadas pela Palavra de Deus e assim
permaneceram.
A clareza e a certeza da Palavra de Deus
Em 1522, Zuínglio escreveu uma de suas maiores obras sobre o poder e
a eficácia da Palavra de Deus. Nela, ele começa com o exame de
Gênesis 1.26, onde enxerga as três pessoas da Trindade em cooperação
para criar a humanidade à sua imagem. Pelo fato de isso ter acontecido,
Zuínglio diz, a humanidade, sendo criada à imagem desse Deus, sempre
almeja em segredo a Palavra divina. Nós nem mesmo estamos cientes
desse desejo, mas ele subjaz a todos os nossos anseios: anelamos a vida
e a luz fornecidas pela Palavra de Deus.
São essas duas características da Palavra de Deus que Zuínglio quer
examinar de fato: ela é uma palavra de poder vivificador e uma palavra
de iluminação. Primeiro, ele diz, a Palavra de Deus possui certeza
(quando Deus fala, acontece; por exemplo, quando ele diz “Haja luz!”).
Segundo, a Palavra de Deus possui clareza. Com isso, ele quer dizer que
ela não apenas é inteligível, mas fornece iluminação. Não precisamos ser
iluminados de antemão para entender a Palavra de Deus, pois não
trazemos nossa luz para a Palavra. Ao contrário, a Palavra é luz e traz
luz às nossas trevas naturais. Essa crença era essencial para o projeto de
reforma de Zuínglio: ele poderia pregar as Escrituras a todos porque as
Escrituras podem ser entendidas por todos. Elas não deveriam ser
exclusividade da elite educada. Mas, ao dizer que a Palavra de Deus
fornece sua própria iluminação, Zuínglio também queria dizer que não
reconhecemos a Bíblia como Palavra de Deus porque alguém nos diz ou
por algum argumento racional, mas porque, quando Deus fala, somos
compelidos a reconhecer sua Palavra pelo que ela é. Sabemos que as
Escrituras são divinas, não quando o papa diz, mas quando as lemos. Se
não o percebemos, a falha está em nós; ele diz:
Considere um bom vinho forte. Para a pessoa saudável seu sabor é excelente. Ele a deixa
feliz, fortalece-a e aquece seu sangue. Mas, se há alguém a sofrer com alguma doença ou
febre, essa pessoa não pode nem prová-lo, quanto mais bebê-lo, e fica admirada pelo fato
de a pessoa saudável conseguir fazê-lo. Isso não se deve a algum defeito no vinho, mas à
doença. Assim também é com a Palavra de Deus. Ela é correta em si mesma e sua
proclamação é sempre para o bem. Se há quem não a pode suportar, entender ou receber,
é porque está doente.
Essa estima à Escritura serviu de motor para a transformação de Zurique.
A Palavra de Deus, Zuínglio dizia, é como um rio poderoso e indomável.
Ela deve ser pregada com confiança completa, pois é o poder eficaz de
Deus parar criar, salvar e mudar o mundo.
As mudanças vieram, mas nem todos gostaram: os católicos genuínos
contestavam a teologia de Zuínglio; os monges temiam ser expulsos de seus
monastérios; também havia os que não queriam mudanças. Logo, rumores
sombrios sobre Zuínglio começaram a ser ouvidos nas ruas: ele era um espião a
serviço do rei da França ou (extraordinariamente) do papa; um libertino (abrindo
a velha ferida); herege; talvez fosse até o anticristo.
Fofocas eram uma coisa, mas ser chamado herege colocava em cheque a
própria essência da Reforma. Zuínglio se esforçou para defender sua teologia e,
cinco anos depois de Martinho Lutero escrever suas 95 teses, Zuínglio escreveu
67. Mas, enquanto Lutero se restringiu a atacar as indulgências e a teologia
medieval corrupta, Zuínglio apresentou um conjunto muito mais abrangente do
pensamento da Reforma. Nas teses, ele argumentava que Cristo, o verdadeiro
cabeça da igreja, governa a igreja por meio de sua Palavra, não do papa. Assim,
a Bíblia, não o papa, é o mestre. Essa foi a punhalada direta no coração das
alegações do papa e de seu poder. Ele também argumentava que a morte de
Cristo na cruz foi um sacrifício completo e não precisava ser repetido na missa.
Isso desafiava o propósito do sacerdócio, pois a incumbência dos padres era
celebrar a missa. Ele atacou a prática de rezar aos santos, negou a existência do
purgatório, e defendeu que só a fé em Cristo, não nossas boas obras, pode salvar.
Essa foi a primeira salva de tiros contra Roma. Mas foi uma salva potente.

Zuínglio roubou de Lutero?


Zuínglio sempre afirmou que chegou às suas opiniões sem a ajuda de
Lutero:
Os papistas dizem: “Você deve ser luterano porque prega como Lutero escreve”. Eu
respondo: “Eu prego como Paulo escreve. Por que não me chamar de paulino?”. Eu não
serei chamado pelo nome de Lutero, pois li pouco de seus textos. Eu não tenho outro
nome além do nome do meu capitão, Cristo, de quem sou soldado. Ainda assim, estimo
Lutero tanto quanto qualquer outra pessoa viva.
Muitos acham que o fato de Zuínglio ter chegado a posições tão
“luteranas” de forma independente, mas quase ao mesmo tempo, é uma
coincidência grande demais para ser crida. Assim, ele seria, na verdade,
um seguidor oculto de Lutero que apenas fingiu descobrir tudo sozinho
para ficar com a glória?
Provavelmente não. O tom do pensamento de Zuínglio é muito diferente
do de Lutero, e ele enfatiza coisas diferentes. Por exemplo, à semelhança
de Lutero, Zuínglio quase definitivamente acreditava na justificação só
pela fé, mas essa doutrina nunca teve a mesma proeminência em seu
pensamento como teve para Lutero. E nem significava a mesma coisa.
Lutero acreditava que, quando Adão pecou e foi declarado culpado, toda
a raça humana ficou, por assim dizer, “vestida” de sua culpa; mas,
quando voltamos para Cristo, somos “vestidos” de sua justiça. Zuínglio,
por sua vez, cria que cada um de nós torna-se culpado quando
efetivamente peca, mas que Cristo nos faz justos em nós mesmos. A
ideia de que os crentes são, ao mesmo tempo, justos (em posição diante
de Deus) e pecadores (no coração), não passa pela mente de Zuínglio.
Em vez disso, a ênfase de Zuínglio era mais na idolatria, o problema de
confiar nas criaturas em lugar do Criador.
Se houve alguma influência sobre Zuínglio além da Bíblia,
provavelmente proviria mais de Erasmo que de Lutero. Como Erasmo, e
bem diferente de Lutero, ele citaria Platão com tanta facilidade quanto
Paulo para provar seus argumentos. Como Erasmo, ele tendia a pensar
em Cristo como um exemplo para nós, mais que como nosso Salvador.
Todavia, isso não deve receber ênfase exagerada: repetidas vezes
encontramos em Zuínglio frases como: “Como Abraão aceitou Jesus, sua
bendita semente, e por ele foi salvo, também hoje somos salvos por ele”.
Ainda assim, a salvação recebe atenção menor de Zuínglio. Disso
resultam as diferenças entre as mensagens dos dois: enquanto Lutero
abria a Bíblia para encontrar Cristo, Zuínglio buscava apenas abrir a
Bíblia.
Essas diferenças entre eles tornaram-se pontos de tensão com o passar do
tempo, até que, em 1529, os dois se encontraram. Filipe, o regente
protestante de Hesse, na Alemanha central, convidou-os a seu castelo em
Marburgo na tentativa de unir o protestantismo. Eles descobriram que
concordavam na maioria dos pontos, mas, quanto à ceia do Senhor, eram
irreconciliáveis. Lutero acreditava que o corpo e o sangue de Cristo
estavam realmente presentes no pão e no vinho, tornando a ceia do
Senhor um dom da graça divina. Quem recebe a Cristo com fé é
abençoado, quem toma a ceia sem fé enfrenta um juízo especial por
desprezar o Cristo oferecido a ele. Zuínglio defendia que o corpo de
Cristo não pode encontrar-se presente, em sentido literal, no pão, mas é
simbolizado pelo pão. Para ele, a ceia do Senhor consistia em um
símbolo que nos ajuda a celebrar o sacrifício de Cristo e significa nossa
membresia em seu corpo. Lutero estava horrorizado. Parecia a ele que
Zuínglio estava transformando a ceia em uma oportunidade para
fazermos algo (i.e., comemorar e dar significado a algo sobre nós). Sem
dúvida, isso significava que a ceia do Senhor já não trataria mais de
graça, mas de obras. Acreditando que Zuínglio havia comprometido o
evangelho de modo irreversível, Lutero recusou-se a se associar a ele. As
reformas em Wittenberg e Zurique seguiriam, daí em diante, separadas.

Zurique recrutada
Chegou a hora do confronto entre Zuínglio e seus oponentes. Um debate público
foi organizado para o dia 29 de janeiro de 1523, e Zuínglio deveria defender sua
posição ali. Quando o dia chegou, a prefeitura estava lotada, pois ocorreria uma
tensa luta teológica com o futuro de Zurique em jogo. Zuínglio entrou e, quase
de imediato, deixou claro que contava com armas melhores. Ele falou enquanto
mantinha cópias do Novo Testamento em grego, do Antigo Testamento em
hebraico e da Vulgata em latim diante de si. E estava claro que ele os conhecia
muito bem; ele conseguia citar longas passagens dos textos originais de
memória. Em suma, ele foi imbatível, e o debate, um completo triunfo para ele.
Ninguém ousava encarar esse peso-pesado teológico com a acusação de heresia.
E mais: Zuínglio levou tanto a melhor que o concílio da cidade regulamentou de
imediato que apenas a pregação bíblica seria legal em Zurique.
Evidentemente, isso mudou tudo. Mas, a primeira pergunta agora era:
como isso poderia acontecer? Muitos poucos conheciam a Bíblia bem o bastante
para conseguir pregar de forma realmente bíblica. E, assim, Zuínglio começou a
trabalhar na criação de uma escola para pregadores. O primeiro estágio era uma
escola de gramática para moços, a fim de alfabetizá-los. Depois disso, o estágio
seguinte era uma faculdade teológica. Ali, os estudantes recebiam, como
Zuínglio expressou, “o dom de línguas” (o conhecimento de hebraico, grego e
latim) e lhes ensinava a “profetizar” (pregar). Com seus dias dedicados ao estudo
bíblico e às palestras sobre teologia, surgiu uma geração de pastores e
missionários treinada no conhecimento da Bíblia. Desses períodos de estudo
vieram comentários sobre vários livros da Bíblia, bem como uma tradução
completa e ricamente ilustrada, publicada como a Bíblia de Zurique em 1531.
Assim, Zuínglio carregou os compartimentos de bomba da Reforma em Zurique,
tornando a invasão bíblica quase impossível de resistir.
Era inevitável que alguns monastérios começassem a fechar; monges e
freiras abandonavam esses locais ou passavam a tratá-los como hotéis. As igrejas
estavam sendo completamente transformadas: relíquias, imagens de santos,
crucifixos, velas, altares e vestes sacerdotais foram removidos. Até os órgãos
foram retirados, pois Zuínglio desaprovava a música instrumental na igreja,
temendo que sua beleza tentasse as pessoas a idolatrar a própria música. No
entanto, a mudança principal ocorreu na Páscoa de 1525. Em vez de celebrar a
missa, pães comuns foram colocados em pratos de madeira em uma mesa
simples no meio da igreja; do lado, havia um jarro de vinho. Nada foi entoado
em latim; todo o culto ocorreu no alemão suíço que o povo podia entender.
Então, pela primeira vez, as pessoas, ainda assentadas nos bancos, receberam
não apenas o pão, mas também o vinho. E com isso, não mais recebendo os
sacramentos da Igreja de Roma, o rompimento estava completo.

Anna Zuínglio
Bem cedo, Zuínglio convenceu-se de que Roma estava errada ao insistir
no celibato de seus sacerdotes. A Bíblia não ensinava isso. Porém, ele
cria que se casar consistiria em uma pedra de tropeço desnecessária para
quem não tinha ainda alcançado o conceito da autoridade da Bíblia sobre
o papa. Assim, em 1522, ele casou-se em segredo com Anna Reinhart.
Só depois de dois anos, ele sentiu que o povo conseguiria aceitar isso e,
então, os dois se casaram oficialmente e tiveram muitos filhos, dos quais
vários morreram na infância.
Em casa, Zuínglio mostrava que, embora desaprovasse a música na
igreja, na realidade, ele era um músico talentoso e capaz de tocar vários
instrumentos diferentes. Em geral, esses talentos parecem ter sido usados
para divertir as crianças e mandá-las dormir!
Quando Zuínglio morreu, seu tenente e sucessor, Heinrich Bullinger,
recebeu Anna e os dois jovens filhos remanescentes em sua casa.

Uma espada para o Senhor


Nos dias de Zuínglio, Zurique era parte da Confederação Suíça, oficialmente
parte do Sacro Império Romano, mas para todos os efeitos e propósitos, uma
coligação independente de miniestados (chamados cantões). Todavia, toda a
reforma de Zurique estava deixando os cantões mais católicos cada vez mais
nervosos. A Confederação sobreviveria à desunião religiosa? Talvez as forças
católicas do imperador fizessem todos eles pagarem pelo crime de Zurique com
uma invasão. Eles preferiram evitar esse tipo de desastre que viam Zurique
inevitavelmente trazer sobre todos. Logo os rumores de guerra podiam ser
ouvidos nos vales e, no verão de 1531, um cometa (Halley), presságio de
conflito, foi visto nos céus.
Não demorou muito. Um exército suíço católico logo estava marchando
com um propósito: invadir e converter Zurique. Uma força defensiva foi
apressadamente montada. Sabendo que um ataque bem-sucedido provavelmente
apagaria a vela do evangelho em Zurique, Zuínglio vestiu sua armadura e
preparou-se para liderar os homens. “Mercenário de Deus” até o fim, ele
defenderia o evangelho com armas. Em 11 de outubro, fora de Zurique, na
batalha de Kappel, os dois exércitos mediram forças. Não houve disputa: as
forças de Zurique foram facilmente esmagadas, e Zuínglio gravemente ferido.
Ao encontrá-lo incapaz de mover-se, os soldados vitoriosos exigiram que ele se
dirigisse em oração à virgem Maria. Ele se recusou e, assim, o capitão Fuckinger
de Unterwalden o apunhalou até a morte; seus homens foram encarregados de
esquartejar e queimar o corpo. Como gesto final, misturaram suas cinzas com
estrume para impedir que fossem transformadas em relíquias.
Em pouco tempo, uma lenda cresceu em torno disso. Afirmava-se que no
(simbolicamente importante) terceiro dia após a morte de Zuínglio, alguns
amigos encontraram os restos mortais dele no campo de batalha
(presumivelmente bastante fétidos). Ali, eles viram seu coração emergir
imaculado das cinzas. Eles o dividiram entre si para serem guardados, muito
ironicamente, como relíquias. Provavelmente, há algo mais na história que mera
tolice supersticiosa. É quase certo que, antes de Zuínglio ser morto, ele tenha
gritado: “Vocês podem matar o corpo, mas não poderão matar a alma!”. O que a
lenda do coração de Zuínglio capta é que, embora seu corpo tenha sido destruído
e queimado, seu coração não poderia ser morto. Seu espírito sobreviveu nas
pessoas tocadas por sua pregação. As mãos capazes de Heinrich Bullinger
assumiram as rédeas da Reforma de Zurique, guiando-a à maturidade estável
pelos próximos quarenta anos. E, cinco anos depois, um francês chamado João
Calvino chegou à cidade suíça de Genebra trazendo consigo, aparentemente,
parte do coração de Zuínglio.

Radicalização
Lutero e Zuínglio enfrentaram presença de radicais. Em Wittenberg e Zurique
havia aqueles que pensavam que a Reforma estava caminhando muito devagar
ou não na medida por eles desejada. A história da Reforma Radical diz respeito
principalmente a Zurique, pois os radicais de lá, no final, obtiveram muito mais
sucesso. Eles deixaram o legado mais duradouro. Antes de tudo, entretanto,
precisamos brevemente retornar a Wittenberg.
O ano é 1521. Martinho Lutero, ao voltar da Dieta de Worms, foi raptado
e colocado em custódia preventiva no castelo de Wartburg. A Reforma em
Wittenberg, portanto, encontrou-se por um tempo nas mãos do colega de Lutero,
Andreas Karlstadt. Foi um erro: Karlstadt era impetuoso, e forçava a reforma em
um ritmo com que o povo não poderia lidar. No Natal, por exemplo, ele deu pão
e vinho ao povo, ordenando que eles mesmos pegassem o pão do prato, em lugar
de inseri-lo na boca das pessoas como os sacerdotes católicos faziam. Os
presentes ficaram chocados e horrorizados. Eles criam que o pão era o próprio
corpo de Cristo: pegá-lo com as mãos imundas representava um sacrilégio
terrível. Um homem tremia tanto que derrubou o pão. Karlstadt mandou que ele
o pegasse, mas o homem estava tão abalado emocionalmente que não foi capaz.
Todavia, Karlstadt não estava sozinho ao forçar a reforma acelerada.
Assim que os males da idolatria foram proclamados dos púlpitos, tornou-se
quase impossível deter as multidões que realizavam tumultos iconoclastas
regados a álcool. Isso não significa negar a sinceridade religiosa dos destruidores
de imagem. Muitos eram profundamente contrários às imagens e a tudo o que
elas representavam. A questão se resumia ao fato de não haver muitos
passatempos empolgantes no século XVI; assim, destruir estátuas, quebrar
vidros e queimar imagens de madeira lhes parecia algo divertido. Pessoas
bêbadas e as entediadas não precisavam de muito para serem aliciadas. E toda a
experiência era deliberadamente programada para ser divertida. Em um caso, por
exemplo, uma estátua de madeira da virgem Maria foi acusada de ser uma
feiticeira. Ela foi lançada no rio para ser testada. Sendo de madeira, ela
evidentemente flutuou; assim foi condenada e queimada. Todo mundo adorava
lembrar essa.
Para piorar, três homens da área de Zwickau chegaram a Wittenberg,
afirmando serem profetas que não precisavam da Bíblia, pois o Senhor falava
com eles. Rejeitaram o batismo infantil e defendiam o avanço do reino de Deus
por meio do massacre dos ímpios: “Nasça de novo ou morra!”. As comportas da
mudança foram abertas, e as águas começaram a correr. Wittenberg estava em
uma espiral rumo ao caos.
Lutero, ignorando a sentença de morte que pairava sobre ele, saiu do
esconderijo para pedir uma reforma mais cuidadosa. Pregou uma série de
sermões em que, como Zuínglio, defendia que a verdadeira reforma viria pela
conversão do coração das pessoas, não pela alteração de práticas externas. E, à
semelhança de Zuínglio, disse que o poder de mudar os corações encontrava-se
só na Palavra de Deus, não em martelos, fogo e força:
Eu não constrangerei ninguém pela força, pois a fé deve vir livremente sem compulsão. Observem
meu exemplo: Eu me opus às indulgências e aos papistas, mas nunca pela força. Eu apenas ensinei,
preguei e traduzi a Palavra de Deus; fora isso, não fiz mais nada. Enquanto eu dormia ou bebia a
cerveja de Wittenberg com meus amigos Filipe e Amsdorf, a Palavra enfraqueceu o papado de tal
forma que nenhum príncipe ou imperador jamais seria capaz. Eu não fiz nada; a Palavra fez tudo.
Os radicais, Lutero acreditava, não compreendiam o alvo da Reforma. Seu
ataque era contra a ideia de que poderíamos fazer algo para obter mérito diante
de Deus. O ataque dos radicais objetivava questões externas como as imagens,
os sacramentos e, no caso dos “profetas” de Zwickau, a Bíblia. A mensagem de
Lutero anunciava a salvação toda como um dom puro a ser recebido com fé
simples. A mensagem deles era que coisas externas deveriam ser rejeitadas.

Os tornados gêmeos: Müntzer e Münster


Lutero conteve os ânimos em Wittenberg, mas em outros lugares o fogo
começava a sair de controle. Acima de tudo, isso aconteceu por causa de
Thomas Müntzer, um inferno ambulante que fazia Karlstadt parecer um cobertor
molhado. Com sua mistura única de misticismo, luteranismo e islamismo,
Müntzer era um pregador de fogo e enxofre que via a si mesmo como um novo
Gideão, um profeta-guerreiro enviado para trazer juízo sobre os ímpios. Ele
sabia de tudo isso porque, como acreditava, Deus lhe falara sua “palavra interna”
— direta a seu coração, uma palavra infinitamente superior à “palavra externa” e
morta da Bíblia, proclamada por Lutero. Previa-se que ele não fosse cortês a
respeito de Lutero, que o considerava inimigo da verdadeira Reforma. Lutero,
claro, também respondia à altura: “Müntzer”, ele disse certa vez, “pensa que
engoliu o Espírito Santo, com penas e tudo!”.
Müntzer preocupava-se com paixão em observar as implicações sociais
do evangelho de Lutero. Lutero ensinara a igualdade espiritual e liberdade de
todos os crentes. Müntzer achava que isso deveria ser passado para a sociedade,
transformando-se em igualdade social e liberdade política. Desigualdade,
opressão política e toda impiedade deveriam ser purgadas. Então, o apocalipse
viria, e Müntzer queria acelerar esse dia com o fio de sua espada. Tudo isso
contrariava o pensamento de Lutero, que entendia a liberdade cristã como algo
inteiramente desconectado de liberdade política. As famosas frases de abertura
de seu Da liberdade cristã diziam tudo: “Um cristão é senhor de todos,
perfeitamente livre, e a ninguém sujeito. Um cristão é servo de todos,
perfeitamente obediente, e a todos sujeito”. Para Lutero, o camponês oprimido
poderia, em sentido espiritual, ser tão livre quanto o príncipe opulento.
Não obstante, homens como Müntzer e agitação social muitas vezes
caminham juntos. Em 1381, o grito de John Ball alimentou a Revolta dos
Camponeses Ingleses (“Quando Adão cavava e Eva tecia, quem era o senhor
feudal?”). A história estava prestes a repetir-se. A pregação inflamada e
apocalíptica de Müntzer representou uma lufada de oxigênio puro na flama
latente do descontentamento social. Logo, boa parte da Europa estaria em
chamas. Sem dúvida, os tempos eram bons para um homem como Müntzer: o ar
estava carregado de expectativas apocalípticas e profecias extravagantes. A
predição de que, em 1524, todos os planetas se alinhariam no signo de peixes foi
vista por muitos como um presságio de um grande mal. Então, as tensões
explodiram na Guerra dos Camponeses alemães em 1524-1525, a maior revolta
popular na Europa antes da Revolução Francesa de 1789. O ponto culminante
veio em 1525, quando Müntzer liderou um exército de camponeses na batalha de
Frankenhausen. Quando a luta estava prestes a começar, um arco-íris apareceu, o
que Müntzer interpretou como sinal do juízo divino sobre o inimigo. Os mal
equipados camponeses atacaram apenas para serem massacrados pelo exército
profissional. Müntzer foi capturado, torturado e decapitado.
Junto com ele, morreu grande parte da boa vontade em relação à
Reforma. Vários regentes, incapazes de distinguir Müntzer de Lutero, agora se
tornavam implacavelmente duros em relação à totalidade do movimento. Se a
Reforma significava rebelião, eles estariam determinados a esmagá-la. Quanto
aos que conseguiam efetuar a distinção, sua raiva e suspeita concentravam-se
agora sobre todas as formas de radicalismo. Isso não seria mais tolerado.
Contudo, Müntzer foi apenas a primeira flecha lançada pela Europa. O
pior estava por vir. Um padeiro carismático de Haarlem, Jan Matthijs, ainda
acreditava, como muitos outros, que o fim estava próximo. Diferente de
Müntzer, contudo, Matthijs sabia dos detalhes. Ele previu que a cidade de
Münster, no nordeste da Alemanha, seria a futura nova Jerusalém. Ela seria o
centro de toda a ação apocalíptica, onde os verdadeiros crentes se reuniriam, e de
onde o juízo do Armagedom teria início. Logo os radicais confluíam para
Münster, onde, em 1534, eles conseguiriam chegar ao poder nas eleições do
concílio da cidade.
Com isso, a mudança se instalou de forma instantânea. O batismo infantil
foi proibido e o batismo dos adultos tornou-se compulsório. Os resistentes foram
expulsos da cidade. O comunismo foi imposto, e as portas das casas deviam
permanecer abertas dia e noite para demonstrar que todas as propriedades eram
de fato comuns. Münster tornara-se o escândalo da Europa, e logo a cidade foi
sitiada. Contudo, isso apenas alimentou o frenesi apocalíptico dentro da cidade.
No domingo de Páscoa de 1535, Matthijs avançou sozinho contra o exército,
aparentemente sob a impressão de que Deus o capacitaria a sozinho derrotar
todos. Isso não aconteceu. Talvez um homem chamado Jan van Leiden o tenha
encorajado a isso, pois foi ele quem sucedeu Matthijs (depois de impressionar
toda a cidade de Münster ao correr nu pelas ruas gritando profecias em êxtase e
espumar pela boca). Van Leiden dissolveu o concílio da cidade, escolheu
simbólicos doze novos presbíteros e, com uma maçã de ouro em sua mão
(representando seu reinado global) promoveu a própria unção como o rei Davi
dessa nova Jerusalém. A poligamia foi instituída e imposta, tendo como
alternativa a execução. Na verdade, recusar o batismo, reclamar, caluniar,
censurar os pais e uma série de “ofensas” triviais agora recebiam pena de morte.
Jan pessoalmente decapitou e pisoteou uma de suas dezesseis esposas na praça
da cidade apenas por ela ser atrevida.
Por fim, cansados de tudo isso, em junho de 1535, dois cidadãos abriram
um dos portões da cidade para o exército que os cercava (uma força combinada
de luteranos e católicos, tamanha era a unidade da oposição), que invadiram
massacrando quase todos. Mas, para Van Leiden, só a morte mais macabra
serviria: ele e dois escudeiros foram dilacerados com tenazes em brasa e
depositados em três jaulas, que (embora os ossos tenham desaparecido há muito
tempo) ainda podem ser vistas penduradas na torre da igreja de São Lamberto.
Alguns (os batenburguenses, liderados por Jan van Batenburg) achavam
que o problema era que Jan van Leiden não sofrera o bastante. Mantendo seu
comunismo polígamo, eles provocaram uma carnificina, matando todos os que
não se unissem a ele. Para a grande maioria, entretanto, o legado combinado de
Müntzer e Münster lançou uma longa sombra de suspeita sobre a Reforma
Radical. Com amigos como esses, os radicais não precisavam de inimigos.
Muitos deles podem ter sido pacifistas, mas, agora, todos eles ficaram rotulados
como revolucionários perigosos. Isso significaria décadas de perseguição brutal
de todos os lados. Isso também significaria uma mudança de rumo. Agora
suspeitando de autoproclamados profetas carismáticos, um número crescente
começou a voltar-se para o radicalismo amante da Bíblia e da paz que saía de
Zurique.

O escândalo das salsichas


Em Zurique, eles não faziam revoltas e tumultos. Eles comiam salsichas. Era a
Quaresma de 1522 quando doze amigos se reuniram para festejar comendo
salsicha. Segundo a tradição, não era permitido comer carne durante a
Quaresma. Aqueles homens queriam desafiar a tradição humana. Zuínglio
resolveu não participar: promover atos com salsichas não era seu estilo de
reforma. Mas, ele defendeu publicamente seus amigos, pois a Quaresma, ele
argumentou, era apenas instituição humana. Os cristãos deveriam adorar a Deus
só de acordo com o mandamento dele; acrescentar mandamentos humanos (quais
alimentos consumir e quando) significava acrescentar um fardo desnecessário
que Cristo nunca pediu que seus seguidores levassem.
Entretanto, o escândalo das salsichas de Zurique foi apenas o primeiro
estrondo. Isso mostrou que havia homens em Zurique que, a partir apenas do
ensino da Bíblia, discordavam do modelo de reforma de Zuínglio. Logo, eles
estariam interrompendo cultos e destruindo imagens. E mais, eles queriam se
separar da corrupção da igreja que viam a seu redor, organizando congregações
novas e puras, compostas apenas de verdadeiros crentes. Essa era sua principal
divergência com Zuínglio. Ele queria reformar a igreja, não abandoná-la.
Juntas, essas diferenças — querer forçar a reforma, querer separação —
criaram a crise do batismo. Em 1524, o pastor de uma cidade próxima de
Zurique começou a pregar contra o batismo infantil, e alguns começaram a
recusar ter os filhos batizados. Essa era uma declaração evidente de que eles
queriam forçar sua separação da velha igreja corrupta. E, assim, como a ceia do
Senhor afastou Lutero de Zuínglio, o batismo separaria Zuínglio dos radicais.
Era irônico, contudo, porque em muitos sentidos a visão radical do batismo era
apenas uma extensão do próprio pensamento de Zuínglio. O reformador
argumentara que a ceia do Senhor significava a expressão da fé do indivíduo. Os
radicais diziam a mesma coisa a respeito do batismo. Eles o interpretavam como
testemunho público do fato de terem sido interiormente batizados no Espírito e
nascido de novo. Mas, isso era muito diferente das declarações de Zuínglio e
Lutero sobre o batismo. Para eles, o batismo era um dom do evangelho
correspondente à circuncisão do Antigo Testamento, e algo a ser respondido pela
fé. Isso fazia toda a diferença: as palavras de Zuínglio e Lutero tornavam próprio
o batismo de bebês. O que os radicais diziam tornava o ato de todo errado.
Uma disputa pública sobre o tópico foi organizada em 1525. No final,
Zuínglio e Bullinger foram considerados vencedores, e o concílio ordenou que
todas as crianças fossem batizadas sob a pena de banimento. Poucos dias depois,
um pequeno grupo de homens caminhou pela neve até a casa de Felix Mantz.
Ali, Conrad Grebel, o amado líder dos radicais de Zurique, batizou George
Blaurock, que então batizou os outros. Nas semanas que se seguiram, muitos
mais adultos foram batizados, e eles logo começaram a celebrar a ceia do Senhor
por si próprios. Todos reconheceriam isso como uma declaração de
independência da igreja existente: aquele agora era um movimento distinto, os
“Irmãos Suíços”. Se as pessoas não tivessem entendido ainda, elas entenderam
quando um grupo desfilou por Zurique gritando “Ai, ai de ti, Zurique!”. Pelo
fato de terem recebido o batismo na fase adulta — além do batismo na infância,
eles (junto com todos os radicais) foram daí em diante sarcasticamente
conhecidos como “anabatistas” (literalmente, “rebatizadores”).[4]
Tudo isso era intolerável para o concílio da cidade, que decretou que
esses rebatizadores deveriam ser sentenciados ao segundo “rebatismo”, ou
afogamento. O primeiro a enfrentar esse destino foi Felix Mantz. Em janeiro de
1527, ele foi levado em um pequeno bote até o meio do rio Limmat que corre
por Zurique, suas mãos foram amarradas, e ele foi colocado dentro da água
congelada para se afogar. As pessoas que estavam nas margens e assistiam à
execução ficaram impressionadas com sua quieta e mansa coragem. Elas podiam
ter desprezado o que ele defendia, mas foram forçadas a reconhecer que ali
estava um radical muito diferente de Thomas Müntzer.
Em muitos sentidos, Mantz mostrou o futuro para o anabatismo: passivo
em vez de agressivo, separatista em vez de revolucionário, conduzidos pela
Bíblia em lugar da “palavra interna”. Porém, como Mantz, eles não podiam
esperar um tratamento melhor como resultado. As longas sombras de Münster e
Müntzer os seguiriam por mais de um século, garantindo que eles
permanecessem os desprezados e temidos bichos-papões da Europa. Mais três
pessoas logo seguiriam Mantz para o fundo do rio Limmat. Eles eram apenas os
primeiros de um grande catálogo de mártires anabatistas.
A rejeição apenas encorajou o separatismo dos anabatistas. Da mesma
forma que o mundo os rejeitava com sua mensagem, eles também sacudiriam o
pó de suas sandálias e rejeitariam o mundo. Eles criariam uma sociedade
alternativa e radicalmente separada de discípulos dedicados, distante da
corrupção do mundo hostil. Seus caminhos pecaminosos deveriam ser evitados,
junto com os que se agarram a eles. Assim, Jacob Hutter, por exemplo,
estabeleceu uma série de assentamentos comunistas no interior da Morávia. Em
1527, Michael Sattler encontrou-se com outros anabatistas em Schleitheim, no
norte de Zurique, e ali compôs o que equivalia a uma confissão anabatista de fé,
a Confissão de Schleitheim. Seus sete artigos incluíam o separatismo, afirmavam
o credobatismo, a necessidade de evitar o pecador, que a ceia do Senhor é apenas
para os crentes adultos batizados, a separação de crentes e incrédulos, a
importância de pastores na igreja e o direito do povo de escolhê-los, o pacifismo
completo e a rejeição de juramentos.
Entretanto, se algum anabatista fosse ingênuo o bastante para imaginar
que o separatismo os ajudaria na tarefa de serem esquecidos ou ignorados pelo
mundo, ele ficaria bastante decepcionado. Para as autoridades políticas, o
separatismo era quase tão alarmante quanto a revolta. O separatista ofendia não
apenas ao sugerir que ninguém mais era de fato cristão, como também ao recusar
fazer um juramento de lealdade ao Estado; e não se preparar para lutar por seu
país configurava um tipo de traição. Hutter e Sattler experimentaram o que
passariam muitos de seus seguidores: os dois foram torturados com brutalidade;
na sequência, Hutter foi queimado vivo e Sattler dilacerado por tenazes em
brasa.
Outra característica marcante da Confissão de Schleitheim, além do
separatismo, era sua leveza teológica. Seus sete artigos versavam em especial
sobre questões práticas, não sobre a identidade de Deus ou a forma da salvação.
E parece que isso não ocorreu só porque eles tentavam lidar com as polêmicas da
época; os artigos refletiam algo bastante importante da mentalidade anabatista. A
totalidade do movimento tendia a se interessar mais pela vida cristã que pela
teologia. Para os “reformadores magisteriais”[5] como Lutero, a teologia recebia
o primeiro lugar, informando como então viveremos; para os anabatistas, a
santidade vinha primeiro, e a teologia era feita para estimular a obediência cristã.
Lutero acreditava que esse era um retrocesso desastroso, pois, ao não estudar o
evangelho da graça o suficiente, os anabatistas regrediam a uma religião de
obras. Como resultado, ele os chamava “novos monges”, pois cria que, como os
antigos monges, eles se separavam do mundo apenas para olhar para os próprios
umbigos espirituais.

Menno Simons
Talvez o maior líder anabatista e defensor dessas posições teológicas seja
o holandês Menno Simons. Nascido treze anos depois de Lutero, como o
alemão, ele foi sacerdote católico romano. Contudo, as dúvidas
surgiram. E, com seu irmão Pieter, ele começou a se sentir atraído pela
causa anabatista. Em 1535, Peter foi sugado para a confusão em Münster
e morto. Menno ficou assustado e escreveu seu primeiro livro, Teghens
de grouwelijcke ende grootste blasphemie van Jan Van Leyden [Contra a
blasfêmia de Jan van Leyden]. Era um sinal de alerta para o anabatismo
pacifista, e Menno se tornaria o líder deles. Sob sua direção, o
anabatismo afastou-se de revoluções sangrentas e revelações
particulares. Os menonitas deveriam ser pacíficos e bíblicos. Assim,
Menno selou a vitória do radicalismo pacífico e bíblico do mártir
anabatista de Zurique, Felix Mantz. Müntzer e Münster se tornariam
ruínas do passado; Menno ofereceu ao anabatismo um futuro.

Em quem confiar: Bíblia? Espírito? Razão?


0}

Ainda que, ao longo da história, todos os radicais tenham sido chamados


anabatistas, os historiadores hoje tendem a dividir a Reforma Radical em três
campos: anabatistas, espiritualistas e racionalistas.
Nós já vimos os dois primeiros. Os anabatistas consideravam a Bíblia sua
autoridade suprema, embora diferissem dos reformadores magisteriais no que
enxergavam nela. Os espiritualistas eram homens como Thomas Müntzer, que
seguia a “palavra interna” de Deus recebida de forma direta no coração. Eles
desprezavam coisas externas como a Bíblia e os sacramentos. Sebastian Franck,
por exemplo, em sua obra Verbütschiert Buch [O livro selado] (1539), listou o
que ele via como todas as contradições da Bíblia para conduzir seus leitores da
morta e inútil palavra escrita à viva palavra interna do Espírito. Possivelmente, o
líder mais influente tenha sido Kaspar Schwenckfeld, que conseguiu seguidores
com tanta lealdade que até hoje ainda há quem o siga. Como eles costumavam
encontrar-se era tipicamente espiritualista: sem ministros, sacramentos e
adoração formal, eles se contentavam com oração e exortação mútua nos lares.
Ainda não vimos o terceiro grupo, os racionalistas. Esse grupo acreditava
ter a Reforma demonstrado que a igreja estava errada em muitos aspectos. Mas,
como os outros radicais, eles não achavam que os reformadores principais
haviam feito o suficiente. Havia outras crenças tradicionais da igreja, eles
pensavam, como a doutrina da Trindade, que precisavam ser eliminadas, como o
purgatório, as indulgências e a missa.
A principal figura aqui era um italiano de Siena chamado Fausto Sozzini
(1539-1604), ou Fausto Socino, como ele se tornou mais conhecido. Ele
desenvolveu as ideias de seu tio Lelio para criar um sistema de pensamento, o
socinianismo, considerado a ameaça teológica mais séria do século XVII por
protestantes e católicos. O problema não era estava no grande número de
socinianos; seus números eram semelhantes aos dos seguidores de Schwenkfeld,
e até mais discretos na Polônia. Porém, eles tocaram na ferida, pois os socinianos
questionavam não apenas o que sabemos, mas como o sabemos. Na opinião
deles, a razão, não a Bíblia, deveria ser o juiz, e nada que contradissesse a “sã
razão” ou contivesse uma contradição em si deveria ser crido. A Trindade foi
rapidamente mandada para o olho da rua (três não podem ser um) e, em
completo contraste com a crença anabatista de que Jesus não era realmente
humano, eles argumentavam que ele não era realmente Deus. Livrar-se da
Trindade sempre tinha sido mais popular nos limites da Europa, onde havia mais
interação com judeus e muçulmanos. A vida poderia ser muito mais fácil sem a
ofensa da Trindade.
Livrar-se do Deus triúno do cristianismo significava abrir mão do
cristianismo e encontrar um novo deus e uma nova religião — precisamente o
que o socinianismo fez. Nessa religião, Jesus era apenas um mestre, não o
Salvador. A cruz já não lidava com o pecado e nem alcançava perdão. Era um
simples, talvez comovente, martírio. Na verdade, o perdão dos pecados não
apresentava nenhuma dificuldade, pois a realidade do juízo divino foi negada.
Em outras palavras, o socinianismo lançou a semente da religiosidade moral e
racional moderna.
Havia muitos modelos diferentes de reforma, alguns bem distantes da de
Lutero! O que fazia toda a diferença não era o zelo, a estratégia ou o esforço,
mas a teologia.
4. Depois das trevas, luz: João Calvino
João Calvino não poderia ser mais diferente de Lutero e Zuínglio. Com certeza,
ele não seguia o tipo soldado musculoso de Zuínglio. Ele se dizia “um
acadêmico tímido”. Nem ele poderia ter desfrutado de uma das tumultuadas
refeições da família Lutero. Magro como uma vassoura, Calvino era conhecido
como “grande jejuador“ que se privava com frequência de comida. Nos melhores
dias, ele comia apenas uma pequena refeição para clarear a mente e proteger o
corpo sempre atacado por doenças. Enquanto Lutero urraria com gargalhadas e
tragaria sua cerveja, Calvino preferiria sentar em quietude com seus livros.
Lutero era precipitado e ríspido, Calvino era autocontido e (normalmente)
polido. Ambos dispunham de olhos notados pelas pessoas, mas, enquanto dizia-
se que os de Lutero brilhavam, os de Calvino queimavam. O temperamento de
ambos poderia ser assustador quando provocado; todavia, enquanto Lutero era
caloroso, Calvino se destacava pela frieza. Ambos escreveram muito; enquanto
Lutero disparava livros como uma semiautomática em uma briga de rua, Calvino
passava anos polindo e refinando sua obra principal.
Calvino jamais seria uma celebridade cristã: um intelectual avesso a
câmeras, ele sempre evitava os holofotes. Seus retratos apresentam um rosto
magro, a cabeça pulsante coberta com uma simples boina preta, e olhos
notavelmente intensos. Nisso, as imagens são bastante reveladoras, pois, apesar
do corpo fraco e de ser retraído por temperamento, sua mente e vontade eram
fortes e intimidadoras. Ele nasceu como um cordeiro, mas tornou-se um leão
pelo Senhor que o salvou.

Renascença
Aos 10 de julho de 1509: Lutero e Zuínglio haviam acabado de se tornar
sacerdotes, um aterrorizado e o outro ansioso pela batalha, e Jean Cauvin nascia
na cidade agrícola de Noyon, a quase 100 km ao norte de Paris. Cauvin era
francês e sempre consideraria a França sua terra natal, e Noyon seu lar na terra.
Mas, foi como “Calvino” (o nome soava muito melhor em latim) que ele
lideraria a próxima geração da Reforma.
Calvino nasceu a tempo de conhecer o mundo anterior à Reforma.
Crescendo em meio à vida e aos assuntos da igreja local, ele se lembraria, mais
tarde, de beijar parte de um dos corpos de santa Ana (ela tinha muitos
espalhados por toda a Europa). Mas, sua vida começou como o oposto de
Lutero: seu pai realmente o queria como sacerdote. Assim, com quase 12 anos,
ele foi enviado a Paris para estudar teologia. Por séculos, Paris fora a nave mãe
dos estudos teológicos na Europa, mas a faculdade de Calvino logo teria algo
surpreendente para arrogar para si: dentro de poucos anos, ela teria como ex-
alunos Erasmo, o líder da reforma moral da igreja, Calvino, e Inácio de Loyola,
o general da Contrarreforma católica. Entretanto, depois de cinco anos, o pai de
Calvino abandonou o sonho do sacerdócio para o jovem João, retirou-o de Paris
e enviou à Orleans para estudar direito. Lutero enfurecera o pai ao abandonar a
carreira de direito para tornar-se sacerdote, o pai de Calvino parece ter se
decepcionado com a igreja. Seja como for, ele estava chegando à conclusão do
pai de Lutero de que havia perspectivas melhores no direito.
Em Orleans, o jovem Calvino foi atraído pelo mundo intelectual do
humanismo renascentista e apaixonou-se. Ali havia uma comunidade de
acadêmicos dedicados à redescoberta das belezas clássicas da Grécia e de Roma.
Por meio de seu saber, eles estavam trazendo o renascimento da era dourada. Era
empolgante, mas também muito confortável e tranquilizador. Com certeza havia
críticas à igreja, mas de forma gentil, de dentro dela. O apego à virgem Maria e a
crença no purgatório nunca eram questionados. Calvino lançou-se nisso,
esperando que, em poucos anos, pudesse provar seu valor e roubar a coroa de
príncipe da nova erudição pertencente a Erasmo.
Entretanto, havia algumas pessoas no novo círculo social de Calvino que
sabiam mais sobre a graça de Cristo que Erasmo. Pelo menos, Lutero pensaria
que sim. Primeiro, havia o primo de Calvino, Pierre Robert, apelidado
“Olivétan” [Olivetano] por causa de sua lâmpada à óleo de oliva, usada para seus
estudos, que nunca parecia se apagar à noite. Revelando a tendência da família
para o trabalho quase incessante, ele conseguiu produzir uma tradução completa
da Bíblia para o francês quando contava 29 anos. E havia Melchior Wolmar, que
ensinou grego a Calvino. Essa era a iniciação de um círculo muito mais arrojado.
Por volta da década de 1520, o grego era a língua da Reforma. A Universidade
de Sorbonne, em Paris, campeã da velha ortodoxia, observara com clareza os
perigos do grego e do hebraico, e tentou deter segundo a lei o que era uma óbvia
abertura para a heresia. Mentes pretensiosas, armadas com o conhecimento das
línguas bíblicas, poderiam se considerar capazes de entender as Escrituras por
conta própria, apenas lendo o texto. Entretanto, os professores de Sorbonne
argumentavam, o verdadeiro significado da Escritura encontra-se em seu sentido
“místico”, que nenhum homem pode conhecer “a menos que ele seja educado na
faculdade de teologia”.
Talvez Wolmar tenha passado para Calvino mais que seu conhecimento
de grego, talvez ele tenha emprestado algumas cópias dos escritos de Lutero.
Seja como for, o “renascimento” começou a significar algo mais pessoal para
Calvino que o retorno da era clássica. Como ele escreveu depois, após esse
período “Deus, por uma súbita conversão, subjugou e conduziu minha mente a
uma disposição ensinável”. Não sabemos mais do que isso. Era característico de
Calvino, que nunca gostou de falar sobre si. Mas, apesar de todo o desejo de
continuar sua vida particular de estudos, João agora se tornara, como ele
expressou, um “amante de Jesus Cristo”.

França em chamas
As coisas pareciam positivas para a Reforma na França. O jovem rei Francisco I
não era um fanático caçador de bruxas, mas um monarca humano e esclarecido,
protetor de quem falava em reformar e purificar a igreja. Então, em 1528,
alguém levou uma faca a uma proeminente estátua milagreira da virgem Maria
em Paris, decapitando a Madonna e a criança, esmagando a cabeça dos dois e
pisando no dossel. Francisco chorou ouvindo as notícias e liderou uma procissão
pelas ruas para expiar o pecado. Era exatamente o tipo de comportamento que
Lutero condenara em Wittenberg, mas os seguidores de Lutero sofreriam pelo
escândalo. Foram colocadas em prática medidas contra até quem ocultasse os
luteranos. Além disso, o papa logo faria um apelo especial a Francisco, para que
ele eliminasse “a heresia luterana e outras seitas a infestar o reino”.
Então, nesse momento tão tenso, o novo reitor da Universidade de Paris,
Nicholas Cop, começou o novo semestre com um discurso luterano demais para
aliviar a situação. Com sua prisão iminente, ele fugiu do país e foi para Basileia,
Suíça, unindo-se a pessoas como Erasmo e outros refugiados como Olivetano. O
nome de Calvino entrou sem demora para a lista negra. Talvez, ele tivesse
ajudado no discurso de Cop. As autoridades vieram à sua procura e,
aparentemente, ele conseguiu sair do quarto no último minuto, descendo pela
janela em uma corda feita de lençóis. Seu quarto foi revistado, sua
correspondência inspecionada e, agora, Calvino estava em fuga.
Assim, a temperatura subiu mais um pouco. Em uma noite de outubro de
1534, placas atacando a missa foram colocadas em cidades por toda a França.
Uma delas foi pregada na porta dos aposentos do rei no castelo de Amboise.
Ninguém sabia quem as escrevera, todavia, não deveriam ser pessoas
moderadas. Autointitulados Articles véritables sur les horribles, grands et
importables abus de la messe papale, inventée directement contre la sainte cène
de notre Seigneur, seul médiateur et seul sauveur Jésus-Christ [“Verdadeiros
artigos sobre os horríveis, grandiosos e importantes abusos da missa papal,
idealizada diretamente contra a ceia do Senhor de Jesus Cristo“], eles
protestavam contra os blasfemos “engano” e “idolatria” da missa. Se isso não
estava claro na mente do rei antes, agora se tornara: “Reforma” era outra palavra
para sedição perigosa. Ele conduziu outra procissão por Paris para expiar o
sacrilégio, mas, desta vez, adicionando um novo sacrifício para apaziguar a
deidade ofendida: ao longo da rota da procissão, piras foram acesas para queimar
36 transgressores que supostamente contribuíram com as placas.
Tudo isso deixou a vida muito mais tensa para Calvino, que tentava não
chamar atenção. Embora concordasse com a teologia das placas, Calvino
lamentava o estilo acalorado dos que fizeram os letreiros e dos destruidores de
estátuas. Talvez motivado por isso, ele escreveu sua primeira obra de teologia,
não contra Roma, mas contra os anabatistas. Esse era um sinal precoce de algo
que jamais abandonaria seu pensamento: ele odiava aqueles que, pervertendo a
Reforma ou por seu comportamento descontrolado traziam má fama à Reforma.
Calvino rapidamente sentiu que a situação na França estava ficando
intolerável. O país tornou-se um Egito, uma terra de servidão que ele deveria
deixar para adorar o Senhor. E, assim, cruzando a fronteira, Calvino tornou-se
um exilado. Foi claramente uma decisão difícil, e ele nunca deixou de
saudosamente relembrar sua bela pátria, esperando que, um dia, ela fosse liberta.
Para isso ele trabalharia: do exílio ele convocaria seus conterrâneos à resistência.

“De uma vez por todas”


O argumento usado nas placas contra o sacrifício diário da missa era
Hebreus 7.27: “e que não precisasse oferecer sacrifícios a cada dia, como
os sumos sacerdotes, primeiramente por seus próprios pecados e depois
pelos do povo. Pois, quando ofereceu a si mesmo, fez isso de uma vez
por todas”. Se, na Alemanha, Romanos 1.17 foi a faísca que inflamou a
Reforma, na França, foi esse texto. Se o sacrifício de Cristo pelos
pecados era uma obra completa e não precisava e nem poderia ser
repetido, então todas as nossas tentativas de expiar o pecado devem ser
desnecessárias e ultrajantes para Cristo, ao sugerirem a insuficiência de
sua obra. Se o sacrifício de Cristo foi, de fato, “de uma vez por todas”,
então não pode haver necessidade de outros sacerdotes ou sumo
sacerdotes a oferecê-las mais vezes. Com isso, a missa, os sacerdotes
que a ofereciam e todos os outros atos de expiação pelo pecado
mostravam-se inúteis. O único recurso era apenas confiar em Cristo e
sua obra completa.
“Andaram… aflitos e maltratados”
Calvino foi primeiro à Basileia para unir-se a pessoas como Cop e Olivetano.
Ali, com apenas 26 anos, e tendo sua “súbita conversão” acontecido há apenas
alguns anos, ele completou a primeira edição de sua obra-prima, as Institutas da
religião cristã. Ele a dedicou a Francisco I que, apesar de tudo, era conhecido
como um homem sensato, interessado com genuinidade na reforma da igreja. Ele
explicou com todo o cuidado a Francisco que os luteranos perseguidos não eram
de fato hereges perigosos; eles apenas seguiam a verdadeira religião cristã que o
rei jurara defender. No entanto, a obra buscava mais que a proteção dos
evangélicos contra a perseguição. Seu propósito, ele diz: “Era unicamente
transmitir certos rudimentos pelos quais os que são tocados por algum zelo pela
religião possam ser moldados à verdadeira piedade”. Ela foi idealizada para
consistir em uma simples introdução à fé evangélica (“instituta” significa
“instrução básica”). Publicada como um pequeno livro que podia ser escondido
no bolso, a obra foi projetada para disseminar o evangelho em segredo. Era
assim que Calvino esperava trazer a Reforma à França.
Certos assuntos o fizeram voltar logo a Paris, de onde ele esperava partir
e se estabelecer em Estrasburgo, casa de muitas das grandes mentes da Reforma.
Entretanto, o rei Francisco parecia estar em constante guerra com o Carlos, do
Sacro Imperador Romano e, na época, os exércitos escolheram encarar um ao
outro na estrada Paris-Estrasburgo. Calvino precisou fazer um desvio pelo sul, o
que significava passar por Genebra. Não seria um problema: a parada de uma
noite ao lado de um belo lago, rodeado pelos Alpes, seria uma amável pausa na
jornada.
Genebra era uma cidade fronteiriça entre a França e o Sacro Império
Romano e, ali, ela conseguiria espaço para tornar-se, para todos os efeitos, quase
independente por completo. Nos últimos anos, tudo mudara em Genebra. Os
genebrinos expulsaram o último bispo (um homem que acreditava na “soberana
obrigação do prelado de montar uma mesa farta e apetitosa, com bons vinhos”);
pararam de celebrar a missa, e mandaram os sacerdotes converter-se ou deixar a
cidade (muitos escolhendo a segunda opção). Com isso, Genebra oficialmente
aliou-se à Reforma. O lema da cidade era Post tenebras spero lucem (Depois das
trevas, espero a luz), mas, em comemoração ao que acontecera, as moedas agora
eram prensadas com um novo lema: Post tenebras lux (Depois das trevas, luz),
pois, agora, declaravam, eles encontraram o que outrora esperavam.
É claro que as mudanças na cidade foram acompanhadas de confusão,
resistência e destruição de imagens, além do pão consagrado sendo dado aos
cães. Assim, quando Calvino chegou, Genebra encontrava-se em um estado de
considerável agitação. Uma ajuda seria útil para começar a Reforma. Calvino
não tinha a intenção de ficar para ajudar; entretanto, o ruivo e ardente Guilherme
Farel, instigador da Reforma em Genebra, ouviu que o autor das Institutas estava
na cidade, e ninguém iria detê-lo. Só a visão de Farel em sua porta deve ter sido
assustadora o bastante para o jovem acadêmico, 21 anos mais novo. Calvino
conseguiu gaguejar alguma coisa sobre ir a Estrasburgo para continuar seus
estudos, ao que Farel
passou a proferir uma imprecação de que Deus amaldiçoaria meu isolamento e a tranquilidade dos
estudos que eu buscava caso partisse e recusasse a oferecer assistência quando a necessidade era tão
urgente. Por essa imprecação, fui atingido por tal terror que desisti da jornada que havia iniciado.
Assim, no verão de 1536, Calvino estabeleceu-se em Genebra para ajudar Farel
com a obra da Reforma. Pobre Calvino! Porém, Farel escolheu o homem com
sabedoria. Eles esboçaram uma nova confissão de fé, e todos os desejosos de
permanecer na cidade deveriam aceitá-la. Em breve eles fizeram também outras
propostas. Calvino queria a comunhão muito mais frequente: em vez de uma vez
por trimestre, uma vez por mês. Isso poderia ter dado certo; o problema era que
Calvino queria que ofensores notórios tivessem o acesso à comunhão negado, e
isso envolvia a humilhação pública em uma comunidade como Genebra. Pior,
significava a humilhação nas mãos de um imigrante francês. Era um fardo
pesado demais e, por fim, o concílio da cidade decretou que ninguém poderia ser
impedido de participar da ceia do Senhor.
A cidade queria Reforma, mas não tanto, e quanto mais os reformadores
tentavam seguir com ela, mais o relacionamento deles com a cidade era abalado.
Um dos pregadores ousou listar alguns dos pecados da cidade, referindo-se a
alguns dos magistrados genebrinos como “bêbados”. Tal comportamento é
obviamente uma completa loucura para alguém que quer ser popular: ele foi
preso de imediato. Então, Calvino e Farel receberam a ordem de usar o pão estilo
pastilha que não deixava migalhas sacrílegas na comunhão. Eles se recusaram e,
assim, foram banidos da pregação. Como se Calvino e Farel fossem parar de
pregar! Naturalmente, os dois violaram o banimento, e receberam três dias para
deixar a cidade. E, assim, em 1538, menos de dois anos depois de chegar,
Calvino viu-se exilado de novo.

Encontrando esperança (e a sra. Calvino)


Por um lado, Calvino se sentia perturbado: considerava-se fracassado como
reformador, e talvez seus atos empurrassem Genebra de volta a Roma. Por outro,
estava feliz no íntimo: agora, ele poderia ir para Estrasburgo como planejara e se
estabelecer ali com seus livros calmamente. Eles seriam um incômodo muito
menor que os genebrinos.
Pobre Calvino! Ele passou de Farel (que seguiu para Neuchâtel) direto
para os braços de Martin Bucer, o principal reformador de Estrasburgo. De
acordo com Lutero, Bucer não só era um “linguarudo”, como alguém desprovido
de determinação. Calvino concordaria com toda a gentileza que Bucer, de fato,
talvez falasse demais, mas, ao chegar em Estrasburgo, ele encontrou alguém
determinado. Quando disse a Bucer que procurava uma biblioteca boa e
silenciosa, Bucer deu uma de Farel, chamando-o de Jonas ao fugir de seu
chamado e insistir que ele se tornasse pastor da igreja de refugiados franceses
em Estrasburgo.
No final, Calvino passou os anos mais felizes de sua vida em
Estrasburgo. Em claro contraste com Genebra, ele se viu recebido com carinho
por seus compatriotas exilados. Também havia uma alegre comunhão: alguns
dos principais cérebros da Reforma estavam ali para conversar, e ele amava
partilhar sua casa com jovens evangélicos de mentalidade parecida com a dele.
Ali, ele aprendeu como deveria ser uma igreja da Reforma, experimentou
ensinar na faculdade reformada que acabara de ser aberta, e pôde escrever o
primeiro comentário (em Romanos, naturalmente, pois “o argumento principal
de toda a epístola é que somos justificados pela fé”). A única nuvem negra do
período ensolarado surgiu quando chegou à cidade um teólogo que, no passado,
acusara (de maneira completamente injusta) Calvino de não acreditar na
Trindade.[6] Ele reviveu a antiga acusação, e Bucer convocou Calvino para
responder. Calvino ficou vermelho de raiva. Ele se absolveu rapidamente, mas a
acusação era tão séria que o acompanharia pelo resto da vida.[7]
Não é realmente possível falar da vida romântica de Calvino. Ele não era
nenhum conquistador francês.
Quanto ao casamento, não sou um desses amantes enfatuados que, cativados por um belo rosto
beijam até seus vícios. A única beleza que me interessa é que ela seja modesta, auxiliadora, nada
arrogante, nada extravagante, paciente e solícita com minha saúde.
Ainda assim, ele foi rápido em expressar sua aprovação protestante ao
casamento. Então, no ano de 1540, Estrasburgo tornou-se um vórtice de
alcovitaria quando seus amigos tentaram ajudá-lo a encontrar uma mulher assim.
Foi uma tarefa difícil: a primeira candidata não falava francês, outra não estava
interessada, outra chegou ao noivado até que houve um rompimento. E tudo isso
em junho! Dois meses depois, ele se casou com Idelette de Bure, uma viúva que
se convertera do anabatismo (conversão essencial para a felicidade doméstica da
família Calvino). Ela trouxe consigo seus dois filhos do falecido marido
(também chamado Jean [Stordeur]).
O casamento não estava destinado à felicidade: “Receando que nosso
casamento fosse muito feliz, o Senhor desde o princípio moderou nossa alegria”
enviando uma enfermidade sobre suas vidas. Dois anos depois, Idelette teve um
filho de Calvino, Jacques. Entretanto, ele nasceu prematuramente e sobreviveu
por apenas duas semanas. Calvino escreveu a um amigo: “Sem dúvida o Senhor
infligiu uma severa e amarga ferida com a morte de nosso bebê. Mas, ele próprio
é Pai e sabe o que é melhor para seus filhos”. A própria Idelette lutou para
recuperar a saúde, e passou os últimos anos do casamento sofrendo lentamente
até a morte. Ela faleceu em 1549, deixando aos cuidados de Calvino seus dois
filhos; a dor dele era nítida: “Faço o meu melhor para superar a tristeza […]
perdi a melhor companheira da minha vida”. Ele pode não ter sido um romântico
nato, mas isso nunca impediu Calvino de sentir e amar com profundidade.

“Volte para Roma”


Quando Calvino e Farel foram chutados de Genebra, muitos em Roma
pensavam, como Calvino, que a cidade abandonaria a Reforma. O
cardeal Sadoleto era um deles.
Homem moderado, erudito e encantador, ele sentiu que, com um
pequeno empurrão na direção certa, Genebra retornaria. E, assim, com
Calvino convenientemente fora do caminho em Estrasburgo, ele
escreveu à cidade de Genebra o que consistia basicamente em uma carta
de amor, cortejando-a de volta. Ela oferece um vislumbre esclarecedor
de como Roma entendia a Reforma.
A carta começa com um cordial abraço verbal: “Caríssimos irmãos em
Cristo, paz seja com vocês e conosco, isto é, com a Igreja Católica, mãe
de nós todos, amor e concórdia da parte de Deus”. O restante da carta é
apenas doçura e efusão aos genebrinos. Os reformadores, uma
obviedade, eram “homens astutos, inimigos da paz e da unidade cristãs”,
que tentavam desviar os bons genebrinos. Como? Ensinando falsos
meios de salvação eterna, sobre os quais, ele insta, os genebrinos devem
refletir com seriedade.
Qual é a verdade segundo Sadoleto? Ele diz que Roma admite que
“podemos ser salvos só pela fé” — algo muito surpreendente vindo de
um cardeal! Então, ele esclarece: “Nessa mesma fé, o amor é
compreendido em essência como a causa primária e principal de nossa
salvação”. Assim, para Sadoleto, a salvação pela fé significa, na
realidade, apenas a salvação pelo nosso amor.
Então, por que confiar em Roma, e não nos reformadores? Para
Sadoleto, a escolha é simples: seguir “o que a Igreja Católica, por todo o
mundo, e agora por mais de mil e quinhentos anos […] aprova com
consentimento geral, ou inovações introduzidas nos últimos vinte e cinco
anos“.
Apenas no caso dos genebrinos não terem sido já convencidos, ele
imagina um evangélico e um católico “diante do temível tribunal do
soberano Juiz”. O que cada um diria nesse dia, e quem seria absolvido?
O católico poderia falar primeiro com o Juiz, e sua defesa seria: “[Sou]
obediente à Igreja Católica, reverencio e observo suas leis, admoestações
e decretos”. Então, o evangélico se levanta e anuncia sua defesa com
descaramento: os evangélicos livraram-se do “tirânico jugo da igreja”.
Para quê? Para que “confiando na fé em ti, possamos, assim, realizar,
com grande liberdade, tudo que desejarmos”. (Esse “evangélico” em
particular subentendia a “justificação só pela fé” como a confiança no
próprio ato de fé, e não em Cristo — deixar Cristo de fora sem dúvida o
ajuda a sentir-se livre para viver de modo autoindulgente.)
Como se espera, o católico vence, e é conduzido à eterna bem-
aventurança, enquanto o evangélico é lançado nas trevas exteriores. A
razão é que o católico confiou na igreja, que “não pode errar”, enquanto
o evangélico confiou “na própria cabeça”. Mais uma vez, torna-se claro,
na mente de Sadoleto, que se alguém não confia na igreja para a
salvação, deve confiar em si mesmo. Assim, ele pergunta sobre o
evangélico: “O que essa pessoa procura como refúgio para sua sorte? Em
que baluarte espera? Em quem confia como seu advogado diante de
Deus?”. Parece jamais ter passado pela cabeça dele que a resposta fosse
Cristo.
E, com um último ataque aos reformadores — eles não poderiam falar a
verdade de Cristo, pois haviam dividido a igreja — Sadoleto abençoa
seus “caríssimos irmãos” e assina.
Vermelhos de vergonha, considerando como eles o trataram, os
genebrinos pediram que Calvino escrevesse uma resposta para eles. Ele
concordou e, em seis dias, produziu uma apologia padrão para a
Reforma.
A resposta de Calvino começa com uma genuína demonstração de
respeito a Sadoleto como homem educado; porém, dentro de poucas
linhas, as garras aparecem e Calvino inicia a devastação total do
argumento do cardeal. Em primeiro lugar, ele ataca o tom gentil de
Sadoleto: “é um pouco suspeito”, escreve, “que um estranho, sem
qualquer contato com os genebrinos, passe a professar de repente grande
afeição por eles, embora nenhum sinal disso tenha existido antes”.
Em seguida, parte para o conteúdo. Calvino deixa bastante claro que os
reformadores não buscam dividir a igreja, mas reformá-la. Essa reforma
não procede de inovações pessoais; ao contrário, ele argumenta: “Não só
nossa concordância com os antigos é maior que a de vocês, como tudo o
que temos tentando consiste em renovar essa antiga forma da igreja”.
(Os reformadores sempre eram enfáticos nesse ponto.) Quanto à defesa
do bom católico no juízo final: “A segurança desse homem está por um
fio, cuja defesa consiste inteiramente nisso: o fato de ele aderir à religião
passada por seus antepassados. Nesse sentido, judeus, turcos e
sarracenos escapariam do juízo de Deus”.
Contudo, a maior parte da resposta de Calvino é dedicada à “justificação
pela fé, o primeiro e mais profundo objeto da controvérsia entre nós”. A
forma da argumentação de Calvino aqui é bastante reveladora: “Onde
esse conhecimento é retirado, extingue-se a glória de Cristo”. No
pensamento da Reforma, a salvação é um dom só da graça de Deus (sola
gratia), encontrado não no papa ou na missa, mas só em Cristo (solus
Christus), e recebido só pela fé simples (sola fide). Pode-se ter certeza
disso só pela Escritura (sola Scriptura). Só se todas essas coisas forem
verdadeiras, e o pecador não contribuir com nada para a própria
salvação, toda a glória será de Deus. A mentalidade da Reforma,
portanto, tinha isso como norte para toda a teologia: a teologia leva o
indivíduo a dizer “só a Deus seja a glória” (soli Deo gloria) ou o homem
mantém parte da glória para si? O problema de Sadoleto, Calvino disse,
era exatamente este: “Se só o sangue de Cristo é apresentado como
pagamento pela satisfação, reconciliação e ablução, como vocês têm a
pretensão de transferir tão grande honra às suas obras?”. A deficiente
proposta de Sadoleto da salvação fruto da graça de Deus e do amor do
homem era, na realidade, uma blasfema detração da cruz e da glória de
Cristo.
Quanto à acusação de que a misericórdia tão gratuita deixaria os cristãos
sem se preocupar em viver de modo santo, Calvino demonstra com
habilidade que isso também ignora Cristo: “Portanto, onde quer que
esteja a justiça da fé, que afirmamos ser gratuita, ali também estará
Cristo, e onde Cristo estiver, também estará o Espírito de santidade, que
regenera a alma para a novidade de vida”.

De volta ao combate
Enquanto Calvino vivia feliz no exílio em Estrasburgo, Genebra se encontrava
uma bagunça. O autor das placas francesas com ataques à missa havia chegado
(como pastor) e partido, e reinavam a confusão doutrinária e o caos político. Por
fim, a política mudou o suficiente para Genebra querer Calvino de volta e, assim,
três anos depois de expulsá-lo da forma mais fria, a cidade lhe enviou um
caloroso convite para voltar. Ele teria rido se pudesse; só a ideia de retornar era
terrível demais para se pensar nisso. Quando Farel (que estava ocupado demais
para voltar) insistiu que ele aceitasse, Calvino respondeu que preferiria “cem
mortes a essa cruz”.
Porém, com Bucer e Farel unindo-se, ele foi persuadido. Pobre Calvino!
Em 1541, ele voltou a Genebra com Idelette e seus filhos, e subiu a ladeira da
pequena Rue des Chanoines, onde a cidade lhe providenciara uma pequena casa
mobiliada. Com um pequeno quintal e uma estonteante vista dos Alpes, a cidade
buscava amenizar a situação. Porém, Calvino jamais confiaria nos genebrinos de
novo. Ele vivia de malas prontas, por assim dizer, sempre preparado para ser
expulso de novo.
O ar estava pesado de expectativa enquanto ele subia de volta a seu
antigo púlpito. A congregação preparou-se para uma torrente de anátemas que
sem dúvida procederia de um amargo deportado que agora tinha voz pública. Em
vez disso, Calvino apenas continuou a exposição do versículo que ele começara
na última vez em que esteve ali, três anos e meio antes. A mensagem era a mais
clara possível: Calvino não voltou com objetivos pessoais (longe disso!), mas
viera como pregador da Palavra de Deus.
Entretanto, se a Palavra de Deus se tornasse o cetro pelo qual Deus
governaria sua igreja em Genebra, algo deveria ser feito para garantir isso. O
problema era que o concílio da cidade tomou para si o poder do papa e exercia
controle, de forma estrita, sobre tudo que acontecia na igreja. Calvino sabia da
necessidade de atacar enquanto era bem-vindo. Assim, no mesmo dia do retorno,
ele submeteu ao concílio da cidade uma lista de propostas para a reforma ampla
da igreja de Genebra. A maior parte foi aceita.
As propostas deixavam muito claro que a Reforma não se restringia ao
rompimento com Roma, significava dedicação à reforma contínua pela Palavra.
A igreja reformada deveria sempre se reformar. Calvino propôs, entre outras
coisas, que cada lar recebesse uma visita pastoral todo ano, que todos
aprendessem o catecismo que explicava a fé evangélica, e que só quem o fizesse
fosse recebido à mesa do Senhor. E, para ter absoluta certeza de que Genebra
jamais seria mencionada na mesma frase que a comunidade polígama de Jan van
Leiden em Münster, ele propôs que um comitê disciplinar fosse organizado para
garantir a sociedade ordeira.
O comitê não detinha poder para impor disciplina e, uma vez organizado,
geralmente distribuía reprimendas verbais sobre os faltosos aos sermões ou às
aulas de catecismo. Contudo, sua fama era de um grupo bastante severo. Em um
curioso contraste com a Wittenberg de Lutero, o comitê tentou impedir os
cidadãos de frequentar tavernas, substituindo-as por “abadias”, onde eles podiam
estar sob supervisão com uma Bíblia francesa. Previsivelmente, o plano não foi
um grande sucesso. E, quando foi elaborada uma lista com os nomes cristãos
aceitáveis (como “Jacques” e “Jean’) e inaceitáveis (como “Claude” e “Monet”),
alguns começaram a sentir que havia coisas demais sendo prescritas. Ou seja,
muitos genebrinos não gostavam de receber ordens para viver a vida santa dos
comprometidos quando eles mesmos não eram comprometidos. “Ah, nós não
queremos esse evangelho aqui, vá procurar outro”, certa vez Calvino acusou os
genebrinos de dizer. É quase possível ouvi-los choramingando.
Tudo isso garantiu a Calvino a reputação de aiatolá protestante. Mas, ela
sempre foi injusta. O homem não pode ser julgado pela cidade. Ele era, como
disse, um “acadêmico tímido” sem pretensões de poder despótico, e sem
qualquer chance de obtê-lo. Sendo refugiado francês, não cidadão de Genebra,
ele não podia votar nem exercer qualquer cargo secular, e vivia na cidade apenas
pela graça diária do concílio, que poderia, por capricho e a qualquer momento,
expulsá-lo de novo.
Ainda assim, o próprio fato de ele ser imigrante ajudou a alimentar o
ressentimento contra Calvino como testa de ferro de todas as reformas. A
situação não melhorou com a onda imensa de imigrantes, em geral provenientes
da França, que estava tomando Genebra. Quando Calvino retornou à cidade em
1541, a população de Genebra consistia em quase 10 mil habitantes, mas, no fim
de sua vida, o número de residentes era mais que o dobro. Os refugiados recém-
chegados eram de maioria francesa, como Calvino, que transformaram a cidade,
introduzindo indústrias, como a relojoaria, e até mudando a principal língua das
ruas para o francês.
É possível ter uma impressão do apelo exercido por Genebra sobre os
evangélicos atormentados na França com o que uma mulher da cidade-natal de
Calvino, Noyon, disse ao chegar lá:
Oh, como estou feliz por ter abandonado o amaldiçoado cativeiro babilônico e por logo ser libertada
de minha prisão final! Ai de mim se estivesse agora em Noyon, onde não ousaria abrir minha boca
para confessar a fé com sinceridade, ainda que os sacerdotes e monges vomitassem todas aquelas
blasfêmias ao meu redor! Aqui não só tenho liberdade de dar glória a meu Salvador ao estar diante
dele com ousadia, como sou orientada.
As pessoas deixavam para atrás a vida anterior para viver abertamente como
evangélicos e ouvir o ensino das Escrituras.
Embora os imigrantes estivessem felizes, sua chegada acendeu a habitual
xenofobia, e as tavernas estavam cheias de ideias sobre o que fazer com eles.
Uma ideia popular é que eles deveriam “arrumar um barco, colocar todos os
franceses e banidos nele, e enviá-los rio Ródano abaixo” de volta à França. O
nome de Calvino estava implícito.
A coisa começou a ficar feia. Mulheres foram presas ao serem flagradas
dançando, provocando uma feroz reação contra Calvino; cartazes com dizeres
rudes e impublicáveis sobre ele foram colados pela cidade — um até mesmo em
seu púlpito. Era um presságio do pior porvir, quando, no início da década de
1550, ocorreram tumultos e tensões liderados por um grupo que amava
partidarismo e odiava Calvino. Durante seus sermões, as pessoas começaram a
tentar abafá-lo, algumas tossindo, outras fazendo ruídos inconvenientes com
seus assentos.
Parecia que Calvino não sobreviveria por muito tempo em Genebra. Em
1553, ele declarou, sem o apoio da lei, não permitir que um dos líderes dessa
facção contrária a Calvino, os “libertinos”, participasse da ceia do Senhor.
Esperando que o domingo seguinte fosse o último, ele pregou com um nó na
garganta, mas, ainda assim, recusou-se a desistir. Diante da mesa do Senhor, ele
anunciou: “Morrerei antes de minha mão estender as coisas sagradas do Senhor
aos julgados escarnecedores”. Quase inexplicavelmente, Calvino não foi
expulso. Porém, sua vida na cidade estava por um fio.

Miguel Serveto
Nesse momento mais sombrio aconteceu o evento que lançaria a pior
sombra sobre o nome de Calvino: Miguel Serveto foi queimado por
heresia em Genebra. A imagem de Calvino ao lado da pira, com um
sorriso sinistro no rosto, sem dúvida oferece um bom combustível para a
lenda de “Calvino, o Inquisidor Protestante”. Mas, o que aconteceu? O
monstro foi finalmente revelado?
Miguel Serveto era um radical espanhol da laia de Fausto Socino, que
esperava o progresso da Reforma e a rejeição do que ele considerava
crenças corrompidas, como a Trindade. Por séculos, a Espanha abrigara
grandes populações judaicas e muçulmanas, e muitos cristãos espanhóis
consideravam a Trindade um obstáculo, deixando os cristãos de fora do
alegre clube monoteísta espanhol. Serveto tornou-se a voz desse
movimento, argumentando que a Trindade representava uma crença
adicionada mais tarde à religião monoteísta simples e sem floreios do
Antigo Testamento, em que só Deus Pai era Deus. Se pudéssemos todos
voltar a essa verdade básica e original, então judeus e cristãos não
precisariam mais se separar.
Católicos e protestantes ficaram de igual modo horrorizados com a
defesa de um deus completamente diferente. Entretanto, os católicos o
capturaram primeiro, nos limites da fronteira francesa de Genebra, em
Viena. Tendo-o considerado culpado de heresia, também conseguiriam
queimar apenas sua efígie primeiro — pois ele escapou pelos telhados e
cruzou a fronteira para Genebra.
Calvino era tão odiado ali que parecia um bom lugar para fugir. Mesmo
ao ser preso em flagrante, Serveto permanecia otimista: da prisão ele
escreveu ao concílio da cidade, exigindo a prisão de Calvino e
oferecendo-se caridosamente para ficar com a casa e os bens do
reformador quando ele fosse executado. Em 1553, pedidos assim
pareciam realistas. Entretanto, a própria Genebra foi acusada por toda a
Europa católica de ser um abrigo para hereges; mesmo o concílio da
cidade podia enxergar que, ao tolerar Serveto, isso mostraria que Roma
estava certa.
Calvino, seu teólogo, foi convocado para atuar como promotor. Como se
esperava, Serveto foi declarado culpado e, em concordância com outras
cidades protestantes na Suíça e na Alemanha, Genebra pronunciou a
sentença de morte. Não houve nenhuma polêmica: toda a cristandade
concordava com a pena de morte como sentença apropriada para heresia
e, nas décadas anteriores, vários feiticeiros, conjuradores e satanistas
confessos (confessos enquanto seus pés estavam sendo grelhados,
evidentemente) foram torturados e queimados em Genebra. Isso ocorreu
no século XVI.
Também em 1553, Calvino não estava em posição de exercer qualquer
influência sobre a pena. Na verdade, ele pediu uma pena de morte mais
leniente, decapitação, o que lhe foi negado. Por fim, ele foi visitar
Serveto na prisão uma última vez para tentar convencê-lo. Ele fracassou
e, assim, Serveto foi levado aos portões da cidade e queimado.
Quando as chamas subiam, Serveto gritou: “Ó, Jesus, Filho do Deus
eterno, tem piedade de mim!”. Se ele estivesse preparado para gritar: “Ó,
Jesus, eterno Filho de Deus”, ele nunca teria sido queimado. É
perturbador o que isso revela. As duas confissões estão em polos
opostos. Porém, o fato de hoje termos dificuldade em enxergar isso
demonstra como o espírito erasmiano de pouca doutrina saiu-se
vencedor.

A maré vira
Em 1555, era como se as nuvens subitamente desparecessem e o sol brilhasse de
novo. Os favoráveis a Calvino venceram as eleições para o concílio da cidade.
Isso iniciou uma revolta. Espadas foram brandidas, e o líder do antigo partido
contrário a Calvino confiscou o bastão de autoridade da cidade. Não poderia
haver símbolo mais claro de um golpe de Estado. Então, todos se lembraram de
que coisas assim não acontecem em cidades suíças de respeito, e os líderes
foram condenados à decapitação, pregados no pelourinho e esquartejados.
Muitos conseguiram fugir intactos antes de serem presos, mas tudo havia
mudado. Era uma nova era, o partido contra Calvino estava fora de cena, e isso
daria a Calvino a liberdade de fazer coisas a que ele jamais se aventurara antes.
O que Calvino faria com essa oportunidade recém-chegada? Ele
estabeleceu um programa ultrassecreto para a evangelização de sua pátria
França. Ele já estava bem estabelecido como líder exilado do protestantismo
francês, tendo contato regular com muitas igrejas clandestinas dali. Mas, depois
de 1555, seus esforços foram levados a um nível muito mais ambicioso. Uma
rede secreta foi montada, e abrigos seguros e esconderijos organizados, de forma
que os agentes do evangelho poderiam cruzar a fronteira da França para plantar
novas igrejas clandestinas (algumas até subterrâneas). Com máquinas de
impressão secretas instaladas em Paris e Lyon para prover-lhes recursos, tudo foi
um incrível sucesso. A procura por literatura logo ultrapassaria o que as
máquinas poderiam suprir, e a imprensa tornou-se a indústria dominante em
Genebra na tentativa de lidar com a necessidade.
Mais de 10% de toda a população da França tornou-se reformada, com
dois milhões ou mais congregando nas centenas de igrejas plantadas. O
calvinismo tinha bons resultados em especial entre a nobreza, e quase um terço
dela parece ter se convertido, dando à fé reformada uma influência política
desproporcional a seu tamanho real. O antigo sonho de Calvino de ver a França
evangélica começava a parecer uma possibilidade. Ele escreveu uma confissão
de fé para a igreja ali e a apoiou em tudo o que era possível. Apesar do
crescimento do evangelicalismo na França, os franceses precisavam muito de
encorajamento: quando, por exemplo, uma igreja foi invadida em Paris, mais de
cem pessoas foram presas e sete queimadas. Embora ele escrevesse para
confortá-los como alguém em liberdade, jamais falou como se estivesse em uma
torre de marfim. Sentindo a iminente ameaça de martírio em Genebra, suas
cartas são salpicadas por toda parte de menções ao sangue que ele sabia que logo
seria derramado: “É verdade que agora falo de fora da batalha, porém, não muito
distante, e não sei por quanto tempo, pois até onde se pode julgar, nossa vez se
aproxima”.

O massacre do dia de são Bartolomeu


Calvino não viveu para ver isso, mas, oito anos após sua morte, em 24 de
agosto de 1572 (dia de são Bartolomeu), diversos aristocratas
protestantes proeminentes foram assassinados em Paris. Era a
culminação da tensão crescente entre facções católicas e protestantes da
nobreza francesa quanto ao futuro religioso do país. Como se esperava,
isso iniciou um massacre geral em Paris em que milhares de protestantes
foram mortos por multidões. A violência logo se espalhou pela França e,
nas semanas seguintes, mais milhares foram mortos, enquanto outros
fugiram do reino. Foi o xeque-mate mais incisivo e sangrento às
esperanças de Calvino para a França.

Isso não ocorreu apenas na França. De maneira bastante deliberada,


Calvino transformou Genebra em um centro internacional para a propagação do
evangelho. Ele aconselhou governantes protestantes da Escócia à Itália, treinou
refugiados que se dirigiram a Genebra e regressaram à terra natal, e enviou
missionários para a Polônia, Hungria, Países Baixos, Itália e até América do Sul.
A verdadeira casa das máquinas para tudo isso era a faculdade e academia
abertas por Calvino em 1559. Começando com educação geral e passando para o
estudo detalhado de teologia e dos livros da Bíblia, ela preparava os pastores que
poderiam, por fim, ser enviados de Genebra armados e treinados.
Calvino dedicava a maior parte do seu tempo, contudo, à pregação e ao
ensino. Ensinando três vezes por semana, pregando duas vezes a cada domingo
e, em semanas alternadas, em todos os dias da semana, esse era o coração da
Reforma para ele — bem como para Lutero e Zuínglio. Ele também conseguiu
(de modo geral, ao juntar suas palestras) escrever comentários de quase todos os
livros da Bíblia, além de ajudar pregadores de todos os lugares. Esses eram
comentários muito diferentes do tipo de comentário antes conhecido na Europa:
o objetivo deles era “uma brevidade fácil que não envolve obscuridade”. Como
resultado da “conversão súbita”, Calvino convenceu-se de que Deus traz vida e
nova vida à existência só por meio de sua Palavra. Assim, proclamá-la tornou-se
a essência da obra de Calvino.

De Calvino ao calvinismo
Calvino jamais desejou a existência de algo chamado “calvinismo”; ele
odiava a palavra, e passou a vida lutando pelo que cria ser a simples
ortodoxia da igreja primitiva pós-apostólica. O termo “calvinismo”
sugeria uma nova escola de pensamento. Entretanto, o chamado
“calvinismo” passou a existir, e sua história levaria muitos a entender de
forma equivocada o próprio homem. Como resultado, uma das imagens
mais populares de Calvino hoje é a de um homem obcecado com a
eleição divina de quem será salvo ou não.
A dificuldade começou na verdade com um estudante holandês, Jacó
Armínio, treinado para ser pastor na academia de Genebra cerca de vinte
anos após a morte de Calvino.
Voltando a Amsterdã, ele começou a ensinar algumas coisas bem
diferentes do que Calvino ensinara, em especial com respeito à
predestinação. Ele opinava que Deus predestina as pessoas para a
salvação com base no conhecimento prévio da fé que elas teriam (em
lugar de a base consistir na própria vontade divina, como Calvino
ensinava). Depois da morte de Armínio, em 1609, seus seguidores
(chamados “arminianos”) compuseram a Remonstrância, uma petição
para que cinco de suas posições centrais fossem aceitas pela Igreja
Reformada Holandesa.
Em 1618-1619, um sínodo de teólogos reformados reuniu-se em Dordt
(ou Dordrecht) para lidar com Os cinco artigos da remonstrância. Em
resposta a esses cinco pontos, eles produziram os Cinco artigos contra
os remonstrantes, mais tarde resumido no acrônimo “TULIP”:

T Depravação Total (Total Depravity): Não significa que somos tão


pecadores como poderíamos ser, mas que o pecado nos afeta de forma
tão ampla que não temos a capacidade de fazer nada em relação à
salvação.
U Eleição Incondicional (Unconditional Election): Significa que Deus
escolhe algumas pessoas para a salvação e outras para a condenação de
modo incondicional, e não baseia a decisão em nada proveniente dessas
pessoas, seja bom ou mau.
L Expiação Limitada (Limited Atonement): Significa que, na cruz,
Cristo pagou pelos pecados só dos eleitos, não pelos pecados de toda a
humanidade.
I Graça Irresistível (Irresistible Grace): Significa que, quando Deus
deseja salvar uma pessoa, essa pessoa será incapaz de resistir e recusar-
se a nascer de novo.
P Perseverança dos Santos (Perseverance of the Saints): Significa que
Deus preserva os verdadeiros cristãos até o fim, sem permitir que eles
percam a salvação.
Embora esses “cinco pontos do calvinismo” revelem o crescente
interesse na predestinação entre os calvinistas, eles foram projetados
para proteger o que os calvinistas acreditavam serem importantes
verdades negadas pelos arminianos. Elas nunca tiveram a intenção de
consistir em um sumário da fé calvinista ou do pensamento de Calvino.
A prova? Em 1559, Calvino chegou à última e maior edição das
Institutas. Agora, elas eram bem mais que uma útil introdução à fé
evangélica, como ocorrera com a primeira edição em 1536. Agora, elas
estavam transformadas em um suntuoso banquete de exposição do
evangelho, representando a riqueza e o alcance do pensamento de
Calvino. Se algo revela a mentira da ideia de Calvino como alguém
obcecado com a predestinação, é isto: Depois de ter examinado Deus, o
mundo, tudo o que Jesus fez por nós, nossa salvação, a oração e uma
série de outros tópicos, é somente na página 920 da versão padrão das
Institutas que Calvino começa a examinar a eleição — e, do total de
1521 páginas, ele dedica apenas o tópico 67 delas! Sem dúvida, sua
visão não se limitava à predestinação. Seu pensamento era rico e
abrangente. Consistia na tentativa de examinar todas as coisas por meio
das lentes da Palavra de Deus.

“Até hoje ninguém sabe onde seu sepulcro está”


Embora 1555 tenha registrado um avanço na capacidade de Calvino de fazer a
Reforma seguir adiante, o ano também marcou o declínio de sua saúde, do qual
ele nunca se recuperaria. Trabalhar com a energia selvagem que seu
extraordinário rendimento exigia destruiu sua frágil compleição. “A aflição do
meu corpo quase entorpeceu minha mente”, ele confessou. E não é de admirar:
poucos meses antes de morrer, ele escreveu aos médicos:
nessa época eu não era atacado por dores de arritmia, e nada sabia de pedras ou litíase — não era
atormentado pela tortura da cólica, nem afligido com hemorroidas ou ameaçado com expectoração
de sangue. Atualmente, todas essas enfermidades são como tropas a me assaltar. Logo que me
recuperei de uma febre quartã, fui tomado por dores severas e agudas na panturrilha das minhas
pernas, as quais, depois de parcialmente aliviadas, voltaram pela segunda e terceira vez. Por fim, elas
degeneraram em uma doença nas minhas articulações, que se espalhou dos pés aos joelhos. Uma
úlcera nas veias das hemorroidas causou-me sofrimentos excruciantes por muito tempo, e ascarídeas
intestinais me submeteram a dolorosas titilações, embora agora esteja aliviado dessa doença
vermicular. Contudo, logo após o último verão, tive um ataque de nefrite. Como não podia suportar
os solavancos da cavalgada, fui transportado pelo país em uma maca. Ao retornar, preferi realizar
parte da jornada a pé. Mal avançara uma milha quando fui obrigado a repousar, pela lassidão nos
rins. Então, para minha surpresa, descobri ter excretado sangue em lugar de urina. Assim que
cheguei em casa, deitei-me em minha cama. A nefrite me trouxe uma dor extraordinária, da qual só
obtive alívio parcial pela aplicação de remédios. Por fim, não sem os mais dolorosos esforços, expeli
um cálculo que até certo ponto mitigou meus sofrimentos, mas tal era seu tamanho que lacerou o
canal urinário e uma copiosa hemorragia se seguiu. Essa hemorragia só pôde ser detida por uma
injeção de leite com uma seringa. Depois disso, expulsei muitos outros cálculos, e o opressivo
entorpecimento dos rins é sintoma suficiente de que ainda há alguns restos de cálculo úrico. É
afortunado, contudo, que partículas minúsculas ou de tamanho moderado estejam sendo expelidas.
Meu estilo de vida sedentário, ao qual estou condenado pela gota em meus pés, inviabiliza qualquer
esperança de cura. Também estou impedido de fazer exercícios a cavalo por causa das hemorroidas.
Acrescente-se às minhas queixas que qualquer alimento que ingira torna-se fleuma se
imperfeitamente digerido, o que, pela densidade fixa-se como cola em meu estômago.
O fim de sua década dolorosa chegou em 1564. Sentindo a morte iminente, ele
escreveu seu testamento, confessando: “Não tenho outro amparo ou refúgio para
a salvação além da adoção gratuita de Deus, da qual depende minha salvação”.
Cada vez mais confinado ao leito, pediu que todos os pastores de Genebra o
visitassem uma última vez, implorando-lhes: “Irmãos, depois que eu morrer,
persistam na obra e não se sintam desencorajados”. Finalmente, com seu corpo
“tão definhado que nada mais restava, além do espírito”, ele morreu em seu leito
no dia 27 de maio. Seu protegido, Teodoro de Beza, sentiu a gravidade do
momento, ao descrever: “Junto com o sol poente, esse esplêndido luminar foi
tomado de nós”.
Como não tinha o desejo de tornar-se uma relíquia ou ídolo, Calvino
solicitou que fosse enterrado no cemitério comum, em um sepulcro anônimo.
Sem glamour, sem lápide: típico de Calvino.
5. Paixão em chamas: a Reforma na Grã-Bretanha
“Vencido cairá por uma só palavra”
Da mesma forma que, em Wittenberg, com Lutero e, em Glarona, com Zuínglio,
o Novo Testamento de Erasmo deu início a tudo na Grã-Bretanha. Um jovem
sacerdote chamado Thomas Bilney estava lendo e passou pelas palavras “Cristo
Jesus veio ao mundo para salvar pecadores”. Outrora, ele teria se desesperado
por seus pecados, mas, com essas palavras, ele disse:
Parecia-me, de imediato, que sentia em meu interior um maravilhoso conforto e tranquilidade, de tal
maneira que meus ossos feridos exultavam. Depois disso, a Escritura começou a tornar-se mais
agradável para mim que o mel ou o favo de mel. Ali, aprendi que todas as minhas angústias, todos os
meus jejuns e vigílias, toda a redenção de missas e absolvições eram realizados sem a verdade em
Cristo, que salvou seu povo dos pecados deles. Essas coisas, afirmo, aprendi serem nada mais que
uma corrida veloz e precipitada longe do reto caminho (como santo Agostinho disse), ou que eram
muito parecidas com as vestes feitas de folhas de figueira, com as quais Adão e Eva tentaram em vão
cobrir-se, e nunca puderam encontrar paz e repouso — até crerem na promessa de Deus, de que
Cristo, a semente da mulher, pisaria a cabeça da serpente.
Bilney não era luterano (ele chegou às suas posições de forma bastante
independente), mas, até ser queimado por sua pregação em 1531, ele foi
instrumental ao atrair muitos outros para a Reforma.
Ao mesmo tempo, os livros de Lutero começaram a entrar no país, onde
foram recebidos pelos seguidores de John Wycliffe, os lollardos, mais vivos e
ativos que nunca. Assim que Lutero foi condenado pelo papa, seus livros foram
queimados em Cambridge, Oxford e Londres; porém, queimar e banir livros
sempre parece aumentar-lhes a popularidade. E aconteceu isso: livros luteranos
eram contrabandeados nos portos como Ipswich, alimentando o avanço de uma
rede de grupos luteranos clandestinos.
Em Cambridge, um grupo de tutores era famoso por reunir-se na White
Horse Inn [Estalagem do cavalo branco], onde toda a cerveja e a conversa à
moda de Lutero ficaram tão parecidas com Wittenberg que logo o grupo foi
apelidado “Pequena Alemanha”
.
Enquanto isso, no oeste rural da Inglaterra (Little Sodbury, em
Gloucestershire, para ser preciso), um linguista brilhante e jovem chamado
William Tyndale começava a causar tumultos na casa de seu patrão, sir John
Walsh. Ele estava ali apenas para ser tutor dos filhos de sir John, mas passara
tanto tempo com o Novo Testamento de Erasmo que a conversa à mesa faria
embrulhar até os estômagos católicos mais fortes. Um estudioso ficou tão
exasperado com Tyndale que deixou escapar: “Estaríamos melhores sem a lei de
Deus que sem a do papa”. Tyndale respondeu: “Eu desafio o papa e todas as suas
leis”, acrescentando que “e se Deus poupar minha vida, em poucos anos farei o
garoto que cuida do arado conhecer mais as Escrituras que você”.
A promessa não era vazia. Tyndale iniciou a obra de sua vida — traduzir
a Bíblia dos originais grego e hebraico para o inglês. Ele viajou para a
Alemanha, indo até Worms; e, ali, onde, diante do Imperador, Lutero tinha feito
o seu discurso “Aqui permaneço” há apenas cinco anos, Tyndale publicou o
Novo Testamento completo em inglês. Por mais de cem anos, os seguidores de
Wycliffe produziram e leram traduções do Novo Testamento em inglês, mas elas
eram apenas traduções grosseiras e escritas à mão da Vulgata latina. Era
impossível produzi-las em massa, e elas ainda continham todos os problemas
teológicos do latim (“fazei penitência” em vez “arrependei-vos”, por exemplo).
O Novo Testamento de Tyndale seria impresso aos milhares para, então, serem
contrabandeados para a Inglaterra em carregamentos de tecido. E, logo, sua obra
Parable of the Wicked Mammon [A parábola do ímpio Mamon], uma defesa da
justificação só pela fé, acompanharia os volumes. Ainda mais importante era o
fato de o Novo Testamento de Tyndale ser uma preciosidade de tradução. Preciso
e muito bem escrito, era difícil parar de lê-lo.
Nada disso impressionou os bispos ingleses. Para eles, a obra de Tyndale
era apenas perigosa, e todas as cópias que puderam ser encontradas foram
queimadas, como seus proprietários. E, sem perceber, os bispos estavam certos:
a tradução de Tyndale era muito perigosa. “Fazei penitência” na Vulgata era
agora “arrependei-vos” na versão de Tyndale; “sacerdote” era apenas “superior”,
“igreja” apenas “congregação”, “confessar” era simplesmente “reconhecer”, e
“caridade”, “amor”. Ele puxou o tapete bíblico de todas as alegações da igreja.
Como ser salvo e o que é um cristão agora pareciam algo de todo diferente: em
lugar do sacramentalismo formal e externo, havia o chamado à mudança de
coração.
Por fim, a ira da igreja chegou a Tyndale, mas não antes de ele conseguir
traduzir grande parte do Antigo Testamento, e por volta de 16 mil exemplares de
sua Bíblia foram contrabandeados para a Inglaterra. Foi um feito incrível na
época, quando havia uma população em grande parte analfabeta de, no máximo,
2,5 milhões. Em 1535, ele foi capturado e, no outubro seguinte, foi oficialmente
enforcado e queimado próximo a Bruxelas, proferindo as imortais últimas
palavras “Senhor, abra os olhos do rei da Inglaterra!”.

Dinastia: uma novela


O “rei da Inglaterra” era Henrique VIII e — quer a oração de Tyndale tenha sido
respondida de forma específica ou não — ele transformaria a Inglaterra de uma
nação devotada ao catolicismo romano para uma em que a Bíblia era lida,
pregada e discutida em inglês.
Henrique era um regente autocrata com temperamento e energia
intimidadores (normalmente letais), como uma mola — e não muito mais
previsível que isso. Também era bastante religioso: ele mesmo serviria de acólito
na missa (participando de, pelo menos, três missas por dia) e, por seu inflexível
apoio ao papa, foi premiado com a “rosa de ouro”, como o príncipe de Lutero,
Frederico, o Sábio. Não foi surpresa, portanto, que ele tenha se oposto a Lutero
ao ouvir falar dele. Em 1521, com a ajuda de alguns ghost-writers dispostos, ele
até escreveu uma obra polêmica contra Lutero intitulada A Defence of the Seven
Sacraments [Uma defesa dos sete sacramentos], dedicando-a ao papa. Por isso, o
papa o premiou com o título que se tornaria bastante irônico: “defensor da fé”.
Não deveríamos ficar muito impressionados: todos os principais governantes da
época “portavam títulos indicando sua devoção ao Príncipe da Paz. Francisco era
o mui cristão rei da França, Carlos, sua mui cristã majestade da Espanha,
Henrique era chamado defensor da fé, e Leão [o papa], obviamente, vigário de
Cristo. A conduta deles traía uma esperança muito otimista. Em 1513, Henrique
construíra doze canhões para a campanha contra a França, todos batizados com o
nome de um dos apóstolos, e que deveriam abrir fogo contra o mui cristão rei da
França”.[8]tNão obstante, o “defensor da fé” não era uma esperança refulgente
para a Reforma.
Então, ele teve problemas matrimoniais. Aos 17 anos, Henrique,
relutante, se casara com Catarina de Aragão, a viúva de seu irmão mais velho.
Depois de alguns anos de abortos espontâneos e bebês morrendo logo após o
parto, ficou claro para Henrique que Catarina era incapaz de lhe dar um herdeiro.
Ela lhe dera uma filha (Maria) em 1516, mas isso não era muito bom para
Henrique. A Inglaterra havia acabado de passar pela Guerra das Rosas, em que a
sucessão fora disputada. Henrique desejava um filho para evitar a possibilidade
de um tira-teima. A solução óbvia era obter outra esposa, que pudesse lhe dar um
herdeiro. O caminho comum para homens na situação de Henrique era encontrar
uma falta que tornasse o casamento ilegal e, então, anulá-lo. Henrique não
precisou pesquisar muito; Levítico 20.21 afirma: “Se um homem tomar a mulher
de seu irmão, é impureza; terá desonrado seu irmão; ficarão sem filhos”. (E
Henrique se considerava sem filhos: prova de que seu casamento era ilícito.) A
razão para Henrique conhecer esse versículo decorria do fato do mesmo ponto
ter sido um problema quando ele se casou com a viúva de seu irmão. Entretanto,
na época, o amoroso papa Júlio II removeu a proibição bíblica com uma
dispensa especial.
Henrique precisava convencer o novo papa, Clemente VII, a cancelar a
dispensa. Isso suscitava uma poderosa pergunta: embora Júlio acreditasse poder
anular mandamentos bíblicos, um papa poderia anular as dispensas do papa
anterior? Normalmente, as engrenagens das leis eclesiásticas seriam lubrificadas
para acomodar reis poderosos como Henrique. O problema era a própria
Catarina. Ela insistia que seu primeiro casamento não fora consumado,
destacando o caráter desnecessário da dispensa papal, e que seu casamento com
Henrique era visivelmente legítimo. Seria possível dominar outras mulheres com
um rolo compressor. Entretanto, o sobrinho de Catarina era o imperador
Carlos V, que já havia saqueado Roma e encarcerado Clemente VII uma vez. Ele
não permitiria que sua tia fosse deixada de lado, e o papa não antagonizaria o
imperador capaz de saquear Roma outra vez. Assim, o papa não podia
concretizar a anulação do incômodo casamento de Henrique.
Henrique, entretanto, não seria detido com tanta facilidade. Na verdade,
ocorreu o oposto: quando seus olhos viram a jovem, fascinante e núbil Ana
Bolena, ele se tornou incansável em relação ao objetivo de trocar Catarina por
ela. No início, ele tentou pressionar o papa com diplomacia, oprimindo o clero
inglês na esperança de que o papa cedesse. Ao mesmo tempo, separou seu
exército de eruditos para a tarefa de provar: 1) que ele estava certo, e 2) que o
papa não tinha direito de detê-lo. Foi essa tática que deu certo, pois seus
acadêmicos se superaram. Eles lembraram Henrique de que José de Arimateia
(talvez até acompanhado de Jesus) plantara a primeira igreja na Inglaterra, em
Glastonbury. Sendo esse o caso, a igreja na Inglaterra era mais antiga que em
Roma, fundada por Pedro. Assim, (e aqui estava a cereja do bolo) a igreja da
Inglaterra era independente de Roma; sua liderança pertencia não ao papa, mas
ao rei.
Assim, a partir de 1532, várias leis começaram a ser aprovadas para
alinhar a prática com essa realidade: a igreja da Inglaterra cada vez mais
independente do papa e cada vez mais dependente do rei. Por volta de 1533,
essas leis tinham tornado a Inglaterra independente o bastante para Henrique
poder agir. Por coincidência, ao mesmo tempo, ele arranjou a nomeação do novo
arcebispo da Cantuária, Thomas Cranmer, que considerou um prazer validar o
casamento de Henrique com Ana, ocorrido em segredo no início do ano.
Henrique obteve o que queria e, no ano seguinte (1534), a independência da
igreja inglesa estava completa com o Ato de supremacia proclamado por
Henrique, “chefe supremo da Igreja da Inglaterra”.
O rápido julgamento dispensado aos católicos leais à Roma, que
contestaram esses atos, pode nos levar a pensar que havia uma Reforma
protestante na Inglaterra, em especial se as vítimas mais famosas (Thomas More,
o antigo lorde chanceler de Henrique, e John Fisher, bispo de Rochester) eram os
oponentes mais vigorosos de Lutero. Entretanto, enquanto houve o rompimento
com Roma, isso não teve relação com a Reforma protestante. Desde o momento
em que Henrique escreveu A Defence of the Seven Sacraments, ele e Lutero
travaram uma amarga guerra de cartas abertas um para o outro; e, selando o ódio
de Henrique ao reformador, Lutero então se opôs ao sonho da anulação do
casamento de Henrique. O rei jamais dedicou muito tempo ao luteranismo. Em
vez disso, deixou claro que não estaria se afastando de qualquer doutrina; ele
apenas se recusava a reconhecer a supremacia do papa sobre a Inglaterra.
Entretanto, tendo utilizado a Bíblia contra o papa para argumentar a favor
da anulação, seria difícil resistir à alegação de que a Bíblia era, afinal, a
autoridade superior ao papa. Além disso, as pessoas que se prepararam para
ajudar Henrique a romper com Roma (e, portanto, agora eram recompensadas
com os cargos mais altos) mantinham convicções evangélicas, mesmo que
Henrique não as tivesse. Thomas Cranmer, o novo arcebispo da Cantuária, por
exemplo, foi convocado da Alemanha para assumir seu posto. Um sinal de seu
crescente evangelicalismo é que, na passagem pelo território luterano, ele se
casou, mesmo sendo sacerdote. É um sinal ainda mais forte ele ter mantido a
esposa ao ser chamado de volta à Inglaterra, pois lá o casamento de sacerdotes
permanecia ilegal. (Evidentemente, a sr.a Cranmer precisava ser mantida longe
da vista das pessoas; conta-se que o marido mantinha um enorme baú com
buracos feitos para ela respirar, de forma que, ao viajar, ela pudesse acompanhá-
lo em sua caixa. Alguns a consideram uma mártir menor da Reforma por todas
as vezes em que a caixa foi acomodada de cabeça para baixo nas viagens do
arcebispo.) Outra figura evangélica central era o primeiro-ministro de Henrique,
Thomas Cromwell (que não deve ser confundido com Oliver Cromwell, o lorde
protetor da Inglaterra um século depois). Na prática, o rei lhe outorgou todo o
poder sobre a igreja antes desfrutado pelo papa (sob Henrique, é claro). Então,
havia Ana Bolena, uma ativa patrocinadora do evangelicalismo, que importava e
distribuía grandes quantidades de literatura evangélica, até apresentando alguns
livros a seu marido. Quando ela era a rainha, vários bispos da velha guarda
morreram, e sua influência nos ouvidos do rei ajudou vários evangélicos a serem
nomeados no lugar deles. Assim, embora as mudanças de Henrique não
equivalham à Reforma protestante, um número crescente de evangélicos com
boas posições estavam felizes em usá-las para fins evangélicos.
O problema era que, como evangélicos e católicos perceberam, o favor
do rei (e, assim, toda a influência) poderiam ser removidos com rapidez
assustadora. Assim foi com Ana Bolena. Ela engravidou quase imediatamente e,
assim, desfrutou de um singular período de lua-de-mel sob a boa vontade do rei.
Entretanto, nasceu uma garota (Isabel). A notícia não poderia ter horrorizado
mais Henrique. De que valeram todas as batalhas contra o papa e a igreja? Diz-
se que, depois de ouvir as notícias, ele cavalgou para longe de Greenwich e de
Ana até Wiltshire, para derramar suas lágrimas com um velho cortesão, sir John
Seymour, pai de uma atraente filha chamada Joana. A família Seymour não se
importava em alimentar rumores sobre Ana, que, depois de perder um garoto,
perdia com rapidez o favor de Henrique. Falava-se que ela mantinha numerosos
casos extraconjugais, estava envolvida com feitiçaria e até tramava envenenar
vários membros da família real. Tudo absurdo, embora fosse o bastante para
Henrique. Ana foi presa, julgada, condenada por traição e decapitada.
No dia seguinte, Henrique ficou noivo de Joana Seymour; dias depois,
estavam casados. Como Ana, ela só desfrutou da boa vontade de Henrique por
um curto período, mas, no caso dela, pela morte decorrente de complicações no
parto. No entanto, Henrique se lembraria de Joana como a única mulher que
amou de verdade, principalmente porque ela foi a única que lhe deu o muito
esperado filho e herdeiro (Eduardo).
Somado a isso tudo, esses foram anos caros para Henrique, e seus cofres
vazios demonstravam o custo. Assim, o panorama de todos os monastérios (que,
afinal, eram provavelmente mais leais a Roma que ao rei) começou a parecer
cada vez mais irresistível para Henrique. Havia centenas deles, com o aluguel
combinado de suas terras totalizando um valor digno de atenção. Em todo caso,
muitos deles estavam em ruínas e eram sustentados apenas por irregularidades
grosseiras. Assim, a partir de 1536, provocado pelo primeiro-ministro, Thomas
Cromwell (que, claro, tinha próprios motivos por ser protestante), Henrique
começou o processo de dissolução dos monastérios.
De modo geral, foi uma decisão popular. Havia uma irritação
generalizada com os privilégios do clero, e os ricos ficaram felizes em comprar
todas as terras monásticas vendidas a preço de banana. E muitos monges e
freiras pareciam aliviados, alguns deles se casaram, outros contentaram-se com a
pensão substancial ou pelo fato de terem se tornado párocos. O objetivo de
Henrique poderia ter sido um pouco mais que uma pilhagem; o efeito, entretanto,
era que, com as propriedades da igreja agora em suas mãos, as classes
dominantes estavam comprometidas com a reforma de Henrique. Agora, não
havia mais volta para o velho catolicismo romano na Inglaterra. E (sem dúvida, a
intenção de Cromwell) fechar os monastérios efetivamente matou as raízes de
boa parte do catolicismo.
Ao mesmo tempo, Henrique estava começando a gostar do papel de
libertador da igreja inglesa ao resgatá-la do cativeiro papal. “Os abusos
romanistas” — as peregrinações, relíquias e imagens que fizeram dinheiro para a
igreja — estavam prontos para serem destruídos, ou pior: para serem zombados.
Por exemplo, quando a abadia de Boxley em Kent foi fechada, o reverenciado
crucifixo de Boxley (que cantava com empolgação quando alguém fazia uma
generosa doação) revelou-se um embuste — seus movimentos miraculosos não
se deviam a Deus, mas a alavancas, fios e um monge escondido. Ele foi enviado
a Londres, onde foi recebido com gargalhadas, machados afiados e uma grande
fogueira.
As raízes do velho catolicismo receberam uma aplicação de herbicida, e
o sedento e jovem movimento evangélico recebeu fertilizante. Em 1538, o rei
ordenou: “Nenhum homem seja desencorajado de ler ou ouvir a Bíblia; todos são
expressamente provocados, estimulados e exortados a lê-la, pois ela é a própria
Palavra de Deus mui viva”. Para tanto, apenas dois anos depois de Tyndale
morrer gritando “Senhor, abra os olhos do Rei da Inglaterra”, decretou-se que
uma Bíblia em inglês deveria ser colocada em cada igreja. Os católicos
tradicionalistas estavam chocados, é claro: uma ofensa digna de morte na
fogueira tornava-se de forma súbita um comportamento recomendado. O duque
de Norfolk bufou: “Nunca li a Escritura, jamais a lerei. Eram tempos felizes na
Inglaterra antes da nova instrução chegar; sim, eu preferia tudo como era
outrora”. Ainda assim, em geral, a lei foi recebida com muito entusiasmo. Seis
Bíblias inglesas foram colocadas na catedral de São Paulo, e multidões
rodeavam de imediato quem conseguia ler alto o bastante para ser ouvido. Tão
grande era a empolgação que os sacerdotes reclamaram de como, mesmo durante
o sermão, os leigos liam a Bíblia em voz alta para os outros. A leitura particular
da Bíblia tornou-se uma prática muito mais difundida na vida cotidiana, quando
até os analfabetos aprenderam a ler para obter imediato acesso à “Palavra de
Deus mui viva”. E, tendo isso acontecido, era muito difícil voltar atrás: agora,
açougueiros e padeiros discutiam a Bíblia, chegavam a novas convicções e até
mesmo ousavam discordar do clero. A igreja já não podia pontificar sem ser
questionada. Com a Bíblia em mãos, as pessoas desejavam saber de onde o
sacerdote tirara suas ideias.
Entretanto, o reinado de Henrique não foi uma transição tranquila e
uniforme do catolicismo para o protestantismo. Ele podia mudar de
temperamentos teológicos como trocava de esposas. Depois da morte de Joana
Seymour, Cromwell tentou juntar Henrique com a princesa luterana Ana de
Cleves. Entretanto, quando Henrique finalmente encontrou-se com ela pouco
antes do casamento, sentiu tanta repulsa pela “égua de Flandres”, que, embora o
casamento tivesse de prosseguir, ele nunca o consumou. Em vez disso, o
matrimônio foi imediatamente anulado, e Cromwell pagou pelo fiasco com a
cabeça. A família católica Howard percebeu que a hora era essa, e apresentou
sua estrela mais brilhante, Catarina, a Henrique. Henrique casou-se com ela, mas
foi um desastre, pois Catarina não estava contente com um marido quase trinta
anos mais velho. Ela teve um caso amoroso, descoberto, e seguiu com rapidez
Ana Bolena no corredor da morte da torre de Londres. Da luterana Ana à
católica Catarina, por fim Henrique uniu-se à reformista Catarina Parr que,
quando Henrique morreu, deve ter sido uma das esposas aliviadas em sobreviver
ao marido.

As muitas esposas de Windsor:


1509-1533 Catarina de Aragão (casamento anulado) — Deu à luz
Maria I
1533-1536 Ana Bolena (executada) — Deu à luz Isabel I
1536-1537 Joana Seymour (falecida) — Deu à luz Eduardo VI
1540 Ana de Cleves (casamento anulado)
1540-1542 Catarina Howard (executada)
1543-1547 Catarina Parr (sobreviveu a Henrique)

De maneira semelhante, Henrique legislou contra e a favor do


catolicismo, e contra e a favor do protestantismo. Uma grande insurreição
antiprotestante no Norte, embora brutalmente desbaratada por Henrique, foi o
alarme que o avisou que antagonizar a velha ordem poderia ser perigoso. Ele
respondeu anunciando medidas duras contra quem negava as crenças
tradicionais como a transubstanciação e o celibato dos sacerdotes (sem dúvida,
deixando o sr. e a sr.a Cranmer nervosos). Uma tumultuada leitura popular da
Bíblia o levou, em 1543, a banir todas as exposições autorizadas da Bíblia, além
de toda a leitura privada da Bíblia entre os iletrados. Três anos depois, todas as
traduções não autorizadas da Bíblia para o inglês foram também proibidas.
Os eventos de 30 de julho de 1540 deixam claro as confusas ideias
religiosas de Henrique. Nesse dia, seis homens foram executados: três católicos
foram enforcados pela traição de negar a supremacia de Henrique sobre a igreja
da Inglaterra, e três evangélicos foram presos por heresia. Foi uma brutal
demonstração do desejo de Henrique. Ele não queria que a Inglaterra se tornasse
protestante, nem que se tornasse católica romana. Ele queria um catolicismo
inglês, livre de todos os laços e corrupções romanos. A dificuldade consistia em
saber o que era romano (e assim, jogado fora), e o que era católico (e, assim,
mantido). Henrique experimentou a tensão pessoalmente: embora tivesse
começado a fechar as capelas em que os sacerdotes rezavam pelas almas no
purgatório, ele também tomou precauções em seu testamento para que se
fizessem orações por sua alma — por via das dúvidas. Outro problema de
Henrique era que, ao permitir que a Bíblia criticasse o papa e a prática da igreja e
ao permitir que ela fosse lida pelo homem comum, mesmo que por apenas
alguns poucos anos, era quase impossível parar onde ele parou. Sem nenhuma
intenção, Henrique libertou um redemoinho, que só pôde ser contido por um
certo tempo.

O rei Josias da Inglaterra


Sem muita sabedoria, Henrique passara a educação do príncipe Eduardo e da
princesa para Catarina Parr, e os melhores tutores que poderiam ser encontrados
eram bastante evangélicos. Ensinados pelos melhores, eles cresceram e
tornaram-se evangélicos convictos. Assim em 1547, quando Henrique morreu, e
seu filho tornou-se o rei Eduardo VI, a Inglaterra estava pronta para a verdadeira
reforma. Cranmer estava empolgado: finalmente, ele poderia tirar a esposa da
caixa e começar a promover o evangelicalismo autêntico.
Eduardo contava apenas 9 anos quando se tornou rei e, assim, seu tio
Eduardo Seymour, duque de Somerset, governou em seu nome como lorde
protetor. Foi ele que, com Cranmer, iniciou os esforços da Reforma protestante.
(Eduardo VI não era um joguete em tudo isso. Apesar da idade, ele tinha aversão
ao que chamava com desdém de “papismo”, bem como convicções evangélicas
bastante ponderadas.) Nos primeiros anos, Seymour e Cranmer trabalharam com
cuidado, preparando lentamente a Inglaterra para o protestantismo em vez de
suscitar reações desnecessárias.
Ainda assim, muito mudou: as leis de Henrique contra as crenças e
práticas evangélicas foram revogadas, permitindo que o clero se casasse e as
pessoas recebessem o pão e o vinho na comunhão. Capelas que intercediam
pelos mortos foram dissolvidas por se fundamentarem no conceito do purgatório,
uma crença que afasta as pessoas da confiança na “verdadeira e perfeita salvação
por meio da morte de Cristo”. Ordenou-se a remoção das imagens de santos das
igrejas e a substituição dos altares (locais em que se repetia o sacrifício de Cristo
na missa) por mesas (móveis para a refeição em família). Um livro de oração em
inglês (O livro de oração comum) foi escrito para garantir que os cultos fossem
realizados em língua inglesa e seu conteúdo fosse evangélico. A pregação
deveria ser feita no idioma local, e muitos pregadores notáveis, como Hugh
Latimer, começaram a despontar. Foi produzido um novo livro de homilias para
os menos hábeis na preparação de sermões, (mensagens prontas que poderiam
apenas ser lidas), explicando com clareza a justificação só pela fé. Havia uma
nova expectativa para os que estavam sendo ordenados: agora, ficava claro que
se tornar ministro não significava transformar-se em um sacerdote que oferecia
sacrifícios (na missa), mas, em sentido primário, ser um pregador. Para isso, os
candidatos à ordenação, em vez de serem investidos com vestes sacerdotais,
recebiam a Bíblia.
Isso era demais para algumas pessoas e, em 1549, ocorreu um levante
popular no sudoeste, sobretudo contra o fato de o livro de oração encontrar-se
em inglês (o fato de os rebeldes quererem com tanta paixão o serviço religioso
em latim — língua não compreendida por eles — deixava Cranmer
desesperado). Ainda nesse ano, John Dudley ocupou o cargo de Eduardo
Seymour, e pisou no acelerador da Reforma com mais força. Ao mesmo tempo, a
Inglaterra estava se tornando um refúgio para reformadores continentais fugidos
dos vitoriosos exércitos do sacro imperador romano. Martin Bucer de
Estrasburgo tornou-se professor régio de Teologia em Cambridge em tempo de
ajudar Cranmer a escrever seu livro de oração. Pietro Martire Vermigli tornou-se
professor régio de Teologia em Oxford em tempo de ajudá-lo a reescrevê-lo.
Os dois livros de oração de Cranmer (1549 e 1552) são uma boa janela
para a passagem da Reforma na Inglaterra. A versão de 1549 pode ter sido
escrita como um tapa-buraco, uma teologia da Reforma digestível para preparar
estômagos para a refeição pesada que viria em seguida. Em todo caso, embora
não houvesse menção à transubstanciação e ao sacrifício da missa, seu inglês
não fazia muitas concessões para os ouvidos dos católicos. Ao receber o pão, o
cristão ouviria: “O corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, que foi dado por ti,
conserve teu corpo e alma para a vida eterna”. Isso soava totalmente luterano,
mas um católico poderia comer em boa consciência.
Entretanto, não havia luteranos entre os teólogos refugiados na Inglaterra
(algo ainda sentido hoje na quase total ausência de teor luterano no
evangelicalismo inglês, que sempre foi muito mais zuingliano e calvinista).
Quando Vermigli e os outros chegaram, eles odiaram o luteranismo do livro de
oração de 1549 e desejaram torná-lo mais suíço. Funcionou. Quer Cranmer já
planejasse isso ou sua teologia tenha mudado, as palavras pronunciadas na
distribuição do pão na versão de 1552 eram: “Tomai e comei isto em memória da
morte de Cristo por ti [o que soa zuingliano] e alimente-se dele em teu coração
pela fé com ação de graças [o que soa calvinista]”. Nenhum católico ficaria feliz
com isso. A Reforma na Inglaterra avançara.
Então, a locomotiva da reforma evangélica chegou a uma arrasadora
parada com a morte do rei Eduardo, aos 15 anos, em 1553. Prevendo a situação,
e sabendo que Maria, sua meia-irmã arquicatólica, assumiria o trono e desfaria
tudo o que ele alcançou, Eduardo elaborou um plano desesperado. Dudley
garantiria que lady Joana Grey, uma prima resolutamente evangélica de Maria e
a próxima na linha de sucessão depois dos filhos de Henrique, fosse instalada
como rainha antes de Maria. Assim, no momento em que Eduardo morreu, Joana
foi proclamada rainha em Londres. Tudo em vão: Maria obteve apoio e entrou
em Londres, enviando Joana para a Torre. O plano não levou em conta o fato de
a maioria das pessoas se importar mais com o monarca legítimo que um
protestante. Mesmo os protestantes apoiaram Maria, ignorando com ingenuidade
quão severa ela seria ao lidar com eles.

Maria, a Sanguinária: um coquetel repelente


Maria, no entanto, era filha de Catarina de Aragão. Criada como a incontestável
princesa da corte católica romana de Henrique, ela foi declarada ilegítima e
pressionada a abandonar sua religião quando Henrique se livrou de Catarina e
rompeu com Roma. Para Maria, o protestantismo não era apenas uma heresia,
era a razão de todas as suas dores.
Maria fez a Inglaterra voltar para Roma o mais rápido possível. Bispos
evangélicos foram removidos de seus ofícios. Thomas Cranmer foi substituído
pelo cardeal Pole como arcebispo da Cantuária, Bíblias foram removidas das
igrejas, clérigos casados foram separados de suas esposas: em resumo, o relógio
nacional retrocedeu ao período anterior a todas as mudanças efetuadas por seu
pai. Era como se todo esse caso desagradável jamais tivesse acontecido. E, em
muitos sentidos, a Inglaterra parecia bastante receptiva. Ocorreram umas poucas
revoltas contra a nova ordem, mas também havia muitos que pareciam aliviados.
Toda a parafernália católica (imagens, vestes sacerdotais etc.) agora reaparecia,
depois de permanecer escondida pelos católicos nos expurgos de Eduardo. Sem
dúvida, as reformas promovidas por ele não foram de todo populares.
Dito isso, era impossível apagar vinte anos de história. As coisas não
podiam voltar a ser bem como eram, por um motivo: todos os monastérios e
terrenos monásticos não podiam ser reivindicados, pois, embora os novos
proprietários pudessem estar felizes em ir à missa, eles não estavam tão
dispostos a entregar suas terras. Agora era tarde demais para agir como se
ninguém tivesse lido a Bíblia ou ouvido um sermão em inglês. As pessoas
começaram a ter dúvidas sobre o ensino tradicional de forma que, mesmo não
sendo evangélicos convictos, elas não gastariam dinheiro em peregrinações e
práticas que talvez não funcionassem. Mesmo que as dúvidas não procedessem
da leitura bíblica, era difícil venerar imagens depois de ver o grande crucifixo de
Boxley ridicularizado.
O maior problema de Maria resumia-se à vaidade de todas as suas ações
se ela não gerasse um herdeiro. Ela precisava de um bebê. E de um marido. Mas,
quem poderia ser? Ela escolheu o futuro Filipe II da Espanha. Não foi uma
escolha muito sábia: Filipe era um inimigo implacável do protestantismo e,
embora as pessoas estivessem preparadas para tolerar um pouco da repressão
católica de Maria, histórias aterrorizantes sobre a inquisição espanhola as
deixavam muito mais preocupadas.
Então, seus piores medos viraram realidade. Vendo para onde o vento
estava soprando, muitos protestantes buscaram refúgio além-mar, em lugares
como a Genebra de Calvino; outros decidiram ficar e operar em silêncio,
distribuindo seus “livros perversos“ em segredo e encontrando-se em
congregações clandestinas (geralmente muito grandes). Os que ficavam e não se
escondiam eram queimados. Ao todo, e em um gritante contraste com a
tolerância do reino de Eduardo, o reinado de Maria condenou à fogueira cerca de
300 evangélicos por sua fé, sem contar os muitos outros que morreram nas
horrendas condições das prisões do século XVI. Depois de Auschwitz, algumas
centenas talvez não soem muito, mas, para a época, foi um verdadeiro e terrível
holocausto.
Não havia como a coragem inesperada e firme de tantos mártires, aliada
à brutalidade do regime de Maria, não impressionar a população. As mortes na
fogueira fixaram na consciência nacional a associação da tirania com Roma,
enquanto as relações de Maria com a Espanha fizeram os mártires parecer
patriotas ingleses. Percebendo-se isso, em 1558 decidiu-se que os hereges não
seriam mais queimados em público, mas então era tarde demais.
Os mártires de Oxford
Entre as vítimas mais famosas de Maria estão o antigo arcebispo da
Cantuária, Thomas Cranmer; o famoso pregador e bispo de Worcester,
Hugh Latimer; e o bispo de Londres, Nicholas Ridley. Em 1555, Ridley
e Latimer foram queimados juntos, de costas um para o outro, no final da
Broad Street em Oxford. Latimer, com quase oitenta anos, foi o primeiro
a morrer, gritando entre as chamas: “Tem bom conforto, mestre Ridley, e
sê valente; neste dia, pela graça de Deus, brilharemos como uma vela na
Inglaterra; creio que ela jamais se apagará”. Infelizmente para Ridley, a
madeira a seu redor foi disposta de maneira equivocada, de forma que
ele passou por um terrível sofrimento: suas pernas foram queimadas
antes de o restante de seu corpo ser consumido pelas chamas. Ao que
parece, a horrível visão levou centenas às lágrimas.
Cinco meses depois, Thomas Cranmer foi queimado no mesmo local. O
antigo arcebispo e arquiteto de boa parte da Reforma inglesa, agora com
quase setenta anos, tinha, sob extrema coerção, renunciado ao
protestantismo. Foi um triunfo para o reinado de Maria. Apesar de sua
retratação, contudo, ele era uma representação tão grande da Reforma
que mesmo assim ele foi condenado à fogueira. Essa decisão fez mais
que acabar com a vitória de Maria, pois, quando o dia da execução
chegou, Cranmer recuou-se a ler a retratação. Em vez disso, afirmou
com ousadia que era de fato protestante, embora um covarde por
abandonar seus princípios. Como consequência, anunciou: “Pelo fato de
minha mão ter pecado, escrevendo o que era contrário a meu coração,
assim ela será a primeira a receber a punição”. Ele se manteve fiel à
palavra: quando as chamas foram acesas, ele estendeu a mão que
assinara a retratação para que ela queimasse primeiro. Tendo brevemente
renegado o protestantismo, Cranmer queimou com uma bravura
comovente e desafiadora e, assim, morreu o primeiro arcebispo da
Cantuária protestante.

Se Maria tivesse gerado filhos, a Inglaterra provavelmente teria


permanecido oficialmente católica. Entretanto, o que Maria pensava ser a
aguardada gravidez revelou-se um câncer de estômago e, em 17 de novembro de
1558, ela morreu, seguida do seu arcebispo da Cantuária, Reginald Pole, com o
intervalo de poucas horas. No final, o coquetel de mortes na fogueira, Roma e
conexões com a Espanha afastou os ingleses do catolicismo que Maria, a
Sanguinária, tentou impor de novo. Assistindo a tudo isso do exterior, os
exilados ficaram mais desejosos que nunca de retornar e purificar a Inglaterra
dessas coisas. Quando Maria morreu, uma maré de protestantismo anticatólico
voltou a atingir o litoral inglês.

“Foi o SENHOR quem fez isso, e é maravilhoso aos nossos olhos.”


Aparentemente, foi com o versículo 23 do salmo 118, que a jovem princesa
Isabel saudou as notícias de que Maria havia morrido e agora ela ocuparia o
trono. Não surpreende que ela estivesse aliviada: Isabel sobrevivera ao
holocausto quase que por milagre, e o país podia ser recuperado pelo
protestantismo.
Isabel, a filha mais jovem de Henrique, era filha de peixe. Dominadora e
incansavelmente enérgica, sua mente inquieta era capaz de réplicas muito
velozes. Ela contava com astúcia política suficiente para sobreviver ao reinado
de Maria sem dar um passo em falso. Sendo quem era, todos sabiam que ela
reintroduziria o protestantismo. Sua mãe era Ana Bolena, a causa da ruptura de
Henrique com Roma e, como se recusava a reconhecer o casamento de Henrique
com Ana, Roma considerava Isabel ilegítima, significando que ela não poderia
ser rainha. Assim, restava a Isabel ser protestante. Entretanto, ela se tornou de
fato protestante por convicções pessoais e profundas.
Dentro de um ano de sua coroação, as reformas religiosas de Maria
foram desfeitas, e um novo Ato de supremacia proclamou Isabel a “governadora
suprema” da Igreja da Inglaterra (Henrique fora o “chefe supremo”, mas esse
novo título objetivava ser menos irritante aos ouvidos católicos e aos
protestantes que não acreditavam que uma mulher poderia ser “chefe”, ou
“cabeça”). Mais uma vez, o monarca, não o papa, estava no controle.
Além disso, um novo livro de oração foi providenciado e, mais uma vez,
sua teologia característica mostrava como estava a situação. O livro de oração de
1559 era muito semelhante à segunda versão de 1552, produzida por Cranmer,
apenas um pouco menos pesado. Agora, não havia oração pedindo libertação do
papa, de sua “tirania” e de “todas as suas detestáveis atrocidades”, por exemplo.
Mais uma vez, as palavras anunciadas na distribuição do pão diziam muito. Na
versão de 1559, elas se tornaram: “O corpo de nosso Senhor Jesus Cristo,
entregue por ti, te conserve corpo e alma para a vida eterna [da edição de 1549].
Toma e come isto em memória da morte de Cristo por ti, e alimenta-te dele em
teu coração pela fé com ações de graças [da edição de 1552]”. Em outras
palavras, o novo livro de oração era um meio-termo entre o luteranismo e o
protestantismo suíço.
Esse era exatamente o tipo de protestantismo que Isabel legislaria. Era
corajosa e inequivocamente protestante (a palavra “meio-termo” não significa
que havia algo em parte católico), mas não era nem uma forma de
protestantismo, nem a outra. Se Henrique estabeleceu um catolicismo bastante
inglês (em oposição ao romano), Isabel estabeleceu um protestantismo bastante
inglês (em oposição ao luterano ou calvinista). Sob Isabel, a Inglaterra se
tornaria uma nação protestante unida. E isso significava que todos deveriam ir à
igreja, onde todas as pessoas seriam expostas ao mesmo protestantismo não
específico. Elas nem mesmo precisavam concordar com ele. Os católicos, por
exemplo, não precisavam participar da comunhão; eles poderiam crer em
particular no que quisessem. Precisavam apenas se conformar e ir à igreja (ou
pagar uma multa muito cara sempre que faltassem). Como um de seus
contemporâneos expressou, ela não se importava em “abrir espaço na alma dos
homens”, apenas unir a nação em torno de si mesma e da fé.
Contudo, seria um erro pensar que Isabel era apenas uma política sagaz
com pouco interesse em teologia. Pessoalmente, ela era uma protestante
convicta, leitora do Novo Testamento em grego todos os dias e da Bíblia inglesa
com regularidade, que orava em inglês. Assim que ela se tornou rainha, um
bispo cometeu o erro de erguer o pão (no estilo católico, para que o pão fosse
adorado) em sua capela particular. Isabel se retirou e proibiu a repetição desse
ato na coroação. Na primeira participação da abertura do parlamento, ela
determinou que um protestante pregasse e em segredo (por medo da guerra)
ofereceu auxílio aos protestantes continentais.
Sabendo das crenças pessoais da rainha, os reformadores trocavam com
alegria piscadelas jocosas entre si enquanto esse protestantismo moderado era
desdobrado nos livros de regimento. Sem dúvida, esse era apenas o começo, a
velha tática de trilhar passo a passo a estrada da Reforma. Foi um choque
extraordinário quando ficou claro que ela via isso como sua palavra final sobre o
assunto. Isabel tinha pouco tempo para os que regressaram de Genebra com
ideias avançadas sobre como a igreja poderia ser mais reformada. Embora ela
tivesse convicção de que a Inglaterra deveria ser protestante, ela também estava
certa de que não era a hora do idealismo protestante. Se a Inglaterra se tornasse
muito extremada, ela temia, isso geraria um fervor antiprotestante no continente
além do ponto de ebulição, que ameaçaria a segurança do reino. A Espanha ou a
França poderia se aventurar a invadir.
Por um tempo, todos apenas assistiram e aguardaram. Afinal, Isabel era
uma mulher: se ela se casasse, isso mudaria as coisas; se não, a falta do herdeiro
também mudaria a situação. Depois de uma década, ficou claro que ela não se
casaria e que não mudaria. Assim, em 1570, o papa tentou acelerar as coisas ao
excomungá-la, privando-a do trono em caráter oficial e convocando os católicos
ingleses a recusar-se a obedecê-la. Foi uma péssima jogada. Antes, o catolicismo
era tolerado; agora consistia em traição. Como nenhum sacerdote católico
romano recebia treinamento na Inglaterra, o único suprimento espiritual para os
católicos ingleses era uns poucos sacerdotes de além-mar, que chegavam ao país
para servi-los em particular. Agora, no entanto, esses sacerdotes que cruzaram as
fronteiras eram considerados perigosos agentes de um poder externo e hostil.
Afinal, se eles fossem leais ao papa, fomentariam a traição. Portanto, o
catolicismo tornou-se uma atividade clandestina, e famílias católicas prósperas
escondiam seus sacerdotes em casas de campo isoladas enquanto fingiam se
conformar.
Esse comportamento dissimulado sempre multiplica suspeitas e, com o
passar dos anos, o pavor nacional do “católico debaixo da cama” cresceu. Não se
tratava apenas de paranoia. Não só o papa, mas todas as forças da
Contrarreforma católica estavam apontadas para o único país protestante unido
da Europa. Se o regime protestante de Isabel fosse derrubado, então o
protestantismo sofreria um golpe fatal.
O movimento mais óbvio seria assassiná-la, pois, se Isabel morresse, sua
prima católica devota, Maria, rainha dos escoceses, era a próxima na linha de
sucessão. Assim, Maria tornou-se o epicentro das tramas católicas contra Isabel.
Eles não teriam um testa de ferro mais incapaz: enquanto Isabel era a astúcia
personificada, Maria era tudo, menos isso. Maria teve tanto sucesso em afastar
todas as pessoas na Escócia que se viu forçada ao refúgio na Inglaterra. Na
cabeça dela, isso não seria um problema: com certeza, sua prima Isabel cuidaria
dela. Porém, Isabel não estava particularmente empolgada com a ideia de ter a
mascote de todos os planos de assassinato morando consigo. Ela escondeu
Maria, com discrição, no interior sob prisão domiciliar. Agora, o jogo havia
virado. Os protestantes no conselho de Isabel viram que, com Jaime (ou Tiago),
filho de Maria, criado em seguras mãos calvinistas na Escócia, Maria era um
problema a ser eliminado. Se ela morresse antes de Isabel, a coroa passaria para
o protestante Jaime, e tudo ficaria bem. Então, um dos agentes de Isabel
descobriu fortes evidências de que Maria, amargurada com a prisão, era parte de
uma trama contra Isabel. O jogo acabou e, em 1587, Maria foi executada.
O futuro protestante da coroa estava seguro. Entretanto, o país não
estava, pois, no ano seguinte, o antigo marido de Maria, a Sanguinária, Filipe II
da Espanha, tentou uma invasão armada em grande escala na Inglaterra,
abençoada com alegria pelo papa como uma cruzada. Se a nação já não estivesse
unida, a poderosa armada naval de Filipe ao navegar pelo canal da Mancha
obteve essa união. Com a ajuda de algumas tempestades violentas, a armada foi
derrotada. Estava claro para todos na Inglaterra: Deus salvou seu verdadeiro
povo (protestantes) e julgou os ímpios (católicos). Uma medalha foi forjada para
comemorar a vitória, e sua inscrição repetia Êxodo 15.10 e a salvação de Israel
do exército egípcio: Afflavit Deus et dissipantur (“Deus soprou e eles foram
dispersados”). Sem dúvida, Deus estava sorrindo para o protestantismo de
Isabel. E, como estava claro na mente de Isabel, isso significava que Deus não
achava que ela precisava seguir adiante na estrada da reforma, como alguns de
seus súditos pensavam.
No final de seu reinado, em 1603, não havia dúvida: ser inglês equivalia
a ser protestante. Ser católico significava consistir em uma ferramenta traiçoeira
de poderes estrangeiros. O culto à virgem Maria foi substituído pelo culto a
Isabel, a rainha virgem. Como as coisas mudaram! Anos antes, em 1560, foi
lançada a Bíblia de Genebra (uma versão bíblica calvinista), repleta de notas
explicativas para que, por exemplo, quando o leitor se deparasse com uma
palavra difícil como “anticristo”, uma nota explicasse: “Isto é, o papa com todo
o corpo de suas criaturas imundas”. Naquela época, essa posição era apenas dos
extremistas. Mas, no fim do reinado de Isabel, o papa ser considerado o
anticristo era óbvio para todos.
Acima de tudo, o longo reinado de Isabel (1558-1603) revelou-se uma
guerra de desgaste com o catolicismo. Quando ela subiu ao trono, ninguém
esperava por isso. Mas, enquanto os anos passavam, as práticas católicas caíram
em desuso, e os sacerdotes católicos treinados nos velhos costumes morreram.
No lugar deles, as liturgias e homilias de Cranmer eram ouvidas por todos,
semana após semana; logo, a única teologia que os pastores poderiam ter acesso
era protestante; a única Bíblia que as pessoas conheciam era a inglesa, e o
domínio e o conhecimento disso lentamente se infiltrou até nas áreas mais rurais.
O longo reinado de Isabel garantiu que a nação se tornasse protestante. O que
nunca pôde fazer era garantir que as pessoas seriam evangélicas.

Ao norte da fronteira
As coisas funcionaram de forma diferente na Escócia, embora a Reforma
escocesa tenha começado em tons parecidos. Ao mesmo tempo em que a
literatura luterana estava sendo contrabandeada para a Inglaterra e discutida em
Cambridge, ela fazia incursões à Escócia, encontrando ávidos leitores em St.
Andrews. Como na Inglaterra, alguns dos convertidos evangélicos começaram a
pregar as novas doutrinas. Entretanto, nenhum deles fez muita diferença até que,
em 1528, um deles, Patrick Hamilton, foi preso e queimado por heresia em St.
Andrews. Ele melhorou a imagem do evangelicalismo na Escócia, fazendo
muitos se perguntarem que nova doutrina era essa, por que era tão perigosa e por
que um homem morreria por ela.
Uma coisa diferente da Escócia era que o rei (Jaime V, na época) detinha
completo controle da igreja em seu país. Assim, em sua mente, não havia
necessidade de romper com Roma como Henrique VIII da Inglaterra fizera. O
que ele ganharia? A coroa escocesa jamais estaria interessada em cortar laços
com Roma.
Em 1542, Jaime morreu, abrindo uma janela de oportunidade para a
Reforma. O monarca por direito era agora a infante Maria da Escócia, mas Jaime
Hamilton, conde de Arran, governava no papel de regente. No ano seguinte,
ocorreu algo extraordinário: “A fase piedosa de Arran”. O próprio Arran tinha a
extraordinária capacidade de alternar entre o catolicismo e o protestantismo, mas
naquele ano, ele era protestante. O resultado foi um ano de legislação a favor dos
protestantes: uma versão bíblica na língua local foi sancionada (e vendeu bem);
pregadores evangélicos foram comissionados; e o proeminente cardeal David
Beaton, católico romano, de St. Andrews foi até preso.
Então, Baton encabeçou uma revolta e, depois de um ano, Arran decidiu
ser católico de novo. Ler a Bíblia no próprio idioma foi declarado ilegal outra
vez e, como claro sinal de que os bons tempos estavam de volta, o proeminente
pregador evangélico George Wishart foi capturado, julgado e queimado como
herege.
Entretanto, os protestantes escoceses não eram do tipo que deixariam
barato esse tipo de tratamento. Um pequeno grupo disfarçado invadiu o castelo
de St. Andrews, assassinou Beaton, pendurou seu corpo na janela e prosseguiu
para conquistar o castelo. Durante o ano seguinte, o castelo se tornou um local
de refúgio para os protestantes ingleses, que mantiveram seu controle até serem
bombardeados por tropas francesas chamadas para ajudar.
Muitos dos derrotados foram condenados a servir como galerianos em
navios franceses, acorrentados a bancos para remar o dia todo sob a ameaça do
chicote. Entre eles, estava o antigo guarda-costas, portador do sabre, de Wishart
e, mais tarde, pregador dos réus do castelo, John Knox. Seus colegas de prisão
conheciam sua teologia: seu primeiro sermão, sobre o papa como a prostituta da
Babilônia, foi inequívoco. Mas, agora, no navio, eles começaram a conhecer seu
fervor. Eles costumavam ser ameaçados com tortura se não reverenciassem a
imagem da virgem Maria ou a assistissem à missa, quando celebrada a bordo.
Entretanto, quando Knox se recusou e a imagem de Maria foi forçada sobre seu
rosto para que ele a beijasse, Knox a agarrou e lançou ao mar. Depois disso, os
captores pararam de tentar e, após quase dois anos tornando a vida deles
miserável, ele foi libertado.
Knox passou um tempo na Inglaterra, tentando fazer Cranmer acelerar
sua Reforma, mas, quando Maria, a Sanguinária, subiu ao trono, ele partiu para
Genebra. Para ele, Genebra era um paraíso: “A mais perfeita escola de Cristo
que já houve sobre a terra desde os dias dos apóstolos”. Isso o fez sonhar com
sua terra natal. Knox conseguiu viajar nos anos seguintes, chegando até a passar
brevemente pela Escócia, onde foi recebido de modo caloroso pelo crescente
número de protestantes escoceses, que começavam a vê-lo como um tipo de líder
exilado. Na maior parte do tempo, porém, ele aguardava em Genebra,
acumulando ira enquanto assistia como os eventos na Grã-Bretanha se
desenrolavam.
Em 1558, sua ira estourou e ele libertou de sua pena a obra The First
Blast of the Trumpet Against the Monstruous Regiment of Women [O primeiro
toque da trombeta contra o monstruoso governo das mulheres]. Pelo “governo”
das mulheres, ele se referia aos reinos das duas rainhas católicas, Maria da
Escócia e Maria, a Sanguinária, da Inglaterra. Na mente de Knox, a raiz de todos
os horrores em ataque contra a Grã-Bretanha era o “monstruoso” fato de as
mulheres governarem, quando o comando era reservado aos homens. A obra
surgiu em uma hora desastrosa, pois, pouco depois da publicação, Maria, a
Sanguinária, morreu, o que poderia deixar Knox livre para voltar para a
Inglaterra. Entretanto, não havia como Isabel permitir que o autor dessa obra
vivesse em seus domínios. Talvez ele não tenha escrito com ela em mente, mas
Isabel jamais perdoou Knox pelo insulto e sempre nutriu uma profunda suspeita
de tudo que viesse de Genebra.
Contudo, no ano seguinte (1559), Knox finalmente retornou à Escócia.
De imediato, seus sermões vulcânicos alimentaram o sentimento protestante (e
algumas revoltas). Ele foi declarado criminoso, mas um poderoso grupo de
nobres e cidadãos protestantes se dispôs a defender Knox e lutar pelo
protestantismo. Ao mesmo tempo, o catolicismo começava a ser associado com
algo estrangeiro, como na Inglaterra. A própria Maria, a rainha da Escócia, era
francesa demais: criada na França, vivia na França, estava casada com um
francês, com mãe francesa (que tinha assumido o cargo de regente no lugar de
Arran); para muitos escoceses, havia o incômodo sentimento de que a Escócia
estava sendo transformada em uma província da França. Assim, o patriotismo
escocês começou a fundir-se com o protestantismo escocês na tentativa de se
livrar dos franceses católicos.
Evidentemente, tudo isso era música para os ouvidos de Isabel lá na
Inglaterra. Ela amava a ideia de ter a Escócia protestante ao norte em vez de
estar cercada pelo que era uma desconfortável prensa católica, com a Escócia
católica ao norte e a França católica ao sul. Ela decidiu enviar tropas ao norte
para ajudar os protestantes a vencer. A mera aparição deles foi o suficiente para
alterar a situação e, em 1560, o Parlamento Escocês conseguiu decretar que o
papa não detinha nenhuma autoridade na Escócia e que, agora, toda a doutrina e
a prática deveriam ser conformadas à nova confissão de fé (a Confissão
escocesa) esboçada por John Knox. Maria da Escócia pode não ter gostado, mas
ela ainda estava na França e, quando chegou à Escócia, um ano depois, foi
obrigada a aceitar. Agora, a Escócia era um país calvinista.
Que reviravolta extraordinária! Em 1558, Inglaterra e Escócia eram
católicas; em 1560, protestantes. Evidentemente, como na Inglaterra, seria
necessário mais tempo para o protestantismo tornar-se uma convicção pessoal e
popular. Na páscoa de 1561, por exemplo, menos que 10% da população de
Edimburgo estava preparada para receber a ceia do Senhor calvinista. A
população não se manteve especialmente apegada à missa, ela precisava
entender a nova teologia. Existia a carência de pregadores treinados e da liturgia
protestante antes de as pessoas aceitarem o evangelicalismo com sinceridade.

Política e teologia
Talvez o aspecto mais notável da reforma na Inglaterra e na Escócia consista em
suas muitas diferenças da reforma ocorrida em Wittenberg, Zurique e Genebra.
Em poucas palavras, a reforma movida mais pela teologia parece diferenciar-se
da reforma mais promovida pela política. Para os reis e rainhas da Inglaterra, a
política estava no centro de sua mente, o que não ocorreu no caso de Lutero,
Zuínglio e Calvino. Pode-se observar o mesmo nas diferenças entre a reforma na
Inglaterra e na Escócia: na Inglaterra, a Reforma seguiu o método de cima para
baixo, conduzida por monarcas (e usada pelos reformadores); na Escócia, ela foi
predominantemente de baixo para cima, exigida pelo povo, apesar do monarca.
Se essa diferença prova algo, é que o cerne da Reforma consistia em um
movimento doutrinário. Não se buscava a reforma política, social ou moral com
roupagem teológica; bem no fundo, havia um conjunto de perguntas teológicas:
“O que é o evangelho?”, “Como podemos saber?”, “O que é salvação e como
posso ser salvo?”, “Quem é o povo de Deus, e o que é a igreja?”. O próprio fato
da facilidade da percepção da diferença entre Martinho Lutero e Henrique VIII
diz tudo. Era bem possível usar a Reforma para fins políticos (como Henrique
fez), mas a Reforma em si foi uma revolução teológica (como Lutero
demonstrou).
6. A reforma da Reforma: os puritanos
Quem eram os puritanos?
“Puritano”: termo mais usado como arma que descrição. Para a grande maioria,
trata-se de uma lama verbal que, uma vez atirada contra alguém, faz a vítima
parecer um pedante risível e rabugento fazendo caretas. Para a pequena minoria,
a palavra deve ser brandida como a descrição de uma equipe de ouro, unida com
as mais impecáveis credenciais teológicas e espirituais.
A expressão foi cunhada como termo pejorativo depois que Isabel
tornou-se rainha: para o inglês médio, havia o “papista” católico de um lado, e o
“preciosista” ou “puritano“ — alguém que exagerou do outro lado. Isso sugeria
um tipo de santarrão caçador de picuinhas que se considerava mais santo que os
outros. Essa não era uma descrição justa: as pessoas às quais ela foi aplicada
jamais se enxergavam como indivíduos puros (bem longe disso, como o
constante testemunho de sua pecaminosidade demonstra). Todavia, nem a outra
descrição é muito precisa: os chamados puritanos diferiam uns dos outros,
muitas vezes de modo marcante. Eles podiam discordar sobre o propósito da
cruz, sobre como ser salvo; o poeta John Milton, um puritano incontestável, nem
mesmo cria na Trindade, o Deus de todos os credos cristãos.
Então, quem eram os puritanos? Talvez John Milton tenha se expressado
muito bem quando mencionou a “reforma da Reforma”, pois esse era o alvo que
unia todos os puritanos. Isso não significava que se eles achassem puros, mas
que desejavam purificar o que não havia sido purificado na igreja e em si
mesmos. Eles queriam reforma e, embora tivessem ideias diferentes de como ela
deveria ser, todos tencionavam aplicar a Reforma ao que ela não tinha ainda
tocado. Eles pensavam que a Reforma era algo bom, mas que não estava
completa ainda.

Correto, mas repulsivo?


Antes de examinar a história deles, um pouco da lama que foi jogada nos
puritanos precisa ser removida, se quisermos entendê-los. A razão para isso é
que nem eles mesmos se parecem com o que consideramos o estereótipo do
puritano. Imaginamos que, em meio a todas as chamativas mangas bufantes e
corpetes do período isabelino e os alegres gibões e rufos dos animados
cavaleiros, os puritanos vestiam-se apenas de preto — e franziam as
sobrancelhas. É assim que seus retratos os apresentam, pois eram suas melhores
roupas (e sentar para retratos era uma coisa formal). Mas, nos outros dias, eles
poderiam vestir todas as cores do arco-íris. John Owen, provavelmente o maior
dos teólogos puritanos, caminhava por Oxford com “pó no cabelo, uma cinta de
cambraia com grandes fios caros, sobrecapa de veludo, bermudas até o joelho
com fitas pontiagudas e botas de couro espanhol com o topo de cambraia”.
Tampouco o grupo era composto por ranzinzas inveterados.
Contrário à impressão popular, os puritanos não eram ascetas. Embora alertassem de forma contínua
contra a vaidade das criaturas quando mal utilizadas pelo homem caído, eles nunca elogiaram
cilícios ou pães secos. Eles gostavam de boa comida, boa bebida e confortos domésticos; embora
rissem dos mosquitos, consideravam uma provação genuína beber água quando a cerveja acabava.
[9]
Sem rodeios, qualquer tentativa de dizer como eram “todos os puritanos” seria
enganosa, considerando-se que grupo imenso e muitas vezes heterogêneo eles
formavam. Assim, é claro que havia alguns bastante rígidos: William Prynne,
por exemplo, conseguiu escrever que “Cristo Jesus, nosso padrão […] estava
sempre chorando, nunca rindo”. Porém, o que pode ser verdadeiro para um não
necessariamente é real para o outro.
Entretanto, o que pode ser dito de muitos deles é que seu zelo para
reformar a vida toda poderia levar a certo pedantismo. O americano e puritano
tardio, Cotton Mather, por exemplo, escreveu certa vez em seu diário:
Em certa ocasião estava esvaziando a cisterna da natureza e vertendo água na parede. Ao mesmo
tempo, surgiu um cão, que fez o mesmo diante de mim… [Chocado que essa ação estava lhe
rebaixando à “condição da besta”] Resolvi que deveria ser minha prática habitual, sempre que parar
para responder a uma ou outra necessidade da natureza, torná-la uma oportunidade de moldar em
minha mente algum pensamento santo, divino, nobre.
Um pouco sério, podemos pensar! Mais uma vez, no entanto, não podemos
presumir que todos os puritanos fizessem o mesmo.
O traço mais importante que deixa os puritanos tão incompreendidos é o
que os une a todos: seu amor apaixonado à Bíblia, ao estudo bíblico e à audição
de sermões. Repetidas vezes ouvimos sobre puritanos que viajavam com alegria,
durante horas, para ouvir um bom e longo sermão, e como eles consideravam um
bom estudo bíblico melhor que uma noite dançante. Sermões de até sete horas
não eram novidade. Laurence Chaderton, o extraordinariamente longevo
professor do berçário do puritanismo, o Emmanuel College, em Cambridge,
certa vez pediu desculpas à congregação por pregar durante duas horas. A
resposta deles foi gritar “Pelo amor de Deus, senhor, prossiga, prossiga!”. Para
pessoas que nunca experimentaram a Bíblia como algo empolgante, esse
comportamento soa, na melhor das hipóteses, tedioso e, na pior, demente. No
entanto, durante quase mil anos as pessoas na Europa não tinham uma Bíblia
para ler. Ser capaz de ler as palavras de Deus e ver nelas tamanhas boas-novas de
que Deus salva pecadores, não com base em quão bem eles se arrependem, mas
inteiramente pela graça divina, era como ver a luz do sol mediterrâneo
irrompendo no mundo cinzento da culpa religiosa. Era algo atraente e sedutor
em um nível quase inebriante.
Na realidade, deixar de entender isso torna impossível compreender os
puritanos. Pegue, por exemplo, o relato de um evento tipicamente puritano: John
“Rugidor” Rogers pregando um sermão na pequena e bela vila de Dedham na
fronteira Suffolk-Essex. Aqui, John Howe registra as lembranças de Thomas
Goodwin:
E, naquele sermão, [Rogers] entrou em uma expostulação com as pessoas sobre a negligência da
Bíblia por parte delas (temo que ela seja mais negligenciada em nossos dias); ele representa Deus
diante do povo, dizendo a eles: “Bem, eu confiei a vocês minha Bíblia por muito tempo; vocês a têm
desconsiderado, ela permanece em cada casa toda coberta de poeira e teias; vocês não se importam
em examiná-la. É assim que usam a minha Bíblia? Bem, vocês não a terão mais”. E ele retira a
Bíblia de seu suporte, e age como se estivesse saindo com ela, retirando-a deles; porém,
imediatamente ele retorna e agora representa o povo diante de Deus, cai de joelhos, chora e implora
com muita solenidade: “Senhor, faze o que quiseres de nós, mas não retire tua Bíblia de nós; mata
nossos filhos, queima nossas casas, destrói nossos bens; somente poupa-nos tua Bíblia, somente não
retire tua Bíblia”. E, então, ele representa Deus de novo: “Assim vocês dizem? Bem, eu os provarei
um pouco mais; e aqui está minha Bíblia para vocês; verei como vocês a utilizarão, se a amarão
mais, se a valorizarão mais, se a observarão mais, se a praticarão mais e viverão mais de acordo com
ela”. Mas, por meio dessas ações […] ele levou toda a congregação a uma postura tão estranha que
[Goodwin] jamais vira na vida em nenhuma congregação. O lugar era um genuíno Boquim [Jz 2.1-
5], o povo como que afogado nas próprias lágrimas. E ele me disse que, ao sair, deveria cavalgar
novamente para partir; porém, viu-se forçado a parar por quinze minutos, apoiado ao pescoço de seu
cavalo, chorando, até que tivesse forças para cavalgar, tão estranha impressão estava sobre ele e
sobre o povo em geral por causa dessa repreensão relativa à negligência da Bíblia.
O relato todo é incompreensível sem a apreciação de que, para os puritanos, a
Bíblia era a coisa mais valiosa do mundo. O puritanismo significava reformar
toda a vida sob a autoridade única da Bíblia. Era algo que provocaria o temor de
Deus nas autoridades.

Extirpando o “papismo”
O puritanismo teve início quando Isabel estabeleceu a Igreja da Inglaterra com
seu peculiar protestantismo inglês. Todos os protestantes se deleitaram em ver a
Inglaterra recobrada de Roma, mas os que logo seriam chamados puritanos eram
as pessoas que jamais se conformariam com a criação de Isabel. Não que eles
desejassem deixar a Igreja da Inglaterra; ela ainda era a igreja, afinal (os poucos
que a deixaram nos primeiros anos do reinado de Isabel, de modo geral, não são
conhecidos como puritanos). No entanto, na visão deles, era uma igreja muito
sem personalidade, pela metade, precisando de uma boa quantidade de reformas
adicionais. Ao serem exilados no reinado de Maria, muitos deles tinham visto na
Suíça como as coisas poderiam ser e, da mesma forma que os ingleses de hoje
meneiam a cabeça quando comparam seu sistema ferroviário com o suíço, os
puritanos meneavam a cabeça quando comparavam a igreja de Isabel com a
Genebra de Calvino. Por exemplo, os ministros da Igreja da Inglaterra ainda
eram chamados sacerdotes e vestiam trajes especiais: sem dúvida, pensavam os
puritanos, isso não levaria o povo a pensar que eles estavam ali em sentido
primário não para ensinar, mas para oferecer o sacrifício da missa? O sinal da
cruz ainda era usado no batismo: certamente isso distraía as pessoas do
verdadeiro sentido do batismo, transformando-o em mero ritual. Um anel de
casamento ainda era dado nas cerimônias da Igreja da Inglaterra: isso não
encorajaria as pessoas a considerar o casamento um sacramento, como Roma
defendia, com o anel como sinal externo? As pessoas ainda deviam se ajoelhar
na comunhão (para receber, em vez de pão real, uma hóstia, para que nada do
corpo de Cristo caísse no chão): isso não sugeria a adoração do pão e do vinho,
como na missa? E quanto às práticas como a crisma? Onde isso está na Bíblia?
O problema era que, embora Isabel fosse protestante, ela não gostava do
que chamava de “inovações” e, instintivamente, preferia os antigos costumes
(como jurar, ao estilo católico, “pelo corpo de Deus!”). Ela considerava
completamente sem importância o tipo de coisa pelo que os puritanos se
contorciam. Em sua mente, a questão da religião na Inglaterra fora fechada em
1559: a Inglaterra era protestante, e não havia nada mais a ser dito. Contudo,
para os puritanos, a ideia de uma “instituição” religiosa era inteiramente contra
uma convicção protestante fundamental: a igreja devia ser continuamente
reformada para alinhar-se cada vez mais à Palavra de Deus.
E não se tratava apenas de como seria o serviço religioso dominical.
Nenhum puritano podia considerar a obra da reforma completa quando a maioria
da população ainda tinha pouco ou nenhum entendimento da justificação só pela
fé. Não bastava reformar o modo de a igreja operar; a Reforma deveria
transformar a vida do indivíduo, obtendo não só uma adesão externa ao
protestantismo, mas o evangelicalismo interior e sincero.
As sementeiras para isso foram as universidades, em especial Cambridge,
onde tutores influentes como Laurence Chaderton adotaram a visão de que o
principal propósito da universidade era suprir a terra com pregadores. Em sua
faculdade, não era permitido aos alunos estudar ali por muito tempo, esperava-se
que eles partissem para assumir um púlpito. Quando partiam, a amizade formada
na universidade consistia na chave para o apoio mútuo.
Reformando almas
Embora Richard Baxter tenha ministrado quase um século depois da
primeira geração de puritanos, todos os puritanos teriam repetido com
sinceridade o que ele disse sobre a seguinte questão:
Como podemos achar que a reforma está terminada, quando livramo-nos de algumas cerimônias
e mudamos alguns trajes, gestos e formas? Não, senhores! Converter e salvar almas é a nossa real
atividade. Essa é a principal parte da reforma.
Baxter deveria ser o modelo puritano do que isso implicava. A fim de
alcançar essa reforma, ele cria na insuficiência da pregação regular; era
preciso dedicar tempo às pessoas garantindo que elas entendessem o
evangelho por si próprias, aplicando-o à situação delas e sendo seu tutor
pessoal. Assim, na paróquia de Kidderminster, na década de 1650,
Baxter começou a visitar todos os paroquianos uma vez ao ano,
passando uma hora com cada família, e visitando cerca de quinze
famílias por semana. O resultado foi admirável:
Em uma palavra [nunca acredite em um puritano quando ele diz que será breve!], quando
fui até lá pela primeira vez, havia apenas uma família na rua que adorava a Deus e
invocava seu Nome e, quando parti, havia algumas ruas em que não restava uma família
que não o fizesse, professando séria piedade, dando-nos esperanças de sua sinceridade.

Em parte por causa dessas conexões, os pregadores puritanos tendiam a


conhecer os demais puritanos da vizinhança; pouco tempo depois, houve um
crescimento da prática de reunir-se para o que eles chamavam “profetizações”.
Nessas reuniões, alguns clérigos pregavam e, na sequência, discutiam-se os
sermões, ajudando os pregadores a pregar melhor e a audiência a se beneficiar de
um mês de sermões em um dia. As “profetizações” eram muito populares: as
pessoas viajavam milhas (na época em que as viagens eram lentas) para desfrutar
desse farto banquete de pregações, e os prósperos faziam todo o possível para
ajudar a patrocinar esses eventos, fornecendo aos pregadores comida e vinho.
Eles foram extraordinariamente importantes: eram eventos em que se discutia a
doutrina bíblica com liberdade, em lugar de ela ser transmitida apenas de cima
para baixo.
Um dos efeitos da tamanha liberdade dessas discussões foi que, por volta
da década de 1570, surgiu uma geração menos paciente quanto à espera pela
reforma. As pessoas desejavam ter opiniões mais fortes. Muitas começaram a
afirmar que a transformação real exigia que todas as partes do funcionamento da
igreja deveriam contar com base bíblica direta. Às vezes, chegava-se ao absurdo:
o ministro deve levantar-se do lugar durante o culto, porque Pedro “levantou-se
no meio dos irmãos” (At 1.15); deve haver dois cultos aos domingos porque
Números 28.9 menciona duas ofertas queimadas a cada sábado, e assim por
diante. Alguns também começaram a perguntar se a igreja deveria ser governada
por esse modelo de “profetização”, com grupos de clérigos (em vez de bispos)
reunindo-se para decidir como as igrejas em sua área deveriam funcionar. Em
outras palavras, eles começaram a defender o presbiterianismo para a Igreja da
Inglaterra.
Evidentemente, esse discurso soou como anarquismo para Isabel e as
instituições da igreja. Em 1570, quando Thomas Cartwright, o recém-nomeado
professor de Teologia em Cambridge, fez uma série de palestras defendendo o
presbiterianismo, ele foi rapidamente removido de seu cargo. Seis anos depois,
Isabel decidiu dar um fim à ameaça das “profetizações” e ordenou que o novo
arcebispo da Cantuária, Edmund Grindal, as suprimisse. Um evangélico íntegro,
Grindal não podia tolerar que a Palavra de Deus fosse amordaçada, em especial
quando tantos se beneficiavam disso e, assim, ele se recusou. Como se previa,
ele foi posto em prisão domiciliar no palácio de Lambeth, onde permaneceu
privado de qualquer poder para ajudar os puritanos até sua morte em 1583.
Seu sucessor, John Whitgift, era o tipo diretor de escola ditador, que
gostava da ideia de ver todos assinando declarações de que se comportariam e
adeririam ao Livro de oração comum em vez de resolver as coisas de que não
gostava. Muitos não puderam assinar e, assim, foram suspensos do ministério.
Isso pode ter resolvido as coisas na opinião do arcebispo, mas também empurrou
os puritanos para o descontentamento mais profundo e unido. Em 1588, a reação
começou com a publicação de uma série de tratados por “Martin Marprelate”
(pseudônimo que conseguia ao mesmo tempo piscar jocosamente para Martinho
Lutero e fazer um gesto menos agradável na direção dos prelados [bispos]).[10]
Os tratados eram escandalosos, e acusavam Whitgift de organizar orgias
homossexuais no palácio de Lambeth; eles faziam referências a outros bispos
como estrume e servos de Satanás, e por aí seguia. Sem dúvida, “Martin” tinha
prazer em escrevê-los, mas lançar tanta lama assim nunca seria muito produtivo.
Mais do que nunca, o puritanismo agora era associado a sedição e anarquia.
A caçada das editoras secretas em que os tratados foram produzidos
transformou-se em desculpa para espionar o perigoso não conformismo no lar de
qualquer pregador puritano. Em poucos anos, a repressão oficial do puritanismo
estava em vigor com o Parliamentary Act Against Puritans [Ato parlamentar
contra os puritanos] (1593), o enforcamento de líderes separatistas e muitos
puritanos proeminentes correndo grande risco. Agora, era hora de seus inimigos
os chutarem enquanto eles estavam no chão.
Entre seus mais duros inimigos estavam os dramaturgos. Os puritanos
tinham vários problemas com os teatros: não só em muitos sentidos eles
funcionavam como os bordeis da época, como também estava claro para os
puritanos que homens desempenhando papéis femininos (como se fazia, pois não
havia atrizes) encorajaria a sodomia. Ainda assim, os dramaturgos não gostavam
de ouvir suas obras-primas sendo descritas como “os próprios esplendores do
diabo” e, assim, agora eles contra-atacavam zombando dos puritanos em suas
obras (pense no puritano Malvolio na Décima segunda noite de Shakespeare).
Evidentemente, essa sátira foi apoiada com avidez por pessoas que não queriam
ter os costumes etílicos e teatrais desafiados pelos puritanos.
A última década do reinado de Isabel consistiu em dias sombrios para os
puritanos. Alguns prosseguiram ao ignorar a política e continuar com a
verdadeira questão da reforma (a reforma das almas); outros conseguiram
suportar o período por saberem que não demoraria muito até Jaime VI da
Escócia tornar-se rei da Inglaterra.

O tolo mais sábio da cristandade


Criado em uma estrita dieta de haggis[11] e calvinismo, Jaime era a esperança de
todo puritano. Agora, pensavam eles, teriam um monarca reformado de verdade.
E o melhor: com excelente formação acadêmica. Autor de diversos tratados, de
condenações ao tabaco e à feitiçaria a obras de política e teologia, sem dúvida
ele apreciaria as questões teológicas em jogo. Assim, quando Isabel morreu,
antes que Jaime sequer chegasse a Londres, ele recebeu uma petição dos
puritanos, solicitando uma série de mudanças no que consideravam um livro de
oração levemente “papista”.
Em resposta, Jaime convocou uma conferência na corte de Hampton no
ano seguinte, 1604, em que puritanos e os satisfeitos com o livro de oração
poderiam apresentar-lhe seus casos. Infelizmente para os puritanos, Jaime estava
acostumado a lidar com o estilo impetuoso e implacável dos seguidores de John
Knox na Escócia e, quando a hora chegou, ele entendeu a respeitosa submissão
dos delegados puritanos como significando que eles não tinham queixas sérias.
Pior: Jaime suspeitou que os puritanos estavam, na realidade, apresentando uma
eclesiologia presbiteriana, o que, Jaime disse (com seu forte sotaque escocês):
“Combinava com a monarquia tanto quanto Deus combina com o Diabo […]
Então, Jack, Tom, Will e Dick reúnem-se e a seu bel-prazer e me censuram”. E,
para Jaime, esse era o cerne de tudo: a reforma seria ótima, contanto que não
envolvesse a fragmentação de sua autoridade divina como rei. Os puritanos
voltaram com quase nada. A única ideia puritana importante que Jaime gostou
foi a preparação de uma nova versão da Bíblia. A mente de Jaime conjecturou:
ele poderia se livrar das incômodas notas marginais da Bíblia de Genebra — que
defendiam coisas preocupantes como a desobediência ao rei mau. E, assim a
Versão autorizada do rei Jaime [King James Version, ou KJV] foi comissionada.
E, claro, nem tudo era dor e sofrimento para os puritanos. No ano
seguinte (1605), a Conspiração da Pólvora (promovida pelos católicos) foi
desbaratada — um plano para matar o rei e seu governo explodindo as casas do
Parlamento —, o que afastou a opinião nacional do catolicismo e favoreceu os
puritanos. Jaime até começou a nomear alguns bispos puritanos, dando voz
influente ao puritanismo.
Entretanto, o fato de Jaime exigir tanta conformidade quanto Isabel foi o
ponto final para alguns. Eles suportaram o reinado transigente de Isabel na
esperança de tempos melhores no futuro, mas agora que Jaime estava no trono e
agia da mesma maneira, tornou-se claro que a transigência chegou para ficar.
Como se não fosse ruim o bastante, às vezes Jaime parecia se esforçar para
antagonizar os puritanos. Em 1618, por exemplo, ele publicou o Book of Sports
[Livro dos esportes]. Nele o rei afirmava: vários esportes que não envolviam
crueldade com animais eram formas aceitáveis de aproveitar a tarde de domingo.
A crueldade com os puritanos era que os ministros foram obrigados a ler isso do
púlpito. Para muitos puritanos, que nessa época eram sabatarianos estritos, isso
representava um desafio direto. Ou eles se recusavam a ler ou adicionavam no
final: “Lembra-te do dia do sábado, para o santificar”.
Com tudo isso acontecendo, houve um crescente êxodo puritano no
reinado de Jaime. Alguns apenas abandonavam a Igreja da Inglaterra, outros
deixavam o próprio país. Em 1607, uma congregação zarpou e navegou até a
Holanda (uma escolha popular), mas a dura subsistência ali os incentivou a olhar
mais adiante. Assim, em 1620, encontrando-se com alguns ansiosos imigrantes
em Plymouth, eles zarparam para o novo mundo a bordo do Mayflower. Esta foi
uma decisão que capturaria a imaginação puritana: os piedosos fugindo da
opressão na Inglaterra pareciam os israelitas fugindo do Egito; e, como Israel,
eles buscavam uma prometida terra da liberdade. Ali, eles estabeleceriam a Nova
Inglaterra e construiriam a Nova Jerusalém. Lá criariam uma sociedade
reformada, livre dos grilhões do velho mundo; seria “a cidade edificada sobre
um monte”, um farol para o mundo. Era uma visão bastante atraente que em
breve seria seguida por dezenas de milhares.
Entretanto, na velha Inglaterra, o puritanismo nunca mais seria uma força
unida. Ao contrário, havia um crescente número de grupos dissidentes, divididos
sobre ficar na Inglaterra ou não, e sobre uma crescente série de questões
teológicas. E, quanto mais as pessoas partiam para desfrutar um grau maior das
próprias ideias sobre a pureza cristã, mais a influência puritana era enfraquecida.
Horrorizado com o que se tornava rapidamente um grande problema puritano,
Richard Sibbes declarou: “Que belo espetáculo para Satanás e sua facção ver os
separados do mundo se desfazerem em pedaços entre si. Nossa discórdia é a
melodia do nosso inimigo”.

Richard Sibbes contra o perigo do moralismo


Toda a história da Reforma na Grã-Bretanha mostra com que facilidade
o protestantismo poderia se tornar mero partido político. Na Inglaterra,
era muito simples ser um zeloso anticatólico sem ter qualquer
entendimento ou experiência da graça salvadora de Deus. Quando quase
todos frequentavam a igreja, era muito fácil ser um protestante nominal.
E, mais que qualquer coisa, era isso que os puritanos combatiam quando
instavam as pessoas à reforma pessoal.
Entretanto, havia um considerável risco para esse combate (que
ameaçava não só o puritanismo, mas também o movimento irmão na
Alemanha, o pietismo luterano). O desejo de que as pessoas
respondessem ao evangelho poderia levar ao foco na resposta, não no
evangelho. Assim, ao se observarem vidas reformadas (o sinal de que
uma pessoa respondeu com correção ao evangelho), era fácil permitir
que a preocupação com o crescimento na santidade pessoal eclipsasse o
foco original da Reforma na justificação. Em outras palavras, o perigo
em relação aos puritanos consistia na tentação de concentrar-se só no
viver santo como resposta ao evangelho às custas da proclamação da
livre graça salvadora de Deus.
Assim, a experiência de muitos membros de igreja era a audição de
muitos sermões sobre os Dez Mandamentos, mas eles permaneciam
confusos sobre a possibilidade do perdão divino, e de como ele se daria.
Como consequência, agiam como se a salvação dependesse de sua
santidade de vida (o problema originário de Lutero). E, aliados com
vigorosas advertências para evitar a condenação (e elas podiam ser
duras: William Perkins “pronunciava a palavra ‘condenação’ com tal
ênfase que deixava um eco sombrio nos ouvidos dos ouvintes por um
bom tempo”), muitos ficavam ansiosos ao extremo. O resultado da
preocupação com a própria condição espiritual, afirmou Thomas
Goodwin, revelava “a mente de muitos confinada de modo tão completo
ao próprio coração que…” Cristo “é raro em todos os seus
pensamentos”. Incapaz de buscar a graça soberana de Cristo e confiar
nela, eles eram forçados à introspecção mórbida, tentando descobrir se o
próprio coração parecia bom o bastante, ou se havia alguma fé ali em
que se podia confiar (e, assim, confiando não em Cristo, mas na fé para a
salvação).
Aqui alguns dos ministros puritanos ainda mais revigorantes surgiram
com a cura. Richard Sibbes é um exemplo brilhante. Sibbes (1577-1635)
foi educado em Cambridge, tornou-se pregador ali, na Igreja da
Santíssima Trindade e, então, em 1617, tornou-se pregador do
prestigiado Gray’s Inn, um dos inns da corte de Londres.[12] Ele
permaneceu nessa função até morrer, e isso serviu como oportunidade
para lidar com algumas das personalidades mais importantes da época,
que governariam a Inglaterra nos turbulentos anos futuros. Em 1626,
Sibbes também tornou-se mestre do Katharine Hall, em Cambridge (e
logo tornou-se mais uma vez pregador na Igreja da Santíssima
Trindade). Assim, Sibbes ocupava ao mesmo tempo três dos postos mais
influentes da Inglaterra, utilizando-os para promover a mensagem do
doce evangelho do Deus gracioso. Sibbes é mais lembrado como
pregador. Conhecido por seus contemporâneos como “boca de mel”, o
“celestial dr. Sibbes”, o “doce gotejador”, foi o pregador evangelista
mais eficaz de seus dias, tão persuasivo que se dizia que os pecadores
endurecidos evitavam ouvi-lo por medo de serem convertidos por ele.
A partir de uma cultura de introspeção e autoconfiança moral, Sibbes
pregou uma série de sermões sobre Mateus 12.20 (uma citação de
Is 42.3): “O caniço ferido não quebrará, nem apagará o pavio que
fumega; até que envie julgamento para a vitória” (KJV). Com alvo na
“restauração do coração quebrantado”, os sermões foram publicados
com o título O caniço ferido e o pavio que fumega,[13] e se tornaram
instrumentais na conversão de pelo menos uma outra grande figura
puritana, Richard Baxter.
O versículo exposto por Sibbes se refere a Jesus, e seu caráter
cristocêntrico representa uma característica marcante de sua pregação.
Isso não ocorreu por acaso: ele buscava retirar os olhos da audiência do
coração de cada um deles e dirigi-los ao Salvador, pois “há alturas,
profundidades e larguras de misericórdia nele superiores a todas as
profundidas do nosso pecado e miséria”. Como? “O amor de Deus
repousa sobre Cristo, que tanto se apraz nele; [assim] podemos inferir
que ele também se agrada de nós, se estivermos em Cristo”. Assim, a
confiança cristã em nosso estado espiritual não repousa na força de nossa
fé ou no nosso desempenho, mas na “concordância conjunta das três
pessoas da Trindade”: o Pai ama o Filho, e os cristãos são amados nos
méritos do Filho, não nos deles. Pelo fato de Deus ser uma comunidade
amorosa, os cristãos podem ter confiança.
Então, em vez de apenas lançar fardos morais sobre os cristãos imaturos
e em conflito, Sibbes lhes mostrava a beleza de Cristo para poderem
amá-lo de coração. A partir disso, a primeira tarefa do cristão é o
“aquecimento no fogo do seu amor e de sua misericórdia, ao entregar a
si mesmo por nós”. Só quando os cristãos o fazem é que param de pecar
no coração (quando apenas alteram o comportamento, isso não afeta em
nada o pecado do coração). Em outras palavras, Sibbes acreditava que a
solução para o pecado não significava tentar viver sem pecado, ela era
encontrada no evangelho da livre graça de Deus.
O caniço ferido é um chamado para os ministros servirem mais à
semelhança de Cristo, não esmagando o fraco com fardos, mas soprando
o oxigênio do evangelho no pavio latente de vidas cristãs faiscantes. É
significativo que Sibbes termine O caniço ferido com uma referência a
Lutero (por meio de quem, ele diz, Deus “acendeu a chama que o mundo
inteiro jamais será capaz de extinguir”. Sibbes parece sugerir que,
mesmo na reforma da Reforma, o espírito verdadeiro da Reforma
poderia ser perdido, e todas as dúvidas e ansiedades do catolicismo
medieval fluiriam de volta pela porta dos fundos do moralismo cristão
zeloso que perdera de vista a graça divina. Sibbes e os puritanos
semelhantes a ele buscavam ensinar e proclamar “a natureza e o ofício
gracioso de Cristo; dos quais o correto entendimento é a fonte do serviço
a Cristo e o conforto dele procedente” a fim de manter a essência da
Reforma.

Forçados até o limite


Antes mesmo de se tornar rei, o balbuciante filho de Jaime I, Carlos, enfrentou
uma árdua batalha de relações públicas. Na tentativa ingênua de reconciliar o
protestantismo e o catolicismo, seu pai tentou casá-lo com a filha católica do rei
da Espanha. Para o povo, era como se ele desejasse a vitória da armada
espanhola. Carlos teve percepção suficiente para escapar dessa; todavia, no
momento em que ele se tornou rei, em 1625, tomou a igualmente desastrosa
decisão de se casar com a princesa Henriqueta Maria da França. Assim que ela
chegou a Dover com um grupo de sacerdotes católicos a reboque, o povo
concluiu que Carlos era secretamente um papista.
Com certeza, Carlos era um homem da Igreja Alta, e ele incorporou à
igreja bispos mais a seu gosto (a ala da “Igreja Alta” da Igreja da Inglaterra
desprezava a Reforma — ou “Deforma”. Eles construíam suas igrejas em um
estilo arquitetônico anterior à Reforma). O rei até conseguiu nomear o arcebispo
da Cantuária dos seus sonhos, o baixote William Laud, um acadêmico de Oxford
que nunca teria a confiança dos puritanos de Cambridge. Laud nunca foi um
homem muito bom em conquistar pessoas; ele parecia reservar todas as suas
demonstrações de afeto a seus gatos e sua tartaruga-gigante de estimação. Seu
problema era nem parecer tentar demonstrá-lo. Quando Carlos reeditou o Book
of Sports de seu pai, Laud suspendeu com alegria todos os clérigos que se
recusavam a jogar bola e lê-lo de púlpito. No entanto, seu amor à liturgia e
ordem (a liturgia e ordem dele) irritou a todos. Por exemplo, ele instalou grades
de comunhão nas igrejas. As pessoas pensavam que esse ato representava a
tentativa do amante de gatos de limitar a liberdade dos cães queridos dos
ingleses (as pessoas tinham o costume de levar os cachorros à igreja) ou
significava adesão ao papismo.
Considerando que Laud insistia que as pessoas se ajoelhassem junto à
grade, a resposta parecia consistir na segunda opção. Por fim, havia diferenças
no clero de Laud: é possível ver o quanto as coisas mudaram pela confusão
criada por uma senhora idosa em Norwich: ao ver o ministro diante da mesa de
comunhão com vestes escarlates de missa, perguntava-se por que o prefeito
estava oficiando.
Tudo isso foi mais que suficiente para provocar grande resistência
popular e levar muitos mais à simpatia pelos puritanos. Assim, o clima ficava
cada vez mais quente. Em 1637, três militantes foram presos e trazidos diante da
Câmara Estrelada, um tribunal que parecia estar acima da lei. William Prynne
criticou o estilo de vida da rainha Henriqueta Maria; Henry Burton descreveu
todos os bispos como “cogumelos oportunistas”; e John Bastwicke também
criticou os bispos de Laud. Por esses crimes, suas orelhas foram arrancadas, o
rosto de Prynne foi marcado a ferro e fogo, e eles foram arrastados pelas ruas de
Londres até o tronco, onde se esperava, como de costume, que a multidão os
cobrisse de lixo. Em vez disso, o povo demonstrou apoio. Foi algo ameaçador,
mas não surpreendente: essa era a geração criada com histórias de martírio sob o
reino de Maria, a “Sanguinária”, registradas com fidelidade por John Foxe no
Livro dos mártires, obra exposta em todas as catedrais e em várias igrejas havia
muito tempo. O destino de Prynne, Burton e Bastwicke parecia incomodamente
semelhante.
Apesar dos murmúrios, Carlos e Laud pressionaram mais. No mesmo
ano, 1637, o rei decidiu que era hora de seu governo na Escócia se alinhar ao da
Inglaterra: a partir desse momento, toda a liturgia deveria seguir o Livro de
oração (emendado para ajudar os escoceses a acelerar o passo à conformidade
com a Igreja Alta). Infelizmente para Carlos, embora Knox estivesse morto por
mais de sessenta anos, seu espírito estava vivo e bem na Escócia. Na Catedral de
Santo Egídio, Edimburgo, assim que o recém-nomeado bispo tentou ler o novo
Livro de oração, um membro da congregação arremessou seu banco contra ele,
ocasionando um tumulto do qual o bispo teve sorte de sair vivo. Em Brechin, no
norte, o bispo não corria esse risco: usando o novo Livro de oração, ele conduziu
o culto com um par de pistolas carregadas e apontadas para a congregação.
Os escoceses se uniram em uma aliança (assinadas por muitos com o
próprio sangue), e rejeitaram as reformas de Carlos e, quando dois exércitos
bastante relutantes foram enviados ao norte para lidar com sua impertinência, os
escoceses os derrotaram. Por toda a Grã-Bretanha, muitos agora percebiam que o
rei estava pronto para travar guerra contra seu povo para reintroduzir costumes
papistas. Ele estava preparado até para usar um exército irlandês católico para
isso. O país logo entrou em uma guerra civil, e o exército de Carlos, por fim,
seria esmagado pelos exércitos puritanos de um general nato, Oliver Cromwell
— membro do Parlamento de Cambridge.

“Um novo e grandioso período”


A guerra civil não envolvia apenas religião, mas, como o próprio Cromwell
expressou: “A religião não foi o primeiro motivo de contenda, mas Deus a levou
a essa questão”. Os puritanos viam agora a chance de alcançar o objetivo pelo
qual eles lutavam desde as resoluções de Isabel. John Milton falou a respeito
dessa época quando disse: “Deus decreta que comece um novo e grandioso
período em sua igreja, para uma reforma da própria Reforma”. De 1643 a 1649,
mais de cem teólogos puritanos se reuniram em Westminster para redigir os
documentos necessários para a criação de uma nova igreja nacional, e
devidamente reformada. Ela deveria ser uma igreja sem bispos (o próprio
arcebispo Laud foi executado em 1645); deveria ser uma igreja presbiteriana
(mas havia espaço para os congregacionais como Cromwell); deveria haver uma
nova declaração de fé reformada (a Confissão de fé de Westminster) e um
catecismo adequado; e o Livro de oração comum seria substituído pelo Diretório
do culto público de Westminster.
Com a execução do rei em 1649 por alta traição contra o povo da
Inglaterra, o país parecia muito diferente: não havia rei, não havia bispos, e o
país foi governado primeiro pelo Parlamento e, logo, pelo próprio Cromwell,
como “lorde protetor”. Era um momento de oportunidades sem precedentes para
os puritanos.

A história é escrita pelos vigários


A década de 1650 não foi apenas uma era de grande atividade pastoral
entre os puritanos (pense nos anos dourados de Richard Baxter em
Kidderminster); eles também foram os anos do nascimento de suas
grandes conquistas acadêmicas.
Um dos proeminentes e prolíficos acadêmicos puritanos era um velho
amigo de Richard Sibbes, o primaz de toda a Irlanda, James Ussher. Na
década de 1650, ele publicou seus Annals of the World [Anais do
mundo], uma monumental história do mundo que começava com a
notória declaração: O “princípio do tempo, de acordo com nossa
cronologia, ocorreu no começo da noite precedente ao dia 23 de outubro
(no calendário juliano) de 4004 a.C.” (data imortalizada nas notas de
margem da Authorized Version por gerações). Entretanto, é
desnecessário desprezar Ussher como um ingênuo excêntrico. A opinião
acadêmica do século XVII (partilhada por cientistas como Kepler e
Newton) estava satisfeita com a ideia de que a data da criação poderia ter
ocorrido em algum ponto próximo ao ano 4000 a.C. Como o professor
Stephen Jay Gould de Harvard expressou (mesmo que eu discorde
completamente dele): “Ussher representava o melhor da erudição de sua
época”. Em sua época, muitos acadêmicos mantinham pressupostos
diferentes dos zombadores de Ussher, isto é, que a Bíblia é uma fonte
confiável de informação cronológica.
É necessário superar esse obstáculo, pois Ussher não estava apenas
calculando a data da criação. Os Annals são a tentativa seminal de
elaborar uma história do mundo bem ampla até 70 d.C., incorporando
todas as fontes históricas disponíveis. Embora esses estudos possam
parecer antiquados hoje, eram do mais alto nível na época, e poderosos
tomos como os que Ussher e seus colegas eruditos escreveram
representavam o fruto maduro do “grandioso período“ puritano.

O extraordinário grau de tolerância religiosa mostrava como a nova


república (ou Commonwealth) da Inglaterra era diferente da existente no
passado. Estimulava-se a discordância aberta da antiga Igreja da Inglaterra, e
surgiram várias facções diferentes. O país tornou-se um lugar do “protestantismo
puro e simples”, com diferenças sobre um grande leque de questões teológicas
sendo agora aceitáveis. Além disso, pela primeira vez em quase 400 anos, os
judeus podiam retornar à Inglaterra (a ideia era que eles poderiam ser
convertidos, a conversão de Israel precipitando a Segunda Vinda, embora eles
não dispusessem de liberdade para adorar).
Isso significava, contudo, que a Inglaterra de 1650 seria palco de uma
horda de grupos radicais. Existiam os quacres (com ênfase na “luz interior” em
oposição à palavra externa); os muggletonianos (cujo profeta John Reeve
ensinou que só Jesus era Deus, significando que, ao morrer na cruz, Moisés e
Elias foram forçados a governar o universo por três dias); e, entre outros, os
ranters [faladores] (para quem o pecado era uma ilusão, uma vez que “tudo é
puro para os puros” [Tt 1.15]). Os ranters em particular, com a defesa do
adultério e suas exibições públicas de nudez e blasfêmia estática, foram
instrumentais para os críticos do empreendimento puritano da Commonwealth.
Ser “totalmente reformado” era isso?
Contudo, o principal fator que começou a voltar o povo contra o governo
puritano foi a tentativa de impor o comportamento cristão estrito à nação. Os
teatros foram fechados; o adultério tornou-se crime capital; jurar (apenas dizer
“por minha vida”) poderia valer uma pesada multa; guardava-se o dia do
descanso (tornando qualquer caminhada, exceto para ir à igreja, ilegal); e os
feriados “supersticiosos”, como o Natal, foram abolidos e substituídos por dias
de jejum mensais. Quando os soldados começaram a patrulhar Londres no dia de
Natal, inspecionando as casas de forma sumária para confiscar qualquer carne
sendo assada, não surpreende muito que o povo tenha ficado aborrecido. Os
cidadãos comuns, a despeito de sua condição espiritual, eram obrigados a viver
como se fossem “piedosos” e eles não engoliam isso. Foi uma experiência que
mancharia o puritanismo para sempre na mente inglesa, e as pessoas começaram
a clamar pela conduta fácil de um governo “alegre”.

O monarca alegre
Não demorou muito para o povo querer um rei de novo. Eles ofereceram a coroa
a Cromwell (que a recusou) e, quando ele morreu em 1658, a falta de um
sucessor capaz significava que eles precisavam ser rápidos em oferecê-la a
Carlos, o filho do rei executado.
Carlos II, proclamado rei em 1660, era o completo oposto de tudo que a
Inglaterra tinha visto na última década. O “monarca alegre”, como ele se tornou
conhecido, parecia ter tantos cães da raça spaniel quanto amantes; sabe-se com
certeza que ele conseguiu ter quatorze filhos ilegítimos com sete delas. Sob a
república, o adultério era crime capital; sob Carlos, agora a castidade era punida
— com escárnio. E (alguém se atreveria a dizer?) Carlos era muito diplomático
quanto às diferenças teológicas sendo, no máximo, um católico romano
reservado (sabe-se que ele se converteu ao catolicismo romano no leito de
morte).
Nessa atmosfera, a reação ao puritanismo foi popular e brutal. Em 1662,
o Livro de oração comum foi reimposto; e, agora, para acabar com a discussão
de uma vez por todas, o clero era forçado a declarar que a obra não continha
nada contrário à Palavra de Deus e que, consequentemente, eles não poderiam se
desviar dela em suas igrejas. Cerca de dois mil clérigos — um quinto deles —
recusaram-se e foram removidos do ministério. Então, para impedi-los de
assumir outro ministério, o Conventicle Act [Ato do conventículo] de 1664
tornou ilegal assembleias religiosas com mais de cinco pessoas fora da Igreja da
Inglaterra. No ano seguinte, o Five Mile Act [Ato das cinco milhas] impedia
esses ministros de se distanciaram cinco milhas [7,5 km] de qualquer “cidade,
vila ou burgo” onde tivessem ministrado antes. O puritanismo estava sendo
legalmente amordaçado.
Entretanto, os ministros puritanos continuavam em ação. Alguns clérigos
expulsos conseguiram ser renomeados para outros lugares. Além disso, havia
lugares (por exemplo, nas Midlands, onde hoje está Birmingham) que ficavam a
mais de cinco milhas de qualquer “cidade, vila ou burgo”, e todos eles se
tornaram fortalezas não conformistas. Outros pastores puritanos enfrentaram as
consequências. Quando, por exemplo, em 1665 e 1666, Londres sofreu um surto
de praga e um incêndio global, muitos deles ficaram ilegalmente com as
congregações em sofrimento para ministrar a elas (e adverti-las do pecado do
qual a “praga das pragas e o fogo eterno resultarão”). Como resultado desse
desrespeito da lei, a perseguição tornou-se mais intensa e cerca de vinte mil
puritanos foram lançados na prisão pelos próximos vinte anos. Na Escócia, era
pior: a pena de morte foi imposta para a pregação ilegal, e a tortura era liberada
como instrumento na busca por suspeitos.
Ainda assim, apesar desses florescimentos tardios na árvore do
puritanismo, o regime de Carlos II estava atacando as próprias raízes, fazendo-os
murchar. Não foi apenas a mordaça dos pregadores; logo surgiu a lei de que os
cargos públicos só poderiam ser ocupados por anglicanos e que apenas os
anglicanos podiam ir para a universidade. A questão não era apenas que os não
conformistas se tornaram cidadãos de segunda classe, incapazes de progresso e
influência sociais; o problema real para eles era que Cambridge e Oxford haviam
sido seminários e centros de treinamento puritanos. Com grande parte da
próxima geração impedida de qualquer educação do tipo, os homens de calibre
teológico morreram, deixando o puritanismo como um movimento cada vez
mais superficial, que não seria levado a sério de novo. O puritanismo, afinal, era
um movimento preocupado com palavras (e a Palavra de Deus) e, assim, quando
os puritanos não eram mais educados, o músculo do movimento se estagnou.
Pior: sem laços fortes com ancoradouros bíblicos, com o passar dos anos, muitos
deles encontraram-se vagando à deriva, longe das crenças básicas cristãs como a
Trindade.
Pelo fato da lentidão de sua morte, é difícil dizer com certeza quando a
era puritana terminou. Não houve um cataclismo final, uma última resistência.
Ainda havia evangélicos na Igreja da Inglaterra, mas tantos deles foram
expulsos, silenciados e suprimidos que o antigo movimento viu-se cada vez mais
disperso e sem liderança, até que por volta de 1700 ninguém mais falava muito
dos “puritanos“. Até lá, as pessoas falariam com desdém dos “dissidentes”, um
grupo rejeitado, impotente e de segunda classe e ignorado com facilidade. Mas,
em outro sentido, se o puritanismo era “a reforma da Reforma”, perguntar
quando a era puritana terminou significa perguntar quando (ou se) a Reforma
terminou. Essa é a questão que trataremos a seguir.

Um homem com um grande fardo nas costas


Talvez, o mais famoso dos puritanos presos nas décadas de 1660 e 1670
tenha sido John Bunyan, que ficou na cadeia durante 12 anos por
pregação ilegal. Entretanto, ele conseguiu usar o tempo ali para conceber
o que é quase sem dúvida o clássico literário puritano: O Peregrino. O
Peregrino é uma alegoria sobre os cristãos (em viagem da Cidade da
Destruição para a Cidade Celestial), mas ele reflete em particular a
experiência pessoal de Bunyan. Um funileiro por profissão, Bunyan
estava acostumado a viajar de vila em vila com uma bigorna de 27 quilos
e uma pesada caixa de ferramentas nas costas: isso se tornou um modelo
para o grande fardo do pecado que o seu peregrino leva nas costas (até
que ele chega à cruz e a carga é “desamarrada de seus ombros” para seu
enorme alívio).
Na prisão, Bunyan também escreveu de forma direta sobre sua
conversão em Graça abundante para o principal dos pecadores. Ele nos
dá um exemplo pessoal muito esclarecedor do moralismo introspectivo
que Richard Sibbes combateu e da resposta que Bunyan encontrou. Na
obra, Bunyan descreve como ele se desesperava em sua juventude
quando pensava sobre o céu e o inferno, crendo que era “tarde demais
para procurar o céu, pois Cristo não me perdoaria”. Quando ele tentou
agir melhor, “minha paz surgia e desaparecia, às vezes vinte vezes por
dia; conforto agora, e perturbação dentro em pouco”.
Mas, um dia, enquanto eu passava pelo campo, e outra vez com alguns golpes na
consciência, temendo ainda não estar tudo certo, subitamente essa frase desceu sobre
minha alma: “Tua justiça está no céu”; e pensei: vi com os olhos da minha alma Jesus
Cristo à destra de Deus; ali está minha justiça, afirmo; assim, não importava onde estava
ou o que fazia, Deus não poderia dizer que queria a minha justiça, pois ela estava diante
dele. Eu também vi, além disso, que não era o bom estado do meu coração que tornava
minha justiça melhor, nem o mau estado que a tornava pior; pois minha justiça era o
próprio Jesus Cristo, o mesmo ontem, hoje e sempre (Hb 13.8). Agora, meus grilhões
deveras caíam das pernas, eu me senti aliviado da aflição e das cadeias, minhas tentações
desapareceram; de forma que, daí em diante, as terríveis Escrituras de Deus deixavam de
perturbar-me; então, fui para casa regozijando pela graça e pelo amor de Deus.
Essa mensagem permeou toda a pregação de Bunyan, pregação que era,
aparentemente, de tão alto nível que, quando Carlos II referiu-se a ele
como “o funileiro iletrado e tagarela” na presença do outrora vice-
chanceler da Universidade de Oxford, John Owen, o acadêmico
respondeu: “Por favor, Majestade, se eu tivesse a capacidade de pregar
desse funileiro, renunciaria com alegria a toda a minha erudição”.
7. A Reforma acabou?
“O primeiro e mais agudo ponto de controvérsia entre nós”
Assim Calvino descreveu a doutrina da justificação na resposta ao cardeal
Sadoleto. Ele não podia ter se expressado com mais precisão, pois, a partir do
momento em que Lutero entendeu em Romanos 1 que a justiça de Deus é um
dom completamente imerecido, a justificação tornou-se a questão da Reforma.
“Nada neste artigo pode ser renunciado ou comprometido”, escreveu Lutero,
“mesmo que o céu e a terra e as coisas temporais sejam destruídos”. É a
doutrina, ele disse, “sobre a qual a igreja permanece ou cai”. Nem todos
entendiam ou aderiam a esse ponto: homens como Erasmo pensavam que a
reforma podia ser uma simples faxina moral; os radicais a entendiam como uma
revolta contra os antigos costumes; Zuínglio abriu a Bíblia, mas não encontrou
realmente a ideia de justificação de Lutero ali; alguns, como Martin Bucer e
Richard Baxter, entendiam a justificação de forma diferente. Entretanto, a
experiência de Lutero com Romanos 1 serviria de modelo para a Reforma
prevalecente: através da Bíblia, o ponto essencial da justificação foi descoberto.
A justificação fez da reforma a Reforma.
Para os que aceitavam que Deus declara pecadores justos por sua graça, a
justificação era uma doutrina de conforto e alegria. Como William Tyndale
expressou, evangelion (que chamamos evangelho) é uma palavra grega e
significa boas, alegres, exultantes e felizes notícias, que fazem o coração do
homem alegre e o levam a cantar, dançar e pular de alegria”. O próprio Lutero
sentiu que pelo evangelho ele havia “nascido de novo e entrado no paraíso por
portões abertos”. E não é de admirar: o fato de que ele, um pecador fracassado,
era amado por Deus com perfeição porque estava revestido com a própria justiça
de Cristo lhe deu uma confiança ofuscante.
Quando o diabo lança nossos pecados sobre nós e declara que
merecemos a morte e o inferno, devemos falar assim: “Admito merecer a morte
e o inferno. E então? Isso significa que serei sentenciado à condenação eterna?
De forma alguma! Pois eu sei quem sofreu e satisfez a justiça divina a meu
favor. Seu nome é Jesus Cristo, o Filho de Deus. Onde ele estiver, ali também
estarei”.
Essa reação feliz e sincera à justificação pode ser sentida na música da
Reforma. Pegue, por exemplo, o tradicional “Hosana” cantado na missa. Em
1555, Giovanni Palestrina, o quase músico oficial de Roma, escreveu uma nova
partitura para o “Hosana” na missa para o papa Marcelo. Ouvi-la significa
escutar a espiritualidade da Contrarreforma romana: é uma bela música, mas há
algo cerebral e escrupuloso na entonação dos hosanas pelo coral. Cento e
noventa anos depois, Johann Sebastian Bach, um ardente luterano dos pés à
cabeça, escreveu sua versão de “Hosana” e a diferença é notável. Exatamente a
mesma peça foi musicada, mas, nas mãos luteranas de Bach, há uma ressonância
inteiramente diferente: agora, os hosanas são cantados com uma alegria e
entusiasmo incontidos e inconfundíveis. Esse é o efeito natural da crença na
doutrina da justificação de Lutero.
E quanto aos que estão em Roma? Como eles reagiram ao ensino de
Lutero sobre a justificação? Considerando todas as fogueiras acesas e bulas de
excomunhão enviadas, a resposta talvez pareça bastante óbvia. Na realidade,
entretanto, a reação foi muito diversa. Pelos primeiros vinte e poucos anos da
Reforma, havia um influente grupo de acadêmicos e clérigos na Itália
razoavelmente simpáticos a ela. Um dos seus luminares principais era o nobre
veneziano nascido no mesmo ano que Lutero, o cardeal Gasparo Contarini.
Contarini teve um momento “eureka” parecido com o de Lutero — porém,
alguns anos antes dele! Na véspera da Páscoa de 1511, ele passou a entender
como a justiça de Cristo poderia ser “dada e imputada em nós, como pessoas
enxertadas em Cristo e cingidas de Cristo”. Como resultado, ele defendia que
deveríamos confiar “na justiça de Cristo dada e imputada a nós, e não na
santidade e graça que são inerentes em nós”.
Entretanto, Contarini não tinha lido tanta teologia quanto Lutero, e ele
deixou de perceber as retumbantes implicações de sua descoberta para a missa, a
crença no purgatório e assim por diante. Além disso, com uma doce ingenuidade,
ele acreditava ter descoberto o verdadeiro ensino do catolicismo romano e, por
conseguinte, nunca censurou Roma; em vez disso, passou a vida tentando
reconciliar o sistema católico romano com seu entendimento da justificação.
Com essa crença, Contarini supôs que Roma e os reformadores poderiam
ser facilmente reconciliados. Assim, ele era o homem perfeito para o papa enviar
em 1541, quando uma conferência foi organizada em Regensburg. Nela
esperava-se que católicos e evangélicos poderiam encerrar o cisma. Para seu
grande deleite, eles de fato conseguiram chegar a uma declaração concorde sobre
a justificação. Que conquista maravilhosa! Os pecadores são justificados pela fé,
dizia a declaração. Isso satisfazia os evangélicos presentes. Entretanto, ela
explicava, essa fé deve ser ativa em amor. Isso satisfazia os católicos.
Entretanto, não estava claro: a declaração queria dizer que só com obras
de amor a fé alcançaria a justiça de Cristo? Embora Lutero e Calvino fossem
enfáticos quanto à verdadeira fé salvadora sempre produzir obras de amor, eles
eram igualmente enfáticos sobre essas obras consistirem na consequência, não a
causa da justificação. Fazer essa distinção era o coração do motivo de sua luta e,
ainda assim, essa declaração permanecia ambígua, permitindo que católicos e
evangélicos a lessem de maneiras completamente contrárias. O católico a leria
como uma referência à necessidade de ser amável para ser justificado; o
evangélico a leria como se o amor fosse o fruto necessário da fé que salva
sozinha. Apesar do palavreado comum, cada lado queria dizer algo diferente e,
assim, isso nunca representou uma harmonia real. Lutero, que não esteve
presente, rejeitou (como o papa) a declaração como uma colcha de retalhos
teológicos confusa e desabafou sua frustração com o vocabulário escorregadio:
“As Escrituras Sagradas e o mandamento de Deus, por natureza, não são
ambíguos”.
A falta de consenso se tornava cada vez mais clara, e a conferência de
Regensburg logo se dissolveu. Perturbado, Contarini morreu preso no ano
seguinte, suas esperanças de uma reunião despedaçadas quando o humor em
Roma rapidamente se voltou contra qualquer forma de tolerância com a
Reforma. Quatro anos depois, em 1545, o papa convocou o Concílio de Trento, a
grande assembleia da Igreja Católica Romana com o alvo de estabelecer sua
posição de uma vez por todas.
De Trento, a voz de Roma soou, não mais ambígua, mas alta, clara e
desafiadora. Primeiro, ela rejeitava o princípio sola Scriptura (só a Escritura), ao
afirmar que a mesma lealdade deveria ser dada à Escritura (agora incluindo em
definitivo os apócrifos) e às tradições orais do que Cristo e os apóstolos
ensinaram sobre fé e moralidade. Com essa fundação, Trento procedeu definindo
a justificação como “não só a remissão dos pecados, mas também a santificação
e a renovação do homem interior”.
Não poderia ser mais claro: onde os reformadores defendiam a
justificação como declaração divina de que o pecador — ainda pecador — havia
recebido o status de justo de Cristo, Trento considerava a justificação o processo
de se tornar mais santo e, assim, mais pessoalmente digno de salvação. Para
evitar confusão, Trento pronunciou uma série de anátemas contra o que
considerava conceitos heréticos a respeito da justificação. Por exemplo:
Cânone 9: Se alguém diz que o pecador é justificado só pela fé […] seja anátema [eternamente
condenado].
Cânone 11: Se alguém diz que os homens são justificados só pela imputação da justiça de Cristo ou
só pela remissão de pecados, excluindo a graça e a caridade derramada em seu coração pelo Espírito
Santo e que permanece com eles, ou também que a graça pela qual somos justificados procede
apenas da boa vontade de Deus, seja anátema.
Cânone 12: Se alguém diz que a fé justificadora nada mais é que confiança na misericórdia divina,
que redime os pecados por causa de Cristo […] seja anátema.
Cânone 24: Se alguém diz que a justiça recebida não é preservada e também não é acrescida diante
de Deus por meio de boas obras, e que essas obras são apenas frutos e sinais da justificação obtida, e
não a causa do crescimento da justiça, seja anátema.
Como se podia prever, a partir daí Trento prosseguiu afirmando toda a antiga
teologia dos sacramentos, do purgatório, das indulgências, do sacerdócio e assim
por diante. Também foi estipulada uma série de reformas práticas (como ter um
seminário em cada diocese) de forma que a Igreja Católica Romana se tornasse
uma versão mais pura e forte do que sempre foi. Encorajado por Trento, o
catolicismo romano da segunda metade do século XVI desfrutou de um período
próprio de renovação: a corrupção foi erradicada, novas ordens de monges e
freiras foram organizadas, e os missionários católicos viajaram até os confins da
terra. Entretanto, os dias de Contarini e de reconciliação tinham passado e,
embora Roma estivesse limpa, em suas crenças sobre salvação, ela permanecia
tão longe quanto nunca da Reforma.

Quatrocentos anos depois…


No final do século XVI, todo protestante sabia que o papa era o anticristo e, em
regiões católicas da Europa, “Lutero” era um nome popular para os porcos.
Como as coisas são diferentes hoje! Agora, no século XXI, católicos e
protestantes cooperam rotineiramente, unindo forças para encarar as ameaças
comuns do secularismo, relativismo, ateísmo, islamismo etc. De fato, os
evangélicos hoje continuam a descobrir que têm mais em comum com os
católicos romanos que com os protestantes liberais das próprias denominações.
Além disso, os recuos doutrinários do protestantismo têm feito a constância de
Roma profundamente atrativa para muitos nesta época de mudanças. Explicando
o motivo de sua conversão ao catolicismo romano, Gilbert K. Chesterton
declarou: “É a única coisa que liberta o homem da degradante escravidão de ser
um filho de sua época”. De anátemas lançados a mãos dadas! Não admira que a
união de Roma e o partido da Reforma seja considerado algo alcançável e
próximo.
No entanto, quão próximos estão de fato o catolicismo romano e o
evangelicalismo hoje? Muito próximos, de acordo com o professor Mark Noll e
Carolyn Nystrom no livro Is the Reformation Over? [A Reforma acabou?].
Como prova, eles mencionam uma pesquisa de 1996 avaliando a presença do
evangelicalismo no Canadá e nos EUA. Os entrevistados eram marcados como
evangélicos se concordassem com quatro declarações: a Bíblia é “a Palavra de
Deus inspirada”; “entreguei minha vida a Cristo e me considero um cristão
convertido”; “é importante encorajar os não cristãos a se tornarem cristãos”; e
“por meio da vida, morte e ressurreição de Jesus, Deus providenciou um
caminho para o perdão dos meus pecados”. Com base nisso, uma porcentagem
significante de católicos romanos foi rotulada como “evangélica”. De fato, um
quarto desses “evangélicos” canadenses era católico, ao passo que metade dos
católicos americanos entrevistados concordou com três de quatro declarações.
Nada disso deveria ofender os católicos em questão: um bom número já se
referiu a si mesmo como “evangélico”.[14]
Contudo, o problema dessa pesquisa se encontrava no fato de ela não
mencionar nenhuma das questões da Reforma. No século XVI, os dois lados do
conflito da Reforma (exceto, talvez, por alguns dos radicais) teriam prazer em
concordar com essas declarações e receber o rótulo “evangélico”. A inspiração
da Bíblia, o compromisso com Cristo, missão, e a provisão divina de salvação
por meio Jesus nunca foram pontos de discordância. Da mesma forma, o
entusiasmo demonstrado por Nystrom e Noll revelam o quanto da concordância
atual entre católicos e evangélicos sobre temas como a Trindade e a pessoa de
Cristo parece igualmente equivocado. Ainda que todos os cristãos devam se
alegrar por não haver discordância aqui, o fato é ela nunca existiu. A
concordância em relação a essas coisas não indica que algo mudou desde a
Reforma.
A Reforma girava em torno da justificação; o conceito dos reformadores
sobre a justificação, descoberta na Bíblia, moldou e controlou quase todos os
aspectos de sua discordância com Roma. Assim, se a Reforma realmente chegou
ao fim, o principal motivo deve ser que os dois lados chegaram ao entendimento
conjunto da justificação.
Noll e Nystrom alegam que exatamente isso ocorreu e “muitos católicos
e evangélicos agora creem de forma quase idêntica” sobre a justificação.[15]
Com certeza, muito há para ser dito sobre essa surpreendente alegação. Além do
amplo espectro de pontos de vistas defendidos pelos leigos católicos, há hoje um
grupo de influentes teólogos católicos preparados para soar como Lutero. Por
exemplo, o padre Joseph Fitzmyer, no comentário sobre Romanos, nega que a
justificação consista no processo de tornar-se mais santo (a visão católica
tradicional); em vez disso, ele argumenta, o processo envolve a atribuição da
justiça de Cristo ao pecador pela graça. O queixo de Lutero estaria caído no
chão.
Dito isso, há uma clara distinção no catolicismo romano entre as opiniões
particulares de indivíduos (que podem cair em erro) e a doutrina oficial da
própria igreja. As opiniões individuais são desprovidas de autoridade, e a
história do catolicismo romano até o presente está cheia de teólogos sendo
reprimidos por seus pontos de vista.
A questão, então, é: o ensino oficial católico mudou desde os dias dos
explosivos anátemas em Trento? Noll e Nystrom parecem positivos: “Se é
verdade, como os protestantes conscientes repetem de modo contínuo que o
fundamento de Martinho Lutero ou João Calvino consiste na […] justificação —
o artigo sobre o qual a igreja permanece ou cai […] então, a Reforma acabou”.
[16] Por que tanta confiança? No dia da Reforma (31 de outubro, quando Lutero
pregou suas 95 teses) de 1999, a Igreja Católica Romana e a Federação Luterana
Mundial assinaram a Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação,
afirmando que “as Igrejas Luteranas signatárias e a Igreja Católica Romana estão
agora em condições de articular uma compreensão comum de nossa justificação
pela graça de Deus na fé em Cristo”. Nesse momento, Lutero estaria sofrendo
um ataque cardíaco.
Sob o microscópio, a Declaração conjunta parece mais o acordo de
Regensburg defendido por Contarini. Como em Regensburg, a fé justificadora é
descrita como uma fé que deve ser ativa em amor. E, também à semelhança de
Regensburg, não se examina seu significado com atenção. De modo geral, ao ler-
se a Declaração conjunta, é muito difícil saber o que se diz, e fica a impressão
de que as palavras estão sendo usadas para tapar o sol com a peneira em vez de
oferecer clareza. Torna-se evidente a falta da insistência da Reforma em que
nossa situação diante de Deus independe do nosso crescimento em santidade
pessoal. A justificação é descrita como “o perdão dos pecados” e a “liberação do
poder dominador do pecado”. Mas, isso não se assemelha em nada à definição
de justificação da Reforma. A Declaração pode ser conjunta, mas a
desconsideração da Reforma não é.
A forma mais fácil de determinar com precisão o ensino oficial católico
atual sobre justificação é examinar o Catecismo da Igreja Católica, uma
exposição da fé católica romana que leva o imprimatur do papa João Paulo II. A
definição do Concílio de Trento é aprovada: “Justificação não é apenas a
remissão dos pecados, mas também a santificação e renovação do homem
interior”. Então, ele prossegue ao explicar: “a justificação separa o homem do
pecado que contradiz o amor de Deus e purifica seu coração do pecado”. Como,
por essa definição, a justificação inclui o crescimento em santidade, o Catecismo
está inteiramente correto em concluir que podemos merecer a vida eterna.
Com completa coerência, o Catecismo também afirma a crença no
purgatório e nas indulgências, sinais claros da ação da tradicional doutrina
católica da justificação. Essas doutrinas não podem ser reconciliadas com o
entendimento da justificação anunciado pela Reforma, pois se, como Lutero
argumentou, recebo o status justo de Cristo sem que isso dependa, de alguma
forma, do estado do meu coração ou vida, então não há espaço para o purgatório
— em que me torno mais digno do céu — ou para as indulgências — para me
apressarem até lá.
Sem dúvida ocorreram algumas mudanças em Roma, em especial desde a
década de 1960, mas, com respeito às questões teológicas que causaram a
Reforma, nenhuma doutrina foi revogada. O conceito de Roma sobre a
justificação permanece idêntico ao afirmado em Trento (como a crença atual
ratificada no Catecismo): “Escritura e Tradição devem ser aceitas e honradas
com iguais sentimentos de devoção e reverência”. Assim, enquanto devam ser
aplaudidas as tentativas de ampliar a unidade cristã, também é preciso
reconhecer que, como as coisas estão, a Reforma não acabou.

“Tu triunfaste, ó pálido Erasmo; o mundo se acinzentou com teu sopro”


A sugestão de que as questões da Reforma podem ainda estar vivas nos é
incômoda. Hoje, muitos cristãos prefeririam dizer com Samuel Johnson: “Da
minha parte, creio que todos os cristãos, sejam papistas ou protestantes,
concordam nos artigos essenciais; suas diferenças são triviais, e mais políticas
que religiosas”. E não lamentamos apenas as divisões contínuas na igreja; nossa
reação revela algo em nós que, talvez, seja mais importante que as relações
protestante-católicas.
Para o público atual, os debates da Reforma soam como embates sobre
minúcias. Perguntamos se vale mesmo a pena disputar se a justificação decorre
da fé (como Roma concordava) ou só da fé (como os reformadores insistiam)?
Batalhar por uma palavra! Certamente isso só pode interessar a quem tem as
sensibilidades doutrinárias mais preciosistas! Quanto à linguagem forte usada
nesses debates, elas soam estridentes e sem amor em nossos dias. E sugerir que
esses debates são igualmente relevantes hoje? Então deveríamos defender o
retorno da execução pelo fogo, de tão atrasado e severo que isso parece.
No século XXI, não confiamos em “meras” palavras. Elas são armas de
manipulação, ferramentas para nos coagir. Temos coisas melhores a fazer que
brigar por palavras. Somos tolerantes. O espírito da Reforma, que substituiu o
altar pelo púlpito como ponto focal de cada igreja, desapareceu há muito. Um
púlpito? Essa própria ideia nos parece autoritária e manipuladora. Como Erasmo
triunfou! Como vimos no Capítulo 4, ele disse: “A suma de nossa religião é paz
e unanimidade”, e declarou certa vez: “Essas coisas dificilmente permanecem a
não ser que definamos o mínimo possível”. Em poucas palavras, não gostamos
de precisão teológica, pois ela provoca divisão sobre questões que não mais
consideramos relevantes.
Lutero respondeu a Erasmo com dureza: “Você com sua teologia de amor
à paz não se importa com a verdade”. Talvez, tenha sido um pouco agressivo —
e o clamor de todos os mártires luteranos, calvinistas, anabatistas e católicos,
sugerem-nos que um pouco mais de tolerância no século XVI talvez não fosse
algo ruim — mas, essas são palavras que capturam o surpreendente efeito da
Reforma sobre nós. Pois, ao analisarmos a história da Reforma, somos forçados
a perguntar: essas crenças são dignas de que alguém sofra o martírio por elas?
Todos os mártires sofreram por nada se a causa de sua morte era falsa ou
irrelevante. Eles podem, claro, ter se equivocado (e cada lado da divisão na
Reforma concordaria que os mártires do lado oposto estavam enganados), mas o
destino de cada um deles exige mais que a rejeição superficial.
Porém, talvez aconteça que releguemos as questões por causa de uma
suposição cultural subjacente de sua veracidade. Eles não debatiam sobre
preocupações pequenas: O que acontecerá comigo quando morrer? Como posso
saber? A justificação consiste no dom da posição de justo (só pela fé) ou no
processo de tornar-se mais santo (pela fé)? Seja como for, posso confiar só em
Cristo para a salvação ou ela também repousa sobre minha santidade? Muito
mais está em jogo que o interesse de alguém inquieto para colocar o pingo no “i”
e riscar o “t” da palavra doutrina.
O aspecto tão preocupante na indiferença de Erasmo em relação à
doutrina é seu efeito de corroer e enclausurar. Erasmo só conseguiu — pois
desejava apenas — limpar o sistema em que ele se encontrava. Ele podia acertar
os alvos fáceis: os papas maus e desejar que as pessoas fossem mais devotas,
porque não se dispunha ao envolvimento com questões doutrinárias mais
profundas; ele jamais realizou algo mais que mudanças cosméticas. Condenou-se
a permanecer prisioneiro da situação da igreja. E assim deve ser o mundo
conquistado por ele. Pois, na medida em que a doutrina é ignorada,
permanecemos cativos ao sistema dominante ou ao espírito da época, sejam
quais forem.

Tendo a Bíblia, mas não o evangelho


Todavia, todas essas afirmações a respeito de Erasmo são justas? Não foi ele
quem preparou o Novo Testamento grego, que deu ímpeto à Reforma? Sim, sem
dúvida; no entanto, o fato de ele possuir as Escrituras (e além de seu profundo
estudo delas) realizou poucas mudanças nele por causa do modo que ele as
tratava. Ao esconder a Bíblia sob convenientes afirmações de sua imprecisão,
Erasmo concedeu às Escrituras pouca autoridade prática e orientadora. Como
resultado, a Bíblia lhe era apenas uma voz entre muitas e, assim, sua mensagem
poderia ser costurada, estreitada e ajustada para acomodar seu conceito a
respeito do cristianismo.
Para romper com esse esquema sufocante e alcançar algumas reformas
substanciais, a atitude de Lutero era necessária, pois a Escritura é o único firme
fundamento para a fé (sola Scriptura). A Bíblia deveria ser reconhecida como a
autoridade suprema e liberada para contradizer e rejeitar todas as outras
alegações, ou ela mesma seria rejeitada e sua mensagem sequestrada. Em outras
palavras, a simples reverência à Bíblia e o reconhecimento de que ela detém
alguma autoridade jamais teria sido o bastante para gerar a Reforma. Sola
Scriptura era a chave indispensável para a mudança.
Entretanto, não se tratava apenas da questão da autoridade da Bíblia; o
motivo que conduziu Lutero ao início da Reforma — mas não Erasmo —, jazia
na diferença de sua percepção do conteúdo da Bíblia. Para Erasmo, a Bíblia era
um pouco mais que uma coletânea de exortações morais a chamar os crentes
para se assemelharem mais a Cristo, seu exemplo. Para Lutero, isso significava
virar o evangelho de cabeça para baixo: o otimismo de Erasmo revelava sua
completa ignorância da seriedade do pecado. Lutero percebia que os pecadores
precisavam em primeiro lugar do Salvador; e, na Bíblia há, acima de tudo, uma
mensagem de salvação. Como Richard Sibbes lamentou, um século depois de
Lutero, era fácil demais perder o eixo controlador em Cristo e seu dom da justiça
— o próprio cerne da verdadeira Reforma. Apesar de a Bíblia estar aberta, sem a
mensagem do dom gratuito da justiça de Cristo, não poderia haver Reforma.

De volta ao futuro
Quanto mais perto se observa, mais claro se torna: a Reforma não foi, em sentido
primário, um movimento negativo, voltado ao afastamento de Roma; ela
consistiu em um movimento positivo, voltado ao Evangelho. A pura reação
negativa era a marca de certos radicais, mas não da Reforma principal.
Infelizmente, para nós hoje, obcecados com inovações, isso significa que não
podemos alistar a Reforma apenas na causa do “progresso”. Os reformadores
não estavam atrás de progresso, mas de regresso: eles nunca se sentiram
dominados pelas novidades como ficamos, nem impacientes com algo antigo por
sua antiguidade; ao contrário, a intenção deles era desenterrar o cristianismo
antigo e originário, o cristianismo soterrado sob séculos de tradições humanas.
Assim, precisamente por isso a validade da Reforma se mantém para
hoje. Se a Reforma tivesse sido apenas uma reação à situação histórica de cinco
séculos atrás, se significasse apenas um pouco do “progresso” do século XVI,
esperaríamos que ela tivesse chegado ao fim. Mas, como um projeto para se
aproximar cada vez mais do evangelho, ela não pode acabar.
A situação hoje dá testemunho, mais que nunca, da necessidade da
Reforma. A doutrina da justificação é rejeitada como insignificante, errônea ou
perturbadora. Algumas novas perspectivas sobre o que o apóstolo Paulo quis
dizer com a justificação, em especial quando tendem a remover a ênfase da
necessidade de conversão pessoal, têm confundido as pessoas, deixando o artigo
que Lutero afirmou que não pode ser abandonado ou comprometido justamente
assim: abandonado ou comprometido. E não são só as novas leituras da Bíblia. A
cultura do pensamento positivo e da autoestima tem varrido a necessidade de o
pecador ser justificado. Em suma, o problema de Lutero ser torturado pela culpa
diante do Juiz divino é rejeitado como um problema do século XVI, e sua
solução, portanto, mostra-se desnecessária para nós hoje.
Mas, na verdade, é precisamente nesse contexto que a solução de Lutero
surge como notícias muito alegres e relevantes. Pois, tendo abandonado a ideia
de que podemos ser culpados diante de Deus e, assim, precisar de sua
justificação, nossa cultura sucumbe ao velho problema da culpa de formas mais
sutis — e para as quais ela não tem respostas. Hoje, somos todos bombardeados
com a mensagem de que seremos mais amados quando nos tornarmos mais
atraentes. Isso pode não ter mais relação com Deus, mas ainda representa uma
religião de obras, profundamente encravada no ser. Para isso, a Reforma tem as
boas novas mais radiantes. Como Lutero expressou: “Os pecadores são atraentes
por serem amados; eles não são amados por serem atraentes”. Só essa mensagem
do amor de Cristo, contrário ao senso comum, apresenta a solução séria.
A Reforma consiste em uma mensagem profundamente relevante, bela e
doce, que oferece alegria e desafia a morte: não surpreende que Richard Sibbes
tenha chamado a Reforma de “a chama que o mundo inteiro jamais será capaz de
extinguir”.
Linha do tempo da Reforma
1304 Nascimento de Petrarca, “o pai do humanismo”.

1305-78 Mudança do papado para Avignon.

1324? Nascimento de John Wycliffe.

1372 Nascimento de Jan Hus.

1378 O “grande cisma” do papado tem início.

1384 Morte de John Wycliff.

1414-18 Reunião do Concílio de Constança para terminar o “grande cisma”.

1415 Execução de Jan Hus por ordem do Concílio de Constança.

1440 Lorenzo Valla prova que a Doação de Constantino é uma farsa.

1450? Johannes Gutenberg inventa a imprensa.

1453 Captura de Constantinopla, o último remanescente da Roma Imperial,


pelos turcos otomanos.

1466? Nascimento de Erasmo de Roterdã.

1483 Nascimento de Martinho Lutero.

1484 Nascimento de Ulrico Zuínglio.

1492 Colombo navega até a América.

1505 Lutero torna-se monge.

1509 Nascimento de João Calvino em Noyon, França.


1516 Publicação do Novo Testamento Grego de Erasmo de Roterdã.

1517 Lutero posta suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg.

1519? Lutero tem sua “experiência na torre”. Zuínglio começa a pregar em


Zurique

1520 Lutero publica seus três tratados da Reforma e queima a bula papal.

1521 Dieta de Worms. Lutero é levado sob custódia ao castelo de Wartburg,


onde traduz o Novo Testamento para o alemão. Henrique VIII publica sua
Defesa dos sete sacramentos contra Lutero e é premiado com o título “defensor
da fé”.

1522 Lutero completa a tradução alemã do Novo Testamento.

1523 Zurique oficialmente apoia a teologia de Zuínglio.

1524-5 Guerra dos Camponeses na Alemanha.

1525 Primeiros batismos de adultos em Zurique.

1526 O Novo Testamento em inglês de William Tyndale é completado.

1528 Execução de Patrick Hamilton na fogueira (em St. Andrews) por heresia.

1529 Lutero e Zuínglio não conseguem concordar sobre a ceia do Senhor no


Colóquio de Marburgo.

1531 Morte de Zuínglio na batalha de Kappel. Execução de Thomas Bilney por


heresia em Norwich.

1534 Henrique VIII declarado “chefe supremo da Igreja da Inglaterra”. Primeira


edição completa da tradução da Bíblia por Lutero.

1534-1535 Reino de Münster.

1536 Calvino chega a Genebra. Publicação da primeira edição de suas Institutas.


Morte de Erasmo. Execução de William Tyndale. Começa a dissolução dos
monastérios ingleses.

1538 Calvino, expulso de Genebra, se estabelece em Estrasburgo com Bucer.


Legalização da leitura da Bíblia em inglês na Inglaterra.

1541 Teólogos evangélicos e católicos se encontram para resolver as diferenças


no Colóquio de Regensburg. Calvino retorna a Genebra.

1542 Estabelecimento da Inquisição para combater as heresias.

1545-63 Concílio de Trento.

1546 Morte de Lutero.

1547 Morte de Henrique VIII. Seu filho evangélico, Eduardo VI, ascende ao
trono.

1553-1558 Restauração do catolicismo romano na Inglaterra pela rainha Maria, a


Sanguinária.

1558 Isabel I sucede Maria, estabelecendo o protestantismo moderado para a


Igreja da Inglaterra.

1559 Calvino produz sua edição final e definitiva das Institutas. Retorno de John
Knox à Escócia.

1560 O Parlamento escocês “reformado” torna a Escócia oficialmente calvinista.

1564 Morte de Calvino.

1572 Milhares de protestantes franceses são mortos nos massacres do dia de são
Bartolomeu.

1576 Isabel I ordena ao arcebispo Grindal a supressão das “profetizações”


puritanas.

1588 A armada espanhola não consegue invadir a Inglaterra. Surgem os


caluniosos tratados de “Marprelate”.
1593 Ato contra os puritanos.

1603 Jaime VI da Escócia sucede Isabel I, tornando-se Jaime I da Inglaterra.

1604 Conferência da Corte de Hampton.

1605 Conspiração da Pólvora.

1618 Jaime I publica seu Book of Sports [Livro dos esportes].

1618-1619 Sínodo de Dordt.

1620 O Mayflower navega de Plymouth (Inglaterra) para Massachusetts (EUA).

1625 Carlos I sucede seu pai como rei da Inglaterra.

1633 William Laud torna-se arcebispo da Cantuária. Nova edição do Book of


Sports.

1637 Condenação de Prynne, Burton e Bastwicke pela Câmara Estrelada.


Revoltas
contra o Livro de oração em Edimburgo.

1639 Carlos I envia seu primeiro exército contra a Escócia.

1642 Começa a guerra civil entre Carlos I e o Parlamento.

1643-1649 A Assembleia de Westminster produz a Confissão de fé de


Westminster, dois catecismos e um Diretório do culto público.

1649 Execução de Carlos I. A Inglaterra é proclamada uma República.

1658 Morte de Oliver Cromwell, lorde protetor da Inglaterra.

1660 Proclamação de Carlos II rei da Inglaterra.

1662 Um quinto do clero da Inglaterra é expulso pela recusa à adesão ao Livro


de oração comum. Começa a perseguição aos não conformistas.
Leituras adicionais
Eu marquei as “leituras obrigatórias” com duas estrelas.

O contexto da Reforma
Para ter uma boa ideia de como era viver na Europa católica romana medieval,
tente Princes, Pastors and People: The Church and Religion in England, 1500–
1700 [Príncipes, pastores e o povo: a igreja e a religião na Inglaterra, 1500-
1700], de S. Doran e C. Durston (Routledge, 1991). Ou, para um pouco mais de
profundidade, Religion and Devotion in Europe c.1215-c.1515 [Religião e
devoção na Europa c.1215-c.1515] de R.N. Swanson (Cambridge University
Press, 1995).
Mas, para penetrar na mente medieval desfrute do fascinante The Discarded
Image: An Introduction to Medieval and Renaissance Literature [A imagem
descartada: introdução à literatura medieval e renascentista] (Cambridge
University Press, 1994) de C. S. Lewis.

Martinho Lutero
** Todo cristão deveria ler a clássica biografia de Lutero por Roland Bainton,
Here I Stand: A Life of Martin Luther [Aqui permaneço: A vida de Martinho
Lutero] (Abingdon, 1950). Um exuberante e viciante livro de cabeceira.
** E por que não tentar ler algo do próprio Lutero? Você pode ler seu excelente
Da liberdade cristã. A versão inglesa é gratuita em
<http://www.theologynetwork.org/historical-theology/starting-out/the-freedom-
of-the-christian.htm>. Ou, se quiser um pouco mais, Timothy Lull reuniu uma
excelente pequena coletânea das obras mais importantes de Lutero em seu
Martin Luther’s Basic Theological Writings [Escritos teológicos básicos de
Martinho Lutero] (Fortress, 1989).

Ulrico Zuínglio e os reformadores radicais


Se você quer provar o melhor de Zuínglio, tente “On the Clarity and Certainty of
the Word of God” [Sobre a clareza e a certeza da Palavra de Deus], em G. W.
Bromiley (ed.), Zwingli and Bullinger, Library of Christian Classics [Zuínglio e
Bullinger, Biblioteca dos Clássicos Cristãos] (SCM,1953).
Provavelmente, a melhor biografia de Zuínglio é Zwingli, de G. R. Potter
(Cambridge University Press, 1976).
Para saber mais a respeito da história da Reforma Radical, G. H. Williams tem
tudo o que você precisa em The Radical Reformation [A Reforma Radical]
(Weidenfeld & Nicolson, 1962). Ou, se você quer ler o tipo de coisa que os
radicais escreviam, veja G. H. Williams e A. M. Mergal, Spiritual and
Anabaptist Writers [Escritores espirituais e anabatistas], Library of Christian
Classics (SCM, 1957).
João Calvino
** As Institutas da religião cristã de Calvino são obrigatórias. O título pode soar
assustador; mas, o conteúdo é fácil de ler e caloroso em estilo. Se puder, pegue a
tradução em dois volumes da edição de 1559 por F. L. Battles (Westminster
Press, 1960).
Seja cuidadoso com o que você lê sobre Calvino: as livrarias estão cheias de
livros tendenciosos sobre ele. Tente algo de T. H. L. Parker, que escreveu bem
sobre o homem e seu pensamento.

A Reforma na Grã-Bretanha
O livro que ajudou muitos a ver o que motivava os reformadores ingleses foi o
clássico Five English Reformers [Cinco reformadores ingleses] do bispo John
Charles Ryle (Banner of Truth, 1960). Excelente!
Para ver o coração de um reformador inglês, dê uma olhada nas orações diárias
de John Bradford, online em <http://www.theologynetwork.org/historical-
theology/starting-out/dailymeditations-and-prayers.htm>.
Uma pequena e útil introdução é o já mencionado Princes, Pastors and People.
A narrativa clássica da Reforma na Inglaterra é The English Reformation [A
Reforma inglesa] de A. G. Dickens (2. ed., Pennsylvania State University Press,
1989). Sua abordagem está desatualizada hoje, mas ele ainda serve para ter uma
boa ideia da história em geral.
Para obter um panorama da Reforma enquanto ela varria a Europa, tente o
Reformation: Europe’s House Divided 1490-1700 [Reforma: a casa dividida da
Europa] (Penguin, 2003) de Diarmaid MacCulloch. Ou para uma leitura com
menos opiniões, veja The European Reformation [A Reforma europeia] de Euan
Cameron (Clarendon, 1991).
Os puritanos
**O primeiro livro deve ser O caniço ferido de Richard Sibbes. Prepare o lenço!
Você pode encontrá-lo online em português em <http://monergismo.com/wp-
content/uploads/canico-ferido_sibbes.pdf>.
** Para um delicioso menu do puritanismo, veja K. M. Kapic e R. C. Glason,
The Devoted Life: :
** Outro jeito excelente de beneficiar-se da sabedoria puritana é o livro de James
I. Packer, Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã (Editora
Fiel).

A Reforma acabou?
Para um excepcional e profundo exame do entendimento reformado da
justificação, leia The Doctrine of Justification by Faith [A doutrina da
justificação pela fé] do grande puritano John Owen. Disponível em
<http://www.ccel.org/ccel/owen/just.i.html>. Owen exigirá um período de
mastigação, pois ele é um alimento sólido.
Embora este autor discorde de suas conclusões, Is the Reformation Over? An
Evangelical Assessment of Contemporary Roman Catholicism [A Reforma
acabou? Uma avaliação evangélica do catolicismo romano contemporâneo]
(Baker and Paternoster, 2005), por Mark Noll e Carolyn Nystrom, é útil ao
esboçar o atual estado das relações protestantes-católicos.
Para um valioso conjunto de ensaios analisando as diferenças que permanecem
entre protestantismo e catolicismo romano, veja John Armstrong (ed.), Roman
Catholicism: Evangelical Protestants Analyze what Divides and Unites Us
[Catolicismo romano: protestantes evangélicos analisam o que nos une e divide]
(Moody, 1994). Mark Husbands e Daniel J. Treier também reuniram uma útil
coletânea de artigos examinando questões sobre a doutrina da justificação em
Justification: What’s at Stake in the Current Debates [Justificação: o que está em
jogo nos debates atuais] (IVP and Apollos, 2004).

[1] Oswald Bayer, “Justification: Basis and Boundary of Theology” in: Joseph A. Burgess & Marc Kolden
(orgs.), By Faith Alone: Essays in Honor of Gerhard O. Forde. Eerdmans, 2004, p. 78.
[2] J. I. Packer & O. R. Johnston, “Historical and Theological Introduction” in: Martin Luther on The
Bondage of the Will. James Clarke & Co., 1957, p. 43-4.
[3] R. Bainton, Erasmus of Christendom. William Collins Sons & Co., 1969, p. 33.
[4] Os anabatistas não devem ser confundidos com os batistas. Apesar de semelhanças e pontos em
comum, os batistas não se originaram dos anabatistas; sua história é diferente e tem início um século mais
tarde, na Inglaterra.
[5] Os reformadores convencionais são geralmente chamados de reformadores “magisteriais” por causa de
sua cooperação com os magistrados seculares.
[6] O teólogo chamava-se Pierre Caroli (1480-1545?). Doutor em teologia pela Sorbonne, passou por
experiências comuns a todos os que se tornavam protestantes. Ele se desentendeu com Calvino e o acusou
de arianismo em 1536. Calvino refutou a acusação com a publicação de Confessio de Trinitate propter
calumnias P. Caroli (1537). [N. do R.]
[7] Quase uma década depois, em 1545, Caroli reapresentou a acusação contra Calvino e também contra
Farel de arianismo e sabelianismo ao publicar Refutatio blasphemiae Farellistarum in sacrosanctam
Trinitatem. Calvino a refutou com Pro G. Farello et collegis eius adversus Petri Caroli theologastri
calumnias defensio. [N. do R.]
[8] R. Bainton, Erasmus of Christendom. William Collins Sons & Co., 1969, p. 153.
[9] Edmund Morgan, The Puritan Family: Religion & Domestic Relations in 17th Century New England.
Harper Perennial, 1966, p. 16.
[10] Esse tipo de trocadilho era muito comum na Inglaterra de Isabel. Mar, em inglês, significa “estragar,
desfigurar”, e prelate significa “prelado” — um título eclesiástico honorífico. [N. do T.]
[11] Prato tradicional da Escócia, feito com estômago de carneiro recheado com vísceras de carneiro,
flocos de aveia e temperos. [N. do R.]
[12] Inn, no presente contexto, refere-se a um prédio para reuniões estudantis, principalmente de alunos de
direito, em Londres, termo que caiu em desuso no inglês moderno. [N. do E.]
[13] Disponível gratuitamente com o título O caniço ferido em http://monergismo.com/wp-
content/uploads/canico-ferido_sibbes.pdf [N. do T.]
[14] M. A. Noll & Carolyn Nystrom, Is the Reformation Over? An Evangelical Assessment of
Contemporary Roman Catholicism. Baker and Paternoster, 2005, p. 12-3, 23.
[15] Noll & Nystrom, p. 232.
[16] Ibid.

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